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ASPECTOS CRIMINAIS DA LEI DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER (I) - Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini 28/08/2006-15:10 A Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, que está reestruturando completamente o ordenamento jurídico no que diz respeito à violência contra a mulher, foi publicada no dia 08 de agosto de 2006. Considerando-se que prevê vacatio de quarenta e cinco dias, entrará em vigor no dia 22 de setembro de 2006. A necessária divisão do assunto em três etapas: com o advento da Lei 11.340/2006, o assunto "violência contra a mulher" passará por três etapas (jurídicas) distintas, que são temporalmente as seguintes: 1ª) da publicação da lei (08.08.06) até 21.09.06; 2ª) de 22.09.06 até à criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Jufams); 3ª) depois da criação dos Jufams (em cada Estado, por lei estadual, e no Distrito Federal e Territórios pela União - art.14). 1

Aspectos Criminais da Lei de Mulheres

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Trata de temas pertinentes da Lei de Violência Contra a Mulher

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 ASPECTOS CRIMINAIS DA LEI DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER (I) - Luiz

Flávio Gomes e Alice Bianchini

28/08/2006-15:10

A Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, que está reestruturando

completamente o ordenamento jurídico no que diz respeito à violência contra

a mulher, foi publicada no dia 08 de agosto de 2006. Considerando-se que

prevê vacatio de quarenta e cinco dias, entrará em vigor no dia 22 de

setembro de 2006.

A necessária divisão do assunto em três etapas: com o advento da Lei

11.340/2006, o assunto "violência contra a mulher" passará por três etapas

(jurídicas) distintas, que são temporalmente as seguintes: 1ª) da publicação

da lei (08.08.06) até 21.09.06; 2ª) de 22.09.06 até à criação dos Juizados de

Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Jufams); 3ª) depois da

criação dos Jufams (em cada Estado, por lei estadual, e no Distrito Federal e

Territórios pela União - art.14).

Primeira etapa: hoje a violência contra a mulher não conta com um conjunto

ordenado de normas. Elas existem (há uma multiplicidade de regras sobre a

matéria), mas não se acham sistematicamente ordenadas. A proteção civil é

feita pelos juízos cíveis; da parte criminal encarregam-se os juízes criminais

ou os juizados criminais. Quando se trata de crime de menor potencial

ofensivo (crimes com sanção não superior a dois anos), a competência é dos

juizados criminais especiais. A grande maioria das infrações penais contra a

mulher é conhecida e julgada (hoje) por esses juizados.

A Lei 9.099/1995, como se sabe, introduziu no Brasil o modelo consensual

de Justiça e contemplou quatro institutos despenalizadores, que são:

(a) transação penal,

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(b) composição civil extintiva da punibilidade (nos crimes de ação penal

privada ou pública condicionada),

(c) exigência de representação nas lesões corporais leves ou culposas e

(d) suspensão condicional do processo.

O dia-a-dia do funcionamento dos juizados nunca agradou alguns setores da

sociedade. Algumas associações de mulheres, especialmente, sempre

protestaram contra a forma de solução dos conflitos "domésticos" (ou seja:

da violência doméstica) pelos juizados. Em casos de ação penal pública, a

mulher (ou outra vítima qualquer) nem sequer participa da transação penal (o

Estado "roubou-lhe o conflito", como diz Louk Hulsman). O profundo mal-

estar que causou o modelo praticado de Justiça consensuada a esses

segmentos constitui o fundamento mais evidente do surgimento do novo

diploma legal, que está refutando de modo peremptório qualquer incidência

da Lei 9.099/1995 (art. 41).

Primeiro foi a Justiça Militar, por força da Lei 9.839/1999; agora é a "violência

contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar" (Lei 11.340/2006) que se

afasta do âmbito dos juizados criminais. Num primeiro momento (1995/1996)

houve uma fuga (de assuntos) "para os juizados"; com o advento do último

texto legal, o que se nota é o (paulatino) abandono dos "velhos" juizados

("fuga dos juizados").

Durante o período de vacatio legis, entretanto (da publicação da lei -

08.08.06 - até o dia 21.09.06), os delitos contra a mulher (no ambiente

doméstico ou íntimo) continuarão sendo resolvidos pelos Juizados criminais

(quando a pena máxima prevista para o crime não for superior a dois anos).

Essa é a primeira etapa da disciplina jurídica desse assunto. Mesmo que a

lei nova seja favorável (por exemplo: pena mínima no caso de lesão corporal

leve: hoje é de seis meses e com a lei nova passou para três meses), não

pode o juiz aplicá-la durante a vacatio (porque a lei nova pode ser revogada

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em qualquer momento, antes mesmo de entrar em vigor). Se em alguma

situação concreta o juiz perceber que pode algum benefício da lei nova ter

incidência, o correto será aguardar a vigência da lei nova (tomando-se

eventuais medidas cautelares, se o caso necessitar).

