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As memórias da Emília: tessituras e efeitos de sentido produzidos nas subjetividades de representação (p. 10-23)

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SILVEIRA, E.L. ; DUARTE, Á. M. S. . As memórias da Emília: tessituras e efeitos de sentido produzidos nas subjetividades de representação. Entrelaces (UFC), v. III, p. 10-23, 2013.

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  • SUMRIO

    AS CIDADES INVISVEIS QUE HABITAM OS SIGNOS

    Carlos Roberto Nogueira de Vasconcelos .................................................................

    4

    AS MEMRIAS DA EMLIA: TESSITURAS E EFEITOS DE SENTIDO

    PRODUZIDOS NAS SUBJETIVIDADES DE REPRESENTAO

    derson Lus da Silveira / quelle Miranda Schneider ............................................ 10

    AMOR OU LOUCURA? EU E O OUTRO, POR MEDEIA, DE EURPEDES, E

    ELIZE MATSUNAGA

    Francisca Luciana Sousa da Silva .....................................................................

    24

    O FANTSTICO LUZ DA TEORIA MUSICAL

    Francisco Vicente de Paula Jnior ............................................................................ 35

    A TEORIA DA RESIDUALIDADE COMO ABORDAGEM LITERRIA: UMA

    BREVE ANLISE DE MARLIA DE DIRCEU

    Jssica Thais Loiola Soares / Roberto Ponte ............................................................. 47

    A MORTE DE OFLIA NAS GUAS: REFLEXOS E RELEITURA DA

    PERSONAGEM DE WILLIAM SHAKESPEARE NA POESIA DE

    HENRIQUETA LISBOA.

    Marcia de Mesquita Arajo ................................................................................... 55

    TRAOS RESIDUAIS DAS DCIMAS CALDERONIANAS NO

    ROMANCEIRO POPULAR DO NORDESTE BRASILEIRO, BASE DO AUTO

    DA COMPADECIDA

    Rubenita Alves Moreira dos Santos .......................................................................... 69

    ROSA DOS EVENTOS, DE FRANCISCO CARVALHO: A TERRA, O HOMEM, O FRGIL E O EFMERO Wesclei Ribeiro da Cunha ......................................................................................... 82

    UMA ANLISE DA MULHER SACRIFICADA EM TRS CONTOS DE EDNA

    OBRIEN Yls Rabelo Cmara / Yzy Maria Rabelo Cmara / Guilherme Linhares Neto ......... 94

  • 4

    AS CIDADES INVISVEIS QUE HABITAM OS SIGNOS

    Carlos Roberto Nogueira de Vasconcelos1

    Resumo A obra As cidades invisveis, de talo Calvino, dialoga explicitamente com Il milione (Viagens de

    marco polo), atribuda a Rusticiano de Pisa. Mais de sete sculos separam esses dois relatos. No

    obstante ser o primeiro um produto da imaginao e o segundo um texto pretensamente histrico,

    coadunam-se pelo encantamento permanente que as viagens exercem sobre o ser humano, tornando-

    se tema recorrente na literatura, desde Homero. O ato de viajar se modificou. As tecnologias

    abreviaram o tempo e tragaram as distncias, reduziram os perigos e aumentaram o conforto. Hoje,

    com as mos desocupadas do leme e da rdea, a mente tambm se ps livre. Com o corpo

    presumivelmente seguro e bem acomodado, o homem passou a empreender aventura no menos

    envolvente: a viagem interior. Tomando como suporte os livros Il milione (Viagens de Marco Polo)

    e As cidades invisveis, prope-se com o presente artigo reiterar o dilogo entre tais obras, escritas

    em pocas e contextos diferentes, valorizando-se o smbolo que ressignifica a cidade e seus

    labirintos, imagem to contumaz em Jorge Lus Borges, que justamente no poema Labirinto conclama: No esperes que o rigor de teu caminho, que teimosamente se bifurca em outro, tenha fim. (BORGES, 1970, P, 15). Que as obras se diluem em outras para renov-las, reafim-las ou reinterpret-las o que buscamos verificar.

    Palavras-chave Cidades, talo Calvino, Marco Polo, Viagem.

    Abstract

    The book Invisible Cities, Italo Calvino, dialogues explicitly with Il milione (Travels of marco

    polo), attributed to Rustician of Pisa. Over seven centuries separate these two accounts. Despite

    being the first a product of the imagination and the second a text allegedly historical, are in line for

    permanent enchantment that travel has on the human being, becoming a recurring theme in

    literature, from Homer. The act of traveling has changed. The technology shortened the time and

    downed distances, reduced hazards and increased comfort. Today, with your hands free rein and

    rudder, the mind also is set free. Body presumably safe and well accommodated, the man began to

    undertake no less immersive adventure: a trip inside. Taking the medium of books milione Il

    (Travels of Marco Polo) and Invisible Cities, it is proposed to this article reiterate the dialogue

    between these works, written at different times and contexts, valuing the symbol that reframes the

    city and its mazes, picture so stubborn in Jorge Luis Borges, who just in the poem "Labyrinth"

    urges: "Do not expect the rigor of thy way, that stubbornly forks in another, has an end." (Borges,

    1970, P 15). That the works are diluted in other to renew them, reafim them or reinterpret them is

    what we seek to verify.

    Keywords

    Cities, Italo Calvin, Marco Polo, Journey.

    1 Carlos Roberto Nogueira de Vasconcelos ([email protected]) graduado em Letras pela Universidade Estadual do Cear - UECE (1997). Cursa Mestrado em Letras na Universidade Federal do Cear - UFC.

    supervisor de Literatura no SESC/CE, onde tambm produz e media o Projeto Bazar das Letras (entrevistas com

    escritores e lanamentos de livros).

  • 5

    1 Introduo

    A viagem de Marco Polo durou 24 anos, a p, em lombo de animal, a bordo de navios.

    Quase um milnio depois, Calvino ressuscita o Marco Polo que h em si, em ns, e revive

    poeticamente o itinerrio de enigmas e revelaes percorrido pelo italiano filho de Veneza, que

    tinha tudo para ser um esttico comerciante por herana, jamais por convico. Marco Polo

    percorreu milhares e milhares de quilmetros, cruzou imprios, desvendou civilizaes. Calvino

    enveredou pelos labirintos da imaginao e recriou, em nome de Marco Polo, novas cidades,

    buscando imprimir nelas mistrios to vastos e convincentes quanto o primeiro Marco Polo, mesmo

    que, ironicamente, possa ter escrito alguma pgina dentro de um avio, sobrevoando o solo ptrio

    que ficou marcado pelos ps de outros viajantes menos sofisticados. Il milione chegou-nos

    possivelmente adulterado, censurado, corrigido, reinterpretado ao longo dessa viagem de sculos.

    Escrito numa lngua franco-italiana, foi traduzido, copiado, modificado, adaptado,

    conforme o esprito de cada poca, mas resistiu e renasceu num livro que se tornou um clssico

    contemporneo. Nas viagens literrias o crculo no se fecha, a aventura prosseguir em espiral

    indeterminadamente. O Marco Polo de Calvino um aficionado da palavra, traduz o que viu com os

    recursos da esttica, poetizando, inventando quando a memria falha, lembrando quando a

    imaginao vacila. O Marco Polo de Calvino faz contraponto com um Kublai Khan realista e

    preciso, s vezes mal-humorado e ctico. O primeiro Marco Polo devia ser um poeta na sua paixo

    pela essncia, no seu apego s descobertas, na vidncia dos signos que a realidade imediata tende a

    esconder dos olhares menos argutos. Marco Polo, que transitou pela ndia poderia, se houvesse

    possibilidade temporal, adotar as palavras de outro poeta que veio depois e conheceu uma ndia

    diferenciada pela ao dos sculos, e se perguntava

    O que me atraa? Era difcil responder: Human kind cannot bear much reality.* Sim, o

    excesso de realidade torna-se irrealidade, porm essa irrealidade tinha se convertido para

    mim em um sbito balco do qual eu assomava: em direo a qu? Na direo do que est

    mais alm e que ainda no tem nome... Minha repentina fascinao no me parece inslita:

    naquele tempo eu era jovem poeta brbaro, arrojado, juventude, poesia e barbrie no so

    inimigas: no olhar do brbaro h inocncia, no do jovem, apetite de vida, e no do poeta h

    assombro. (PAZ, 1996, p. 18).

  • 6

    2 A cidade que se narra

    Calvino faz renascer em seu Marco Polo a Sherazade, signo da narrativa irresistvel,

    essencial. essa oralidade que encanta, esteja ela forjada na imaginao ou refletida na memria. O

    principal personagem de Calvino o narrar (a troca, a memria, o smbolo, o desejo) que Khan no

    almeja, em sua fixao pelo concreto, mas no resiste. Narrador e narratrio se reconhecem, se

    desvendam, ao ponto de Khan indagar (ele mesmo confuso): Voc avana com a cabea voltada

    para trs? (CALVINO, 2003, p. 28)

    Na narrativa atribuda a Rusticiano de Pisa, espao e tempo se fundem, na tentativa de

    metaforizar o tempo como um rio invisvel que no nasce nem morre nem meandra: A plancie tem

    extenso de cinco dias e fica ao sul. (Il Milione, 1989, p. 26). Esse modelo seguido por Calvino:

    A trs dias de distncia, caminhando em direo ao sul, encontra-se Anastcia... Logo no incio

    Calvino esclarece que Kublai Khan talvez no acredite em tudo o que diz Marco Polo (...) mas

    certamente continua a ouvir o jovem veneziano com maior curiosidade e ateno do que qualquer

    outro de seus exploradores.

    A inteno da simbiose entre espao e tempo, em Calvino, se refora no trecho sobre a

    cidade de Zara:

    Poderia falar de quantos degraus so feitas as ruas em forma de escada, da circunferncia

    dos arcos dos prticos, de quantas lminas de zinco so recobertos os tetos; mas sei que

    seria o mesmo que no dizer nada. A cidade no feita disso, mas das relaes entre as

    medidas de seu espao e os acontecimentos do passado. (CALVINO, p. 14).

    Esse entrelaamento entre dimenses espaciais e temporais prefigura uma marca da

    oralidade.

    A cidade narrativa. Mesmo quando o tempo passa e transforma uma cidade em outra,

    a palavra permanece: O olhar percorre as ruas como se fossem pginas escritas: a cidade diz tudo o

    que voc deve pensar, faz voc repetir o discurso, e, enquanto voc acredita estar visitando Tamar,

    no faz nada alm de registrar os nomes com os quais ela define a si prpria e todas as suas partes.

