8

Click here to load reader

Aspectos Epidemiologicos Nas Doencas Coronaria e Cerebrovascular[1]

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Aspectos Epidemiologicos Nas Doencas Coronaria e Cerebrovascular[1]

11Revista da SOCERJ - Jan/Fev/Mar 2004

1Artigode Revisão

cerebrovasculares respondem por 32% das mortesa cada ano, mas a mortalidade por AVE ajustadapara faixa etária vem progressivamente declinando.

Introdução

A epidemia global das doenças não-transmissíveis

Há cerca de 25 anos, foram divulgadas as conclusõesde uma grande conferência internacional sobrecuidados preventivos primários realizada em Alma-Ata, antiga União Soviética1. Neste documento ondese listavam oito elementos essenciais à elaboraçãode uma agenda de cuidados primários, nem umalinha foi dedicada às doenças cardio ecerebrovasculares. Julgavam os signatários tratar-se de problema pertinente apenas a uma minoriade países industrializados, cuja ênfase eclipsaria adiscussão mais relevante das iniciativas destinadasa melhorar o saneamento básico, prevenir amortalidade materno-infantil e imunizar oscidadãos contra doenças infecciosas e endêmicas.

Entretanto, em espaço de tempo equivalente,quando muito, à metade da vida profissional de ummédico, a enfermidade aterosclerótica nas suasdiversas apresentações assumiu status de epidemiaglobal, penalizando duplamente países emdesenvolvimento: ainda às voltas com os desafiosimpostos pelas doenças típicas da pobreza, vêem-se as autoridades sanitárias frente a uma explosãode doenças não-transmissíveis para cuja prevençãonão estavam preparadas. Aturdidas diante davelocidade destas mudanças, algumas autoridadesainda se debatem em conceitos de natureza menos

Aspectos epidemiológicosnas doenças coronariana e cerebrovascular

Sérgio Emanuel Kaiser

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Professor assistente da Disciplina de Fisiopatologia Clínica e Experimental (CLINEX) da UERJChefe de Clínica do Totalcare-AMIL (RJ) e do Hospital de Clínicas Cardiotrauma Ipanema (RJ)

Palavras-chave: Epidemiologia, Coronariopatia,Doença cerebrovascular

Resumo

As doenças crônicas não-transmissíveis - destaquepara as enfermidades cardiovasculares ecerebrovasculares - já representam a maior causade morte no planeta. Nos países emdesenvolvimento, a freqüência destas doençasaumenta muito mais velozmente do que naseconomias desenvolvidas. Dentre as possíveiscausas na raiz deste fenômeno, incluem-se aurbanização acelerada, a maior taxa de natalidade,o aumento na proporção de casos de obesidade ehipertensão arterial e a melhoria no acesso a serviçosde saúde. Ainda que a cada ano sejam identificadosmais marcadores de risco para a cardiopatiaisquêmica aterosclerótica, os fatores classicamentereconhecidos pelo estudo de Framingham aindarespondem pela grande maioria dos casos, deixandoentrever uma ampla gama de oportunidades paraa intervenção e modificação da história natural dadoença.

Atualmente, dois terços dos acidentes vascularesencefálicos (AVE) ocorrem nos países emdesenvolvimento. A hipertensão arterial é semdúvida o principal fator de risco e seu controleexerce impacto direto sobre o decréscimo naincidência desta grave complicação. Diversamentedo que ocorre em países desenvolvidos, a etiologiahemorrágica parece responder por uma proporçãomaior de casos, embora a origem isquêmica sejaainda predominante. No Brasil, as doenças

Page 2: Aspectos Epidemiologicos Nas Doencas Coronaria e Cerebrovascular[1]

12 Vol 17 No 1

técnica do que fundamentalista, inspirando-se comfervor dogmático no texto de Alma-Ata para decidircomo e onde alocar as verbas cronicamente escassasdestinadas à efetivação de políticas de saúdepública.

Durante o ano de 2003, cerca de 60% das 56 milhõesde mortes ocorridas no mundo foram causadas pordoenças não-transmissíveis, das quais 47%, ou 16milhões, resultaram de etiologia cardiovascular2.Apenas na África subsahariana e em alguns bolsõesde pobreza na Ásia e na América do Sul, as doençastransmissíveis ainda figuram como principal causade morte. Nas demais regiões do Globo, incluindoas economias em desenvolvimento como abrasileira, figuram as enfermidades não-transmissíveis no topo das estatísticas de letalidade,a ponto de se estimar, para o ano de 2020, o francopredomínio do acidente vascular encefálico (AVE)e da doença coronariana sobre as demais causas demorte e incapacitação física2.

