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Soman l u Rev i st a de Est udos A mazôn i cos an o 7, n . 1, j an ./ j un . 2007

ATHIAS, R Kumua, Baiaro e Yais

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SomanluRevista de Estudos A mazôn icos

ano 7, n . 1, j an ./ j un . 2007

Editora da Universidade Federal do AmazonasRua Coronel Sérgio Pessoa, 147

Praça dos Remédios, CentroCEP 6900-5030 Manaus – Amazonas – Brasil

Telefax: (0xx) 92 3231-1139E-mail: edua_ufam@ yahoo.com.br

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SOMA NLU – REVISTA DE ESTUDOS AMAZÔNICOS

Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas.(SOMANLU é um herói mítico da Amazônia criado pelo escritor Abguar Bastos)E-mail: rsomanlu@ ufam.edu.br

REITOR

Hidembergue Ordozgoith da Frota

PRÓ-REITOR DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

Prof. Dr. Altigran Soares da Silva

DIRETOR DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

Prof. Dr. Ricardo José Batista Nogueira

COORDENAÇÃO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO SOCIEDADE

E CULTURA NA AMAZÔNIA

Prof.ª Dr.ª Iraildes Caldas TorresProf. Dr. João Bosco Ladislau de AndradeProf. Dr. Antônio Carlos WitkoskiProf.ª Dr.ª Márcia Eliane Souza e MelloElias Brasilino de Sousa (Representante discente)

CONSELHO EDITORIAL

Alfredo Wagner Berno de Almeida (Ufam-CNPq)Anamaria Fadul (USP)Boaventura de Souza Santos (Univ. Coimbra)Claude Imbert (Ècole Normale Supérieuse de Paris)Edgard de Assis Carvalho (PUC-SP)Edna Maria Ramos de Castro (UFPa)Flávio dos Santos Gomes (UFRJ)José Damião Rodrigues (Univ. Açores)José Vicente Tavares dos Santos (UFRGS)Julio Cezar Melatti (UnB)Keila Grimberg (UFF)Márcio Ferreira da Silva (USP)

Márcio Souza (escritor)Milton Hatoum (escritor)Neide Esterci (UFRJ)Octavio Ianni (in memoriam)Renato Athias (UFPE)

COMISSÃO EDITORIAL

Prof. Dr. Narciso Júlio Freire LoboProf.ª Dr.ª Selda Vale da CostaProf. Dr. Antônio Carlos Witkoski

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EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

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SUPERVISÃO EDITORIAL

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ELABORAÇÃO E REVISÃO DE ABSTRACTS

Prof. Dr. Paulo Renan Gomes da Silva

Somanlu: Revista de Estudos Amazônicos do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Culturana Amazônia da Universidade Federal do Amazonas. Ano 1, n. 1 (2000 - ). --- Manaus: Edua,2000 - v.: il.; 17 x 24 cm.

SemestralAté 2002 publicação anual e vinculada ao PPG Natureza e Cultura na Amazônia.Interrompida em 2001.

ISSN 1518-4765

1. Cultura Amazônica 2. Amazônia – Sociologia 3. Amazônia – Antropologia I. Programa dePós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia.

CDU 316.722(811)

A exatidão das informações, conceitos e opiniões sãode exclusiva responsabilidade dos autores

Publicada em janeiro de 2008

SUMÁRIO

Apresentação

Ar t i gos

Indústria fonográfica no Amazonas: subjugação aos padrõesglobalizados e realização da liberdade possívelElizabeth Duarte Cavalcante

Do moderno ao selvagem: a fotografia amazônica de GeorgeHuebnerAndreas Valentin

Abram alas que eu quero passar: o desfile do automóvel na cidadede ManausTatiana Schor

A heterogeneidade representacional da Amazônia nos desenhos decrianças nativasNorma Felicidade Lopes da Silva Valêncio, Antonio RobertoGuerreiro Júnior, Milene Peixoto Ávila e Cínthia Cássia Catóia

Kumuá, baiároá e yaís. Os especialistas da cura entre os índios dorio Uaupés – AmRenato Athias

Pesca e conflitos sócio-ambientais na Amazônia Central: estudoem uma área com manejo comunitárioTony Marcos Porto Braga, José Fernandes Barros e Maria do PerpétuoSocorro Chaves

A noção de habitus em O desencantamento do mundoTherezinha de Jesus Pinto Fraxe e Antonio Carlos Witkoski

Manejo de recursos naturais por populações ribeirinhas no MédioSolimõesMaria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves e Débora Cristina BandeiraRodrigues

A reforma agrária ecológica na Floresta Nacional de TeféThaís Brianezi

Conferência

Conhecimento e transformação social: para uma ecologia dossaberesBoaventura de Souza Santos

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Entrevista

Notas sobre história da antropologia no BrasilJulio Cezar Melatti

Resenha

Visões sobre a obra de HatoumMarcos Frederico Krüger Aleixo

Documento

Os índios e os caboclos na Amazônia: uma herança cultural-antropológicaSamuel Benchimol

Not iciário

Dissertações defendidasEventosPublicações recebidasProdução científica dos docentes do PPGSCANúcleos de Pesquisa dos docentes vinculados ao PPGSCA

Números anteriores

Normas para apresentação de t rabalho

193

211

221

235236236237239

243

251

5Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Apresentação

Cidade, carros, rádio, fotografia. A Amazônia urbaniza-se, transforma-se,vive em constante processo de metamorfose. Fenômeno que vem sendo estudadohá algum tempo, a crescente migração das populações ribeirinhas e indígenas para asvilas, sedes municipais e capitais é assunto presente em vários ensaios, embora temasjá tradicionais como os dos recursos naturais e os conflitos entre as práticas artesanaise industriais no uso dos mesmos, as reformas agrárias ecológicas que a região vemvivenciando, os saberes indígenas recuperados, continuem a merecer a atenção dosestudiosos, pois são fontes que ainda fazem emergir inquietações epistemológicasque buscam interpretações multidisciplinares e tentativas diversas de explicação paraa rica e complexa experiência da sociodiversidade da região.

Com trabalhos de pesquisadores de várias partes do Brasil e do exterior,além da significativa contribuição de professores e alunos da Universidade Federaldo Amazonas, Somanlu, a revista do Programa de Pós-Graduação Sociedade eCultura na Amazônia, entra em seu oitavo ano de publicação e afirma-se no meioacadêmico como um veículo de divulgação científica qualificado. A presença em seucorpo editorial de renomados professores e pesquisadores nacionais e internacionaisconfere-lhe um status de reconhecimento e aceitação na comunidade cientifica ecultural mundial.

Ensaios como o do prof. Renato Athias, da Universidade Federal dePernambuco, sobre a relação entre as práticas indígenas de cura, a medicina indígenae os serviços de saúde no atual modelo nacional de atenção da saúde das populaçõesindígenas, no rio Uaupés – Am; a brilhante e lúcida conferência de Boaventura deSouza Santos, da Universidade de Coimbra, que nos apresenta proposta nova parauma ecologia dos saberes, e a entrevista com o prof. Julio Cezar Melatti, daUniversidade de Brasília, um dos mais conhecidos pilares da Antropologia no Brasil,são exemplares de uma frutífera troca de conhecimentos e de um intercâmbiopolítico-cultural produtivo.

Embora a revista objetive a compreensão dos processos socioculturais naAmazônia, ensaios de cunho teórico são por vezes aceitos e publicados, principalmentequando contribuem para abrir, à luz das ciências sociais, as portas de passagem paraa compreensão da vida na região. Este é o cunho do ensaio de Terezinha Fraxe eAntonio Carlos Witkoski sobre o livro O desencantamento do mundo, de Pierre Bourdieu.

Completa esta edição uma esclarecedora resenha de Marcos Frederico Krügersobre o livro Arquitetura da Memória, organizado por Maria da Luz Cristo, que

homenageia o escritor Milton Hatoum através de 28 estudos reflexivos sobre aprodução do artista. No já consagrado Documento, lugar de homenagem aestudiosos locais, uma conferência do prof. Samuel Benchimol sobre índios e caboclosna Amazônia, apresentada em 1994, em Oslo, em reunião da Sociedade dosAmericanistas.

É importante, aqui, assinalar a produção cientifica dos discentes através dassuas dissertações e dos docentes por meio de seus núcleos de pesquisa, seja atravésde projetos em execução seja na publicação de livros. Este é, certamente, um dositens que vem destacando nosso Programa, que mereceu receber da Capes, noano de 2007, o nível de Doutorado. Temos certeza que Somanlu contribuiu paraeste feito.

A rt igos

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Elizabeth Duarte Cavalcante*

ResumoEste artigo identifica alguns padrões de funcionamento da indústria fonográfica quese reproduzem, no Brasil, a partir da região sudeste e que se fragmentam noAmazonas. Mostra que Manaus ainda não efetivou um sistema de cluster em torno damúsica regional, mas artistas locais conseguem saídas criativas, exercitando umaliberdade possível

Palavras-chave: indústria fonográfica; padrões globalizados; liberdade possível.

AbstractThis article identifies some operational standards for the phonographic industry,which are widely reproduced in Brazil originating from the Southeastern region andwhich are fragmented in the State of Amazonas. It shows that Manaus has not yetdeveloped a cluster system around the regional music. Local artists, however, havesucceeded in adopting creative ways out by exercising a possible freedom.

Keywords: phonographic industry; globalized standards; possible freedom.

Indústria fonográfica no Amazonas: subjugação aos padrõesglobalizados e realização da liberdade possível

* Jornalista. Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia – Ufam. Assessora de Imprensa da Secretaria de Estado da Fazenda– Am. E-mail: [email protected].

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Indústria fonográfica no Amazonas: subjugação...

Introdução

O presente estudo da indústria fonográfica concentra-se, inicialmente, naidentificação dos padrões globalizados de funcionamento do mundo da música esua reprodução no Brasil; adentra pelo desenvolvimento do trabalho de produçãofonográfica em Manaus, levando em conta interferências econômicas e culturaisespecíficas e, por fim, identifica a atuação de artistas locais com vistas à realização deuma liberdade possível dentro de um jogo de dominação simbólica.

A indústria fonográfica movimenta-se num cenário rico e complexo, ondeinfluências globais ou extrínsecas são exercidas sobre ambientes locais ouregionalizados, de públicos mais segmentados, dinamizando o processo de produçãomusical, interferindo nele, fazendo surgir novos produtos que, por sua vez, podemvir a ser alocados no ambiente mundializado da música.

Essa via de mão dupla evidencia uma perspectiva ambivalente que obrigaà adoção de um método de trabalho em que se deve ir tentando desvelar, deuma realidade contraditória e repleta de intermediários, os principais agentesenvolvidos no processo, em que espaços atuam, de que maneira forjam os padrõesglobalizados de comportamento desta indústria e porque motivos estes padrõessão mundialmente adotados.

É possível traduzir esse ponto de vista nas palavras de Lucrécia Ferrara (1993p.161-171), quando propõe um novo vetor epistemológico que permite “pensarglobalmente a localidade”, ou ainda, em que a produção da informação (instantâneanos dias de hoje) é vista, percebida e pesquisada como um processo que procuraidentificar padrões globais pré-estabelecidos na sociedade para, em seguida, estranhá-los a partir de padrões locais do receptor.

Entenda-se, aqui, que estes padrões são, efetivamente, uma representaçãoválida no ambiente mundial da indústria fonográfica e que garante o seu modus operandi.Caso essa representação fosse substituída por outra, o padrão se modificaria e asregras do jogo seriam alteradas significativamente dentro do processo. Lançandomão de um recurso da Retórica, introduzido na prática jornalística brasileira no fimda década de cinqüenta pelo jornalista americano Fraser Bond (1962, p. 147), e quetem o objetivo de apreender o contexto em que os fatos noticiosos se desenvolvem,resumindo-os num lead (guia, comando, primazia), cuja origem remonta a RomaAntiga com Marcus Quintilianus (35-95 a.C.) nas suas Instituições Oratórias,

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Elizabeth Duarte Cavalcante

distinguiremos cinco perguntas que nos auxiliarão a identificar e entender como seorganizam os padrões globais. São elas:

Quem? (Os agentes que atuam no processo).O quê? (O padrão global pré-estabelecido, típico e válido do processo)Como? (O mecanismo de atuação do processo)Onde? (O espaço ou abrangência do processo)Para quê? (Com que objetivo atua ou o por que atua da maneira como atua)

Os padrões globais do processo de produção da indústria fonográfica

Quando Theodor Adorno (2002) trata de sua teoria do tempo livre - aqueletempo em que as pessoas não estão lidando com os seu trabalho -, critica o que seconvencionou chamar de hobby, as atividades realizadas com o intuito de matar otempo, ideologicamente escolhidas através da oferta do mundo dos negócios doentretenimento (nas décadas de 40 e 50 conhecidos como negócios do showbussiness).Para Adorno, escutar música era um momento integral de sua vida particular, porisso, não aceita esta atividade como um hobby.

Ao relembrar, contudo, a ideologia do hobby, mais do que discutir se elaexiste ou não nos dias de hoje, com a conceituação dada pelos frankfurtianos, énecessário reconhecer que a indústria fonográfica desenvolve seus processos no bojoda indústria do entretenimento,1 espaço em que a noção de cultura é claramentereificada2 e o divertimento toma proporções industriais, distanciando-se cada vezmais da realização artística intuída por Adorno quando escutava ou compunha música,em sua vida privada, motivado por um sentimento de puro deleite.

