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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Luiz Fernando Sempionato Vieira Pinho. As emoções na constituição da identidade ______________________________________________________________________ A questão do sofrimento e o papel da solidariedade para a emancipação DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2014

As emoções na constituição da identidade A questão do ... Fernando... · carril con su histórico-materialista y dialéctico vista. Silvia Lane reformuló las categorías de

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Luiz Fernando Sempionato Vieira Pinho.

As emoções na constituição da identidade

______________________________________________________________________

A questão do sofrimento e o papel da solidariedade para a

emancipação

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SÃO PAULO

2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Luiz Fernando Sempionato Vieira Pinho.

As Emoções na constituição da identidade

______________________________________________________________________

A questão do sofrimento e o papel da solidariedade para a

emancipação

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Psicologia Social sob orientação do Prof. Dr. Antônio C. Ciampa.

SÃO PAULO

2014

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BANCA EXAMINADORA

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Agradecimentos

Essa tese só foi possível graças à colaboração de várias pessoas, entre elas,

faço questão de aqui formalizar.

Aos colegas de Núcleo e das disciplinas que cursei nestes anos que muito

contribuíram com meu aprendizado, considerações e reflexões que me

permitiram aqui lançar. Colegas como Diane, Paula, Mariana, Tiago e outros

mais.

A Marlene que com seu senso profissional me ajudou a compor aquilo que

precisava para cumprir com os requisitos necessários à conclusão desta tese.

Não faltaram paciência e empatia em nenhuma ocasião.

A minha amiga Cássia Santos que muito me ajudou nesta tese, pessoa que

tenho profunda admiração e respeito.

À Maria José e Angel que fazem parte desta tese e com suas narrativas me

levaram a pensar de forma diferente o sentido da vida. Sem elas, essa pesquisa

não seria possível.

Ao Prof. Dr. Juracy A. M. Almeida, participante do Núcleo de Pesquisa, sábio e

extremamente culto que contribuía com suas reflexões em todas as reuniões. Do

Núcleo saímos todos diferentes, graças aos seus conhecimentos que conosco

compartilhava. Quando tudo parecia complexo, Jura como chamamos,

transformava em algo simples. Não poderia deixar de convidá-lo para fazer parte

desta banca examinadora.

A Profa. Dra. Cecília Pescatore que tive a oportunidade de conhecer no Núcleo,

seu olhar transmite-nos simpatia, docilidade e equilíbrio. E com seu

conhecimento e inteligência entendi que muito contribuiria comigo nesta tese.

Profa. Dra. Bader B. Sawaia que tive a honra de conhecer nas disciplinas ligadas

a sua área de pesquisa. Fui seu aluno em duas disciplinas, e se ela ministrasse

outras mais, seria seu aluno em todas, não perderia a oportunidade de ouvi-la.

Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa, é até difícil traduzir em palavras. Sua

inteligência e capacidade é reconhecida em vários espaços e não tão somente

na PUC. Mas o que quero aqui formalizar é que o mundo acadêmico muitas

vezes é constituído de profissionais vaidosos e até com certa prepotência.

Ciampa, como chamamos, é uma pessoa simples, e não se encaixa neste rótulo.

Sua preocupação em tratar as pessoas, o cuidado como se dirige a nós é algo

que não se vê normalmente.

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Agradeço a Profa. Célia Escanfella por aceitar o convite de participar

desse importante momento em minha vida pessoal e profissional. Sua postura

de integridade e seriedade me honraram com sua participação.

A Adriana que me acompanhou nesta minha jornada compreendendo as

dificuldades e os momentos de ausência.

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Dedicatória

A minha irmã Lucia que me ajudou nesta empreitada, e ela sabe o porquê.

Sem sua ajuda não teria conseguido.

Aos meus filhos.

Ter filhos como os meus, corretos e pessoas de bem nos dá a tranquilidade

necessária para ousar um desafio como esse.

Aos meus pais.

Mesmo não estando aqui comigo já há alguns anos, tenho certeza que eles

sabem bem o que significou essa jornada.

Essa tese foi para retribuir o que deixei de fazer no passado e que agora de

alguma forma, no meu intimo pelo menos, posso compensar. Nunca é tarde

para nos desculparmos.

Embora não tenha deixado claro com minhas palavras, sei que eles entendem

minhas justificativas.

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Entre dois mundos

Quem sou eu? Eu sou o que tenho, e se nada tenho, nada sou. Luto para ter algo, para ser algo, para ser alguém. Que ainda não sei quem. Que ironia a minha, Quando tenho algo, está vazio, quebrado, ultrapassado pelo tempo. Desgastado pelo uso, perdido e fragmentado como eu. E o que tenho, então? Tenho família, filhos somente. Que em suas mentes. Querem tudo que veem na tela da ilusão. O que eles têm? Nada, só a mim. Que também não tenho nada. Entre o nada e o ter está meu ser. Entre dois mundos, onde é muito ter e pouco ser. Busco-me no concreto da mídia, Perco-me todos os dias no vazio do meu ser Luiz Fernando Sempionato Junho de 2011

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Lista de Tabelas

Tabela 1 Classificação dos Afetos para Espinosa......................................pág.66

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RESUMO PINHO, Luiz Fernando Sempionato Vieira. As Emoções na constituição da

Identidade: A questão do sofrimento e o papel da solidariedade para a

emancipação. Tese de Doutorado. PUC - SP, 2014

No âmbito das ciências sociais, o homem é figura marcante como objeto de estudo. A psicologia, sobretudo, a social, vem se debruçando sobre o aprofundamento da relação deste com a sociedade. Isto, se principalmente, levarmos em conta a visão sócio histórica de que o homem é produto e produtor de sua história. O objetivo desta pesquisa é compreender o papel da emoção, da afetividade e sobretudo do sofrimento na formação da Identidade, a partir de concepções teóricas de Antonio da Costa Ciampa. Para tal, contextualizamos estudos deste autor dentro da psicologia social, sobretudo, a partir de ideias de Silvia Lane com sua visão materialista-histórica e dialética. Silvia Lane reformulou as categorias do psiquismo humano de Leontiev que até então, eram: Atividade, Consciência e Personalidade, substituindo Personalidade por Identidade. A Identidade foi reconhecida por Lane como categoria síntese a partir dos estudos psicossociais de Antônio da Costa Ciampa. No entanto, Silvia Lane mais adiante, compreendeu que as emoções, bem como Atividade e Consciência são categorias que imbricadas compõem a Identidade. Dessa maneira, essa pesquisa buscou demonstrar que o sofrimento tem papel importante na formação identitária. E que a nosso ver, há três tipos de sofrimento que permeiam a vida de todos os indivíduos, e que estão presentes em cada um de nós, de acordo com as circunstâncias da vida, sendo que a superação destes ciclos faz parte do embate do homem em sua história. Esses três tipos de sofrimento aqui denominamos de “Sofrimento Coletivo”, “Sofrimento Físico” e “Sofrimento Psicológico Individual e de Culpa” Diante dos três tipos de sofrimento o ser humano pode buscar formas de enfrentamento que denominamos “Reacional Passiva diante do Sofrimento” e “Reacional Ativa diante do Sofrimento”. No entanto, o sofrimento por si só não é capaz de promover mudanças no homem a ponto de que este tenha uma visão mais clara sobre o mundo e às pessoas ao seu redor. Nossa pesquisa, demonstrou que a solidariedade é de grande relevância, a fim de possibilitar ao indivíduo encontrar outras saídas para os embates da vida, e por conseguinte, buscar autonomia e emancipação, como formas de propiciar sua mudança constante, a metamorfose identitária. Palavras chaves: Identidade, emoção, sofrimento, emancipação e solidariedade.

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ABSTRACT

PINHO, Luiz Fernando Sempionato Vieira. Emotions in the constitution of identity: A question of suffering and the role of solidarity for the emancipation. PhD thesis. PUCSP, 2014

Within the social sciences, the man is striking figure as an object of study. Psychology, especially the social, has been poring over the deepening its relationship with society. This, mainly, we take into account the socio historical view that man is a product and producer of its history. The objective of this research is to understand the role of emotion, affection and above all the suffering in the formation of identity, from the theoretical conceptions of Antonio C. Ciampa. To this end, we contextualize studies of this author within social psychology, especially from ideas Silvia Lane with his historical-materialist and dialectical view. Silvia Lane reformulated the categories of the human psyche Leontiev until then, were: Activity, Consciousness and Personality, Personality replaced by Identity. The identity was recognized by Lane as a synthesis from studies of psychosocial Antônio da Costa Ciampa category. However, Silvia Lane later, he realized that the emotions as well as Activity and Consciousness are overlapping categories that make up the identity. Thus, this research sought to demonstrate that suffering has an important role in identity formation. And what in our view, there are three types of suffering that permeate the lives of all individuals, and which are present in each of us, according to the circumstances of life, and overcoming these cycles is part of the struggle of man in its history. These three types of suffering we call "Collective Suffering," "Physical Suffering" and "Individual Psychological Suffering and Guilt" Given the three types of suffering humans can find ways of coping that we call "Reaction on Passive Suffering" and "Reaction Active front of Suffering." However, suffering alone is not able to promote changes in man to the point that it has a clearer view about the world and people around you. Our research has shown that solidarity is of great importance in order to enable the individual to find other outlets for collisions of life, and therefore seek autonomy and emancipation, as ways to promote their constant change, identity transformation.

Keywords: Identity, emotion, suffering, emancipation and solidarity.

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RESUMEN PINHO, Luiz Fernando Vieira Sempionato. Emociones en la constitución de la identidad: una cuestión de sufrimiento y el papel de la solidaridad por la emancipación. Tesis Doctoral. PUC - SP 2014.

Dentro de las ciencias sociales, el hombre es figura llamativa como un objeto de estudio. Psicología, especialmente lo social, ha estado estudiando sobre la profundización de su relación con la sociedad. Esto, sobre todo, que tiene en cuenta el punto de vista histórico socio que el hombre es un producto y productor de su historia. El objetivo de esta investigación es comprender el papel de la emoción, afecto y, sobre todo, el sufrimiento en la formación de la identidad, de las concepciones teóricas de Antonio C. Ciampa. Para este fin, hemos contextualizar los estudios de este autor dentro de la psicología social, sobre todo a partir de ideas Silvia carril con su histórico-materialista y dialéctico vista. Silvia Lane reformuló las categorías de la Leontiev psique humana hasta entonces, fueron: Actividad, Conciencia y Personalidad, personalidad sustituida por la Identidad. La identidad fue reconocida por Lane como una síntesis de los estudios de categoría psicosocial Antônio da Costa Ciampa. Sin embargo, Silvia Lane, más tarde, se dio cuenta de que las emociones, así como la actividad y la conciencia se superponen las categorías que conforman la identidad. Por lo tanto, esta investigación buscó demostrar que el sufrimiento tiene un papel importante en la formación de la identidad. Y lo que en nuestra opinión, hay tres tipos de sufrimiento que impregnan la vida de todas las personas, y que están presentes en cada uno de nosotros, de acuerdo con las circunstancias de la vida, y la superación de estos ciclos es parte de la lucha del hombre en su historia. Estos tres tipos de sufrimiento que llamamos "sufrimiento colectivo", "sufrimiento físico" y "sufrimiento psicológico individual y la culpa". Teniendo en cuenta los tres tipos de sufrimiento humano puede encontrar maneras de hacer frente al que llamamos "Reacción en sufrimiento pasivo" y "Reacción frente activo del Sufrimiento". Sin embargo, el sufrimiento por sí sola no es capaz de promover cambios en el hombre, hasta el punto de que tiene una visión más clara sobre el mundo y la gente que te rodea. Nuestra investigación ha demostrado que la solidaridad es de gran importancia con el fin de permitir al individuo a encontrar otros puntos de venta para las colisiones de la vida, y por lo tanto buscar la autonomía y la emancipación, como formas de promover su constante cambio, transformación identidad. Palabras clave: Identidad, emoción, el dolor, el empoderamiento y la solidaridad.

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SUMÁRIO

Apresentação.....................................................................................................1

PARTE I

CAPÍTULO I 1- Concepções teóricas sobre Identidade de Ciampa....... ...........................11

1.1- Em busca de uma Psicologia Social Crítica.......................................11 1.2- Políticas de Identidade e Identidade Política.....................................18 1.3- A Identidade..........................................................................................20 1.3.1- A Sociedade e seu papel de formação da Identidade....................20 1.3.2- A Sedimentação dos papéis.............................................................25

CAPÍTULO II 2- A psicologia Social e contribuição de Silvia Lane.....................................30

2.1-As categorias do psiquismo humano..................................................36

CAPÍTULO III 3- A Afetividade e o papel das emoções........................................................41

3.1- As Emoções..........................................................................................41 3.2- A Afetividade para Espinosa................................................................46 3.3- A Paixão.................................................................................................49

CAPÍTULO IV 4- O Sofrimento e sua relação com a Identidade............................................52

4.1- O Sofrimento e seus aspectos psicossociais.....................................52 4.2- O Sofrimento e sua relação com o sentido da vida.............................54 4.3- O Sofrimento e suas interpretações....................................................55

PARTE II CAPÍTULO V 5- Considerações Metodológicas...................................................................57

5.1- Campo de Pesquisa..............................................................................57 5.2- Política de Atendimento.......................................................................57 5.3- Método...................................................................................................58 5.4- Instrumentos para Pesquisa de história de Vida................................60 5.5- Proposta de Análise das Narrativas dos Sujeitos...............................62

CAPÍTULO VI 6- Articulando Teoria e Práxis.........................................................................63

6.1- História de vida de Maria José: do abandono à emancipação na construção de uma família..........................................................................63 6.2- A história de Maria José vista por Angel: da percepção de solidariedade e caridade pelo agente que possibilita a metamorfose…78

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PARTE III

CAPÍTULO VII 7- Análise Crítica e Contribuição à Psicologia Social...................................81

7.1- O Sofrimento Coletivo..........................................................................81 7.2- O Sofrimento Físico..............................................................................83 7.3- O Sofrimento Psicológico Individual e de Culpa................................84 7.4- Os dois Eixos da Reação frente aos Ciclos de Sofrimento…............86 7.4.1- Reacional Passiva diante do Sofrimento.........................................87 7.4.2- Reacional Ativa diante do Sofrimento..............................................87 7.5- a Mesmice e a Mesmidade e sua relação com o sofrimento e a Identidade Reacional Ativa e Passiva.........................................................88

Considerações Finais......................................................................................92 Referencial Bibliográfico.................................................................................95 Anexos............................................................................................................101

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APRESENTAÇÃO

A ideia de desenvolver uma tese nasceu há alguns anos atrás, quando

meu desejo era apenas dar continuidade à descoberta e apreensão do

conhecimento, uma etapa natural do pós- mestrado. Mestrado esse que iniciei

em 2002 através da PUC de Goiás. Naquele período trabalhava numa ONG com

crianças e adolescentes em situação de risco social e pessoal, vítimas de

circunstâncias variadas como, abuso sexual, violência doméstica física e

psicológica, miséria. Situações tais que criavam possibilidades para deixarem

suas casas e viverem nas ruas em pequenos grupos, onde o viés acabava sendo

sempre o submundo das drogas e pequenos delitos. Observando essas crianças

e adolescentes foi possível perceber que o prazer das brincadeiras ainda

permanecia entre elas, entretanto, estas eram menos tolerantes e mais

agressivas. Assim, a dissertação de mestrado teve como foco a pesquisa da

agressividade durante situações de brincadeira entre crianças em situação de

risco social e pessoal.

Dentro da área da Psicologia Experimental, utilizei o método de pesquisa

denominado etológico. A etologia leva em consideração aquilo que pode ser

observado, a forma do comportamento, como morder, chutar, beliscar, socar,

tomar, entre outras categorias comportamentais. Muito embora essa discussão

pautou-se numa abordagem Behaviorista, o estudo me aproximou muito mais da

psicologia evolucionista quando descrevi a brincadeira e a agressividade do

ponto de vista biológico. Entre os anos de 2001, como aluno ouvinte, no ano

seguinte, como mestrando e até a defesa em 2005, tive a oportunidade de

descobrir e apreender conhecimentos que certamente contribuíram para o meu

enriquecimento pessoal, e, principalmente profissional naquele trabalho que

desenvolvia.

Além do aprendizado, o mestrado me deu a oportunidade de conhecer

excelentes professores que aqui torno a agradecer formalmente, como Dwain

Santee, Fernando Luís Gonzalez Rey, e meu orientador Francisco Dyonisio

Cardoso Mendes que participou de forma relevante desse momento, muito mais

que um orientador, mas como amigo também. Hoje não mais na PUC, ainda

mantenho contato sempre que possível com ele na Universidade Nacional de

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Brasília. Também tenho que relembrar outros professores que fora da PUC me

auxiliaram muito, como Ana Maria A. Carvalho da Universidade de São Paulo-

USP com diversos livros e artigos acadêmicos sobre o tema as brincadeiras, e

que gentilmente me recebeu em sua casa, me auxiliando nas dúvidas sobre esse

assunto tão vasto. E por fim, o saudoso professor Cesar Ades da USP que

dispensa maiores apresentações sobre sua contribuição cientifica que durante

décadas esteve à frente das principais pesquisas com animais, e que muito

gentilmente me apoiou, orientando-me sobre o método etológico e

comportamental.

Em 2005 quando defendi minha dissertação tive o privilégio de tê-lo na

banca. Quando me decidi por fazer o doutorado, pensei em dar sequência na

área em que fizera o mestrado, mas, por entender que a psicologia social poderia

me dar melhores respostas àquilo que buscava, resolvi então, me dedicar aos

estudos no âmbito social desta ciência. A priori, imaginei que a tese seria uma

discussão sobre a influência da mídia no imaginário humano e seus

consequentes efeitos sobre a identidade, a luta pelo “ter” em detrimento ao “ser”.

O projeto inicial tinha esse escopo, e foi baseado nesta linha que iniciei o

doutorado.

Passados alguns meses, para ser mais preciso no final do primeiro ano,

ao ter um contato mais próximo com as favelas da Vila Brasilândia e seu entorno,

bairros da periferia da zona norte de São Paulo acabei revendo minha ideia inicial

de pesquisa. Ao ouvir relatos de alguns moradores destas comunidades sobre o

cotidiano, a luta pela sobrevivência, a vida em barracos sem a mínima estrutura,

a fome, as drogas, e as inúmeras formas de exclusão que vivenciavam em

sociedade, me levaram a rever e deixar de lado o enfoque midiático, para então,

procurar entender e pesquisar sobre as condições de vida destes indivíduos.

Esses moradores verbalizavam situações onde dividiam o pouco, ou melhor, o

quase nada em termos de alimentação com aqueles que estavam sem nenhum

alimento em casa. Era como almoçar e dar o jantar, único alimento da família em

casa naquele dia, para um “outro”, um morador da comunidade. Ali, para aquela

família que dividia, iniciava-se uma luta para ter o que jantar.

Perguntamos várias vezes a essas pessoas, porque davam o jantar para

alguém não ficar sem almoçar, se mais à noite, ele próprio e sua família não

teriam o que comer. As respostas foram muito parecidas!

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- Sei lá, é que esse pessoal é do bem, trabalhador, não é vagabundo e nem bandido.

Tinha que ajudar, afinal, tinham filhos.

Eu sei bem o que é passar fome e não ter o que dar para as crianças.

Não desejo isso a ninguém!

Voltávamos para casa com um misto de tristeza e perplexidade, porque

sabia que eu também dava coisas, mas...

Dava alimentos, roupas, utensílios, etc.

Mas o que eu dava, era o que não me fazia falta, o que não tinha mais

valor para mim, era o que sobrava...

Como roupa usada, por exemplo!

Damos normalmente a sobra, o que não faz falta, como um saco de arroz,

feijão...

Mas alguém estava dando o que não era velho, o que não era sobra.

Isso me despertou interesse.

Sem falar numa certa vergonha que sentia, pois fazer um trabalho

voluntário era algo que me deixava de certa maneira no mínimo satisfeito por

fazer minha parte, orgulhoso de dar uma contribuição social, e às vezes até com

certo sentimento de vaidade, por despender o pouco tempo que tinha para o

próximo.

Ao ver tudo aquilo, foi impossível não me emocionar, o que me levou a

rever parte dos meus valores. O sofrimento do outro e a emoção que vivenciei,

mudou-me, me fez ver as coisas com outro olhar. A partir daí, me debrucei sobre

a tese, agora não mais preocupado apenas com a mídia. O enfoque seria

entender o papel da emoção e do sofrimento na formação da identidade, e se

isso possibilitaria a alguém colocar-se no lugar do outro, e assim, tornar-se

solidário com membros da comunidade que de certa maneira estavam unidos

por experiências em comum, como a fome, a violência, a exclusão, entre outras

circunstâncias.

A tese, então, buscaria compreender a relação entre a emoção, o

sofrimento e a solidariedade como elementos relevantes para a metamorfose

identitária.

Ao cursar algumas disciplinas no doutorado tomei contato com autores

como Habermas, Mead, Berger e Luckmann, Vygotsky, Espinosa, entre outros,

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e pude melhor compreender os mecanismos que permeiam as relações sociais,

e a partir daí fui levado à outra categoria, a afetividade, em específico, o

sofrimento, um dos elementos relevantes que compõem essa pesquisa.

Entretanto, faltava alinhar um embasamento teórico que articulasse as

categorias que lidam com a afetividade e que tratam de questões associadas às

emoções no campo das ciências humanas, como o “ódio”, a “mágoa”, a

“vingança”, a “ira”, a “inveja”, a “raiva”, entre outras.

Em 2013 em uma das disciplinas cursadas durante o doutorado tive a

oportunidade de conhecer Espinosa como citei anteriormente, filósofo do século

XVII, e compreendi que ele podia ser parte integrante deste quebra cabeças,

pois a sua concepção filosófica traz uma dimensão para a compreensão do

homem sob o prisma da emoção, que considera como elemento primordial para

a construção do humano.

Vejamos o que me levou a entender esse homem Espinosano, eivado de

sentimentos e emoções a se movimentar no cenário social das bordas de uma

grande metrópole como São Paulo. A escolha da Psicologia Social foi

fundamental, pois seus instrumentos de intervenção e de reflexão sobre o

homem permitiriam dar um melhor formato a esse conjunto de inquietações.

No âmbito da área social, as últimas décadas aparecem marcadas pela

procura de saídas para o impasse da desigualdade e da exclusão social. A

perspectiva histórica social teve destaque considerável nas diferentes

abordagens da psicologia, e a social também permitiu aos indivíduos a

possibilidade de uma reflexão crítica de si mesmo.

Somos aquilo que experienciamos, um conjunto de pensamentos, de

valores e sentimentos, de lutas e esperanças, de temores e fantasias que se

modificam ao longo da vida. Há que se ressaltar que os mecanismos sociais e

culturais são partes constituintes deste processo de transformação do eu.

“Estudar a identidade implica na verificação das mudanças históricas que

formam os contextos de ação dos indivíduos, sejam as mudanças numa história

de vida pessoal, seja as mudanças na história de uma sociedade ou cultura.”

(GONÇALVES NETO & LIMA, 2011, pág. 4)

Acreditamos que o processo de desenvolvimento de cada um só se

valida a partir do reconhecimento do outro. O outro tem um papel simbólico de

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espelho invertido de nós mesmos, refletindo-nos os valores e atitudes que

adotamos perante a sociedade.

Pode-se supor, que “cada indivíduo reconhece no outro um ser humano e

é assim reconhecido por ele; sozinhos, certamente não podemos ver

reconhecida nossa humanidade, consequentemente não nos reconhecemos

como humanos. Ter uma identidade humana é ser identificado e identificar-se

como humano.” (CIAMPA, 2005, pág. 38)

Nossa compreensão levou-nos a concepção de que a sociedade e os

elementos da cultura criam significados e sentidos para a vida, inserem em

nosso imaginário necessidades que conduzem a busca pela felicidade.

Tirar o indivíduo desta condição imaginária, angustiosa muitas vezes, e

não consciente do mundo e das coisas ao seu redor, é aspiração de muitos

profissionais, cientistas e pesquisadores, e embora utópico para alguns, pode

ser real pelo menos no tocante à introdução de uma percepção de vir-a-ser,

emancipatória, de metamorfose destes sujeitos. Isso pode ser ilustrado com o

trecho da obra de João Cabral de Mello Netto, em que Ciampa utiliza para a

discussão da identidade e do humano.

“O humano é sempre uma porta a mais se abrindo em mais saídas. O

humano é vir-a-ser humano. Identidade humana é vida! Tudo o que impede vida

impede que tenhamos uma identidade humana.” (apud CIAMPA, 2005, pág. 36)

A nosso ver, o desenvolvimento do eu envolve, entre outras coisas, um

processo de diferenciação. Antes de se tornar um adulto, a criança inicia a vida

como se fizesse parte do corpo de sua mãe. Continua por algum tempo, após o

nascimento, indefesa e dependente. E ao longo do seu desenvolvimento

crianças se transformam em adultos, diferentes em sua complexão física, mas

análogos em seus anseios e temores. A luta constante está intrinsecamente

ligada ao seu ser, em que as mudanças e as experiências diariamente

vivenciadas e internalizadas, fazem parte de um processo de metamorfose

ininterrupto.

Buscamos tornar-nos únicos, individuais sempre, mas a difusão de

valores e comportamentos que a sociedade se apropria a partir de um conjunto

de mecanismos produzidos no interior da cultura, acaba por nos tornar parecidos

com outros. Esse contexto contribui para a criação da necessidade de

buscarmos os nossos pares, nossos grupos, nossas tribos. É o processo em que

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nos universalizamos em detrimento do individual, e, sem perceber,

fragmentamo-nos a partir do contraditório, transformando-nos em partes que

variam entre o nosso e o dos outros, entre o ser e o ter, entre o singular e o

plural, entre o real e o sonho, entre a angústia do hoje e a esperança do amanhã,

entre o prazer e o sofrer.

Sofrer este que não se restringe somente aos indivíduos que vivem em

condições de miserabilidade, assim, pode-se considerar que o sofrimento faz

parte da vida de todos, em maior ou menor grau. Ao nascer lutamos pela vida,

contra situações adversas de enfrentamento de obstáculos, de sofrimento, e o

impacto de um ambiente materno, intra-uterino para um ambiente exterior cheio

de armadilhas e perigos das mais variadas ordens corroboram com essa ideia.

Nascemos com o impacto da dor emocional ou psicológica, física ou biológica, e

nos desenvolvemos a partir da consciência de nossas próprias realizações e

ações, das atitudes e atividades que empreendemos frente às circunstâncias da

vida.

O nó que temos na garganta é o mesmo que ao se desatar, alinha e une

as partes fragmentadas do nosso ser, da nossa identidade.

1. Problema de pesquisa

Nesta pesquisa, relatou-se a trajetória de vida de um indivíduo

participante de um programa de assistência e apoio psicossocial em uma ONG,

cujo atendimento está voltado para comunidades da zona oeste, nas bordas de

São Paulo. Além disso, colhemos um breve depoimento de um voluntário desta

ONG, a fim de obter a sua percepção sobre nosso entrevistado, bem como sobre

o trabalho ali executado.

O problema desta pesquisa é ampliar a discussão acerca da importância

da afetividade, das emoções, em específico o sofrimento, e sua contribuição na

construção da identidade. Como essa categoria pode influenciar na metamorfose

identitária.

A vida de um indivíduo que vive situações de sofrimento muitas vezes vem

marcada por relações de solidariedade com outros sujeitos na mesma condição.

Parece claro, que a política de solidariedade desta ONG visa dar independência

e emancipação a esses indivíduos, permitindo-lhes acesso ao mercado de

trabalho e outras formas de inclusão social. Enquanto que, a solidariedade entre

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os que estão na mesma condição, apresenta-se de forma diferente, uma vez que

esse estado de sofrer parece contribuir para uma cumplicidade, permitindo-lhes

colocar-se no lugar do outro, de acolher, de estar ao lado, não importa em que

circunstância. Assim, aqui se pode entender a solidariedade como forma

manifesta de variadas possibilidades, como engajamentos comunitários, ideários

políticos, troca de favores, ou até mesmo, de afeto que se manifesta para ajudar

aquele que sofre, como uma forma de altruísmo1.

Não temos a intenção de questionar se o que o indivíduo relata, é ou não

sofrimento, ou mesmo sua intensidade. Apenas ouvir o que para ele significou

situações de sofrimento, e compreender e identificar se o sofrer promoveu

alguma mudança em termos de consciência e ação, ou, se nada representou

neste sentido, bem como, identificar a presença da solidariedade neste processo

e assim compreender melhor seu impacto nas relações.

Em linhas gerais, o problema é a compreensão da Identidade de um

indivíduo (em situação de vulnerabilidade social) que passou por momentos de

sofrimento, e se a solidariedade entre seus pares de alguma forma contribui para

sua metamorfose emancipatória ou não (ainda sem consciência de seu

potencial).

É certo que a socialização em situações de dependência de álcool,

drogas, etc., como nas reuniões dos alcoólicos anônimos, possibilita ao sujeito

sair desta condição, emancipar-se, desenvolver certo grau de consciência, mas;

e quanto aos indivíduos em situação de miserabilidade?

Buscamos, então, enquanto problema de nossa pesquisa compreender

qual é a relação da afetividade, da emoção, em específico o “sofrimento”

no processo identitário, e que papel tem a solidariedade considerando o

sintagma Identidade-metamorfose-emancipação proposto por Antonio da C.

Ciampa.

1 Segundo o dicionário Houaiss, S.m. ação de amar ao próximo sem esperar nada em troca; dedicação

demonstrada de maneira desinteressada; filantropia ou abnegação. Filosofia. Comte (1798-1857).

Tendência natural do indivíduo que se preocupa com o outro e, embora seja espontânea, precisa ser

aperfeiçoada através da educação positivista, evitando os instintos relacionados ao egoísmo.

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2. Objetivos

2.1 O objetivo geral

Discutir os elementos básicos da identidade humana enquanto processo

que particulariza o universal na articulação com o singular, procurando investigar

as condições e possibilidades de movimentos emancipatórios, seja em relação

à identidade individual, seja à coletiva, com indivíduos que vivenciam

experiências de sofrimento.

Além disso, compreender a possível relação entre o sofrimento e a

solidariedade, e de que maneira podem contribuir para o processo de formação

da identidade, e sua relevância para a metamorfose identitária.

2.2 Os objetivos específicos

I – A partir da narrativa, tomar contato com a história de vida e constituição

identitária de um indivíduo que chamaremos de Maria José que passou por

experiências de sofrimento das mais variadas ordens e categorias, com base no

sintagma identidade-metamorfose-emancipação. E a partir da análise tentar

entender como esse indivíduo lidou com o sofrimento e que papel este teve em

sua vida.

II- discutir o sofrimento como categoria relacionada à emoção e a afetividade.

III - Identificar as possibilidades de autonomia e emancipação deste indivíduo.

IV – compreender de que forma a solidariedade se desenvolve e que papel tem

para a Identidade

Para fins didáticos e metodológicos o trabalho está dividido em Parte I,

Parte II e Parte III, conforme detalhamento a seguir:

Parte I

Considerações Teóricas e Metodológicas

Local onde alocamos a discussão teórica básica da tese.

Nesta primeira parte trazemos o capítulo I com a proposta teórica de

Antônio da Costa Ciampa sobre Identidade, e de outros autores (Mead,

Habermas, Honneth, Berger e Luckmann, entre outros) que contribuíram no

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desenvolvimento da discussão teórica sobre do sintagma identidade-

metamorfose-emancipação.

O capítulo II traz as contribuições de Silvia Lane, suas pesquisas e

entendimento sobre o psiquismo humano e como reformulou as categorias de

Leontiev introduzindo Identidade e Afetividade a esse conceito.

O capítulo III traz a discussão teórica sobre a afetividade de Bader

Sawaia e que influenciou a reformulação de Silvia Lane, introduzindo esse

conceito como um intermediador na construção identitária.

O capítulo IV tratamos especificamente do sofrimento e as categorias da

emoção que compõem a discussão identitária, suas formas, e como o indivíduo

reage diante desse sofrer e sua relação com a identidade.

A afetividade, a consciência e a atividade são categorias que estão

imbricadas de tal monta que dão forma à identidade. O homem se constrói e se

posiciona perante o mundo da vida a partir de um conjunto de fatores sociais,

culturais, psicobiológicos, e a relação dinâmica entre as experiências de

sofrimento podem levá-lo a assunção de determinados papéis na sociedade em

busca do seu reconhecimento.

Parte II

Na segunda parte com o capítulo V descrevemos questões ligadas à

metodologia da pesquisa. No capítulo VI procuramos articular teoria e práxis,

onde alocamos a entrevista com depoimentos da história de vida de nosso

indivíduo pesquisado que atribuímos o nome Maria José.

