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Página | 23 Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 02, nº 05, 2015, pp. 23-38, ISSN 2318-9614 As grandes teorias linguísticas: revisão teórica - I Fábio Macedo Simas Resumo: O propósito deste artigo é analisar as diversas escolas teóricas que permeiam o universo da linguística como ciência da linguagem. A presente abordagem contemplou as correntes teóricas conforme o processo histórico que delineou o papel de cada uma no cenário científico. Ressalta-se, portanto, o registro de que a linguística tem sua origem na filosofia grega e no remoto pensamento indiano, que será explicado nas linhas abaixo. Palavras-chave: Linguística. Linguagem. Filologia. Saussure. Schlegel. Abstract: The purpose of this article is to analyze the different theoretical schools that permeate the universe of linguistics as a science of language. This approach included the theoretical currents as the historical process that outlined the role of each one in the scientific field. It is noteworthy, therefore, the record that the language has its origin in Greek philosophy and in the remote Indian thought, which will be explained in the lines below. Keywords: Linguistics. Language. Philology. Saussure. Schlegel. I - A noção de ciência e a linguística como ciência interdisciplinar Conforme Guimarães & Orlandi (2006), dois termos devem nortear, num primeiro plano, o processo do conhecimento via ciência: tradição e inovação. A distinção entre ambos deve ser clara e consciente a fim de saber o que já foi produzido dentro de determinado domínio científico e, consequentemente, identificar o que pode ser dado novo para a reflexão. Faz-se relevante conhecer e reconhecer quais as teorias estão em voga, as que já estiveram, quais os possíveis pontos de contato entre elas, seus procedimentos, métodos, abordagens etc. “Em outras palavras, precisamos construir para nós um saber caracterizado por ser um conhecimento produzido por outros e que nós de algum modo adquirimos, constituindo uma espécie de arquivo do conhecimento científico, do discurso da ciência.” (GUIMARÃES e ORLANDI, 2006, p. 125) Essa “erudição mínima necessária” parece ser condição sine qua nom para que alguém possa estudar determinado campo do conhecimento. Por isso, procurar-se-á revelar neste artigo, os pressupostos teóricos básicos das teorias linguísticas aqui abordadas, haja vista a escassez de espaço e tempo para relatar pormenores, não menos importantes, de cada escola linguística. Os mesmos autores afirmam ainda que, dentro do campo dos estudos da linguagem, deve-se saber que as teorias defendidas são basicamente cognitivas têm

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Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 02, nº 05, 2015, pp. 23-38, ISSN 2318-9614

As grandes teorias linguísticas: revisão teórica - I

Fábio Macedo Simas

Resumo: O propósito deste artigo é analisar as diversas escolas teóricas que permeiam

o universo da linguística como ciência da linguagem. A presente abordagem

contemplou as correntes teóricas conforme o processo histórico que delineou o papel de

cada uma no cenário científico. Ressalta-se, portanto, o registro de que a linguística tem

sua origem na filosofia grega e no remoto pensamento indiano, que será explicado nas

linhas abaixo.

Palavras-chave: Linguística. Linguagem. Filologia. Saussure. Schlegel.

Abstract: The purpose of this article is to analyze the different theoretical schools that

permeate the universe of linguistics as a science of language. This approach included

the theoretical currents as the historical process that outlined the role of each one in the

scientific field. It is noteworthy, therefore, the record that the language has its origin in

Greek philosophy and in the remote Indian thought, which will be explained in the lines

below.

Keywords: Linguistics. Language. Philology. Saussure. Schlegel.

I - A noção de ciência e a linguística como ciência interdisciplinar

Conforme Guimarães & Orlandi (2006), dois termos devem nortear, num

primeiro plano, o processo do conhecimento via ciência: tradição e inovação. A

distinção entre ambos deve ser clara e consciente a fim de saber o que já foi produzido

dentro de determinado domínio científico e, consequentemente, identificar o que pode

ser dado novo para a reflexão. Faz-se relevante conhecer e reconhecer quais as teorias

estão em voga, as que já estiveram, quais os possíveis pontos de contato entre elas, seus

procedimentos, métodos, abordagens etc. “Em outras palavras, precisamos construir

para nós um saber caracterizado por ser um conhecimento produzido por outros e que

nós de algum modo adquirimos, constituindo uma espécie de arquivo do conhecimento

científico, do discurso da ciência.” (GUIMARÃES e ORLANDI, 2006, p. 125) Essa

“erudição mínima necessária” parece ser condição sine qua nom para que alguém possa

estudar determinado campo do conhecimento. Por isso, procurar-se-á revelar neste

artigo, os pressupostos teóricos básicos das teorias linguísticas aqui abordadas, haja

vista a escassez de espaço e tempo para relatar pormenores, não menos importantes, de

cada escola linguística.

Os mesmos autores afirmam ainda que, dentro do campo dos estudos da

linguagem, deve-se saber que as teorias defendidas são basicamente cognitivas – têm

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como objeto as estruturas mentais -, empíricas – os produtos linguísticos resultantes da

prática das línguas constituem seu objeto - ou materialistas – têm por objeto o

funcionamento simbólico tomado na sua historicidade. Além disso, há a possibilidade

de reconhecer a existência de estudos comparativos entre países que falam a mesma

língua, como Brasil e Portugal, entre outros importantes estudos já produzidos no amplo

domínio das ciências da linguagem.