O sentimento apropriado aos produtos da indústria fonográfica não ésimplesmente o prazer de escutar música. Trata-se de um sentimento exacerbado depaixão personificada em um ícone, um megastar cujas produções são levadas aoextremo de cifras bilionárias e cuidados estilísticos com o objetivo de despertardesejos e, ao mesmo tempo, satisfazê-los.3

No espaço da fama internacional ou das celebridades, há algo mais além damúsica e do próprio artista e que constrói, efetivamente, o megastar como representaçãode um processo de produção. Esse algo mais podem ser as grandes gravadoras oudistribuidoras de música, ou ainda os produtores e especialistas em marketing artístico.Caso é que o processo de produção da indústria fonográfica mundial não seria o

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mesmo se o megastar não se constituísse em uma dos principais buscas e vantagensdas grandes gravadoras e dos produtores que nela atuam. O megastar é, assim, oprimeiro padrão global aqui identificado e que pode ser contextualizado a partir doesquema seguinte:

Quem? As transnacionais do disco, as distribuidoras internacionais, as grandesprodutoras e agências.

O quê? O megastar.Como? Através de produções bilionárias e recursos estilísticos do próprio

artista, externos a ele, mas por ele adotados.Onde? No espaço denominado mundo da música ou dos megastars.Para quê? Despertar desejos e satisfazê-los, atendendo a leis de mercado.O fenômeno que se criou a partir da existência do megastar é curioso:

crescer mais tornou-se um problema na indústria fonográfica globalizada. Adecisão de investir em um novo artista transformou-se em um desafio, quaseum atrevimento. Durante entrevista com um engenheiro e produtor de áudio,4

cuja finalidade foi entender a atuação dos produtores artísticos no mundo damúsica, ressaltou-se o papel do profissional considerado a figura-chave destaorganização mundial: o diretor de arte e repertório, ou diretor de A-R, aqueleque decide em quem a indústria vai investir.

Estes produtores, quando atuam em uma gravadora de nível mundial,recebem cerca de oito a vinte mil músicas para escutar, por mês, e só selecionam nomáximo três, quatro. Apesar disso, não devem ser apontados como única causa daprojeção de um artista. Observe-se o que diz Edgar Morin (2002, p. 76-77) acercado que devemos considerar como sendo uma causa, na medida em que se procuraapreender uma realidade:

[...] é preciso aprender a ultrapassar a causalidade linearcausa efeito. Compreender a causalidade mútua inter-relacionada, a causalidade circular (retroativa, recursiva),as incertezas da causalidade por que as mesmas causas nãoproduzem sempre os mesmos efeitos, quando os sistemasque elas afetam têm reações diferentes, e por que causasdiferentes podem provocar os mesmos efeitos.

Ora, se queremos entender o decurso da projeção de um artista no mundoda música deve-se, antes, observar que a indústria fonográfica é um sistema

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atravessado por choques internos de forças, de poder, portanto, uma estrutura decausalidades inter-relacionadas.

Note-se, por exemplo, e ainda de acordo com o depoimento dado ementrevista por um produtor artístico, o que ocorre no início da carreira de um diretorde A-R que recebe de uma grande gravadora uma cota hipotética de dois milhõesde dólares para investimento em um grupo de artistas. Com dois milhões ele irádecidir em quem investir. Se nesse investimento consegue vender três milhões, nopróximo ano a gravadora vai confiar a ele quatro milhões e o compromisso irádobrar a cada ano, nesta ordem. Jamais a gravadora reduzirá valores, até o pontoem que o profissional estará com a responsabilidade de investir dez, vinte milhõesde reais e caso não obtenha um retorno satisfatório em um dos investimentos poderáser retirado ou substituído no mercado. Esta pressão de estar fora do mercado, casonão consiga produzir grandes sucessos, e, quem sabe, um megastar, torna a carreirado diretor de A-R uma das mais contraditórias, pois o instiga a conquistar aquilo queele não vai conseguir gerir.

O resultado é que estes investidores acabam perseguindo o que chamaremosaqui de uma “performance média”, nem medíocre, nem brilhante. Assim, considerandoque chegue a formar um grupo de oito artistas que garantam a sua performance média,arriscará em, no máximo, dois, três novos a cada ano, pois é mais seguro para eleque, no grupo de artistas em que investe, haja um certo equilíbrio, ou seja, um nãofaça um sucesso estrondoso enquanto outro tenha um desempenho muito baixo.

A “performance média”, portanto, configura-se como o segundo padrão globalde funcionamento da indústria fonográfica e que segue resumido no modeloproposto:

Quem? O diretor ou produtor de A-R ou qualquer produtor que ligue oartista às gravadoras ou distribuidoras.

O quê? A performance média.Como? Através de investimentos em artistas selecionados.Onde? Na área determinada pela indústria fonográfica mundializada.Para quê? Evitar sucessos estrondosos junto a baixos desempenhos, em grupos

com a mesma origem de investimentos.Importante ressaltar que os diretores de arte e repertório são, em sua maioria,

produtores que foram convidados a se tornar diretores, ou, produtores a quemsimplesmente foi dada a incumbência de decidir pelos novos investimentos. O papel

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Indústria fonográfica no Amazonas: subjugação...

destes profissionais, os produtores em geral, começa, assim, a se configurar quasecomo uma condição sem a qual o mundo da música não funcionaria.

Os produtores, de maneira geral, parecem ser os responsáveis pelascaracterísticas representativas próprias dos produtos da indústria cultural. Eles possuemvisão multidisciplinar e são dotados de capacidade de criar representaçõesmundialmente válidas através de uma agudeza de percepção de padrões culturais.Pode-se buscar uma relação dos mesmos com um outro tipo de profissional járefletido no campo teórico. Ianni (1995, p. 95), lembra a figura do intelectual orgânico,ao referenciar Gramsci:

[...] os chamados intelectuais orgânicos são aqueles queatuam nos centros mundiais do poder, nas organizações eempresas transnacionais e que influenciam, diretamente,nos processos de dominação política e apropriaçãoeconômica que tecem o mundo, em conformidade com a‘nova ordem econômica mundial’ [...].

Os produtores enquanto intelectuais orgânicos evidenciam-se, desta forma, como oterceiro padrão global pré-estabelecido no processo de produção da indústriafonográfica, o qual detalhamos da seguinte forma:

Quem? Os produtores.O quê? Os produtores enquanto intelectuais orgânicos.Como? Através da manipulação de códigos culturais para a criação de

representações mundialmente válidas.Onde? Nas transnacionais do disco ou em pequenas produtoras e agências

que conseguem se aliar às grandes distribuidoras de música.Para quê? Validar um processo de dominação política e apropriação

econômica.Constituem, desta forma, os principais padrões globais de funcionamento

da indústria fonográfica mundial estes três elementos que, por hora, conseguimosidentificar como sendo o “megastar”, a “performance média” e os “produtores enquantointelectuais orgânicos”. Dois deles, o megastar e os intelectuais orgânicos deprodução, são representados por pessoas, o que os coloca igualmente na condiçãode sujeitos inter-relacionados do processo; e um outro – a performance média, é umarepresentação de um processo intrínseco da indústria com influência decisiva notrabalho e no fazer artístico dos sujeitos, o que a coloca, no conjunto do funcionamento

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da indústria, na condição de causalidade circular ou retroativa, pois em torno delamovimentam-se, aprisionados, os interesses em jogo.

São estes padrões de funcionamento da indústria os responsáveis pelas grandesondas de sucesso que se arremessam sobre as localidades gerando uma espécie deestupefação entre os artistas locais. A essa impressão de estar preso a um modelocíclico de funcionamento é que denominamos subjugação. Antes, porém, de procurarentender os mecanismos de resistência que, porventura, se manifestem nas localidades,é necessário ter a percepção do que ocorre com estes padrões, – ou como eles sereproduzem e se adaptam, no Brasil e no Amazonas.

Aspectos da produção fonográfica no Brasil e no Amazonas

Para Tosta Dias (2000), atualmente o Brasil participa do mercado mundialde discos devido a circunstâncias, concentradas entre os anos sessenta e setenta, quepossibilitaram a expansão da indústria fonográfica. Essas circunstâncias históricassão assim elencadas pela autora: a grande fertilidade musical brasileira da segundametade dos anos sessenta e início dos anos setenta, primeiro com o movimento“Tropicália” e depois com o movimento “Jovem Guarda” (nestes dois momentossui generis da cultura brasileira, o mercado nacional é conquistado pela transnacionaldo disco, que modifica a mentalidade do empresário local, no mundo do disco e nodos grandes espetáculos); o surgimento do long-play que diminuiu gastos de fabricaçãoe otimizou o processo de produção; a introdução da música estrangeira emsubstituição às músicas censuradas pelo regime militar; e, finalmente, a música que setorna sucesso nas rádios de todo o país por ter sido incluída na trilha sonora dasnovelas da Rede Globo.

A expansão da indústria fonográfica, no país, contou ainda com ascendênciasculturais importantes. Ortiz (apud DIAS, 2000, p. 11) chama atenção para o fato deque, no Brasil, a tradição musical tem se configurado como um campo fértil para aindústria fonográfica, assinalando que “[...] uma diversidade de ritmos, uma pluralidadede gêneros musicais, uma rica expressão de música popular, instrumental e de canto,constituem o seu legado”. A língua portuguesa é um outro elemento que merece serlevado em conta, uma vez que o Brasil é um país que pouco fala outras línguas.

Estes fatores conjugados levaram a uma tendência da música popularbrasileira como mercadoria cultural, que se efetivou nos noventa com um

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consumo nacional em larga escala, fenômeno este que surpreende a própriaindústria fonográfica e deixa o país em posição privilegiada frente ao mercadomundial, pelo menos neste aspecto.

Estatísticas da Federação Internacional da Indústria Fonográfica – IFPI(International Federation of the Phonographic Industry), que associa mais de mil e quatrocentasgravadoras em setenta e seis países, revelam que, no início da década de noventa, ogênero nacional representava menos de 60% do que era comercializado pela indústria.Hoje, 76% da música vendida no mercado fonográfico brasileiro são nacionais, oque leva a Associação Brasileira de Produtores de Disco (ABPD, 2002, p. 20) a tecero seguinte comentário em sua Publicação Anual:

[...] o ano de 2002 manteve o mercado brasileiro comoforte produtor de música nacional, uma vez que 76% dototal das vendas foram de produtos de artistas brasileiros.Este percentual é um dos mais altos do mundo, perde apenaspara o mercado norte-americano e empata com o japonês,ficando a frente de vários países com forte traço culturalcomo França, Itália, Inglaterra e Alemanha.

Tudo isso conduziu a indústria fonográfica brasileira à produção de seuspróprios megastars e a ondas de sucesso sazonais, sempre a partir da região sudeste,onde se concentram as associações de produtores fonográficos. Estas ondas sepropagam pelas diversas regiões do país, que nem sempre conseguem reproduzir,em seus movimentos internos, o processo dos grandes centros do Brasil. É o casodo Amazonas, cuja produção de música gravada acaba se dando de maneirafragmentada.

Tal fragmentação não se observa somente no âmbito da indústria fonográfica;pode-se mesmo dizer, concordando com o economista Admilton Salazar (2004, p.349) que há uma necessidade de desenvolver recursos humanos para o domínio denovas tecnologias que viriam a consolidar o capital intelectual industrial do Estado.A crítica feita pelo autor à política de desenvolvimento vigente refere-se justamente“[...] à ausência de definição e de criação de clusters sinérgicos para o fortalecimentoda cadeia produtiva local”. Eduardo Athayde,5 em reportagem no sítio WordwatchInstitute no Brasil, comenta o surgimento de clusters no país, com diversas vocações etamanhos, sobretudo aqueles ligados ao entretenimento, entre eles, o cluster da músicana Bahia, que difundiu para o Brasil a cultura das festas de rua com trios elétricos e

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Elizabeth Duarte Cavalcante

carnavais fora de época e ritmos como o axé music. Concordando com Salazar, esteautor também acredita que os clusters diminuem custos, somam esforços, otimizaminvestimentos e potencializam resultados, todavia, assevera que estes não são umafórmula mágica, de implementação simples, pois requerem pesquisas de mercadopara identificação de potencialidades regionais e estratégias de utilização dos mesmos.

No Amazonas, não há uma associação de produtores fonográficos e osartistas, em sua maioria, realizam o sonho de gravar um disco como um eventoisolado de suas próprias vidas, sem que isso faça parte de uma carreira planejada. Osestúdios, mal equipados e mal constituídos sob o ponto de vista legal, tentam realizaro papel das gravadoras, mas o resultado é sempre defeituoso, displicente. Estesaspectos analisados apenas indicam uma base pouco sinérgica, organizada, por partede artistas, empresários e produtores. Eles são insuficientes para uma compreensãodas estratégias utilizadas pelos sujeitos, da criatividade e da resistência exercida pelosmesmos, ainda que isoladamente, com vistas à produção local de música gravada,como se observa a seguir.

Realização da liberdade possível

A metáfora cinematográfica do roteiro do filme de Werner Herzog (1983),Fitzcarraldo, é apropriada para possibilitar uma reflexão em torno da luta de forçassimbólicas entre o nativo e a tecnologia que choca ou paralisa, como expõe o trechoda cena intitulada Floresta no Pachitea (1983, p. 63-64):

[...] nossos olhos examinam a orla da floresta, nosso olhardesliza lentamente, procura penetrar nas profundezas damata luzidia. Entretanto, nada se move, há apenas umsilêncio matutino e um rufar abafado, vibrante e implacávelde todo um grupo de tambores.[...] Fitzcarraldo sobe com seu fonógrafo no teto do navio,na pequena plataforma de madeira. Agora Caruso vai serútil, diz para si mesmo.[...] de súbito sente-se um golpe duro e seco ao lado dacabeça de Huerequeque, e uma flecha do tamanho de umbraço vibra com um zumbido ameaçador na parede demadeira da cozinha. Não atire, seu filho da puta!, grita-lheJaime de cima da ponte. O homem abaixa a arma e refugia-se em um dos camarotes abertos. E de repente soa a música

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Indústria fonográfica no Amazonas: subjugação...

de Fitzcarraldo, a voz de Caruso, melancólica, bonita, lentae muito arranhada. A música se mistura com o rufar dostambores, sobrepõe-se a eles, fazendo com que silenciempouco a pouco.[...] lá em cima, na ponte, Fitzcarraldo descobriu algo comseu binóculo. Lá tem uma canoa, diz ele, posso ver a partede trás, está bem pertinho da margem. [...] Mais nada. Amata parece paralisada de emoção com a triste e bela vozde Caruso.