Parte III

Na terceira parte com o capítulo VII, discorremos sobre nossa

compreensão para com o sofrimento e sua relação com a afetividade e a emoção

na formação da identidade, e como esses processos estão interligados com a

Mesmice e a Mesmidade, e até que ponto a solidariedade relaciona-se com

esses dois conceitos e contribui para a emancipação, autonomia e a consciência.

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E por fim, as considerações finais desta pesquisa, elaboradas a partir da

contribuição que nosso entrevistado nos deu, e logicamente para o mundo

acadêmico e para a sociedade.

O espelho e os sonhos são coisas semelhantes, é como a imagem do homem diante de si próprio. Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos. As palavras proferidas pelo coração não tem língua que as articule, retém-nas um nó na garganta e só nos olhos é que se podem ler. José Saramago

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CAPÍTULO I

1- Concepções teóricas de Ciampa sobre Identidade

Ciampa direcionou seus estudos à pergunta básica: como relacionar

indivíduo e sociedade. Afirmou que ambos relacionam-se dialeticamente,

derivando dessa relação o fenômeno da identidade. O autor se baseia no

materialismo histórico para a discussão e compreensão da questão: como pode

o indivíduo ao mesmo tempo ser causa e consequência da sociedade. O homem

só se torna humano a partir da relação com outros homens, e é nesse processo

que se humaniza.

O autor explica que a interiorização é um elemento imprescindível para a

formação da identidade, uma vez que os elementos de ordem subjetiva somados

aos elementos objetivos da realidade do sujeito vão dando forma identitária a ele

desde os primeiros anos de vida. No meio familiar os elementos culturais, os

valores sociais, as regras e normas ali estabelecidos vão sendo incorporados

pelo indivíduo, e a linguagem é seu principal meio de transmissão.

'Tornar-se humano' constitui-se metamorfose possível pela 'familiarização' do homem. Com base na estrutura social familiar - pressupostos o trabalho social e a linguagem - é que se dá a socialização das gerações humanas, com as quais se produzem indivíduo, sociedade e cultura, ou seja, os três elementos componentes do que Habermas denomina 'mundo da vida' (...) (CIAMPA, 1998, p 93)

1.1– Em busca de uma Psicologia Social Crítica

Ciampa pode ser considerado como sendo um dos primeiros a pensar

uma Psicologia Social Crítica, que se contrapôs ao modelo positivista daquela

época.

Propôs uma discussão crítica da sociedade a partir da humanização do

homem que está em constante processo de transformação identitária. Sua

Teoria da Identidade se desenvolveu, no sentido de que identidade é construção,

reconstrução e desconstrução, um processo ininterrupto dentro do contexto

social, e, logicamente, por meio das experiências vivenciadas, sendo que este

movimento constitui-se para Ciampa, como o processo de metamorfose.

Ciampa já em 1977 afirmava que a compreensão da identidade passava

pela discussão de Indivíduo-Sociedade, e em conjunto com Silvia Lane

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ensaiavam propostas para uma nova psicologia social com uma roupagem que

representasse nossa realidade.

A partir das considerações feitas por Ciampa e complementadas por

outros estudiosos, discutido com mais detalhes no capítulo II, Lane (1995, pág.

59) revê as categorias do psiquismo humano de Leontiev: Atividade,

Consciência e Personalidade, passando a considerar “identidade” no lugar de

personalidade, assim, os estudos de Ciampa contribuíram para um novo olhar

sobre o indivíduo.

Nosso entendimento é de que nesse contexto histórico e científico da

psicologia social, diante das emergentes necessidades de mudança na

compreensão do sujeito, permitiu construir um novo olhar desta ciência, onde ao

mesmo tempo, o indivíduo é produto da sociedade e produtor de si mesmo.

Assim, podemos compreender que a construção de uma história de vida

vem marcada pelas próprias mãos de quem a vive, mas não tão somente, pois

também é escrita pelas de outros indivíduos que dela participam direta ou

indiretamente.

Ciampa em suas pesquisas fundamentou suas concepções teóricas a

partir das ideias de Berger e Luckmann (1973) passando por Sarbin e Scheibe

(1983), Mead (1972) e Goffman (1975), a fim de compreender a relação

indivíduo-sociedade e a realidade social.

Ciampa ao discutir a teórica de Sarbin e Scheibe critica o modelo

funcionalista, e retoma o interacionismo simbólico de George Mead e os estudos

de Goffman, a fim de conceber o homem com uma identidade que lhe permitisse

uma concepção de sujeito transformador, cuja emancipação o tornasse autor de

sua própria história social (LANE, 1992).

Entendemos que o processo de emancipação é de extrema

complexidade, e que depende de vários fatores para que o indivíduo se torne

consciente daquilo que o rodeia. Além da consciência, primordial para que

ocorram as condições emancipatórias, é necessária a participação de outros

pares que se inter-relacionam com esse sujeito. Os elementos que compõem

essa objetividade, e, certamente a subjetividade, podem propiciar que esse

indivíduo passe da condição de estado de consciência para a de atividade,

mudando a si mesmo e aquilo que está ao seu redor. Assim, entendemos que é

preciso que haja um “outro”, e que minimamente este interaja neste processo. É

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através do outro que nos identificamos, através da solidariedade que nos

responsabilizamos. A solidariedade não é uma rua de mão única, na qual só

atravessa o indivíduo na condição de sofrimento, mas também dupla, no qual o

solidário participa desse processo, transformando-se também. Este processo de

transformação permite a construção, desconstrução e reconstrução de sua

identidade, escrita por suas mãos e pelas dos indivíduos que participam desta

relação. O próprio Ciampa nos conduz a essa reflexão, e juntamente com outros

autores discutem a importância deste processo dialético entre o indivíduo e a

sociedade, como condição imprescindível para a socialização do homem.

“Interiorizamos aquilo que os outros nos atribuem de tal forma que se

torna algo nosso, a tendência é nós nos predicarmos coisas que os outros nos

atribuem” (CIAMPA, 1987, pág. 131)

Acreditamos que a identidade é um processo dialético, que se constrói a

partir de uma relação contínua entre o indivíduo e os outros. Para compreensão

da identidade é preciso ver como os indivíduos se percebem uns aos outros, e a

representação que cada um tem para o outro. Isto passa a ser fundamental para

a construção do que imaginamos como real ou ideal. O indivíduo constrói sua

identidade através do que vivencia, da forma como se integra e interage no seu

grupo social, das afetações que sofre, passando a engendrar sua biografia, a

partir da dinâmica de suas relações sociais.

Ao identificar o outro indivíduo, reconhecê-lo, ou mesmo a nós mesmos

dentro do grupo, utilizamos referenciações das mais variadas formas e

categorizações.

Para dizer quem é uma pessoa e identificá-la de forma singular,

comparamos a pluralidade dos indivíduos no grupo, o que significa dizer que ele

é ele e não o outro. As categorizações são peças que fazem parte e compõem

uma política de identidade que permite ao indivíduo assumir papéis, e a partir

daí representá-los dentro do grupo.

A identidade para Ciampa (1987) é a articulação tanto entre a diferença e

igualdade (ou semelhança), como entre a objetividade e a subjetividade, sendo

nesse sentido, possível falar em metamorfose, como um processo que se dá

desde o nascimento do indivíduo até sua morte.

Assim, entendemos que a humanização do indivíduo é um processo, e

que vivemos em permanente mudança, em que cada experiência vivida com o

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outro, com o mundo, nos afeta de tal monta, que o que hoje somos, é diferente

do que éramos ontem. Ciampa, um dos que mais contribuíram para uma

Psicologia Social mais próxima da realidade latino americana, já na década de

1970 discutia e compreendia o homem pelo prisma da permanente mudança na

identidade.

Ciampa vê a identidade como um processo dialético de posição-reposição

que pode ser positivo ou negativo, uma vez que é resultado do que fazem ou

fizeram com ele.

O autor define que existem três elementos relevantes neste processo de

constituição da identidade:

- pressuposição

- posição e,

- reposição

Inicialmente, ocorre a pressuposição da identidade, como algo atribuído

ao indivíduo pelo outro, um atributo individual através da socialização, das

normas e valores. Assim, é uma identidade dada, atribuída pelo outro, um

conhecimento é compartilhado socialmente a forma como devo ser.

Num segundo momento, o indivíduo assume e articula uma posição em

relação a seu grupo e seu mundo, buscando aquilo que acredita e que busca

ser. É o que Ciampa dá o nome de posição do sujeito perante o grupo.

No terceiro momento de construção da identidade, após a pressuposição

e posição, a identidade é re-posta constantemente pelo indivíduo no seu mundo

da vida, uma permanente mudança identitária. A constituição da identidade,

assim, é compreendida como metamorfose.

Ciampa (1998, p.88), entende que a constituição identitária é dinâmica e

vê a “identidade humana como metamorfose, ou seja, o processo permanente

de formação e transformação do sujeito humano, que se dá dentro de condições

materiais e históricas dadas”.

Compreendemos que a reposição da identidade que aparece sob a forma

de personagem é a maneira que este tem de atualizar papéis e de se posicionar

diante do mundo da vida. Esse processo de atualização ocorre por intermédio

de conteúdos objetivos e subjetivos dentro do grupo social em que o indivíduo

está inserido.

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Ciampa (1987) em sua tese de doutorado articulou a relação entre o

personagem fictício de Severino do poema “Morte e Vida Severina de João

Cabral de Melo Neto e Severina personagem da vida real”.

Para Ciampa a aparente não metamorfose se dá através da mesmice, e

a re-posição da identidade se manifesta através da busca do indivíduo pela

repetição.

Percebemos durante nossa pesquisa quando trabalhamos como

voluntário em uma ONG que atendia a comunidades da periferia da zona norte

de São Paulo, que tínhamos indivíduos buscando por certa emancipação, para

sair da mesmice, da alienação. Estavam à procura de algo que os tornassem

outros, em busca por saídas para suas vidas. Sentiam que suas vidas não

estavam de acordo com suas aspirações, seus projetos, e até mesmo os valores

em que acreditavam. A busca por algo diferente que lhes completasse de fato e

que desse novo sentido à suas vidas, pois a condição a que estavam expostos,

lhes traziam dor, tristeza e sofrimento.

Muitos dos indivíduos que tomamos contato durante essa tese, não

estavam na condição que descrevemos acima, ou seja, na busca de autonomia,

mas permaneciam na alienação, procurando na caridade, a forma de conseguir

as coisas que precisavam para sua sobrevivência ou de objetos, cuja, sociedade

e o marketing propagam como principais sentidos para a vida das pessoas.

Esses indivíduos que me refiro, ainda viviam na alienação, e embora

relativamente cientes da condição de exclusão a qual estavam expostos, não

compreendiam a ideologia que estava por detrás de seus sonhos. O consumismo

que buscavam como sentido para suas vidas era algo sonhado, imaginado, sem

muita noção de como e quando poderiam tornar realidade. Logicamente que

outros indivíduos que vinham até essa ONG procuravam coisas mais básicas,

necessárias para sobrevivência para si e sua família, mas não escondiam que

queriam algo melhor para sua família. As estratégicas ideológicas colocavam em

primeiro plano o consumo de bens, acima de valores sociais. Ter um televisor de

alto desempenho e que representasse o mais avançado em termos tecnológicos

era mais importante do que o filho estudar, ampliar a visão crítica do mundo ao

seu redor, buscar valores que o distanciassem das armadilhas das drogas e do

crime, sempre presentes na periferia de grandes metrópoles como São Paulo.

Como citado anteriormente, esses indivíduos buscam essa ONG como excluídos

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socialmente e como Ciampa entende, na condição de mesmice, ou então, na

busca pela mesmidade, por autonomia e emancipação.

Nossa compreensão, é de que frente aos acontecimentos da vida, durante

a história que cada um vivencia, nos posicionamos de acordo com nossas

possibilidades. Nem sempre podemos compreender o que nos rodeia, e

entender a relação de objetividade e subjetividade que permeia a relação entre

indivíduo e sociedade. É comum nos posicionarmos e fazermos escolhas que

parecem ser nossas, no tocante ao que queremos. Entretanto, muitas dessas

escolhas fazem parte de um conjunto de valores aceitos pelo grupo e tidos como

corretos naquele contexto. Assim, beber, consumir drogas para um adolescente

pode parecer para ele uma opção sua, quando na realidade, é a forma como o

grupo no qual ele faz parte, entende como o sentido e a forma correta de se

posicionar frente à sociedade. São criados em sociedade construindo

necessidades, posicionamentos validados, que se não assumidos, nos deixam

à margem, estigmatizados, rotulados e discriminados. A subjetividade que

permeia esse estado de coisas é de difícil compreensão, e mesmo que

insatisfeito, o indivíduo permanece na mesmice e alienado. Sobre a relação de

mesmice e emancipação, Ciampa, trouxe grandes contribuições teóricas.

O que impede a emancipação é a mesmice, o que Ciampa (1987)

denominou fetiche da personagem, pois, impede o indivíduo de ser-para-si.

Fetiche quando se torna mercadoria, onde o personagem fetichizado é

aprisionado, mas perante a sociedade possui um valor de acordo com a

importância da mercadoria. A condição de mesmice e da má infinidade (a não

superação das contradições) tira a oportunidade da personagem desempenhar

seu papel (ex.: sou psicólogo, mas não atuo mais). A mesmice é um fenômeno

oriundo da re-posição da identidade, no sentido de repetir as ações e

movimentos psicológicos do indivíduo, tanto de forma consciente como

inconsciente.

Nosso entendimento, é que a fala é fundamental no processo de

compreensão do mundo ao nosso redor, na relação entre a objetividade e

subjetividade, entre o indivíduo e a sociedade. A linguagem possibilita a

compreensão de maneira mais clara, do que nos é de fato importante e o que

queremos. É um processo permanente de mudanças identitária

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A busca por uma profunda mudança no personagem, Ciampa (1987)

chama de alterização, mas de forma qualitativa. Essa mudança qualitativa é

resultado do acúmulo de mudanças quantitativas, às vezes imperceptíveis, mas

graduais ao indivíduo.

Acreditamos que esse processo permanente de mudanças, de

metamorfose identitária, de alterização, ocorre de forma particular, onde cada

indivíduo encontra seu próprio caminho, cuja, condição é a forma como ele vê

as coisas. Em nossa pesquisa, ouvimos a narrativa de um sujeito em condições

de miserabilidade social, mais à frente discutida com detalhes, e que a

chamamos de Maria José, em que ficou claro, o caráter de singularidade, de

particularidade, o que demonstra que cada um de nós reage de forma diferente

frente às afetações.

Sua narrativa é única, pois, consideramos que não há indivíduos iguais

em parte alguma, e sendo assim, toda narrativa tem um caráter original, pois se

refere apenas àquele que a vivenciou. Cada um reage de acordo como vê o

mundo, como se relaciona com a sociedade.

As afetações oriundas das emoções vividas, e em especifico, o sofrimento

pelo qual passamos, levam-nos a reações diferenciadas, únicas e particulares.

Logicamente, que o sofrimento nem sempre dá origem a uma saída

emancipatória. Muitas vezes o indivíduo busca por alternativas que não o leva a

lugar algum, o deixa no mesmo estado de coisas, estagnado, sem ação. Diante

de uma forte emoção negativa, prefere se entregar, sem forças para superar tal

adversidade.

Entretanto, a afetividade, a emoção e o sofrimento podem levar o

indivíduo à emancipação. Situações dessa ordem afetam-no de tal monta que a

reflexão cria as condições necessárias para a consciência, para a autonomia,

para a emancipação. Assim, em muitos trechos da narrativa de nosso

entrevistado, foi possível identificar traços emancipatórios, de mesmidade como

Ciampa denominou em suas concepções teóricas.

A mesmidade para Ciampa (2002), é a superação do personagem diante

do seu contexto histórico, transformando-se em outro outro, que sou eu também,

através de projetos de identidade, de novos valores, novas perspectivas, novas

normas, sem prévia imposição, autoritariamente imposta.

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Em nossa pesquisa percebemos que as afetações, o sofrimento, a dor

vivenciada por nossa entrevistada levaram-na a rever sua forma de ver as coisas

e a construir uma nova história de vida. Certamente, que o sofrimento ali descrito

poderia levar esse mesmo indivíduo a outras formas de reações, de mesmice,

de alienação. No entanto, as condições podem propiciar outra reação, de não

entrega, e sim de luta.

Uma história marcada pela luta por emancipação, pelo reconhecimento

em sociedade que procura transformar indivíduos em mercadorias, ignorando as

diferenças e individualidades.

Ciampa (1987) vê Severina na luta pelo reconhecimento de sua

humanidade através da pluralidade de personagens à medida que adquire a

capacidade de agir e pensar, se reconhecendo e sendo reconhecida.

É com essa dicotomia de mesmice e mesmidade que Ciampa (2002) cria

a diferenciação entre políticas de identidade e identidades políticas.

1.2- Políticas de Identidade e Identidade Política

A tese de Ciampa (1987) “A estória de Severino e a História de Severina”

não trata diretamente de identidade coletiva, muito embora, o tema surja quando

Severina traz relatos subjetivos de sua estória de vida onde se vê a exclusão e

os aspectos universais inerentes às amarras de controle e modulação identitária.

Verifica Ciampa que a identidade de Severina é repleta de significados

universais, o que o leva a evidenciar que toda identidade é social, seja ela

individual, seja ela coletiva. A nosso ver, isso se dá a partir do momento

que indivíduos linguisticamente competentes interagem entre si, criando o

contexto necessário para ajustar valores, normas e uma determinada visão a

respeito de algo presente e pelo menos parcialmente comum para estes no

mundo da vida.

É um processo de negociação muitas vezes, onde cada parte estabelece

um conjunto de critérios necessários para o estabelecimento das relações

sociais aceitas e permitidas naquele grupo.

É como criar circunstâncias para oportunizar nossas expectativas, nossas

visões sobre as coisas, sobre o que queremos e esperamos do mundo e das

pessoas que estão ao nosso redor.

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Ciampa (2002) propõe que uma identidade coletiva é o resultado de uma

política de identidade que visa traçar padrões e valores aceitos socialmente e

que todos os indivíduos devem participar. Através destas concepções o autor

mostra a maneira que os grupos têm para padronizar comportamentos de seus

membros, independentemente de suas diferenças e de suas singularidades.

Nossa pesquisa realizada com Maria José atendida junto a uma ONG nos

demonstrou como é forte a Política de Identidade. Isso ficou claro, ao

percebermos a política dessa instituição que buscava levar a autonomia seus

assistidos, denominação dada àqueles que ali procuravam ajuda. Essa ONG

deixava explicito que sua política não era assistencialista, e propunha aos

assistidos, a reflexão e a ação por uma emancipação. A ação desta ONG será

tratada mais à frente neste trabalho.

Por outro lado, Ciampa se refere a Identidade Política quando o indivíduo

se vale de sua autonomia e se individualiza, emancipando-se. Neste momento,

busca representar a si próprio, e não projetos heteronomos, de valores que lhe

são atribuídos e cobrados pela sociedade. No entanto, sem emancipação, ao

fazer parte desse grupo, os indivíduos vivem a multiplicidade de papéis que os

direcionam a projetos de vida. O outro que busco, ao me completar, ao mesmo

tempo me torna incompleto, num círculo vicioso de ser e estar sempre à procura

de algo que me torne diferente do que sou hoje. Ciampa (2002) explica com

clareza essa relação entre Política de Identidade e Identidade Política.

Quando focamos em Políticas de Identidade e Identidades Políticas,

pode-se permitir um discurso sobre vários prismas, tanto regulatórias como

emancipatórias, de ações e discursos, tendo em vista as assimetrias de poder

presentes nas relações sociais. (CIAMPA, 2002)

As Políticas de Identidade se desenvolvem no mundo da vida através

da instrumentalização linguística sistêmica, neutralizando as ações individuais

para a inserção dos indivíduos numa ação consensual e coletiva. Essa

instrumentalização vai se encarregar de criar um contexto universalizado e

padronizar as ações dos indivíduos. Habermas acrescenta que as esferas

econômicas e burocráticas se utilizam do controle pelo dinheiro e pelo poder

como elo para o entendimento hegemônico estabelecendo critérios e impondo-

se como forças de controle sobre os indivíduos. É a colonização do mundo da

vida, cuja violência estrutural é um reflexo de uma prática sistêmica, que

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Habermas denomina de “a-linguística”, o dinheiro e o poder em conjunto com a

linguagem na formação de elementos simbólicos em detrimento à

intersubjetividade.

Nosso entendimento é de que os indivíduos buscam através do diálogo,

da linguagem, da comunicação formas de representação de papéis que atendam

suas expectativas momentâneas ou àquelas que são estabelecidas pelas forças

de controle. Posso ser um médico, porque esse papel me satisfaz, me atende, e

a partir dele representar socialmente, de forma que me reconheço e sou

reconhecido como tal. Logicamente que nem sempre tenho a autonomia para

fazer as escolhas que desejo, e muitas vezes, essa opção não passa de um

papel que me atribuem. Assim, nem sempre os processos de representação

construídos por intermédio da comunicação se manifestam de forma

emancipatória, pois, muitas vezes só servem para atender as esferas

econômicas e burocráticas.

1.3- A Identidade

Como tratado anteriormente, as discussões teóricas de Ciampa

envolveram autores como Berger e Luckmann, Sarbin e Scheibe, Mead,

Goffman, entre outros, além logicamente do amparo teórico de Silvia Lane, sua

orientadora no doutorado. Posteriormente, Ciampa foi se aproximando da linha

de pensamento de Habermas considerando a guinada linguística e mais

recentemente das contribuições de Honneth.

1.3.1- A sociedade e seu papel de formação de Identidades

A identidade é um longo processo ininterrupto e complexo, tornando o

homem uma fonte de infinitas possibilidades e inúmeras saídas. São saídas que

surgem como forma de adaptação ao contexto, ou então, como possibilidades

de mudanças. Mudanças que dão a cada um de nós formas diferentes,

dependendo de como podemos ser vistos ou procuramos nos ver. É como se

fossemos caleidoscópios, que ao mínimo movimento, giro, estamos diante de

novas possibilidades de expressão. Esse movimento ora ocorre por iniciativa

própria, por livre desejo e aspiração imbuída de independência, de autonomia,

ora, por força e direcionamento de outras forças. À medida que o indivíduo adota

os valores, as atitudes do outro, ele se transforma em outro “outro”, mesmo

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continuando a ser ele ainda, podendo ser uma postura alienada, ou então,

emancipatória.

Para Berger e Luckmann (1996, pag. 69),” o organismo humano, por

conseguinte; está ainda desenvolvendo-se biologicamente quando já se acha

em relação com seu ambiente. Em outras palavras o processo de tornar-se

homem efetiva-se na correlação com o ambiente”.

Entendemos que a troca contínua e intensa de interação e aprendizagem

entre o sujeito e o meio ambiente permite a ele, desde os primeiros tempos de

vida assumir posturas e papéis sociais para garantir a manutenção das relações

em sociedade. Isto é, a criança ao se desenvolver, ao humanizar-se, se

correlaciona com um ambiente natural particular, a princípio familiar, e com uma

ordem cultural e social específica, definida pelos adultos próximos e que é

mediatizada para ela com os significados necessários para o seu repertório

social que vão ser determinantes ao longo de sua vida.

As relações que são construídas desde o início do desenvolvimento do

ser humano, ainda bebê, é importante, pois vão contribuir para a formação de

características expressivas da sua identidade. Relacionar-se com o outro é

fundamental para reconhecer os padrões de normalidade e de patologia social,

pois o sistema institucionalizado está encarregado de organizar a vida em grupo.

O outro, então, representa um conjunto de particularidades e

especificidades necessárias para inserir a criança nos diversos grupos e

ambientes sociais. Para corroborar esse nosso entendimento, citamos Berger e

Luckmann (1996) que descrevem essa relação entre o homem e seu meio, entre

indivíduo e sociedade.

Os homens em conjunto vão produzir um ambiente humano, através da

totalidade de suas formações socioculturais e psicológicas. Dessa forma, como

é impossível que o homem se desenvolva como homem no isolamento,

igualmente é impossível que o homem isolado produza um ambiente humano. O

indivíduo solitário é um ser no nível animal, o homo sapiens é sempre, e na

mesma medida, homo socius. (BERGER e LUCKMANN, 1996).

Assim, podemos compreender, a partir de nossa pesquisa, que a ordem

social é resultante da atividade humana. A identidade coletiva se forma com base

em critérios concretos e objetivos, abstratos e subjetivos, oriundos da ordem

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social e esse complexo sistema de normatizações vai contribuir para que o

homem seja humanizado.

Os processos relacionais oriundos de fatores socioculturais e psicológicos

estabelecem os mecanismos de interação em sociedade, o que indica ser a

ordem social, um produto humano ao longo do curso de sua contínua

exteriorização. Assim, através das diversas relações com o outro, desde criança

criam-se padrões de comportamento e valores sociais.

Isso é corroborado pelos estudos que Newman e Holzman construíram a

partir de discussões sobre o desenvolvimento infantil. Para Newman e Holzman

(2002, pág.171), o processo de desenvolvimento da criança estabelece-se a

partir de comunicações fundamentadas pela imitação:

A imitação, portanto, é uma atividade de desenvolvimento crucialmente importante porque é o principal meio pelo qual, na primeira infância, os seres humanos são considerados como à frente do que realmente são, como um outro diferente de si mesmos.

Dessa forma, nosso entendimento em concordância com o que foi

proposto pelos autores acima citados, e outros também, são de que nesse

processo, a aquisição da linguagem assegura a transmissão de valores e daquilo

que é permitido num mundo lógico e objetivo.

A linguagem, assim, é determinante na construção da identidade. E

através dela compartilhamos nossas experiências, e tudo aquilo que tem sentido

em nossas vidas. Assim, quando partilhamos algo com alguém, estamos

transmitindo uma parte de nós mesmos. Ao mesmo tempo em que nos dirigimos

ao outro no sentido de explicitar quem somos, o que queremos, o que

acreditamos, estamos contribuindo para que o outro se modifique também. A

linguagem cria possibilidades de mútua mudança, porque permite a troca daquilo

que é objetivo, mas, sobretudo, das subjetividades também. A linguagem foi e

ainda é instrumento de inúmeras pesquisas por estudiosos, e entre eles, estão

Berger e Luckmann.

Berger e Luckmann (1996, pág. 55), entendem que “a vida cotidiana é,

sobretudo, a vida com a linguagem, é por meio dela, de que participo com meus

semelhantes. A compreensão da linguagem é por isso essencial para minha

compreensão da realidade da vida cotidiana”.

Podemos, então, perceber que a linguagem tem fator primordial na

transmissão de sentidos, de transferir para o outro, as experiências e a forma

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como vemos tudo que está ao nosso redor ou que tem relevância para nós.

Através da comunicação o outro diz quem é e o que pensa do mundo. É a partir

dessa dialética, trocamos formas de pensar, e por intermédio da expressão de

valores validamos identidades de outros e buscamos validar a nossa.

Existem homologias, ademais, entre as estruturas da identidade do Eu e as da identidade do grupo. Enquanto o Eu epistêmico caracteriza-se (como Eu em geral) pelas estruturas gerais da capacidade de consciência, de linguagem e de ação, que todo Eu singular tem em comum como todos os outros Eus, o Eu prático se forma e se afirma como Eu individual na realização de suas ações. Em suma: a identidade da pessoa é, de certo modo, o resultado das realizações de identificação da própria pessoa. (HABERMAS, 1983, pág. 21.)

Nossa compreensão é de que a linguagem passa a ter fundamental

importância na construção de significados, sentidos e experiências na vida

humana, e assim, preservar todo esse complexo conteúdo do cotidiano, através

do tempo e consequentemente, transmitirem às gerações seguintes a cultura de

seu grupo. Isso garantirá os elementos básicos da vida para os mais variados

fins (fisiológicos, sociais, culturais, psicológicos). A despeito dessa interrelação

entre os membros do grupo, Mead (1972) detalha que o sujeito não é

primeiramente individual para só então tornar-se social, mas surge, por

intermédio da linguagem, da comunicação com os outros, sendo assim, a

identidade não se constrói de forma isolada, mas pelo processo da

aprendizagem social. (SOUZA, 2011),

Verificamos então, que a linguagem é o elo entre os integrantes de um

grupo desde muito cedo, onde cada membro da família é capaz de trazer para o

presente as pessoas que fizeram parte de um passado recente ou remoto, de

décadas, séculos, milênios atrás, explicitando seus valores, suas crenças e os

significados das coisas do mundo para elas, e por sua vez contribuindo para a

formação da identidade da criança. À medida que entra um novo integrante no

grupo familiar, comportamentos esperados são transmitidos a ele, papéis sociais

são validados de tal forma que o indivíduo rapidamente é capaz de compreender

quem são seus pares e quem ele representa ali.

Assim, o que somos resulta de aspectos de identidades de outros, em que

nossa totalidade é resultado do que nos é transmitido e esperado, e sobre isso,

Berger e Luckmann entendem:

No que diz respeito às relações sociais, a linguagem “torna presente” a mim não somente os semelhantes que estão fisicamente ausentes

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no momento, mas indivíduos no passado, relembrando ou reconstituindo, assim como outros projetados como figuras imaginárias no futuro. Todas essas presenças podem ser altamente dotadas de sentido, evidentemente, na contínua realidade da vida cotidiana. (BERGER e LUCKMANN, 1996 pág.58)

Nossas pesquisas demonstraram que a construção desse complexo

sistema de interação, cuja mão dupla leva e traz sentido e significado ao grupo,

torna a relação entre sujeitos, um emaranhado de subjetivas formas de se

comportar e pensar, onde a linguagem é o instrumento mediatizador. A

comunicação, então, é a forma que temos de entender o mundo da vida.

Berger e Luckmann (1996, pág. 90) a despeito da construção do

conhecimento social, cujo compartilhamento é a forma de institucionalização

identitária descrevem-na da seguinte forma:

O conhecimento primário relativo à ordem institucional é o conhecimento situado no nível pré teórico. É a soma de tudo aquilo que todos sabem, a respeito do mundo social, um conjunto de máximas, princípios morais, frases proverbiais de sabedoria, valores e crenças, mitos, etc., cuja integração teórica exige considerável força intelectual, conforme comprova a longa linha de heroicos integradores de Homero aos últimos construtores de sistemas sociológicos. Este conhecimento constitui a dinâmica motivadora da conduta institucionalizada.

Esse contexto de socialização iniciado desde tenra idade vai dar sentido

e significado à vida em grupo. Estabelecer padrões de relacionamento permite

ao indivíduo compreender o que lhe cerca e o que é importante para a vida em

sociedade.

O que é importante para um pode não ter a mesma representatividade

para outro. O sofrimento construído a partir das escolhas feitas pelo sujeito que

se baseou nas experiências de outros pode levar à dor. O que escolhi pra mim

num determinado momento, nem sempre é o que escolheria em outras

circunstâncias, e quando esse processo é desvelado, que vejo aquilo que estava

dissimulado, o sofrimento pode nos conduzir a mudanças, novas escolhas.

Logicamente, que muitas escolhas erradas e feitas a partir do referencial

de outro, podem permanecer sem a percepção do quanto essa escolha nada

representou do ponto de vista emancipatório. Mas, quando, o sofrer leva à

realidade de que minha identidade foi construída em cima do que não me

pertencia, ou me era representativo, o sujeito se vê diante da possibilidade da

consciência e ação.

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Esse processo se torna mais possível, a partir do compartilhamento com

o grupo, com o outro que se utiliza da linguagem para a construção de caminhos

e portas para novas saídas e oportunidades de mudança.

1.3.2- A sedimentação dos papéis

Os papéis assumidos garantem de certa maneira uma ordem social e uma

institucionalização do que é aceito. A vida cotidiana permite principalmente ao

indivíduo adulto atuar em diversos papéis, de acordo com o momento e as

circunstâncias, sendo o tempo e o espaço fundamentais para a compreensão de

como e do que devemos assumir perante o outro.

O indivíduo, mesmo de maneira superficial, percebe o que pode omitir e

esconder de outros sujeitos, com os quais se relaciona e a quem pode recorrer

e esclarecer algo que desconheça.

O processo de consolidação é filtrado pelo grupo de indivíduos e uma

parte do conteúdo destas experiências vividas e compartilhadas é armazenada

na memória.

Costa (2007, pág. 114), quando comenta sobre as escolhas de cada um

entende que:

Na condução da vida pessoal, os homens agem escolhendo entre alternativas às demandas postas por condições concretas no cotidiano da vida social. Os valores existentes socialmente são mecanismos ideológicos criados pela sociedade que operam sobre suas decisões.

Nossa compreensão nos levou a acreditar que a sedimentação de papéis

se processa, então, em diferentes etapas da socialização, ora reforçadas pelo

grupo social, ora como identitárias do indivíduo, que reconhece nelas suas

aspirações e desejos cotidianos.

