As Tres Culturas Naomar

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    PontodeAcesso, Salvador, v.1, n.1, p. 5 -15, jun. 2007. 5

    AS TRS CULTURAS NA UNIVERSIDADE NOVA1

    Naomar de Almeida Filho [email protected]

    Resumo

    Neste ensaio, inicialmente abordamos a formao histrica do conjunto de saberes estruturantes do pensamentoocidental. Segundo, avaliamos a questo das duas culturas, nos termos da famosa conferncia de C.P. Snow de 1959,indicando a importncia de agregar o conceito da Terceira Cultura. A partir da reviso crtica de vriaspossibilidades de construir a terceira cultura, propomos a diferenciao das Artes em relao s Humanidades, dadaa redefinio do conceito de humano na estrutura ideolgica da contemporaneidade. Conclumos que se justifica

    plenamente uma profunda reestruturao da arquitetura curricular da educao superior com base no marcoconceitual das trs culturas, que melhor traduz a cosmologia complexa das sociedades contemporneas, e quepermitir a reinveno da universidade brasileira.

    Palavras-chave: Cultura cientfica; Cultura artstica; Humanidades; Universidade Nova.

    INTRODUO

    Alm de promover qualidade, flexibilidade, mobilidade e compromisso social nauniversidade brasileira e torn-la mais integrada ao panorama contemporneo de educao

    superior, uma das principais motivaes do movimento Universidade Nova consiste no resgate

    da instituio universitria como casa da cultura. Tal objetivo resulta da constatao de que, na

    conjuntura brasileira atual, a universidade s vezes consegue cumprir sua funo de formar

    profissionais tecnicamente competentes, mas permite, por omisso, que os alunos saiam dela

    incultos.

    Para retificar to grave lacuna, defendemos a reestruturao radical da arquitetura

    curricular da instituio universitria, introduzindo na educao superior temas relevantes da

    cultura contempornea. Mas quais seriam tais temas da cultura? Haveria mesmo uma cultura

    1Apresentado originalmente no VII CINFORM.2- PhD em Epidemiologia, Professor Titular do Instituto de Sade Coletiva, Universidade Federal da Bahia. PesquisadorI-A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico - CNPq.

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    contempornea? Ou, considerando a diversidade multicultural do mundo hoje, no seria melhor

    pensar em culturas, no plural?

    ANTECEDENTES

    Na Idade Mdia, no momento em que se inaugurava a feliz inveno chamada

    universidade, reforava-se a distino entre ars mechanicae (ofcios manuais e servis) e ars

    liberales(atividades do intelecto prprias aos homens livres) e se produziu uma classificao dos

    saberes que pode ser relacionada oposio moderna entre cincia e literatura. O currculo

    universitrio era composto de sete artes liberais, subdividido em dois grupos: o trivium

    gramtica, dialtica e retrica; e o quadrivium geometria, aritmtica, astronomia e msica. O

    trivium compreendia as ars sermocinales (artes do discurso) e poderia corresponder s

    humanidades, enquanto as ars reales (artes das coisas) do quadrivium corresponderiam protocincia daquela poca. No momento crucial de constituio da modernidade, a escolstica

    medieval foi traduzida na idia de humanidades, corpo de saberes pertinentes ao conjunto dos

    homens livres, como uma primeira definio unificada de cultura.

    Um dos aspectos centrais das profundas transformaes consumadas j no sculo XVII

    a reivindicao de autonomia da cincia em relao s humanidades. O ideal renascentista do

    sbio-artista-cientista, encarnado na genialidade de Da Vinci, e o movimento iluminista do

    enciclopedismo, exemplificado pelo talento mltiplo dos pioneiros cientistas (que eram

    simultaneamente fsicos, mdicos, filsofos, matemticos, astrnomos, naturalistas e alguns at

    literatos e polticos), eram em certa medida marginais em relao histria da cincia normal

    (Santos 1989, 2003). Assim, atravs de um processo de gradual (e conflitiva) diferenciao, as

    disciplinas cientficas emergem das humanidades, a partir do sculo XVIII.

    A ampliao do escopo da nascente prtica institucional da cincia, com suas sociedades

    e academias, produzia campos disciplinares cada vez mais rigorosamente delimitados, como se

    fossem - e eram - territrios inexplorados, demarcados e apropriados pelos seus desbravadores.