A imagem do rufar dos tambores sendo silenciada pela voz de Caruso a seprojetar de um fonógrafo, causando uma paralisia emocional no ambiente da floresta,parece refletir a reação do artista amazonense diante das influências hegemônicas.

Ao gerar ondas de sucessos mundiais que se arremessam sobre as localidades,transformando-se em ondas nacionais, e depois regionais, impondo-se a mentes eemoções, provocando choques, em virtude da cultura nativa previamente entronizada,a indústria fonográfica mundial impõe um modelo de funcionamento baseado nospadrões já estudados. Ao mesmo tempo, no campo da diferenciação simbólica, essemodelo gera reações configuradas em uma busca por tentar fazer diferente. É aidéia da execução de uma “liberdade possível”, da filósofa Marilena Chauí,6 quandosugere que

[...] em vez de pensar a liberdade como direito de escolha,vale a pena pensá-la como o poder de criar o possível; aliberdade é essa capacidade dos seres humanos de fazerexistir o que não existia, o possível, de inventar o novo.

É assim que os sujeitos locais movimentam-se ora na tentativa de apreenderos mecanismos globais utilizados pela grande indústria, ora na articulação de açõesque a liberdade do processo permite com vistas a inventarem e reinventarem produtos.

Em Manaus, a produção da onda local do forró, que não é um ritmotipicamente regional, encontrou um ambiente propício de divulgação em virtudeda forte identificação do amazonense com a região nordeste, especialmente coma capital do estado do Ceará, Fortaleza, de onde migraram os primeiros gruposque influenciaram produtores e artistas locais. O produto foi tão bem assimiladoque acabou gerando uma onda de sucesso regional apoiada no trabalho deprodutores locais.

19Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Elizabeth Duarte Cavalcante

O forró produzido pelas bandas amazonenses possui letra e dança maiseróticas do que o tradicional forró nordestino; assimilou nos últimos anos forteinfluência da dança caribenha e, mais recentemente, de bandas do Estado do Pará.Outrossim, esses produtos combinados foram capazes de competir, no mercado,com aqueles outros que lhe deram origem e adquiriram o status de representaçãomusical regional, o que se pode considerar legítimo, uma vez que o forró localganhou caracteres novos capazes de diferenciá-lo dos demais.

Essa onda de sucesso regional em que se transformou o forró apresentou aopúblico megastars regionais, sazonais, com elevada presença na mídia local e espaçosde projeção em shows, programas populares de rádio, programas locais de televisãoe na chamada “balada”.7 No trabalho que gerou a onda do forró amazonense,agora exportada para o nordeste, ficam, assim, manifestos os padrões globalizadosdo mundo da música, realocados no ambiente local. As bandas alcançam um alto erápido sucesso, como no padrão megastar, e assim que obtêm a expansão desejadapelos produtores, caem no círculo da performance média, uma vez que os grupos commesmo estilo se multiplicam e já não se torna mais proveitoso investir muito empoucos, mas sim, medianamente, em muitos, garantindo a sobrevivência da ondalocal por mais tempo.

A produção e o consumo da toada de boi-bumbá,8 mostra-se emblemáticode uma indústria que deu um passo avançado na trajetória de produção fonográfica,no Estado, conseguindo oferecer ao Brasil uma identidade musical da regiãoamazônica, mas que não logrou se sustentar enquanto onda nacional, conservandono seu interior problemas de delicada compreensão.

A primeira grande explosão de consumo de toada de boi-bumbá, em Manaus,data de 1998, logo após a construção de um bumbódromo,9 no município Parintins,no Amazonas. Tudo que existia antes disso, em termos de fonografia, eram fitascassetes gravadas artesanalmente. Tanto as agremiações quanto os próprios artistasreproduziam essas fitas em gravadores portáteis e tocavam nas rádios. Esse foi,portanto, o primeiro processo de gravação de toadas: das rádios para os gravadoresportáteis, em casa. Essa tecnologia denota um movimento recém-saído do berço desuas tradições, da música passada de “pai-para-filho” e que demorou cerca de dezanos para chegar a Manaus através do rádio, da propaganda boca-a-boca.

Enquanto produto fonográfico nascente, a toada de boi-bumbá possuíapotencial, mas carecia de grandes investidores e da ação de intelectuais de produção

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que entronizassem a toada no mundo da tecnologia fonográfica, com a gravação deCD´s, o que só chegou a ser viabilizado em 1995.10

Após consolidada no ambiente local, a toada de boi-bumbá alimentouos sonhos de projeção nacional de artistas e produtores. E os passos nessesentido foram dados até o ano de 1998, que apontou os indícios de umlançamento nacional a qualquer instante. Todavia, algumas contradições comestratégias primordiais adotadas no mundo da música, entre elas a adoção deum planejamento de marketing e de mídia, acabaram vindo à tona, demonstrandotoda a fragilidade do sistema em formação.

Um fato que influenciou negativamente na tentativa amazonense foiprotagonizado pela gravadora Amazon Record, que detinha o contrato com osartistas da toada de boi-bumbá.11 Ainda outro elemento que merece destaque éque o Brasil acabou conhecendo diversos estilos de uma mesma toada, comono caso do lançamento da música Tic-Tic-Tac.12 Ao lado da questão daincongruência rítmica houve a fragmentação interna do movimento boi-bumbáque mantinha, de um lado, as agremiações folclóricas Garantido e Caprichoso e,de outro, os artistas do boi-bumbá, numa concorrência velada por mercado,denunciando uma relação indefinida sob o ponto de vista legal, entre os artistase a direção das agremiações folclóricas.13

Resta-nos a reflexão em torno do regionalismo enquanto luta simbólicanum mercado de bens simbólicos. Para Pierre Bourdieu (2003, p. 124) “[...] oregionalismo é, de fato, um caso particular de luta simbólica em que os sujeitosestão envolvidos em dois estados: individualmente e dispersos ou coletivamentee organizados”. Tanto em um quanto em outro a luta que se trava é em torno devantagens correlativas de natureza econômica e de natureza simbólica, estasúltimas referentes aos estigmas utilizados para reforçar a idéia de um produtolocal, regional, pertencente a um povo, em confronto ao universal, igual edominador, como são os produtos da grande indústria fonográfica. Nesse campoaparentemente dominado pelo poder global trava-se, na verdade, uma luta deforças assim configurada: os estigmas regionais brigando por visibilidade, numespaço em que os estigmas universais são os mais visíveis.

Conscientes das dificuldades de se inserirem num modelo gigantesco, semcontarem com a alavanca financeira de produtores executivos e arrastados pelodesejo natural de todo artista em difundir um trabalho e ter um público que o

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aprecie, artistas locais seguem uma trajetória de sobrevivência que abriga, em seuinterior, não uma marginalidade com toda a carga negativa embutida nesta palavra,mas sim uma digressão criativa do caminho imposto pela indústria fonográfica,caracterizada pela bandeira ou pelo estigma regionalista.14

No Amazonas, o grupo musical Raízes Caboclas15 ilustra bem essadigressão. O grupo chegou a Manaus em fins dos anos 80 e ao longo dessetempo tentou se firmar no mercado como referência musical regional. Noprimeiro momento enfrentou a onda do forró, em seguida o choque do boi-bumbá de Parintins e depois, novamente, uma onda de forró. Ainda assim ogrupo oscila entre as dez maiores vendagens do grupo Bemol, conseguindo semanter sobretudo nas entressafras desses ciclos, em espaços onde são chamadosa representar a música amazônica.16

Nas oitenta obras gravadas pelo Raízes Caboclas são identificados dezesseisritmos retirados do ecletismo musical amazônico, entre eles a balada, a canção, asalsa, a toada, o forró e a música andina.17 O trabalho em relação à mídia envolve arealização de shows transmitidos ao vivo por canais locais, entrevistas em rádio,televisão, jornais e revistas e participações em trilhas sonoras de grandes reportagense documentários.18

A prospecção de mercado do grupo realizada através de pesquisa particularencomendada indica, por exemplo, um contingente de vinte milhões de pessoas,potenciais ouvintes de música regional. Em um trabalho exclusivamente voltadopara a região, objetivando alcançar apenas dez por cento desse público, a vendaanual apontada é de cem mil discos, o que daria uma sustentação muito boa paraqualquer artista.

Pode-se, através da análise desses três movimentos de produção local demúsica gravada (forró, toada e ritmos regionais), reinterpretar a métafora da resistênciado artista amazonense, contida na cena de Fitzcarraldo, sempre considerando tratar-se de uma luta simbólica.

A indústria fonográfica local, representada na cena pelos nativos, começa adescobrir as flechas ou as armas que pode utilizar no campo dessa luta, ainda queisolada. Estas armas imitam a forma corriqueira das ondas de sucesso, como nocaso do forró. De outra feita são atiradas quase a esmo, como na toada de boi-bumbá, produzindo enorme euforia, mas sem lograrem consolidação no bojo domercado estrangeiro e massificado. A maior arma nativa, todavia, a digressão para a

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criação do novo, permanece ainda sendo gestada, realizando pequenas convulsõesque aqui e ali causam surpresa. Aparecem, de uma hora para a outra, sem que ninguémespere, comunidades, grupos de consumidores de produtos musicais até entãodesconhecidos das massas; artistas duramente apartados da mídia ressurgem daobscuridade dignificados por um público fidelizado.

Notas

1 O termo indústria do entretenimento veio citado em pesquisa recente assinada pelaconsultoria Pricewaterhouse Coopers, reproduzida na revista Exame de março de2005, “A próxima atração”. A indústria do entretenimento reúne não só a indústriafonográfica, mas o rádio, o cinema, as gravadoras, o teatro e as editoras. Segundoa reportagem, ela faturou no ano de 2004 1,3 trilhão de dólares, alcançando umpatamar maior que a indústria bélica e equivalente ao da indústria automobilísticae à da telecomunicações.

2 No processo de alienação, o momento em que a característica de ser uma “coisa”se torna típica da realidade objetiva.

3 A mesma reportagem de capa da revista explica como a indústria do entretenimentovem atraindo o interesse dos demais segmentos empresariais que desejam criaruma relação de intimidade com o mundo das celebridades.

4 Entrevistamos um produtor que conjuga a perspectiva ambivalente do global e dolocal. Ele é amazonense, licenciado em estudos mercadológicos da indústriafonográfica pela School of Audio Engineering e pela Middle University, ambas daInglaterra. Contribuiu com este trabalho no dia 03.11.2004. É também proprietáriode uma rádio cuja principal característica é manter links, em seus boletins noticiososao vivo, com jornalistas de diversas agências do mundo. Atualmente montou umaprodutora, em Manaus, com sede conjugada na própria rádio, por meio da qualpretende lançar artistas amazonenses em espaços internacionais.

5 Eduardo Athayde é administrador, empresário, diretor da Universidade Livre daMata Atlântica – UMA e editor do Wordwatch Institute – WWI no Brasil, ligado aogrupo Gazeta Mercantil.

6 Marilena Chauí fala sobre a idéia da liberdade possível no curso em vídeo sobreÉtica, da TV Cultura. Ver referências.

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7 O termo em que se inclui a gíria “balada” refere-se aos pontos noturnos dedivertimento na cidade e que são alugados ou comprados para compor o ambienteonde o público consumidor da onda musical pode ouvir e dançar o que elegeupara gostar, dado o cardápio que lhe é fornecido.

8 Referência à toada de boi-bumbá originada na tradição folclórica do município deParintins, no Amazonas, em que dois bumbás se enfrentam, Garantido e Caprichoso.Embora tendo sido herdada dos imigrantes nordestinos, a toada enquanto gêneromusical tem origem na melopéia grega ou arte de compor melodias através desons simples ascendentes ou descendentes, e na cantiga dos trovadores do século17, que se constituía em uma poesia cantada, tal qual ocorre na toada. No Amazonas,a toada de boi-bumbá do Nordeste aliou-se à cultura indígena nativa, sofrendomodificações na temática das cantigas, que passaram a celebrar os rituais das lendasdos habitantes originários da região, bem como na dança, que em muito se identificaaos movimentos dos ritos religiosos indígenas.

9 Neologismo de sambódromo, que é a pista onde as escolas de samba se exibemdançando e cantando. Por similaridade, o bumbódromo é a pista, porém chamadaArena, onde se apresentam os bumbás rivais, Garantido e Caprichoso, um decada vez.

10 A partir desse ano foram firmadas parcerias com o Governo do Estado, Coca-Cola, hotéis de selva, empresas de turismo e empresas de rádio e televisão e osbumbás passaram a realizar ensaios abertos, alcançando um público fiel que sedeslocava para Parintins, no mês de julho, quando ocorria a festa.

11 A Amazon Record era de propriedade do empresário Heitor Santos e tinha outrosprodutos além da toada de boi-bumbá. O principal deles, que gerava o maiorcapital da gravadora, era a parceria com a fornecedora Lighting Records, empresainglesa especializada em catálogos e discos compilatórios. A Amazon Recordsfez um excelente trabalho de distribuição dos produtos da Lighting, tornando-serepresentante oficial desses discos, no Brasil, com vinte e três subrepresentaçõesespalhadas no país. De acordo com o então consultor da Amazon Record, noano de 1998 a gravadora amazonense resolveu aceitar pedidos no valor de quaseum milhão de dólares em CD´s e a Lighting não deu garantia de entrega e nemcumpriu os prazos combinados. A Amazon Record, por sua vez, não cumpriuos seus prazos com os clientes brasileiros, caindo em descrédito nacional, deixandomais de setecentos mil dólares em discos sem vender e a falência foi inevitável.