Esse sentimento na consolidação e sedimentação é necessário para a

atuação nos diferentes papéis, e se inicia deste muito cedo, quando o sujeito é

ainda criança, mas estendendo-se pela vida adulta. E todos que o cercam,

principalmente os que têm algum tipo de vínculo contribuem para esse processo.

O indivíduo, então, é uma porta para a entrada de significados de tudo

que está ao seu redor. Habermas (1983), ao discutir a posição da criança dentro

do seu grupo aponta que:

Na concepção egocêntrica do mundo da criança, que pensa de modo pré-operacional, todos os fenômenos são relativizados em função do centro constituído pelo Eu infantil, do mesmo modo na imagem

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sociomórfica do mundo, essa relativização se dá em função do centro representado pelo grupo tribal. (HABERMAS, 1983, pág. 19)

Esse processo de sedimentação, a nosso ver, passa pela intermediação

das forças de controle e consenso social que de forma subjetiva ou objetiva,

institucionalizam os papéis sociais. Os atores sociais imbuídos de papéis

determinados na sociedade, como pais, avós, tios, amigos, padrinhos,

professores, pastores, padres, entre outros, objetiva ou subjetivamente vão

contribuindo para os processos de sedimentação e das constantes mudanças na

identidade dos indivíduos. Habermas (1983) entende que:

A unidade da pessoa se forma através da internalização dos papéis, inicialmente ligada e, mais tarde, liberada das pessoas de referência concretas: trata-se, antes de mais nada, dos papéis geracionais e sexuais, que determinam a estrutura familiar. Essa identidade de papel, centrada em torno do sexo e da idade, e integrada à imagem do próprio corpo, torna-se mais abstrata e, ao mesmo tempo, mais individual na medida em que o jovem se apropria de sistemas extra familiares de papéis. (HABERMAS, 1983, pág. 24)

Verificamos que o papel sedimentado naquele indivíduo torna-se sua

identidade maior, única muitas vezes dentro daquele grupo, mas que pode ser

apenas uma parte de sua identidade. Muitas vezes o indivíduo carrega outros

papéis e representa-o em grupos diferentes, dependendo do contexto em que

atua.

Assim, podemos ser fracassados e problemáticos no meio familiar e

extremamente competentes e respeitados no meio organizacional.

Podemos ser egoístas e insensíveis em casa e solidários em grupos

sociais. Ter papéis sociais distintos, como se tivessem identidades diferentes,

protagonistas de faces e máscaras desconhecidas para uns e inimagináveis para

outros. Um mundo onde exige do indivíduo a assunção de papéis das mais

variadas ordens sociais, com estratégias para enfrentamentos de situações

diversas, cujo sentido cada um dá de acordo com as circunstâncias e os

objetivos que perseguem no decorrer da vida.

Os papéis colocados diante do indivíduo, mesmo que de forma subjetiva

precisam ser assumidos, sendo que aquele que não segue as regras, os valores

impostos, corre risco de ficar à margem daquele grupo.

Berger e Luckmann (1996, pág.100), sobre a formação de papéis e a

institucionalização comentam:

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Ao desempenhar papéis, o indivíduo participa de um mundo social. Ao interiorizar estes papéis, o mesmo mundo torna-se subjetivamente real para ele. Logo que um estoque comum de conhecimento, contendo tipificações recíprocas de conduta está em processo de formação, aparecem os papéis, e esse processo, conforme vimos são endêmicos na interação social e precede a institucionalização propriamente dita.

Nossa visão do mundo da vida demonstra que a criança aprende através

de formas variadas a interpretar papéis sociais (brincadeiras, observação dos

adultos, etc.), é uma preparação para quando se tornar adulto. Tomando parte

das interações e se transformando em membro competente, seu universo

simbólico não está mais apenas restrito a interações particulares, como as

satisfações de seus desejos, mas agora ela pode compreender as ações como

realização de expectativas de comportamento generalizadas no tempo (ou como

infrações das mesmas).

Esse processo vem acompanhado de reflexões, embora muitas vezes de

forma superficial, mas que prepara o adulto para suas escolhas, para a assunção

de papéis que estão mais próximas das suas expectativas.

Habermas (1983, pág. 59), complementa que:

Quando, finalmente, o jovem aprende a questionar a validade de normas de ação e de papeis sociais, o setor de seu universo simbólico volta a se ampliar: emergem agora princípios segundo os quais podem ser julgadas as normas em conflito recíproco.

O que podemos perceber é que esse conjunto distributivo de papéis

dentro da sociedade se processa em várias etapas e seu engajamento para o

conjunto de atores que estão inseridos em um determinado contexto social, se

verifica de forma complexamente estruturada. A partir daí, o conjunto de

símbolos, significados e sentidos podem ser apreciados sob um prisma mais

reflexivo, que permite ao indivíduo avaliar as normas propostas e fazer escolhas

a partir de sua experiência de vida. Nesse momento, convicto com relação a

esses valores ou contrário a eles, o sujeito sai em busca daquele grupo que lhe

permita maior satisfação ou que lhe traga maiores ganhos e atenda suas

expectativas.

O agir, o atuar, não é tão simples assim, porque cada um tem uma forma

particular de ver o mundo e estabelecer padrões de atitude e de pensamento, e

que normalmente, traz consigo um conjunto de regras construídas por influência

do grupo.

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O conhecimento social das coisas do mundo, se atualiza à medida que

experienciamos situações novas, construindo assim nossa biografia. Todos nós

de alguma maneira sabemos tudo, em maior ou menor proporção, atribuindo e

criando significado e sentido para o que nos cerca.

Podemos melhor compreender, então, que a identidade é legitimada pela

sua inserção no contexto de um universo simbólico, e assim, construída por um

grupo de indivíduos que de geração em geração vão transmitindo os seus

valores para outros mais jovens, a partir do que é esperado de cada papel social.

Esse processo de legitimação funciona como uma força sistêmica de

atualização da identidade, que de forma constante cria re-posições, o que

permite permanentes mudanças identitárias. Nem sempre essa metamorfose

leva o sujeito à emancipação, à autonomia. Muitas vezes a mudança é uma

forma de adaptação ao contexto, que não passa da assunção de uma posição

diante do mundo de forma alienada.

A sedimentação de determinados papéis, instituídos e assumidos pelo

indivíduo, nas condições que acima citamos, muitas vezes lhe traz sofrimento.

Foram papeis muitas vezes, não escolhidos por ele, mas por outros, como pais,

amigos, professores, ou outros indivíduos que de certa forma tenham algum tipo

de influência. Estes agentes não levaram em consideração as particularidades

que cada um de nós tem.

A busca por algo que dê sentido à vida leva o indivíduo, muitas vezes, a

sentimentos de ódio, rancor, mágoa, ressentimento, frustração entre outras

categorias emocionais e afetivas. Essas categorias podem contribuir para a

formação de novos papéis, atualizando a identidade permanentemente. O grupo

que ao mesmo tempo pode contribuir para a alienação, também pode ser o

elemento primordial para uma nova forma de atuação diante do mundo.

As emoções podem levar o indivíduo a questionar a si próprio e ao outro

também, e a partir daí, construir uma nova realidade à sua volta, tirando-o da

estagnação, promovendo novos sentidos e significados, denotando um homem

em movimento, na busca pela sua emancipação.

Nossa percepção é de que todos nós estamos envolvidos por uma névoa,

no sentido metafórico, e que não nos permite enxergar com clareza as coisas.

Assim, todos nós estamos vivenciando um estado de mesmice em alguns

aspectos e mesmidade em outros. Todos nós vivemos em maior ou menor

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proporção, um estado de alienação em algumas áreas e de autonomia em

outras. Assim, mesmice e mesmidade habitam a mesma identidade, e a

linguagem é uma importante ferramenta para desatar os nós, para vencer os

embates que travamos dentro de nós mesmos e com o mundo ao nosso redor.

A batalha pela vida, é luta que destrói e constrói ao mesmo tempo!

É uma luta que transcende o mundo racional, cujo terreno, campo de

guerra está também no plano das emoções.

Na mesmidade, o indivíduo está relativamente, parcialmente, liberto das

amarras da alienação, prevalecendo a consciência em maior ou menor grau. No

entanto, o estado de consciência, não é garantia da saída da mesmice para a

mesmidade.

Só deixamos um lado da fronteira, no sentido metafórico, e passamos

para o outro, se temos condição de atuar. Não é raro, sabermos o que queremos

e o que precisamos, e permanecermos na mesma condição, por que não temos

condições de agir, de atuar.

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CAPÍTULO II

2- A Psicologia Social e a contribuição de Silvia Lane

Dando continuidade ao que anteriormente foi exposto, nesta parte da tese

de doutoramento visamos contextualizar a psicologia social no Brasil e na

América Latina a partir de ideias e de contribuições de um dos seus principais

expoentes: Silvia Lane. A discussão que ora abordamos nesta parte da tese

fundamenta-se nas concepções elaboradas a partir de reflexões de Silvia Lane

para a Psicologia Social, alguns membros pertencentes ao seu Núcleo de

Pesquisa e de outros espalhados pelos continentes. Alguns desses membros

ampliaram essa discussão no sentido de melhor situar as relações vivenciadas

no cotidiano da sociedade contemporânea, principalmente na América Latina.

Sílvia Lane tornou-se referência na Psicologia Social do Brasil e da

América Latina através de uma nova forma de pensar essa ciência vinculada à

nossa realidade social, ao invés, daquela produzida a partir de uma realidade

norte-americana, e, por conseguinte, distante dos anseios latino-americanos.

A psicologia Social foi criando contornos a partir dessa necessidade e

para tal, Silvia Lane teve papel fundamental através de sua aproximação com o

materialismo histórico e dialético de Marx.

Durante as décadas de 1980 e 1990 sua visão de homem e da psicologia

social teve a contribuição da psicologia sócio histórica de Luria, Leontiev e de

Vygotsky. A psicologia social veio subsidiada pela dimensão histórica do

desenvolvimento humano, a partir dos significados socialmente construídos e

percebidos pelo sujeito. Assim, a psicologia social deveria estudar o indivíduo e

suas relações sociais.

Lane concebia a psicologia social voltada para uma realidade brasileira e

latino-americana, objetivando a contribuição para superação das desigualdades

e das situações de exploração e opressão, e para tal, seria necessário um aporte

teórico que permitisse a compreensão de um homem participativo em sociedade.

Assim, entendia que o conhecimento da psicologia deveria levar à compreensão

dos mecanismos que dão origem à alienação, e, então, contribuir para ampliação

da consciência dos indivíduos. (BOCK; FERREIRA; GONÇALVES, FURTADO,

2007)

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O que se buscava era uma psicologia social que pudesse compreender o

homem inserido em sua realidade, e a partir daí, entender os fenômenos sociais,

a ideologia por detrás das redes de poder econômico e político, cujos

instrumentos de intervenção e controle levam-no a um processo de alienação. A

realidade latina americana naquele momento da história trazia um homem sob

as amarras de regimes militares que não permitiam a expressão da população,

e o que queriam para seu futuro. Lane ansiava por uma psicologia de

ação e consciência capaz de tornar o homem menos vulnerável às forças de

controle social alienadora.

Mas, são fundamentalmente dois aspectos de grande complexidade os que estão na sua base e apontam para essa perspectiva de compreensão do homem: a relação subjetividade e objetividade; e a formação e o papel dos valores. A preocupação em investigar e compreender como o indivíduo está implicado com a sua sociedade, como se coloca nela, o que permite ou impede que ele compreenda as determinações sociais e como pode agir sobre elas. (BOCK; FERREIRA; GONÇALVES, FURTADO, 2007, pág. 49)

Para isso, Lane entendia que o papel desta ciência seria o de

transformação do homem, a partir de uma visão dialética e produtora de seus

próprios sentidos. O homem deveria ser o produtor da sociedade na medida em

que o próprio meio no qual estava inserido o produzisse também. Teria que ser

um homem em movimento, participativo, atuante, histórico, enquanto processo

de construção de significados e sentidos de vida, e não apenas, um homem

dentro dos mecanismos e estratégias de laboratório como pretendiam os moldes

norte-americanos daquela época.

“Era a psicologia social norte-americana, de base experimental e

positivista, que falava de mecanismos psicológicos-universais e abstratos,

desconsiderando o conteúdo histórico e social presente na constituição do

homem.” (BOCK; FERREIRA; GONÇALVES, FURTADO, 2007, pág. 49)

Mas a psicologia social queria ir além deste modelo, pois o homem

precisava ser compreendido de uma forma histórica. Era necessário conhecer

os mecanismos que o determinavam e como ele poderia atuar de forma mais

consciente na sociedade. Esse processo que se apresentava de forma objetiva,

mas também se fazia presente de forma subjetiva, sutil, criava ideologias,

mascarava realidades, alienando os indivíduos. Eram mecanismos que estavam

a serviço do poder econômico e político. Político porque criava uma situação de

necessidade de controle, de opressão à população como forma de impedir o

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avanço do comunismo, visto que naquele momento da história do mundo, havia

uma clara divisão entre os países capitalistas, norte-americanos e aliados, e o

bloco liderado pela antiga União Soviética. Ao poder econômico e o Estado

interessavam manter a população distante de uma visão mais clara da realidade,

e a subjetividade era ideologizada de forma a aliená-la. O Brasil daquela época

possuía uma população que vivia em condições precárias, mercado de trabalho

restrito, mão de obra despreparada, salários baixos, desemprego, falta de

moradia, o acesso à educação destinava a uma parcela pequena da sociedade,

e tudo isso era dissimulado por ideologias alienantes praticadas pelo Estado,

pelo poder econômico, e outras instituições de controle social. O ser solidário

pressupõe a aproximação de pessoas, de formação de grupos, o que

representava grande risco para a estabilidade que as forças institucionais

buscavam. Isso ficou claro, com a intencionalidade daqueles governos militares

quando perseguiam, proibiam e dissolviam grupos, cuja ideologia era contrária

à deles. Sem querermos nos aprofundar, pessoas ligadas a grupos culturais,

artísticos e políticos foram perseguidas, mortas ou exiladas. Esse processo de

dissolução de grupos era uma forma de impedir ou minimizar os processos que

poderiam criar laços sociais e afetivos geradores de solidariedade. Esses

mecanismos ideológicos foram construídos a partir de um discurso objetivo, mas

que tornavam veladas questões subjetivas. Essa relação entre o objetivo e o

subjetivo, construiu as bases entre a alienação, consciência e ação.

A psicologia daquela época estava voltada para conhecer o homem

enquanto comportamento visto, observável, mensurável, objetivo e concreto,

não lhe interessando desvendar seu mundo, a partir das subjetividades.

(...) deveria começar explicitando uma nova concepção de homem na psicologia: um homem social e histórico. E, para compreender esse homem e como as determinações históricas estão em relação a ele, seria necessário um outro método. O materialismo histórico e dialético será o método que ela vai adotar e desenvolver na psicologia social. (BOCK; FERREIRA; GONÇALVES, FURTADO, 2007, pág.49)

Nossa compreensão é de que o método histórico e dialético irá procurar

dar respostas às formas de atuação do homem frente à sua realidade em

conjunto com outros indivíduos, e de como ele torna-se presa das forças

econômicas e políticas, e como se aliena em sociedade. O materialismo histórico

dialético contribuirá para o entendimento desses mecanismos sociais presentes

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na realidade brasileira e latino-americana. Lane em seus estudos e pesquisas

partiu destes princípios, conforme pode ser visto abaixo:

A partir do materialismo histórico e dialético, Lane produziu, então, uma nova psicologia social, cujo objeto, em vez de 'relações interpessoais e influências sociais' como propunha a psicologia social tradicional, seria o homem como ser histórico, a dialética entre o indivíduo e sociedade, o movimento de transformação da realidade. O objetivo era compreender o indivíduo em relação dialética com a sociedade; a constituição histórica e social do indivíduo e os elementos que explicam os processos de consciência e alienação; e as possibilidades de ação do indivíduo frente às determinações sociais. (BOCK; FERREIRA; GONÇALVES, FURTADO, 2007, pág.50)

As bases epistemológicas que embasam os estudos de Lane estão na

postura materialista-histórica e dialética, onde o homem é produto e produtor de

sua história. “O materialismo histórico e dialético permite trabalhar com a

historicidade dos fenômenos e, por isso, contrapõe-se à sua naturalização.”

(BOCK; FERREIRA; GONÇALVES, FURTADO, 2007, pág. 50)

Lane entendia que os processos de socialização eram objetivos, mas,

sobretudo subjetivos em sua maioria, e que de forma sutil moldavam os homens,

criando valores, formas de pensar e ver as coisas do mundo. Esse processo que

intermediava as relações entre o homem e as forças de controle social se

baseava em mecanismos de persuasão, de manipulação ideológica, e, por

conseguinte, difíceis de serem percebidos pela sociedade.

A partir desses fundamentos, então, Silvia Lane “desenvolveu a

concepção de uma subjetividade em processo dialético, numa dialética

subjetiva-objetiva.” (BOCK; FERREIRA; GONÇALVES, FURTADO, 2007, pág.

52)

Nossa compreensão desenvolvida através de nossa pesquisa nos levou

a ver um homem em constante contato, troca com o seu meio, com os demais

membros, afetando e sendo afetado. A inter-relação com os demais indivíduos

produzindo novas formas de olhar as coisas, ou então, de se cristalizar como

forma de enfrentamento no mundo. É então, necessário compreender a

subjetividade, força sutil que contribui na formação dos homens e da sociedade.

A compreensão de sua forma de atuação ajudaria no enfrentamento destes

mecanismos e, por conseguinte ver o homem sobre outra ótica, capaz de dar

conta de suas aspirações mais intimas e abstratas, componentes fundamentais

de sua existência. A sutileza da intersubjetividade, e do quanto esta vem

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marcada pelas emoções, foi assunto merecedor de vários autores. Vejamos o

que entende Sawaia.

Para Sawaia (2008) eleger a subjetividade como objeto de estudo da

Psicologia Social permite ver a sociedade ocupada pelo desejo individual e pelas

emoções que se entrelaçam com as relações de poder, a estrutura e a ordem

social, o privado, o público e o pessoal como territórios de ação política e

subjetiva.

O que podemos compreender, é que a objetividade e subjetividade

através da linguagem criam papéis, valores e atitudes nos membros de um

grupo, de uma sociedade, estabelecendo o que deve ser feito e como deve ser

visto por todos, invadindo a vida privada e pública dos indivíduos, sendo por eles

incorporados no processo de socialização e dando rumo a sua história.

Para Lane (1995, pág. 74) “a subjetividade se objetiva nas ações do

homem sobre o seu meio, assim como este meio e o que o constituí

objetivamente, se tornam subjetivos no psiquismo humano”.

O homem a partir do momento que transcende a barreira filogenética dá

início ao processo ontológico através da descoberta da ferramenta e uso da

linguagem. A metodologia é descobrir a relação mais relevante entre as partes

e o todo através da dialética entre a subjetividade e a objetividade de suas ações.

(LANE, 1995)

A nosso ver, os mecanismos de socialização se utilizam da linguagem

enquanto instrumento formador da ideologia, a fim de atender aos princípios de

relação entre o dominante e o dominado. A linguagem vai também se encarregar

de disseminar os valores válidos socialmente no ambiente privado, no meio

familiar e social de cada sujeito. Dessa maneira, a linguagem se coloca à serviço

dos instrumentos necessários à intermediação entre a realidade objetiva e a

subjetiva na sociedade, permitindo ao indivíduo se posicionar frente ao mundo.

“A linguagem, produção ao mesmo tempo social e individual é expressão

da síntese e do movimento entre o sujeito e sociedade. Significado e sentido,

como unidade de contrários, ao mesmo tempo revelam e possibilitam e

concretizam a dialética subjetividade-objetividade.” (BOCK; FERREIRA;

GONÇALVES, FURTADO, 2007, pág.53)

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Além disso, a linguagem também tem papel importante, pois é um produto

social e consequentemente determinante no contexto da ação, transformando a

natureza e a si mesmo como produto-social. (LANE, 1995)

Assim, podemos compreender que a linguagem, então, tem papel

fundamental no sentido da construção de valores, ideais, e de expressão de

quem somos e o que queremos. Exprimimos o que somos e o que sentimos,

utilizando-nos da linguagem para compartilhar com os outros. A emoção que

sentimos, o sofrimento que experienciamos ou outras categorias afetivas e

emocionais, se expressam também pela linguagem, permitindo assim a

aproximação de indivíduos, precursores de grupos solidários ou não.

Para Silvia Lane as relações sociais, a linguagem e as representações,

são de suma importância, pois o vínculo cria entre os indivíduos a possibilidade

de troca de experiências, que por meio das emoções, eivadas de subjetividade,

possibilita a este homem ser conduzido à consciência, à atividade e a identidade.

Essa troca permite que o homem se liberte e perceba-se produtor de sua história,

se emancipando à medida que toma consciência de si e do que o rodeia. Assim,

a afetividade, a emoção tem papel fundamental nesta transformação.

É necessário compreender o que impede e o que permite ao homem agir para transformar a realidade de forma libertadora e emancipadora. Por isso, a necessidade de pesquisar como surgem, se mantém e se modificam as emoções. A afetividade é também categoria fundamental do psiquismo, formulação de Silvia Lane para indicar a ligação do indivíduo com o contexto social para além de um reconhecimento cognitivo. (BOCK; FERREIRA; GONÇALVES, FURTADO, 2007, pág.53)

A história de vida de Maria José que mais à frente trataremos e que

possibilitou ver a relação da teoria e prática demonstrou a relevância das

emoções na condução da construção identitária, bem como, seu papel na

metamorfose. Ao longo da vida as emoções fazem parte do nosso dia-a-dia, e a

forma como ela se dá, e como nos ajustamos a ela, vão determinar mudanças

em nossa identidade. As emoções e os afetos são mediadores do

desenvolvimento humano e devem ser levados em conta pela psicologia social

crítica, pois fazem parte do homem. A subjetividade que compõem a afetividade

deve ser estudada e compreendida, sem a qual, não podemos entender o

homem como um todo. Não há afeto e emoção sem a subjetividade que cada

sujeito traz. Ambas são expressas pela construção e desconstrução de valores

e formas de pensar e ver as coisas do mundo ao longo da vida e de nossas

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experiências pessoais e daqueles que nos rodeiam, é a busca por saídas. Assim,

ao procurarmos compreender o homem e sua identidade, é necessário levar em

conta os processos emocionais, e sobre este aspecto, muitos autores e

pesquisadores se debruçaram como os que abaixo explicitamos.

“Processo protagonizado por sujeitos históricos, que, por serem sujeitos

trazem emoção, reflexão, ação, movimento. Posteriormente, essas

investigações desenvolveram-se com os estudos sobre emoções e a postulação

da categoria afetividade.” (BOCK; FERREIRA; GONÇALVES, FURTADO, 2007,

pág.52)

Dessa forma, a nosso ver, a afetividade precisa ser compreendida como

forma de melhor explorar as nuances do indivíduo, permitindo-nos explicar os

fenômenos que fazem parte da reflexão, da consciência e da atividade para a

construção de um homem emancipado, um homem em constante

transformação, em movimento.

Entender então, esse processo rico em questões objetivas e concretas da

sociedade, mas também permeado de aspectos subjetivos, permitiria criar as

condições de mudar uma realidade social repleta de opressões na política, no

trabalho, de alienação e outras artimanhas da sociedade.

2.1-As categorias do Psiquismo humano

A metamorfose identitária necessariamente não significa consciência e

atividade, pode ser também parte de um ajuste em sociedade que lhe leva a

alienação. Ou seja, leva-o ou o mantém na mesmice, ao invés da mesmidade

como Ciampa tratou ao longo de seus estudos.

Vejamos neste tópico o percurso e a contribuição de Silvia Lane para a

Psicologia Social, e a ligação da afetividade para a Identidade.

O estudo e compreensão do psiquismo humano para Silvia Lane

representam a base para a compreensão de um homem inserido nos processos

sociais a partir da perspectiva materialista histórica e dialética. Ela toma como

fundamento, inicialmente, os estudos de Leontiev e Vygotsky.

Dando continuidade aos estudos de Vygotsky, Alex Leontiev (1978) sistematizou como categorias dialéticas que constituem o psiquismo humano, a Atividade, a Consciência e a Personalidade, as quais se desenvolvem pela mediação da linguagem e do pensamento, portanto, na sua essência, são sociais, já que o ser humano só o é na relação com os outros. (LANE, 1995, pág. 56)

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Os trabalhos de Lane posteriormente sofreram modificações ao longo do

tempo. A primeira foi à substituição da categoria “Personalidade” pela

“Identidade”, com base nos estudos de Antonio da Costa Ciampa em 1987. Para

esse autor, a identidade seria um processo de permanente metamorfose do

sujeito dentro da dialética entre indivíduo e sociedade.

Nesta reformulação, a Identidade seria uma categoria síntese na qual a mediação das outras pessoas seria predominante. Não esquecendo jamais que estas categorias estão em mútua interdependência, umas imbricadas nas outras, assim como as mediações se interpenetram. (LANE, 1995, pág. 59)

A Identidade foi reconhecida por Lane como categoria síntese a partir dos

estudos psicossociais de seu ex-orientando Antônio da Costa Ciampa.

Inicialmente através da dissertação de mestrado defendida por Ciampa com o

título: “A identidade social e suas relações com a ideologia” em 1977. Nela o

autor já buscava desenvolver uma sistematização teórica de identidade social, o

que se aprofundou com sua tese defendida em 1986.

Com a divulgação de sua tese de doutorado com o título: “A Estória do

Severino e a História da Severina: Um ensaio de Psicologia Social”, Ciampa

tornou-se uma referência em Identidade para a Psicologia Social, coordenando

até hoje o Núcleo de Estudos e Pesquisa Identidade - Metamorfose (NEPIM) no

Programa de Estudos de Pós-graduados em Psicologia Social, da PUC de São

Paulo. Foi a partir destes estudos que Silvia Lane passou a rever as categorias

do psiquismo humano de Leontiev que até então, eram utilizadas por ela:

Atividade, Consciência e Personalidade, substituindo Personalidade por

Identidade.

(...) personalidade era uma categoria ligada a um conceito antigo da Psicologia, que à nosso ver, estava carregado de uma concepção idealista e vago em termos empíricos. Passamos então a adotar "identidade", para dar conta da organização, no âmbito do sujeito, de seu processo de constituição como agente de transformação no mundo e de si próprio (LANE, 1995, pág.101).

Lane, então, entende que as categorias fundamentais do psiquismo

humano são “Atividade”, “Consciência” e “Identidade”. No entanto, os estudos de

Silvia Lane não param por aí. Mais adiante, compreende que as emoções, bem

como Atividade e Consciência são categorias que imbricadas compõem a

Identidade. Vejamos como isso ocorreu.

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“Um segundo aspecto, emergente em várias pesquisas, foi a constatação

da importância das emoções como uma mediação, ao lado da linguagem e do

pensamento, na constituição do psiquismo humano.” (LANE, 1995, pág. 56)

Os resultados mostravam que as emoções iam sendo gradualmente

aprofundadas no decorrer do percurso acadêmico de Silvia Lane. E ao alicerçar

seus estudos com a base materialista-histórica, a pesquisadora fundamentaria

seus trabalhos na visão de que o homem é produto e produtor de sua história.

Para a autora, a constituição do psiquismo humano – tem o afeto como

importante mediador - tendo relação intrínseca com as condições sociais e

históricas, em que o indivíduo está inserido.

Lane (1995) aponta que a consciência é uma categoria analítica, no

tocante ao psiquismo humano, juntamente com Atividade, Identidade e Emoção.

A categoria emoção apareceu, a partir de 1991, com a tese de sua ex-orientanda

Bader B. Sawaia defendida em 1987, em pesquisas com mulheres moradoras

de favelas. Isso se deu, a partir dos diálogos entre essas mulheres que traziam

conteúdos e situações vividas no cotidiano. Assim, foi possível perceber que as

experiências trocadas só tinham sentido quando experienciadas pelo outro. Além

dessa condicionante, considerava-se também o quanto essas emoções eram

escondidas por influências ideológicas. A consciência era impulsionada pelas

emoções que levavam à reflexão e à ação. (LANE, 1995)

Nesta pesquisa foi possível verificar claramente a concepção de que o

desenvolvimento do afeto ou das emoções está intimamente ligado ao mundo

que nos cerca e dos significados que nos são relevantes. Além disso, de que as

experiências divididas com outros do seu grupo têm sentido, quando também,

esse outro a vivenciou, ou pelo menos tem uma noção melhor sobre ela. E mais,

que as experiências trocadas, possibilitariam melhores condições de

consciência, podendo levar o indivíduo ao um processo gradativo de ação

perante seu contexto social.

Se antes substituímos a categoria Personalidade por Identidade, constituída historicamente no conjunto das relações sociais do indivíduo, agora tudo parece indicar que a Afetividade seja tão fundamental para o ser humano quanto a Consciência e a Atividade. Nesta reformulação, a Identidade seria uma categoria síntese na qual a mediação das outras pessoas seria predominante. Não esquecendo jamais que estas categorias estão em mútua interdependência, umas imbricadas nas outras, assim como as mediações se interpenetram. (LANE, 1995, pág. 59)

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A nosso ver, a compreensão dos processos coletivos pode revelar a forma

como as subjetividades individuais tornam-se objetivas em diferentes

sociedades e em tempos históricos distintos. A formação destes grupos

constituídos por indivíduos que compartilham experiências análogas possibilita

a eles, melhor compreender o outro, colocando-se em seu lugar, e, por

conseguinte, por intermédio da linguagem e do pensamento, dar-lhes

alternativas para seu sofrimento.

Foram inúmeros os estudos para a natureza social e comunicativa das

emoções, que podem tanto gerar o desenvolvimento da consciência, como

fragmentá-la. (LANE, 1995)

Dessa forma, nossa compreensão nos leva a crer que as emoções estão

presentes na vida do homem, e podem promover mudanças, levando-o a novas

formas de ver as coisas que o cerca. Por intermédio de experiências, nossas e

de outros, podemos desenvolver novas formas de olhar o mundo, possibilitando

a mudança de nós mesmos e do mundo que nos rodeia. O outro pode permitir

que busquemos caminhos que sozinhos não nos arriscaríamos a trilhar.

Significa dizer então que a linguagem, o diálogo em grupo, e a reflexão

que os conteúdos podem nos levar, criam novas possibilidades do indivíduo

buscar saídas, emancipar-se. Lane vê o indivíduo através destas possibilidades,

como pode ser visto a seguir.

“Emoção, linguagem e pensamento são mediações que levam à ação,

portanto somos atividades que desenvolvemos, somos a consciência que reflete

o mundo e somos afetividade que ama e odeia este mundo, e com esta bagagem

nos identificamos e somos identificados por aqueles que nos cercam.” (LANE,

1995, pag. 62)

Lane, então, ao rever as categorias do psiquismo humano, passa a

compreender o homem como um ser em movimento, como Atividade que pode

levar à consciência de si e das coisas que nos rodeiam. A afetividade, também,

faz parte deste processo de formação identitária.

(...) a Consciência, a Atividade e a Afetividade constituídas pela mediação, não só da linguagem e do pensamento, mas também por emoções e afetos contraditórios entre o que se sente e o que se deveria sentir, levam tanto à fragmentação da Consciência como da Atividade, isto é, a alienação social; e quanto à Afetividade, esta fragmentação constitui o que chamamos de alienação mental (LANE, 1995, pág. 62)

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A identidade está sendo sempre posta e reposta, ainda que a aparência

seja de estabilidade. Abstraída desse movimento, torna-se identidade-objeto,

uma etiqueta usada para controlar, reprimir, discriminar, transmutando-se em

estratégia de exclusão e dominação. Identidade esconde negociações de

sentido, choques de interesses, processos de diferenciação e hierarquização

das distinções, configurando-se como estratégia sutil do processo de regulação

e de emancipação social. (SAWAIA, 1995)

Acreditamos que o estado de fragmentação da consciência, ou seja, de

alienação social, e o da fragmentação das emoções, que resulta em alienação

mental, leva a um sofrimento que pode ser manifestado pelo indivíduo, como

forma de expressão de sua identidade. As ideologias presentes no imaginário

coletivo provocam no indivíduo transformações que muitas vezes lhe são

incompreensíveis. Nestes casos, o sofrer, leva-o a buscas por saídas que nem

sempre o conduzem à autonomia, emancipação, consciência e ação. Parece que

em sua maioria, os indivíduos sob esta condição, estão mais predispostos a

expressarem seus sofrimentos por intermédio de mecanismos reguladores,

como por exemplo, o consumo, que não os levam a compreensão e superação

de suas insatisfações, mas sim, a alívios momentâneos tão somente.