Atualmente as doenças crônicas respondem pormenos da metade das mortes nos países emdesenvolvimento. Entretanto, a persistir o atualritmo, dentro de apenas dezesseis anos, sete emcada dez mortes nesses países terão como causauma doença crônica3. Nas economias emtransição, as doenças cardiovasculares já respondempela primeira ou segunda causa de morte e - fatomais preocupante - acometem cada vez maisprecocemente as pessoas. À guisa de exemplo, naÍndia, metade das mortes por doença cardiovascularse dá em indivíduos abaixo de 70 anos, enquantono primeiro mundo, esta proporção é de apenas umquinto4. Esta última e mais favorável situaçãocaracteriza, numa comunidade, o mais adiantadoestágio epidemiológico descrito por Omran5 em queas mortes por doença cardiovascular, emborapredominantes, acometem os indivíduos já navelhice, como resultado de um tripé constituído pelaefetivação de políticas preventivas em larga escala,pela universalização de modernos recursostecnológicos tais como unidades de dor torácica,angioplastia e revascularização e por uma sólidainfraestrutura de seguridade social.

Nos países industrializados, as doençascardiovasculares são a principal causa de morte,porém a mortalidade ajustada para a faixa etáriavem sistematicamente caindo após ter atingido seuauge no início da década de 606. A mesma tendênciapode ser observada em outros países da AméricaLatina, incluindo-se o Brasil. Assim, a mortalidadeajustada para a idade, por doença isquêmica ecerebrovascular vem declinando sistematicamenteem homens e mulheres, pelo menos desde os anos807. Entretanto, o ritmo de crescimento das

doenças cardiovasculares é bem maior naseconomias em desenvolvimento do que nospaíses do primeiro mundo: entre 1990 e 2020estima-se nas primeiras um aumento de 130% e110% na ocorrência de, respectivamente,cardiopatia isquêmica e doença cerebrovascular(DCEV) e, nos países desenvolvidos8 um aumentorespectivo de apenas 35% e de 60%.

O relatório anual sobre a situação da saúde nomundo, editado pela Organização Mundial deSaúde, enumera os dez principais fatores situadosna origem das doenças mais freqüentes, que afetamas regiões do Globo. São indicadas três regiões: ados países desenvolvidos, a dos países emdesenvolvimento com alta taxa de letalidade eaqueles também em desenvolvimento, com taxasde óbito mais reduzidas. As autoridadesverificam que no primeiro grupo, compreendendoaproximadamente 1.4 bilhões de habitantes, setedentre os dez principais fatores de risco estãorelacionados a doenças não-transmissíveis. Dentreestes, apenas um, o alcoolismo, não está diretamenteligado ao risco de enfermidade cardiovascular. Naseconomias em transição com baixa mortalidade,onde o Brasil ajuda a compor uma cifra deaproximadamente 2.3 bilhões de habitantes, seisdentre os dez principais fatores relacionam-setambém a doenças não-transmissíveis (dos quaiscinco ligados à doença cardiovascular). Em agudocontraste, nas nações mais atrasadas, compopulação de aproximadamente 2.4 bilhões dehabitantes, apenas três dentre os principais fatoresde risco relacionam-se a doenças não-transmissíveis2.

Vários fatores explicam a escalada na incidência dedoenças não-transmissíveis nas economias emdesenvolvimento. A taxa de natalidade é maior e asmortes por doenças transmissíveis se reduzemacentuadamente; mais indivíduos, portanto,expõem-se aos fatores tipicamente responsáveispelo aparecimento precoce de doençacardiovascular. A hipertensão arterial, apontadacomo um dos principais fatores de riscocardiovascular nas economias em transição, étardiamente diagnosticada e, principalmente, malcontrolada. O tabagismo dissemina-se entre homense mulheres com muito mais intensidade do que naseconomias desenvolvidas, cuja tendência égeralmente oposta.

A acelerada urbanização promove a maciçatransferência de grande número de pessoas dasáreas rurais para as cidades em busca de melhorescondições de vida, ajudando a disseminar um estilode vida sedentário que, aliado à globalização dascadeias de fast food e sua abundante oferta de

Page 3: Aspectos Epidemiologicos Nas Doencas Coronaria e Cerebrovascular[1]

13Revista da SOCERJ - Jan/Fev/Mar 2004

alimentos processados a baixo custo, ricos emcarboidratos e gorduras saturadas, conspira paradisseminar uma epidemia de obesidade. Segundoas mais recentes estimativas, no ano 2025 estarãovivendo em cidades mais de 80% dos habitantes dospaíses desenvolvidos e quase 60% daqueles deeconomias em transição4.

Nos países em desenvolvimento, são especialmenteas camadas mais pobres e menos educadas dapopulação as mais vulneráveis aos fatores de risco,fato já documentado também no Brasil, por estudosque evidenciam a relação entre o baixo nívelsocioeconômico e a obesidade9,10 e entre a baixaescolaridade e o acúmulo de fatores de risco para adoença cardiovascular11.