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12 A música “Tic, tic, tac” é de autoria do amazonense Ronaldo Barbosa, tendo sidogravada e lançada nacionalmente pelo Grupo Carrapicho durante o movimentoque projetou a toada de boi-bumbá como referência musical do Estado doAmazonas, no ano de 1998. A música sofreu um arranjo que se distancia datradicional batida da toada, apesar de ter mantido intacta sua base melódica.

13 Há casos ilustrativos dessa forma de contratação das agremiações. Davi Assayagrepresenta um item do Boi que é o Levantador de Toadas. Arlindo Júnior, pelolado do Caprichoso, era, até então, o item Apresentador e Levantador. Noperíodo de outubro a dezembro de cada ano abrem-se as inscrições de músicasnovas para o CD do ano seguinte. Uma comissão das próprias agremiaçõesseleciona as toadas que acha interessantes para o Boi e essas músicas são gravadas.O artista assina um contrato item do Boi.

14 Ao contrário do que se pode imaginar, esse caminho não é o do abandono doracionalismo técnico, da mídia, do marketing, da gravação de disco, dapreocupação com a formação de público, com distribuição e mercado. Pararealizar um passeio fora das trilhas convencionais determinadas pelos padrõesglobais do mundo da música, e ainda assim alcançar algum resultado de públicoe de vendagem, parece necessário estar de posse dos elementos capazes de forjarum produto de qualidade, ao mesmo tempo em que exige a noção de como irao encontro de novos públicos com novos produtos.

15 Grupo de música que atua há quarenta anos, composto por oito integrantes e querealiza um trabalho de catalogação e expressão dos diversos estilos musicaisencontrados na Amazônia, concentrando, por isso, influências diversas. Nas palavrasde seu vocalista: “o carimbó, a toada, a lambada de beira de rio, essas músicasdos tocadores ribeirinhos, (...) o Raízes é a tradução desse universo musical e, emmeio a tudo isso, de vez em quando, uma música instrumental”.

16 Entrevista concedida por Celdo Braga, vocalista e compositor do grupo RaízesCaboclas em 05.03.2004.

17 Os cenários são sempre criados pelo músico Eliberto Barroncas e os arranjoseruditos pelo músico Adalberto Holanda. O grupo se auto-sustenta no que dizrespeito à cenografia dos shows, aos arranjos eruditos que se fazem necessáriosem apresentações com orquestra, às composições, pois todos os integrantes sãocompositores e arranjadores, e ainda, à fabricação de instrumentos musicais

confeccionados em madeiras regionais numa oficina destinada somente a isso.

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Elizabeth Duarte Cavalcante

18 O músico Celdo Braga comentou que o trabalho com trilhas sonoras levou àprodução do CD “Trilhas”. O trabalho de “Trilhas” foi publicado no Jornal doBrasil e o programa Globo Ecologia, da Rede Globo, chegou a solicitá-lo parasonorização de um documentário. Além disso, a ONG ambientalista Greenpeacefez de “Trilhas” a base musical de um documentário produzido em 2003, noAmazonas. Diversas músicas e trechos de músicas do grupo também já fizeramparte da sonorização de programas como “Globo Repórter” e “Viagens pelaAmazônia”.

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Andreas Valentin*

Resumo:A vasta produção do alemão George Huebner, em especial aquela realizada emManaus pela “Photographia Allemã” entre 1898 e 1920, é ainda pouco estudada ede grande importância para a história da fotografia brasileira. Talvez a força maiorde suas fotografias esteja justamente no permanente diálogo entre o moderno e oselvagem, entre o futuro industrializado e o passado romântico representado pelospovos em extinção e pelo sublime da natureza exuberante.

Palabras-chave: Amazônia; fotografia; povos indígenas; Photographia Allemã.

Abstract:The rich production by the German George Huebner, particularly that carried out inManaus by the “Photographia Allemã” between 1898 and 1920 is still very littlestudied, despite being of great importance for the history of the Brazilianphotography. Perhaps the major force of his photographs lies exactly in the ongoingdialog between the modern and the wild, between the industrialized future and theromantic past represented by endangered peoples and by the sublime in the exuberantnature.Keywords: Amazon region; photography; indigenous people; photographia allemã.

Do moderno ao selvagem: a fotografia amazônicade George Huebner

* Graduado em Historia da Ar te e Cinema (Swar thmore College). Mestre em Ciências da Ar te – UFF. Doutorando em HistoriaSócial – UFF. Professor da Universidade Candido Mendes. E-mail: [email protected].

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George Huebner1 foi um dos principais fotógrafos da segunda geração deeuropeus que se estabeleceu no Brasil. Sua extensa obra, ainda pouco conhecidatanto aqui como no exterior, revela um profundo conhecimento da região Amazônicae um fotógrafo muito além do documental. Por trás das imagens de inúmeras etniasamazônicas (muitas das quais hoje extintas), da natureza superlativa, da implantaçãoda modernidade nas duas cidades da era da borracha – Manaus e Belém – e de seushabitantes, ilustres e desconhecidos, está um homem de rara sensibilidade e sólidaformação cultural.

Huebner é, ao mesmo tempo, germanicamente preciso e amazonicamentegrandioso e delirante. Suas imagens refletem a paixão pela Amazônia e seu trabalhose insere na produção fotográfica típica do fim do século 19 e início do 20 , atendendoa uma demanda específica da época. A expansão e a consolidação do poder colonialeuropeu – particularmente o da Inglaterra, França e Alemanha – passava, também,pelo conhecimento e a percepção do “outro” e do “outro lugar”. A fotografia foiferramenta fundamental nesse processo, uma vez que estreitava e presentificava ocontato com as diferenças culturais, registrava a fauna e flora exóticas e simbolizavaa superioridade tecnológica do homem branco.

Analisaremos aqui algumas das fotografias de indígenas que Huebner realizouem seu estúdio de Manaus, Photographia Allemã. Estas imagens surpreendem por seuesmero técnico e os cuidados com a sua realização, ao mesmo tempo em que apontampara uma produção característica do olhar do estrangeiro sobre o “outro” encontradaem outras regiões do mundo colonizado, como na Índia, na África, na Austrália enas Américas.

Manaus: modernidade na selva

É necessário, primeiro, situar no espaço e no tempo a cidade onde Huebnerse estabeleceu. Por volta de 1850, quem se aventurava a chegar a Manaus (depois deuma viagem a partir de Belém e que, rio acima, em frágeis embarcações, poderialevar até cinco meses) encontraria ali um vilarejo de casario baixo, em sua grandeparte coberto de palha, formado por ruas escuras e enlameadas em torno de umafortificação há muito abandonada. Em sua “Viagem ao Brasil 1865-1866”, o casalLouis e Elizabeth Agassiz2 assim a descreviam:

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Que poderei dizer da cidade de Manaus? É uma pequenareunião de casas, a metade das quais parece prestes a cairem ruínas, e não se pode deixar de sorrir ao ver os castelososcilantes decorados com o nome de edifícios públicos:Tesouraria, Câmara Legislativa, Correios, Alfândega,Presidência. Entretanto, a situação da cidade, na junção dorio Negro, do Amazonas e do Solimões, foi das mais felizesna escolha. Insignificante hoje, Manaus se tornará, semdúvida, um grande centro de comércio e navegação(AGASSIZ, 1938, p. 247).

Na antiga Vila da Barra existiam poucas escolas e até o idioma português erarejeitado pela população de aproximadamente cinco mil habitantes, muitos dos quaisainda falavam nheengatu, a língua geral dos indígenas.

Diferente de Belém, quase na foz do rio Amazonas e contando, desde oséculo 18, com forte presença do governo central, a região de Manaus permaneceu,durante quase três séculos, isolada geográfica, política e economicamente do restodo país e do mundo. Entre 1850 e 1870, o governo imperial, com o objetivo defortalecer o vale do rio Amazonas, adotou medidas que viriam a incorporardefinitivamente a região ao conjunto do Império. Entre elas, destacavam-se a criaçãoformal de uma nova unidade administrativa, a província do Amazonas, cuja capitalseria a cidade de Manaus; a abertura dos principais rios a embarcações de qualquernacionalidade; e, talvez, a mais importante, a introdução da navegação a vapor.

Em 1852, um decreto imperial concedia ao Barão de Mauá o monopólio danavegação a vapor no rio Amazonas, estabelecendo a primeira linha regular na região.O navio a vapor – tecnologia que já vinha rasgando as distâncias oceânicas entre oscontinentes – agora, ao subir o rio Amazonas e penetrar nos seus afluentes, paranáse igarapés, começava, também, a inserir o selvagem interior amazônico no contextomundial, permitindo a circulação mais rápida de pessoas, mercadorias e informações.“Só pela força do vapor se poderia tornar possível o impossível”, escrevia em 1859Robert Avé Lallemant3 no seu diário de viagem, “No Rio Amazonas”. Em 1853,chegava a Manaus o primeiro navio mercante, o Marajó, marcando a abertura deuma nova era.

O progresso e a prosperidade começaram a brotar da seringueira, a Heveabrasiliensis, espécie vegetal nativa da Amazônia e há milênios conhecida pelos nativos.Do seu tronco, eles extraíam o látex que, após ser cozido, se tornava elástico e

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impermeável. A partir da segunda metade do século 19, a borracha se inseria norepertório de produtos industriais comercializados para gerar riquezas. Com asinovações tecnológicas características desse século, multiplicaram-se suas aplicaçõespráticas: pneus para bicicletas, carruagens e automóveis; luvas cirúrgicas; bolsas; sapatosimpermeáveis e preservativos eram fabricados a partir do látex amazônico. Entre1850 e 1912, a quantidade de borracha exportada da Amazônia saltou de 1.467 para42.000 toneladas por ano, representando o principal item da pauta comercial brasileira.

A borracha, ao mesmo tempo em que refletia os avanços da tecnologia e odomínio da natureza pelo homem, alavancou a Amazônia para a modernidade.Com o rápido crescimento econômico provocado pela extração e processamentoda seringa, criava-se na região um mercado promissor para os produtos e serviçosda era industrial. “Afinal”, dizia-se, em Manaus e em Belém, “tornamo-nos civilizados!”No auge da prosperidade, as duas cidades amazônicas esbanjavam riqueza e atraíamgente de toda parte do Brasil e do mundo. Enquanto mais de 300.000 nordestinos,fugidos da seca e em busca de trabalho, migravam para o interior selvagem, nasmetrópoles chegavam comerciantes, técnicos e profissionais liberais, burocratas eaventureiros. O fotógrafo alemão George Huebner foi um deles e, certamente, umdos responsáveis por dar visibilidade e projetar internacionalmente Manaus comouma cidade moderna em meio ao selvagem e ao distante.

Huebner: o olhar do alemão caboclo

Antes do “boom” da borracha, a Amazônia já havia sido fotografada poroutro alemão. Em 1867, Albert Frisch realizou uma série de fotografias que,possivelmente, seriam as primeiras imagens de índios da Amazônia a circular pelaEuropa. Frisch trabalhava para a Casa Leuzinger4 de propriedade do suíço GeorgesLeuzinger e viajou até Manaus acompanhando a expedição do engenheiro alemãoFranz Keller-Leuzinger, genro de Georges. De lá, Frisch subiu o rio Solimões atéIquitos, no Peru, para realizar seu próprio projeto fotográfico. O resultado dessetrabalho foram aproximadamente 400 imagens que retratam em detalhes a paisagem,a fauna, a flora e a vida ribeirinha nos ermos da Amazônia. Desse vasto repertório,Leuzinger selecionou 98 fotografias para editar uma série destinada ao mercadoeuropeu5 e com clara “pretensão artística e documental” (KOHL, 2006, p. 199).Além das mais antigas vistas da cidade de Manaus destacam-se as dos indígenas, em

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particular, aquelas dos índios umauá e miranha. Essas imagens foram realizadas atravésde um processo de montagem de duas fotografias originais. Os índios foramprovavelmente retratados em locais bem iluminados e próximos às beiras dos rios,onde atracavam os vapores; ou, até mesmo, na periferia de Manaus, onde Frisch jáhavia fotografado famílias de tapuias6. Os índios posam em um cenário idílico comlanças, arcos e flechas ou vasilhas de água, à beira de um igarapé, talvez o de SãoVicente ou Tarumã, próximo a Manaus, locação onde, antes, Frisch se auto-retrataraem seu barco-laboratório. As figuras foram fotografadas em um local diferentedaquele em que aparecem na imagem final. Cuidadosamente recortadas a mão, atravésde uma montagem de superposição, elas foram reproduzidas sobre o fundofotografado em outra ocasião. Esse mesmo fundo foi utilizado para várias outrasimagens, como a de índias, intitulada “Mestiças à beira de um lago”. Longe deatender às expectativas das ainda incipientes ciências antropométricas de então, pelocontrário, essas fotografais procuram situar os índios em seu habitat natural, idealizadoe romantizado para agradar aos anseios estéticos e imaginários do público europeu.

Coube ao seu conterrâneo Huebner, no entanto, documentar exaustivamentea Amazônia do fim do século 19 e início do 20. Até se fixar definitivamente emManaus em 1898, Huebner já havia passado pela cidade duas vezes: em 1885, acaminho do Peru e, em 1894, antes das expedições para o alto rio Orinoco e para orio Branco. Seu interesse pela aventura foi despertado através do convívio, ainda emDresden, com seu professor Oscar Schneider, naturalista e membro de diversassociedades científicas. Foi ele quem lhe abriu as portas para publicar seus primeirosartigos e fotografias nas revistas especializadas em viagens, aventuras, geografia ehistória natural.