    (CALVINO, 2003, p. 18).

    3 A cidade traduzida em signos

    O narrador amolda a cidade no ao seu modus operandi, mas experincia do outro. o

    caso do cameleiro e do marinheiro. Ambos definem a cidade conforme o ponto de vista do outro. O

    cameleiro imagina a cidade como uma embarcao que pode afast-lo do deserto, um veleiro que

    esteja para zarpar (CALVINO, 2003, p. 21) Enquanto que o marinheiro, na neblina costeira,

    distingue a forma da corcunda de um camelo. (CALVINO, 2003, p. 21) A cidade alteridade, o

  • 7

    individual, mas tambm o coletivo. real, mas tambm sonho, corrobora o estar no mundo, mas

    tambm estimula a imaginao.

    A cidade est alm de sua prpria existncia, assume uma paraexistncia, atravs do que

    representa: A memria redundante: repete os smbolos para que a cidade comece a existir

    (CALVINO, 2003, p. 23). No entanto, os smbolos vo alm das palavras e s vezes se reforam

    com insgnias, necessrias para desabstrair, para complementar a lngua que eventualmente no d

    conta das definies. Para Jakobson, numerosos traos poticos pertencem no apenas cincia da

    linguagem, mas a toda a teoria do signo, vale dizer semiologia geral. (JAKOBSON, 2007, p.

    119). Da a necessidade de Marco Polo se exprimir com gestos, saltos, gritos de maravilha e de

    horror, latidos e vozes de animais ou com objetos que ia extraindo dos alforges: plumas de avestruz,

    zarabatanas e quartzos, que dispunha diante de si como peas de xadrez. (CALVINO, 2003,p. 25)

    Embora soe verdadeiro que tudo o que Marco mostrava tinha o poder dos emblemas,

    que uma vez vistos no podem ser esquecidos ou confundidos (CALVINO, 2003, p.26) nada

    substitui a palavra dita, significada, apurada em sua essncia, pois a memria redundante: repete

    os smbolos para que a cidade comece a existir (CALVINO, 2003, p. 23). Por isso, com o passar

    das estaes e das misses diplomticas, Marco adestrou-se na lngua trtara e em muitos idiomas

    de naes e dialetos de tribos. As suas eram as narrativas mais precisas e minuciosas que o Grande

    Khan podia desejar. (CALVINO, 2003, p. 26). Mas a palavra enseja verdades concretas e

    principalmente abstrao, e Khan se envolve, presa da poesia, embora desconfie e questione:

    Os outros embaixadores me advertem a respeito de carestias, concusses, conjuras; ou

    ento me assinalam minas de turquesa novamente descobertas, preos vantajosos nas peles

    de marta, propostas de fornecimento de lminas adamascadas. E voc? o Grande Khan perguntou a Polo. Retornou de pases igualmente distantes e tudo o que tem a dizer so os pensamentos que ocorrem a quem toma a brisa noturna na porta de casa. Para que serve,

    ento, viajar tanto? (CALVINO, 2003, p. 26).

    A cidade que o Grande Khan almeja cristalizada, a que Polo lhe apresenta chama,

    pulsao. A cidade esttica, estvel, fica presa nos cartes postais, assim como Maurlia: Para no

    decepcionar os habitantes, necessrio que o viajante louve a cidade dos cartes-postais e prefira-a

    atual, tomando cuidado, porm, em conter seu pesar em relao s mudanas... (CALVINO,

    2003, p. 30). Para Marco Polo, a restituio de um grafito, encontrado em Pompeia, conforme

    citado em Pompeia, cidade viva (Alex Butterworth, Ray Laurence, Rio de Janeiro: Record, 2007)

    lhe serviria: Nada dura para sempre; mesmo brilhando como ouro, o sol tem que mergulhar no

    mar, a lua tambm desapareceu embora reluzisse at h pouco.

    Octvio Paz, ao falar de Paris, que foi instrudo a deixar para se transferir ndia,

    tambm compartilhava dessa sensao: Paris era, para mim, uma cidade mais que inventada,

  • 8

    reconstruda pela memria e pela imaginao.

    4 Cristal e Chama

    Calvino quem prope a dicotomia do cristal e da chama para emblematizar a cidade.

    O cristal a forma da racionalidade geomtrica e a chama traduz a ebulio dos elementos, do

    emaranhado. O Marco Polo de Calvino um narrador sensitivo, um poeta dos signos, um homem

    que v as coisas com os olhos da alma. Kublai Khan, o narratrio, exato, pouco afeito s

    abstraes, s vezes at mal-humorado com a impreciso do se embaixador, e o questiona:

    Voc viaja para reviver o seu passado era, a esta altura, a pergunta do Khan, que tambm podia ser formulada da seguinte maneira: Voc viaja para reencontrar o seu futuro?

    E a resposta de Marco:

    Os outros lugares so espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que seu descobrindo o muito que no teve e o que no ter. (CALVINO, 2003, p. 29).

    ainda Calvino, em Seis Propostas para o Prximo Milnio, que ressignifica a cidade,

    para no esquecermos que SIGNIFICAR dar a ver o valor do SIGNO: A cidade o smbolo

    capaz de exprimir a tenso entre racionalidade geomtrica e emaranhado das existncias humanas.

    (CALVINO, 1990, p. 85). A cidade de Marco Polo chama, a de Khan cristal. A cidade ser

    sempre tenso entre cristal e chama. Em termos gerais, a cidade de Lenia emblematizaria o ideal

    da chama, pois Lenia se refaz todos os dias, reinaugura-se a cada manh, cidade do sempre novo,

    do descartvel, cidade que se pretende marco zero. Faz contraponto com a cidade de Zora, que, sem

    a pulsao da chama, cristalizou-se, tornou-se um ramo seco, no germina, est destinada ao

    esquecimento: Se o passado se congela, se torna um ramo seco, sem possibilidade de germinao,

    est destinado ao esquecimento, como acontece quela cidade de Zora que obrigada a permanecer

    imvel e imutvel para facilitar a memorizao, definhou, desfez-se e sumiu. Foi esquecida pelo

    mundo. A viagem at ela intil: nela no se reencontra o passado.

    Outras significaes para a cidade so a babel e o labirinto, que podem ser

    emblematizadas pela cidade de Ceclia. Nela os moradores se perdem e quando se comunicam no

    falam a mesma lngua: Pelas ruas de Ceclia, cidade ilustre, uma vez encontrei um pastor que

    conduzia rente aos muros um rebanho tilitante:

    Bendito homem do cu Parou para me perguntar , saberia me dizer o nome da cidade em que nos encontramos?

    (...)

    Passaram-se muitos anos desde ento; conheci muitas cidades e percorri

    continentes. Um dia, caminhava entre as esquinas de casas idnticas: perdera-me.

    Perguntei a um passante:

  • 9

    Que os imortais o protejam, poderia me dizer onde nos encontramos Voc est em Ceclia, infelizmente! H tanto tempo caminhamos por

    essas ruas, eu e as cabras, e no conseguimos sair. Reconheci-o, apesar da longa barba branca: era aquele pastor.

    Agora o espanto de Marco Polo, de ter entrado numa cidade e no ter sado dela,

    cidade contnua, sem exterior, que est em todos os lugares. Concluso: a cidade babel e labirinto.

    5 Concluso

    Se em Il milione as narrativas tm pretenses histricas, reais, em As cidades invisveis

    o autor prope viagens supostamente espaciais, mas na verdade a investida se d no campo da

    semiologia, no detalhe dos signos e das representaes dos objetos. Essa viagem sgnica uma

    tentativa de interpretar e at de poetizar. A obra de Calvino retoma a narrativa e o contexto de

    Marco Polo, tornando-se, para utilizar um termo de Grard Genette em Palimpsestes, um hipertexto

    daquele, uma derivao. O texto de Calvino funciona como memria do texto anterior, restitui o

    texto atribudo a Rusticiano, conforme Tiphaine Samoyault,

    a literatura se escreve com a lembrana daquilo que , daquilo que foi. Ela a exprime,

    movimentando sua memria e a inscrevendo nos textos por meio de um certo nmero de

    procedimentos de retomadas, de lembranas e re-escrituras, cujo trabalho faz aparecer o

    intertexto (2008, p. 47).

    As cidades invisveis e Il milione dialogam, entrecuzam signos e ressignificam a

    viagem, o estar e o deslocar-se, as cidades que, a despeito de serem babel e labirinto, habitam os

    signos e so principalmente cristal e chama em seu processo permanente de mutao.

    6 Referncias Bibliogrficas:

    BORGES, Jorge Lus. Elogio da Sombra-Perfis. Trad. Rio de Janeiro: Editora Globo

    BUTTERWORTH, Alex e LAURENCE, Ray. Pompeia, a cidade viva. Rio de Janeiro: Record,

    2007.

    CALVINO, talo. As cidades invisveis. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 2006.

    _________. Seis propostas para o prximo milnio. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 2006.

    JAKOBSON, Roman. Lingustica e comunicao. So Paulo: Editora Cultrix, 2007.

    PAZ, Octvio. Vislumbres da ndia, um dilogo com a condio humana. So Paulo: Mandarim,

    1996.

    SAMOYAULT, Tiphaine. A intertextualidade. So Paulo: Editora Hucitec, 2008.

    Viagens de Marco Polo - Il Milione. So Paulo: Clube do Livro, 1989.

  • 10

    AS MEMRIAS DA EMLIA: TESSITURAS E EFEITOS DE SENTIDO

    PRODUZIDOS NAS SUBJETIVIDADES DE REPRESENTAO derson Lus da Silveira

    2

    quelle Miranda Schneider3

    O sentido do que somos depende das histrias que

    contamos a ns mesmos (...) das construes narrativas nas

    quais cada um de ns , ao mesmo tempo, o autor, o narrador e

    o personagem principal (Jorge Larrosa 1999, p. 52)

    Resumo O presente trabalho tem por objetivo estudar as redes de sentido tecidas a partir da leitura das

    memrias da Emlia, narradas no livro As memrias da Emlia, de Monteiro Lobato. Aqui

    procuraremos analisar como ocorrem os movimentos e deslocamentos de foco narrativo atravs

    daquele que narra, bem como a partir de sua relao com a personagem central das narrativas

    assinaladas. Assim, analisaremos com foco em tericos do assunto as narrativas enquanto gnero

    especfico de significao. Destacamos aqui o papel da memria enquanto resultado do

    entrelaamento das experincias cotidianas e a importncia do lugar nas prticas cotidianas dos

    narradores, j que os deslocamentos e (re) direcionamentos das vozes na narrativa atuam na

    movncia dos acontecimentos, que so retomados e ressignificados no instante da narrativa.