Por outro lado, não se deve contentar-se apenas com o que já se conhece, mas

produzir conhecimentos e pesquisas novos. Todavia, parece difícil produzir algo novo

sem conhecer um mínimo do que já foi produzido. Para tal, o estudioso precisa

posicionar-se de forma clara e coerente dentro de dada teoria, a fim de realizar um

recorte da mesma para que sua pesquisa seja reconhecida e validada pela comunidade

científica. Deve-se percorrer um longo caminho que vai da supracitada erudição mínima

àquilo que é descoberto por novidade. Entretanto, não se deve esquecer de que é

fundamental delimitar a(s) teoria(s) dentro de um trabalho de pesquisa a fim de

questionar, descrever e analisar.

Outro fator importante na pesquisa científica é levar em consideração os estudos

que de certa forma contribuíram para o desenvolvimento de determinado campo do

conhecimento. Os linguistas supracitados afirmam que levar em conta não significa

necessariamente concordar, mas também discutir e discordar.

Outrossim, fazer ciência envolve conhecer o que já foi produzido a fim de

embasar e solidificar aquilo que se descobre por meio de novas pesquisas fruto de

descrições, análises, reflexões, conclusões etc. Isso pode ser feito a partir de um

investimento individual em uma(s) determinada(s) teoria(s) ou por convivência com

grupos de pesquisa ou pessoas envolvidas no assunto.

II - Estudos pré-linguísticos; tradições e inovações na ciência da linguagem

Apesar de ter seu nascimento cronologicamente marcado no século XVIII, a

linguística existe desde quando existe o interesse pela questão da linguagem. Assim,

desde a Antiguidade filósofos, sábios ou gramáticos estudam, principalmente, a questão

da significação ou das formas das palavras. Isso se refere tanto aos filósofos gregos

como aos sábios hindus. Platão, por exemplo, criou a primeira classificação das palavras

em nomes e verbos, já Aristóteles estabeleceu a nomenclatura de nomes, verbos e

partículas.

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Outras disciplinas, ou artes, ou técnicas, de prestígio na época eram a gramática

e a retórica. A primeira destina-se à preocupação com a correção, com o uso regular e

acurado das línguas. Já a segunda, ocupa-se com a questão do convencimento por meio

da oratória.

Estamos diante de duas posições distintas: de um lado uma norma de

correção (gramática), de outro as regras de como proceder para

convencer, para alcançar o ouvinte (retórica). De um lado o “valor” da

língua, de outro a adequação da relação orador/auditório.

(GUIMARÃES & ORLANDI, 2006, p.146)

Os já citados hindus preocuparam-se em estudar aspectos fonológicos do

sânscrito a fim de obter um modo perfeito de pronunciar as palavras em seus cânticos

sagrados. Dessa forma, acreditava-se que teriam validade sagrada se as palavras fossem

pronunciadas “corretamente”. Era a religiosidade motivando os estudos linguísticos.

Todas essas motivações até então citadas constituem uma espécie de embrião

para os estudos da linguagem. Desde que o homem entende-se “refém” da linguagem

para a comunicação, há a preocupação em estudá-la, seja para descrever, seja para

conhecer ou regular. Pode-se dizer que o homem nunca esteve alheio às questões

linguísticas. No mundo cristão, por exemplo, tudo começou por meio da palavra: “Disse

Deus...” Precisou haver um comando verbal para que tudo passasse a existir. Os

cânticos religiosos, seja em que religião for, são por meio da linguagem. Em outras

palavras, desde a comunicação interpessoal, até a comunicação com o divino, utiliza-se

a linguagem. O homem não vive sem ela, pois assim não interagiria, não trocaria

experiências ou até morreria solitário.

As preocupações filológicas dão início aos estudos históricos, uma vez que a

filologia preocupa-se com a mudança das línguas na linha temporal através do estudo de

textos antigos, em sua maioria literários. Isso só se torna possível a partir do momento

em que determinadas sociedades consideram seus textos escritos preciosos documentos

linguísticos e históricos. Evidentemente, esse tipo de trabalho não pode ser efetuado em

sociedades ágrafas, que são dignas de outros métodos de estudo.

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III – As escolas teóricas da Linguística no processo histórico

1 – A abordagem histórico-comparativa e o programa dos neogramáticos

A partir do século XVIII, percebe-se que as línguas possuem pontos de contato,

semelhanças. Apesar de reconhecidamente iniciado o movimento em 1808, devido à

publicação de F. Schlegel, na Alemanha, de texto sobre a língua dos hindus, William

Jones publicara, em 1786, na Índia, texto indicando semelhanças entre o sânscrito, o

latim e o grego, iniciando assim o método comparativo. Schlegel, além das semelhanças

apontadas por Jones, versou sobre o germânico e o persa por meio de estudos não só das

raízes lexicais bem como das semelhanças das estruturas gramaticais.