Em sua primeira viagem à América do Sul, Huebner pecorreu todo o rioAmazonas e se estabeleceu na região de Iquitos e do rio Ucayali, na Amazôniaperuana. A extração e o comércio da borracha já estavam em pleno desenvolvimentoe, provavelmente, Huebner se envolveu com essa atividade durante dois anos, até sefirmar em Lima. Sabe-se pouco sobre esses primeiros anos do jovem aventureiroem terras sul americanas. Em 1888, ele conheceu o fotógrafo alemão Charles Kroehle.Durante três anos, os dois percorreram milhares de quilômetros do território peruano,cobrindo desde os altiplanos andinos à costa do pacífico e a região amazônica. Oresultado dessa expedição foram centenas de fotografias da região e de seus habitantesque levam a assinatura dos dois fotógrafos.

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As primeiras imagens realizadas por Huebner são, também, as primeiras dasquais se tem notícia de etnias peruanas, como os campa, mayonisha, caxibo, cunivo, pito,xipibo, muitas das quais já extintas (FIG. 1). Esse trabalho pioneiro, realizado a quatromãos7, revela um olhar atento, não apenas dos fotógrafos como também dos própriosfotografados. São retratos dirigidos e produzidos, geralmente sobre um fundo delona, onde o retratado precisava permanecer imóvel por um longo tempo. Não sepropõem a ser instantâneos, até porque a tecnologia da época não o permitia. Pelocontrário, são estudos antropofísicos, geralmente de frente e de perfil, compondoum “atlas tipológico”, emblemático das preocupações antropológicas de então. Esseesforço dos dois fotógrafos fazia parte da “tentativa coletiva de se produzir dadosantropólogicos”, produzindo, reunindo, permutando e arquivando fotografias detodas as partes do mundo, para análise nas metrópoles, em particular na Inglaterra,França e Alemanha. (EDWARDS, 1996, p. 4). Foi no Peru que Huebner aprimoroua técnica da fotografia, treinou seu olhar e assimilou as qualidades que caracterizariamseu trabalho mais maduro e duradouro: as de exímio retratista e paisagista daAmazônia. De acordo com Schoepf (2000, p. 29), na sua relação com o fotografado,Huebner “mobiliza-o, envolve-o e, quando estão influenciados um pelo outro, captaa imagem desse momento.” Afirma, assim, “o peso de sua presença” e acaba porremover a identidade da pessoa fotografada.

Ao retornar para Dresden, em 1892, a publicação de alguns de seus textosilustrados em revistas de ciência popular e viagens, como a Globus e a Deutsche Rundschaufür Geographie und Statistik, lhe rendeu seus primeiros momentos de fama e sucesso.Ele foi convocado por sociedades científicas para ministrar palestras e fornecerimagens. Em 1894, voltava à Amazônia onde, a partir de Manaus, empreendeu duasexpedições: a primeira, à nascente do Orinoco, já na Venezuela; a outra, por umlongo trecho do rio Branco, afluente do rio Negro, no atual estado de Roraima. Nosoito meses em que permaneceu no ermo da floresta amazônica, além de fotografar,Huebner se aperfeiçoou na observação, documentação e coleta científica de espéciesda flora amazônica, principalmente de orquídeas. Essa atividade lhe assegurouimportantes contatos no meio científico europeu e sua sobrevivência em Manausapós o declínio da borracha.

George retornou definitivamente ao Brasil em 1898. Permaneceu por algunsmeses em Belém e seguiu viagem até Manaus, onde fixou residência pelo resto desua vida. Três anos depois, em sociedade com Libânio Amaral, inaugurava seu estúdio

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“Photographia Allemã”, no centro da cidade, em frente ao Palácio do Governo. Éimportante lembrar que Huebner chegou em Manaus no apogeu econômico da erada borracha. A cidade fervilhava com obras públicas por toda a parte. Abriam-seruas, aterravam-se igarapés, construíam-se imponentes prédios. Instalava-se a primeiralinha de bondes elétricos do país. Surgiam empreendimentos comerciais de todaespécie, sempre direta ou indiretamente ligados ao cada vez mais lucrativo comércioda borracha.

Em 1902, Euclides da Cunha descrevia Manaus como

[...] rasgada em avenidas, largas e longas pelas audácias doPensador8 [...]uma grande cidade, estritamente comercial,de aviadores solertes, zangões vertiginosos e ingleses desapatos brancos Comercial e insuportável. O crescimentoabrupto levantou-se de chofre fazendo que trouxesse, aqui,ali, salteadamente, entre as roupagens civilizadoras, os restosdas tangas esfiapadas dos tapuias. Cidade meio caipira, meioeuropéia, onde o tejupar se achata ao lado de palácios e ocosmopolitismo exagerado põe ao lado do ianque espigadoo seringueiro achamboado [...] a impressão que elas nosincute é a de uma maloca transformada em Gand[...](apudBRAGA, 2002, p. 43, 48).

Durante os quatro anos do governo de Eduardo Ribeiro, Manaus deu umsalto qualitativo e quantitativo. À medida que cresciam os números da exportação deborracha, aumentava, também, a população da cidade. Medidas fiscais do governorepublicano asseguravam a permanência de tributos e taxas na província, gerandouma enorme circulação de capital. Ousado, astuto e agressivo, Ribeiro soubeadministrar corretamente esse patrimônio e acabou transformando a rude aldeia emuma “Paris da Selva”, tendo como modelo as reformas implantadas naquela cidadepelo Barão de Haussman durante o governo de Napoleão III.

É exatamente nessa época, também, que a fotografia assume grandeimportância no cotidiano da vida moderna. Equipamentos e processostecnologicamente mais avançados permitiram maior agilidade na captação e nareprodução de imagens, tornando-as imprescindíveis nas mais diversas esferas dasociedade. A fotografia se massificava e se firmava, técnica, estética e existencialmente.A verdade científica inerente à imagem fotográfica, “preservando um fragmento dopassado que é transportado em aparente totalidade para o presente” (EDWARDS,

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1996, p. 7), era incontestável, uma vez que o fotógrafo e sua máquina estavam lá,registrando o fato.

A rapidez da circulação e a própria avidez por informação abria um amploleque de novas possibilidades para a fotografia, muito além dos estudos etnográficose relatos de viagens: anúncios publicitários, documentação jornalística, divulgação,cartões de visita, cartões postais, álbuns comemorativos, ilustrações para livros erevistas, retratos de família e da sociedade. Huebner trabalhou em praticamentetodos esses segmentos.

Em pouco mais de três anos de atuação, sua “Photographia Allemã” sefirmava como o maior e mais bem equipado estúdio fotográfico do norte doBrasil. Por um lado, devido à qualidade de seus equipamentos de ponta, trazidos deDresden, cidade que, na época, já abrigava as melhores fábricas de suprimentosfotográficos9. Por outro, pelo esmero de Huebner, profissional já maduro epersonalidade que aliava o rigor germânico à afabilidade brasileira temperada poralgumas características caboclas, adquiridas ao longo de suas viagens pela Amazônia.Ele teceu uma ampla rede de relacionamentos e foi conquistando, passo a passo, aconfiança da sociedade manauara e estreitando, cada vez mais, os laços com ospoderes políticos e econômicos. Em 1901, se associou a Libânio do Amaral, professorde belas artes, pessoa querida e admirada na cidade. Em 1906, eles adquiriram, emBelém, o ateliê fotográfico Fidanza, ampliando seu mercado de trabalho. Quatroanos mais tarde, abriam uma filial no Rio de Janeiro, no edifício d’O Paiz, na AvenidaCentral. (SCHOEPF, 2000).

George Huebner fez parte de uma geração de alemães que atingiu amaioridade quando a Alemanha começava a se firmar como nação, unificada em1871, após a guerra franco-prussiana. Nesse novo estado cresciam os sentimentosde grandeza e poderio nacionais. Abriam-se agora - ainda que tardiamente em relaçãoàs outras nações européias - os caminhos para o status de grande potência, juntando-se a Alemanha “ao perigoso círculo mágico dos Estados lutando pela hegemonia”(ELIAS, 1997, p. 185-6). Em poucas décadas, a Alemanha, fortemente identificadacom a própria imagem de seu líder, o Kaiser Wilhelm II, expandiu suas fronteiras,incorporando colônias na África, na Oceania e buscou sólidas parcerias comerciaisem outras partes do mundo, como, por exemplo, na Amazônia.

Esse novo ethos nacionalista permeou o imaginário dos alemães não só napátria-mãe, como também nas colônias. É de se supor que uma parcela significativa

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do sucesso comercial e da ascensão social de Huebner se deve à sua inserção narelativamente numerosa colônia alemã estabelecida em Manaus. Eram, em sua grandemaioria, direta ou indiretamente ligados ao pujante comércio da borracha, madeirae outros produtos da floresta, como a castanha, as peles e os óleos essenciais. OsScholz, Düsendschön, Andresen, Schlee, Bender, Moers, Ruckert10 e tantos outrosatuavam no ramo da importação e exportação. Os alemães recebiam em suas amplasmansões os conterrâneos viajantes e aventureiros, oferecendo-lhes, em plenaAmazônia, os confortos, sabores e aromas de “casa” (wie Daheim). Todos eramnacionalistas ferrenhos. Elias menciona que, “o mero som da palavra Deutschlandparecia, para os alemães, estar impregnado de extraordinárias associações, de umcarisma que beirava o sacrossanto” (ELIAS, 1997, p. 288). Não é difícil de se imaginar,portanto, num domingo escaldante de Manaus, os alemães reunidos no salão nobredo Rudderklub (Clube de Remo) ou do Kegellklub, (Clube de Boliche) discutindo osrumos da economia da borracha e, na grande parede ao fundo, um enorme retratoa óleo do Kaiser Wilhelm II em posição de prontidão. É interessante destacar queum dos autoretratos que Huebner produziu o mostra em pose semelhante. (FIG. 2)

Os primeiros cartões postais com imagens da Amazônia foram produzidospor Huebner em seu estúdio a partir de 1895 e tiragens regulares continuaram sendoemitidas até 1920. Cuidadosamente impressas em Dresden por seu editor OscarSchleich Nachf, essas séries constituem um repertório que reúne uma preciosadocumentação iconográfica da cidade de Manaus em constante transformação, alémde fornecer raros testemunhos de regiões longínquas, como as atividades nos seringaisnas calhas dos rios Juruá e Javarí. A partir das últimas décadas do século 19, amelhoria da qualidade e o barateamento das técnicas de reprodução de imagensfotográficas somadas à massificação das comunicações, em particular através dossistemas de correios, provocou um grande aumento na produção de cartões postais,em todas as partes do mundo. Qualquer tema poderia ser motivo para a produçãode um cartão postal: paisagens, vistas urbanas, retratos, grupos de pessoas, índios ecenas domésticas. Os postais de Huebner tiveram uma larga aceitação. Sua amplacirculação, certamente, contribuiu para produzir uma representação da Amazôniaque transitava, com igual importância, do selvagem ao moderno, do popular aoelitista.

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Estúdio: um espaço de criação fotográfica e pesquisa etnográfica.

Enquanto seu estúdio se mantinha com encomendas oficiais e particularesde toda a espécie, Huebner, no entanto, continuou viajando pelo interioramazônico. Empreendeu inúmeras expedições fotográficas, subindo a calha dorio Negro, do rio Branco e penetrando na selva em regiões mais próximas aManaus. Seu olhar se dirigia para a flora11, para a etnografia e para os hábitos ecostumes dos ribeirinhos, habitantes das beiras dos rios. As imagens desseperíodo impressionam tanto pela qualidade técnica, como pela precisão deenquadramento e revelam um fotógrafo ao mesmo tempo documentarista einquisidor. Huebner tinha, também, uma grande preocupação com as etniasnativas que, à medida que o progresso avançava rio acima, perdiam seus hábitose costumes. Na impossibilidade de impedir esse processo, ele buscava, ao menos,através das imagens, preservar os primeiros brasileiros (FIG.. 3).

Desse conjunto de imagens, há uma série que se destaca das demais (FIG.s. 4,5, 6 e 7). São retratos de casais ou pequenos grupos de índios, posando para acâmara com adornos, objetos e utensílios. Eles não estão em seu ambiente natural:todas essas fotografias foram produzidas no estúdio da “Photographia Allemã”.Vêem-se nitidamente os fundos pintados com cenas européias: colunas clássicas,jardineiras e idílicas paisagens romantizadas, com efeitos simulando bruma e névoa.Os objetos de cena – arcos, flechas, remos, galhos, folhas, palha, cestos, panos – sãocuidadosamente arrumados. Em algumas fotos, nota-se o piso de madeira do estúdio,parcialmente coberto de palha. Essas imagens revelam algumas características doprocesso de trabalho de Huebner, como o esmero técnico e a cuidadosa produçãoe atenção aos detalhes que se somam à suas qualidades de cientista e investigador, aotrazer para dentro do estúdio esses indígenas com seus utensílios originais. É bemprovável que muitos deles nem sejam das etnias descritas. Não importa. As imagens,tão bem compostas e realizadas, têm força própria e, certamente, cumprem comseu objetivo nos aproximando com clareza e precisão de um universo fisicamentetão distante.

Ciente de que não poderia apreender os indígenas, seus hábitos e costumesno seu cotidiano, Huebner os leva para dentro do estúdio, dessa forma recriandoaquele instante almejado, porém jamais alcançável. Ao mesmo tempo em que essasfotografias mostram um olhar para o “outro” semelhante àquele lançado em outras

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partes do mundo, elas também revelam um “relacionamento conscientizado” comos indivíduos e grupos fotografados. O olho preciso e, certamente, o coração sensívele a formação cultural de Huebner nos inserem nesse ambiente estranho e distante.Schoepf (2000, p. 30) ressalta que “uma foto tirada por Huebner inclui, como emsubimpressão, algo da relação entre o fotografado e si mesmo” como se em cadaimagem estivesse impressa também “a consciência e a expressão corporal dorelacionamento com o outro e portanto para com nós mesmos”.