É também junto aos estratos sociais mais pobres queo tabagismo recruta hoje o maior contingente deusuários. Sujeitas nos Estados Unidos a toda sortede restrições para veiculação de seus produtos, asgrandes indústrias do tabaco apostam nocrescimento do número de consumidores naseconomias mais frágeis, menos dotadas demecanismos de controle à expansão do vício. Hoje,mais da metade das mortes decorrentes dotabagismo ocorre nos países em desenvolvimento,sendo que esta proporção deverá duplicar em 20anos, na ausência de medidas concretas parareverter esta tendência12.

No Brasil, as doenças cardiovasculares sãoresponsáveis por 33% dos óbitos por causasconhecidas e representaram a principal causa deinternação no setor público, entre 1996 e 1999, paraindivíduos com idade entre 40 e 59 anos e entreaqueles acima de 60 anos13. Elas representam aprincipal causa de gastos em assistência médica,respondendo por cerca de 16,22% do total gasto peloSistema Único de Saúde14.

Cardiopatia isquêmica aterosclerótica

A doença isquêmica do coração experimentagrandes variações na sua distribuição geográfica,seja em decorrência das desigualdades nosestágios epidemiológicos vividos pelas diversassociedades, ou como fruto do pool genéticopeculiar a cada etnia ou ainda em função do estilode vida e hábitos alimentares predominantes emcada região. A mortalidade cardiovascular variade apenas 43 para cada 100 mil homens e 22 para100 mil mulheres no Japão, a 474 por 100 milhomens e 279 por 100 mil mulheres na Ucrânia4.Estas diferenças poderão sofrer atenuação emfuturo próximo, na dependência do impactoexercido pelo que poderíamos considerar como

um dos aspectos mais negativos do fenômeno deglobalização: a adoção em escala planetária de umpadrão alimentar do tipo “ocidental”, maisconcentrado na ingestão de gorduras animais ederivados de carboidratos, em detrimento das frutase vegetais.

Um exemplo bastante representativo do impactoexercido pela “ocidentalização” do estilo de vidaencontra-se no estudo Ni-Hon-San, em imigrantesjaponeses, cujo colesterol sérico se elevava a níveisintermediários em Honolulu e a concentraçõeselevadas, semelhantes à dos norte-americanos, emSan Francisco15. Etnias diferentes respondem deforma distinta a um mesmo fator de risco: asiáticosoriundos da China ou do Paquistão podemdesenvolver obesidade e resistência à insulina, masestes últimos sofrem mais intensamente suasconseqüências, traduzidas em aumento daprevalência de doença coronariana16,17,18.

Ao contrário do observado nos paísesindustrializados e também no Brasil, onde amortalidade por doença coronariana, ajustada paraa faixa etária, vem progressivamente declinando7,verifica-se em grande parte das nações outrorapertencentes ao bloco comunista, um aumento naincidência e prevalência de morte e incapacidadepor doença coronariana19,20. Este aparente retrocessona tendência primária observada em outras naçõeseuropéias, inaugurado a partir da derrocada domodelo econômico socialista, levou Yusuf e cols apressuporem a existência de um quinto estágio naevolução epidemiológica de uma sociedaderelativamente homogênea e instruída, na qual arotura da ordem social vigente, acompanhada dedeterioração da atividade econômicaconstituiriam o estopim para uma regressão deindicadores de saúde cardiovascular4.Possivelmente, na origem do alarmantecrescimento da mortalidade por doençacoronariana no Leste Europeu, especialmente naFederação Russa, Lituânia, Bielorussia,Uzbequistão, Romênia e Croácia19 estaria a quedade qualidade da assistência pública de saúde,associada ao aumento na prevalência de tabagismo,de alcoolismo (aumentando a pressão arterial) e, emúltima análise, à acentuada perda de poderaquisitivo da população, com toda a carga deestresse e insegurança daí conseqüentes. Países quetambém experimentaram o colapso do modelosocialista, mas cuja situação econômica não sofreutamanho abalo, como a República Checa, nãovivenciaram este recrudescimento da doençacoronariana21. Já na Polônia, a melhora destesindicadores a partir de 1991 pareceu associar-se aum aumento no consumo de frutas e óleos vegetais,com a redução no consumo de gordura animal22.

Page 4: Aspectos Epidemiologicos Nas Doencas Coronaria e Cerebrovascular[1]

14 Vol 17 No 1

A contínua queda na mortalidade por cardiopatiaisquêmica e acidente cerebrovascular nos EstadosUnidos tem sofrido uma desaceleração nos anosmais recentes, atribuída ao maciço recrutamento denovos fumantes entre as mulheres e os jovens e,particularmente, ao advento da epidemia deobesidade, trazendo em seu bojo os componentesda síndrome metabólica, já então alçada à categoriade fator de risco independente para doençaaterosclerótica23-25.