Todavia, Franz Bopp foi quem mais criteriosamente estudou a semelhança entre

essas línguas. Em 1816, publicou livro no qual, por meio da morfologia verbal,

demonstrou correspondências sistemáticas entre elas. Nas décadas seguintes, Bopp

inclui em seu estudo outras línguas, tais como o lituano, o eslavo, o armênio, o celta e o

albanês criando, posteriormente, uma gramática comparativa de todas as línguas

estudadas por ele. Essa obra é considerada pioneira nos estudos histórico-comparativos.

Em consequência da criação do método comparativo, notou-se que havia

correspondências sistemáticas e não aleatórias em termos de estrutura gramatical.

Depois de estabelecido o parentesco entre as línguas, Jacob Grimm foi além com a

marcação da passagem de um estágio anterior ao outro no percurso histórico. Destarte,

Grimm utilizou-se de interpretações de correspondências fonéticas sistemáticas entre as

línguas como resultado das mudanças cronológicas. A partir das reflexões de Grimm,

pôde-se denominar o método histórico-comparativo, e não mais comparativo, tão

somente. Esse estudioso obteve dados de catorze séculos, o que lhe permitiu estabelecer

uma sucessão histórica das formas em estudo.

A linguística que adentrou o século XIX foi extremamente valiosa no que tange

aos estudos da comparação, ratificando assim a questão da mudança e do parentesco

entre as línguas. Além dos supracitados autores, diversos outros foram importantes na

construção dessa ciência. Por exemplo, Rasmus Rask, paralelamente a Bopp, trabalhou

com as línguas nórdicas e tornou-se pouco conhecido devido ao atraso de sua

publicação e à língua em que foi publicada sua obra (dinamarquês). Já o alemão

Friedrich Diez inicia os estudos filológicos das línguas românicas e seu trabalho torna-

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se mais abrangente pelo fato das línguas românicas deterem maior número de

documentos antigos escritos em latim, a então língua dos povos romanos.

Por sua vez, Augusto Schleicher orientou seus estudos por uma visão naturalista

baseado no evolucionismo de Darwin. A língua passa a ser vista como um organismo

vivo, com existência própria fora de seus usuários, “sendo sua história vista como uma

“história natural”, isto é, como um fluxo que se realiza por força dos princípios

invariáveis e idênticos às leis da natureza” (FARACO, 1991, p.87). Há várias

contribuições comuns a todos esses estudos. Uma delas é aquela que consolida o que se

denomina tronco indo-europeu e que ficou mais consolidada através dos estudos de

Schleicher que propunha a divisão das línguas em ramos até chegar a uma única língua.

Entretanto, apesar de ver a língua como organismo vivo, esse estudioso não leva em

conta as variações dialetais, nem as influências que uma língua exerce sobre a outra.

A partir da segunda metade do século XIX, surge o movimento dos

neogramáticos, desde a publicação, em 1978, das “Investigações morfológicas”, revista

fundada por Hermann Osthoff e Karl Brugmann. Essa publicação é considerada o

manifesto neogramático e critica a visão naturalista da língua. Sua concepção de língua

é de orientação psicológica subjetivista, e a reconhece como ligada ao falante. Assim,

uma nova orientação surge no postulado da mudança linguística, fato que ilustra a

questão do surgimento de uma teoria em detrimento às críticas e oposições a um

postulado anterior. Uma outra crítica era a de que o alvo do pesquisador não devia ser o

de chegar à língua original indo-europeia, mas investigar os mecanismos de mudança e

assim criar uma teoria da mudança.

Os dois autores criticavam ainda o fato de antecessores considerarem

irregularidades fonéticas como exceções fortuitas e casuais. Afirmavam que, se assim

fosse, as línguas não seriam passíveis de estudo científico. Logo, instituiu-se o princípio

de que as mudanças sonoras eram absolutamente regulares, ou seja, afetavam a mesma

unidade fônica em todas as suas ocorrências, não admitindo exceções. Se houvesse

exceções, uma das seguintes razões era considerada: ou a mudança ainda não havia sido

efetiva como processo regular, ou a regularidade da mudança havia sido afetada pelo

processo da analogia por força dos paradigmas gramaticais da língua. Em outras

palavras, o processo de analogia consistia na interferência do plano gramatical no plano

fônico.

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O estudo diacrônico dos neogramáticos contou com outra obra considerada

referência, o manual do alemão Hermann Paul (1846-1921), publicado em 1880. Tal

autor negava a existência de outra linguística que não fosse histórica e propunha que a

teoria linguística havia de se aplicar a todas as línguas. Assim como outros linguistas,

Paul acreditava que os fatores que provocavam a mudança das línguas ocorriam por

razões psíquicas e físicas e eram determinantes dos objetos culturais de maneira geral,

tal como a língua. Dessa forma, existe certo ponto de contato com o gerativismo de

Chomsky, pois o caráter subjetivo da teorização de Paul colabora para uma análise de

que a mudança se dava por meio dos indivíduos, principalmente no processo de

aquisição da língua (FARACO, 1991, pp. 92-93). Parece difícil aceitar tal tese, pelos

simples fato de que a língua se constrói ao longo de sua história pelos falantes em

contato entre eles, inseridos em diversas situações.