Apesar de reconhecer ter sido influenciado pela antropologia do final doséculo 19 que buscava a descrição e especificação dos tipos físicos resultando naschamadas fotografias “antropométricas”, em suas séries de fotos de indígenas emestúdio Huebner foi muito além desse processo meramente analítico. Mesmo inseridasainda como representações de questões de raça e pureza étnica – característicastípicas da época – essas fotografias de nativos se destacam justamente por teremsido realizadas por um fotógrafo e não por um etnógrafo ou um pesquisador. Elassão construídas conforme códigos estéticos e formais estabelecidos e conduzidospor um artista. Nelas, os sujeitos deixam de ser apenas objetos de investigação científicae passam a se comportar como atores que representam sua própria identidade.Sobre a paisagem de fundo cuidadosamente pintada (provavelmente na Alemanha),os indígenas se transformam em retratados, de acordo com as normas de fotografiade retrato vigentes. Alguns desses retratos foram reproduzidos como postais,assegurando uma ampla circulação, principalmente na Europa.

Nesse sentido, é interessante comparar as imagens de Huebner com algumasrealizadas no mesmo período por fotógrafos no sul do Chile, retratando os Mapuche.Dentre eles – vários europeus e, especificamente alemães12 – destaca-se GustavoMilet que estabeleceu seu estúdio na cidade de Traiguén. Lá, ele produziu uma vastasérie de fotografias em formato Cabinet de índios Araucanos, abrangendo desderetratos individuais a grupos portando armas, utensílios ou outros objetos. Notam-se o mesmo chão de pranchas de madeira parcialmente coberto de palha, as posesdirigidas e, particularmente, os fundos pintados com cenas que remetem a umimaginário europeu. Como Huebner, Milet também vai muito além do meramentedocumental e da retratística. Suas imagens possuem qualidades poéticas própriasque criam uma atmosfera expressiva e um cenário onde se desenrola o drama dessesindivíduos e, eventualmente, dessas culturas perdidas (FIG. 8).

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Em contraponto, algumas imagens realizadas na Austrália, na Inglaterra eaté no Brasil por outros fotógrafos na mesma época (FIGs. 9, 10 e 11) mostramabordagens bem diferentes. O pescador aborígine é retratado em terra firme, comseus utensílios; ele é mostrado de perfil e seu olhar é tão distante quanto o do fotógrafo.Com suas armas colocadas de lado e “sua selvageria neutralizada pelo ambiente deestúdio”, ele se transformou em espécime como as plantas que o rodeiam(POIGNANT, 1992, p. 54, tradução nossa). Ainda mais distante se torna a imagemdos pigmeus levados para Londres para serem exibidos como se fossem animaisexóticos. Ambas, no entanto, exemplificam o importante papel que a fotografia tevena mediação entre o processo colonialista e os propósitos antropológicos dessaépoca. Finalmente, a imagem do cacique realizada por Marc Ferrez em seu estúdiono Rio de Janeiro nos revela, além do distanciamento emocional ainda umafastamento físico do fotógrafo e de sua câmara.

Seja pela sua rigorosa formação germânica, ou por seu interesse pela ciênciadespertado ainda na Alemanha, desde o início de sua trajetória, Huebner não deixoude atribuir às suas fotografias um certo olhar inquisidor. Schoepf (2000, p. 32) destacaque ele não “tinha o temperamento de um caçador de imagens, mas o olhar analíticode um ‘recrutador’ de imagens”. Diferente de seus contemporâneos no Brasil e emoutras partes do mundo, ele “consegue apreender os seres e as coisas, e a nossarelação com eles e com elas, com a mesma amplitude e minúcia nos detalhes”.

Essa aproximação com a ciência fez com que mantivesse contato com etrabalhasse para muitos pesquisadores que vinham para a Amazônia. Dentre eles, foicom o etnólogo Theodor Koch-Grünberg13, no entanto, que se estabeleceu umaamizade duradoura e uma parceria de quase 20 anos documentada em cartas trocadasentre eles. Numa delas, de 2 de fevereiro de 1906, Huebner faz alusão a uma fotografiade índios yauapery trazidos prisioneiros a Manaus:

Desde a chegada dessas pessoas, que foram vestidas com ouniforme dos soldados daqui, encontrei-me com elas norio Cachoeira Grande14 e as fotografei em grupo [...] pudetirar boas fotografias, se bem que com grande dificuldade.Como eles logo mergulharam na água e não foi possívelfazê-los sair mais, fotografei-os no igarapé. [...] Alguns diasmais tarde, trouxe-os a meu estúdio para tirar fotosantropológicas.

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Muitos dos artigos científicos de Koch-Grünberg publicados em revistasespecializadas contaram com preciosas informações e imagens cedidas ou mediadaspelo fotógrafo. Suas expedições eram sempre preparadas e planejadas em Manauspor Huebner. Profundo conhecedor da região, com excelentes contatos não só emManaus, como em diversas outras localidades, além de suas aptidões como fotógrafo,ele tornara-se uma espécie de consultor científico para assuntos amazônicos.

E foi justamente a ciência que permitiu que Huebner sobrevivesse em Manausapós o declínio vertiginoso da economia da borracha. Em 1912, já soavam osprimeiros sinais de alerta. Com o advento da primeira guerra mundial e o aumentovertiginoso da produção das seringueiras plantadas pelos ingleses no sudeste asiático,o preço da borracha começava a despencar no mercado internacional. Muitosempreendimentos faliram, provocando o êxodo da maioria dos comerciantes eempreendedores manauaras. Como bom caboclo, Huebner, no entanto, não se abalou.Já havia alguns anos, ele vinha montando um sítio em Cacau Pirera, na outra margemdo rio Negro, defronte a Manaus. Nas várias viagens que fez ao interior, semprecoletava orquídeas e palmeiras que plantava no seu horto particular. Durante todosos anos em que morou em Manaus, manteve e frutificou seus contatos internacionaiscom renomadas instituições botânicas e pesquisadores independentes. Após ofechamento definitivo da “Photograhia Allemã”, em 1920, e até a sua morte, em1935, George Huebner se dedicou exclusivamente ao manejo, à descoberta e à coleçãode espécies da flora amazônica com o mesmo cuidado com que registrou imagensda cidade, dos índios e das paisagens que conheceu e amou profundamente.

A vasta produção de George Huebner, em especial aquela realizada emManaus pela “Photographia Allemã” entre 1898 e 1920, é ainda pouco estudada ede grande importância para a história da fotografia brasileira. Talvez a força maiorde suas fotografias esteja justamente no permanente diálogo entre o moderno e oselvagem, entre o futuro industrializado e o passado romântico representado pelospovos em extinção e pelo sublime da natureza exuberante. Profundamente alemãoem seu comportamento e em sua produção fotográfica, Huebner, vivendo naAmazônia a maior parte de sua vida, no entanto acabou adquirindo hábitos nitidamenteamazônicos que se expressam em seu corpus fotográfico, em especial naquelas imagensde indígenas cuidadosamente realizadas no seu estúdio em Manaus.

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Fig. 1: A Jovem xipibo da região do Ucayali (frontal); ass. Kroehle & Huebner, 1888.

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Fig. 2: Huebner, autoretrato, 1910.

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Fig. 3: Índio macuxi, cartão postal 1903-4.

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Fig. 4: casal indígena.

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Fig. 5: Índios uapixanas do Rio Branco.

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Fig. 6: Índios canela.

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Fig. 7: Mascarados em traje de dança carajá.

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Fig. 8: Gustavo Milet, Índios Araucanos, Chile (c. 1890)

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Fig. 9: J. W. Lindt, Aborígine australiano (c. 1870).

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Fig. 10: W. N. Downey, retrato em estúdio de pigmeus Batwa (1905).

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Fig. 11: Marc Ferrez, cacique conibo (1874).

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Notas

1 Nascido Georg Hübner, em Dresden, 1862. Após fixar residência em Manaus,onde faleceu em 1935, ele “latinizou” seu nome para George Huebner.

2 Luiz Agassiz (1807-1873), naturalista, antropólogo e ictiólogo suíço, fora atraídoao Brasil quando ainda muito jovem. Em 1829, por recomendação de AlexanderVon Humboldt, com quem estudara, foi encarregado pelo botânico Karl PhillipVon Martius de descrever os peixes colecionados no Brasil por ele e seucolaborador, o zoólogo Johann Baptist Spix, na sua viagem no Brasil entre 1817 e1820. Em 1848, tornou-se professor de antropologia em Harvard e, em 1850,casou-se com Elizabeth Cary radicando-se definitivamente em Cambridge, ondefundou a Escola e o Museu de História Natural. Entre 1865 e 1866, o casal viajoude navio pelo Brasil, do Rio de Janeiro até o alto Solimões. Seu relato de viagem,escrito por Elizabeth, traça um perfil geográfico, zoobotânico, antropológico esocial do império do Brasil. É aqui, também, onde aparecem as primeiras referênciasa fotografias de índios brasileiros, realizadas em Manaus e atribuídas a um dosmembros da expedição, Walter Hunnewell.

3 O médico alemão Robert Avé-Lallemant (1812-1884) viajou extensivamente pelomundo, em particular por todo o Brasil, aportando aqui pela primeira vez em1836. Estabeleceu-se no Rio de Janeiro, onde abriu um consultório e, alguns anosdepois, dirigindo um sanatório, desenvolveu pesquisas sobre a febre amarela. Devolta à Alemanha, manteve contato com o naturalista Alexander Von Humboldtque o convidou a participar de sua expedição para a América do Sul. No Rio deJaneiro, abandonou a expedição e prosseguiu sozinho suas viagens, inicialmentepor todo o sul, parte do sudeste e do nordeste do Brasil e, em 1859, pela Amazônia,subindo o rio Amazonas de Belém até Tabatinga. Seus relatos, ao mesmo tempocientíficos e sentimentais, traçam um perfil preciso de um Brasil que buscava seinserir no contexto mundial. Nesse sentido, essas viagens, parcialmente subsidiadaspelo imperador D. Pedro II, faziam parte de um grande empreendimento nacionalde projeção da jovem nação brasileira. A partir da segunda metade do século 19,vieram para cá inúmeros viajantes, cientistas, fotógrafos e artistas europeus queredesenharam um Brasil até então romantizado pelo olhar europeu e que, agora,“constrói sua memória e seus símbolos nacionais, se civiliza como anúncio doNovo Mundo“ (SEGALLA, 1998, p. 146).

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4 A Casa Leuzinger foi fundada pelo editor e litógrafo suíço Georges Leuzinger noRio de Janeiro em 1840, inicialmente como papelaria e estamparia e, em seguida,praticando a tipografia, a litografia, a fotografia e, principalmente, o comérciodessas imagens. Durante a década de 1860, Leuzinger documentou o Rio de Janeiro,Niterói, Teresópolis e Petrópolis, além de contratar outros fotógrafos, como AlbertFrisch e Franz Keller-Luezinger para realizar trabalhos para sua editora. A CasaLeuzinger foi responsável por aproximar a produção visual brasileira com aeuropéia, tanto em termos técnicos e estéticos como, principalmente, por massificara representação do Brasil imperial no circuito internacional.

5 Em 2006, o Instituto Moreira Salles realizou no Rio de Janeiro uma exposição como acervo da Casa Leuzinger, incluindo fotografias, litografias e publicações. Asérie de fotografias produzidas por Frisch em sua viagem pela Amazônia faz partedesse acervo.

6 Índios destribalizados que habitavam a periferia das cidades amazônicas.7 É provável que Huebner tenha aprendido com Kroehle a arte e a técnica da fotografia.8Apelido dado a Eduardo Ribeiro, jovem maranhense que governou a província do

Amazonas, pela segunda vez, entre 1892 e 1896 e foi um dos principais responsáveispela modernização da cidade de Manaus.

9 Em 1900, havia na Alemanha 51 fabricantes de câmaras fotográficas, a grandemaioria dos quais sediados em Dresden. A conhecida marca de equipamentosfotográficos Zeiss Ikon foi estabelecida em 1926, com sede em Dresden, a partirda fusão de diversas empresas, duas das quais daquela cidade: Ica AG e HeinrichErnemann AG. É interessante constatar, também, que, desde a infância, Huebnerjá estava cercado pelo métier fotográfico. Em 1871, seu pai alugara o primeiroandar de sua casa em Dresden para um fabricante de papel fotográfico, enquantoque a casa vizinha abrigava litógrafos (SHOEPF, 2000 e homepage da DeutscheGesellschaft für Photographie).

10 A presença alemã em Manaus nesse período merece um estudo mais aprofundado.Quem eram esses alemães? Quais outros motivos, além daqueles estritamentecomerciais, poderiam justificar sua permanência na região num período em que aAlemanha se firmava como nação e mostrava claros interesses imperialistas?

11 Huebner localizou algumas espécies de orquídeas desconhecidas, entre as quaisuma cujo nome, Huebneria yauperiensis, lhe presta homenagem.

12 Em Valdivia, sul do Chile, havia uma importante colônia alemã.

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13 A principal obra de Koch-Grünberg (1872-1924), “Vom Roroíma zum Orinoco”,é considerada um clássico da antropologia e compreende seis volumes que abrangema etnologia, a mitologia e o folclore da região de Roraima e da bacia do Orinoco.Foi dela que Mário de Andrade extraiu os traços básicos de seu famoso heróiMacunaíma. Grünberg é considerado um dos fundadores da moderna pesquisade campo e dos estudos ameríndios. Foi ele quem primeiro classificou etnias deacordo com grupos linguísticos.A Editora da Universidade do Amazonas acaba de publicar uma tradução em

português de sua obra “Zwei Jahre unter den Indianern. Reisen in Nordwest Brasilien1903-1905”, contendo inúmeras fotografias, muitas das quais mediadas porHuebner no que se refere a aspectos técnicos.Huebner e Grünberg trocaram cartas durante quase 20 anos. Esse acervo,

arquivado no Wissenschaftlisches Nachlass Theodor Koch-Grünberg em Giessen-Marburg traz uma preciosa descrição tanto das atividades do fotógrafo, como asdo etnólogo, além de desvelar os habitus da Manaus das primeiras décadas doséculo 20.