    A cincia ocidental se desenvolveu com base na noo de especialidade (e seus correlatos:

    especialista e especializao). Por essa via, na arena cientfica, mais e mais se valorizava a

    especializao, tanto no sentido de criao de novas disciplinas cientficas quanto na direo de

    subdivises internas nos prprios campos disciplinares; no campo das prticas sociais, novas

    profisses eram criadas; no mbito da reproduo ampliada, um novo sistema de ensino e

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    formao estruturava-se com base nesta estratgia minimalista de recomposio histrica da

    cincia e da tcnica. Podemos em princpio designar esta estratgia de organizao histrico-

    institucional da cincia, baseada na fragmentao do objeto e numa crescente especializao do

    sujeito cientfico, como a disciplinaridade.

    Os seguidores de um magister (mestre) eram chamados discipuli; o termo passou em

    seguida a designar aqueles que aderiam filosofia de uma escola ou de um grupo ou que se

    ligavam a um mesmo modo de pensar. Nesta famlia semntica, disciplina inicialmente

    significava a ao de aprender, de instruir-se; em seguida, a palavra foi empregada para referir-se

    a um tipo particular de iniciao, a uma doutrina, a um mtodo de ensino. Posteriormente, veio a

    conotar o ensino-aprendizado em geral, incluindo todas as formas de educao e formao. Por

    metonmia, a partir do sculo XIV, com a organizao das primeiras universidades ainda no

    contexto escolstico, disciplina passou a designar uma matria ensinada, um ramo particular doconhecimento, o que depois viria a se chamar de uma cincia. Assim, a disciplina tornou-se

    equivalente a princpios, regras e mtodos caractersticos de uma cincia particular e, por

    extenso, de toda a Cincia (Rey 1993; Bibeau 1996).

    Segundo Foucault, em sua obra-prima As Palavras e as Coisas, a oposio

    humanidades/cincia foi apenas um primeiro movimento no sentido da especializao dos

    campos discursivos de representao do mundo natural mediante os relatos cientficos. Desse

    modo, aps a extrao das cincias do seio das humanidades, implantou-se ao longo dos sculos

    XVIII e XIX uma profunda e crescente desconfiana mtua entre humanidades e cincias. Ao

    longo dos sculos, cresceu a separao entre humanidades e pensamento cientfico, culminando

    com a ruidosa guerra das cincias do final do sculo XX, quando as cincias humanas quase

    foram expulsas do panteo dos conhecimentos socialmente legitimados.

    SNOW E AS DUAS CULTURAS

    Em 1959, Charles Percy Snow (1905-1980) publicou sua Rede Lecture, ministrada na

    famosa Universidade de Cambridge, sob o ttulo As duas culturas. Esse texto tornou-se um

    clssico. Continua sendo publicado, traduzido em quase todas as lnguas modernas.

    Snow, que era Lord Snow of Leicester, autodefinia-se como "por formao, cientista; por

    vocao, escritor". Doutor em Fsica pela Universidade de Cambridge, desde cedo engajou-se em

    atividades de pesquisa, participando do desenvolvimento da mecnica quntica e o comeo da

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    fsica de partculas moderna; no esconde o orgulho de ter tido o "privilgio de assistir da

    primeira fila a um dos momentos mais extraordinariamente criativos de toda a fsica". Na sua

    conferncia, registra tentou "dar forma aos livros que queria escrever, o que, no devido tempo

    me levou ao convvio com escritores." Lord Snow percebeu a existncia de "duas culturas",

    representadas por "dois grupos, comparveis em inteligncia, idnticos em raa, no muito

    distantes em origem social, que recebiam quase os mesmos salrios, mas que haviam cessado

    quase totalmente de se comunicar entre si e que, na esfera intelectual, moral e psicolgica,

    tinham to pouca coisa em comum".

    Afora os deslizes de esnobismo e preconceito da etnocntrica aristocracia britnica, a

    descrio que Snow faz dos dois grupos ainda atual: "Num plo os literatos; no outro os

    cientistas e, como mais representativos, os fsicos. Entre os dois, um abismo de incompreenso

    mtua --- algumas vezes (particularmente entre os jovens) hostilidade e averso... Cada um temuma imagem curiosamente distorcida do outro. [...] Os no-cientistas tendem a achar que os

    cientistas so impetuosos e orgulhosos [...] tm a impresso arraigada de que superficialmente os

    cientistas so otimistas, inconscientes da condio humana. Por outro lado, os cientistas

    acreditam que os literatos so totalmente desprovidos de previso, [...] num sentido profundo,

    antiintelectuais..."