Segunda etapa: a segunda etapa jurídica dessa matéria vai acontecer a

partir de 22.09.06 (que é a data da vigência da nova lei). Dela se

encarregarão as varas criminais (art. 33 da Lei 11.340/2006). Tudo que fará

parte (no futuro) da competência dos Jufams (Juizados de Violência

Doméstica e Familiar contra a mulher), de imediato (ou seja: a partir de

22.09.06), cabe às "varas criminais" (arts. 29 e 33), que terão competência

"cível e criminal" para conhecer e julgar "as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher" (no segundo artigo dessa

série estaremos cuidando dessa matéria).

Terceira etapa: a terceira etapa dessa evolução jurídica dar-se-á em cada

Estado (ou no Distrito Federal) que criar os Juizados de Violência Doméstica

e Familiar contra a Mulher (art. 14). É a etapa que sinaliza com a solução

mais adequada para o problema da violência doméstica ou familiar, porque

enfoca essa questão do ponto de vista multidisciplinar (dos futuros juizados

poderão participar profissionais das áreas psicossocial, jurídica e de saúde,

que desenvolverão trabalhos de orientação, encaminhamento e prevenção

voltados para a ofendida, o agressor e seus familiares).

Observações críticas: no que diz respeito às medidas cautelares e protetivas

de urgência a nova lei representa um avanço impressionante. No que

concerne, entretanto, ao âmbito criminal, a opção política feita pelo legislador

da Lei 11.340/2006 retrata um erro crasso. Ao abandonar o sistema

consensual de Justiça (previsto na Lei 9.099/1995), depositou sua fé (e vã

esperança) no sistema penal conflitivo clássico (velho sistema penal

retributivo). Ambos, na verdade, constituem fontes de grandes frustrações,

que somente poderão ser eliminadas ou suavizadas com a terceira via dos

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futuros Juizados, que contarão com equipe multidisciplinar (mas isso vai

certamente demorar para acontecer; os Estados seguramente não criação

com rapidez os novos juizados). De qualquer modo, parece certo que no

sistema consensuado o conflito familiar, por meio do diálogo e do

entendimento, pode ter solução mais vantajosa e duradoura; no sistema

retributivo clássico isso jamais será possível.

Quem, nos dias atuais, acredita no sistema penal clássico (inquérito policial,

denúncia, instrução probatória, ampla defesa, contraditório, sentença,

recursos etc.) e supõe que o funcionamento da Justiça criminal brasileira

seja eficiente para resolver alguma coisa, com certeza, não tem a mínima

idéia de como ele se desenvolve (ou não o conhece em sua real dimensão).

O sistema penal retributivo clássico é gerenciado por uma máquina policial e

judicial totalmente desconexa (seus agentes não se entendem), morosa e

extremamente complexa. Trata-se de um sistema que não escuta realmente

as pessoas, que não registra tudo que elas falam que usa e abusa de frases

estereotipadas ("o depoente nada mais disse nem lhe foi perguntado" etc.),

que só foca o acontecimento narrado no processo, que não permite o diálogo

entre os protagonistas do delito (agressor e agredido), que rouba o conflito

da vítima (que tem pouca participação no processo), que não a vê em sua

singularidade, vitimizando-a pela segunda vez, que canaliza sua energia

exclusivamente para a punição, que se caracteriza pela burocracia e

morosidade, que é discriminatória e impessoal, que é exageradamente

estigmatizante, que não respeita (muitas vezes) a dignidade das pessoas,

que proporciona durante as audiências espetáculos degradantes, que gera

pressões insuportáveis contra a mulher (vítima de violência doméstica) nas

vésperas da audiência criminal etc.

Tudo quanto acaba de ser descrito nos autoriza concluir que dificilmente se

consegue, no modelo clássico de Justiça penal, condenar o marido agressor.

E quando ocorre, não é incomum alcançar a prescrição. Na prática, a

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"indústria" das prescrições voltará com toda energia. O sistema penal

clássico, que é fechado e moroso, que gera medo, opressão etc., com

certeza, continuará cumprindo seu papel de fonte de impunidade e, pior que

isso, reconhecidamente não constitui meio hábil para a solução desse

tenebroso conflito humano que consiste na violência que (vergonhosamente)

vitimiza, no âmbito doméstico e familiar, quase um terço das mulheres

brasileiras.

Publicado no: http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?

story=20060828151003538

Curriculum do autor: Luiz Flávio Gomes

Formação:

Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade

Complutense de Madri (2001);

Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo (1989);

e Bacharel em direito pela Faculdade de Direito de Araçatuba (1979).

Atuais Funções:

Professor de Direito Penal de vários cursos de pós-graduação, dentre eles

Facultad de Derecho de la Universidad Austral, Buenos Aires, Argentina;

Professor Honorário da Faculdade de Direito da Universidad Católica de

Santa María, Arequipa/Peru.

Histórico Profissional:

Promotor de Justiça em São Paulo de 1980 a 1983;

Juiz de Direito de 1983 a 1998;

Advogado nos anos de 1999 e 2000;

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Individual expert observer do Xº Congresso da ONU, realizado em Viena de

10 a 17 de abril de 2000;

Membro e Consultor da Delegação brasileira no Décimo Período de

Sessões da Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal da ONU,

realizado em Viena de 08 a 12 de maio de 2001.

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