14 Um igarapé hoje situado na área urbana de Manaus.

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Tatiana Schor*

“I am in love with my car,I am in love with my automobil.”

Grupo The Queen

ResumoEntender o processo de transformação urbana de Manaus, a conseqüência das opçõestomadas, significa compreender a figura do automóvel em todos os seus aspectosde símbolo da modernidade. Este artigo analisa o automóvel como mercadoriasímbolo da modernidade e com esta chave interpretativa abre caminhos conscientesdo diálogo sobre as transformações urbanas e as conseqüências dessas transformaçõespara o direito à cidade, o qual os manauaras não devem abandonar.Palavras-chave: Manaus; automóvel; mercadoria; modernidade.

AbstractIn order to understand the process of urban transformation of Manaus, theconsequences of the options taken at a determinate time, means to understand thefigure of the automobile in all its symbolic aspects. This paper analyses the automobileas a symbolic commodity of modernity and with this interpretative key opens upconscientious paths to the dialogue about urban transformations and the consequencesof such transformations with respect to the right to the city to which the peoplefrom Manaus should not abandon.Keywords: Manaus; automobile; commodity; modernity..

Abram alas que eu quero passar:o desfile do automóvel na cidade de Manaus

* Doutora em Ciência Ambiental pela Universidade de São Paulo – USP, Professora adjunta do Depar tamento de Geografia daUniversidade Federal do Amazonas – Ufam e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas das Cidades na AmazôniaBrasileira – Nepecab. E-mail: [email protected].

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Abram alas que eu quero passar: o desfile...

A modernidade automobilíst ica

No processo de identificação do homem moderno pelos objetos de consumoo Automóvel tem um papel especial (e essencial). O sistema automobilístico (Dupy, G.1995), tanto pela estandardização de determinadas estruturas urbanas, necessáriaspara seu fluxo, quanto pelo significado do próprio objeto em questão, o Auto–e-móvel, faz parte e carrega consigo a modernização dirigida pela forma mercadoria.Esta modernização automobilística se apresenta como homogeneizadora de práticassociais, é um complexo sistema produtor de mercadorias que com uma de suasmercadorias mais impositiva o Automóvel, a partir da mercadoria síntese o dinheiro,atingiu seu objetivo produzindo “uma rede social cuja a trama abarca sem lacunas a terrainteira” (KURZ, 1997). É o One World (KURZ, 1997).

Uma maneira de compreender o colapso deste processo que hoje tomacorpo é analisar o processo de modernização. Um processo que esgarçou o tecidosocial transformando tudo e todos em objetos-mercadorias prontos para a exposiçãoe consumo. O Automóvel é objeto do desejo e materialização do desgaste sócio-espacial (SCHOR, 1999b). Ler o Automóvel para além de sua aparência – do belo,veloz, da poluição, do trânsito – é assistir o Auge e Declínio da modernização.

O Automóvel, como instrumento técnico, surge da acumulação deconhecimentos sociais e com a necessidade objetiva de melhoria das condições delocomoção. Esta mercadoria, tal como o tear mecânico, a máquina a vapor, a geladeira,o computador teve e continua tendo um papel importante na transformação dapaisagem e das relações sociais.

Com o advento do Automóvel e a partir de sua generalização são ampliadasas possibilidades de locomoção. Este fato é, sem dúvida nenhuma, um aspectoimportante com relação tanto à individualidade quanto a sociabilidade dohomem, isso porque redefine a autonomia com relação ao tempo e principalmenteao espaço (SCHOR, 1999a). Porém, junto com esta apropriação do espaço etempo, acontece o inverso: este tempo e este espaço tornam-se estranhos aosoutros momentos da vida.

O tempo transforma-se em velocidade: em quilômetros por hora (VIRILIO,1996). O espaço em meio: meio para circulação, para locomoção. Não é umaquestão de nova tecnologia. Essas transformações não se dão por causa deste objetotécnico. É claro que este objeto possibilita tais formas de alienação, porém ele por si

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só, não aliena. A questão não é do conteúdo da técnica, mas sim da forma que estaassume na modernidade: a de mercadoria.

Vivemos em uma Sociedade Urbana (LEFEBVRE, 1991). Uma sociedadenas quais as relações sociais se dão maneira fenomenologicamente direta (pela notade Real no bolso). Este tecido urbano deve ser visto como um conjunto demanifestações do predomínio de um sistema produtor de mercadorias sobre qualqueroutra forma social (KURZ,1993). Esta urbanização está chegando ao seu limite.Um limite de espaço, de tempo e de saúde.

O espetáculo automobilíst ico

A sociedade – produtora de mercadorias – tem como fim em si mesmo avalorização: o famoso esquema D-D‘ (dinheiro que gera mais dinheiro) de Marx.Essa valorização acentua-se no consumo individual. O consumo, neste caso, só éraramente com apropriação. É possível observar na Sociedade Urbana – produtorade mercadorias – uma cisão entre apropriação e consumo. O consumo autonomizadoda apropriação inerente a ele, transformado em uma simulação do uso que temoutro fim: ostentação (da quantidade de dinheiro materializado no objeto comprado).Neste sentido, no seu limite, este uso ostentatório transforma-se em consumo doespetáculo da própria sociedade (DEBORD, 1992), é o consumo consumindo a simesmo sem objeto a ser apropriado. Um exemplo quase caricatural desta forma deuso ostentatório são os colecionadores de Mercedes e Jaguar que tem mais automóveisna garagem que pessoas na casa. Assim, uma crítica ao consumo simulado é umacrítica ao uso ostentatório e espetacular.

O espetáculo é o consumo nas suas derivações mais fetichizadas: não seapropria, só se ostenta e contempla. O Automóvel é uma mercadoria que contém emsi tanto a apropriação do objeto (sua funcionalidade) quanto seu uso ostentatório-espetacular (suas outras significações). Para podermos analisar o Automóvel, com suasdeterminações contemporâneas, é necessário destrinchar essa mercadoria ecompreender sua relação com o urbano.

A analise do Automóvel é uma forma de compreender a sociedadecontemporânea, pois este é um objeto-mercadoria, que nasce com a industrializaçãoe se desenvolve no e para o urbano. O desenvolvimento simultâneo da indústriaautomobilística e do capitalismo fica expresso inclusive nos termos utilizados para

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Abram alas que eu quero passar: o desfile...

designar maneiras de organizar a produção (fordismo, pós-fordismo, toyotismo).Foi a necessidade de constituição do sistema automobilístico que boa parte dodesenvolvimento industrial e planejamento urbano capacitou-se e direcionou-se. Suasnecessidades técnicas impulsionaram a indústria, suas necessidades de espaço e demovimento veloz, como é fato para cidades tão diferentes quanto São Paulo eManaus, redimensionaram o desenho do urbano. O Automóvel, tanto construtor quantodestruidor, encanta o homem.

Mas, afinal, porque o Automóvel encanta o homem?Entender o significado do Automóvel é compreender como esta mercadoria

se insere no cotidiano, como modifica o cotidiano e conseqüentemente o espaçourbano no qual o cotidiano se realiza. O Automóvel como mercadoria condensa em siduas propriedades fundamentais da sociedade moderna: ser Auto e Mover-se.

O Automóvel é uma propriedade privada, individual e móvel. Pode-se dizer osupra-sumo de uma mercadoria. Um dos aspectos mais importantes do Automóvel,que o singulariza em relação a todas as outras mercadorias, é o tipo de propriedadeque ele representa e a maneira de usar: no caso do Automóvel – propriedade privada,individual e móvel – é símbolo da modernização considerando-a como um processoque individualiza e transforma tudo em dinheiro. O processo de modernizaçãoinstrumentaliza todo o conjunto de relações sociais que caem nos nexos da valorização(KURZ, 1996).

Além dessas características, o uso do Automóvel, seu consumo efetivo, se realizana esfera pública e não no âmbito privado e por isso participa da espetacularizaçãoda sociedade. É, sem dúvida o produto perfeito para uma socialização individualizada,pois ‘liberta’ o indivíduo dos constrangimentos sociais do transporte coletivo e dasregras de convivência social – afinal estar no carro é sentir-se em casa.

A propriedade privada desenvolve-se em todos os seus termos na sociedadecapitalista. É só nela que todos os objetos e aspectos da vida transformam-se emmercadorias. São essas características que fazem o Automóvel importante para odesenvolvimento do capitalismo e para inserção da modernidade nos mais remotoscantos do mundo. Se pensarmos que existe tecnologia para carros mais adaptadosao meio urbano (menores, com materiais recicláveis, elétricos, entre outros), e queexiste também tecnologia de transporte coletivo eficiente e em alguns lugares existeaté uma ‘vontade política’ de promover o transporte coletivo, como entender essereino do carro? Como compreender essa necessidade de ter um carro cada vez

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maior para se conseguir estacionar cada vez menos, cada vez mais veloz para andarmais devagar, qual o sentido?

O sentido tem que estar na vida. Então é esta vida que tem que sercompreendida e como ela se encontra deturpada, pois tem como fim outra coisaque não ela (a valorização, o consumo, o dinheiro), logo é só por meio de um olharatento a esta deturpação que poderemos compreendê-la na sua forma existente.

Possivelmente a explicação deste encantamento com o carro advém danecessidade humana de mobilidade que quando atravessada pela modernizaçãoculmina na mercadoria Automóvel e no desenvolvimento do sistema automobilístico.Ainda uma vez lembremo-nos que o consumo do Automóvel, ao contrário do dasoutras mercadorias, se realiza na esfera pública, tornando-o assim um objeto semi-privado e semi-público. E é essa diferença com relação às outras mercadorias quefaz com que o Automóvel comporte mistérios. É uma representação de poder, status,de tipo de pessoa. No limite o Automóvel simboliza todas as necessidades derepresentação do homem, afinal:

Se você pretende saber quem eu sou,eu posso lhe dizer:entre no meu carro... (Roberto Carlos, Nas curvas da estrada de Santos)

Esta particularidade do Automóvel – seu consumo privado realiza-se na esferapública – cria a possibilidade de analisá-lo na vida imediata. O processo demodernização leva a uma homogeneização da vida imediata e das práticas sociais(nestas práticas estamos incluindo as relações e estruturas sociais) por meio damercantilização de todos os objetos e momentos da vida construindo assim o OneWorld. Não é simplesmente um processo de homogeneização, mas é também, aomesmo tempo, um processo de individualização. É a constituição do indivíduoliberto das relações pessoais de parentesco, religião, é liberto também da terra e dosmeios de produção. É a constituição do indivíduo mônada-dinheiro no sentido deque ele se relaciona com o outro e com a natureza por meio da forma mercadoria(pelas mercadorias e pelo dinheiro).

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A (des)civi l ização automóbilíst ica

Este processo de modernização que é muitas vezes chamado de processode civilização está relacionado com uma suposta ‘auto-regulação adquirida’(ELIAS, 1995). É uma suposta ‘auto-regulação’ pois aparece como regulada peloindivíduo, porém a regulação é externa a ele, mônada-dinheiro, que não percebea totalidade social a não ser em suas esferas separadas (economia, política,educação, publico, privado). As transformações nos meios de transporte e,especificamente, o Automóvel, com suas novas práticas e necessidades sócio-espaciais, é um dos elementos que carrega consigo este processo modernizador(civilizador), pois por meio dele que se generaliza, junto com as demaismercadorias, uma forma de conduta social (o como guiar e se comportar novolante, por exemplo). Neste sentido o processo de aprendizagem, learning process(ELIAS, 1995) necessário a esta auto-regulação é capital-imposto.

Devemos apontar que este learning process faz parte da idéia e do fato de queem algumas sociedades os motoristas não estão adaptados a Era do Automóvelnecessitando por parte dos governantes programas de Educação de Trânsito. Este‘processo de aprendizagem’ não é pacífico, muito pelo contrário, a introdução damodernização, neste caso na modernização pelo Automóvel, implica em morte (aCruz Vermelha que estima que 70% das mortes relacionadas a acidentesautomobilísticos estarão localizadas nos países em desenvolvimento no século 21, eas cifras de mortes violentas causadas pelo automóvel na cidade de Manaus crescemexponencialmente).

O Automóvel e o sistema automobilístico são uma forma de territorializaçãodeste processo, pois homogeneizam não só as relações sociais, mas também o espaçoe o tempo pela potência da máquina e pela estandardização dos signos e práticasrelacionadas ao sistema que o Automóvel cria. A mercadoria Automóvel caracteriza-sepor individualizar o uso: o deslocamento é Auto-e-móvel.

Além disso, os limites do consumo desta mercadoria representam muitobem os limites do processo de modernização. Afinal este meio de transporte possibilitaum passo no processo civilizatório, no sentido de que diminui as distâncias no mundoe o integra. É também um processo (de)civilizatório, pois é uma das maiores causasde mortes (violentas) deste final de século. Pode-se, neste sentido, pensar na existênciade um limite no processo civilizatório, que é também um limite no próprio processo

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de modernização. Para melhor compreender este limite basta levarmos em conta asduas características principais do processo de modernização aqui analisados: temosque o quanto mais individualizada e homogeneizada a sociedade maior aparenta sera supremacia do indivíduo com relação ao coletivo; porém se notarmos bem ocorreexatamente o contrário: quanto mais individualizada a sociedade maior a necessidadedo coletivo, mesmo que de uma forma negativa e inconsciente. Ninguém mais produzpara o seu próprio consumo, mas cada um sente-se completamente liberto dasrelações sociais outras que não sejam as do mercado (nossa segunda natureza ondetudo pode ser trocado por dinheiro); e quanto maior a homogeneização maisdesesperadora é a busca por ser diferente e único. Essa negação do processo temcomo exemplo claro os novos grupos sociais que estão se formando nas últimasdécadas: são os clubbers, os freaks, hippies, neo-hippies, heavy-metals, skinheads, neo-nazistas,hip-hop, os galerosos entre outros, que travam violentos combates entre si e com osque estão ao seu redor.