Ultimamente tem sido questionada a excessivaimportância atribuída aos fatores de riscotradicionais na gênese e na progressão da doençaarterial coronariana. Segundo alguns autores,menos da metade dos casos diagnosticados seriaexplicada pelos fatores de risco tradicionais26-28. Estaafirmativa, se comprovada, lançaria dúvidas sobreo custo-efetividade de campanhas públicasdestinadas a reduzir, por exemplo, o hábito defumar ou aprimorar a detecção e o tratamento depacientes hipertensos. Entretanto, as evidênciasapontam num sentido oposto: os fatores de riscotradicionais explicam a maioria dos casosdocumentados de cardiopatia isquêmica29. Cerca de80% a 90% dos homens e mulheres acometidos porum evento coronariano agudo ou submetidos aprocedimentos de revascularização miocárdicaapresentam pelo menos um dos quatro maisconhecidos fatores de risco coronariano30,31. NoBrasil, a distribuição dos fatores de risco em pessoasinternadas com um primeiro infarto do miocárdiosegue também um padrão absolutamentetradicional32. É bem provável que a principal, masnão a única razão para tamanho equívoco conceitualtenha resultado da tentativa em se estimar o riscoatribuível a cada fator isoladamente, sem levar emconta o efeito multiplicador exercido pela associação,num mesmo indivíduo, de vários fatores de risco.Não constitui ponto de vista antagônico o papel hojepreponderante da síndrome metabólica, cujo carátercorrosivo resulta do agrupamento no mesmoindivíduo de uma série de componentesrelacionados a fatores de risco tradicionais, comohipertensão, hipertrigliceridemia e baixos níveis deHDL colesterol.

O Brasil carece de um levantamento epidemiológiconacional bem estruturado. Como nação emdesenvolvimento, vivenciando o terceiro estágio datransição epidemiológica, padece da tradicionalcarência de recursos disponíveis para a execuçãode políticas de saúde eficazes e abrangentes. Por estemotivo, é imperativo conhecer bem a distribuiçãodos principais fatores de risco nas diversas regiõesdo país de modo a promover ações preventivas deamplo impacto. O bem sucedido exemplo daFinlândia, anos atrás, já demonstrava a importância

de uma campanha nacional bem coordenada parainduzir a modificação nos hábitos de vida. Outroracampeão de mortalidade por doença coronariana,este país foi palco de um maciço esforço por partedas autoridades responsáveis para conscientizarseus habitantes da necessidade de mudar o padrãoalimentar, baseado em alto consumo de gorduraanimal. A partir de então, o declínio damorbimortalidade por cardiopatia isquêmica temsido contínuo19.

A distribuição de fatores de risco avaliada emgrandes metrópoles brasileiras não parece atribuirà hipercolesterolemia uma participação tãoexpressiva: Apenas cerca de 6% a 13% dos indivíduosapresentam colesterol sérico acima de 240mg/dl. Aose considerar um ponto de corte em 200mg/dl, aprevalência sobe a 40%33,34. Em amostrapopulacional constituída por 1006 adultos acima de20 anos oriunda do Rio Grande do Sul, osedentarismo, antecedentes familiares decoronariopatia, sobrepeso/obesidade, tabagismo ehipertensão arterial constituíram os mais freqüentesfatores de risco coronariano33.

Doença cerebrovascular

A mais temida de todas as complicações da doençaaterosclerótica, o acidente vascular encefálico impõeenorme sobrecarga econômica e emocional aospacientes e seus familiares. Segundo as maisrecentes estimativas internacionais, em 2001 houveaproximadamente 20,5 milhões de AVEs no mundo,dos quais 5,5 milhões foram fatais. A hipertensãoarterial seria o principal fator etiológico em pelomenos 60% dos casos. Aproximadamente dois terçosdos casos ocorreram em países menosdesenvolvidos2.

A identificação de casos de AVE para fins deestudo de incidência e prevalência é um processomais complexo, primeiramente por apoiar a suaconfirmação diagnóstica em tecnologia nãofacilmente acessível, como a tomografiacomputadorizada. É também dependente detecnologia sofisticada o reconhecimento dosdiversos subtipos, de causas freqüentementediversas e variáveis quanto à distribuiçãoregional ou internacional, dificultando a alocaçãode recursos mais especificamente dirigidos aoagente etiológico principal. Para complicar, nemsempre o portador de DCEV é atendido emhospital: o risco de AVE após um ataqueisquêmico transitório é de 10,5% a 34% em 90dias35 , mas muitos candidatos à invalidezpermanente subestimam os sintomas transitóriose não chegam a ser identificados a tempo.