    Palavras-chave Memria, Narrativas, Sentidos.

    Resumen Este trabajo tiene como objetivo estudiar las redes de forma tejidas de la lectura de las memorias de

    Emilia, reseado en el libro "recuerdos de Emilia," Monteiro Lobato. Aqu analizamos cmo se

    desplaza el foco narrativo y movimientos de quien narra, as como de su relacin con el personaje

    central de las historias que se identifican. As, desde los tericos de someter las narrativas mientras

    especficos de gnero de significacin. Destacamos aqu El papel de la memoria como resultado de

    enredo de experiencias cotidianas y la importancia del lugar en las prcticas cotidianas de los

    narradores, desde los desvos y las direcciones de las voces en (el acto narrativo en movimento de

    los eventos que se traslada y redefinicin de la narrativa.

    Palabras clave Memoria, Narrativas, Sentidos.

    Prembulos da literatura infantojuvenil brasileira

    As primeiras formas de literatura para crianas chegaram ao Brasil com os

    colonizadores portugueses e confundiam-se com as literaturas destinadas aos adultos. A origem

    dessas literaturas se baseava na tradio oral e circulavam nas cortes europeias. A partir disso, fica

    claro estabelecer que a literatura impressa aqui no Brasil, como em outros pases, foi precedida pela

    2 Graduando em Letras Portugus pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) membro do Ncleo de Estudos em Lngua Portuguesa (NELP-FURG) 3 Professora de ps-graduao da Faculdade Internacional de Curitiba (FACINTER), mestranda do programa de Mestrado Profissionalizante Maestria, Politica e Gestion de La Educacin no Centro Latinoamericano de Economa

    Humana (CLAEH, Montevido, Uruguai). Email: [email protected]

  • 11

    forma oral.

    Durante o Primeiro Imprio, a partir de D. Pedro I se registram os primeiros vestgios de

    preocupao com a leitura para o pblico infantil, ainda que com reflexos no que acontecia na coroa

    portuguesa. Aqui, podemos atentar para um aspecto relevante: a literatura utilizada como locus para

    apreender e assimilar a cultura do outro.

    Com a proclamao da Repblica, o sistema monrquico substitudo pelo modelo

    republicano. A partir da abolio da escravatura, ocorre a substituio do trabalho escravo pelo

    trabalho assalariado. A partir dos ideais liberais, a busca pela realizao do ser humano passa a se

    permear pela conquista do saber, que se torna fator fundamental para a autorrealizao do

    indivduo. Esse saber vai se identificar com a cultura civilizada europeia, que incorporava em

    seus preceitos a valorizao da conscincia do orgulho nacional.

    O sistema escolar passa por reformas que considerem esses ideais, atribuindo lugar

    especial leitura, pedra fundamental da sociedade letrada que estava em formao, a exemplo do

    modelo europeu, por isso dizemos que a literatura nasceu ligada instituio escolar. Nesse sentido,

    ela representava a mediao de valores ou padres de comportamento determinados pela sociedade

    para perpetuar o sistema em que ele se organizara.

    Segundo Rui Barbosa, podemos perceber o pensamento da poca em relao

    necessidade de formar a conscincia nacional, a espelho da cultura europeia e seus valores

    distintivos da ento colnia em formao:

    A chave misteriosa das desgraas que nos afligem s esta: ignorncia popular, me da

    servilidade e da misria. Eis a grande ameaa contra a existncia constitucional e livre da

    nao; eis o formidvel inimigo intestino que se asila nas entranhas do pas... (BARBOSA

    apud COELHO)

    Nesta ordem de interesse, temos como precursores tanto educadores quanto

    escritores, j que os livros escolares, literrios e/ou didticos tinham relao direta com a formao

    do pensamento brasileiro tradicional. Desse modo, podemos assinalar que os primeiros livros

    literrios infantis tiveram surgimento simultneo s formas de ensino que procuravam adaptar a

    cultura brasileira cultura das naes civilizadas. Tais livros no eram criaes de fato, mas

    tradues ou adaptaes de obras que no cenrio europeu faziam sucesso entre os pequenos.

    Antes de Monteiro Lobato, no havia no Brasil o hbito de criar histrias originais, sem

    copiar os moldes europeus. O prprio Lobato passou a se preocupar com isso e atravs da

    correspondncia com seu amigo Godofredo Rangel, por volta de 1906, ele externa essas

    preocupaes com o problema dos livros de leitura para o pblico infantil. Lobato encontrou o

    caminho criador de que a literatura infantil necessitava, tornando-se um marco para os estudos

    sobre a literatura infantojuvenil.

  • 12

    Entre fadas e silenciamentos

    A literatura e o imaginrio sobre a criana

    Monteiro Lobato no apenas o maior clssico da literatura infantil brasileira, j que, de

    acordo com Carvalho (1989), ele no apenas escreveu livros para crianas, como tambm criou um

    universo para elas. A autora o situa como um marco para a literatura desse gnero e isso se deve ao

    fato de que o escritor no apenas recriou a partir dos clssicos europeus. Lobato criou um universo

    especfico, que representasse o cenrio nacional e os anseios e expectativas das crianas, no

    aquelas crianas concebidas enquanto adultos em miniatura, mas crianas reais e tangveis, no

    ficcionalizadas a partir de intenes formativas.

    Assim, sua obra est permeada de aspectos do pas em que foram escritas e no

    espelhando as narrativas de fundamento europeu, que procuravam normatizar o comportamento das

    crianas a partir de contos prescritivos elogiadores da boa educao que as crianas deveriam

    seguir. Agora, antes de nos atermos mais a fundo em sua obra, principalmente no que se refere

    obra a ser analisada, torna-se necessrio que tracemos um esboo das ideias acerca do imaginrio

    sobre a criana que predominavam na poca antes de Lobato.

    Para Amarante (2010, p.16), preciso ouvir mais uma vez as palavras de Ceclia

    Meireles, para quem, em suma, o livro, se bem que dirigido criana, de inveno e inteno do

    adulto. Transmite os pontos de vista que este considera mais teis formao de seus leitores. E

    transmite-os na linguagem e no estilo que o adulto igualmente cr adequados sua compreenso e

    ao gosto do seu pblico.

    Nem sempre essa frmula engendrada pelos adultos garantia de qualidade de acesso

    aos bens culturais para a criana. A esse respeito, o ensasta argentino Daniel Link (2002) atenta que

    poucos autores falam s crianas a partir da literatura e poucos pedagogos mostram s crianas a

    literatura de verdade. Zumthor (2000) lembra que toda literatura fundamentalmente teatro, no

    entanto, habituados como somos, nos estudos literrios, a s tratar do escrito, somos levados a

    retirar, da forma global da obra performatizada, o texto e nos concentrar sobre ele (ZUMTHOR,

    2000, p. 35).

    Podemos mencionar tambm que as narrativas no s nos aproximam do outro como

    tambm nos introduz literatura. Se hoje vivemos uma crise de leitores, como afirma o ensasta

    argentino Daniel Link a crise da leitura, que se costuma dar por certa, mais cedo ou mais tarde

    afeta a escrita (2002, p. 131)-, segundo ele, porque faltam narradores. Para Walter Benjamin

    (1994, p. 203), que afirmava isso j no incio do sculo passado, se a arte de narrar hoje rara, a

    difuso da informao decisivamente responsvel por seu declnio.

  • 13

    No perodo em que Lobato comea a escrever para crianas, a literatura infantil est

    voltada para o fim especfico de instruir os pequenos em relao aos modos de se comportar na

    sociedade. Assim, temos crianas como aquelas retratadas no conto infantil A pobre cega, por

    exemplo, de Jlia Lopes de Almeida, em que as crianas so comportadas, no aumentam o timbre

    da voz em ocasio alguma, no indisciplinam seus atos, quando o sinal para a entrada das aulas

    ainda no soou preferem refletir sobre as tarefas que os professores deixaram no dia anterior a

    brincar entre si, no caoam umas das outras, enfim, so exemplos de disciplinados adultos em

    miniatura.

    No Brasil, a literatura nasce com esse intuito de disciplinar. No existe nos textos

    infantis uma preocupao com a esttica, com a fruio literria. Espera-se acima de tudo que os

    leitores a quem a literatura se direciona possam retirar dali as normas para o convvio em sociedade,

    silenciando seus anseios e expectativas oriundas do universo infantil. Ento, em relao s

    intenes dos autores que escrevem na dcada de 80 (sculo XIX, portanto), podemos dizer que se

    aproximam das obras de Perrault, Grimm e Andersen, distinguindo-se por que narram a partir do

    contexto brasileiro e com intenes de instrumentalizao severas.

    No sculo XX, temos a manuteno da misso patritica da literatura infantil: escolar,

    de modelo, com intenes formativas. Somente em 1905 temos a criao da primeira revista voltada

    ao pblico infantil, Tico Tico. Em 1921, Lobato publica A menina do narizinho arrebitado.

    Na Europa, temos como marco fundamental para as origens da literatura infantil a

    Revoluo Industrial (sculo XVIII), que a partir da modernizao dos processos industriais traz a

    exigncia de que deve ser privilegiada a formao baseada em conhecimentos especializados.

    Sendo assim, preciso educar as pessoas, no sentido de torn-las capacitadas para o servio. Como

    o ndice de analfabetismo muito grande neste perodo, ocorre a necessidade de escolarizao, para

    que as pessoas possam atender a demanda da sociedade industrial. Aqui podemos destacar a criao

    e ampliao do nmero de escolas de educao infantil, j que os pais precisam ter com quem

    deixar os filhos para que possam se dedicar com mais afinco s necessidades fabris e necessidade

    de criar polticas de leitura voltadas ao pblico infantil, considerado limitado e com papis

    sociohistoricamente marcados.

    Em relao s obras que tentam separar a infncia da vida adulta, Aira (2000), declara:

    Pensando minha prpria averso literatura infantil, agregaria que o que a subliteratura faz

    no inventar seu leitor, operao definidora da literatura genuna, mas d-lo por inventado

    e concludo, com traos determinados pela suspeitosa raa dos psicopedagogos: de 3

    a 5 anos, de 5 a 8, de 8 a 12, para pr-adolescentes, adolescentes, meninos, meninas; seus

    interesses se do por sabidos, suas reaes esto calculadas. Fica obstruda de entrada a

    grande liberdade criativa da literatura, que em primeiro lugar a liberdade de criar o leitor e

    faz-lo criana e adulto ao mesmo tempo, homem e mulher, um e muitos.