    Por um lado, Lord Snow se baseava em uma abordagem convencional do conceito de

    humanidades, incluindo as artes e a literatura, a filosofia e as cincias sociais. Por outro lado,

    mesmo empregando a Fsica como paradigma do pensamento cientfico, considerava

    pioneiramente a cincia como cultura cientfica, e nisto mostrava-se sintonizado com as

    propostas mais avanadas da epistemologia de sua poca. Em suas sensveis palavras: "a cultura

    cientfica realmente uma cultura, no somente em sentido intelectual, mas tambm em sentido

    antropolgico. Isto , seus membros no precisam sempre compreender-se completamente, e

    com certeza freqentemente no o fazem; os bilogos geralmente tm uma idia bastante

    obscura da fsica contempornea; mas existem atitudes comuns, abordagens e postulados

    comuns. Isto se manifesta surpreendentemente de maneira extensa e profunda." Enfim, Snow

    reconhecia a centralidade da cincia no mundo moderno, porm denunciava o crescente e

    indesejvel hiato, mesmo antagonismo, entre as humanidades e as cincias. Em um dos seus

    ltimos trabalhos, Octavio Ianni escreveu que Lord Snow estava seriamente inquieto com a

    indiferena e o desconhecimento recprocos, empenhado em minimiz-los ou mesmo super-los.

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    Acreditava, com razo, que as humanidades e as cincias so prejudicadas, se os cientistas e os

    humanistas se mantm indiferentes ou desconhecendo-se.

    A TERCEIRA CULTURA

    Cuidadoso, Lord Snow of Leicester advertia que qualquer tentativa de dividir algo em

    duas partes deve ser considerada muito suspeita. Em 1963, Snow coerentemente props, em um

    ensaio intitulado Uma Segunda Viso, a necessidade de considerar uma "terceira cultura",

    supostamente formada por humanistas com um bom conhecimento de cincia e por cientistas

    com forte sensibilidade s artes e humanidades, e que poderiam fazer a ponte entre as duas

    culturas. Resultantes da pioneira contribuio de Snow, vrios estudiosos propuseram distintas

    solues para a questo da terceira cultura, como por exemplo John Brockman(1995) e Wolf

    Lepenies(1996).Numa vertente bastante distinta, Edgar Morin(1975) apresenta a proposta de uma

    Terceira Cultura, ao lado das culturas clssicas religiosas ou humanistas e nacionais.

    Articulando sua profusa contribuio para a construo de um holismo eco-scio-antropolgico,

    Morin identifica a cultura dos jornais, do cinema, da televiso etc. como uma estranha

    noosfera, para ele meceredora de ser considerada como a cultura caracterstica da sociedade

    contempornea.

    Num inspirado ensaio denominado Cincia, tecnologa y humanidades para el siglo XXI,

    o filsofo espanhol Francisco Fernndez (apud BUEY, 2004) realiza uma detalhada reviso

    crtica dos conceitos de terceira cultura. Desde as proposies de uma mera fuso das cincias

    com as humanidades (proposta por John Brockman), de tomar as cincias sociais como ponte

    (Lepenies) ou fomentar uma abertura culturalista dos paradigmas da cincia (Pierre Fayard).

    Fernndez tambm avalia criticamente as proposies de que o papel de ponte intercultural

    poderia ser desempenhado pela popularizao da tecnocincia (no sentido do grupo Quark) ou

    pelo retorno Filosofia, diretamente (conforme Manuel Sacristn) ou atravs da tica (conforme

    Potter). Finalmente, assume a crtica frontal de Stephen Gould contra a proposta de unificao do

    conceito reducionista de consilincia do scio-bilogo Edward Wilson, tomado por muitos

    autores como o elo perdido da terceira cultura de Snow.

    Dentre as vrias vertentes analisadas, Fernndez descartou como simplistas propostas de

    tomar a filosofia ou as cincias sociais como culturas-ponte ou de fuso das cincias s

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    humanidades, bem como avaliou criticamente as teses de unificao reducionista das

    humanidades s cincias. Conclui Fernndez que as duas culturas no devem confluir para uma

    terceira cultura, e que se deve buscar uma soluo para esse problema no pensamento crtico

    sem, no entanto, indicar qual seria a possvel sada.