Page 5: Aspectos Epidemiologicos Nas Doencas Coronaria e Cerebrovascular[1]

15Revista da SOCERJ - Jan/Fev/Mar 2004

A comparação entre as incidências de AVE nasdiversas regiões do mundo perde muito dosignificado na ausência de uniformidade demetodologia para o registro e para a identificaçãodos casos. Até o presente momento, a fonte maisconfiável de comparações multinacionais sobre aepidemiologia do AVE tem sido o projeto MONICA,da Organização Mundial de Saúde, realizado em16 países europeus e em 2 populações asiáticas.

A partir de uma revisão sistemática publicada em200336, quando foram empregados critérios rígidospara a inclusão de estudos, rejeitando-se assim amaioria das observações oriundas de países menosdesenvolvidos, é possível concluir que ao menos nasnações em estágios epidemiológicos maisavançados, a incidência de AVE corrigida para afaixa etária, em pessoas com mais de 55 anos, variade 4,2 a 11,7 por 1000 pessoas-ano. Cerca de 67% a81% dos casos resultam de etiologia isquêmica; em7% a 20% trata-se de hemorragia intracerebralprimária, restando de 1% a 7% para hemorragiasubaracnóidea e de 2% a 15% para etiologiaindeterminada. Nestas regiões, onde a idade médiados homens e mulheres afetados por AVE é,respectivamente, de 70 e 75 anos, mais da metadedos casos acomete pacientes com idade superior a75 anos. Ainda segundo esta revisão, a prevalênciade AVE em indivíduos acima de 65 anos é de 46 a72 por 1000 habitantes e a mortalidade um mês apóso acidente é de 23%, podendo chegar a 42% em casosde etiologia hemorrágica. A mortalidade do AVEisquêmico é de 16% e da hemorragia subaracnóideade 32%.

Nos países desenvolvidos observa-se uma tendênciaconstante ao declínio da mortalidade por DCEVajustada nos últimos 30 a 50 anos. À semelhança doocorrido com a cardiopatia isquêmica, entretanto, aúltima década tem sido testemunha de umrecrudescimento na mortalidade em vários paísesdo Leste Europeu, provavelmente fruto daassociação entre o aumento do alcoolismo, ahipertensão arterial e o controle precário dos níveistensionais37.

As informações descritas no parágrafo precedenterefletem a realidade de uma região responsável porapenas um quarto das DCEV no mundo, ao passoque a maioria dos casos vitima habitantes das naçõesem desenvolvimento. Uma recente revisãosistemática sobre incidência, prevalência edistribuição dos diversos subtipos de AVE naAmérica do Sul, revela números bastante diversos,apesar dos limites impostos à determinação precisada incidência, pela escassez de estudos prospectivosde acompanhamento populacional38. Na América doSul, a prevalência de AVE variou de 174 a 651 por

cem mil habitantes e a incidência foi de 35 a 183 porcem mil habitantes. Estas cifras, bem menores queas registradas em países mais desenvolvidos,justificar-se-iam em primeiro lugar por viesesmetodológicos, a exemplo da maior mortalidadepré-hospitalar em AVEs hemorrágicos, freqüentesentre os sul-americanos, subestimando a verdadeiraincidência do mal por impedir a admissão dopaciente na unidade de emergência. A escassez deestudos de acompanhamento de longo prazo bemconduzidos oculta as amplas variações regionais eas diferenças entre aglomerados urbanos e áreasrurais, podendo, portanto, subestimar a realincidência das DCEV. Por outro lado, distintosatributos genéticos protetores e hábitos de vidadiversos poderiam também explicar parte destasdiferenças.

Ainda segundo esta revisão, a freqüência dehemorragia intracerebral na América meridional écerca de duas a três vezes maior do que a de naçõesmais desenvolvidas. Não é difícil explicar estapeculiaridade, podendo atribuir-se boa parte desteexcesso à hipertensão arterial mal controlada, alémde outras razões mais sutis, como o alcoolismo e oabuso de automedicação.

As DCEV constituem a principal causa de morte noBrasil, tendo sido responsáveis, no ano 2000, por32% das mortes por doenças do aparelhocirculatório39. Os escassos dados sobre incidênciadesse mal em nosso país indicam cifras entre 81,7 a180 por 100 mil habitantes40-42. A prevalência édesconhecida e não há dados sobre a proporção dosdiversos subtipos. A mortalidade, em geral maiornos homens que nas mulheres, é extremamentevariável nas diversas regiões do país e asinformações disponíveis não permitem comparaçãosegura, podendo variar desde 22,9 por cem milhabitantes em Salvador até 128 por cem milhabitantes na cidade de São Paulo42. Mais plena designificado, entretanto, é a constatação de umatendência, ainda que em declínio, para oacometimento mais freqüente de indivíduos emidade produtiva. Em 1995, cerca de 26,8% dasmortes por DCEV no Brasil acometeram pessoas emplena vida ativa, cifra absurdamente alta emcomparação aos 12% de casos similaresdocumentados uma década antes nos EstadosUnidos, em indivíduos abaixo de 64 anos42. Dadoscomo estes assinalam o enorme retorno econômicoe social implícito na execução de políticaspreventivas firmes, bem coordenadas eadequadamente financiadas.