    O resultado dessa postura comodista de escolher livros de acordo com faixas etrias

  • 14

    que os narradores adultos, sem o menor interesse pelo texto, com voz menos vibrante, ficam

    parados, a olhar os outros, por que so assim baos, como fala a escritora portuguesa Maria

    Gabriela Llansol (2007, p. 16), e conclui: [...] preciso cuidar a leitura, por que a voz- se for

    incerta no seu deserto- mata, mata a leitura e o texto [...].

    Segundo DEBRAY (2003, p. 55), o livro um objeto pesado, que comanda uma

    pesada afetividade. O peso esmagador, casto, quase morturio, da cultura encarna-se nesses

    poeirentos poderosos, paraleleppedos abruptos e ameaadores. O peso da cultura no perodo

    anterior a Lobato baseado em moldes a ser introduzidos na personalidade das crianas, alienando-

    as de sua condio distinta que sua idade constitui em relao ao adulto, para servir aos propsitos

    dos adultos que queriam manipular suas aes, propiciando regras a serem seguidas, que causam

    estranhamento do universo infantil em relao diversidade que o constitui nas prticas do

    cotidiano ldico, por exemplo.

    Dentre os diferentes leitores ou ouvintes de literatura, no podemos nos esquecer da

    criana leitora que possui capacidade de interpretao assim como o adulto, embora se usem

    parmetros diferentes de leitura. No incio do sculo passado, Walter Benjamin j afirmava que as

    crianas no so muito diferentes dos adultos. Em consonncia com isso, podemos mencionar

    Baudrillard (2002, p. 53), que vai alm, mencionando que, em relao ao tempo real, a criana est

    definitivamente adiantada em relao ao adulto, que s pode parecer-lhe retardado, assim como, no

    terreno dos valores morais, s pode parecer-lhe um fssil. para essa concepo de criana que

    Lobato se volta, criando-lhe um universo particular, diferente dos ambientes monitorados dos

    autores que o antecederam.

    Monteiro Lobato e as crianas: o universo infantil sem retries

    do pensador Walter Benjamin (1994), no sculo XX, a afirmao de que se trata de

    preconceito ver as crianas como seres to diferentes de ns, com uma existncia to

    incomensurvel nossa, que precisamos ser particularmente inventivos se quisermos distra-las

    (BENJAMIN,1994, p. 237). Apesar disso, desde o Iluminismo, essa tem sido uma das

    preocupaes mais estreis dos pedagogos, acrescenta Benjamin.

    comum que os livros escritos com a inteno de serem comprados para crianas

    estejam repleto de morais, como se a funo da literatura fosse essencialmente pedaggica. A

    despeito disso, no necessariamente a moral da histria o aspecto do texto que ir chamar a

    ateno do jovem leitor, j que outros aspectos (algo divertido ou assustador, por exemplo) da

    narrativa podero se sobrepor a esse. Lewis Carroll brinca com isso em Alice no pas das

  • 15

    maravilhas (de certa forma, ele critica o regime escolar), quando a personagem da Duquesa

    encontra uma moral para tudo (e quando no encontra, inventa):

    Ora, ora, minha criana! disse a Duquesa. Tudo tem uma moral, basta saber encontr-la. E chegou ainda mais perto de Alice enquanto falava. (...) Parece que a partida est bem melhor agora, observou Alice, para alongar um pouco a conversa.

    mesmo, disse a Duquesa, e a moral disso ... O amor, o amor que faz girar o mundo! Ouvi algum dizer, murmurou Alice, que isso ocorre quando cada um cuida de seus prprios interesses! Exatamente! Quer dizer a mesma coisa, falou a Duquesa, fincando seu queixo pontudo no ombro de Alice e acrescentando, e a moral disso ... Cuide dos sentidos, que os sons cuidaro de si mesmos. Como ela gosta de achar uma moral em tudo! pensou Alice com seus botes. (2000, p. 112 113)

    Da mesma forma que Lewis Carol, Lobato no se preocupou em transmitir lies de

    moral ao escrever seus livros, sua preocupao, na verdade, deve ter sido a de escrever histrias

    interessantes, brincando com a linguagem, e que pudessem ser lidas por pessoas de todas as idades.

    As aventuras da turma do stio do Pica-pau amarelo, do mesmo modo, do boas vindas grande

    liberdade criativa da literatura. Essa liberdade criativa pode ser compreendida a partir de Aira

    (2001) que considera em primeiro lugar a liberdade de criar o leitor e faz-lo criana e adulto ao

    mesmo tempo, homem e mulher, um em muitos.

    Assim, se Lobato se tornou um clssico, foi por causa dessa caracterstica de nunca

    haver terminado de dizer aquilo que tinha para dizer, no importando se foi lido na infncia ou na

    fase adulta. Lobato nos faz olhar para nossa infncia, algo de uma felicidade perdida que no se

    pode mais encontrar mas tambm algo de nossa vida ativa cotidiana, de suas pequenas alegrias

    incompreensveis, porm incontidas e impossveis de esquecer (AMARANTE, 2010, p. 17).

    Em 1920, foram publicados na Revista do Brasil (SP) uns fragmentos da histria de

    Lcia ou a Menina do Narizinho Arrebitado. No mesmo ano foi publicado, pela Editora Monteiro

    Lobato com ilustraes coloridas de Voltolino, A menina do Narizinho Arrebitado. Eis o marco da

    literatura infantil brasileira moderna, de acordo com o Dicionrio Crtico da Literatura Infantil e

    Juvenil (COELHO, 2006).

    Se Lobato considerado o marco de criao da Literatura Infantojuvenil brasileira, isso

    se deve ao fato de que ele no apenas escreveu para elas, mas tambm criou um universo para elas,

    aliando em sua fico dois planos: o ficcional (elementos mticos) e o histrico (contextos

    vinculados realidade- o stio, enquanto vivncia real do cotidiano), que nessa relao binria se

    complementam, sem perder as especificidades de cada um. (CARVALHO, 1989)

  • 16

    As memrias da Emlia: entre a biografia e a subjetivao

    Aqui temos as narrativas que contam as memrias de uma das personagens mais

    conhecidas de Lobato. A boneca Emlia, que tagarela e sempre sente a necessidade de meter o

    bedelho em tudo, resolve narrar suas memrias a partir das mos do Visconde de Sabugosa, um

    intelectual produzido a partir de uma espiga de milho. Estranha a isso, est a opinio de Dona Benta

    (av de Narizinho e Pedrinho, outros personagens da trama) para quem memrias so contadas por

    aqueles que esto para morrer. Ao que Emlia retruca que ela no pretende morrer, apenas fingir

    desfalecer, concluindo as memrias com as ltimas palavras: E ento morri..., com reticncias

    para depois se esconder atrs do armrio e Narizinho- a dona da boneca- pensar que morreu de fato

    (LOBATO, 2007, p. 12).

    Para Clara Rocha (1992), em relao ao aspecto esttico, o heri autobiogrfico se

    define como recriao e hibridismo entre a pessoa real e a pessoa criada, que a personagem.

    Advm da um processo de autocriao e autodescoberta e de modelao da imagem do heri que ,

    ao mesmo tempo, sujeito e objeto da narrativa. Para Lejeune (2003, p. 38) um autobigrafo no

    algum que diz a verdade sobre a vida, mas algum que diz a que diz. Podemos ento mencionar

    Cndido (2007, p 69), para quem o escritor ao tratar de sua prpria criao pode se iludir: Ele pode

    pensar que copiou quando inventou; que exprimiu a si mesmo, quando se deformou; ou que se

    deformou, quando se confessou.

    Esses posicionamentos acerca das narrativas autobiogrficas so pertinentes para

    pensarmos a obra em questo. Nela, a boneca dita para o Visconde suas proezas ocorridas no stio

    do Pica-pau amarelo (ou sai para brincar e revisa o que ele escreveu a respeito dela para autorizar

    ou no o que foi escrito, o que aponta para autoria da boneca sobre si e para indcios de autoria do

    Outro sobre ela). Ento temos narrado o nascimento dela do retalho de uma saia da tia Nastcia (a

    cozinheira do stio) e o instante em que ela comea a falar a partir da plula do Dr. Caramujo em

    outro dos livros do escritor. Se aqui temos a narrativa da memria de coisas feitas, tambm temos a

    memria de coisas que deveriam ter acontecido, de acordo com a boneca, dando lugar, por exemplo,

    narrativa final de uma suposta ida a Hollywood, que ela visitou (deveria ter visitado).

    Seria uma autobiografia como outra biografia qualquer se no fosse pelo fato de uma

    personagem de fico sentir a necessidade de contar sua histria. O diferencial da narrativa que

    no ela quem escreve. o Visconde de Sabugosa, a partir das indicaes de que cenas deve narrar,

    que ela autoriza.

    No caso de Emlia, as memrias sero o efeito de hibridismo entre a personagem que

    anseia em contar suas vivncias e direciona as narrativas para o que deve ser contado, autorizando

    memrias enquanto silencia outras. Logo, devem ser narrados apenas fatos que atestem a

  • 17

    genialidade da boneca, bem como situaes em que ela teve lugar de destaque. Alm disso, ocorre a

    metalinguagem que permeia os pensamentos filosficos justificadores da boneca, para quem tudo

    na vida no passam de mentiras, e nas memrias que os homens mentem mais. (LOBATO, 2007,

    p. 12).

    Como as memrias so escritas pelo Visconde, ele que optar por posicionamentos e

    escolher o estilo de narrar, bem como refutar outros modos de contar os fatos, o que se torna um

    tanto estranho para uma obra que se diz autobiogrfica, j que escrita por outro. Alis, este um

    dos pensamentos que assolam o Visconde por que, ao mesmo tempo em que se sente orgulhoso por

    ter escrito, sente-se desolado por no levar crditos pelos escritos: Sou danadinho para escrever!