    AS TRS CULTURAS DA UNIVERSIDADE NOVA

    Ao construir conceitualmente a proposta da Universidade Nova, avaliamos

    cuidadosamente essa questo, rejeitando liminarmente propostas tipo terceira via, como por

    exemplo conceitos de terceira cultura resultantes de mix tericos, apagamento de diferenas

    conceituais ou apaziguamento de contradies ideolgicas. Decidimos ser cautelosos em relao

    a idias de integrao, pontes ou fuses entre cincias, humanidades e artes, pois se trata de

    modos distintos de construo do mundo, que precisam ter suas especificidades respeitadas.Para retificar a grave questo da incultura na formao universitria brasileira, propomos

    uma radical reestruturao da arquitetura curricular da educao superior, com a introduo dos

    Bacharelados Interdisciplinares. Trata-se de uma nova modalidade de curso superior capaz de

    fomentar a formao dos estudantes universitrios em eixos ou temas relevantes da cultura

    contempornea. Com esse esprito, baseamos a estrutura curricular e o sistema de ttulos dos

    Bacharelados Interdisciplinares da Universidade Nova em trs modalidades de cursos,

    abrangendo grandes reas do conhecimento correspondentes s trs culturas que identificamos

    como principais eixos estruturantes dos saberes e prticas do mundo contemporneo: Cultura

    Humanstica; Cultura Artstica; Cultura Cientfica.

    Seguindo o marco conceitual aqui esboado, os Bacharelados Interdisciplinares da

    Universidade Nova compreendem:

    a) BI em Artes (BA), com as seguintes reas de concentrao: Artes Visuais;

    Dana; Teatro; Msica; Cinema e Vdeo.

    b) BI em Humanidades (BH), com as seguintes reas de concentrao:

    Letras; Filosofia; Educao; Comunicao; Cincias Humanas.

    c) BI em Cincias (BC), com as seguintes reas de concentrao: Cincias

    Exatas; Cincias da Matria; Cincias da Terra; Cincias da Vida; Cincias da Sade;

    Cincias Sociais Aplicadas.

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    A Formao Geral do BI compreende Eixos Interdisciplinares Temticos correspondentes

    s trs culturas que estruturam os saberes e prticas do mundo contemporneo: a) Cultura

    Humanstica; b) Cultura Artstica; c) Cultura Cientfica. Assim, para preencher os requisitos da

    formao universitria plena, todos os alunos da rede Universidade Nova cumpriro crditos em

    cada uma das trs culturas: Artes, Humanidades, Cincias. Esta fase da Formao Geral compe-

    se de sete (7) componentes curriculares, com um mnimo de dois (2) Blocos, de escolha opcional

    em cada um dos Eixos Interdisciplinares (porm com incentivo oferta de blocos integradores).

    Note-se que nessa fase da formao se introduz o conceito de interdisciplinas, expressando

    estudos sobre temas/problemas complexos, irredutveis aos recortes monodisciplinares, onde se

    aplicam componentes curriculares que abordam campos temticos que envolvem e articulam

    mais de um campo disciplinar.

    Vejamos alguns exemplos de interdisciplinas de Cultura Humanstica: Conhecimento &Realidade; tica & Cidadania; Poltica & Direitos Humanos; Cultura de Paz; Sexualidade;

    Qualidade de Vida (Esporte, Sade, Lazer); Conscincia Ecolgica; Subjetividade & Vida

    Cotidiana; Formaes Econmicas e Sociais; Matrizes tnico-culturais do Brasil; Informao &

    Cibercultura; Educao & Sociedade; Mdia & Poder. Exemplos de interdisciplinas de Cultura

    Artstica: Estticas; Panorama das Artes; Literatura (ler e analisar Poemas, Contos, Romances e

    Dramas); Iniciao Artstica (opes: Msica, Artes Visuais, Teatro, Dana, Cinema, Multi-

    Arte); Memria & Criao; Patrimnio Artstico-Cultural; Participao Orientada em Eventos

    Artsticos e Culturais; Indstria Cultural. Exemplos de interdisciplinas de Cultura Cientfica:

    ticas & Tecnocincias; Epistemologia & Metodologia; Raciocnio Quantitativo (Matemtica,

    Estatstica, Geometria, Lgica); Informao: Cincia & Tecnologias; Histria das Cincias e das

    Tcnicas; Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico; Participao Orientada em Eventos

    Cientficos.