O rigor metodológico introduzido pelos neogramáticos foi fundamental para a

solidificação da linguística como ciência. No entanto, a rigidez das leis fonéticas,

princípio absoluto, ou seja, teria que ser aplicado a todas as palavras sem exceção, foi

relativizado por consequência dos trabalhos de Hermann Paul e outros. De acordo com

Faraco, “passou-se a entender a “lei fonética” não como um princípio categórico, mas

como uma fórmula de correspondência entre sistemas fonéticos sucessivos duma

mesma língua nos diversos períodos de sua existência.”(FARACO, 1997, p.93). Apesar

disso, estudos empíricos mostraram que uma unidade sonora pode mudar de maneira

diferente de um vocábulo para outro. Em outras palavras, o processo de mudança é

lento, progressivo e diferenciado, conforme as condições de uso. A mudança não é

casual nem fortuita.

2 – O estruturalismo – de Saussure a Mattoso Câmara

No entanto, foi com Ferdinand de Saussure que a linguística adquire status

científico, definitivamente, por meio do advento do estruturalismo. A ruptura de

paradigmas feita por Saussure perdura até os dias de hoje. Dificilmente se encontram

estudos científicos dentro do campo da linguagem, e até fora dele, que não citem,

critiquem, releiam ou bebam nas fontes saussurianas.

A primeira ruptura realizada pelo ilustre linguista foi considerar a língua como

sistema abstrato, i.e., não se levará em conta a situação de produção nem os falantes

(Saussure chama de “parole” a fala), em oposição à visão subjetiva trazida pelos últimos

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neogramáticos. Outro aspecto relevante é o fato de propor uma abordagem descritiva,

sistemática e não histórica da ciência linguística. Passa-se de uma visão naturalista,

diacrônica, à noção de estrutura, sincrônica. Se a língua constitui sistema abstrato, as

forças exteriores não atuam sobre ela e o sujeito psicológico é desconstruído, o que nos

confirma Gadet (1996) apud Paveau e Sarfati (2006, p. 252), Saussure mostra:

Que o homem não é senhor de sua língua. Ao questionar as evidências

gramaticais e a maneira pela qual elas funcionam para o sujeito

falante, Saussure contribuiu para tirar a reflexão sobre a linguagem

das evidências empíricas; ao estudar a língua como objeto abstrato,

um sistema cujas forças são exteriores ao mesmo tempo ao indivíduo

e à realidade física, a teoria saussuriana produziu um efeito de

desconstrução do sujeito psicológico livre e consciente que reinava na

reflexão da filosofia e das ciências humanas nascentes, no final do

século XIX.

A linguística moderna considera o Curso de Linguística Geral (CLG), publicado

em 1916, segundo notas de alunos que frequentaram cursos de Saussure entre 1906 e

1911, sua obra fundadora. Ousa-se a dizer que não há linguística moderna fora do CLG,

pois a grande maioria dos estudos pós saussureanos, invariavelmente, referem-se a tal

obra. Paveau e Sarfati (2006, p.63), falam em “corte epistemológico” radical na maneira

de considerar os fatos da linguagem. Após concluir as tarefas da linguística, que serão

(SAUSSURE, 1985, p.13):

a) fazer a descrição e a história de todas as línguas que puder

abranger, o que quer dizer: fazer a história das famílias de línguas e

reconstruir, na medida do possível, as línguas mães de cada família;

procurar as forças que estão em jogo, de modo permanente e

universal, em todas as línguas e deduzir as leis gerais às quais se

possam referir todos os fenômenos peculiares da história; delimitar-se

e definir-se a si própria.

O linguista afirma que o objeto da linguística resulta da construção de um ponto

de vista e não existe antecipadamente tal qual nas ciências exatas, como na famosa

expressão: “não é o objeto que precede o ponto de vista, diríamos que o ponto de vista

que cria o objeto”(SAUSSURE, op. cit.,p.15). Isso quer dizer que o objeto da ciência

linguística será a língua, o sistema abstrato, e não a linguagem, que é uma faculdade

humana em atividade constante. Destarte, “os fatos de linguagem não são exteriores à

experiência humana, mas fazem parte dela, são mesmo o seu produto, porque a

linguagem é uma atividade do homem.”(PAVEAU & SARFATI, 2006, p.66)

Com a publicação do CLG, além de firmar a linguística como ciência e definir

seus objetos, Saussure premia a ciência da linguagem com aparato teórico consistente e

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relevante até o presente século. Questões como língua x fala, sincronia x diacronia, a

noção de signo linguístico, a arbitrariedade desse signo, a própria noção de sistema,

paradigma x sintagma, permitiram – e ainda permitem – discussões e colaborações no

campo em questão. Dessa forma, vejamos um breve resumo da teoria saussuriana:

A língua consiste em sistema abstrato, coletivo, oposto à fala que é individual. A

primeira é um fato social enquanto a segunda é um fato individual. Pessoas que falam a

mesma língua comunicam-se porque a compartilham, apesar de “falas” diferentes.

Diante disso, somente a língua pode servir de objeto para a linguística e ser passível de

abstração e sistematização. Considerar a fala é levar em conta aspectos exteriores à

língua, tais como os falantes, o meio social, os problemas físicos e psíquicos dos

falantes etc. Tal tarefa tem sido desempenhada pelas linguísticas enunciativas, as quais

serão abordadas a posteriori.