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CAPÍTULO III

3- A Afetividade e o papel das Emoções

3.1 As Emoções

A emoção é assunto de intensa discussão que acontece de forma

calorosa desde sempre. Uns entendendo que ela tem fundamentos e bases

biológicas importantes para o homem como resposta frente aos estímulos do

ambiente, e outros, que esta categoria é cultural, um produto sócio histórico. No

entanto, o que propomos neste capítulo é justificar a importância das emoções,

dos sentimentos, da afetividade na construção identitária, assim como foi

debatido nos capítulos anteriores sobre a formação do psiquismo humano do

ponto de vista de Silvia Lane. Desde que nascemos vivenciamos situações que

nos permitem associá-las à circunstâncias felizes ou tristes, agradáveis ou

desagradáveis, boas ou ruins. Esses afetos a que ficamos expostos de alguma

maneira podem provocar mudanças em nós, como forma de enfrentamento de

determinada situação. De qualquer maneira, as emoções podem ser vistas com

bases fisiológicas ou sociais que afetam de alguma forma o indivíduo.

As emoções são expressões corporais que se manifestam segundo

alguns autores com “uma base fisiológica inata. O medo, a raiva, a alegria, a

tristeza seriam emoções básicas que teriam um papel social, reforçando a

coesão social e, especialmente, cumprindo funções de integração e de

diferenciação inter e intragrupo”. (GALANO, 1995, pág. 151)

Acreditamos que cada emoção pode ter vários sentidos, podendo ser

positiva ou negativa, que podem ser compreendidos a partir do enfoque

psicossocial.

Assim, como dito anteriormente, a emoção faz parte da vida de todos os

indivíduos e pode ser externada pela alegria, felicidade, surpresa agradável, ou,

então, como algo negativo, uma decepção, tristeza, mágoa, etc. Não importa a

categoria, positiva ou negativa, a emoção tem o poder de afetar, tanto quem

sente como aqueles que estão ao seu redor. Nossas reações vêm carregadas

de maior ou menor intensidade, quanto ao ponto de vista das emoções ou

sentimentos.

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Para Smirnov “a maneira de reagir do homem ante as coisas, os

acontecimentos e as pessoas é definida por emoções e sentimentos.”

(MACHADO, 2011, pág. 651)

Para esse autor ainda, a diferença entre emoções e sentimentos está no

cerne de suas origens. Enquanto as emoções estão mais relacionadas às

necessidades do organismo, os sentimentos estão ligados às necessidades

culturais e espirituais e que por sua vez dependerá das condições socioculturais

do homem. (MACHADO, 2011)

Esta pesquisa nos mostrou que a emoção não pode ser discutida apenas

como um conceito da psicologia, pois vai além dos limites da individualidade do

sujeito. É um fenômeno de dimensão social histórica vivenciado no âmbito

coletivo, e, não apenas no contexto psíquico e mental de cada um.

A emoção está vinculada às reações do organismo, como uma alegria,

espanto, por uma determinada circunstância, ou então, tristeza, por exemplo, por

um acontecimento. Ela tende a ser menos duradoura, passageira, é como se o

impacto que no indivíduo causa, é apenas circunstancial, transitório. Assim, uma

discussão momentânea na rua com alguém, com um desconhecido, logo passa,

e se perde em meio a outras coisas mais importantes, sendo esquecido pelo

indivíduo. Enquanto o sentimento está voltado para algo mais profundo, que fica

enraizado no indivíduo. Assim, um sentimento tem maior impacto no indivíduo,

pelo seu caráter não transitório. Nesse sentido, um sentimento que provoque

descontentamento e dor, terá mais probabilidade de se tornar um sofrimento,

dependendo da intensidade e do tipo de situação à qual está relacionado, e se

assim ocorrer, possivelmente promoverá algum tipo de impacto no sujeito. Uma

perda de uma pessoa querida, uma decepção, uma traição, têm a probabilidade

de permanecer por tempo indeterminado, e certamente, provocar na identidade,

transformações, uma metamorfose.

Sobre os aspectos afetivos influenciando o indivíduo, Bader Sawaia

desenvolveu inúmeras pesquisas e estudos, discutindo suas implicações

psicossociais.

(...) cada emoção contém uma multiplicidade de sentidos (positivos e negativos), os quais, para serem compreendidos, precisam ser inseridos na totalidade psicossocial de cada indivíduo. Não basta definir as emoções que as pessoas sentem, é preciso conhecer o motivo que as originaram e as direcionaram, para conhecer a

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implicação do sujeito com a situação que os emociona. (SAWAIA, 2011, pág. 111)

Através de nossa pesquisa de história de vida de Maria José percebemos

que se ficássemos apenas no plano superficial da emoção, e do que esta

representa para o indivíduo no presente, estaríamos incorrendo numa avaliação

apenas parcial de sua identidade. Seria necessário conhecer suas origens e

implicações subjetivas, para então, melhor compreender esse indivíduo. Os

aspectos emocionais e afetivos do homem foram temas de diversos cientistas e

estudiosos, entre eles o psicólogo russo Vygotsky.

Vygotsky não negava as influências filogenéticas, hormonais por qual

passam os indivíduos, pois essas são mediadas por variáveis sociais. Esses

mecanismos biológicos são respostas ao meio ambiente, onde cada sujeito

entende o que está ao seu redor, e seus efeitos desencadeiam todo o conjunto

complexo de reações hormonais.

Seus estudos sobre a emoção partiram das discussões acerca do

pensamento e da linguagem, uma vez que as expressões emocionais se

apresentam através de signos, como a palavra e o gesto. Machado considerando

o pensamento de Vygotsky comenta:

Vygotsky dá vazão à problemática do desenvolvimento ontogenético, da triangulação biológico-histórico-cultural e da questão pensamento-linguagem, além de temas que subjazem a essas temáticas centrais, como a constituição e o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, como imaginação, memória, atenção, abstração e emoção. (MACHADO, 2011, pág. 648)

Para Vygotsky as emoções são formadas e transformadas a partir de

determinadas condições sócio históricas na qual o homem está inserido. A teoria

sócio histórica entende que a realidade provoca mudanças no homem e ele nela,

com ações e reações, em que, ao mesmo tempo essa realidade age sobre o

indivíduo, este reage a ela, com mutuas influências. Para Vygotsky o

desenvolvimento da humanidade só pode ser entendido a partir da compreensão

do seu desenvolvimento emocional, pois, ao longo da história modificam-se os

significados e os sentidos das emoções. O autor relaciona a emoção à cognição,

cujos trâmites complexos sofrem modificações através da aprendizagem dos

aspectos culturais.

“Vygotsky tentou mostrar que a criança incorpora instrumentos culturais

através da linguagem e que os processos psicológicos afetivos e cognitivos da

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criança são determinados por seu ambiente cultural e social.” (LIMA, BOMFIM,

PASCUAL, 2009, pág. 237)

A nosso ver, a cultura de uma sociedade desenvolve mecanismos de

aprendizagem e controle da emoção. O controle passou a ser um sinal de

superioridade, e, num mundo cada vez mais competitivo é sinal de força e poder,

em que, aquele que expõe suas emoções em qualquer local ou em qualquer

circunstância é visto como frágil. É a linguagem um instrumento que pode ser

utilizada para transmitir os significados para o controle dessas emoções, ficando

à serviço da ideologia. Os aspectos culturais e sociais são constantemente

repostos em sociedade e os indivíduos expostos a esses valores acabam se

transformando à medida que a própria sociedade se modifica. Os mecanismos

ideológicos são repassados pelos atos de fala, e o indivíduo, elabora, organiza,

assume esses conteúdos, para então, se posicionar no ambiente social.

“Vygotsky fala mais acerca da inseparabilidade da capacidade humana de

criar significado (de envolver-se em atividade revolucionária) com base na fala e

no pensamento”. (NEWNAN & HOLZMAN, 2002, pág.66)

Cremos que, pensar e falar se constroem simultaneamente, e não de

forma isolada, como causa e efeito. Assim, pensar e falar não nos torna

humanos, mas antes de tudo, a humanização está na capacidade de criar, de

dar significado às coisas. É a revolução criadora da sociedade por intermédio da

ação do homem frente à habilidade de dar significado às coisas e tudo que está

direta ou indiretamente ligado a ele.

A emoção e os sentimentos que experimentamos estão sempre atrelados

aos significados que determinada situação conduz. E a importância que esse

significado tem para o indivíduo é que vai determinar a sua intensidade. Se a

emoção é negativa e tem para o sujeito grande relevância, a chance de causar

impacto nele aumenta sobremaneira.

Para Vygotsky “a emoção e o sentimento não são entidades absolutas ou

lógicas do nosso psiquismo, mas significados radicados no viver cotidiano, que

afetam nosso sistema psicológico pela mediação das intersubjetividades.”

(SAWAIA, 2011, pág. 105)

Esse processo só pode ser constituído através do contato entre os sujeitos

que se afetam e se modificam. A afetação é que permite ao sujeito a

incorporação de imagens, ideias e emoções, dando significado e sentido a esse

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contexto. As emoções e os sentimentos contribuem para a constituição do

psiquismo humano e se manifestam por intermédio de nossas ações, de nossos

valores, da forma como vemos e pensamos.

Os indivíduos vivenciam experiências das mais variadas ordens, tanto

positivas quanto negativas. Estas podem afetá-lo, em maior ou menor proporção.

São sentimentos que tocam o indivíduo, em seu âmago, que extrapolam as

emoções com bases fisiológicas e que interferem em seu mecanismo psíquico.

A intensidade dessas emoções pode determinar as ações que os indivíduos vão

tomar a partir delas. Uma emoção negativa, sofrimento pode levá-lo a busca por

saídas a fim de encontrar a solução para tal situação. Logicamente que a

emoção nem sempre tem o caráter de levar ao sujeito a busca de alternativas

para tal, muitas vezes ele encontra outras formas de diminuir esse impacto.

As consequências e efeitos do que lhe acontece é que vão determinar sua

importância. Assim, um contato, gera alguma afecção, que pode ser positiva ou

negativa, no entanto, de alguma forma leva ao indivíduo a explorar no

pensamento num primeiro momento, a experiência vivida. Outras vezes o que

acontece em pensamento, traz reflexões tais, que dali deriva uma nova forma de

ver a vida, e até mesmo ação para uma solução.

As emoções vivenciadas podem ser entendidas como forma de levar o

indivíduo à reflexão, como possibilidades de leva-lo a questionamentos de

determinados problemas. Assim, as emoções podem se tornar mecanismos

impulsionadores de movimento de consciência, por meio da ação e da reflexão.

Sawaia (1995, pág. 157) entende que “conhecimento, ação e afetividade

são elementos de um mesmo processo, o de orientar a relação do homem com

o mundo e com o outro.”

Acreditamos que a emoção, então, é um componente fundamental na

identidade do sujeito, sem a qual, estaria fadado ao isolamento e inanição, à

estagnação. Sem esse componente mediacional entre o indivíduo e a sociedade

como um todo, seríamos apenas razão, impossível assim, de conceber o homem

neste prisma tão somente.

O componente afetivo, então, é uma força que aproxima ou afasta as

pessoas, que permite a elas a troca de conhecimentos na direção da ação e da

consciência, que é razão e emoção, bem como, abre possibilidades para a

reflexão e metamorfose do homem. Através da linguagem construímos um

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enorme repertório para troca de experiências, e através desta dialética, criamos

uma via de mão dupla que permite com o estabelecimento de vínculos afetivos,

buscar soluções para nossas questões emocionais. A dificuldade de solucionar

as questões emocionais pode levar o indivíduo ao sofrimento.

Entender as causas de um sofrimento não é tarefa fácil. Ver o sofrimento

apenas no tocante às reações físicas e biológicas é mais fácil de ser percebido

pelo indivíduo. Entretanto, entender as questões psicológicas, mentais, sociais

é muito mais complexo.

Significa dizer, que os processos psicológicos vinculados a uma situação

de dor e de sofrimento nem sempre vêm claros, muitas vezes estão envoltos em

uma névoa que esconde questões importantes e de difícil compreensão. Muitos

autores se debruçaram sobre a emoção, a afetividade e o sofrimento, alguns

deles tratados até aqui. Entretanto, Espinosa a nosso ver foi um dos que mais

contribuiu para clarear esse tema.

3.2 A Afetividade para Espinosa

Diversos filósofos e cientistas da área de humanas se debruçaram para

entender a natureza do homem e suas potencialidades de mútuo contato, dentre

eles Espinosa, que dedicou boa parte de suas reflexões a esse tema.

Não vivemos de forma isolada, o ser humano está em constante contato,

em permanente relação com o outro, o que propicia a troca de impressões, de

sentimentos e emoções, positivas ou negativas desde seu nascimento. Essas

afetações tocam-nos tanto mentalmente como fisicamente, sem queremos fazer

uma dicotomia entre corpo e mente, pois, para nós, não existe duas estruturas,

e sim, uma, pois se completam. Espinosa buscou compreender o significado e a

importância do afeto para o homem.

Espinosa (1957) “por afetos, entende as afecções do corpo pelas quais a

potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, secundada ou

reprimida e ao mesmo tempo as ideias dessas afecções.” (SAWAIA, 2011, pág.

103)

A nosso ver, Espinosa baseia sua teoria no entendimento de que o

homem, desde seu nascimento está aberto à afecções. Não há como se isolar

delas, ou mesmo, impedir que ela tenha efeitos sobre o indivíduo. Qualquer tipo

de reação é uma afecção, pois significa que o indivíduo foi afetado por uma

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circunstância. A experiência que temos a partir destas afecções vai resultar em

efeitos duradouros ou passageiros, dependendo do quanto lhe representa esse

afeto. Isso nos dá a percepção de que estamos vivos, que há vida, e que somos

humanos em contato com o mundo e as pessoas. Ao tomarmos contato com

algo que nos afeta, podemos tanto aumentar nossa potência de ação, inerente

a todos nós, como também diminuí-la. Corpo e mente como uma coisa só, se

modificam mutuamente, e, por conta do que o primeiro (corpo) vivencia pelo

afeto, leva-o à mente que toma consciência do que significa essa afetação para

o indivíduo.

Para Espinosa “a mente só tem conhecimento de si através do

conhecimento das modificações, dos movimentos, da vida ou das afecções de

seu corpo.” (CHAUI, 2011, pág. 79)

Nossa compreensão é de que todos têm uma potência natural de agir, de

existir, de lutar pela vida, muito embora, possamos diminuí-la em determinadas

circunstâncias, ou mesmo, a potencializarmos em outras. Após o nascimento,

aprendemos e adquirimos as mais variadas potencialidades de ação, de

transformação do que está ao nosso redor, das pessoas e de nós mesmos. E as

afecções que nos envolvem, de maneira direta ou indireta, chegam até nós,

invadem nosso interior, nossa mente, nos impulsionando em direção a algo. E,

dependendo de como elaboramos o fato, podemos vê-las com mais ou menos

consciência, ou então, permanecer submerso na ignorância, na inconsciência,

em alienação. Não importa o que fazemos com o afeto, mas sempre fazemos

algo a partir dele, pois o sujeito tem uma potencialidade para agir diante dele.

Em particular, no homem, segundo Espinosa essa potência é denominada de

conatus que “é uma força interna para existir e conservar-se na existência, o

conatus é uma força interna positiva ou afirmativa, intrinsecamente indestrutível”

(...) (CHAUI, 2011, pág. 84 e 85)

A nosso ver, o pensamento de Espinosa acima merece melhor reflexão.

Quando um indivíduo se utiliza das drogas, do álcool, do fumo e outras mais

prejudiciais a ele, poderíamos considerar como um ato de autodestruição e até

mesmo o suicídio. Entretanto, podemos também inferir que essa ação nada mais

é do que uma tentativa de atenuar, exterminar aquilo que lhe causa

descontentamento, tristeza, dor e sofrimento. Logicamente que em qualquer das

tentativas citadas o problema não está resolvido. São maneiras de tentar atenuar

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a dor, assim como fazem muitos indivíduos que angustiados, tristes, infelizes

que buscam no consumismo uma forma de minimizar esse sentimento, que

talvez consigam, mas de forma transitória. Logo o problema volta ao plano

mental e o indivíduo pode recorrer novamente às drogas ou ao mundo das

compras. De qualquer maneira, esse é um assunto de muita polêmica.

Entendemos o homem como um ser em plenitude, em transformação a

partir do contato com o outro, em busca do outro e de si mesmo, e que, por meio

do outro se modifica constantemente. A potência de agir que cada um traz faz

parte de todo homem e não se restringe apenas ao corpo ou à vontade que a

mente impõe a ele.

Relacionamo-nos direta ou indiretamente com tudo que nos rodeia. Todos

têm uma potência para o agir e que nos dirige para em princípio a

autopreservação. É essa potência nos leva a diferentes direções, o sujeito

vivencia emoções das mais variadas ordens. Essa potência natural de agir que

trazemos, Espinosa deu o nome de Conatus.

Para esse autor a potência de agir uns nos outros pode ocorrer de forma

ativa ou passiva. Ativa quando somos direcionados por causas adequadas, onde

percebemos claramente os efeitos dela sobre nós. São passivas quando as

causas inadequadas fazem com que não percebamos com clareza seus efeitos.

(CHAUI, 2011)

Nossa visão de homem é de que o sujeito afetado por diversas situações,

mas nem sempre reage de forma adequada. Mas, a forma de se posiciona diante

dos fatos, é uma disposição que o indivíduo tem para enfrentar as circunstâncias

da vida, uma potência de agir. O que verificamos nas práticas de relações sociais

e de postura dos sujeitos é de que as interações se manifestam de forma ativa

ou mesmo passiva, mesmo que essas últimas não deem uma solução ao

problema enfrentado.

Conforme Espinosa, “os propósitos e interações que realizamos, passiva

ou ativamente, não são fins externos escolhidos por nossa vontade, mas

exprimem a causalidade eficiente de nosso apetite e de nosso desejo, isto é, de

nosso conatus.” (CHAUI, 2011, pág. 86 e 87)

No corpo, o Conatus é apetite, já na mente o Conatus é desejo, percepção

ou consciência deste apetite. Assim, a essência do homem é desejo. A nosso

ver, as afecções e a potência de agir aumentam ou diminuem esse potencial, ou

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então, favorecem ou coíbem-no. O ser humano é definido pela sua intensidade

para existir, ou seja, pela força maior ou menor. No corpo, isto significa a força

para afetar outros corpos e ser afetado por eles. No caso da mente, essa força

está relacionada ao pensar.

À variação da intensidade do desejo do corpo e da mente Espinosa

(CHAUI, 2011) dividiu em três afetos primários:

1- Alegria = aumento da força e da intensidade. A alegria acompanhada de

causa externa é amor.

2- Tristeza = diminuição desta força e desta intensidade. Tristeza

acompanhada de causa externa é ódio.

3- Desejo = é o sentimento que nos direciona ao agir e a existir. O desejo

que nasce da alegria é mais forte do que o desejo que nasce da tristeza.

Desejo é alegre quando se chama de contentamento e quando triste de

frustração.

3.3- A Paixão

A condução de nossas vivências nos revela que o homem é um ser

sempre em expansão, e constantemente envolvido com paixões das mais

variadas ordens. Elas nos direcionam a várias formas de pensar, de agir diante

do outro ou de outras coisas. É um afeto que nos impulsiona, nos arrebata, nos

deixando envoltos em uma névoa que quase sempre inebria nossa visão do

mundo.

Seus efeitos não são sempre positivos. Na maioria das vezes a paixão

aumenta imaginariamente a intensidade do Conatus, mas na realidade a diminui,

e a isso Espinosa chama de servidão humana (CHAUI, 2011).

A nosso ver, quando estamos envolvidos com a paixão temos nossa

potência de agir diminuídas, o que Espinosa denominou de servidão humana. A

servidão humana resulta, então, das paixões ou afetos passivos. A servidão é

deixar-se governar por ela, muitas vezes acreditando dominá-la.

A este estado, Espinosa denominou de alienação.

É o conatus interno se submetendo às forças externas, imaginando

submetê-las.

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Os efeitos da servidão foram divididos por Espinosa (CHAUI, 2011), em

dois aspectos:

1- Autodestruição do seu conatus, desta potência de agir (suicídio, ciúmes),

isto do lado do indivíduo, e,

2- Do lado intersubjetivo, coloca um contra os outros, temendo ou odiando

cada um, imaginando atender seus desejos através da destruição do

outro.

Assim, acreditamos que nosso equilíbrio dinâmico precisa sempre ser

restabelecido em função das forças exteriores sobre nós, frente às diversas

formas de afecções, suas causas e efeitos. A alegria e a tristeza nunca vêm de

forma clara, elas surgem de maneiras variadas, como a alegria causada por um

outro, onde denominamos de amor.

Espinosa acreditava que a tristeza causada pelo outro é ódio. A alegria

por algo que virá no futuro denomina-se esperança, e a expectativa, o medo.

Espinosa (CHAUI, 2011) classifica as formas alegres e tristes e os desejos

com as seguintes variações:

Afetos tristes Afetos e desejos alegres Desejos tristes

Ódio Amor Frustração

Aversão Generosidade Cólera

Medo Glória Vingança

Ciúme Esperança Crueldade

Desespero Gratidão Temor

Remorso Segurança Pusilanimidade

Arrependimento Devoção Consternação

Comiseração Estima

Autocomiseração Misericórdia

Autoabjeção Benevolência

Humildade Coragem

Modéstia Força de animo

Inveja

Pudor

Tabela 1 -Classificação dos afetos para Espinosa Fonte: Marilena Chauí

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Livro Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa

Nossa pesquisa levou-nos a compreensão que todas as três variações se

entrelaçam no indivíduo nesse complexo sistema de Inter afetações, podendo

passar da passividade para a atividade, da paixão para a ação, da causa

inadequada para a causa adequada. A afetividade, assim, é uma categoria

presente no homem, estando esse dependente das emoções que permeiam sua

relação com o outro e com o mundo. Em específico os afetos tristes e as paixões

como discutiu Espinosa, vão de alguma forma modificar o indivíduo. Por mais

alienado que esteja, por mais longe da consciência que o indivíduo permaneça,

os afetos tristes e a paixão são singular oportunidade para mudança.

Espinosa ao se dedicar às reflexões sobre a afetividade mostrou à

sociedade da época, aquilo que perdura até hoje, de que o homem, é afeto,

afetando tudo que está ao seu alcance, e sendo afetado por outros e pelo mundo

ao seu redor.

As formas de reagir diante do sofrimento variam de acordo com as

experiências de cada um, do seu universo particular, do sentido e significado que

ele dá para a sua existência. Ao discutirmos identidade, fica claro que esta está

sempre em movimento, em metamorfose, busca constante pela emancipação,

como tratou Ciampa através do Sintagma Identidade-metamorfose-

emancipação. No entanto, não há como deixar de levar em consideração a

afetividade, a emoção, e principalmente, o sofrimento neste processo.

CAPÍTULO IV

4- O sofrimento e sua relação com a Identidade

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Buscamos na Psicologia Social, subsídios na tentativa de melhor entender

o homem em sua dialética com o mundo da vida e consigo mesmo. A partir de

ideias de Silvia Lane, Antonio Ciampa e Bader Sawaia encontramos algumas

categorias de análise como: consciência, atividade, identidade e emoção.

Convictos de que a Identidade é a síntese das categorias Consciência, Atividade

e também, Afetividade. E que a emoção é elemento de intermediação entre o

mundo particular e o universal, entre a objetividade e a subjetividade, entre o que

quero ser e o querem que eu seja, alinhamos o panorama teórico e metodológico

que buscou dar sustentação à compreensão da existência humana e seu embate

com o sofrimento.

4.1 O Sofrimento e seus aspectos psicossociais

No ser humano, os afetos e desejos tristes diminuem o seu conatus, ou

seja, sua potência de agir, levando-o à servidão humana. Isso pode levar o

indivíduo à alienação, não lhe permitindo ter a consciência das coisas que o

afetam e enxergar as possibilidades para emancipação e autonomia, no

processo de metamorfose. No entanto, a consciência afetada pelos sentimentos

que constroem sua história de vida traz lentamente o desconforto, a dor, e o

sofrimento, mesmo que para o sujeito o cenário não esteja completamente claro,

ou melhor, a consciência não esteja plena em seu mecanismo psíquico. É como

uma força que impede a pessoa de permanecer na alienação, empurrando,

tirando-o deste estado mórbido do ponto de vista da inconsciência do que a afeta

e do que o rodeia.

O sofrimento foi estudado por diversos autores, como Heller, por exemplo,

que se debruçou sobre esse tema.

Para Heller (1979) a dor é intrínseca ao homem, à vida, pois é inevitável

para qualquer um. É algo que resulta dos contatos com os outros, e que diz

respeito a sua potência de sentir, de ser afetado. Entretanto, sofrimento é estar

submetido à fome, à exclusão, à opressão e pode não ser sentido por todos

como dor. (SAWAIA, 2011)

Nossa compreensão sobre o ser humano leva-nos a crer que o sofrimento,

então, pode ser visto como algo ligado às questões fisiológicas, mas também

sentido, a partir de implicações psicológicas e sociais do indivíduo. Em qualquer

das circunstâncias, o sujeito pode se ver fragilizado, impotente frente à situação.

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O sofrimento visto a partir dos aspectos psicossociais, como a exclusão

merecem ser abordados, principalmente quando tratamos de sujeitos em

condições econômicas e sociais desfavorecidas, como foram aqueles em que

tomamos contato durante nossa pesquisa. Sobre isso Sawaia comenta:

Em síntese, o sofrimento ético-político abrange as múltiplas afecções do corpo e da alma que mutilam a vida de diferentes formas. Qualifica-se pela maneira como sou tratada e trato o outro na intersubjetividade, face a face ou anônima, cuja dinâmica, conteúdo e qualidade são determinados pela organização social. Portanto, o sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade. (SAWAIA, 2011, pág. 106)

Compreendemos que a dinâmica das relações sociais pautada pelo

controle do mais forte sobre o mais fraco é muitas vezes sutil. O poder econômico

cerceia e manipula grupos enfraquecidos, não lhes permitindo acesso aos seus

anseios e direitos, enquanto cidadãos. Os mecanismos sociais criam estratégias

e armadilhas, no qual o homem pleno, feliz, é aquele que possuía coisas,

desfruta dos prazeres comprados, que constrói uma imagem etiquetada por

marcas não acessíveis a todos. É uma felicidade que pode ser comprado à vista,

ou em prestações, com juros, onde o único que ganha, é quem detém o poder

do dinheiro, do empréstimo. Se não podemos comprar à vista a solução é

comprar à prazo, pois a felicidade não pode esperar, não pode ficar para o

amanhã. É o imediatismo, fruto da propaganda liberadora da ansiedade, parceira

do poder econômico. Aliás, a ansiedade, do ponto de vista sociológico, é maior

parceira da burguesia, do empresário, conjuntamente com o dinheiro. É ela que

contribui para nos movimentar em direção a querer coisas, bens, marcas,

fantasias, exacerbando nossos desejos e paixões, a ponto de não percebermos

as armadilhas que nos defrontamos. Sobre essas circunstâncias ideológicas que

regulam a sensação de felicidade e satisfação social através do consumo de

bens e mercadorias Sawaia comenta sobre o estado de manutenção desta

prática alienadora.

Para Sawaia (2011, pág. 48) “a prática psicológica ocorre em um contexto

ideológico de manutenção da hegemonia burguesa de reprodução das formas

de alienação produzidas pelo capitalismo contemporâneo”.

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Sawaia (2001) vê as emoções à partir das circunstâncias históricas e

sociais, e, busca desconstruir a ideia de que o indivíduo excluído socialmente

não está predisposto a uma sofrimento psicológico.

O que presenciamos em nossa pesquisa foi de que o sofrimento

psicológico, coletivo e físico está presente em todas as camadas da sociedade,

não importa qual a condição. O sofrimento psicológico está presente no âmago

de todo o ser humano, qualquer que seja o gênero, a idade, a raça, a condição

social. Está presente no indivíduo, dando rumos à vida, dando impulso a

possibilidades emancipatórias.

4.2- O Sofrimento e sua relação com o sentido da vida

Desde que iniciamos a jornada da vida, buscamos conhecer o sentido que

as coisas têm para nós e para os outros. Buscar o sentido da vida é fundamental

para nos posicionarmos frente a tudo que nos rodeia.

O sofrimento está intrinsecamente relacionado ao sentido da vida ou sua

ausência. Sofremos por não podermos atingir aquilo que buscamos e nos dá

sentido, ou porque nada na vida tem valor. Quando não temos um sentido,

muitas vezes sofremos pela busca do mesmo. O sentido da vida não fica

perdido por conta do sofrimento. A vida pode ter um sentido e um significado,

mesmo que o sujeito sofra. O papel do sofrimento neste caso é apenas como

categoria que o tira da situação de satisfação, que permite levá-lo a novas

saídas, busca por alternativas, e que pode conduzi-lo a um movimento de

mesmidade, ou de manutenção das coisas, ou seja, da mesmice, conforme

tratado por Ciampa ao longo das últimas décadas através de suas concepções

teóricas. No entanto, o que pudemos compreender é que o sentido da vida pode

estar ligado diretamente a questões objetivas e subjetivas da posse, mas

também, relacionado às pessoas a nossa volta. E que o sofrimento pode ser algo

ligado a nós mesmos, nossos fracassos, nossos erros, por um sofrer onde a

culpa nos consome, mas também, a uma angústia pelo não pertencimento,

reconhecimento perante o outro. Antes de nos aprofundarmos nestas questões

se faz necessário, entendê-lo e interpretá-lo de forma mais pontual.

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4.3–O Sofrimento e suas interpretações

O sofrimento é inerente ao ser humano. Inclusive ele traz sentido à vida

em diferentes graus de intensidade ao longo da existência, e o desafio se

constitui em decidir o que fazer diante dele. O sofrimento numa primeira instância

traz dor, pode ser considerado apenas um efeito oriundo de uma causa. Porém,

num segundo momento, quando o indivíduo consegue dele se distanciar pelo

menos minimamente, é que lhe permite pensar a respeito de sua causa, passo

fundamental para a consciência e a ação. Esse processo, então, consiste em

três momentos. O da vivência simplesmente da dor (efeito), o do pensamento e

reflexão sobre esse efeito, o que poderia dar origem a ele, etapa essa ainda no

plano da consciência, e por último, a etapa da atividade, que permitiria ao

indivíduo, buscar a superação deste sofrer, da emancipação, demonstrando as

etapas da metamorfose humana.

O sofrimento faz parte da nossa vida desde os primeiros momentos. E se

toda vida tem um sentido, mesmo que diferente para cada sujeito, o sofrimento

também o é para cada um. Debruçar-se sobre essa categoria ligada a afetividade

e emoção na busca pela compreensão dos sentidos que ele representa para o

homem, e o próprio homem atribui a ele foi objeto de estudos, inclusive, quanto

a sua origem linguística.

A palavra sofrimento é oriunda do grego phérein, primeiramente, e depois

suffere em latim, que tem o significado de tolerar, permitir, suportar. Mas

somente no século XVI a palavra sofrimento foi relacionada à experiência da dor

entre os franceses. (NOBREGA et al 2005).

Nossa perspectiva sobre o conceito de tolerar, permitir e principalmente

de experienciar é de que pode levar o sujeito a novas formas de ver a vida, re-

significá-la. Entretanto, a experiência de sofrer não traz apenas crescimento ao

sujeito, mas também formas diferentes de submissão. O enriquecimento pessoal

pelas interações variadas desta emoção nem sempre é positivo, e muitas vezes

conduzem o indivíduo a formas de subserviência perante o mundo e os demais

sujeitos ao redor. Sawaia ao discorrer sobre essa subserviência a partir das

afetações durante a vida, nos traz reflexões sobre o impacto delas sobre o

homem.

Para Sawaia (2011, pág. 42) o “sofrimento ético-político é o sofrimento da

potência negativa, são as afecções que marcam a atividade de um corpo que

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diminuem a potência de ação e nos mantém na servidão em todas as esferas da

vida.”

Acreditamos que dessa maneira, o sofrimento vivenciado dá sempre

novos contornos identitários, mudanças contínuas pelo impacto da dor, cuja,

resposta deste indivíduo pode conduzi-lo a autonomia (mesmidade), ou a

alienação (mesmice).

Diante do sofrer podemos enfrentar nossas angústias, nossas dores de

forma a superá-las, ou então, por desconhecer os fenômenos que a originam e

não perceber que existem saídas. A falta de uma visão mais clara do mundo não

é a única resposta para a não emancipação. Podemos compreender as origens

do sofrimento, mas não conseguir buscar as saídas, por não termos condições

de enfrentá-las naquele momento. Neste último caso, os mecanismos do poder

econômico oferecem alternativas de consumo para minimizar esse sofrer.

Vivemos um mundo interior de complexas contradições, cujo psiquismo

humano tem que intermediar as situações que ora colocamos. O enfrentamento

que temos à nossa frente durante determinados momentos da vida precisa ser

regulado de acordo com nosso potencial de ação e de consciência. As

artimanhas que esse psiquismo pode criar escondem muitas vezes questões que

não podem vir à tona, é preciso que nossas ações dissimulem aquilo que não

pode ser revelado para si e para o outro.