    Mas por mais que eu escreva jamais conquistarei a fama de escritor. Emlia no deixa. Aquela diaba

    assina tudo quanto produzo. (LOBATO,2007, p. 71)

    A imagem que Emlia tem de si e a imagem construda pelo visconde em relao a ela

    se contradizem, como podemos perceber quando a caracterizar a personagem das memrias. Em

    seguida, certa altura, o Visconde se irrita com o fato de ele ter que escrever as memrias, sob pena

    de ser depenado pela boneca e escreve sobre ela:

    Emlia uma criaturinha incompreensvel. Faz coisas de louca e tambm faz coisas que at

    espantam a gente, de to sensata. Diz asneiras enormes, e tambm coisas to sensatas que

    Dona Benta fica a pensar. Tem sadas para tudo. No se atrapalha. Em matria de esperteza

    no existe outra no mundo. Parece que adivinha, ou v atravs dos corpos. (...) Na realidade

    o que Emlia , isso: uma independenciazinha de pano- independente at no tratar as

    pessoas pelo nome que quer e no pelo nome que as pessoas tm. Aqui no stio quem

    manda ela. Por mais que os meninos faam, no fim quem consegue o que quer a Emlia

    com seus famosos jeitinhos. (LOBATO, 2007, p. 75)

    Este ponto uma das partes da narrativa que mostram quem est narrando e reforam

    um posicionamento que se ope viso romntica do heri, que contestado e mostrado em suas

    qualidades que no deveriam ter sido autorizadas por aquela que assinar como narradora oficial

    das memrias (LOBATO, 2007, p. 76): O senhor me traiu. Escreveu aqui uma poro de coisas

    perversas e desagradveis, com o fim de me desmoralizar perante o pblico. Mas na narrativa de

    memrias autobiogrficas, o narrador d um jeito de se moldar a partir da imagem que quer

    autorizar sobre si, e aqui no seria diferente a ponto de Emlia autorizar logo depois reconhecendo

    que assim mesmo. Isso ocorre no sem que ela tome as rdeas de suas memrias, para acertar a

    seu modo incluindo acontecimentos que no aconteceram, como sua ida a Hollywood, em que ela

    vai inclusive aos estdios da Paramount Pictures, levando um anjo e o prprio visconde.

    Da em diante, ela tratar de humilhar o visconde em suas narrativas para se vingar das

    coisas que ele escreveu sobre ela. Assim, a narrativa no apenas de memrias acontecidas, mas

    tambm de memrias que deveriam ter acontecido, nas palavras da boneca: so memrias

    fantsticas.

  • 18

    O monitoramento da boneca se expressa mais claramente na seguinte passagem: Com

    que ento, senhor visconde, est me sabotando as memrias, hein? Risque j todas as

    impertinncias e escreva o que vou dizer. (LOBATO, 2007, p.87)

    Temos ento durante a execuo da narrativa um ambiente de tenso entre os

    narradores. Um narrador que narrador e personagem ao mesmo tempo e outro que narrador, mas

    que participa dos fatos enquanto coadjuvante. A reflexo a partir de Cndido (2007) em relao

    construo dos personagens na narrativa pautada no conceito de verossimilhana de Aristteles

    contribui para o entendimento da relao estabelecida entre o ficcional e o autobiogrfico na obra

    estudada. O ficcional ento surge como harmonizador do caos da vida, pois os personagens se

    organizam conforme as intenes do texto, definidas internamente. A Emlia que est dentro das

    memrias acaba por se desvelar neste ambiente de tenso, j que no apenas ela que olha para si,

    tambm vista a partir do olhar do outro (do visconde).

    Em relao linearidade dos fatos narrados, podemos mencionar Pereira (2011, p. 12)

    Sabe-se que os fatos e acontecimentos, na realidade, ocorrem numa ordem cronolgica, mas

    depois de assimilados pelo sujeito e guardados na sua memria embaralham-se, pois, ao

    serem rememorados, aparecem de modo catico e, assim, os acontecimentos mais recentes

    podem vir misturados ou aps os fatos remotos. Aquilo que rememorado ganha

    linearidade ou outra forma de organizao do discurso graas habilidade do narrador de

    lidar com a linguagem e, neste caso especfico, com a linguagem escrita, o que implica em

    lembrar, imaginar, recriar as percepes que tivera no passado, concretizando-as em texto.

    As narrativas passam por deslocamentos quando de autoria ora do visconde, ora da

    Emlia, em que os posicionamentos dos autores se destacam durante a narrativa, elencando dizeres e

    desautorizando outros, conforme o locus narrativo de quem relata os acontecimentos. Assim, nas

    narrativas do Visconde, os fatos tendem a se aproximar mais da deshierarquizao dos personagens

    (no sentido de que ele narra sem dar nfase direta para Emlia enquanto que, nos textos de autoria

    dela, ela tem maior lugar de destaque).

    De acordo com Coelho (2006), Monteiro Lobato vai encontrar na personagem Emlia

    um modelo de rebeldia criativa de audaciosidade individual, munida de confiana e

    empreendedorismo, em uma das maiores realizaes de Lobato. Diferente das demais personagens,

    ela vive em estado de continua tenso com os demais e sofre com as mudanas de sua

    personalidade. Os outros so arqutipos de crianas sadias que servem para dar suporte aos

    acontecimentos, e at para se contraporem boneca. Para Coelho (2006), Dona Benta representa a

    av ideal e Tia Nastcia a servial ligada eficincia (os famosos bolinhos dela so conhecidos e

    mencionados em vrias obras das aventuras do Sitio do Picapau Amarelo). Alis torna-se pertinente

    destacar aqui que se Lobato a fez ignorante porque quis que ela representasse a multido de Tias

    Nastcias da vida real. Dessa forma,

  • 19

    tambm so arqutipos os personagens maravilhosos: o leito Marqus de Rabic (smbolo

    da inconscincia animal, representada pela gula), o Visconde de Sabugosa (a sabedoria

    intelectual adulta) (...) o Rinoceronte Quindim (o poder da fora fsica, bruta), etc. etc.

    (COELHO, 2006, p. 645)

    No universo lobateano, Emlia a representao da natureza infantil, obstinada a querer

    saber as coisas, ou por causa da forma como mantm seus posicionamentos ou opinies. Sua

    impacincia em perceber os erros e incoerncias de nossa civilizao marca a posio associada

    ao despotismo em relao ao que acontece no mundo civilizado da poca, por trs de suas mscaras

    que procuram esconder a conscincia de um mundo onde uns poucos tm poder sobre muitos

    dominando uma multido de desvalidos e desaparelhados sociais.

    -Perfeitamente, Visconde! Isso que importante. Fazer coisas com a mo dos outros,

    ganhar dinheiro com o trabalho dos outros: isso que saber fazer as coisas. Ganhar

    dinheiro com o trabalho da gente, ganhar nome e fama com a cabea da gente no saber

    fazer as coisas. Olhe Visconde, eu estou no mundo dos homens h pouco tempo, mas j

    aprendi a viver. Aprendi o grande segredo da vida dos homens na terra: a esperteza! Ser

    esperto tudo. O mundo dos espertos. Se eu tivesse um filhinho, dava-lhe um conselho:

    Seja esperto meu filho! (LOBATO, 2007, p. 63-64, grifo do autor)

    Como podemos perceber atravs do fragmento anterior, Memrias de Emlia um

    exemplo claro dessa representao do sistema explorador, conforme podemos perceber na fala da

    boneca ao Visconde quando ele lhe indaga se ela sabe escrever memrias, em clara crtica

    estabelecida ao fato de no consistir exatamente em escrever memrias sobre si quando se escreve

    com a mo e a cabea dos outros.

    Lobato e as inovaes: entre a fico e a naturalidade do universo infantil

    Conforme pudemos constatar nas subsees anteriores a esta, Lobato alimentava uma

    personalidade rebelde contra a estrutura oligrquica do poder vigente nacionalista, inserido em um

    sistema econmico cada vez mais preocupado com a misria do povo e consciente do que o

    crescimento das elites que se alimentava desse progresso dependendo da miserabilidade e

    explorao do povo, adversrio das ideias e valores em decadncia em prol do capital.

    De acordo com Vasconcelos (1982), a preocupao com os acontecimentos histricos

    faz com que Lobato sinta necessidade de narr-los na fico para os pequenos, como em Histria

    do mundo para crianas (1933), Histria das Invenes (1935), Geografia de Dona Benta (1935),

    entre outros livros paradidticos. Diferente de histrias alienantes, que tinham o pretexto de reforar

    os contedos escolares a partir de uma viso romntica acerca do colonizador em relao aos

    nativos, por exemplo, como no caso do conto direcionado para crianas intitulado A pobre cega,

    de Jlia Lopes de Almeida, Lobato insere os acontecimentos histricos no interior da trama do Stio,

  • 20

    em clara mescla entre a fantasia e a realidade. Diferente das intenes moralizantes que veem a

    criana enquanto adulto em miniatura, cujo comportamento precisa ser controlado e normatizado,

    Lobato adere representao fiel do universo infantil de que as crianas carecem para desenvolver-

    se plenamente como seres que precisam brincar, se divertir e deixar aflorar o sentimento criativo

    que se lhes caracterstico.

    Coelho (2006) remete criao de Lobato necessidade de escrever para crianas reais,

    sem idealizao, em que fossem percebidas as necessidades especficas dessa faixa etria. Poder-se-

    ia traar comparaes com Alice no pas das maravilhas, do ingls Lewis Caroll, quando, por

    exemplo, Alice cai no poo e encontra um universo de fantasia. O poo o elo entre o real e o

    imaginrio. Em Lobato, a fuso entre o real e a fantasia um dos eixos principais de sua fico

    infantil, em que ele funde o realismo do cotidiano com o universo maravilhoso dos contos de fada.

    Para Carvalho (1989), isso faz com que seja estabelecido um elemento cclico na obra lobateana:

    eles (os personagens do Stio) partem da realidade para a fantasia e desta para a realidade,

    recompensados, enriquecidos, premiados (...) esse o objetivo de suas aventuras, essa sua vitria,

    sobre si mesmo e nisso consiste a sua recompensa (CARVALHO, 1989, 137).

    Torna-se pertinente destacar que o agressor em Lobato a ignorncia contra a qual os

    personagens lutam, para se desvencilhar atravs de caractersticas criativas na insacivel busca pelo

    saber. Tambm podemos destacar que na fico lobateana os que perseguirem os valores podero

    conquist-los, sem distino. Carvalho (1989) estabelece uma comparao com o estruturalista

    Propp, para quem as funes constituem a parte fundamental da obra.

    (...) com a diferena que, ao contrrio do que preconiza o estruturalista russo, as funes

    das personagens mudam, so diferentes; as personagens que so permanentes, constantes.