A noção de sistema está inteiramente ligada à dicotomia língua/fala. De acordo

com Pietroforte (2006, p.82), “pode-se definir um sistema como um conjunto

organizado em que um elemento se define pelos outros.” Assim, a língua é o sistema

cujos elementos organizados são os signos. A fala, por sua vez, não permite tal

ordenação por ser individual e depender de fatores externos, como já exposto.

Para Saussure, os signos não são rótulos que as coisas reais do mundo recebem,

mas a união de um conceito (significado) a uma imagem acústica (significante) cujo

resultado é o signo linguístico. Fiorin (2006, p. 58), de maneira clara, discorre sobre o

fato:

Não existe significante sem significado; nem significado sem

significante, pois o significante sempre evoca um significado,

enquanto o significado não existe fora dos sons que o veiculam. A

imagem acústica /gatu/ não evoca um gato particular, mas a idéia

geral de gato, que tem um valor classificatório. Na criação desse

conceito, a língua não leva em conta as diferentes raças, os tamanhos

diversos, as cores várias etc. Faz abstração das características

particulares de cada gato, para instaurar a categoria de /felinidade/. O

significado não é a realidade que ele designa, mas a sua representação.

É o que quem emprega o signo entende por ele.

O significante assume um papel de veiculador do significado, e a única maneira

de determinado significado ser representado na realidade é por meio de um significante,

uma imagem acústica no caso saussuriano. Logo, a existência de ambos presume total

reciprocidade. Todavia, essa imagem acústica não é tão somente um som material,

físico, mas uma impressão psíquica dele materializada e reprodutora de sentido.

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Resumindo, o signo linguístico é uma entidade psíquica que combina dois lados ou

faces: o significado e o significante (SAUSSURE, 1985, p.80).

Por conseguinte, no CLG, percebe-se a arbitrariedade do signo, ou seja, isso

quer dizer que ele não é motivado, não há relação que possa ser estabelecida entre o

som e o sentido. Isso pode ser percebido na comparação entre as línguas, pois diferentes

signos, que designam um mesmo significado, possuem sons completamente diferentes e

que nada lembram seu significado. Por exemplo, bed, que no inglês significa cama,

nada tem a ver com cama do português e assim por diante. Entretanto, a arbitrariedade

do signo tem sido contestada principalmente por alguns funcionalistas que afirmam

exatamente o oposto, que toda mudança é motivada. A teoria funcionalista será

abordada mais adiante.

Por meio de um contrato social, os participantes de uma mesma comunidade

linguística estabelecem convenções, o que colabora com a arbitrariedade do signo

linguístico. Tomando a supracitada palavra cama como exemplo, ela significa “móvel

em que se dorme ou repousa” porque se convencionou assim no seio da comunidade.

Mas o próprio Saussure afirma que “o signo pode ser relativamente motivado”

(SAUSSURE, 1985, p.152). Certos signos, como cama, são totalmente arbitrários por

não haver motivação entre o significado e seu significante, mas outros podem ser

relativamente arbitrários, como os substantivos compostos que existem em razão dos

signos que os compõem. O exemplo do próprio linguista é o número dezenove que faz

lembrar o número dez e o nove, simultaneamente.

Entretanto, os estudos diacrônicos realizados, principalmente pelos adeptos da

linguística histórico-comparativa, mostram o parentesco entre as línguas por meio de

semelhanças fonológicas e até morfológicas. É o caso de pater (latim), patér (grego) e

pitar (sânscrito), as três palavras significam pai. Saussure então faz emergir outra

dicotomia: sincronia x diacronia.

À linguística que se detém nos estudos das mudanças que ocorrem nas línguas

através do tempo, Saussure chama de diacrônica. Àquela que vê a língua como sistema

onde um elemento se define pelos demais, chama de sincrônica. Um estudo sincrônico

deve isolar um determinado estado da língua para que, por meio de abstrações, ela seja

estudada como um sistema de signos.

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A proposta do linguista não é recusar o estudo diacrônico. Ele próprio é fruto de

uma geração preocupada com o estudo da mudança e do parentesco entre as línguas. O

que Saussure propõe é que se faça um recorte temporal, o que não diminui a

importância dos estudos diacrônicos, apenas surge uma outra possibilidade de se estudar

as questões relativas às línguas.

Para melhor assinalar essa posição, porém, e esse cruzamento das

duas ordens de fenômenos relativos ao mesmo objeto, preferimos falar

de Linguística sincrônica e de Linguística diacrônica. É sincrônico

tudo quanto se relacione com o aspecto estático da nossa ciência,

diacrônico tudo o que diz respeito às evoluções. Do mesmo modo,

sincronia e diacronia designarão respectivamente um estado de língua

e uma fase de evolução. (op. cit., p. 96).