Foi isso que percebemos em nossa entrevista, conteúdos dissimulados,

cujas ações vêm de forma a neutralizar um sofrer. A partir dessas narrativas foi

possível melhor entender como o sofrimento pode ser mais bem categorizado,

seu impacto na identidade e o que pode ser feito, a fim de promover consciência

e ação.

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CAPÍTULO V

5 - Considerações Metodológicas

5.1 Campo de Pesquisa

Passo aqui a descrever de forma mais ampla o campo de pesquisa, o qual

me permitiu aproximar do indivíduo que me narrou sua história de vida.

O Grupo de Estudo Batuíra (GEB) Unidade Vila Brasilândia em São

Paulo/SP é uma instituição com cerca de 50 anos fundada no bairro da Vila

Brasilândia. Foi a realização de um sonho de algumas pessoas que tinham em

mente ajudar famílias carentes de um bairro cercado por extrema pobreza

naquela época. Contando com doações materiais de anônimos e associados,

atualmente tem ao todo quatro unidades com atendimentos específicos. A

maioria das pessoas é voluntária e alguns poucos funcionários. É uma instituição

que segue a Doutrina kardecista, entretanto, não tem tratamento diferenciado à

quem se disser espírita, ou de outra religião, etnia, orientação sexual, preferência

política, etc., para o seu acolhimento.

5.2- Políticas de atendimento

Promove diversas formas de atendimento à comunidade, e entre elas,

acolhe cerca de 330 famílias por semestre com duas distribuições no ano.

Em Junho com roupas, blusas, alimentos e cobertores. (Dependendo das

doações).

Em Dezembro com roupas, alimentos e alguns produtos para o natal

(dependendo das doações).

A triagem

É a porta de entrada de todos os serviços assistenciais do GEB (Grupo

de Estudos Batuíra). Dessas 330 famílias por semestre é selecionada uma parte

para participarem do Programa de Família Assistida ou adotada

Critério para ser uma Família Assistida (Adotada)

Pessoas que passam por dificuldades momentâneas ou que através de

estímulos possam ser reintegradas à sociedade. São traçados objetivos para as

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famílias conquistarem, até o término da adoção que varia em torno de seis

meses. Esses critérios abrangem entre outras coisas participação de cursos,

melhoria da higiene da casa, educação e saúde de todos os familiares, material

de construção, remédios, formação e encaminhamento profissional, etc.

O GEB passa a fornecer gêneros alimentícios a cada duas semanas,

sendo assim, o dinheiro que essas famílias gastariam com alimentos, poderá ser

utilizado nos objetivos da adoção.

Todas as famílias que passam pela triagem recebem a “Distribuição

Semestral” e algumas de acordo com determinados critérios de seleção, poderão

fazer parte do trabalho de Família Assistida. Para a comunidade da região da

Brasilândia e bairros periféricos a este, o GEB oferece também:

Creche: inscrições mediante a abertura de vagas.

Curso de gestante: Para mães que estão grávidas

Sopa: Segunda a sábado das 11:00 hs às 13:00 hs. Além desse

atendimento interno há ainda o caminhão do GEB que sai em alguns

pontos da região de Brasilândia para distribuir a sopa também, já que

muitos não podem se deslocar por condições adversas.

Cabeleireiro: 1º e 3º sábado do mês.

Cursos oficializados: todos dependem de avaliações, sendo que as datas

e matrículas são fixadas no mural do GEB (cursos de panificação, corte

e costura, qualificação profissional e informática)

Farmácia: Remédios com receita prescrita com o mínimo de 30 dias, no

entanto, é solicitado que procurem primeiro a Rede Pública.

Fraldas: cadastro para receber as fraldas, pois devido à grande procura

há uma lista de espera.

Advogado: 1º e 3º sábado do mês, sendo que estes não irão acompanhar

o caso, só orientam o que fazer, e quais os documentos necessários, etc.

Curso artesanato: trabalhos manuais

5.3-Método

A técnica utilizada para atender as questões iniciais da tese foi a de

entrevista, a fim de identificar episódios de sofrimento, emancipação e

autonomia, assim como de metamorfose identitária. A história de vida também

pode ser aplicada como método de pesquisa qualitativo.

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May (2004) entende que a entrevista elaborada através de relatos orais

se fundamenta a partir de pressupostos teóricos e empíricos para a produção de

sentidos. A abordagem qualitativa parte da construção e elaboração de dados

de percepções, ações e valores ali relatados e que vão dar subsídios para a

interpretação do pesquisador.

Queiroz (1988) entende que toda história de vida traz uma gama de

narrativas e depoimentos e, muito embora tenha o pesquisador trazido para o

contexto da pesquisa um determinado tema, é sempre o pesquisado que escolhe

o que narrar.

Compreendemos que a narrativa do indivíduo precisa ser vista a partir de

uma análise ampla, pois, representam as práticas sociais, conteúdos e

experiências vividas em seu cotidiano e que possuem uma representatividade

para ele. O pesquisador deve procurar entender o que está sendo verbalizado

ali naquele momento, procurando contextualizar esse conteúdo. O papel do

pesquisador é articular os sentidos entre a fala e a prática social, entre a

objetividade e a subjetividade.

"Através dos séculos, o relato oral constituirá sempre a maior fonte

humana de conservação e difusão do saber, o que equivale a dizer, fora a maior

fonte de dados para as ciências em geral” (QUEIROZ, 1988, pág. 16)

A nosso ver, palavra transcrita e atrelada a uma ação ou emoção relatada

no passado pode ser presentificada pelo pesquisador contribuindo como fonte

de conhecimento para a sociedade.

“Em todas as épocas, a educação humana, ao mesmo tempo: formação

de hábitos e transmissão de conhecimentos, ambos muito interligados, se

baseou na narrativa, que encerra uma primeira transposição, a da experiência

indizível que se procura traduzir em vocábulos.” (QUEIROZ, 1988, pag. 16)

Entendemos que a escrita veio posterior ao relato oral, mas quando um

signo (escrita ou desenho) cristaliza o relato oral, estabelece-se a existência de

um narrador e de um ouvinte ou um público. A história de vida é sempre relato

de práticas sociais, da forma como o indivíduo se vê diante do mundo e das

pessoas, como percebe e como atua diante dos vários personagens que o

rodeiam. O pesquisador respeita a opinião do entrevistado, deixando para este

último a tarefa de dizer aquilo que é certo ou não.

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Para Ludke e Meda (1986) a história de vida no processo de construção

da pesquisa se enriquece à medida que o entrevistador respeita aquilo que lhe

é trazido pelo entrevistado, pois, este verbaliza aquilo que lhe tem sentido e

significado.

A análise dos dados colhidos das narrativas de vida dos sujeitos

pesquisados foi feita a partir das concepções teóricas sobre identidade de

Ciampa (1987/2009) que entende o indivíduo dentro de um processo identitário

como metamorfose em busca de emancipação.

A opção pela história de vida como método de pesquisa partiu da proposta

de identidade deste autor quando de sua tese, e que o auxiliou na obtenção dos

dados necessários para a compreensão da metamorfose identitária da

personagem “Severina” na busca pela emancipação. Ciampa demonstra como

o sujeito pode transformar-se a partir do engendramento de objetivos que fogem

ao padrão imposto pela sociedade. Esse processo de dar novos sentidos à sua

vida na busca por outras saídas realinha caminhos, reorganiza ações, demonstra

que as diferenças individuais são possíveis mesmo em ambientes comuns.

Logicamente que a história de vida de cada um, vem marcada por

obstáculos, ou melhor, pelo enfrentamento de circunstâncias oriundas da

tentativa de massificação dos indivíduos propondo a universalização de

comportamentos e atitudes.

A metodologia de pesquisa que Ciampa adotou, através da história de

vida destaca-se pelo diferencial de ir além da simples descrição identitária, mas

sim, pela investigação de significados em cada verbalização, normalmente

implícita, mas carregada de sentido emancipatório.

5.4-Instrumentos para a pesquisa da narrativa de história de vida

Apresentamos o termo de consentimento a cada sujeito detalhando os

aspectos éticos, e os objetivos da pesquisa, bem como, a garantia do anonimato

para os fatos narrados.

Todas as entrevistas foram gravadas em áudio, a fim de permitir a

transcrição na integra das narrativas explicitadas pelos sujeitos participantes. A

partir daí, selecionamos uma história de um indivíduo, ao qual chamamos pelo

nome fictício de Maria José, complementada pelo depoimento de Angel, nome

também fictício dado a um voluntário representante da ONG, pois este

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acompanhou Maria José desde sua primeira ida ao GEB. A opção de adicionar

Angel a essa pesquisa foi por entendermos que daríamos maior riqueza ao que

nos propomos, enquanto pesquisador, à compreensão da emoção e em

específico o sofrimento para a Identidade, e o papel da solidariedade neste

contexto.

a. Participantes

A pesquisa foi composta, então, de um participante com sua história de

vida e de um voluntário do GEB que acompanhou parte da vida deste quando

passou a ser assistido por essa instituição. O critério de escolha destes sujeitos

se deu a partir da aproximação do pesquisador no dia-a-dia do trabalho social.

Este contato gerou expectativas de melhor aprofundar nosso conhecimento

sobre a vida da entrevistada, a qual chamamos de Maria José. Como o

sofrimento está presente em maior ou menor grau na vida de todas as pessoas,

algumas delas ao trazer trechos e episódios diferenciados, motivaram-nos a uma

aproximação para melhor entendimento. Além disso, levamos em consideração

a categoria solidariedade nestas narrativas, a fim de compreender qual sua

importância para a Identidade do indivíduo. Nesse processo de aproximação

algumas não se interessaram em formalizar suas queixas, verbalizar seu

sofrimento. Outras se propuseram a participar, e a partir daí, escolhemos aquela

que pudesse melhor contribuir para a pesquisa acadêmica e para a Psicologia

social. Embora houvesse outras possibilidades para nossa escolha, a história de

vida Maria José nos pareceu trazer as categorias de sofrimento, solidariedade e

de metamorfose identitária de forma mais clara e rica para a pesquisa.

b. Procedimentos de pesquisa

De acordo com Bosi (2003), antes de iniciar uma entrevista com o sujeito

pesquisado é importante conhecer o assunto em pauta, a fim de formular

questões que motivem e estimulem-no a responder.

Antes de iniciarmos essa pesquisa com o entrevistado, buscamos na

literatura o suporte básico para a compreensão do conteúdo trazido através da

narrativa. Após realizar os procedimentos éticos exigidos, deram-se seguimento

as etapas de coleta e análise de dados:

1- Estudo Exploratório: Uma pré-entrevista a fim de perceber e acostumar

com o estilo de linguagem do entrevistado, bem como fazer um pré-

reconhecimento de assuntos para a investigação. Esse procedimento

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também foi para auxiliar no critério de escolha do sujeito, e verificar se estava

ou não predisposto a participar da entrevista.

2- Entrevista: as entrevistas em si se deram com procedimentos orientados

para técnica de coleta de narrativas de história de vida.

Os encontros iniciais obedeceram às seguintes etapas:

Rapport – Apresentação do pesquisador e do termo de consentimento livre e

esclarecido, bem como dos principais objetivos do estudo e garantia do

anonimato.

História de vida – iniciou-se a pesquisa com a pergunta: quem é você e qual

a sua história de vida.

Seção de perguntas – à medida que realizávamos a entrevista inicial, foi

natural surgir dúvidas, ou então, assuntos que queríamos abordar com mais

profundidade.

3- Considerações Éticas

Esta pesquisa seguiu os princípios éticos para seres humanos

estabelecidos pela norma 16/2000 do Conselho Federal de Psicologia que prevê

a obrigatoriedade da entrega do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido a

todos os participantes, cujo modelo anexou-se a essa tese. Foi garantido o total

sigilo das narrativas dos sujeitos e que serão veiculadas nos meios acadêmicos

e científicos com o anonimato das identidades dos sujeitos. Além disso,

ressaltamos aos participantes que a entrevista estava sendo gravada (áudio)

para manter na íntegra suas narrativas e que ele participante poderia, a qualquer

tempo, interromper a narrativa.

Antes de ser realizada esta pesquisa foi submetida à avaliação do comitê

de ética da PUCSP, a fim de garantir que todos os procedimentos e normas

institucionais fossem cumpridos.

5.5-Proposta de análise das narrativas dos sujeitos

A partir de todo o material extraído das narrativas dos sujeitos separamos

aqueles elementos que julgávamos mais expressivos, sendo analisada à luz das

concepções teóricas de identidade de Antônio Ciampa (1987). Como categoria

de análise foi utilizada a Afetividade, em específico o “sofrimento” e a

“solidariedade”.

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CAPÍTULO VI

6- Articulando Teoria e Práxis

Nesta etapa do trabalho propusemo-nos a articular a teoria e a práxis, a

partir das reflexões trazidas pelo NEPIM (Núcleo de Estudos de Pós-graduação

em Psicologia Social) da PUC-SP na busca pela compreensão de um homem

social, e que estão atreladas à Psicologia Social Crítica. Como já tratado

anteriormente, basearemos nossa discussão nas categorias do psiquismo

humano estudadas por Silvia Lane, e as concepções teóricas de Antônio Ciampa

e Bader Sawaia.

Era um sábado, dia 04 de outubro de 2014, nas dependências do Grupo

de Estudos Batuíra (GEB). Este era mais um dia de atendimento a famílias do

entorno da Vila Brasilândia, periferia da cidade de São Paulo.

Lá estávamos como de praxe como voluntário deste trabalho, após o início

dos trabalhos de atendimento, procuramos uma das coordenadoras, que aqui

denominamos como Angel, nome fictício, com o intuito de questioná-la sobre a

existência de algum assistido que tivesse vivenciado situações de sofrimento, e

que de alguma forma o diferenciava de outros atendidos, mesmo sabendo, que

todos ali viviam em condições precárias do ponto de vista material e psicológico.

Angel reflete um pouco, mas logo comenta sobre Maria Jose (nome

fictício) que acompanhou durante cerca de seis anos desde as primeiras vezes

que esta esteve no GEB. Maria José veio ao GEB para buscar ajuda a uma

amiga que passava por dificuldades físicas, materiais e psicológicas. Maria José

numa condição de pouquíssimos recursos não conseguia ajudar à amiga. Fez

breves comentários, os suficientes para despertar meu interesse. Na sequência,

me apresentou-a, quando então, lhe expliquei meus objetivos e o que pretendia,

questionando-a sobre a aceitação do convite em participar desta pesquisa.

Vejamos o resultado da narrativa.

6.1- Narrativas e depoimentos da história de Maria José: do abandono à

emancipação na construção de uma família.

Abaixo descrevemos uma panorâmica sobre a vida de Maria José, a fim

de facilitar sua compreensão.

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Maria José vem de família simples, composta de pai, mãe e irmãos.

Aos quatorze anos fica grávida de um namorado, e, seu pai, sistemático e

rígido em seus valores, não aceita tal situação e expulsa a adolescente de

casa por envergonhar a família. A menina de quatorze anos é abandonada

e vai morar na casa da sogra com o marido, quase a mesma idade de Maria

José. A jovem tenta conciliar o papel de mãe com a de esposa, ajudando

o marido numa churrascaria para sobrevivência da família. A relação dura

10 anos, quando Maria José descobre que o marido taxista, tem outra

mulher. Revoltada com a traição e a predisposição do marido em trocá-la

pela nova companheira, se sente abandonada e vai embora com os três

filhos.

Foi embora de casa com os filhos, mas não consegue sustentá-

los e se vê obrigada a devolvê-los para o pai e sua nova companheira.

Os seus pais não a aceitam em casa, e sem emprego vai morar

na rua, embaixo de marquises. Passa a catar sucatas no lixo e revende-

las para ferro velhos.

À noite, na rua, uma mulher para e começa a conversar com ela,

e Maria José conta sua história. A mulher se comove e a convida para

morar e trabalhar em sua casa. A mulher a ajuda a tirar seus

documentos e sua vida começa a mudar. Depois de alguns anos,

conhece outra mulher e vai trabalhar na casa dela, ficando lá até sua

morte.

Dali vai morar na casa da irmã de sua ex-patroa de nome Monica.

Lá descobre que tanto Monica quanto seu marido tem o vírus HIV. O

marido morre, mas Monica permanece doente com um agravante, é

usuária de drogas. Começa a vender suas coisas para comprar drogas

quando não consegue mais trabalhar devido o avanço da doença.

Vende até mesmo as coisas pessoais de Maria José.

É internada várias vezes em clínicas, e quando volta melhor, sai

à noite, de madrugada pelos bares do bairro. Por várias vezes, Maria

José sai a sua procura pelos bares, e é xingada por Monica que quer

que ela vá embora e a deixe em paz.

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Monica tem três crianças, a mais nova cerca de dois anos, o outro

menino seis anos e uma menina de nove anos. Esta última inclusive sai

à noite sozinha pelas ruas espelhando-se na mãe.

Monica pede para os filhos pedirem dinheiro pelas ruas a fim de

obter o sustento da família e para as drogas também.

Maria José que havia aceitado o trabalho na casa de Mônica para

serviços domésticos passa a cuidar dos filhos, a dar banho, alimentar,

levá-los à escola, e logicamente cuidar da própria Monica.

Foram cerca de seis anos dessa forma, até Monica ficar bastante

debilitada. Neste período Maria José resolve procurar o Grupo de

Estudo Batuíra (GEB) para receber algum tipo de ajuda (cestas

básicas). O GEB acolhe à família e passa a acompanhá-los

semanalmente.

Mônica percebendo que não tardará muito em morrer resolve

pedir para os voluntários do GEB encontrarem uma família para que

seus filhos sejam cuidados, pois não quer que fiquem para o Estado

dar um destino às crianças.

Maria José pede para ficar com as crianças, pois os parentes

próximos de Monica não querem, com receio de terem problemas com

eles, tanto do ponto de vista social quanto em termos de saúde, já que

estavam com medo de também estarem contaminados com o vírus.

Antes mesmo de sua morte, o Juiz dá a guarda das crianças para

Maria José que se torna mãe delas.

Faz três anos que Monica faleceu, e a menina mais nova gosta

muito de Maria José, o menino que hoje tem cerca de onze anos, não

dá trabalho e a menina mais velha com cerca de dezesseis anos se

casou recentemente, e sempre vai à casa de Maria José ver como estão

os dois irmãos, aconselhando-os a obedecerem a mãe.

Maria José não vê praticamente seus três filhos biológicos que

foram cuidados por outra mãe. Seus pais morreram, e ela não guarda

magoa deles, e nem tão pouco do marido.

Continua a trabalhar para melhorar a vida das crianças seu

objetivo maior.

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Lava roupas para os vizinhos, leva e busca crianças de outras

famílias na escola, ganhando trinta, quarenta reais por mês para cada

criança.

Recentemente estava com dois meninos que cuidava por conta

dos maus tratos dos pais, vizinhos do bairro, no entanto, os devolveu

em meados de junho de 2014, por aconselhamento dos vizinhos, já que

as crianças mesmo mal cuidadas deveriam ficar com os pais.

Seu maior sonho é trabalhar numa escola, pois segundo ela

gosta muito de crianças. Não é mais assistida pelo GEB, mas a cada

quinze dias vai até lá participar das palestras, pois se sente bem, e

muito lhe acrescenta em termos de visão do mundo.

Vejamos a partir de agora, trechos que julgamos relevantes na narrativa

de história de vida de Maria José.

Iniciei a entrevista com a pergunta disparadora: Conte-me quem é Maria

José?

Após fazer essa pergunta, me surpreendi com a resposta, pois Maria José

começou a falar de si, a partir de outra pessoa, que me era desconhecida, até

então, seu nome era Monica. Além de surpreso, me senti confuso com esse

enfoque, além é claro de perceber que a entrevistada tinha certa dificuldade em

se expor, não no falar, mas em organizar essa história de uma forma mais

cronológica e didática também, perfeitamente esperado, pela simplicidade

cultural que Maria José tem.

Bom, eu sou Maria José, vou contar a história de uma pessoa, que não era parente minha, éramos só amigas. Era usuária de drogas que ninguém sabia, e que agora vai ficar sabendo. E eu vim morar com uma família e ai a família que eu morava faleceu e eu vim morar com essa pessoa. Ela tinha 3 filhos, como eu disse ela era usuária de drogas, ela era muito forte, muito saudável, eu não sabia que ela tinha aids. Ai foi muito sofrimento que as drogas não deixavam ela se cuidar. E ela trabalhava, eu trabalhava, eu já tinha uma idade, ela não tinha nada, porque tudo que ela ganhava, ela vendia o que ela conseguia. Ela vendia pra usar droga. Eu trabalhava pra ajudar ela e assim foi indo. Os filhos dela crescendo, quando eu fui morar com ela, a filhinha dela tinha dois anos de idade. Hoje a filha dela tem quase 9 anos e foi muito sofrimento porque tudo que eu conseguia eu punha dentro de casa, mas ela vendia, se eu colocasse uma colcha nova na cama, ela vendia. E foi muito sofrimento, todas as economias que eu guardava, ela passava mal e eu tinha que investir nela, levar ela para o hospital e daí foi demais, mas eu ...

Enquanto a ouvia, me questionava o porquê de Maria José falar sobre ela

a partir da relação com outra pessoa, que começou já na fase adulta. Ela falava

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do sofrimento da Monica, da doença, do vicio nas drogas, da degradação de

alguém que certamente muito sofria para explicar algo que ainda me era

obscuro. Entendia logicamente que Monica sofria com tudo isso e que as

pessoas ao redor, e principalmente os filhos, também sofriam. Mas uma questão

não saia de minha mente, porque esse recorte da vida foi o primeiro conteúdo a

ser verbalizado?

Maria José continuava a dar detalhes de sua relação com Monica,

descrevendo a trajetória de degradação desta pessoa, deixando-a como

protagonista de sua própria história de vida. A meu ver o protagonista de sua

história deveria ser ela própria e não outra pessoa, que sequer era seu familiar.

Tudo isso deveria ter um sentido para explicar o sofrimento, descrever os

elementos principais de sua identidade.

Chegou um certo dia, a gente discutia muito, a gente brigava, ela mandava eu ir embora da casa dela, eu falava que não ia, porque não tinha ninguém pra cuidar dos filhos dela. Eles saiam de casa, ficavam na rua. Ela melhorava um pouquinho, ela ia pro bar. Quando ela me via na porta do bar ela falava assim, lá vem essa veia me enche o saco. Ela bebia álcool, ela bebia pinga, ela bebia acetona, ela bebia tudo. Ai, eu levava ela pro medico, ela saia saudável. Ela morreu com 39 anos, ela saia bem saudável do hospital... Ela ficava um mês, dois mês internada. Ela vinha pra casa e era muito sofrimento. Eu não conseguia dormir, porque ela usava droga dentro de casa, no quarto perto dos filhos, perto de mim e era muita briga porque eu tinha que trabalhar, eu tinha que cuidar dos filhos dela...

Ali naquele cenário trágico tínhamos uma pessoa doente gravemente e

usuária de drogas, hipoteticamente como mecanismo de válvula de escape, ou

então, que a contração do vírus HIV poderia ser pelo uso compartilhado de

seringas. Passou-nos pela mente que Maria José estava dedicando

solidariamente a sua amiga e aos filhos dela, ajudando-a com cuidados,

orientando e educando as crianças. Se esse fato fosse real estaríamos diante de

uma postura bem vista no aspecto social, um indivíduo, cujo sentimento de

solidariedade com o outro era mais forte do que com a preocupação consigo

mesmo. Mas seria Maria José tão solidária assim com um membro de sua

comunidade?

Permanecemos ouvindo-a com essa hipótese em mente, e ávidos por

melhor compreender o que estava diante de nós. Mas uma coisa nos chamou a

atenção pela ênfase que deu quando narrava que não ia embora, que não

abandonaria a casa, as crianças e Monica.

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Ela foi ficando doente, ficando doente, ficou acamada, ai um certo dia, eu recebi um apoio do Batuíra, ai eles queriam interná-la, pôr ela numa casa de apoio, não deixei, eu falei não. Vou cuidar dela na “minha casa” vou ficar até o fim, ela vai ficar perto dos filhos dela até o fim da vida dela. Daí ela veio pra casa, o sofrimento foi pior, porque ela começou a usar fralda. Ai ela melhorava um pouquinho, ela levantava. Ela ia pra rua, saia 2 horas da manhã, 3 horas, ai no outro dia eu tinha que acordar cedo para ir trabalhar. Ela mandava “eu ir embora” da casa dela, ela falava que eu estava atrapalhando a vida dela. Eu falava que eu não ia, só ia separar dela, se Deus levasse ela ou levasse eu.

Permanecemos ouvindo-a com essa hipótese em mente, e ávidos por

melhor compreender o que estava diante de nós. Maria José demonstrava uma

postura firme, determinada quando afirmava que não ia embora de casa, que ia

permanecer ali. Só vi certa contradição quando ela dizia, ora sua casa quando

na verdade, era a casa de Monica. Mas Maria José não contava sua história,

permanecia narrando a história de Monica. Antes de Monica morrer, o juiz então,

passa a guarda dos três filhos para Maria José, e sua responsabilidade aumenta

mais ainda, pois, além dos cuidados com a amiga, tem que reeducar os filhos

que agora são seus.

Daí o que aconteceu, ela foi ficando de cama, de cama, ai a filha dela estava no Emei, a filha caçula que hoje tem 9 anos, é minha filha, daí ela quis que eu pegasse a guarda das filhas dela, a gente arrumou os papel tudo direitinho, o pessoal do Batuíra me ajudou muito, nossa demais... Ai eu peguei a guarda dos filhos dela, três filhos, uma menina de onze anos, a Monaliza, o Adalberto, a Ana Carolina, daí ela não deixava cuidar dos filhos dela, não deixava, porque ela falava assim: Não, eles são meus, ai a filha dela saia pra rua, amanhecia na rua com 8 anos. Eu falava assim, não Monica, não é assim, a sua filha, tá sob a minha guarda. Ai deixa minha filha! Eu falava, não pode! Aí foi pior, fiquei com os três filhos dela.

Nesse momento, Maria José passa a narrar de forma mais pontual sua

nova família, que não era dela até o juiz passar a guarda. E dá ênfase em como

seus filhos estão bem encaminhados, uma inclusive casada, e todos sadios, e

dentro das normas e padrões sociais. Aliás, Maria José faz questão de todo

momento afirmar como seus filhos estão bem, distantes das drogas, dos vícios,

da marginalidade. De como é uma boa mãe. Só então, percebemos Maria José

falar de sua história de vida, agora era como se ela fosse a protagonista, uma

mãe que educou seus filhos, mesmo diante de tantas adversidades.

Hoje minha filha mais velha é casada, os meus filhos não têm o vírus no sangue positivo. Meus filhos tão aqui, são saudável. Minha filha é casada, tem juízo, não tem filho.

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E assim, eu estou com meus dois filhos meninos aqui e até hoje, eu sofro porque eu tenho 61 anos, sozinha. Porque eles faleceram e não deixaram nada para os filhos deles. Não deixaram nada para as crianças. Devido ao meu ganho, lavo roupa pra fora. Já tô com 61 anos de idade, mas mesmo assim eu trabalho, não falta nada pros meus filhos, o Batuíra também me ajuda, né! E assim foi, mas foi muito sofrimento nesta vida, porque a mãe deles... Eu peguei amor pelos filhos dela. E as minhas filha são saudáveis, são educados, meus filhos estuda, eu trabalho, mas eu não bebo, não fumo, não uso nada, por isso que eu consegui pegar a guarda deles e assim foi... Porque todo mundo me falava. Você tem coragem? Não, eu vou ficar com os filhos dela Eu gosto muito deles, tenho carinho por eles Muitos usam drogas, bebem, eles não... Não tô aqui por causa dela, tô aqui por causa deles.

Ao mesmo tempo em que Maria José descreve seus valores, como

conseguiu transmiti-los às crianças relegadas pela mãe biológica, ela de certa

maneira também procura justificar que fez o máximo pela amiga, que só morreu

por sua própria culpa, que nada lhe faltou, e que ela fez tudo que estava ao seu

alcance. Maria José queria deixar claro que fez seu papel de cuidadora de todos

ali naquela casa e continua a reafirmar que não abandou a amiga. Mas por que

essa preocupação?

Teria ela sofrido algo no passado que lhe trouxesse culpa?

Mas ela faleceu um pouco também foi por culpa dela, não por falta de cuidados. Eu não abandonei ela, a Angel é testemunha, eu cuidei dela até o fim da vida dela. Eu sofri muito. Porque ela na cama, ela mandava eu ir embora da casa dela Vai embora da minha casa Ela dizia: quer manda na minha casa? Não. É porque era muita coisa errada pra uma pessoa só. Mas mesmo assim eu cuidei dos filho dela.

Naquele momento da narrativa de sua história de vida percebo que Maria

José ao falar dela, já não fala de Monica, mas ainda é como se não quisesse

falar dela mesmo. Agora ao invés de falar dela, fala de seus filhos tão somente.

Essa postura continua a me chamar a atenção, porque queria que ela narrasse

sua história de vida, seus momentos mais importantes, seus sonhos, suas

expectativas, decepções, e ao invés disso, Maria José continua a narrar a

história de outras pessoas.

Os meus filhos são educado. Meus filhos têm muito preconceito por que os pais deles morreram de aids.

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Ai... não vou ficar perto de você não, seu pai teve aids, você tem aids, você vai pegar em nós. Foi muito preconceito, agora não, já tem três anos que ela morreu. No começo meus filhos se isolaram, todo mundo se afastou deles. Foi muito, muito difícil, mas graças a Deus eu superei Sou sozinha com meus filhos Eu moro sozinha com meus dois filhos. Fico em casa, moro aqui embaixo. É isso aí.

Foi quando resolvi investigar o que estava diante de mim, pois, como

pesquisador queria entender todo esse processo, o porquê de alguém contar a

sua história a partir da história de outro alguém.

Maria José, eu perguntei assim para você: Quem é a Maria José? Aí você começou falar da Maria José a partir da sua amiga Monica!

É eu contei a história dela...

Por que você começou sua história a partir dela?

Ah...

Não tem uma história lá atrás sua?

Ah tem...

Maria José continua com dificuldades de falar sobre sua história de vida,

me ficou claro isso naquele momento, principalmente quando buscava seu

passado. Era como se Maria José não quisesse voltar no tempo, pra ela bastava

seu presente como história de vida tão somente. Percebendo essa dificuldade,

pedi para ela me dizer de onde veio, qual Estado, suas origens, mas mesmo

assim, ela relutava em voltar a sua fase infantil. Continuava a transitar o mais

próximo possível de seu momento atual, seu presente.

Me fala assim, de onde você veio Eu vim da Vila Jaguará, eu fui casada dez anos Nasci aqui, morei na classe média, no Parque São Domingos.

Percebi certa relutância neste momento da narrativa, era como se

engasgasse, como se um nó na garganta prendesse as palavras, articuladas

com certa dificuldade.

Porque meu pais... Fui criada... Vim de uma família muito rígida, então, eu engravidei cedo, meu pai me pôs para fora de casa, mesmo assim, sou uma pessoa de juízo.

Quis ajudá-la a desatar esse nó, facilitar que Maria José falasse deste

momento tão marcante na fase da adolescência, pois, assim como boa parte das

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adolescentes da periferia, Maria José também havia engravidado muito jovem.

Comecei a entender o peso das palavras ditas no início quando Maria José

falava de Monica quando esta lhe mandava embora. O porquê respondia com

veemência que não ia abandoná-la, que só ia embora se Deus a levasse primeiro

ou quando Ele levasse a amiga. Abandono era uma palavra forte para Maria

José desde a adolescência, porque sua expulsão de casa por um pai muito

austero foi marcante para sua vida.

E aí você engravidou? E casou?

Eu casei com quatorze anos, fui casada dez anos Só que meus filho hoje, tudo trabalha Fui casada, tenho até netos já... Até neto e casado também.

Você foi morar com essa pessoa (marido)?

Eu fui casada dez anos, descobri que meu marido tinha outra mulher, eu me separei dele, me desquitei dele, fui embora. Fiquei com meus filhos, daí depois não tive condições de ficar com meus filhos, ganhei a guarda deles, só que eu não tinha onde morar, onde ficar, tive que devolver meus filhos pro pai deles. Mas hoje não, hoje eu vejo meus filhos. São casados, moram longe daqui.

Você os devolveu?

Aí meus filhos casaram e eu fiquei sozinha.

Sozinha?

Aí eu resolvi morar com uma família, a da Monica.

Maria José não se mostra à vontade para falar daquele momento. Faço

uma pergunta e ela responde algo que não se enquadra no contexto de um a

resposta lógica. Tanto a saída de casa, expulsa pelo pai, que mais tarde através

de sua narrativa, se sentindo envergonhado não quis vê-la por algumas décadas,

foram momentos muito marcantes para ela, e relembrá-los não seria tarefa tão

fácil assim. Dessa forma não quis insistir mais naquele momento da narrativa.