A mortalidade por DCEV no Brasil temexperimentado progressivo declínio em ambos ossexos a partir de 198543, mas não de maneira

Page 6: Aspectos Epidemiologicos Nas Doencas Coronaria e Cerebrovascular[1]

16 Vol 17 No 1

uniforme: Entre 1980 e 1995 persistiu em curvaascendente nas regiões norte, nordeste e centro-oeste, caindo mais velozmente no sul e pouco menosno sudeste42.

O risco de desenvolver DCEV depende de fatoresmodificáveis e não-modificáveis (Quadro 1),destacando-se aí a relação linear e contínua entrepressão arterial sistólica e diastólica e risco de AVE44.A redução das cifras tensionais promove, por suavez, declínio deste risco em proporção direta45 enenhum outro fator de risco para doençaaterosclerótica correlaciona-se tão intimamente comDCEV como a pressão arterial, pelo menos quandoconsiderado isoladamente. A força da associaçãoentre os diversos fatores de risco é, também, umaregra neste caso, como demonstra o estudo deFramingham à semelhança do fenômeno descritopara a cardiopatia isquêmica46.

A freqüência das DCEV aumenta exponencialmentecom a idade40,47, mas não apenas em função dadoença hipertensiva e aterosclerótica. Com oprogressivo envelhecimento da população, nota-seum aumento crescente na prevalência de fibrilaçãoatrial e, portanto, de sua contribuição comoagente etiológico do AVE cardioembólico. O riscode AVE atribuível à fibrilação atrial podeaumentar desde 1,5% entre 50 a 59 anos até 23,5%para aqueles entre 80 e 89 anos de idade48. NoBrasil, não devem ser negligenciadas as lesõesreumáticas da valva mitral, nem asmiocardiopatias alcoólica e chagásica, apontadascomo causas de AVE cardioembólico,principalmente nas populações de baixa renda42.Em conseqüência direta da epidemia deobesidade aliada ao estilo sedentário de vida, ospróximos anos certamente testemunharão, nasnações em desenvolvimento, como o Brasil, ocrescimento da participação do diabetes tipo IIno conjunto de fatores de risco para DCEV eoutras doenças vasculares.

Segundo a OMS, dentro de 20 anos, 75% dos 300milhões de adultos diabéticos no mundo estarãovivendo nestes países e, fato mais grave, repetir-se-á a mesma tendência de acometer pessoas maisjovens em comparação ao que ocorre no primeiromundo49.

Existe atualmente no Brasil uma grande lacuna aser preenchida por meio de registros nacionais dedoenças cardiovasculares e fatores de risco. Oconhecimento detalhado das múltiplas diversidadesregionais permitiria a elaboração de políticaspreventivas mais consistentes, desde a simplesaplicação de medidas terapêuticas de baixo custo ede âmbito universal, dirigidas aos fatores de riscomais prevalentes, até a alocação de recursos públicospara a instalação de procedimentos terapêuticosdependentes de alta tecnologia, quando foremnecessários. No entanto, a informação atualmentedisponível já nos permite traçar alguns objetivoscom importante retorno potencial tais comoidentificar e tratar adequadamente os pacienteshipertensos, combater ferozmente o tabagismo eprevenir o desenvolvimento do binômio obesidade/sedentarismo ainda nas crianças em idade escolar.

Referências bibliográficas

1. World Health Organization Regional Office forEurope. Declaration of Alma-Ata. Disponível em:<http://www.who.dk/AboutWHO/Policy/20010827_1>

2. WHO. The World Health Report 2002. Geneva: WorldHealth Organization; 2002.

3. Koplan JP. The small world of global health. Mt SinaiJ Med 2002;69:291-98.

4. Yusuf S, Reddy S, Ôunpuu S, Anand S. Global burdenof cardiovascular diseases. Part I: Generalconsiderations, the epidemiologic transition, riskfactors and impact of urbanization. Circulation2001;104:2746-753.

Quadro 1Fatores de risco e morbidades predisponentes a AVE

Fatores de riscoMorbidades

Não-modificáveis ModificáveisIdade Hipertensão arterial Fibrilação atrialSexo masculino Diabetes mellitus Aneurismas do ventrículo esquerdoRaça negra Tabagismo Disfunção ventricular esquerdaHereditariedade Sobrepeso e obesidade Aterosclerose carotídea ou vertebral

Hiperhomocisteinemia HiperhomocisteinemiaHipercolesterolemia AVE prévio(especialmente em hipertensos) Ataque isquêmico transitório

Page 7: Aspectos Epidemiologicos Nas Doencas Coronaria e Cerebrovascular[1]

17Revista da SOCERJ - Jan/Fev/Mar 2004

5. Omran AR. The epidemiologic transition: A theory ofthe epidemiology of population change. MilbankMem Fund Q 1974;49:509-38.