A coerência da teoria de Saussure reside no fato de deixar bastante claro que a

língua é um sistema abstrato e não é afetado por forças externas. Além do mais, o

linguista só trabalhou com a linguagem verbal, pois, em outras linguagens, percebe-se

que a relação entre o significante e o significado, por exemplo, é totalmente motivada,

haja vista as linguagens visuais. Ainda em relação à distinção entre significante e

significado, Coseriu (2004, p.4) afirma não ser esta ideia original de Saussure. Segundo

o estudioso romeno, tal distinção já constava no “De interpretatione de Aristóteles, que

distingue o que está na voz [...] daquilo que está na alma”

Para Saussure, as relações entre os elementos da língua podem ser efetuadas

dentro de dois eixos: o paradigmático e o sintagmático. O primeiro diz respeito ao que

se chama de eixo das seleções, enquanto o segundo refere-se ao eixo das combinações.

Daí a dicotomia sintagma x paradigma. Devido à impossibilidade da ocorrência

simultânea de dois signos na cadeia da fala, o linguista afirma haver um encadeamento

entre os signos, uma combinação. Essas relações de combinação baseadas no caráter

linear da língua chamam-se relações sintagmáticas. Alem dessas relações

combinatórias, há relações de seleção dos elementos combinados, ou seja, dentro de

determinado paradigma. Discorre Pietroforte (2006, p.88):

Apresentando algo em comum, um signo pode ser associado a outros

signos por, pelo menos, três modos: por meio de seu significado, com

seus antônimos e sinônimos; por meio de seu significante, com

imagens acústicas semelhantes; e por meio de outros signos, em

processos morfológicos comuns.

Defendendo a tese fundamental da descrição linguística, o estruturalismo surge

como corrente que predominou durante várias décadas dentro do campo dos estudos da

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linguagem, utilizando-se de processos de segmentação dos elementos linguísticos até

chegar aos constituintes mínimos (morfemas e fonemas) a fim de realizar análises e

classificações. No estudo da “langue”, levar-se-á em consideração a primazia da fala

sobre a escrita e do sincrônico sobre o diacrônico devido à sistematização abstrata

requerida da língua e ao desejo de descrição. Dessa forma, exclui-se o uso social da

língua, pois assim não caberiam abstrações. Vale ressaltar que o estruturalismo oriundo

de Saussure é ideologicamente compatível com a teoria behaviorista do comportamento.

Apesar de ainda colherem-se frutos da herança estruturalista até os dias de hoje,

em diversas teorias, novas e velhas, como já aqui exposto, algumas críticas têm sido

levantadas, tais como o uso de conjunto finito de enunciados como corpus; visão

taxionômica, i.e., visando tão somente à descrição e à classificação dos elementos;

descarta a variação natural da língua por meio de abstração; exclui o uso social e

individual da língua, a “parole”; não considera a polissemia dos enunciados, limitando-

se ao sentido literal e excluindo questões como a ambiguidade. Mesmo assim, parece

pouco provável descartar o papel fundamental da teoria original dos estudos

saussureanos. Só a partir deles que a linguística ganhou status de ciência autônoma, por

empregar critérios mais objetivos e explícitos para identificação e classificação das

unidades. Além do mais, foi Saussure quem primeiro precisou a utilização de um corpus

para executar a análise linguística.

Por fim, apesar de tão contestada, não se pode deixa de salientar a definição de

língua como sistema. A partir da contestação de tal definição é que várias teorias

emergiram, e.g., as teorias enunciativas e funcionalistas que consideram, com alguma

variação, a língua como instrumento de comunicação, logo a fala – parole – não tem

como ausentar-se da análise do linguista.

O estruturalismo de Saussure, por ter estabelecido quebra de paradigmas, como

já abordado, tornou-se teoria de grande valor no meio científico vigente por ter

colaborado com um programa de investigação que revolucionou a maneira de se

construir a análise linguística. Não se publicaram análises descritivas feitas por

Saussure, mas seu programa teórico é tão amplo e coerente, que dificilmente encontrar-

se-á estudo que não faça referência à axiomática saussuriana.

Assim, diversos estudos e publicações receberam o nome de “estruturalistas”

apesar de divergirem bastante do estruturalismo original do linguista de Genebra. Quais

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são então as linguísticas estruturais? Em resposta a essa pergunta, declara Ilari (2007,

pp. 67 e 68):

A frequência com que os autores incluíram o adjetivo estrutural em

seus títulos, a partir de um certo momento, deixa praticamente de nos

informar sobre o conteúdo das obras, e apenas mostra que o

estruturalismo estava em alta, e que o qualificativo estrutural ajudava

a promover a obra.

Como em qualquer campo da ciência, algumas linhas de investigação surgem

para dialogarem sobre um mesmo objeto sob diversas perspectivas, ou simplesmente

para alargar suas fronteiras. Tradicionalmente, recebem o nome de “estruturais” ou

“estruturalistas”, os estudos que mantêm determinadas orientações oriundas de

Saussure, como, por exemplo, o recorte sincrônico da língua, prioridade de análise do

sistema, entre outras. Mais uma vez, Ilari (op. cit.,pp.68 e 69):

Há um consenso antigo em reconhecer como estruturais: (1) a escola

que atuou entre as duas guerras mundiais em Praga, (2) a glossemática

de Hjelmslev, (3) o funcionalismo de Martinet. Por outro lado, (4)

Roman Jakobson, a cuja obra linguística não corresponde o nome de

uma escola, foi, provavelmente, o autor que mais fez pelo

estruturalismo, em sua vida longa e produtiva, vivida em dois

continentes. Todas essas orientações enriqueceram o projeto

saussuriano com reflexões e análises originais.