    Ao contrrio dos contos maravilhosos, as funes ou aes so mais numerosas do que as

    personagens, e, ao invs de um heri, todos so heris. (CARVALHO, 1989, p. 139, grifo

    do autor)

    Isso produz as singularidades da obra de Monteiro Lobato, em que os papis se alternam

    nas aventuras, em que Pedrinho representa a liderana, sendo-lhe atribuda a funo de heri das

    narrativas, enquanto aos outros cabe a funo de auxiliar nas aventuras e Dona Benta na esfera de

    autoridade em relao aos demais. Neste contexto, temos as intervenes de Emlia, que pea

    fundamental para a resoluo de muitas dificuldades, por causa de sua incessante sede em elaborar

    planos para ampliar seu conhecimento infantil insacivel.

    At aqui mencionamos a fuso entre a realidade e a fico como elementos

    fundamentais da fico de Lobato. Torna-se pertinente elencar outros dois: o humor e a linguagem

    literria. Sobre o humor podemos utilizar a fala de Coelho para quem:

    Contrariando a seriedade, o exemplarismo circunspecto ou o sentimentalismo que

  • 21

    predominavam nas leituras educativas da poca, Monteiro Lobato, desde seu primeiro livro, introduz o humor em suas histrias. Substitui a compostura do adulto (que era

    oferecida como modelo aos pequenos) pela graa, pela irreverncia gaiata, pela ironia ou

    familiaridade carinhosa. Da o -vontade com que as crianas passaram a viver seu universo

    de fico. (COELHO, 2006, p. 643)

    Sobre a linguagem literria, podemos destacar que Lobato liberou o estilo de seus

    esquemas pr-determinados e retricos associados linguagem da elite, para enriquec-los com a

    linguagem familiar crianada. Ao fundir a narrativa gil com o discurso coloquial, ele incorpora

    expresses do dia a dia, que podem ser encontradas na escola, em casa ou qualquer esfera social em

    que as crianas possam estar inseridas na sociedade.

    Neste intuito, podemos perceber uma identificao do autor com o Modernismo, em

    relao linguagem literria e o estilo inovador, que procurava livrar a escrita dos vcios formais e

    excessos literrios, tornando os textos aperfeioados a cada nova edio. E a incurso de Lobato

    no universo da literatura infantil se deveu, principalmente, s suas atividades como editor,

    preocupado que estava em expandir o campo editorial brasileiro, ento precarssimo, conforme

    podemos perceber na carta ao amigo Godofredo Rangel: (...) o meu caminho esse e o

    caminho da salvao. Estou condenado a ser o Andersen desta terra- talvez da Amrica Latina... E

    isso no deixa de me assustar. (Carta a Godofredo Rangel em 28/03/1943)

    ltimas impresses: o retorno ao todo inconcluso

    Por mais que se tente exaltar e enaltecer o papel da obra de Monteiro Lobato e a

    significativa contribuio do escritor para as bases fundamentais do que hoje temos por literatura

    infantojuvenil, haver sempre discusses a serem feitas e reflexes inesgotveis que surgem a cada

    momento. Isso se deve ao fato de que a obra do escritor mpar, no sentido de dar contornos

    nacionais e reconhecveis aqui, direcionado ao pblico daqui, sem as intenes (de)formativas dos

    escritores de seu tempo, que escreviam para disciplinar adultos em miniatura.

    Procuramos aqui provocar reflexes sobre o universo infantil antes do instante em que a

    criana comeasse a ser percebida em sua singularidade prpria, que a distingue dos adultos e como

    Lobato auxiliou no sentido de repensar a criana a partir de sujeitos reais no moldados de acordo

    com as expectativas de uma elite normatizadora de atitudes e limitaes impostas.

    Destacamos aqui alguns elementos da obra lobateana a partir da obra Memrias da

    Emlia, em que procuramos refletir sobre as questes de autoria estabelecidas quando se percebe

    que a narrativa no apenas autobiogrfica, j que contm vises do personagem sobre si, mas

    tambm vises do Outro (Visconde de Sabugosa) sobre ela.

    Finalmente, procuramos destacar as singularidades de Lobato em relao aos outros

  • 22

    escritos do perodo, assinalando caractersticas norteadoras de sua obra, como o humor, a linguagem

    literria e a mescla entre fantasia e realidade que permeiam seus escritos.

    Esperamos poder ter contribudo para a reflexo acerca do papel de Lobato para a

    literatura infantojuvenil e deixamos aqui a fala da boneca mais conhecida do imaginrio brasileiro,

    a despedir-se de seus leitores (de Lobato e dela na personificao das vontades do autor em

    representar a criana com suas potencialidades especficas em relao ao universo adulto):

    Bom, vou acabar com estas memrias. J contei tudo quanto sabia; j disse vrias asneiras,

    j dei minhas opinies filosficas sobre o mundo e as minhas impresses sobre o pessoal

    aqui da casa. Resta agora despedir-me do respeitvel pblico. Respeitvel pblico, at logo.

    Disse que escreveria minhas memrias e escrevi. Se gostaram delas, muito bem. Se no

    gostaram, plulas! Tenho dito. (LOBATO, 2007, p. 91)

    Referncias

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  • 24

    AMOR OU LOUCURA? EU E O OUTRO, POR MEDEIA, DE EURPEDES, E ELIZE

    MATSUNAGA

    Francisca Luciana Sousa da Silva4

    Resumo Duas belas mulheres, versadas em artes mgicas ou curativas magia e enfermagem relacionam-se com estrangeiros e deixam a casa paterna para seguir com eles. Elas, por sua vez, so tomadas de

    amor e guiadas pelo cime: agem por impulso da ira. Temem pela segurana dos filhos: uma prefere

    mat-los a v-los padecer nas mos de estranhos (seus inimigos); a outra mata o marido ao ser

    humilhada e ter a guarda da filha ameaada. Sucumbem ante a traio e o ultraje do Outro relao de estranheza e ambivalncia. Ambas padecem de descontrole emocional, mas agem racional e

    meticulosamente: do planejamento execuo de seus crimes. So peritas na ao criminosa que

    engendram, mas com desfechos distintos. Causam mal-estar entre os seus e os outros. So tomadas

    por monstros. Como cada uma dessas mulheres (Medeia, de Eurpedes, e Elize Matsunaga) v o

    Outro e o que o Outro v nelas? O que as identifica? o que pretende apontar o presente artigo5.

    Palavras-chave Amor, Loucura, Cime, Identidade, Alteridade, Medeia, Elize.

    Abstract Two beautiful women, skillful at the arts of magic and healing sorcery and nursery engage themselves in a relationship with foreign men and abandon the house of their fathers to follow

    them. Both women are overwhelmed by the power of love and completely driven by jealously: they

    act by the impulse of pure rage. Both of them are worried about their childrens safety: one of them would rather kill them instead of seeing them in the hands of strange people (her enemies); the other

    one assassinates her own husband when he humiliates her and threatens to take her daughters custody. They both fall before the betrayal and outrage of the Other One a strange and ambivalent relationship. Both women are emotionally out of control but nevertheless they act in a rational and

    meticulous way: from the planning stage to the very execution of their crimes. They are experts on

    their criminal actions, but each outcome is different. They caused unease among their people and

    others as well. They are seen as monsters. How does each of these women (Euripedes Medea and Elize Matsunaga) see the Other One and what does the Other One see in them? What does identify

    them? This article intends to find the answers to these questions.

    Keywords Love, Madness, Jealously, Identity, Otherness, Medea, Elize.

    4

    Graduada em Letras pela UFC, ps-graduanda em Estudos Clssicos pela UnB/ARCHAI, especializao a

    distncia, mestranda em Literatura Comparada no Programa de Ps-Graduao em Letras da UFC.

    5

    Comunicao individual apresentada na XXVI Semana de Estudos Clssicos, "Identidade e Alteridade no

    Mundo Antigo", de 17 a 22 de agosto de 2012.

  • 25

    Amor ou Loucura? Eu e o Outro por Medeia, de Eurpedes, e Elize Matsunaga

    Odeio e amo. Por que o fao, talvez perguntes.

    No sei. Mas sinto-o. E excrucio-me.

    Catulo, Carme 85

    Qual meu lugar no mundo? E qual o lugar do outro? Eu e o Outro somos um? O que nos

    diferencia? E o que nos aproxima? Por que aceitar o ultraje, o abandono, a traio? Por que silenciar

    a dor? No h lugar para o dio? Seria a vingana um desvio patolgico? Em que medida? Qual a

    natureza do crime ou quais seriam os crimes contra a natureza dita humana? A imagem da alteridade

    reflete ou fere minha identidade? O ser mulher depe contra mim ou me afirma como tal? Treze

    questes e um desafio: ser e estar no mundo hbrido, violento, movido por diferentes interesses,

    entre eles, o capital. Nesse sentido, proponho-me a discorrer sobre o amor e/ou a loucura que

    movem duas mulheres e as relaes de identidade e alteridade que as atravessam; portanto, relaes

    de gnero em gneros narrativos distintos: tragdia e reportagem policial.

    Da Clquida a Corinto; de Chopinzinho, interior do Paran, a So Paulo. Travessias em

    transe. Duas mulheres errantes, seguindo de exlio em exlio, questionando o ptrio poder e a

    condio da mulher, buscando escrever uma nova histria.

    Segundo Walter Benjamin, em Escritos sobre mito e linguagem (2011:90-91), no ensaio

    intitulado Destino e Carter, Cada um pode ser visto como o outro. Nesta reflexo, longe de serem

    considerados teoricamente separados, destino e carter coincidem (...). Se algum tem carter, ento seu

    destino , no essencial, constante.

    Neste trabalho, busco perceber se h, de fato, essa coincidncia no destino e no carter de

    Medeia e Elize observando e analisando os sinais, mais ou menos evidentes, em cada uma. Assim,

    tento reconhecer bem como compreender a identidade e a alteridade dessas mulheres.

    Duas belas mulheres, versadas em artes mgicas ou curativas magia e enfermagem,

    respectivamente , relacionam-se com homens de outra cultura e origem6 e deixam a casa paterna

    para seguir outro caminho, erigir o prprio destino ou forj-lo, alter-lo7. Elas so tomadas de amor

    e guiadas pelo cime: agem por impulso da ira. Temem pela segurana dos filhos: uma prefere

    mat-los a v-los padecer nas mos de estranhos, seus inimigos (um dos motivos); a outra mata o

    marido ao ser humilhada e ter a guarda da filha ameaada. Sucumbem ante a traio e o ultraje do

    outro cinismo de Jaso, ameaas de Marcos , suscitando relaes de estranheza e ambivalncia

    (tanto Medeia quanto Elize encenam ou dissimulam, para uma dada audincia, aquilo que de fato

    so: mulheres tradas e abandonadas, ou na iminncia de s-lo antes de perpetrarem a vingana

    6 Jaso estrangeiro, vindo do reino de Iolcos, na Tesslia; Marcos de So Paulo, sua cidade natal, mas de ascendncia japonesa. 7 Medeia foge da Clquida com Jaso, Elize sai do Paran e vai tentar a sorte em So Paulo, onde conhece Marcos.