    A CULTURA DAS CINCIAS

    Para atualizar a idia de cincia, reafirmamos o seu carter plural como construo

    histrica e produto da cultura. Isso implica destacar o sentido simblico e institucional das

    cincias como narrativas, produtos discursivos, modo de produo de discursos, prticas sociais

    em interface com outras prticas sociais, objetos culturais em campos culturais; enfim, o

    conceito de cultura cientfica.

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    Hoje, ultrapassados obstculos e fronteiras disciplinares e paradigmticas, podemos

    reafirmar o carter das cincias (no plural) como construo histrica e produto cultural. Nesse

    sentido, preciso rever a obra de Thomas Kuhn e de outros, ps-kuhnianos, destacando o sentido

    simblico e institucional das estruturas lingsticas e operativas das cincias.

    Entre ns, Carlos Vogt(2003) quem reafirma com mais clareza o carter cultural da

    cincia. Pela preciso da sua proposta, ser mais conveniente dar a palavra a Vogt (2003), numa

    citao mais longa:

    Melhor do que alfabetizao cientfica (traduo para scientific literacy),

    popularizao/vulgarizao da cincia (traduo para popularisation/vulgarisation de la

    science), percepo/compreenso pblica da cincia (traduo para public

    understanding/awareness of science) a expresso cultura cientficatem a vantagem de englobar

    tudo isso e conter ainda, em seu campo de significaes, a idia de que o processo que envolve odesenvolvimento cientfico um processo cultural, quer seja ele considerado do ponto de vista

    de sua produo, de sua difuso entre pares ou na dinmica social do ensino e da educao, ou

    ainda do ponto de vista de sua divulgao na sociedade, como um todo, para o estabelecimento

    das relaes crticas necessrias entre o cidado e os valores culturais, de seu tempo e de sua

    histria.

    O conceito de cultura cientfica incorpora pelo menos trs significados possveis: a)

    Cultura da cincia; b) Cultura pela cincia; c) Cultura para a cincia. O primeiro sentido implica

    tanto a cultura gerada pela cincia quanto os elementos culturais prprios da cincia, como as

    ticas, as linguagens, os rituais cientficos, enfim, o habitusdas comunidades de pesquisadores.

    O segundo sentido pontua a cultura que se cria por meio da cincia e sua aplicaes, bem como a

    criao de cultura a favor da cincia. Finalmente, restam as aes culturais voltadas para a

    produo da cincia e para a socializao da cincia, incluindo todos os aspectos do que se

    chama de divulgao cientfica. Segundo Vogt (2003): Essas distines aqui esquematizadas

    certamente no esgotam a variedade e a multiplicidade de formas da interao do indivduo com

    os temas da cincia e da tecnologia nas sociedades contemporneas, mas podem contribuir para

    um entendimento mais claro da complexidade semntica que envolve a expresso cultura

    cientfica e o fenmeno que ela designa em nossa poca tambm caracterizada por outras

    denominaes correntes em geral forjadas sobre o papel fundamental do conhecimento para a

    vida poltica, econmica e cultural dessas sociedades: sociedade do conhecimento.

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    HUMANIDADES E ARTES COMO CULTURAS

    Precisamos redefinir e ampliar o conceito de humanidades. Do conceito original,

    devemos reter somente o bsico: tudo o que nos torna humanos. Nas humanidades clssicas, o

    homem moderno prevalecia. Novamente Foucault nos permite pensar esse tema, ao sugerir a

    morte do homem, tal como concebido no iluminismo.

    Portanto, preciso atualizar o conceito de humanidades introduzindo as dimenses do

    ecolgico, da poltica, do desejo e do cibermundo. As feridas narcsicas de que falava Freud,

    apontando a Coprnico, a Darwin e a si prprio, precisam ser reabertas e revistas. No sculo

    XIX, Darwin fez do homem uma espcie vulnervel em ecossistemas e Marx o resgatou como

    animal poltico, enfim sujeito histrico. Na primeira metade do sculo XX, Freud o confrontou

    com seus fantasmas e suas idiossincrasias, enfatizando no os aspectos morais, mas ticos daresponsabilidade do sujeito diante de suas escolhas e seus sofrimentos. Na segunda metade do

    sculo, muitos annimos coletivos tm feito do homem um cyborg, inventando o cibermundo,

    uma dimenso humana virtual que no cessa de se transmutar.