Além dessas citações de Ilari, vale salientar o estruturalismo norte-americano e

seus diversos autores, tais como Bloomfield e Sapir, e os desdobramentos de Joaquim

Mattoso Câmara Jr., no Brasil. Vejamos, resumidamente, devido ao espaço, um pouco

sobre cada um desses recortes.

3 – A Escola Linguística de Praga

Desenvolveu-se durante as duas grandes guerras mundiais, e contou com a

participação de autores influentes, tais com André Martinet, fundador do funcionalismo,

Troubetzkoy, com seus importantes estudos sobre fonologia, Roman Jakobson,

responsável pela redação das Teses do Círculo Linguístico de Praga, entre outros.

Baseados em Saussure e influenciados pelo psicólogo vienense Karl Buhler – quem

primeiro discorreu sobre as funções da linguagem – esses autores também marcaram

época nos estudos linguísticos do século XX.

Dentre outros relevantes estudos realizados pela ELP, uma das contribuições

mais importantes é a que diz respeito à noção de comunicação. Enquanto Saussure

acreditava que a comunicação se dava por meio do pleno controle sobre os elementos

dos signos linguísticos por parte dos falantes, os autores da ELP colaboram com uma

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concepção mais dinâmica, quando afirmam haver a necessidade de considerar o

processo de interpretação, ou o que acontece quando se interpreta determinado signo ou

sentença. De acordo com esses linguistas, a comunicação afeta dinamicamente nossos

conhecimentos e nossa consciência das situações. Assim, Mathesius, outro grande nome

da ELP, chegou à conclusão de que os enunciados possuem uma parte tipicamente

menos dinâmica – o tema – e outra mais dinâmica – o rema. Hodiernamente, há outros

termos, tais como figura e fundo, informação velha e informação nova etc (ILARI,

2007, p. 69).

Por sua vez, a concepção de língua começa a ser lapidada ao ser acrescida de

novas perspectivas. A definição saussuriana de língua como sistema abstrato começa,

aos poucos, a ser substituída por outra que considera a língua como instrumento de

comunicação entre os falantes de determinada comunidade linguística. Tanto que

diversos autores, a partir da ELP e influenciados pelo supracitado Buhler, começam a

discutir as funções da linguagem. Dois grandes exemplos são M. A. K. Halliday1 e o

próprio Roman Jakobson, cujo estudo adquiriu mais fama no Brasil.

Da mesma forma que Saussure revolucionou os estudos linguísticos, pode-se

afirmar que a ELP, além de tipificar a revolução saussuriana, serviu para alargar ainda

mais as fronteiras da linguística. Diversos estudos e teorias surgiram a partir da escola

praguense, tais como a glossemática e o próprio funcionalismo, tão difundido

atualmente.

4 – O Funcionalismo de André Martinet

Preferiu-se denominar o título desta seção associando o termo funcionalismo ao

seu mentor, pois aquilo que se entende por funcionalismo na linguística atual parece-nos

diferir até certo ponto daquilo que vamos por agora tratar. Alguns autores preferem

ainda englobar os estudos de Martinet, Jakobson e Halliday numa escola chamada de

“funcionalista” ou de “estruturalismos funcionais”, o que não será feito neste trabalho

por razão de simples escolha.

Apesar de estruturalista, Martinet já compartilha da noção de língua, ou ao

menos da de fala, como instrumento de comunicação. Além do mais, foi ele que cogitou

a tese da dupla articulação da linguagem. Em outras palavras, ele afirma existir nas

1 O estudo sobre as funções da linguagem efetuado por Halliday, além das reflexões sobre coesão e

coerência, pode ser encontrado em sua famosa obra Cohesion in English (1976) em coautoria com R.

Hasan.

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unidades da língua uma parte passível de segmentação em partes menores dotadas de

significação e matéria fônica. A menor delas são os morfemas, que constituem a

primeira articulação da linguagem. Já a segunda articulação da linguagem é aquela que

diz respeito aos fonemas, que não possuem significação mas podem distingui-los, tais

quais os fonemas /p/ e /b/ em pata e bata, respectivamente. Separadamente, ambos não

possuem função, mas são responsáveis por distinguirem signos diversos

(PIETROFORTE, 2006, p.91-92). A dupla articulação da linguagem é um fator de

economia linguística, o que será estudado pelos funcionalistas mais modernos.

Além disso, Martinet foi responsável por estudos de fonologia diacrônica

mostrando a evolução fonológica de um dialeto românico da região dos Alpes franceses,

e percebeu que essa evolução é baseada no princípio da economia. Segundo esse

princípio, os fonemas sofrem uma pressão na assimilação de fonemas vizinhos, o que

leva ao desgaste de algumas oposições fonológicas (ILARI, 2004p. 72-73).

No final de sua vida, Martinet também se dedicou a estudos de descrição

sintática tentando aplicar os métodos saussurianos antes usados em descrições

fonológicas. Deve-se também a Martinet a noção de função e de rendimento funcional.