  • 26

    alimentada pela ira). Ambas padecem de descontrole emocional, mas agem racional e

    meticulosamente: do planejamento execuo de seus crimes. So peritas na ao criminosa que

    engendram, embora apresentem desfechos distintos: enquanto Medeia sai ilesa fugindo no carro do

    Sol puxado por serpentes, indo encontrar exlio em Atenas; Elize deixa rastros e acaba confessando

    o crime dois dias depois de ter sido presa. Ainda assim, as duas causam mal-estar entre os seus e os

    outros: so tomadas por monstros. Fascinantes e terrveis em suas aes, seduzem e devoram, qual

    serpente marinha: (...) o monstro marinho, o duplo malfico da mulher. (Camille Dumouli, Medusa In

    BRUNEL, 2005: 623)

    Cumpre destacar essa imagem da mulher e da serpente, tanto no texto literrio de

    Eurpedes quanto nos vasos pictricos, quando aludem ao carro de serpentes ou drages, animais

    marinhos e terrestres, intimamente relacionados com Medeia, que exerce domnio mgico sobre

    eles. Antes mesmo de Eurpedes, h imagens do mito de Medeia que fazem essa associao, como

    nos vasos atenienses de figuras negras que retratam Jaso e a serpente8. H muito se conhecia seu

    carter de maga impressionante, movida por um intenso pthos que resultou no filicdio, um dos

    elementos diversos do mito original, segundo o qual os filhos teriam sido vitimidos pela populao

    de Corinto a fim de vingar a morte de Glauce, filha de Creonte. Eurpedes seria o mais antigo a

    tratar do filicdio, provocando, por um lado, repdio (a tragdia ficou em terceiro lugar no festival

    de teatro ateniense); suscitando, por outro, questionamentos (a patologia da maga da Clquida

    reflete psicose ou altrusmo? H, de fato, loucura ou lucidez na vingana perpetrada contra Jaso?).

    Outro paralelo possvel com o mito de Medusa. Medeia (haveria uma raiz comum para

    esses nomes?) faz uso de mscaras para ocultar sua real persona diante de Creonte e,

    posteriormente, de Jaso, quando da execuo de seu plano para assassinar Glauce. Esta refletida

    no espelho ao tomar os adornos malditos: vu (peplo) e coroa (grinalda), sendo incendiada pelo

    phrmakon terrvel de Medeia. O terror da violncia se d no olhar que petrifica, conforme se l nos

    versos 1.156-1.175ss, na traduo de Trajano Vieira.

    Ao contemplar o luxo, convenceu-se a conceder o que Jaso pedisse, e,

    antes de o grupo se ausentar, tomou da tnica ofuscante e a vestiu; deps

    nas tranas o ouro da guirlanda; devolveu, ao espelho, os fios rebeldes;

    exmine de si, sorriu ao cone. No mais no trono, cmodo aps cmodo,

    equilibrava os ps de tom alvssimo, sumamente radiosa com os rtilos ,

    fixada em si s vezes, toda ereta. Eis seno quando armou-se a cena ttrica:

    sua cor descora; trmula, de esguelha retrocedia; prestes a cair no cho,

    8 Alguns aspectos de la performance de Medea de Eurpedes, conferncia proferida por Juan Tobas Npoli, Universidad Nacional de La Plata/Argentina, no XVIII Congresso Nacional de Estudos Clssicos realizado pela SBEC

    na cidade do Rio de Janeiro, de 17 a 21 de novembro de 2011.

  • 27

    encontra apoio no espaldar. Supondo-a possuda por um nume, quem sabe

    P, a velha escrava urrou antes de ver jorrar da boca o visgo leitoso, o giro

    da pupila prestes a escapulir, palor na tez. A anci delonga o estrdulo num

    contracanto; morada do pai corre uma ancila, enquanto algum do grupo

    busca o cnjuge, para deix-lo a par do acontecido. No pao ecoa a rapidez

    dos passos.9

    Fig. 1 Morte de Creonte e de sua filha. Detalhe de cratera com volutas, de figuras vermelhas,

    atribuda ao Pintor do Mundo Subterrneo. Aplia. Data: -330/-320. Munique, Antikensammlung.

    Crditos: Barbara McManus, 2005.

    9 Daniel Rinaldi, (Universidad Nacional Autnoma de Mxico) muito bem analisou a imagtica de Medeia na conferncia Epigramas ecfrsticos de Medea. Literatura y artes plsticas no encerramento da XXVI Semana de Estudos Clssicos Identidade & Alteridade no Mundo Antigo. Para ele, o mito de Medeia oferece a matria poesia dramtica e esta pintura.

  • 28

    Fig. 2 Morte dos filhos de Medeia e sua posterior fuga. Detalhe de cratera com volutas, de figuras

    vermelhas, atribuda ao Pintor do Mundo Subterrneo. Aplia. Data: -330 / -320. Munique,

    Antikensammlung. Crditos: Barbara McManus, 2005. 10

    Fig. 3 Creusa e os filhos de Medeia. gua forte de Ren Boyvin. Data: 1525/1610. Fonte: no informada.

    Feitas essas consideraes, suponho ser possvel entrever o carter e o destino de Medeia e

    Elize, contudo, ainda segundo Benjamin:

    10 RIBEIRO JR., W.A. Cenas da Medeia de Eurpides. Portal Graecia Antiqua, So Carlos. Disponvel em . Acesso: 04/11/2012.

  • 29

    Assim como o carter, o destino no pode ser inteiramente percebido em si mesmo,

    mas apenas em sinais, pois mesmo que este ou aquele trao de carter, este ou

    aquele encadeamento do destino possa se oferecer vista o conjunto visado por

    esses conceitos no est disponvel seno nos sinais, na medida em que ele se situa

    alm do que se oferece imediatamente vista.

    (op. cit. 90)

    Elas so rs confessas: Medeia comete crime familiar para abrir caminho a Jaso; depois

    de trada, fere mortalmente a rival e, por tabela, o pai tirano desta, para ferir moralmente o traidor.

    Recorda outro crime cometido em prol do herdeiro de Iolcos assassinato de Plias, usurpador do

    trono de Jaso e trama um derradeiro golpe para faz-lo pagar por tamanha ingratido: tirar-lhe os

    herdeiros e, com isso, a garantia de perpetuao do nome. Elize, por sua vez, no fere mais ningum

    a no ser o marido. Todo o seu dio desferido contra ele. Qual Medeia outrora11

    , Elize esquarteja

    Marcos, depois de acert-lo com um tiro de pistola. A pizza da morte12

    sinaliza, seno atesta, que a

    vingana um prato que se come frio.

    A despeito da ao criminosa que engendram, pode-se dizer que ambas so mulheres

    fortes, capazes de lutar pelos princpios em que acreditam, no se submetendo a imposies de

    ordem social, econmica ou cultural, sem perder as caractersticas da feminilidade, assim como as

    personagens Lavnia e Itz na obra A mulher habitada, de Belli (Zinani, 2006: 21). Corroborando as

    palavras da autora, constata-se a importncia da conscientizao feminina sobre a necessidade de

    subverter os costumes e os mitos tradicionais ( o que faz Eurpedes), tais como as costumeiras

    subservincias femininas, a discriminao no estabelecimento dos papeis sociais, o eterno feminino

    e a tradio to cara aos romnticos referentes idealizao da mulher. (idem).

    Amor ou loucura? Medeia, ferida no corao pelo amor a Jaso, na traduo em prosa de

    Miroel Silveira e Junia Silveira Gonalves, padecer pela injria sofrida, nutrindo a vingana como

    pena para seu algoz. O clculo da vingana em Medeia ser proporcional dor sofrida, e a ira,

    acompanhada de razo. Ela ainda questiona o papel da mulher, em particular a condio de me e

    esposa (at mesmo a de filha), alm do fardo de ser estrangeira e seguir sendo polis (a sem cidade).

    No h lugar para ela. Ela aquela que no tem lugar.

    EU

    Florbela Espanca

    Eu sou aquela que no mundo anda perdida,

    Eu sou a que na vida no tem norte,

    11 Contra o irmo Apsirto (ou Absirto), na fuga da Clquida, e contra Plias, vitimado pelas prprias filhas (ludibrio de Medeia). 12 O casal havia pedido uma pizza logo que Elize chegou de viagem.

  • 30

    Sou a irm do Sonho, e desta sorte

    Sou a crucificada... a dolorida...

    Sombra de nvoa tnue e esvaecida,

    E que o destino amargo, triste e forte,

    Impele brutalmente para a morte!

    Alma de luto sempre incompreendida!

    Sou aquela que passa e ningum v...

    Sou a que chamam triste sem o ser...

    Sou a que chora sem saber por qu...

    Sou talvez a viso que Algum sonhou,

    Algum que veio ao mundo pra me ver,

    E que nunca na vida me encontrou!

    (Livro de Mgoas, 1919)

    Os versos da poetisa portuguesa traduzem o tom pungente da fala de Medeia antes que

    ascenda e agigante a flama da fria (Cf. VIEIRA, 2010: 33). A sbia, fleumtica e passional assim

    se apresenta ama e ao coro de mulheres, mas de modo diverso aos trs interlocutores principais:

    Creonte, Egeu e Jaso. Medeia representa uma persona diante desses trs personagens. Ela opera

    um jogo de mscaras (ou seria teatro de sombras?) no qual identidade e alteridade se confundem. A

    maga da Clquida representa o papel de me abandonada com os filhos pelo ex-marido. Tal

    performance, segundo Trajano Vieira (p. 169), denota que a patologia de seu estupor mental

    impulsiona as diretrizes falsas que ela indica a seus interlocutores.

    A um tirano ela pede um dia; a outro, exlio e juramento; ao srdido dos srdidos (v.