Logo ela retoma o presente, a narrativa de história de vida da Monica, como

forma de fugir da narrativa do passado mais distante.

Você foi morar com uma pessoa, uma família, sozinha?

Sozinha, porque meus filhos tava tudo casado e aí fiquei sozinha, fui morar com ela. Ai ela falou, Maria Jose, ao invés de você morar comigo, mora com minha irmã. Ela era saudável ainda (Monica), não parecia que tinha essa doença Vai morar com ela e meu cunhado. Na casa do meu cunhado que morreu Vai morar com eles. Meu cunhado deixou meus sobrinhos sozinhos

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Agora eles fica lá jogados. Tinha duas filhas e um menino, então fui morar com ela. Ai foi indo, foi indo, ai minhas filhas cresceram. Minhas filhas é casada, evangélicas, já vai fazer 27 anos, tem 2 filhos, outra tem três e é casada... Aí eu falei, já que vocês não precisa mais de mim... Ai a Monica morava numa outra rua, eu sai da minha casa e ia na casa dela ajudar. Ela já estava ficando doente já, eu descobri que ela usava droga né. Aí eu fui morar com ela Eu vou morar com a Monica.

Como antecipei antes do início da narrativa de Maria José, esta tem muita

dificuldade em expressar, e não foi tarefa fácil organizar e compreender sua

história. Até agora, sabia que Maria José ficara grávida na adolescência, tivera

filhos com esse marido e que após dez anos se separou, depois de descobrir

uma traição. Que tentou ficar com as crianças, mas por dificuldades financeiras

devolveu-as para o marido. Compreendi que Maria José foi expulsa pelo pai, que

foi abandonada por sua família, e que de certa forma, poderia entender que

abandonara seus filhos também. Mas entendi naquele momento que precisava

explorar a sua saída da casa com seu marido deixando seus filhos e depois

desse fato a ida para a casa de Monica. Esse lapso de tempo entre o abandonar

de seus filhos até o ganho da guarda de novos filhos poderia ser-me muito

importante. Percebo que as respostas de Maria José quando tento explorar

esses momentos ficam mais curtas, diferentes do que era até então, quando

falava da Monica. Insisto então, no passado de Maria José.

E você tem uma filha? Não, eu não tenho nenhuma filha, o que eu tenho é tudo adotado (contradição)

Mas você falou que tinha...

Não, eu tenho três filhos, só que estão tudo casado.

Você teve três filhos com seu casamento?

É ... Do meu primeiro casamento que durou dez anos Tenho três filhos com meu casamento e nessa vida que eu criei três filhos Bem dizer eu tenho oito filhos (contradição) Cinco filhos que não são meus.

Monica quando se referia a oitos filhos, era porque além dos três filhos

biológicos e os outros três que ganhara a guarda, estava cuidando de outros dois

mais, cujos pais, não davam muita atenção.

Eu tive dois meninos que morava comigo e eu entreguei eles esses dias pros pais deles. Eles moram aqui embaixo, eles moraram seis meses comigo. Seis meses...

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Eu falei, não posso ficar com eles, vou entregar eles pra mãe deles, porque eu já tô numa idade. Eu cuidava direitinho deles.

Percebo que Maria José quando fala em oito crianças, vai além de um

gostar. É como se ter o três filhos adotivos, não é suficiente para amenizar seu

sofrimento de mãe que de alguma forma abandonou seus filhos biológicos. É

como se o ter mais três, mais dois, e outros mais, compensasse a culpa que traz

dentro de si como mãe que pra ela pelo menos, foi falha. Essa ânsia de ter mais

filhos é como se fosse para abrandar a dor da perda dos três primeiros filhos que

se distanciaram com o tempo. Resolvi perguntar, então, para Maria José que

momentos difíceis ela considerou na vida.

Quais foram os momentos mais difíceis na sua vida? O meu momento mais difícil... Foi a gravidez com quatorze anos Foi quando eu tive que trabalhar...

Vocês eram duas crianças Sim, mas eu tive que trabalhar, trabalhava com ele numa churrascaria, foi muito sofrimento, deixava meus filhos com minha sogra Eu trabalhava, trabalhei muito quando era muito nova. Naquela época eu morava com minha sogra quanto eu casei. Meu pai não queria eu na minha casa. Não quis mais, até hoje, nunca mais. Eu fiquei no mundo sozinha, porque ai depois eu me separei. Quando eu me separei de meu marido, mas foi tanto sofrimento, eu não tinha dinheiro nem pro trem e nem pro metro. Porque eu era só de viver em casa, aí tive que trabalhar fora. Tive que arrumar serviço, trabalhar em hotéis, de arrumadeira, recepcionista, trabalhava dia e noite, sofrimento... O mundo aqui fora era outro, né?

Maria José nesse momento fica mais aberta para tratar do passado,

começa a confiar no pesquisador e a partir daí expor momentos que estavam

escondidos, porque a dor e o sofrimento não lhe permitiam trazer à tona. O que

mostrava para o mundo, para as pessoas, era a ponta de um iceberg. Esse

iceberg era o que Maria José julgava ser sua identidade atual, cuja metamorfose

a levou ao reconhecimento dos filhos adotados, de pessoas que ao seu redor

lhe admiravam como vencedora e como alguém que trabalhava muito, e que era

exemplo de mãe cuidadora e educadora. Essa era sua identidade, mas nossa

proposta para a tese era estudar a história de vida inteira dela, desde o

nascimento até a data da entrevista para analisar sua formação identitária e,

obviamente, compreender a importância do sofrimento em sua vida, assim,

julgava que era necessário explorar o que era Maria José antes desta que se

mostrava para nós.

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Você teve três filhos no primeiro casamento.

Você acha que perdeu o contato com eles porque foram morar com o pai?

Não foi... Porque eu me afastei deles. Aí me afastei deles. Aí eu conheci umas pessoas, umas famílias, aí me afastei muito deles. Achei uma família que estava precisando muito de ajuda e deixei eles de lado e fui viver esses daqui e eu achei que esses daqui precisam mais. Eles precisa muito de mim, essas crianças aqui.

Se você pudesse voltar no tempo, você faria diferente?

Ah, se eu pudesse, não, sei lá... É que me apeguei muito a essas crianças aqui. Tem minha filha que eu adoro ela, é como se fosse minha filha. O que eu fiz pra ela, nem a mãe dela fez, nossa... Eu gosto muito dela, dela e de qualquer criança. Estou cuidando de dois meninos de uma mãe.

Por que estava com eles? Porque a mãe deles não queria eles. A mãe deles não queria eles e o pai deles tinha que trabalhar. E todo mundo dizia, mas Maria Jose você ficando com esses meninos, eles têm pai e mãe, agora que você está sossegada.

Aí todo mundo falava, agora que você tá ficando sossegada que a Ana tem nove anos, pegou mais dois pra criar Maria Jose. Entrega! Eu falei ah, não tadinhos. Ai eu fui lá e falei com a mãe deles. Olha, eu trouxe eles pra você. Ah, eu não tava tendo paz, eu não tava descansando. Criança dá trabalho, tem que levar cedo, levar na escola, dois estudando. Levantava às cinco e meia da manhã todo dia, dava almoço... Eu falei, não. Vou entregar eles, os pais deles não dão nada, não me ajudam em nada. O pai deles ganha bem, o pai deles trabalha na Band com reportagem, ganha bem, entrego eles pro pai deles e pra mãe deles. Mas eu ficava com eles, não por causa deles, mas por causa da mãe deles que não cuidava direito As crianças viviam muito doentes, bronquite. Nesses seis meses que ficou comigo, nunca ficou doente. Tá bom, eu vou entregar eles pros pais deles então. Entreguei eles pra mãe deles, mas com dó. Não queria entregar não, mas fui obrigada a entregar. Porque é muito difícil, mas eu vejo eles, porque criança gosta de carinho, gosta de atenção.

É verdade que Maria José passou por experiências marcantes desde o

início da vida, logo cedo sendo expulsa pelo pai, por conta dos princípios rígidos

dele, quanto à gravidez sem estar casada. Possivelmente, também não

aceitando o sexo antes do casamento, o que para ele era inadmissível diante

dos seus princípios e valores aprendidos. Afinal, o que os outros iriam pensar,

sabendo que sua filha não era mais virgem, e o pior, estava grávida. Teria que

puni-la, demonstrando para os outros, qual a importância de determinados

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costumes. Ficar privada do contato das pessoas que mais amava, certamente

seria grande golpe na vida de Maria José. Naquele momento perdia sua família,

agora estaria distante dos pais, dos irmãos, e ainda sendo expulsa com uma

marca de vilã, de pecadora, de alguém que cometeu um grave erro, seria com

toda certeza fonte de enorme sofrimento. A partir dali teria que recomeçar nova

família, agora com uma desconhecida (sogra) e um menino (esposo) que assim

como ela, ele deveria estar assustado com essa etapa da vida com novas

responsabilidades. Duas crianças que agora seriam pais de outra que nasceria

rapidamente. Quis saber se ela guardava algum tipo de mágoa pelo abandono

dos pais num momento tão especial.

E você deixou seus pais muito cedo. E você guardou mágoa deles? Não, sabe por quê? Eu não achei ruim porque meu pai me pôs pra fora. Por que eu aprendi a vida aqui fora, eu sei o que é certo, o que é errado. Vai pôr errado quem quer, não é mesmo? Ah, todo mundo fala, faz coisas erradas, a mãe desses meninos que eu crio, usava droga, os filhos dela não usa, esse meu filho aqui... Meu filho mais velho, Adalberto, nem cigarro ele põe na boca, se ele vê uma coisa errada lá fora, ele vem, fala pra mim, Maria Jose, oh, o fulano queria que eu fosse na loja da biqueira buscar droga, eu não fui. Esse meu filho, eu tenho a maior confiança nele. Eu sei que ele não faz nada de errado, porque você conhece a pessoa que faz. Ele não faz, eu tenho a maior confiança nos meus filhos, então eu, não fumo nem cigarro, não bebo, nada disso, então, vai pro lado errado quem quer.

E seu ex-marido você ficou com mágoa? Não, não tenho, sei lá, porque, aliás... Bom eu passei dificuldades, morei na rua... Morei na rua, eu já trabalhei em ferro velho. Já dormi na rua, catava sucata, pra mim sobreviver, aí como eu sou trabalhadeira, arranjei serviço na casa de família. Foi muito difícil.

Por que você foi morar na rua, o que aconteceu? Porque eu não tinha onde morar, eu tinha casa, mas sai, deixei meu marido lá com as minhas crianças. Ele já tinha outra mulher, não tinha ninguém que me orientasse. Assim que eu me separei eu fui morar na rua, porque... Eu dormia em cobertura, levantava cedo, ia trabalhar, ai depois uma mulher me viu na rua, e me levou para morar na casa dela e comecei minha vida, fui trabalhar na casa de família, ai fui tirar meus documentos.

Da casa dos pais para casa de estranhos, e da casa de estranhos para a

rua. Em dez anos Maria José perde sua família, pais e irmãos, e na sequência,

perde sua segunda família, aquela que era dela, mas de outros também. Embora

não tenha deixado claro, ao deixar os filhos por não ter condições de criá-los,

segundo ela mesma frisou, era como se fosse expulsa novamente quando o

marido resolve assumir uma relação com outra mulher. Duas vezes

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abandonadas, fracasso como filha e agora como mãe e esposa também. Era

como se para ela, em nenhum dos dois papéis conseguisse vencer. A punição

para a derrotada não poderia ser outra, de uma indigente, que não merece viver

na casa dos pais, do marido, de ninguém, e sim, na rua, onde o ser humano

chega ao fundo do poço, perde sua dignidade como humano, porque numa

sociedade onde se valoriza coisas, o ter ao invés do ser, nada mais degradante

do que não ter nada que seja seu. Maria José agora é a antítese da autonomia,

da emancipação. Como moradora da rua, Maria José chega ao ápice da

servidão humana. Mas, mesmo em situações tão adversas, o ser humano tem

algo dentro de si que o distingue dos demais animais, uma força que mesmo

tênue e enfraquecida pelas adversidades, dores e sofrimentos, ainda se mantém

latente dentro de si, como potência de agir, como “conatus”.

Maria José mesmo em condições subumanas, como moradora de rua,

recebe ajuda de um estranho, quando nem mesmo de seus familiares mais

próximos, recebeu. Maria José tem novo rumo na vida, se levanta e segue em

frente em busca do que perdeu, da sua dignidade.

Mas onde estaria sua dignidade, qual a identidade que Maria José espera

alcançar?

A identidade de fracassada nos papéis que assumiu, ora como filha, ora

como esposa e também como mãe.

E seus filhos adotivos, como eles veem você? Eles falam que eu sou uma mãe que eles não teve. Pra falar a verdade, eles nem sentiram a falta da mãe deles, porque a mãe deles não era aquela mãe. Dizem que mãe é aquela que cria. Ela era aquela mãe que tirava dos filhos, ela tirava deles... Ele que trabalha na feira (Adalberto) tá com o dinheiro dele, e coloca lá, quando ele chega o dinheiro continua lá (mãe ensina valores) Ele fala, Maria José vou pegar meu dinheiro. Pode pegar o seu dinheiro, o dinheiro é seu.

Eles te chamam de Maria José? É... Às vezes... Ele já chegou a sair com quarenta reais no bolso, eu falava, Adalberto, eu quero que você dá valor em mim, porque se sua mãe tivesse viva, você não tinha esse dinheiro, porque ela pegava esse dinheiro e gastava (reconhecimento) Mas mesmo assim, ele me respeita, obedece, eles gostam de mim, principalmente a minha pequena, ela gosta de mim pra caramba. (Mãe) Ela tá com nove anos e eles não têm a doença, faço exame neles, uma vez por ano agora e é isso aí, graças a Deus.

Maria José faz questão de a todo o momento verbalizar seu papel de mãe

que cuida, respeita e que ama. Quer ser reconhecida pelos filhos adotivos como

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uma mãe real, correta e vencedora. Sabe que ao ser reconhecida pelos filhos,

será também pelos outros indivíduos do seu meio social. Está aí, recuperada sua

dignidade!

Maria José perdeu duas famílias, abandonada por elas, agora tem a

chance de recomeçar uma nova família. Tem a oportunidade de fazer parte, de

pertencer, de ser reconhecida. Maria José foi em busca de autonomia, da

emancipação.

Mas se nossa compreensão demonstra a busca de uma identidade

emancipatória, cujos afetos, emoções fizeram parte deste processo. Onde

caberia a solidariedade que vimos na narrativa de Maria José?

Como era a vida de vocês naquela época quando crianças?

Tinha dificuldades?

Tinha dificuldades financeiras porque dificuldades todo mundo tem, mas tinha o que comer. Olha essa blusa aqui eu achei no lixo, se eu achar um monte de roupa e seja boa como essa jaqueta, se eu ver um monte eu cato e levo pra minha casa e lavo. Se não serve pra mim eu dou pra outra pessoa. Eu faço isso, eu achei essa calça no lixo, essa blusa aqui achei no lixo, levei pra minha casa, lavei, e tô usando a blusa. Nossa, tem gente que fala: nossa Maria Jose! Eu pego... toda vez que eu passo e vejo coisa boa eu levo pra minha casa e lavo. Se não serve a roupa pra mim, serve para outra pessoa (solidariedade)

E por que você quer dar para outra pessoa?

Ah, não sei, se não serve em mim eu dou pros outros. Coração bom, sei lá, então, não sei acho... Alguém fala, dá pra mim? Sabe onde achei? Achei no lixo, peguei, lavei, guardei, eu tenho coração bom Todo mundo fala, nossa Maria Jose, você é tão boa! Eu dou pros outros, quando eu vejo, os outros dão pra mim. Ganho roupa, sapato, sandália nova na caixa, e é dando pros outros que a gente recebe também. Eu não sou de ficar estocando as coisas na minha casa, não serve pra mim, eu dou pra quem precisa, sou assim. Sou de Minas, filha de mineiros.

Foi a solidariedade que a tirou da rua e lhe devolveu a dignidade,

conseguindo seus documentos, trabalhando na casa de uma família, tendo uma

casa que não era sua, mas que lhe acolhia. A solidariedade lhe devolveu a

condição de humana e lhe permitiu levantar-se e ir em busca da autonomia, da

emancipação e do reconhecimento. E isso, ela de certa forma ensina, como

elemento multiplicador deste valor na sociedade. Ao dar, ao dividir, porque lhe

sobra ou não lhe serve, Maria José cria condições de que outros o façam

também.

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Maria José ao perder suas famílias, foi à procura de outra, e por uma

dessas coincidências da vida, encontrou. Seu primeiro casamento gerou três

filhos, e ao trabalhar na casa de Monica, esta acabou deixando três filhos

também. Era como se a perda dos três filhos biológicos pudesse ser

compensada com os três filhos adotivos. É fundamental para sua emancipação

demonstrar que não foi e não é uma mãe fracassada, que poderia assim provar

se tivesse nova oportunidade com o papel maternal. Maria José faz sempre

questão de demonstrar sua vitória como mãe, amada pelos filhos adotivos, muito

embora, aparentemente, não o seja pelos filhos biológicos, que como ela mesma

citou, quem cuidou foi outra.

A narrativa que trouxe neste trabalho me levou a ampliar minhas reflexões

sobre o sofrimento, seu impacto, sua importância para a identidade, bem como,

qual o papel da solidariedade no psiquismo humano, proposto por Lane, quando

defendia que Consciência, atividade e emoção são categorias que imbricadas

sintetizam a Identidade que mais à frente detalharemos.

6.2- A narrativa e depoimentos da história de Maria José vista por Angel:

da percepção de solidariedade e caridade pelo agente que possibilita a

metamorfose

Após a entrevista com Maria José nos propomos também ouvir o

voluntário que acompanhou através de visitas, tanto ela como Monica, com o

intuito de trazer algum tipo de contribuição, percepção sobre a entrevistada. Essa

entrevista aconteceu no dia 18 de outubro de 2014 nas dependências do Grupo

de Estudos Batuíra. Demos o nome de Angel a esse voluntário.

Gostaria que você Angel contasse o que sabe sobre a história de vida de Maria José

Bom, acompanhei por cinco ou seis anos na visitação a casa da Monica, mãe das crianças Monalisa, Adalberto e Carolina. Nos últimos 3 anos, encontrávamos Maria José sempre em casa... Porém, nosso foco na visita era a Monica, no sofrimento físico grande e na angústia: Seu questionamento sempre era: o que vai acontecer com meus filhos? Pelo que lembro no início da presença da Maria José, ela ajudava com a louça e roupa, enfim nos serviços caseiros. Maria José nos contava que tinha filhas, mas já eram casadas... Quanto mais a Monica adoecia, mais a Maria José era presente. Logo a Carolina que ainda era um bebê se afeiçoou muito a ela, motivo de muitos ciúmes da Monica. A Maria José que no início apenas ajudava nos serviços domésticos, depois começou também a ajudar em relação às crianças, levando à escola, banhando e outras coisas mais...

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Como a Monica foi ficando cada vez mais fraca, a Maria José começou também a cuidar da Monica! Com comida na boca, trocando as fraldas e tudo o mais. Ela já não levantava mais da cama, né! Bem, na verdade presenciamos inclusive a Monalisa trocando fraldas da mãe quando ela tinha apenas 11 anos. Ah... não há como eu me lembrar deste fato e não me comover, era muito triste... Naquele momento a Maria José cuidava das crianças, da comida e da Monica. Até hoje me pergunto de onde ela tirava tantas forças? Para ganhar algum dinheiro, a Maria José lavava roupa nas casas das vizinhas, lembro bem disso até hoje. E depois passou também a levar crianças de outras famílias à escola, para aumentar um pouco mais a renda. Com o valor ganho ela comprava alimento, comida para a casa. Em um dos sábados de visitação, a Monica falou comigo e com o Antonio. Ela sabia que estava morrendo e não queria “deixar os filhos para o Estado”. Lembro que ninguém da família os queria. Isso foi averiguado por nós e pelo jurídico do Batuíra na época também, mas Maria José os queria! Graças a Deus! E foi assim que fomos ao conselho tutelar que agilizou tudo, devido ao perigo da morte da Monica e após uma semana o Juiz deu para a Maria José a responsabilidade da criação das crianças. Lembro que ela internalizou o papel de mãe de imediato. As crianças perderam uma mãe extremamente amorosa, mas Deus enviou outra tão amorosa quanto a de sangue.

Angel acompanhou de perto todo esse processo de aproximação de Maria

José e Monica, que foi paulatinamente deixando as questões mais do trabalho

para se engajar nos cuidados com as crianças, e logicamente com afeto também.

Nos parece que Maria José a priori contratada para trabalhar acabou assumindo

um papel mais solidário ao ver o sofrimento de Monica, das crianças e o risco

que essa situação poderia causar na formação dos filhos. A relação passou de

profissional para a solidariedade.

Como você vê o trabalho de caridade e solidariedade desenvolvido pela

instituição?

Bem, o que me estimula ao trabalho e especialmente a desenvolve-lo dentro do programa Família Assistida aqui é a percepção de alguns resultados positivos nas famílias, embora esteja longe dos nossos ideais, esse resultado existe e nos estimula a continuar. Você me pergunta o que é solidariedade. Mas o que é caridade? Quando lembro do caso da Maria José penso que a caridade não quer recompensa, mas não há como praticá-la de verdade, se não houver o sentimento solidário na dor que afeta aquele indivíduo. Para mim não há caridade sem solidariedade, e não há como ser solidário na dor sem ser de alguma forma caridoso.

Espero de alguma forma ter ajudado você Luiz.

Obrigado Angel por sua colaboração.

Angel nos leva a pensar a solidariedade de uma forma diferente da que

tínhamos até então. Solidariedade nos parece muito mais do estar com, estar ao

lado de, sentir-se no outro. Nossa percepção é de que a afetividade, as emoções,

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o sofrimento faz parte de todos os indivíduos. Não há ninguém isento da

afetividade, do sofrer em especifico. Mas e a solidariedade, como se desenvolve,

qual seu papel?

Assim como a afetividade faz parte da vida de todos, acreditamos que a

solidariedade também o faz. Desde que nascemos estamos expostos à

solidariedade. Logicamente que explicações biológicas podem ser dadas para

tal, devido ao ser humano ser extremamente dependente de outros sobretudo

no início da vida. Entretanto, as explicações biológicas e fisiológicas não dão

conta de explicar o crescimento gradativo do ser solidário em todos os indivíduos

em maior ou menor grau. Não importa a condição social, a faixa etária ou outras

variáveis, de alguma forma a solidariedade se manifesta. É claro que esse

sentimento de ser solidário varia de acordo com cada um de nós. Podemos ao

fazer parte de uma gang, de uma torcida uniformizada, por exemplo, querermos

ser solidário à morte de um integrante e querer se vingar do grupo supostamente

rival, mesmo não sendo dirigido ao autor do crime. Mas de alguma forma,

também podemos considerar como solidariedade, mesmo que essa possa ser

questionada. Podemos ser solidários de uma forma mais plástica, mais

sofisticada, participando do sofrimento do outro, e possibilitando a consciência,

a ação, e por consequência sua emancipação.

São formas extremas de solidariedade logicamente, mas que demonstram

que essa categoria de alguma forma se manifesta em todos os indivíduos, e que

a ação no contexto social de conscientização vai aprimorando a manifestação

solidária cada vez mais consciente. A dialética nas relações se encarrega de

possibilitar esse desenvolvimento solidário entre os grupos, e que amadurece

respeitando as diferenças que cada um de nós tem. O que foi possível perceber

em nossa pesquisa, é que a solidariedade de alguma forma contribui para a

formação Identitária também, assim como, a emoção, a afetividade. Na

sequência abordaremos com mais detalhes os aspectos que nos levaram a

compreensão do sofrimento nos indivíduos e seu impacto sobre a Identidade.

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CAPÍTULO VII

7- Análise Crítica e Contribuição à Psicologia Social

Nossas reflexões a partir desta pesquisa e narrativa sobre o sofrimento

apresentadas na história de vida de Maria José nos levou a algumas definições

sobre o que é sofrer, qual sua importância para a Identidade, e quais os tipos de

sofrimento no sentido de suas classificações e categorizações. Classificamos o

sofrimento em três categorias. Acreditamos que o sofrimento não tem uma única

forma ou categoria, o sujeito pode experimentar num determinado momento da

vida uma ou mais classificações.

Doron e Parot (1991) acreditam que o sofrimento pode ser visto como uma

dor física ou mental que se prolonga por um determinado tempo, é um estado

mental vivenciado por indivíduo humano, embora por outros animais também,

cujos critérios de avaliação do ponto de vista objetivos são as condições

fisiológicas, do comportamento e do estado geral de saúde. (NOBREGA, 2005).

No tocante às condições fisiológicas, os aspectos biológicos e naturais

permeiam as mais diversas formas de reação de cada ser vivo. O homem ao

longo da vida passa por momentos onde a dor física, o comprometimento de sua

saúde, o desgaste do corpo lhe afeta mais ou menos, dependendo da

circunstância.

Entendemos que as diversas formas de sofrimento podem ser agrupadas

e classificadas em três tipos, ou seja, distribuímos em três eixos para

didaticamente ser mais bem discutido ao longo deste trabalho. O homem tem ao

longo da vida episódios de sofrimento distribuídos em três segmentos, sendo as

modalidades de dor derivadas destes, podendo agir isoladamente nele, ou de

forma concomitante umas com as outras.

A dor pode surgir de algo íntimo, um arrependimento (1), de algo físico

(2), do corpo, ou então, de algo que se origina do outro ou dos outros (3), o que

denominamos de coletivo. Comecemos a discussão por este último.

7.1- O Sofrimento coletivo.

A dor pelo não reconhecimento do outro ou do grupo e pelo não

pertencimento.

A dor que um indivíduo sente em alguma circunstância por não se

perceber reconhecido pelo outro ou por seu grupo, pode provocar-lhe sofrimento.

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Se sentir injustiçado, excluído, marginalizado, incompreendido, é para um

homem que quer ser reconhecido, um momento de dor. O indivíduo precisa

pertencer ao grupo, ser por ele reconhecido e de alguma forma respeitado por

outros. A sua identidade precisa estar devidamente identificada e aceita pelo

outro. A pessoa de uma forma geral busca a aceitação dos demais membros de

seu grupo, e ser reconhecido como alguém que tenha um valor para a sociedade.

O sucesso, por exemplo, pode-lhe trazer riqueza, a qual todos ao seu redor,

direta ou indiretamente a ele ligados devotam-lhe atenção e admiração. Parece

até que o maior ganho não está na satisfação dos desejos atendidos pelo

dinheiro, mas na vaidade que se cultiva pela admiração do grupo social. Ao

contrário, o homem pobre sente-se fracassado, e ser objeto de solidariedade e

caridade é uma forma de pertencimento ao meio social, mesmo que seja pela

pena e compaixão. O conforto material serve como atenuação das dores

psíquicas.

Diversos autores se debruçaram sobre a temática do reconhecimento,

como Honneth.

Honneth (2003) entende o reconhecimento por intermédio de três

dimensões:

1- As relações emotivas, nas quais estas seriam as mais importantes para a

construção da identidade. A relação entre mãe e filho iria desde uma total

dependência até uma situação de dependência relativa, originando

circunstâncias conflitivas, o que propiciaria aprendizagem mútua, a

autoconfiança, a relação de dependência e autonomia, bem como a

própria diferenciação entre ambos.

2- As relações de direito representam os valores universalizados da

sociedade que devem atender a todos igualmente em seus interesses.

Por meio destes princípios morais os indivíduos se reconhecem

mutuamente como seres humanos.

3- E as relações orientadas por valores, que propiciam aos indivíduos uma

estima social, o reconhecimento de sua idiossincrasia.

Acreditamos que no mundo sócio afetivo, o indivíduo se vê diante de

circunstâncias de dor pela falta de atenção, de carinho, de afeto, de

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reconhecimento, etc., por seus pares, tais como, marido, esposa, namorado,

namorada, amigos e outros atores sociais. Ou mesmo, de artistas, atletas,

figuras com exposição na sociedade, por exemplo, que precisam do

reconhecimento de seu trabalho, de si mesmo, e que a falta deste pode provocar

intensa dor, depressões, envolvimento com drogas, isolamentos e até mesmo

suicídios. O outro é, então, de extrema relevância para o sujeito, a ponto de

podermos afirmar que não vivemos de forma isolada, e que o contato com o

grupo e sua aceitação é básico para todos nós.

“O objetivo de cada um é rentabilizar maximamente sua potência, diz

Espinosa, ao mesmo tempo em que afirma que só o conseguimos quando nos

unimos a outros, alargando o nosso campo de ação.” (SAWAIA, 2011, pág. 117)

São sofrimentos que estão interligados a pessoa em contextos dos mais

variados, onde outros indivíduos fazem parte do nosso mundo da vida. O mundo

da vida não pode ser encenado como monólogo, sendo preciso que seja um

diálogo, que existam outros atores participando de cada capítulo de nosso

drama. Ou seja, é uma dor que vai além do indivíduo que a sofre, e que não

depende apenas de quem sente, e sim de um conjunto de situações e de

indivíduos para que se atenue ou se extinga. Aqui denomino esse tipo de

sofrimento como coletivo, porque é uma dor que tem além do indivíduo que a

sofre pelo menos mais outro elemento a ele interligado.

7.2- O Sofrimento Físico

O estar vivo é condição necessária para sentirmos em algum momento da

vida a dor física. Desde o nascimento sentimos dor, nossa máquina física está

exposta ao desgaste natural do corpo ou a questões genéticas, muito embora a

dor seja uma reação idiossincrática do organismo ao dar um sinal de alerta de

que algo não está bem. Como qualquer máquina o uso ininterrupto, a má

conservação, vai mais cedo ou mais tarde, dar mostra de suas limitações, desde

as circunstâncias mais simples, como uma dor de estomago, de dente, até

graves enfermidades. A dor do corpo está relacionada à presença de algo físico,

podendo ser uma dor real do ponto de vista fisiológico. E que, dependendo de

sua complexidade pode levar o indivíduo à preocupação com a morte.

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Para Sawaia (1995, pág. 157) “em quase todas as doenças encontram-se

relações curiosas entre o que se passa na cabeça das pessoas e a evolução de

sua doença física.”

Acreditamos que a preocupação, pode se originar no plano psicológico,

mesmo não havendo indícios de algum problema. Assim, o sofrimento físico

pode ser vivenciado por algo predominantemente corporal, ou então, originado

no âmbito psicológico. A medicina acredita que a maior parte das doenças tem

relação intima com o lado psicológico.

O sofrimento físico envolve outras pessoas ao redor, mas que em linhas

gerais depende mais do sujeito, de como ele encara aquilo que está vivenciando

e que está gerando esse tipo de sofrimento. Logicamente, que este tipo de dor

pode ser exacerbado quando associado à presença de outros tipos de sofrimento

e variáveis.

A dor classificada como física pode ser real ou imaginária. Pode ser real

quando de fato há algum transtorno, disfunção do organismo, ou imaginária,

quando o medo da morte não passa de uma inferência que pode estar próxima

e que é uma situação desconhecida e inevitável.

Para Moreira (2010), fica claro que a doença não significa perda de

sentido, nem tampouco traz obrigatoriamente o empobrecimento do sentido da

existência consigo.

O sofrimento físico, então, a nosso ver, está presente na vida de todos os

indivíduos, de maneira que mais cedo ou mais tarde, todos participam deste

processo de desgaste físico ou falho. Deixemos para as ciências médicas se

debruçar sobre ele, embora caiba para a psicologia social discuti-lo enquanto

fenômenos relacionados ao indivíduo em seu contexto, na sociedade.

7.3- O sofrimento psicológico individual e de culpa

Ao contrário do sofrimento coletivo, há outro tipo de dor que não está

ligada diretamente ao sofrer pelo não reconhecimento e pertencimento a um

grupo. É uma dor que também não está ligada a manutenção da vida, a morte,

como nos tipos de sofrimentos anteriores, mas a algo particular, individual, uma

dor que nasce dentro do indivíduo, produzida no seu âmago. Essa dor é diferente

do sofrimento coletivo, que parece nascer (pelo menos para aquele que sofre) a

partir do outro que não o reconhece e que o impede de pertencer.

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É um sofrer que nasce de dentro, de uma atitude, uma decisão da qual se

arrepende. De algo feito ou não, e que o indivíduo, mais tarde, vai se cobrar.