5 – Roman Jakobson

Dono de vasta obra, Jakobson produziu diversos estudos no campo da fonologia

influenciado não só por seu colega Troubetzkoy, mas também por Saussure. Seus

trabalhos auxiliaram a ciência nos estudos da afasia no processo de aquisição da

linguagem, e na poética. Não se pode deixar de citar sua famosa nomenclatura das

funções da linguagem, herança funcionalista, em que se definem as funções fática,

conativa ou apelativa, metalinguística, informativa ou referencial, poética e expressiva.

Esse quadro tornou-se tão influente que, atualmente, encontra-se presente em quase

todos os livros didáticos de Língua Portuguesa.

Jakobson tornou-se influente no campo da poética, por meio de seus estudos de

fonética e fonologia, por acreditar, dentre outros aspectos, na afirmação de que não há

atração no texto poético por seu conteúdo, mas pelo tratamento que ele dá à linguagem.

Por isso, no Brasil, apreciava a poesia concretista e quase foi contratado pela recém

criada Universidade de São Paulo, na década de oitenta do século passado.

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6 – O estruturalismo americano

Quando se fala em “estruturalismo americano”, pensa-se num

amplo espectro de trabalhos que foram realizados nos Estados

Unidos da América entre as décadas de 1920 e 1950, e em

autores que cultivaram interesses de pesquisa bastante

diversificados. [...] um amplo trabalho de descrição e análise

que, ao contrário, mereceria a maior atenção. Não faltam,

contudo, características comuns, que definem o que poderíamos

chamar de “estilo de época”, e essas características ficam ainda

mais visíveis quando são postas em contraste com a linguística

chomskiana. (Ilari, 2007, p. 77)

A citação acima resume bem a maneira como se discorrerá sobre a linguística

realizada no norte das Américas neste trabalho. Os principais e mais reconhecidos

autores da linguística estruturalista norte-americana são Edward Sapir, Leonard

Bloomfield e Charles Hockett.

Sapir, além de responsável por descrições exaustivas de línguas indígenas,

afirmou que a linguagem2 move-se, altera-se com o tempo, numa espécie de evolução

por meio de alterações fonéticas. Todavia, acreditava que essas mudanças não

constituíam fenômeno meramente fisiológico, mas psicológico. Outro achado de Sapir

foi afirmar que toda mudança fonética é acompanhada de alterações morfológicas,

criticando estudos anteriores.

Leonard Bloomfield, apesar de ex-aluno de Sapir, manteve uma tendência

antimentalista declarada. Ele considerou os pressupostos dos neogramáticos,

principalmente no que tange às leis fonéticas, como base ideal para a fonologia histórica

estruturalista. Em relação à mudança, acredita que ela só é pertinente quando afeta o

sistema estrutural da língua. Para ele, só os fonemas que mudam e por razões de

alterações nos hábitos dos movimentos articulatórios dos falantes e que fatores não-

fonéticos jamais poderiam ser pertinentes para a mudança sonora. Vale salientar

também que sua abordagem recebe forte influência do Behaviorismo, para o que o

comportamento humano é explicado a partir de dados externos, por meio do famoso

esquema estímulo-resposta.

Por último, Charles Hockett é um dos mais notáveis antimentalistas pós-

Bloomfieldianos. Ele aceitou os pressupostos de seu mestre e acrescentou que o falante

está constantemente tentando atingir um alvo articulatório, um ponto máximo de

2 A tradução da palavra language do inglês para o português é, no mínimo, ambígua. Sabe-se que tal

vocábulo pode ser traduzido tanto como língua quanto como linguagem. A tradução feita da obra de Sapir

usa, nesse trecho, linguagem, mas acreditamos que língua seria mais adequado.

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frequência. Além do falante raramente atingir o alvo, a margem de articulações

possíveis é limitada.

Outra importante marca de seus estudos é aceitar motivos extralinguísticos, tais

como umidade no trato vocal, cera ou sujeira nos ouvidos e o desleixo em geral, para

justificar o fracasso do falante em manter determinado ponto máximo de frequência.

Enfim, dentre outros aspectos, o que une os autores da linguística estrutural

americana é o caráter altamente descritivista de seus estudos.

7 – O estruturalismo no Brasil – a inauguração da ciência da linguagem no Brasil

É impossível falar em Linguística no Brasil sem citar Joaquim Mattoso Câmara

Jr. Foi ele o grande responsável por trazer para o nosso país essa ciência como

disciplina nos cursos de Letras. Além disso, escreveu diversas obras importantes e

seminais sobre tal disciplina, tanto de caráter teórico, como descritivo.

Por ter sido aluno de Roman Jakobson nos EUA, Câmara Jr. foi quem primeiro

ministrou aulas de Linguística no Brasil, em 1938, na Universidade de Brasília.

Implementou a Linguística como disciplina obrigatória nos anos de 1960 na então

Universidade do Brasil, hoje, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. A partir

de então, diversos estudos e manuais de linguística foram publicados no Brasil. Até hoje

seus livros são utilizados nos diversos cursos de Letras em todo o país e até no exterior.

Fim da primeira parte

O autor é Doutorando em Estudos de Linguagem pela UFF. Professor de Língua

Portuguesa, Produção Textual, Linguística e Língua Inglesa da UNESA, onde coordena

o Curso de Letras EAD.