6. Gaziano JM. Global burden of cardiovascular diseaseIn: Braunwald E, Zipes DP, Libby P (eds). HeartDisease. 6th ed. Philadelphia: W B Saunders; 2001:1-18.

7. Mansur APM, Souza MFM, Favarato D, Avakian SD,César LAM, Aldrigui JM, Ramirez JAF. Stroke andischemic heart disease mortality trends in Brazil from1979 to 1996. Neuroepidemiology 2003;937:1-9.

8. WHO. The World Health Report 1999. Making adifference. Geneva: World Health Organization; 1999.

9. Monteiro CA, D’A Benicio MH, Conde WL, PopkinBM. Shifting obesity trends in Brazil. Eur J Clin Nutr2000;54:342-46.

10. Monteiro CA, Conde WL, Popkin BM. Is obesityreplacing or adding to undernutrition? Evidence fromdifferent social classes in Brazil. Public Health Nutr2002;5:105-12.

11. Barreto SM, Passos VMA, Cardoso ARA, Lima-CostaMF. Quantificando o risco de doença coronariana nacomunidade. Projeto Bambuí. Arq Bras Cardiol2003;81:549-55.

12. WHO. The World Health Report 2003. Neglectedglobal epidemics. Geneva: World HealthOrganization; 2003.

13. Lima-Costa MF, Guerra HL, Barreto SM, GuimarãesRM. Diagnóstico de saúde da população idosabrasileira: um estudo da mortalidade e das internaçõeshospitalares públicas. Inf Epidemiol SUS 2000;9:23-41.

14. Buss PM. Assistência hospitalar no Brasil (1984-1991):uma análise preliminar baseada no Sistema deInformação Hospitalar do SUS. Inf Epidemiol SUS1993;2:5-44.

15. Kagan A, Harris BR, Winkelstein Jr W, et al.Epidemiologic studies of coronary heart disease andstroke in Japanese men living in Japan, Hawaii andCalifornia: demographic, physical, dietary andbiochemical characteristics. J Chronic Dis1974;27:345-64.

16. Anand SS, Yusuf S, Vuksan V, et al. Differences in riskfactors, atherosclerosis, and cardiovascular diseasebetween ethnic groups in Canada: the Study of HealthAssessment and Risk in Ethnic groups. Lancet2000;356:279-84.

17. McKeigue PM, Ferrie JE, Pierpoint T, et al. Associationof early-onset coronary heart disease in south Asianmen with glucose intolerance and hyperinsulinemia.Circulation 1993;87:152-61.

18. McKeigue PM, Shah B, Marmot MG. Relation ofcentral obesity and insulin resistance with highdiabetes prevalence and cardiovascular risk in southAsians. Lancet 1991;337:382-86.

19. British Heart Foundation Statistics Website. EuropeanCardiovascular Disease Statistics 2000. Disponível em:<http://www.heartstats.org>

20. Yusuf S, Reddy S, Ôunpuu S, Anand S. Global burdenof cardiovascular diseases. Part II: Variations inCardiovascular Disease by Specific Ethnic Groups andGeographic Regions and Prevention Strategies.Circulation 2001;104:2855-864.

21. Marmot M. Sustainable development and the socialgradient in coronary heart disease. Eur Heart J 200122:740-50.

22. Zatonsky WA, McMichael AJ, Powles JW. Ecologicalstudy of reasons for Sharp decline in mortality fromischemic heart disease in Poland since 1991 Br Med J1998;316:1047-51.

23. Lakka HM, Laaksonen DE, Lakka TA, Niskanen LK,Kumpusalo E, Tuomilehto J, Salonen JT. The metabolicsyndrome and total and cardiovascular diseasemortality in middle-aged men. JAMA 2002;288:2709-716.

24. Ridker PM, Buring JE, Cook NR, Rifai N. C-reactiveprotein, the metabolic syndrome, and risk of incidentcardiovascular events: an 8-year follow-up of 14 719initially healthy American women. Circulation2003;107:391-97.

25. Ninomiya JK, L’Italien G, Criqui MH, Whyte JL,Gamst A, Chen RS. Association of the metabolicsyndrome with history of myocardial infarction andstroke in the third national health and nutritionexamination survey. Circulation 2004;109:42-46.

26. Syme L. Rethinking disease: where do we go fromhere? Ann Epidemiol 1996;6:463-68.

27. Nieto FJ. Cardiovascular disease and risk factorepidemiology: a look back at the epidemic of the 20thcentury. Am J Public Health 1999;89:292-94.