O remorso é a tristeza que vem acompanhada da ideia de uma coisa

passada que aconteceu de forma inesperada (ESPINOSA, 1983)

Para ilustrarmos essa ideia, podemos exemplificar, como no caso de uma

separação, que nos arrependemos, uma escolha profissional mal avaliada, uma

mudança de cidade onde deixamos nossos pais e familiares, ou alguém que

morreu sem que tenhamos nos despedido revelando nossos sentimentos. São

todas situações possíveis, porém, passíveis de arrependimento, quando mais

tarde percebemos que poderíamos ter conduzido de forma diferente. Palavras

expressadas equivocadamente no calor da tensão, injustiças cometidas por

ignorância dos fatos ou pelo viés de uma opinião, são algumas das situações

que geram, mais cedo ou mais tarde, uma dor interna, que muitas vezes

permanece durante a vida toda. Embora possa haver outros indivíduos

relacionados a essa dor, não pode ser considerada como coletiva, mas

individual, pois nasce de uma atitude, da forma com que nos posicionamos,

nesses momentos específicos, com o mundo e com as pessoas. Essas posturas

podem gerar arrependimento, culpa, dor e sofrimento.

É uma dor que pode vir da autocobrança pelos erros cometidos, pelas

posturas equivocadas e atitudes tomadas diante das circunstâncias da vida,

muitas vezes sem volta. O que pensar, por exemplo, da dor de um pai que

compra um revolver por acreditar estar defendendo sua família de possíveis

ameaças externas, e vê seu filho (a) morrer ao manusear e disparar

acidentalmente a arma contra si mesmo.

O arrependimento é a tristeza que vem acompanhada da ideia de uma

coisa que o indivíduo julga ter realizado por livre vontade. (ESPINOSA, 1983)

Entendemos que não há aí um sofrimento coletivo, uma reflexão, que o

leve a buscar culpados externos, como as ações de marketing para o consumo

de armas, como vemos nos Estados Unidos, cuja população está armada até os

dentes contra ameaças diversas. O sofrimento e a dor não estão atrelados a este

contexto, mas sim a autocobrança e autopunição, por se sentir culpado mesmo

não sendo cobrado por outros, por uma decisão que depois do fato entendeu ser

equivocada.

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7.4 Os dois eixos de reação frente aos ciclos de sofrimento

Como todos estão sujeitos a afetações das mais variadas ordens também

estão aptos às reações para os três tipos de sofrimento que julgamos existir. As

reações em detrimento a esses três tipos de sofrimento, o individual, o coletivo

e o físico, provocam impactos diversos e possíveis transformações na

identidade. Cada indivíduo reage de forma diferente às situações da vida,

encarando os desafios e os embates de forma particular. Podemos ver as coisas

que nos cercam como simplesmente obstáculos, a serem superados, em que a

experiência proporciona melhor condição para enfrentamento no futuro. No

entanto, nem sempre reagimos assim, e em muitos momentos, a dor e o

sofrimento provocam marcas e cicatrizes que não curam jamais.

Se tomarmos como base as ideias de Espinosa corpo e alma são únicos

e não dicotômicos em sua existência, e o homem ora está a serviço do corpo e

seu apetite, ora da alma, em pensamentos. O autor usa o termo alma, pois, na

época em que vivera, no século XVII, era o mais comum.

Para esse filósofo (1983) o homem muitas vezes atribui a sua existência

finita, causas adequadas que para ele podem ser compreendidas, ou então,

causas inadequadas, cujo efeito lhe é incompreensível. Somos passivos

(sofremos) quando em nós algo acontece, onde somos causa parcial tão

somente, são afecções que diminuem nossa potência de agir.

A nosso ver, quando a causa é inadequada, o indivíduo sofre os impactos

das afecções que podem levá-lo a alienação, a servidão. Diante das

adversidades da vida o sofrimento vem de maneira diferente e de intensidade

particular para cada um, as condições psicossociais que permite a adaptação e

a flexibilidade são limitadas. Nem sempre temos ideias inadequadas frente a

determinadas circunstâncias, assim, o indivíduo pode enfrentá-las de forma

adequada objetivando superar os entraves da vida.

A nossa alma quando age, é ativa, pois tem ideias adequadas, mas se

apenas sofre, é passiva, uma vez que está atrelada a causas inadequadas.

Entretanto, a alma esforça-se em preservar-se, faz parte de sua essência, e

denomina-se vontade. Mas quando se refere à alma e ao corpo, chama-se

apetite, essência que serve para sua conservação, determinando-o a fazer

coisas. (ESPINOSA, 1983)

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Nossa pesquisa levou-nos a entender que a forma de enfrentar e as

consequências disto são inerentes a cada um, idiossincráticos, podendo o

indivíduo ter uma postura que denominamos de reacional ativa (ódio, raiva,

ciúmes, etc.), em que dirigimos o sentimento para o outro; ou reacional passiva

(depressão, mágoa, baixa autoestima, etc.) em que deslocamos para nós

mesmos o sentimento.

Para o outro, para fora, ou então para dentro, ou seja, para si mesmo, é

uma escolha que cada um faz, mas, que pode ser remediada ao longo da vida,

ou permanecer de forma constante dependendo da situação.

No decorrer da vida os ciclos de sofrimento ou episódios vão marcar a

identidade do indivíduo, e esse fenômeno poderá ser capaz de impactar na

identidade do sujeito, impregnando-o com emoções, cuja reação frente a esses

tipos de sofrimento, segundo nosso entendimento, divide-se em dois eixos:

7.4.1-Reacional passiva diante do sofrimento

Frente a um ciclo de sofrimento o indivíduo pode reagir contra si mesmo,

ou seja, transformar toda aquela emoção em algo direcionado a si mesmo. Um

fenômeno reacional que ao invés do sujeito dirigir o sentimento para aquilo lhe

provoca dor, para fora, para o outro, não o faz. Ao invés disso, guarda para si

todo esse sentimento, essa mágoa, esse rancor.

As categorias emocionais mais comuns são a tristeza, o abandono, a

baixa autoestima, a decepção, o isolamento, o recalque, a prostração, a

melancolia, a mágoa, a insegurança, o medo, a angústia, o ressentimento, a

ansiedade, entre outras emoções.

Essas são categorizações emocionais que enquadramos como uma

identidade reacional passiva.

7.4.2- Reacional ativa diante do sofrimento

Se por um lado temos uma reação passiva, outros indivíduos diante de

uma situação de sofrimento adotam uma postura ativa, atuando contra aquilo ou

aquele que lhe provocou a dor. Algumas categorias de emoção são mais comuns

como: a agressividade, a raiva, o ódio, a vingança, o ciúme, o orgulho, a

maledicência, entre outras categorias de emoção que aqui denomino de

Identidade reacional ativa. São emoções dirigidas a aquilo que fez o indivíduo

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sofrer ou a outros que aparentemente não tinham relação à origem da dor. Se

sofremos, podemos agredir alguém, seja ele a causa ou não deste sofrimento.

Independentemente da escolha (ativa ou passiva) o sofrimento e a dor

provocam alterações em nossa identidade tanto no aspecto psicológico quanto

no físico. Outro aspecto que devemos levar em consideração é que o sujeito

pode reagir em uma mesma circunstância, com as duas formas citadas, ou seja,

com uma reação ativa e passiva frente a um mesmo episódio. Pode dirigir para

si a afecção triste ou para o outro.

7.5- A Mesmice e a Mesmidade e sua relação com o Sofrimento e a

Identidade Reacional Ativa e Passiva.

O sofrimento cria possibilidades para que possamos trilhar caminhos

variados. Pode ser um caminho que nos leva a redenção, a superação, a

autonomia e emancipação, ou então, por trilhas que não nos levam a lugar

algum, com a dor e o sofrimento presentes por tempo indeterminado, um

verdadeiro labirinto, onde as saídas não dão conta de tirar-nos deste estado.

O que entendemos é que nem sempre estamos conscientes daquilo que

nos provoca dor. Muitas vezes esse estado de não consciência nos leva a coisas

que não nos completam e não nos alivia de forma definitiva, quando muito

apenas transitoriamente. O consumismo exacerbado é exemplo de algo que

buscamos e se conseguimos, pode nos trazer certo alivio momentâneo tão

somente. Permanecemos na mesmice, como a procurar saídas, portas que

ainda não estão acessíveis para nós. Falta-nos uma visão mais clara do mundo

para a compreensão desta alienação. Outras vezes, podemos até mesmo

compreender esse estado de coisas, mas é preciso ação, o que nem sempre nos

é possível. A mesmice ainda prevalece neste último caso também, pois mesmo

ciente do que está ocorrendo, o indivíduo não consegue emancipar-se.

Nas duas circunstâncias, o sofrimento pode levar o indivíduo a reações

como a que denominamos de ativa, dirigindo sua angústia, sua dor, sua

insatisfação para o outro ou para coisas. Agredimos, muitas vezes, pessoas que

nada nos fizeram, até mesmo desconhecidas. Outras vezes defendemos causas

apenas com o sentido de dirigir essa força, contra outros que não compartilham

com nossa causa. Brigas de torcidas, de gangues, movimentos homofóbicos são

apenas alguns dos exemplos para a reação ativa. Logicamente que também

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vemos essas reações em atividades físicas, práticas esportivas (esportes de

lutas), artísticas, como letras de música (Funk), dança, etc. A mesmice nos

impede de dar outra forma à nossa reação. A mesmice também pode nos levar

a reação passiva, quando nos isolamos e desistimos de lutar, e dirigindo para

nós mesmos toda essa energia. Destruímo-nos achando que destruímos aquilo

que nos destrói. A mesmice aí se manifesta como estado de prostração, de

autodestruição, diminuindo nosso conatus. Isso pode ser visto em indivíduos que

se automutilam, que se drogam, fumam, bebem, e em algumas ocasiões,

aqueles que praticam esportes perigosos sem receio de consequências fatais,

desafiando a morte a todo tempo. Também vemos a reação passiva em

expressões artísticas como na música, e outras artes em geral. Há compositores

que só conseguem criar uma letra e a melodia de uma música quando estão

deprimidos, e o mesmo acontece com poetas e outros escritores.

Quando o mundo ao nosso redor está mais claro e nos determinamos

para a ação, ampliamos nossas possibilidades de emancipação e autonomia, é

um grande desafio, porque na mesmice muitas vezes permanecemos voltados

para as paixões, para as ilusões. Deixar está zona de aparente conforto expõe

o indivíduo ao enfrentamento do sofrimento, e que não é tarefa tão simples

assim. Normalmente por sermos seres gregários, precisamos do outro para

compartilhar nossas emoções, na espera que esse outro nos ajude na

transformação em outro “outro”.

Para Moraes (2010) o princípio da solidariedade é um fato social, pois não

podemos exercê-la enquanto sujeito sozinho, e sim, inserido na sociedade, isto

é, parte de uma rede social, cuja dependência está sempre presente.

A solidariedade é a categoria a nosso ver, que permite esse processo de

metamorfose. A solidariedade permite ampliar as possibilidades de consciência

e a partir da troca de experiências, incentivar à ação. Nossa compreensão é de

que o compartilhamento dos afetos, das emoções e o colocar-se no lugar do

outro em situações de sofrimento e dor, o indivíduo afetado aumenta suas

possibilidades de autonomia e emancipação.

A solidariedade é a categoria que vai ampliar as possibilidades da

passagem da mesmice para a mesmidade, da alienação para a autonomia e

emancipação.

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A solidariedade, inversamente à caridade, é a forma que a vida encontrou

para a solução da sobrevivência do homem no planeta. É através dela que

descobrimos no outro o que temos para mudar ou que podemos fazer também.

A solidariedade é a forma que temos para nos colocar no lugar do outro, é mais

do que simplesmente dar, como é feito por intermédio da caridade, nos

colocamos no lugar do outro ao sentir de alguma maneira, o que outro está

sentido.

A solidariedade nos possibilita acreditar no outro e não somente nas

coisas que acumulamos, no dinheiro de plástico que carregamos, na apólice de

seguros que tudo nos guarda, exceto nós mesmos. Porque o seguro que

indeniza a morte, não garante a vida. O seguro que paga a um outro pela morte

de outro, não prevê a felicidade do segurado, apenas a segurança dos que

dependem dele.

Hondrich e Koch-Arzberg (1992, pag. 9) definem solidariedade como uma

forma específica de vínculo social, historicamente recente, constantemente

desafiada e cuja compreensão está em permanente constituição. (COSTA,

2008)

Entendemos que a solidariedade ensina ao grupo que é possível sair da

mesmice e transitar pelos caminhos da mesmidade, da alteridade, da

emancipação. A solidariedade, então, é esse estado de ligação entre as

pessoas, percebido ao longo da existência da raça humana, e conceituada

recentemente pela ciência do conhecimento humano. Num mundo onde a

competição é sempre incentivada, onde a rotina diária nas grandes cidades é

marcada por muita agitação, se solidarizar com o outro nem sempre é muito

comum. Sem falar logicamente nos efeitos que a desigualdade provocou na

sociedade moderna e principalmente na contemporânea, criando verdadeiros

bolsões de pobreza e consequentemente de criminalidade. A criminalidade

crescente nas grandes cidades levou as pessoas a desconfiarem mais, a serem

mais precavidas, limitando suas relações àquelas que lhes são mais próximas,

como mecanismo de defesa.

(...) um lugar privilegiado de prevenção do sofrimento psicossocial é o local em que se vive como os pares, diariamente, que é sentido como o ‘meu lugar’, no sentido de se aquecer o calor deste, material e subjetivamente, criando núcleos sociais, culturais e psicológicos geradores de acolhimento e solidariedade. (SAWAIA, 1995, pág. 52)

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Como discutido por Lane, a Identidade é a síntese das categorias do

psiquismo humano: Atividade, Consciência e Emoção. A afetividade, portanto, é

a categoria que vai cindir esse processo, sendo a solidariedade uma das formas

de tomada de consciência, possibilitando a atividade. A solidariedade, portanto,

a nosso ver, é a categoria que vai contribuir melhor para explorar a afetividade

possibilitando ao indivíduo a tomada de consciência, base primordial para uma

ação, para a mesmidade e autonomia.

Esta pesquisa nos levou à compreensão de que as emoções, em

específico o sofrimento, fazem parte da história de vida de todos nós,

possibilitando a metamorfose identitária. A solidariedade, que também é emoção

e afetividade, passa a ser importante condição para possibilitar a tomada de

consciência e de atividade. E nestas circunstâncias, propiciar a mudança da

condição de mesmice para mesmidade, de alienação para autonomia e

emancipação.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A difícil tarefa de mudar os rumos da vida numa sociedade que nos

bombardeia com propagandas de uma infinidade de produtos e serviços, não é

nada simples. Sonhamos acordados com coisas que desejamos fazer ou ter. À

medida que imaginamos uma coisa possível de acontecer, alimentamos

esperança ou medo, aumentando uma determinada afecção.

Ao mesmo tempo em que tentamos nos voltar para dentro, as forças

econômicas, nos puxam para fora, para o exterior, local repleto de coisas e

fantasias para os mais variados gostos.

O voluntariado que me dispus a fazer já há algumas décadas com

indivíduos de faixas etárias diferentes, como crianças, adolescentes, adultos,

sejam em abrigos para os primeiros, ou nas ruas para todos, acrescentou-me

uma experiência no sentido de possibilitar que eu me colocasse no lugar do

outro.

Hoje, não sou capaz de compreender tudo que já vi, mas certamente

posso perceber que as nuances do outro, trazem para cada um de nós, novo

olhar para o mundo.

Se o sofrer é inerente ao humano, o que precisamos descobrir são formas

de se apropriar dele para melhor compreensão das coisas. Essa compreensão

é condição primordial para vermos de forma mais clara o mundo da vida, as

possibilidades de emancipação e da metamorfose que permita a cada indivíduo

mais autonomia.

A compreensão do sofrimento no homem é tarefa árdua, pois, devido às

subjetividades das emoções e sentimentos, dos disfarces, dos

redirecionamentos, da tendência aos encobrimentos e tantas outras barreiras,

torna qualquer discussão um grande desafio.

Para entendermos o homem a partir da psicologia social, se faz

necessário estudá-lo dentro de uma perspectiva histórica social, cujo,

instrumento da linguagem é fundamental, pois as palavras, seus significados e

conjunto de valores ali contidos vão determinar a forma de ver o mundo, e por

consequência, suas ações, emoções e identidade.

Quando conheci Maria José me fiz muitas perguntas, como qual o sentido

da vida para alguém simples e com poucas possibilidades de uma renda mais

satisfatória, e que ainda adota três crianças com grande potencial de serem

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problemáticas. Maria José é uma pessoa simples, moradora de uma área de

risco social e pessoal da periferia de São Paulo, com poucos recursos, lembrada

tão somente em momentos eleitorais e esquecida a maior parte do tempo. Uma

pessoa com baixa escolaridade e vivendo num ambiente de criminalidade,

drogas, e com pouquíssimos investimentos na área social. Não fosse o trabalho

de algumas ONGs, essas áreas estariam mais abandonadas ainda. As palestras,

os cursos, os encaminhamentos médicos, psicológicos, jurídicos, entre outros,

são provas desse esforço e preocupação com esses excluídos.

O apoio, o estar ao lado com, o estar junto, o sentir compartilhado são

experiências fundamentais para que a solidariedade mude essa situação. Não

vivemos isolados, sozinhos, a psicologia social não cansa de ver o homem como

um ser em constante relação com o outro, e o uso da linguagem acelera esse

processo de troca entre todos nós.

Bader Sawaia deu enorme contribuição a psicologia social quando se

debruçou sobre a categoria emoção e, aqui, reafirmo que também não concebo

um homem, uma identidade sem levar em conta a afetividade, presente deste

que nascemos, até nossa morte.

Maria José expulsa por seus pais de casa por conta de um preconceito e

de uma imagem social que privilegiava o orgulho e não o afeto paternal foi em

busca de uma nova história de vida, a que lhe trouxesse dignidade, não

aceitando a condição de servidão e alienação. Depois, ao perder sua segunda

família, esposo e filhos, na rua abandonada a sua própria sorte, também correu

sérios riscos de ver sua vida chegar a mais baixa condição, a de indigente.

Mas a solidariedade de um desconhecido levantou-a novamente, como

mulher, trabalhadora, e como cidadã ao tirar seus documentos.

Até conhecer Monica, certamente sofrera bastante. Mostrou-nos que o ser

humano só se humaniza em contato com ou outro, e que não vive só.

Maria José estava em busca do que perdeu, de si mesma, de uma

identidade que representasse o que de fato ela acreditava. Alguém de boa

índole, esforçada, “trabalhadeira” como ela mesmo se intitula, boa mãe, e capaz

de viver e dar bons exemplos em família. Arrisco-me novamente a afirmar que

ela está vencendo essas etapas, que sua condição é de vencedora, de

autonomia e emancipação.

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Maria José foi em busca da emancipação, como mulher, como mãe, como

cidadã, cuja responsabilidade é mudar o que está ao seu redor, seja, coisas,

sejam, pessoas. Da Mesmice para a Mesmidade, da alienação para a

emancipação, não é tarefa fácil, é caminho normalmente trilhado com muito

sofrimento, muito menos difícil, quando contamos com pessoas ao nosso redor,

que compartilham nossas dores, e que conosco, sonham a superação.

A socialização de nossos afetos, nossas emoções, por si só não garante

a solidariedade, apenas ouvir o outro, suas angústias, medos e decepções.

Solidariedade é mais do que ouvir, é criar a possibilidade da metamorfose

identitária com sentido de busca emancipatória. Isso é solidariedade,

compartilhar, estar junto, promovendo, importante categoria que faz parte da

afetividade que possibilita a tomada de consciência e ação.

Assim como não vejo a identidade sem a parte que compete às emoções,

não vejo, “consciência” e “atividade” categorias que imbricadas formam a

Identidade, sem a participação da solidariedade.

Espero ter contribuído para a psicologia social, embora saiba que o que

aqui lancei nesta tese, é muito pouco, comparado a tantos outros estudiosos que

ajudaram a construir uma Psicologia Social mais próxima da nossa realidade,

como Silvia Lane, Antonio Ciampa, Bader Sawaia, e tantos outros mais.

Tenho um pouco de cada um dentro de mim, cujas partes vieram através de cada palavra compartilhada, solidariamente presente nos momentos que senti um nó na garganta, e antes que engasgasse, que perdesse o sentido, fui acolhido por mãos que nunca imaginei encontrar. Luiz Fernando Sempionato

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101

ANEXO

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102

Entrevista realizada nas dependências do Grupo de Estudos Batuíra

(GEB) no dia 04 de outubro com uma participante das atividades assistenciais

que deu o nome de Maria José.

Segue a integra:

- Me conte quem é Maria Jose? - Bom, eu sou Maria José, vou contar a história de uma pessoa, que não era parente minha, éramos só amigas. Era usuária de drogas que ninguém sabia, e que agora vai ficar sabendo. E eu vim morar com uma família e ai a família que eu morava faleceu e eu vim morar com essa pessoa. Ela tinha 3 filhos, como eu disse ela era usuária de drogas, ela era muito forte, muito saudável, eu não sabia que ela tinha aids. Ai foi muito sofrimento que as drogas não deixavam ela se cuidar. E ela trabalhava, e u trabalhava, eu já tinha uma idade, ela não tinha nada, porque tudo que ela ganhava, ela vendia o que ela conseguia, ela vendia pra usar droga. Eu trabalhava pra ajudar ela e assim foi indo. Os filhos dela crescendo, quando eu fui morar com ela, a filhinha dela tinha dois anos de idade. Hoje a filha dela tem 9 anos e foi muito sofrimento porque tudo que eu conseguia eu punha dentro de casa, mas ela vendia, se eu colocasse uma colcha nova na cama, ela vendia. E eu não tinha como trabalhar fora, porque eu tinha que cuidar dela. Ai o que aconteceu, eu comecei a trabalhar fora, lavava roupa na casa dela, no tanque de pedra, porque eu não tinha tanquinho E foi muito sofrimento, todas as economias que eu guardava, ela passava mal e eu tinha que investir nela, levar ela para o hospital e daí foi demais, mas eu ... Chegou um certo dia, a gente discutia muito, a gente brigava, ela mandava eu ir embora da casa dela, eu falava que não ia, porque não tinha ninguém pra cuidar dos filhos dela. Eles saiam de casa, ficavam na rua. Ela melhorava um pouquinho, ela ia por bar. Quando ela me via na porta do bar ela falava assim, lá vem essa veia me enche o saco. Ela bebia álcool, ela bebia pinga, ela bebia acetona, ela bebia tudo. Ai, eu levava ela pro medico, ela saia saudável. Ela morreu com 39 anos, ela saia bem saudável do hospital, ai já estava tudo bem. Ela ficava um mês, dois mês, internada. Ela vinha pra casa e era muito sofrimento. Eu não conseguia dormir, porque ela usava droga dentro de casa, no quarto perto dos filhos, perto de mim e era muita briga porque eu tinha que trabalhar, eu tinha que cuidar dos filhos dela, porque ela não queria que eles fossem para o colégio. Ela foi ficando doente, ficando doente, ficou acamada, ai um certo dia, eu recebi um apoio do Batuíra, ai eles queriam interná-la, por ela numa casa de apoio, não deixei, eu falei não. Vou cuidar dela na “minha casa” vou ficar até o fim, ela vai ficar perto dos filhos dela até o fim da vida dela. Daí ela veio pra casa, o sofrimento foi pior, porque ela começou a usar fralda. Ai ela melhorava um pouquinho, ela levantava. Ela ia pra rua, saia 2 horas da manhã, 3 horas, ai no outro dia eu tinha que acordar cedo para ir trabalhar. Ela mandava “eu ir embora” da casa dela, ela falava que eu estava atrapalhando a vida dela. Eu falava que eu não ia, só ia separar dela, se Deus levasse ela ou levasse eu. Daí o que aconteceu, ela foi ficando de cama, de cama, ai a filha dela estava no Emei, a filha caçula que hoje tem 9 anos, é minha filha, daí ela quis que eu pegasse a guarda das filhas dela, a gente arrumou os papel tudo direitinho, o pessoal do Batuíra me ajudou muito, nossa demais... Ai eu peguei a guarda dos filhos dela, três filhos, uma menina de doze anos, a Monaliza, o Adalberto, a Ana Carolina, daí ela não deixava cuidar dos filhos dela, não deixava, porque ela falava assim:

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Não, eles são meus, ai a filha dela saia pra rua, amanhecia na rua com 8 anos. Eu falava assim, não Monica, não é assim, a sua filha, tá sob a minha guarda. Ai deixa minha filha! Eu falava, não pode! Ai ela foi ficando mal, ficando mal, ai com três dias ela estava acamada já em casa, ela falava assim: Maria José quero ir por hospital. Você quer ir por hospital? Levei ela pro hospital, ela ficou internada na quarta feira, ela faleceu na sexta. Aí foi pior, fiquei com os três filhos dela. Eu não tinha como trabalhar, não passei necessidade por causa do Batuíra. Mas o Batuíra me ajudou muito. Hoje minha filha mais velha é casada, os meus filhos não têm o vírus no sangue positivo. Meus filhos tão aqui, são saudável. Minha filha é casada, tem juízo, não tem filho. E assim, eu estou com meus dois filhos meninos aqui e até hoje, eu sofro porque eu tenho 61 anos, sozinha. Porque eles faleceram e não deixaram nada para os filhos deles. Não deixaram nada para as crianças. Devido ao meu ganho, lavo roupa pra fora. Já tô com 61 anos de idade, mas mesmo assim eu trabalho, não falta nada pros meus filhos, o Batuíra também me ajuda, né? E assim foi, mas foi muito sofrimento nesta vida, porque a mãe deles... O Batuíra não sabe que ela era usuária de drogas, isso eu nunca falei aqui no Batuíra, mas ela era, vendia tudo que eu tinha, tudo, se eu chegasse com esse... Se eu chegasse com esse sapato aqui ela vendia Se eu ganhasse um tênis, eu saia pra trabalhar, e quando chegasse não tava mais, e ela nunca teve nada, eu não tive coragem de deixar para o colégio. Eu peguei amor pelos filhos dela. E a minha filha são saudáveis, são educados, meus filhos estuda, eu trabalho, mas eu não bebo, não fumo, não uso nada, por isso que eu consegui pegar a guarda deles e assim foi... Porque todo mundo me falava. Você tem coragem? Não, eu vou ficar com os filhos dela Eu gosto muito deles, tenho carinho por eles Muitos usam drogas bebem, eles não... Não tô aqui por causa dela, tô aqui por causa deles. Mas mesmo assim, eu cuidei bem dela até o fim, mas ela não queria ser ajudada. O que que adiantava, eu cuidava dela, quando eu saia pra trabalhar, ela levantava da cama, ela ia procurar besteira, procurar droga, então... Mas ela faleceu um pouco também foi por culpa dela, não por falta de cuidados. Eu não abandonei ela, a Angel é testemunha, eu cuidei dela até o fim da vida dela. Eu sofri muito porque ela na cama, ela mandava eu ir embora da casa dela Vai embora da minha casa Dizia: quer manda na minha casa? Não. É porque era muita coisa errada pra uma pessoa só. Mas mesmo assim eu cuidei dos filho dela. Os meus filhos são educado. Meus filhos têm muito preconceito por que os pais deles morreram de aids. Ai, não vou ficar perto de você não, seu pai teve aids, você tem aids, você vai pegar em nós. Foi muito preconceito, agora não, já tem três anos que ela morreu. No começo meus filhos se isolaram, todo mundo se afastou deles. Foi muito, muito difícil, mas graças a Deus eu superei

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Sou sozinha com meus filhos Eu moro sozinha com meus dois filhos. Fico em casa, moro aqui embaixo. É isso aí. Maria Jose, eu perguntei assim, para você: É ... quem é a Maria José? Aí você começou falar da Maria a partir da sua amiga Monica! - é eu contei a história dela Por que você começou sua história a partir dela? - Ah... Não tem uma história lá atrás sua? - Ah tem... É, me fala assim de onde você veio - eu vim da Vila Jaguará, eu fui casada dez anos Nasci aqui, morei na classe média, no Parque São Domingos. Porque meu pais... Fui criada... Vim de uma família muito rígida, então, eu engravidei cedo, meu pai me pôs para fora de casa, mesmo assim, sou uma pessoa de juízo. E aí você engravidou? E casou? - Eu casei com quatorze anos, fui casada dez anos Só que meus filho hoje, tudo trabalha Fui casada, tenho até netos já... Até neto, casado também. Você foi morar com essa pessoa (marido)? - eu fui casada dez anos, descobri que meu marido tinha outra mulher, eu me separei dele, me desquitei dele, fui embora. Fiquei com meus filhos, daí depois não tive condições de ficar com meus filhos, ganhei a guarda deles, só que eu não tinha onde morar, onde ficar, tive que devolver meus filhos pro pai deles. Mas hoje não, hoje eu vejo meus filhos. São casados, moram longe daqui. Você devolveu eles? Aí meus filhos casaram e eu fiquei sozinha. Sozinha? Aí eu resolvi morar com uma família, a da Monica. Você foi morar com uma pessoa, uma família, sozinha? -Sozinha, porque meus filhos tava tudo casado e aí fiquei sozinha, fui morar com ela. Ai ela falou, Maria Jose, ao invés de você morar comigo, mora com minha irmã. Ela era saudável ainda (Monica), não parecia que tinha essa doença Vai morar com ela e meu cunhado. Na casa do meu cunhado que morreu Vai morar com eles. Meu cunhado deixou meus sobrinhos sozinhos Agora eles fica lá jogados. Tinha duas filhas e um menino, então fui morar com ela.

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Ai foi indo, foi indo, ai minhas filhas cresceram. Minhas filhas é casada, evangélicas, já vai fazer 27 anos, tem 2 filhos, oura tem três e é casada... Aí eu falei, já que vocês não precisa mais de mim... Ai a Monica morava numa oura rua, eu sai da minha casa e ia na casa dela ajudar. Ela já estava ficando doente já, eu descobri que ela usava droga né. Aí eu fui morar com ela Eu vou morar com a Monica. Quem é Monica? A Monica era a mãe das minhas meninas. Aí eu fui morar com ela e nem ela sabia que ela era doente, porque não aparentava. Era bem saudável, depois que né... Essa doença vai indo, vai indo, vai pegando aos pouco a pessoa. Que doença? Aids, ela e o marido dela. E eu não sabia. Mas ele morreu primeiro, ele morreu com 50 anos. Ela depois de cinco anos veio a falecer. Eles tinham três filhos? - e os filhos deles estão aqui até hoje. Aí eu fui morar com eles, a filha dela que tem nove anos hoje, tinha dois anos quando fui morar com ela. Mas ela foi fiar ruim mesmo quando a filha dela nasceu, essa Ana Carolina que fez nove anos A doença dela em seis anos foi só sofrimento. Quando a minha menina fez seis anos ela faleceu. Ela faleceu dia 2 de setembro, dia 9 de setembro a caçula dela fez seis anos. E você tem uma filha? - não, eu não tenho nenhuma filha, o que eu tenho é tudo adotado (contradição) Mas você falou que tinha... - Não, eu tenho três filhos, só que estão tudo casado. Você teve três filhos com seu casamento? - é ... Do meu primeiro casamento que durou dez anos Tenho três filhos com meu casamento e nessa vida que eu criei três filhos Bem dizer eu tenho oito filhos (contradição) Cinco filhos que não são meus. Você teve três filhos com o pai... - É... Daí você foi morar com a Monica - A Monica tinha 3 filhos, aí eu fui morar com eles pra terminar de criar, porque eles não tinham mãe. Ah... A Monica tinha três filhos então? A Monica já tinha, tinha a Monaliza que ela tinha um aninho, hoje ela já está com 16 anos já.

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Aí depois fui morar... Meus filhos cresceram, casaram, aí o pai deles... Aí eles foram fazer a vida deles Então eu fui morar com a Monica, ai nesses seis anos foi só sofrimento, porque, vixi, eu sofri pra caramba. Eu tinha vontade de largar deles, largar dela, ir embora. Por que? Porque ela era sozinha com os filhos, os filhos ficavam tudo jogado, ai eu peguei essa responsabilidade. Tinha vontade de abandonar tudo, porque você trabalhava só numa casa, fazia tudo. Sofria tanto pra cuidar. O que eu pegava aqui, ela gastava ali, não juntava nada. Foi muito sofrimento, mas graças a Deus, tá tudo bem E a Monica faleceu Faleceu com 39 anos e deixou esses três filhos pra mim cuidar E eu peguei a guarda deles. Então a Monica é sua amiga e você falou que ela tinha três filhos? Sim, hoje eles moram aqui embaixo. E ficaram com você? Eu morei com ela, e peguei a guarda dos filhos os pais faleceu. Peguei a guarda dos filhos da Monica E hoje eles estão aqui no Batuíra, tenho a guarda deles, peguei a responsabilidade de cuidar deles. O pai deles não deixou nada pra eles, deixou um teto Mas um teto, a única coisa, depois de doze anos eu peguei o bolsa família pros meus filhos. O pai deles não deixou nenhum dinheiro pra eles. Seus filhos já estão grandes? Esses aqui que estou criando, sim A minha menina mais velha, a hora que eu mais precisava dela, ela casou e foi embora. Ela vai fazer dezessete anos. Eu moro com o Adalberto que tem doze anos e a Ana Carolina que tem nove anos e eles vivem do que eu ganho. O que eu ganho eu tenho que pagar aluguel pagar conta de luz, conta de agua e ainda bem que eu tenho ajuda do Batuíra, porque é difícil. (Contradição) Quais foram os momentos mais difíceis na sua vida? O meu momento mais difícil... Foi a gravidez com quatorze anos Foi quando eu tive que trabalhar... Quantos anos tinha seu marido naquela época? A gente tinha quase a mesma idade Vocês eram duas crianças Sim, mas eu tive que trabalhar, trabalhava com ele numa churrascaria, foi muito sofrimento, deixava meus filhos com minha sogra Eu trabalhava, trabalhei muito quando era muito nova. Naquela época eu morava com minha sogra quanto eu casei. Meu pai não queria eu na minha casa. Não quis mais, até hoje, nunca mais.