    No obstante distines filosficas, tericas e metodolgicas fundamentais entre arte e

    cincia, muito em comum h entre elas. Trata-se do compromisso compartilhado por ambas, que

    a da criao e a da originalidade. Nas cincias e nas artes, temos a gerao do novo atravs da

    formulao de objetos e conceitos abstratos e ao mesmo tempo, e contraditoriamente, tangveis e

    concretos. Conforme indica Vogt (2003): No caso da cincia, essa tangibilidade e concretude se

    d pela demonstrao lgica e pela experincia; no caso da arte, pela sensibilizao do conceito

    em metfora e pela vivncia.

    Finalmente, e aqui se encontra talvez alguma originalidade em nossa proposta, cremos

    que hoje possvel e preciso separar as Artes das Humanidades. Buscamos distinguir as artes

    das humanidades, reconhecendo uma multirreferencialidade prpria dos processos artsticos e a

    importncia das estticas na vida atual.

    Por um lado, encontramos uma justificativa histrica. Na era clssica, as arts & mtiers

    (artes & ofcios) se confundiam com a profissionalizao em geral, dentro das antigas artes

    mecnicas, para alm das profisses imperiais (Teologia, Direito, Medicina). Com a excluso das

    cincias, as artes e as tecnologias se mantiveram incorporadas s humanidades, junto com a

    filosofia e a literatura. Com a institucionalizao das Engenharias, definiu-se o espao de

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    formao tecnolgica nas coles polytechniques. Concentradas ou constrangidas em ambientes

    autnomos de formao, como os conservatrios, museus, liceus etc., as Artes se mantiveram

    fora das universidades durante todo o sculo XIX e parte do sculo XX.

    Por outro lado, do ponto de vista conceitual, Otvio Ianni(2003), refora o nosso

    argumento, da seguinte maneira: fundamental reconhecer que as cincias sociais, as cincias

    naturais e as artes, tomadas como esferas da cultura, criaes do pensamento e imaginrio,

    desenvolvem-se segundo dinmicas prprias. So esferas da cultura nas quais os cientistas, por

    um lado, e os artistas, por outro, produzem e criam em conformidade com as prprias linguagens

    e formas narrativas; alguns mobilizando conceitos e categorias, compreenso e explicao, leis

    de causao funcional e leis de tendncia, sincronias e diacronias; ao passo que outros, como o

    caso dos artistas, mobilizam figuras e figuraes de linguagem, montagens e bricolagens, sons e

    cores, movimentos e virtualidades, metforas e alegorias. Alguns dialogando entre si e comantepassados, prximos e remotos; ao passo que outros empenhados em romper com

    antepassados e contemporneos. Em todos os casos, no entanto, uns e outros produzem e criam

    de conformidade com as prprias linguagens e formas narrativas, mesmo quando inovando ou

    radicalizando.

    CONCLUSO

    Conforme exposto acima, inicialmente abordamos de modo esquemtico a formao

    histrica do conjunto de saberes estruturantes do pensamento ocidental. Em seguimento,

    avaliamos a questo das duas culturas, nos termos da famosa conferncia de C.P. Snow de 1959,

    indicando a importncia de agregar o conceito da Terceira Cultura. A partir da reviso crtica de

    vrias possibilidades de construir a terceira cultura, propusemos a diferenciao das Artes em

    relao s Humanidades, dada a redefinio do conceito de humano na estrutura ideolgica da

    contemporaneidade.

    O sistema binrio das duas culturas, antagnicas e excludentes, correspondia idia de

    fundo ou estrutura ideolgica das sociedades modernas, e suas universidades clssicas, h muito

    superadas pela histria. Por outro lado, o sistema das trs culturas, corresponde idia de fundo

    ou estrutura ideolgica da contemporaneidade, ou, como querem alguns, das sociedades ps-

    modernas. Por esse motivo, justifica-se plenamente uma profunda reestruturao da arquitetura

    curricular da educao superior com base nesse marco conceitual, visando tornar a universidade

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    brasileira mais e melhor sintonizada com o seu tempo. Enfim, cultivamos a esperana crtica de

    que, neste sculo XXI, o sistema de trs culturas, nem contraditrias nem complementares, o

    que melhor traduz a cosmologia complexa das sociedades contemporneas, o que permitir a

    reinveno da universidade brasileira.

    REFERNCIAS

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