    465), convence a levar os filhos presena da noiva e entregar-lhe presentes. A brbara, estrangeira,

    outra vez banida, manipula a fala e o lugar do Outro, sugerindo uma identificao ambivalente,

    uma ambivalncia do desejo pelo Outro: duplicado pelo desejo na linguagem, uma fisso da

    diferena entre Eu e Outro, a extremidade do sentido e do ser, a partir dessa fronteira deslizante

    de alteridade dentro da identidade (...). (Interrogando a identidade In BHABHA, 1998: 85-86).

    Esses e outros postulados de Homi K. Bhabha, em O local da cultura (1998)

    fundamentam, no mbito da antropologia e dos estudos culturais, o discurso ora apresentado, no que

    tange condio da mulher e s relaes de poder no Mundo Antigo, ainda prementes no mundo

    contemporneo. Zinani (2006: 24) reitera essa perspectiva: A anlise da situao cultural da

  • 31

    mulher relevante no sentido de verificar como ela v o outro, como vista pelo grupo dominante

    e, consequentemente, por si mesma. Por isso o texto de Eurpedes a expresso do inovador e do

    subversivo, mesmo transcorridos tantos sculos.

    E quanto a Elize Matsunaga? Diferente de Medeia, ela no era uma princesa de

    ascendncia divina (Medeia neta do Sol; filha de Eetes, da linhagem de Ssifo; filha de Eydia, uma

    oceanida), tampouco foi raptada ou fugiu com um heri lendrio. De origem humilde, ela foi criada

    pela me; aos 18 anos, mudou-se para a capital do Paran onde fez um curso tcnico de

    enfermagem. Trabalhou num centro cirrgico e de l seguiu para So Paulo. O perodo que engloba

    a chegada capital paulistana e o envolvimento com Marcos desconhecido. Segundo alguns

    noticirios, ela teria sido garota de programa e foi nessa condio que Marcos Matsunaga a

    conheceu, contratando seus servios por meio de um site de busca. Por trs anos mantiveram um

    relacionamento clandestino, at que ele decidiu assumir a amante e divorciar-se da primeira esposa.

    J casados, levavam uma vida de aparente normalidade e harmonia, conforme depoimento de

    amigos e parentes do casal. Em 2011, ela graduou-se em Direito, mas nunca trabalhou, pois o

    marido preferia assim.

    O cime, porm, imiscuiu-se na vida conjugal. Brigas constantes, desconfiana, pedido de

    demisso de funcionria. O casamento comeou a ruir em 2010 e s se recuperou com o nascimento

    da filha. A sombra da traio, porm, ganhou projeo.

    Ela informou-se acerca do divrcio com um advogado da famlia, contratou um detetive

    particular pouco antes de viajar para Chopinzinho, sua cidade natal, sob o pretexto de apresentar a

    filha pequena me e aos demais parentes. A famlia de nada desconfiava. Em dois dias, estava de

    volta em So Paulo com a bab e a filha. Na cobertura de mais de 500 metros quadrados na Vila

    Leopoldina, Zona Oeste de So Paulo, dispensada a ajudante, ela confrontou o marido. Foram

    trocadas acusaes, ameaas foram feitas, at que um estampido silenciou Marcos e redefiniu o

    destino de Elize.

    Aps o crime, revelou uma carta que soa como resposta matria de capa da revista VEJA:

    Mulher fatal, de 13 de junho de 2012, cuja reportagem especial tem por ttulo Fim do conto de

    fadas (p. 84-85).

  • 32

    Fig. 4 Carta publicada em perfil de rede social. URL: . Acesso em 4 de

    novembro de 2012.

    Transcorridos tantos sculos, ainda posta em xeque a condio feminina. Elize, no dizer

    de Homi K. Bhabha, traz tona o imperativo da negao: A negao da mulher migrante sua

    invisibilidade social e poltica usada em sua arte secreta de vingana, a mmica. (p. 92)

    Elize, Medeia e outras mulheres de igual ou semelhante natureza no desempenham bem o

    papel de mlissa, pois lhes faltam as virtudes de esposa ideal: silncio, inferioridade, debilidade,

    fragilidade, passividade (Cf. GRILLO et al. 2011: 104). Elas so movidas por sentimentos opostos,

    a saber: amor e dio. Essa ambivalncia constante tende agressividade, que no necessariamente

    se confunde com violncia, salvo quando h o emprego desejado da agressividade com fins

    destrutivos (COSTA, 1986 In GRILLO et al. 2011: 235).

    No caso de Medeia e Elize, h tanto agressividade quanto violncia, posto que as duas so

    vitimadas por ros e pthos, investindo, direta ou indiretamente, contra o Outro. As enfermidades

    da alma, que tm origem na vida instintiva, contribuem, assim, para a determinao do destino

    dessas mulheres (Cf. JAEGER, 2003: 408). De um lado estaria a razo masculina; de outro, a des-

    razo feminina (...), produtora da desordem. (A loucura feminina na letra do texto In Brando,

    2004: 51.56). Enquanto uma segue errante, a outra paga pelo erro com dupla privao: da liberdade

    e da filha.

  • 33

    A morte no olhar

    A mo assassina

    Amor, teu olhar...

    A me assassina...

    (Luciana Sousa, 15/08/2012)

    No fundo do poo encontrei o enlace, a vida e a Morte, masculino e feminino, o Eu e o

    Outro, entredevorando-se como uma serpente que engole a prpria cauda. Da treva e do

    delrio saltou a Morte de braos abertos: prostituta, donzela, promessa, danao. Ela me

    chamando, bbada de mistrio, eu precisava entender: quem me aguarda no regao dela?

    Que silncio, que novo linguajar?

    (Lya Luft. O quarto fechado. P. 18)

    Referncias bibliogrficas

    BELLODI, Zina C. Melhores poemas / Florbela Espanca (seleo). So Paulo: Global, 2005.

    BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921). Organizao, apresentao e

    notas de Jeanne Marie Gagnebin; traduo e Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. So Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2011.

    BHABHA, Homi K. O local da cultura. Traduo de Myriam vila, Eliana Loureno de Lima

    Reis, Glucia Renata Gonalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

    BRANCO, Lucia Castello e BRANDO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Lamparina editora, 2004.

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  • 34

    ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Identidade e Subjetividade: Crtica Feminista In ______. Literatura e gnero: a construo da identidade feminina. RS: EDUCS, 2006. P. 19-31.

    Revistas

    LAGE, Celina Figueiredo; DIAS, Maria Tereza. SCRIPTA CLSSICA ON-LINE. Literatura,

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    http://www.scriptaclassica.hpg.com.br.

    VEJA. Edio 2273. Ano 451, no. 24 So Paulo: Ed. Abril. 13 de junho de 2012.

  • 35

    O FANTSTICO LUZ DA TEORIA MUSICAL

    Francisco Vicente de Paula Jnior13

    Resumo Este trabalho tem como objetivo analisar o estabelecimento do Fantstico nas narrativas luz do

    conceito de Dissonncia proveniente da Teoria Musical em uma analogia que nos possibilitar

    entender o gnero fantstico como uma dissonncia harmnica no sistema dos gneros literrios.

    Tendo como suporte terico as ideias de Aristxenes, Tzvetan Todorov, Irne Bessire e Theodor

    Adorno, analisaremos a maneira como a narrativa fantstica surge em seu processo mimtico e

    como a sua estruturao se ope a uma realidade harmnica estabelecida. Para a efetiva

    comprovao do que proposto, depois de uma necessria explicao sobre o Fantstico e a

    Msica, utiliza-se o conto O imortal, de Jorge Lus Borges, no qual tais assertivas so confirmadas.

    Palavras-chave Gnero; Fantstico; Dissonncia; Borges.

    Abstract This paper aims to examine the establishment of the Fantastic in the narratives in the light of the

    concept of dissonance from the Music Theory in an analogy that will enable us to understand the

    fantastic genre as a harmonic dissonance in the system of literary genres. Backed theoretical ideas

    of Aristxenes, Tzvetan Todorov, Irne Bessire and Theodor Adorno, we analyze how the fantastic

    narrative emerges in his mimetic process and how its structure precludes a true harmonic

    established. For effective evidence of what is proposed, after a necessary explanation of the

    Fantastic and Music, uses the tale "The immortal" by Jorge Luis Borges where such assertions are

    confirmed.

    Key-words Genres; Fantastic; Dissonance; Borges.

    13 Francisco Vicente de Paula Jnior Doutor em Literatura e Cultura pela UFPB e Mestre em Literatura Brasileira

    pela UFC. Atualmente, professor adjunto da Universidade Estadual Vale do Acara- UVA.

  • 36

    Um dia a dissonncia ser bela (Flvio Venturini)

    Consideraes iniciais

    Reiterando necessariamente Tzvetan Todorov, correto dizer que todas as definies ou

    estudos sobre o Fantstico restam incompletos, ora porque no desvendam o gnero, ora porque no

    o abarcam totalmente, ou ainda, porque este vive em constante transformao, segundo a viso mais

    contempornea, difundida pela francesa Irne Bessire, na qual o Fantstico visto como um

    gnero evolutivo, a reescrever-se de acordo com a poca e com o homem.

    Pensar, ento, numa evoluo no apenas do gnero literrio, mas do prprio gnero

    fantstico, parece a soluo mais vivel para um estudo que se quer ao menos atualizado sobre

    temticas sobrenaturais, pois quando passarmos a achar que delimitar o fantstico no traz nenhuma

    confuso, estaremos ignorando uma verdade: qualquer narrativa sobrenatural, que no esteja em seu

    estado puro, pode conter elementos do fantstico, ainda que este no predomine.

    O que tencionamos dizer com isso que o Fantstico, a despeito de estudos mais

    tradicionais, no deve ser encarado como uma manifestao literria esttica e amorfa ou

    simplesmente como algo situado em um tempo distante, mas uma forma ou modalidade narrativa de

    carter evolutivo, pois, ao menos modernamente, nunca devemos desconsiderar as relaes do texto

    com seus pressupostos histricos, sociais, culturais e antropolgicos, exatamente porque este

    posicionamento acaba sendo no apenas uma importante exigncia para a compreenso do texto,

    mas uma singular caracterstica do prprio sistema literrio.

    Posto isso, a relao que estabelecemos em nosso ttulo entre a Literatura e a Msica,

    entre o Fantstico e a Dissonncia, categoria da teoria musical, faz parte exatamente dessa

    estratgia, a de pensar o Fantstico sob um novo prisma terico. Assim, nada mais justo que

    recorramos a um dos melhores tericos da contemporaneidade que coincidentemente, estudou os

    dois assuntos: msica e literatura.

    Como grande esteta, conhecedor de muitas artes, inclu