28. Lefkowitz RJ, Willerson JT. Prospects forcardiovascular research. JAMA 2001;285:581-87.

29. Magnus P. The real contribution of the major riskfactors to the coronary epidemics. Time to end “theonly 50%” myth. Arch Intern Med 2001;161:2658-660.

30. Greenland P, Knoll MD, Stamler J, Neaton JD, DyerAR, Garside DB, Wilson PW. Major risk factors asantecedents of fatal and nonfatal coronary heartdisease events. JAMA 2003;290:891-97.

31. Khot UN, Khot MB, Bajzer CT, Sapp SK, Ohman EM,Brener SJ, Ellis SG, Lincoff AM, Topol EJ. Prevalenceof conventional risk factors in patients with coronaryheart disease. JAMA 2003;290:898-904.

32. Piegas LS, Avezum A, Pereira JC, Neto JM, HoepfnerC, Farran JA, Ramos RF, Timerman A, Esteves JP;AFIRMAR Study Investigators. Risk factors formyocardial infarction in Brazil. Am Heart J2003;146:331-38.

33. Gus I, Fischmann A, Medina C. Prevalência dos fatoresde risco da doença arterial coronariana no Rio Grandedo Sul. Arq Bras Cardiol 2002:78:478-83.

34. Martinez TLR, Santos RD, Armaganijan D, Torres KP,Loures-Vale A, Magalhães ME, et al. National alertcampaign about increased cholesterol: determinationof cholesterol levels in 81,262 Brazilians. Arq BrasCardiol 2003;80:635-38.

Page 8: Aspectos Epidemiologicos Nas Doencas Coronaria e Cerebrovascular[1]

18 Vol 17 No 1

35. Clairborne SJ, Sidney S, Bernstein AL, Gress DR. Acomparison of risk factors for recurrent TIA and strokein patients diagnosed with TIA. Neurology2003;60:280-85.

36. Feigin VL, Lawes CM, Bennett DA, Anderson CS.Stroke epidemiology: a review of population-basedstudies of incidence, prevalence, and case-fatality inthe late 20th century. Lancet Neurol 2003;2:43-53.

37. Stegmayr B, Vinogradova T, Malyutina S, Peltonen M,Nikitin Y, Asplund K. Widening gap of stroke betweeneast and west. Eight-year trends in occurrence and riskfactors in Russia and Sweden. Stroke 2000;31:2-8.

38. Saposnik G, Del Brutto OH; Iberoamerican Society ofCerebrovascular Diseases. Stroke in South America:a systematic review of incidence, prevalence, andstroke subtypes. Stroke 2003;34:2103-107.

39. Ministério da Saúde. Datasus. Informações de Saúde.Disponível em: <http://www.datasus.gov.br>

40. Cabral NL, Longo AL, Moro CHM, Kiss HC.Epidemiologia dos acidentes cerebrovasculares emJoinville, Brasil. Arq Neuropsiquiatr 1997;55:357-63.

41. Lessa I, Bastos ACG. Epidemiology of cerebrovascularaccidents in the city of Salvador, Brazil. PAHO Bull1983;17:292-303.

42. Lessa I. Epidemiologia das doenças cerebrovascularesno Brasil. Rev SOCESP 199;9:509-18.

43. Mansur AP, Favarato D, Souza MF, Avakian SD,Aldrighi JM, Cesar LA, Ramires JA. Trends in deathfrom circulatory diseases in Brazil between 1979 and1996. Arq Bras Cardiol 2001;76:497-510.

44. Lewington S, Clarke R, Qizilbash N, Peto R, CollinsR. Prospective Studies Collaboration. Age-specificrelevance of usual blood pressure to vascularmortality: a meta-analysis of individual data for onemillion adults in 61 prospective studies. Lancet2002;360:1903-913.

45. Collins R, Peto R, MacMahon S, Hebert P, Fiebach NH,Eberlein KA, Godwin J, Qizilbash N, Taylor JO,Hennekens CH. Blood pressure, stroke, and coronaryheart disease. Part 2, Short-term reductions in bloodpressure: overview of randomized drug trials in theirepidemiological context. Lancet 1990;335:827-38.

46. Wolf PA, D’Agostino RB, Belanger AJ, Kannel WB.Probability of stroke: a risk profile from theFramingham Study. Stroke 1991;22:312-18.

47. Lessa I, Bastos ACG. Epidemiology of cerebrovascularaccidents in the city of Salvador, Brazil. PAHO Bull1983;17:292-303.

48. Wolf PA, Abbott RD, Kannel WB. Atrial fibrillation asan independent risk factor for stroke: the FraminghamStudy. Stroke 1991;22:983-88.

49. American Heart Association. Publications &Resources Statistics. International CardiovascularDisease Statistics. Disponível em:<http://www.americanheart.org>