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Eu fiquei no mundo sozinha, porque ai depois eu me separei. Quando eu me separei de meu marido, mas foi tanto sofrimento, eu não tinha dinheiro nem pro trem e nem pro metro. Porque eu era só de viver em casa, aí tive que trabalhar fora, tive que arrumar serviço, trabalhar em hotéis, de arrumadeira, recepcionista, trabalhava dia e noite, sofrimento. O mundo aqui fora era outro, né? E esse seu marido também era novo? Porque eu era muito caseira, não gostava de sair de casa e ele conheceu uma pessoa lá fora e gostava de sair, ele era taxista, gostava de sair e foi isso, muito sofrimento... Aí ele seguiu a vida dele, você não viu ele mais? - os filhos de vez em quando eu vejo, mas ele não. Eu sei que ele casou de novo, tem filhos. Meus filhos de vez em quando eu vejo, porque eles moram muito longe, um deles mora em Itapevi, mora longe. E eles não veem ver você? - Não, meus filhos não vêm me ver, mas eu vejo eles. Porque você não acha que eles vêm ver você? - eu tenho uma filha, que faz muito tempo que eu não veja ela e que mora em Assis. É muito longe, a gente perdeu o contato, é muito longe. Mas você pensa nela? Penso, penso muito neles, mas são tudo trabalhador, tudo estudado meus filhos, tão tudo bem encaminhados meus filhos na vida. Você liga para eles, eles ligam para você? - não, não ligam. Por que você acha que eles não ligam? Mas também, eu deixei de lado, eu tô vivendo pra esses filhos que eu tenho agora, porque eles precisam muito de mim, são sozinhos. Esse lugar que a gente mora aqui, nossa, tem muita coisa errada aqui... Você acha que por exemplo... (interrompe-me) - Eu acho que eles precisam mais de mim, esses daqui. Você teve três filhos no primeiro casamento, né? Você acha que você perdeu o contato com eles porque eles foram morar com o pai? Não foi... Porque eu me afastei deles, ai me afastei deles, aí eu conheci umas pessoas, umas famílias, ai me afastei muito deles. Achei uma famílias que estava precisando muito de ajuda e deixei eles de lado e fui viver esses daqui e eu achei que esses daqui precisam mais Eles precisa muito de mim, essas crianças aqui. No bairro que eu morava não tinha essas coisas que tem aqui. E você se arrepende disso daí Maria José? - não, eu não me arrependo porquê de vez em quando eu vejo meus filhos. Que eles tão bem são trabalhadores, são estudados. Se você pudesse voltar no tempo, você faria diferente? - Ah, se eu pudesse, não, sei lá, é que me apeguei muito a essas crianças aqui.

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Tem minha filha que eu adora ela, como se fosse minha filha. O que eu fiz pra ela, nem a mãe dela fez, nossa... Eu gosto muito dela, dela e de qualquer criança. Eu tive dois meninos que morava comigo e eu entreguei eles esses dias pros pais deles. Eles moram aqui embaixo, eles moraram seis meses comigo. Seis meses... Eu falei, não posso ficar com eles, vou entregar eles pra mãe deles, porque eu já tô numa idade. Eu cuidava direitinho deles. Tem minha filha também, aí eu entreguei pra mãe deles na semana passada. Eles já vieram aqui no Batuíra. Por que estava com eles? - Porque a mãe deles não queria eles. A mãe deles não queria eles e o pai deles tinha que trabalhar. E todo mundo dizia, mas Maria Jose você ficando com esses meninos, eles têm pai e mãe, agora que você está sossegada. Você tinha três filhos do primeiro casamento, e ai pegou mais três filhos da Monica, são seis... Aí todo mundo falava, agora que você tá ficando sossegada que a Ana tem nove anos, pegou mais dois pra criar Maria Jose. Entrega! Eu falei ah, não tadinhos. Ai eu fui lá e falei com a mãe deles. Olha, eu trouxe eles pra você. Ah, eu não tava tendo paz, eu não tava descansando. Criança dá trabalho, tem que levar cedo, levar na escola, dois estudando. Levantava às cinco e meia da manhã todo dia, dava almoço... Eu falei, não. Vou entregar eles, os pais deles não dão nada, não me ajudam em nada. O pai deles ganha bem, o pai deles trabalha na Band com reportagem, ganha bem, entrego eles pro pai deles e pra mãe deles. Mas eu ficava com eles, não por causa deles, mas por causa da mãe deles que não cuidava direito As crianças viviam muito doentes, bronquite. Nesses seis meses que ficou comigo, nunca ficou doente. Tá bom, eu vou entregar eles pros pais deles então. Entreguei eles pra mãe deles, mas com dó. Não queria entregar não, mas fui obrigada a entregar. Porque é muito difícil, mas eu vejo eles, porque criança gosta de carinho, gosta de atenção. E você deixou seus pais muito cedo? Meus pais já faleceram... E você guardava mágoa deles? (Perdoa o pai e perdoa a si mesmo) Não, sabe por que? Eu não achei ruim porque meu pai me pôs pra fora. Por que eu aprendi a vida aqui fora, eu sei o que é certo, o que é errado. Vai pôr errado quem quer, não é mesmo? Ah, todo mundo fala, faz coisas erradas, a mãe desses meninos que eu crio, usava droga, os filhos dela não usa, esse meu filho aqui... (Valoriza o papel de mãe) Meu filho mais velho, Adalberto, nem cigarro ele põe na boca, se ele vê uma coisa errada lá fora, ele vem, fala pra mim, Maria Jose, oh, o fulano queria que eu fosse na loja da biqueira buscar droga, eu não fui.

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Esse meu filho, eu tenho a maior confiança nele. Eu sei que ele não faz nada de errado, porque você conhece a pessoa que faz. Ele não faz, eu tenho a maior confiança nos meus filhos, então eu, não fumo nem cigarro, não bebo, nada disso, então, vai pro lado errado quem quer. E seu ex marido você ficou com magoa? Não, não tenho, sei lá, porque, aliás... Bom eu passei dificuldades, morei na rua... Morei na rua, eu já trabalhei em ferro velho. Já dormi na rua, catava sucata, pra mim sobreviver, aí como eu sou trabalhadeira, arranjei serviço na casa de família. E nessa época que você morou na rua como foi? Foi muito difícil. Por que você foi morar na rua, o que aconteceu? Porque eu não tinha onde morar, eu tinha casa, mas sai, deixei meu marido lá com as minhas crianças Ele já tinha outra mulher, não tinha ninguém que me orientasse Aliás ele te mandou embora ou ...? Não eu é quis sair Você não podia voltar para casa dos seus pais? Não, não porque meu pai já não morava mais aqui. Meu pai morava no interior. Tinha quantos anos quando você foi morava lá? Eu era nova, eu me casei com 16 anos, fiquei casada dez anos, aí depois eu não quis mais voltar. Eu fui fazer minha vida sozinha, trabalhar. Ai você preferiu morar na rua? Assim que eu me separei eu fui morar na rua, porque... E você ficava onde? Eu dormia em cobertura, levantava cedo, ia trabalhar, ai depois uma mulher me viu na rua, e me levou para morar na casa dela e comecei minha vida, fui trabalhar na casa de família, ai fui tirar meus documentos. Solidariedade Trabalhei fora, ai foi indo e essa pessoa.... (Monica) Quanto tempo você dormiu na rua? Ah, não dormi muito tempo não, eu era trabalhadeira, trabalhava na casa dos outros. O pessoal falava, vamos lá limpar meus vidros, eu gostava muito de trabalhar, sempre fui trabalhadeira. Quem é trabalhadeira não falta serviço, né? Ai foi assim, depois que eu arrumei um teto que foi na casa da Monica. Daquela mulher que te tirou da rua, você trabalhou com ela? É trabalhei com ela, mas a Monica eu já conhecia há muito tempo. (Retorno à Monica) Aí um dia encontrei com ela e ela falou. Maria José vai na minha casa. Fui pra casa dela e lá eu fiquei. Ai eu comecei a arrumar serviço por ali, trabalhei cinco anos na casa de uma mulher, me ajudava muito, dava cesta, ai eu trazia pra casa dela (Monica), mas a Monica vendia, vendia tudo as minhas coisas. Mas mesmo assim, ela engravidou, ela teve... Quando eu fui morar com ela, ela só tinha a Monaliza depois ela teve o Adalberto e a Ana Carolina. A Ana Carolina foi a última filha dela. Porque aí ela foi ficando doente,

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doente, mas foi uma luta, foi uma vida, mas eu não me arrependo de nada que eu faço, não. E da Monica você... A Monica faleceu? O que fez a Monica falecer? De aids. Aí eu continuei trabalhando, ela deixou uma casa pros filhos dela, se ela não tivesse aquela casa eu não poderia ficar com os filhos dela. Ela deixou uma casa e moro com os filhos dela. Na minha casa não mora ninguém a mais. E você conseguiu as guardas das crianças? Sim, consegui a guarda em vida pra mim. Depois de dois anos ela veio a falecer. Porque ela perdeu o tato, ela perdeu os movimentos, teve derrame, ficava na cama, usando fralda, eu cuidei dela dois anos ainda na cama. E quando ela morreu os filhos dela tinha quantos anos? A minha filha caçula ia fazer seis, hoje, ela tá com nove anos, tem três anos que ela faleceu. E os outros filhos? A Monaliza tinha treze anos, Adalberto onze anos. Eles eram todos pequenos, adolescentes. Ela deixou os filhos todos, eles faziam o que queriam. Não a pequena, porque foi criada por mim desde pequenina. O Adalberto e a Monaliza foram criados por ela. Eles faziam o que queriam, saiam para rua, entrava a hora que queria. A Monaliza amanhecia na rua, fumava cigarro quer dizer que... Onde eles moram, qual o bairro? Eu morava aqui embaixo, na avenida Iperoigs na Brasilândia, Ela (Monaliza) fala até hoje, só não engravidei porque eu sempre conversei com ela (papel de mãe) E hoje a Monaliza tem a casa dela, ela tem juízo, ela... É uma dona de casa. A Angel conheceu bem a vida da gente. Hoje graças a Deus eu consegui ensinar a eles (papel mãe) Não sabe ainda tudo que é certo, mas o Adalberto eu tirei um pouco da rua, porque estava muito na rua. Mas foi uma luta, mas graças a Deus, nunca deu..., nem um deles usa droga, bebe, nada de vicio nenhum, graças a Deus. Mas porquê... foram criados num ambiente que não tem essas coisas Quando eles faleceram, na minha casa, eles foram criados em outra vida. Ai a mãe deles faleceu, mas foi muito sofrimento. Eles iam pra rua pedir pra mãe deles (dinheiro). Ela pedia pra eles irem. Hoje eles não fazem mais isso, eles chegam em casa, tem a comida deles, tem o café, o pão, o leite, em tudo, Porque eu trabalho, não deixo faltar nada, quando é possível. Quando a mãe deles era viva, nem um Danone e hoje eles tem. Eles toma..., o que eles não tinha, eles tem hoje. Eu trabalho, se eu tenho quinze reais, eu guardo cinco e guardo dez. tenho dinheiro guardado com as roupa que eu lavo. Eu lavo muita roupa pra fora, todo dia eu lavo roupa. (Papel de trabalhador) É trinta daqui, vinte dali, cinquenta daqui, eu guardo tudo. A hora que eu preciso de uma coisa ... Pra eles não pedir pra ninguém. Meus filhos nunca foi pra rua pedir um quilo de açúcar, nem nada, a minha casa nunca falta nada pra eles, a Angel sabe. Hoje eles (Batuíra) não vão mais fazer visita porque faz muitos anos que eu venho aqui, mas eu ia me afastar do Batuíra, mas o Sr Luis falou, pode continuar vindo. (Não abandono da ONG)

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E como eles veem você? Eles falam que eu sou uma mãe que eles não teve. Pra falar a verdade, eles nem sentiram a falta da mãe deles, porque a mãe deles não era aquela mãe. Dizem que mãe é aquela que cria (identidade da mãe) Ela era aquela mãe que tirava dos filhos, ela tirava deles... Ele que trabalha na feira (Adalberto) tá com o dinheiro deles, e coloca lá, quando ele chega o dinheiro continua lá (mãe ensina valores) Ele fala, Maria Jose vou pegar meu dinheiro. Pode pegar o seu dinheiro, o dinheiro é seu. Eles te chamam de Maria José? É... As vezes..., ele já chegou a sair com quarenta reais no bolso, eu falava, Adalberto, eu quero que você dá valor em mim, porque se sua mãe tivesse viva, você não tinha esse dinheiro, porque ela pegava esse dinheiro e gastava (reconhecimento) Mas mesmo assim, ele me respeita, obedece, eles gostam de mim, principalmente a minha pequena, ela gosta de mim pra caramba. (Mãe) Ela tá com nove anos e eles não têm a doença, faço exame neles, uma vez por ano agora e é isso aí, graças a Deus. Estudam..., a Monalisa é a única que é meio doentinha, porque é a única que amamentou, a mãe dela deu mama. Mas os outros dois já foram criados na mamadeira porque sabia que ela tinha. Ela não tem a doença, mas ela tem a imunidade muita baixa. Porque a mãe dela amamentou até os três anos. Os outros não... Porque você ajuda? Ajudo, eu tiro de mim pra dar para eles. Mas essas duas crianças que você cuidou, tava com você, o que te levou a ter essa vontade de ter mais filhos? Não sei, é porque eu gosto... Você gosta de crianças? Gosto. Não gosto de ver uma criança sofrer. Eu falo credo! Eu falo pra mãe deles, nossa, você tem coragem de judiar deles? Quando eu fui entregar pra mãe deles, a mãe deles falou assim: Ah, eles vão apanhar todo dia. Eu falei assim: Caramba, credo, vai bater neles? Deus vai te castigar hein! Quando foi no outro dia ela amanheceu de cama mesmo, ruim, não aguentava nem levantar da cama. Eu falei assim, tá vendo, isso é castigo de Deus, você falou que ia bater neles. O menino mais velho tem sete anos, você falou que ia bater neles, tá vendo, amanheceu de cama. E está até hoje, eu vou na casa dela todo dia ver ela (mulher boa/solidária) Tá vendo, vai bater numa criança. Não se bate, tem que conversar com ele. Ah, não. Eles são muito rebelde. Mas então porque na minha casa eles não eram assim (duas crianças devolvidas) Vai apanhar todo dia. Tá vendo, Deus te joga na cama, você tá doente, não consegue dar um tapa neles. Tem duas semanas que eu entreguei pra mãe deles, mas eu vou ver eles todo dia. Ah, qualquer dia eu levo esses meninos embora de novo. Eu vejo eles lá jogados, tudo sujo, eu levo eles pra minha casa, dou banho, deixo eles tudo limpinho (boa mãe)

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É vizinho seu? Sim, o menino mais velho, tava com sete anos, eu dava mamadeira todo dia. Podia sair as sete horas, levar pra escola, mas a mamadeira do mais nova tava lá na cabeceira esperando até ele acordar, era só mamar. Eu tinha muito cuidado, muito... (mãe) E você teve mais irmãos Maria José? Tive, meus irmãos é tudo casado... (referência de família) E você era a mais nova? Eu era a penúltima, tinha uma irmã mais nova que hoje mora na Bahia, Vitória da Conquista. E como foi sua infância? Nossa infância de nós tudo não foi boa, porque antigamente, meus pais eram muito rígido. Se eu saísse, chegasse dez horas da noite em casa, eu apanhava com pedaço de fio de luz, não era tapinha como os filhos de hoje que fica na rua, xinga a mãe. Nos tava no portão assim, se olhasse o pai, a gente corria pra dentro de medo de apanhar. Hoje vai pros funk aí, não gosto de ficar na rua, não fui criada na rua. Eu não gosto... Depois das seis horas, não fico na rua, nem meus filhos. Gosto de casa, não fui criada na rua. Como era a vida de vocês naquela época? Era boa, a gente estudava, sempre fui estudiosa, sempre fui caseira. Não tinha dificuldades? Tinha dificuldades financeiras porque dificuldades todo mundo tem, mas tinha o que comer. E antigamente comprava aquelas bengalas, né? Minha mãe comprava aquelas bengalas e hoje em dia todo mundo joga comida fora. Pegava aquelas bengalonas, cortava um pedaço para cada um, e hoje em dia ninguém dá valore no que tem e hoje se eu passar na porta de um lixo e eu ver uma sacola de roupa, eu abro. Olha essa blusa aqui eu achei no lixo, se eu achar um monte de roupa e seja boa como essa jaqueta, se eu ver um monte eu cato e levo pra minha casa e lavo. Se não serve pra mim eu dou pra outra pessoa. Eu faço isso, eu achei essa calça no lixo, essa blusa aqui achei no lixo, levei pra minha casa, lavei, e tô usando a blusa. (Solidariedade) Nossa, tem gente que fala: nossa Maria Jose! Eu pego... toda vez que eu passo e vejo coisa boa eu levo pra minha casa e lavo. Se não serve a roupa pra mim, serve para outra pessoa (solidariedade) E por que você quer dar para outra pessoa? Ah, não sei, se não ser ne mim eu dou pros outros. Coração bom, ei lá, então, não sei acho... Alguém fala, dá pra mim? Sabe onde achei? Achei no lixo, peguei, lavei, guardei, eu tenho coração bom (identidade de boa pessoa) Todo mundo fala, nossa Maria Jose, você é tão boa! Eu dou pros outros, quando eu vejo, os outros dão pra mim. Ganho roupa, sapato, sandália nova na caixa, e é dando pros outros que a gente recebe também. Eu não sou de ficar estocando as coisas na minha casa, não serve pra mim, eu dou pra quem precisa, sou assim (identidade boa pessoa) Sou de minas, filha de mineiros. O que mais, você quer falar mais alguma coisa? Não..., mas agora eu estou tendo mais sossego, agora minha vida está mais...

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Já tô velha, estou só com meus dois filhos. O Adalberto de vez em quando dá um pouco mais de trabalho, mas nada que... As vezes ele quer se comparar com a irão dele, mas... Meus filhos não dá muito trabalho, eu vejo os filho dos outros por ai, que bebe, fuma, onde eu moro tem muita droga, muito, muito, muita... Tenho que tomar muito cuidado com eles. O Adalberto fala, Maria Jose, eu não faço essas coisas, eu gosto de ficar andando na rua de bicicleta, brincando. Ele não faz, e eu também tenho que ter confiança neles. Eu confio nele, porque ele não faz, porque quando ele entra dentro de casa, eu olho ele, cheiro as roupas dele, não tem nada disso, meus filhos soa nota dez. (identidade de mãe boa, sucesso) E assim, o que você pensa mais para a frente, você tem planos? - Ah, eu tenho, eu quero criar meus filhos. Eu não sei o que me espera, eu quero que minha filha estude, ela é muito estudiosa, tenho vontade que ela faça uma faculdade. Ela tem nove anos, tá na escola, não falta, ela sabe horas, faz trabalho de escola em casa. Ela fica sozinha na minha casa, pega a caixa de papelão, ela recorta, faz casinha, pinta com guache, ela faz um monte de coisa. Ela gosta de ficar sozinha em casa inventando as coisas. Eu quero que minha filha estuda, gosta de estudar, é muito caseira, não fica na rua. Quando ela sai, ela fala, Maria Jose, tranca a porta, leva a chave, vou ficar aqui sozinha assistindo televisão. Não me dá trabalho, não gosta de ficar na rua, não gosta. Você pensa para o futuro é isso, seus filhos estudando? Ai eu quero que eles todos estudem, mas o que eu mais acho que vai estudar vai ser a mais nova. Essa vai gostar, mas os outros... E o que mais você pensa para o futuro? Sei lá, eu penso, se eu pudesse arrumar um lugar pra cuidar de um monte de crianças, se eu pudesse... Porque eu gosto de crianças, criança gosta muito de atenção, e hoje em dia, nem todo mundo dá atenção pra criança e eu gosto, criança tem que ter paciência. Nossa, todo mundo fala, pegar a guarda de três crianças adolescentes, nesse auge dessa idade, vai ter dar trabalho. Vai nada, vai muito da gente, taí oh meus filhos. Eu gosto de crianças. Eu levo oito crianças pra escolha, todos eu recebo. Eu levo duas menininhas de manhã e à tarde eu levo mais cinco, vou pegando um por um. Vai eu e minha filha, eu pego um por um, tudo aqui no Vila Izabel, uma escola aqui em baixo. Pra chegar aqui, na hora da saída, o que mora mais perto, a minha menina de nove anos leva e dois eu levo lá em cima no Veiga, atravesso a rua, eles descem e vão pra casa deles (mãe que ensina tudo, mãe boa) E nisso eu vou sobrevivendo. Todo mês pego cinquenta de um, trinta de outro. Faço isso todo dia, deu meio dia e meio, eu largo tudo eu tô fazendo e vou levar as crianças na escola. Eles entram a uma hora, e chego em casa, vou terminar de fazer meu serviço. Quando é cinco horas, saio de casa e vou pegar eles na escola. Quando é seis horas tô chegando em casa porque entreguei a última criança e a aminha menina vai sozinha embora, ela já ensinar ela direitinho, ela vai sozinha. E o eu você faria diferente se pudesse, que se arrepende, que poderia ter feito algo? Pra falar a verdade, eu não me arrependo não, porque eu não me arrependo, a gente nunca pode se arrepender do que faz. Se eu pudesse eu gostaria de trabalhar numa escola, eu gostaria, pra ajudar a cuidar de crianças, ou numa creche, eu gostaria se eu pudesse.

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Eu gosto muito de criança, dá trabalho, mas eu tenho paciência, mas não me arrependo não de tudo que eu faço, nunca fiz nada de errado, sempre procurei ajudar os outros e nunca recebi nada em troca. (Diz que gosta, que quer ajudar, mas não recebe nada) Eu nunca recebi nada em troca, sempre ajudei as pessoas, então, não me arrependo do que eu faço. A gente nunca deve se arrepender do que faz, é isso aí. O que você tá pensando na sua via mais pra frente? É isso aí, se dedicar ao estudo de seus filhos? Encaminhar esses daí, já que estão comigo, porque eles não têm ninguém aqui com eles, só tem eu, se eu peguei a guarda é porque não tinha ninguém por eles. Porque ninguém quis investir neles. Eles têm primo aqui, mas ninguém quis eles, quis eu. Então tudo depende de mim, hoje não, hoje quase não dá mais trabalho, quase, né? Então ele vai na casa da prima dele, e eles falam: Carrega esse saco de blocos pra mim? Hoje eles chamam ele pra fazer alguma coisa, mas antigamente, eram pequenos ninguém quis eles. As prima deles não quis, ah não! Não vão ficar com ninguém. A mãe deles pediu pra eu ficar com a guarda porque não tinha ninguém pra ficar com eles. Aí nós fomos no juiz, ele deu a guarda pra mim. Achavam que eles iam dar trabalho mais tarde, mas não deu. Eu não sabia que a Monica tinha essa doença. Ela me chamou. Eu morei com as sobrinhas dela seis anos. Você acha que a sua vida foi de sofrimento ou de dificuldades? Foi de dificuldades, mas de sofrimento não, passamos muitas dificuldades, mas não chegamos a passar fome, porque só passa fome quem quer, é só correr atrás, mas depois que a mãe deles faleceu, quando ela era viva eu tinha muita dificuldade, muito sofrimento, porque tudo que eu trazia, ela vendia, né? Os armário tava sempre vazio, agora não, quando ela era viva ninguém ia na nossa casa. Quando ela faleceu não sei de onde saiu tanto parente, ao eu já tinha a guarda deles, Angel me acompanhou. Aí depois que ela faleceu eu fui pondo tudo nos eixos, mas foi um pouco triste ensinar essas crianças o que é certo e errado, depois de grandes consegui. O que você acha eu foi importante que te ensinou na sua vida? Meu pai me pôs na rua muito cedo e eu aprendi muita coisa aqui fora, foi difícil, não me arrependo, aprendi muita coisa boa (sofrimento que não é de culpa/individual) Nunca gostei de ficar com ninguém, todo mundo falava, casa de novo. Eu não, vou ficar sozinha com meus filhos (casamento) Nunca mais entrou um homem na minha casa. Tenho meus filhos, tenho que dar respeito aos meus filhos. É isso aí. Você não tem medo que eles cresçam e cada um tenha a sua família? Não penso nisso ai, a Monalisa a minha filha mais velha é muito boa pra mim, ela vem todo dia na minha casa, fez dezessete anos, não quer filhos, só quando tiver vinte anos. Ela vem todo dia na minha casa ver seu tô bem, se eu ficar doente ela vem, ela não me abandona, me respeita muito (abandono) Ela pede pro irmão: obedece a Maria Jose, anda direito porque eu tô por aqui. Ela me ajuda muito, se alguém falar de mim, ela entra na frente, me defende. Ela é como se fosse uma filha pra mim. Me trata muito bem. Meus outros filhos não foram criados por mim, foram criados por outra pessoa, mas eles também me respeitam, mas esses aqui foram criados por mim, me respeitam, principalmente os dois menores, e a Monalisa era grande, eu achei que ela nunca ia me respeita, gosta de mim, me defende, faz os meninos me respeitar (reconhecimento) Você quer falar mais alguma coisa? Não.

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Já falou o bastante? Já, a gente fala o que tem que falar. Não pode inventar, meus filhos são muito bons pra mim, os filhos que não tenho. Adoro eles, sou feliz assim mesmo, pra ter a idade que tenho, 61 anos, trabalho, tenho saúde, sei de minha obrigação, que tenho que cuidar dos meus filhos (auto cobrança) Onde moro gostam de mim, falam que eu sou trabalhadeira (reconhecimento) Tem mulher mais nova que não faz o que eu faço. Vou na casa dos ouros pego aqueles baldão trago pra casa, lavo na minha casa, seco tudo, vou levar na casa deles, cobro R$40,00, R$50,00, lavo tênis, cobertor, sobrevivo disso... Eu te agradeço, e aí quando você voltar na próxima quinzena, se faltar alguma coisa nós conversamos, ok? Obrigado. Tá certo!

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Após a entrevista com Maria José nos propomos também ouvir o

voluntário que acompanhou através de visitas, tanto ela como sua amiga, com o

intuito de trazer algum tipo de contribuição, percepção sobre a entrevista, ou até

mesmo algo sobre a amiga de Maria José. Essa entrevista aconteceu no dia 18

de outubro de 2014 nas dependências do Grupo de Estudos Batuíra. Demos o

nome de Angel a esse voluntário.

Gostaria que contasse Angel o que você sabe da história de vida de Maria José

Acompanhei por 5 ou 6 anos na visitação a casa da Monica, mãe das crianças Monalisa, Adalberto e Carolina. Nos últimos 3 anos, encontrava a Maria José em casa... Porém nosso foco na visita era a Monica, no sofrimento físico grande e na angústia: Seu questionamento sempre era o que vai acontecer com meus filhos? Pelo que lembro no início da presença da Maria José, ela ajudava com a louça e roupa, enfim nos serviços caseiros. Ela, Maria José nos contava que tinha filhas, mas já eram casadas... Quanto mais a Monica adoecia, mais a Maria José era presente. Logo a Carolina que ainda era um bebê se afeiçoou muito a ela, motivo de muitos ciúmes da Monica. A Maria José que no início apenas ajudava nos serviços domésticos, depois começou também a ajudar em relação às crianças, levando à escola, banhando e outras coisas mais Como a Monica foi ficando cada vez mais fraca, a Maria José começou também a cuidar da Monica! Com comida na boca, trocando as fraldas e tudo o mais. Ela já não levantava mais da cama Na verdade presenciamos inclusive a Monalisa trocando fraldas da mãe quando ela tinha apenas 11 anos. Não há como eu me lembrar deste fato e não me comover, era muito triste. Naquele momento a Maria José cuidava das crianças, da comida e da Monica. Até hoje me pergunto de onde ela tirava tantas forças? Para ganhar algum dinheiro, a Maria José lavava roupa nas casas das vizinhas, lembro bem disso. E depois passou também a levar crianças de outras famílias à escola, para aumentar um pouco mais a renda. Com o valor ganho ela comprava alimento, comida para a casa. Em um dos sábados de visitação, a Monica falou comigo e com o Antonio. Ela sabia que estava morrendo e não queria “deixar os filhos para o Estado”. Lembro que ninguém da família os queria. Isso foi averiguado por nós e pelo jurídico do Batuíra na época também, mas Maria José os queria! Graças a Deus! E foi assim que fomos ao conselho tutelar que agilizou tudo, devido ao perigo da morte da Monica e após uma semana o Juiz deu para a Maria José a responsabilidade da criação das crianças. Lembro que ela internalizou o papel de mãe de imediato. As crianças perderam uma mãe extremamente amorosa, mas Deus enviou outra tão amorosa quanto a de sangue.

Como você vê o trabalho de caridade e solidariedade desenvolvido pela

instituição?

O que me estimula ao trabalho e especialmente a desenvolve-lo dentro do programa Família Assistida aqui é a percepção de alguns resultados positivos nas famílias, embora esteja longe dos nossos ideais, esse resultado existe e nos estimula a continuar. Você me pergunta o que é solidariedade. Mas o que é caridade?

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Quando lembro do caso da Maria José penso que a caridade não quer recompensa, mas não há como praticá-la de verdade, se não houver o sentimento solidário na dor que afeta aquele indivíduo. Para mim não há caridade sem solidariedade, e não há como ser solidário na dor sem ser de alguma forma caridoso.

Espero de alguma forma ter ajudado você Luiz.

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TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Eu, ___________________________________________ RG ___________________,

após leitura de CARTA DE INFORMAÇÃO SOBRE A PESQUISA (acima), ciente da

utilização do conteúdo da entrevista para pesquisa científica, não restando qualquer

dúvida a respeito do que foi lido e explicado a respeito desta pesquisa, permito que a

entrevista seja gravada e transcrita, sendo garantido o sigilo dos meus dados de

identificação. Declaro estar ciente de que estou autorizado a encerrar minha participação

no trabalho a qualquer momento que julgar necessário sem sofrer qualquer tipo de

penalidade.

O presente termo é assinado em duas vias, ficando uma em seu poder.

São Paulo, ____ de _________________ de 2014

____________________________ ________________________________

Participante (Depoente) Luiz Fernando Sempionato Vieira Pinho

Pesquisador

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Termo de Consentimento

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL

NEPIM – Núcleo de Estudos e Pesquisa em Identidade

CARTA DE INFORMAÇÃO SOBRE A PESQUISA

O presente trabalho de doutorado, cuja finalidade é compreender a história de vida e

construção identitária do sujeito que passou pela experiência de sofrimento, dando-lhe a

vivência a partir do sintagma identidade-metamorfose- emancipação, tem como autor:

Luiz Fernando Sempionato Vieira Pinho e como orientador o Prof. Dr. Antônio da Costa

Ciampa.

As entrevistas serão gravadas (áudio) a fim promover com maior fidedignidade a

transcrição das narrativas. O compromisso deste pesquisador em relação ao uso deste

material colhido é:

1. Sua voz não será, em hipótese alguma, utilizada em qualquer meio de

comunicação;

2. Todas as informações colhidas serão utilizadas somente para fins desta pesquisa,

como apoio para a discussão do tema Identidade.

3. A identidade do entrevistado será mantida no anonimato.

4. A análise dos dados obtidos através das narrativas ficara disponível para todos os

sujeitos participantes.

O senhor (a) é livre para concordar, discordar, se recusar a responder itens específicos ou

questões durante a entrevista. Em caso de desistência da participação nesta pesquisa, não

será implicada nenhuma penalidade. Sinta-se à vontade para pedir explicações ou

esclarecimentos a qualquer momento durante a pesquisa. Desde já, me coloco à

disposição para quaisquer esclarecimentos pelo e-mail: [email protected] ou pelo

telefone: (11) 959666682.