Os indivíduos estão de tal forma socializados (abstratamente) que tantoa produção material quanto de suas relações podem ocorrer em qualquer lugardo mundo, ao mesmo tempo, e relacionados. Pode-se produzir o mesmo Automóvelno Brasil ou na Alemanha, pode-se montar um carro em um determinado lugar,sendo que todas as suas peças foram produzidas em outros lugares (veja o casodos carros Mondeo e Palio). Instituem-se formas de coerção social que não sãomais específicas a uma determinada sociedade, mas que estão generalizadas nomundo inteiro, tais como as multas de trânsito, que além da forma de coerçãoas máquinas são as mesmas (umas tecnologicamente mais avançadas outrasnem tanto) em todos os países.

Este Automóvel do One World é aparentemente cada vez mais individual, poiso indivíduo o consome, porém faz tal ato em público, no coletivo. Tem-se então omesmo entrave que o processo de modernização: quanto mais o indivíduo querutilizar o seu carro menos ele consegue. Afinal se todos tiverem um carro e quiseremconsumi-lo ao mesmo tempo, concretizando a individualidade, tem-se oestacionamento forçado – a trava (SCHOR, 1999c). Quanto mais iguais forem oscarros maiores serão as tentativas de modificar as aparências tornando cada umúnico, porém, homogeneamente igual. No caso da trava poderemos considerarcomo sendo o limite da propriedade privada e no caso da homogeneidade

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desesperadora como o limite desta sociedade que se transforma crescentemente emespetacular, isto é, puramente voltado para as aparências.

O Automóvel como representante fiel do capital, materializado na lógica deocupação do solo, se objetiva socialmente nos lugares, principalmente, nas grandesmetrópoles. O Automóvel não só ocupa o espaço e o tempo da sociedade moderna,mas também penetra nas profundezas da vida cotidiana. A vida de qualquer moradorde um centro urbano podendo ser este centro urbano uma metrópole ou umapequena cidade está sendo cada vez mais sujeitada a lógica do Automóvel. Seja no seuestresse no trânsito, seja na sua dificuldade de locomoção, seja na falta de calçadas,seja no barulho ou na paisagem que o envolve, até o não uso é determinado pelanecessidade de uso. O Automóvel tenha o indivíduo consciência ou não, faz parte deseu vivido e de seu imaginário.

O significado da penetração do Automóvel em todas as esferas da vida nadamais é do que o fato de que o processo de modernização chegou a todos os pontosterrestres. É muito difícil pensar o século 20 sem a presença marcante desta mercadoria.Assim o capitalismo como momento do processo de modernização no qual dominaa esfera econômica, pode mais especificamente ser considerado como automobilístico.Isso porque o Automóvel surgiu com o capitalismo, neste sentido, poderíamos falarentão em capitalismo automobilístico (KURZ, 1996).

Capitalismo automobilíst ico

A esfera dominante no capitalismo é a econômica, é a posição plena docapital. Assim, quando se adjetiva o capitalismo como automobilístico tem-se umaespecificidade na esfera dominante. É pensar que o aspecto que domina essa esferaé o Automóvel. O automobilístico, neste sentido, estaria dado pela lógica econômicado Automóvel; que inclui a indústria, a reconfiguração do urbano tendo em vista suasnecessidade de mobilidade (o uso), de estacionamento, manutenção e o consumo damercadoria. Além disso, é interessante notar que o capitalismo pode ser consideradocomo automobilístico, mas não como “geladeirístico” ou “dinheirista”. Este fato sedá pelo aspecto misterioso das mercadorias e do Automóvel em especial. O Automóveltem seu consumo realizado na esfera pública, e é assim que seus mistérios se realizam:ninguém liga para a marca de geladeira que tem em casa, enclausurada na cozinha,mas a marca de carro funciona como cartão de visita.

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Esta é uma maneira muito interessante de caracterizar nossa Era, comocapitalismo automobilístico, pois tanto o processo produtivo quanto a organização social(o espaço e o tempo) estão intimamente ligados ao desenvolvimento desta mercadoriae a sua perfeita adaptabilidade ao homem que vive nesta forma de socialização.

A socialização que se observa na modernização é uma socializaçãoindividualizada e, em certo sentido, homogeneizada. O núcleo desta socialização é o“auto”, isto é, o indivíduo atomizado que vive sua relação com a sociedade, quandopensa alguma relação social, como sendo uma somatória de relações individuais quese realizam via mercadorias e, mais especificamente, pela mercadoria particular: odinheiro. Mas, o dinheiro é homogêneo e só é comparável pela quantidade enquantoas outras mercadorias carregam consigo outros elementos e sentidos.

O indivíduo-átomo se vangloria de sua quantidade de dinheiro através dasmercadorias que pode comprar e expor. Por isso, as relações sociais são coisificadas.As relações e os processos não significam só o dinheiro, mas quantidade de dinheiroexpresso nas mercadorias. Estas mercadorias comportam outra utilidade além dade expressar quantidade de dinheiro, seria assim como uma apresentação dissimuladada quantidade de dinheiro em uma qualidade de uso (o que estamos chamando deconsumo ostentatório). O Automóvel, em particular, encaixa-se perfeitamente nestaforma de relação social. Afinal, o Automóvel é auto, expressa a quantidade dedinheiro em uma qualidade específica, representa esta atomização da sociedadee moldura o aparecer.

Podemos então falar de uma “cultura” automotiva?Sim, pelo fato das relações derivadas do uso do Automóvel impregnarem, de

determinada maneira, o jeito de ser do homem modernizado: eles se reconhecempelo carro que têm e os que têm nem imaginam como seriam suas vidas sem Ele.

O processo de modernização (automobilística) que põe o Automóvel comomeio de transporte eficiente e ao mesmo tempo nega seu uso criando outrasdeterminações, penetrando a sociedade pelas suas bases modificando o urbano e ocotidiano, possibilitando assim o surgimento de uma cultura automotiva essa, porsua vez, reforça a modernização automobilística como prática homogeneizadora,constituindo assim um dos elementos do One World.

Podemos então considerar que a analise da cultura automotiva é mais umamaneira de se captar a modernização automobilística nas subjetividades objetivadasnas práticas sociais. Vale a pena apontar como este objeto é retratado não só na

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música brasileira, mas também na literatura, no cinema e em algumas montagensteatrais. O Automóvel é apresentado neste conjunto de manifestações artísticas dediversas maneiras: ele não só aparece como objeto, mas também como metáfora. Aexpressão “o sinal fechado”, fica incorporada a linguagem cotidiana. Neste sentido,as práticas sociais relacionadas com o Automóvel (tendo o indivíduo a propriedadede tal objeto ou não) passam a integrar diversos momentos da sociedade. Podemosassim considerar que no interior da cultura moderna surgem elementos de uma“cultura” automobilística, independente da relação de propriedade com o Automóvel.Afinal, trata-se de uma modernização automobilística.

O uso do Automóvel é uma forma de propriedade individualizada (auto) epor isso tão bem adaptada a esta forma social. Ele possibilita ainda a liberdadecomo gozo, como prazer (filme Crash leva ao extremo essa relação). Talvez seja apartir desta constatação que possamos compreender porque o Automóvel encanta ohomem apesar da problemática utilização social. Lembremos que se todo indivíduofizer uso do Automóvel este uso não será realizável – negando-se, então, como utilidade.Daí nosso interesse, neste momento, estar voltado à questão da imposição doAutomóvel e a sedimentação da cultura automobilística em uma cidade como Manaus.

O desfi le do automóvel na cidade de Manaus

Manaus, cidade rodeada por enormes rios e entrecortada por diversosigarapés que lentamente são canalizados para dar lugar a avenidas. A cidade re-define a configuração do espaço urbano no plano do Automóvel. Como não poderiadeixar de ser a modernização da sociedade e da cidade encontra no sistemaautomobilístico seus elementos. O encontro do automóvel com a cidade, com suasespecificidades, constitui um sistema automobilístico que ao mesmo tempo impõe amodernização nos seus aspectos mais contraditórios. O trânsito já é realidade domanauara e o desejo por mais viadutos, avenidas e pontes é parte do ideário de umacidade modernizada. De fato,

No nosso agora, o que predomina na cidade de Manaussão as vias rápidas propondo a (ir)racionalidade da circulaçãocom passagens de nível e viadutos, como dimensão de umurbanismo que busca apenas na técnica a solução para osproblemas de uma cidade assinalada por profundasdesigualdades (OLIVEIRA, 2003, p. 18).

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O espaço da cidade de Manaus foi se transformando ao longo do século 20por meio de diversos vetores, dentre os quais, e conforme o século encontrava oseu fim, a infra-estrutura necessária para o estabelecimento do sistema automobilístico.São as pontes vetores importantes na determinação da expansão urbana da cidadeentre as décadas de 20 e 60 (OLIVEIRA, 2003, p. 96). Conjuntamente com aspontes o Plano Rodoviário do Estado, elaborado em 1949 (OLIVEIRA, 2003, p.97), serviu como reconfiguração do espaço urbano para adaptá-lo às necessidadesdo Automóvel. É neste período, de 1920-1967, conforme nos apresenta Oliveira(2003) que a opção pelo sistema automobilístico se sedimenta e redesenha aspossibilidades de expansão urbana. A construção da Grande Circular em 1955possibilita então a expansão da cidade em direção ao leste. O traçado que vem como Distrito Industrial configura e determina a forma urbana que privilegia orodoviarismo no presente e no ideário de futuro. Fica clara a opção política pelosistema automobilístico acima de qualquer outra opção possível de transporte urbanoe, por conseguinte de desenho urbano.

Por falta de outras opções de transporte e por ideário da modernização ouso e o consumo do automóvel na cidade de Manaus crescem vertiginosamente. Talquais os demais indicadores socioeconômicos, o número de automóveis na cidadetambém representa a desigualdade da e na cidade. A figura abaixo ilustra a distribuiçãode domicílios que tem automóvel nas diversas Unidades de DesenvolvimentoHumano – UDH configuradas pelo Atlas de Desenvolvimento Humano de Manaus(2006). Percebe-se que as UDHs com Indicador de Desenvolvimento Humanomais altos serem também as que possuem mais automóveis. A distância do centro,que poderia ser uma variável que indicasse uma maior porcentagem de automóveispor domicílios, aparentemente tem pouca relação quando comparada com a rendamédia desses bairros.

UDH

Percentual depessoas que

vivem emdomicílios com

carro, 1992

IDHM 1991

Percentual depessoas que

vivem emdomicílios com

carro, 2000

IDHM 2000

Distância aocentro

geográfico dacidade (km)

MAIORE SFLORES - Parque dasLaranjeiras 59,92 0,881 69,53 0,943 2,95NOSSA SENHORADAS GRAÇAS -Vieiralves/ Adrianópolis 59,92 0,879 69,53 0,941 6,26

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PARQUE 10 - CasteloBranco/ Chapada -Conjuntos 57,74 0,869 63,01 0,907 4,81

SÃO JOSÉ - Área doSESI/ Coroado -Acariquara 52,87 0,834 66,05 0,912 7,56ALEIXO - Efigênio Sales/ Parque 10 - Pq. Mindu,Shangrilá 52,87 0,848 66,05 0,915 5,65DA PAZ - Santos Dumont/ Redenção - Hiléia 46,67 0,824 64,69 0,885 1,52

PLANALTO 46,67 0,825 64,69 0,885 4,14

DOM PEDRO 44,64 0,815 56,07 0,887 5,38

FLORES - São JudasTadeu 39,28 0,834 54,06 0,871 4,15

FLORES - TorquatoTapajós 39,28 0,829 54,06 0,868 2,37

PETRÓPOLIS - JardimPetrópolis 34,82 0,823 49,44 0,878 6,91

ME NORE S

Igarapé do Quarenta 5,45 0,681 9,83 0,721 9,87

COROADO - Coroado Ie II 5,34 0,705 11,61 0,705 6,79

COMPENSA - CompensaII 3,91 0,668 9,59 0,719 8,20

SÃO JOSÉ - São José II 3,68 0,683 11,49 0,726 8,56

COLÔNIA TERRANOVA 3,58 0,657 7,14 0,708 4,46SÃO JOSÉ - São José IIIe IV 3,58 0,672 16,44 0,742 10,21TANCREDO NEVES -Parte Baixa 3,55 0,647 4,58 0,689 10,10CIDADE NOVA - NossaSenhora de Fátima, Cidadede Deus 3,46 0,632 5,85 0,693 9,09

ARMANDO MENDES 3,22 0,674 11,04 0,730 10,51

CIDADE NOVA - NovoAleixo, Amazonino Mendes 1,83 0,653 9,24 0,725 8,11

Novo Israel/ColôniaSanto Antônio 1,74 0,652 14,04 0,725 1,85

TARUMÃ 1,68 0,617 6,69 0,687 5,66

ZUMBI 1,64 0,637 7,19 0,714 9,83JORGE TEIXEIRA - JorgeTeixeira I e III 1,61 0,628 7,67 0,711 9,85

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Tatiana Schor

Fonte: Atlas de Desenvolvimento Humano de Manaus (2006), organizado pela autora.

Em todas as UDHs apresentadas na tabela houve um incremento naporcentagem de domicílios com automóvel o que indica uma tendência crescentede incorporação desta máquina na vida das pessoas. Com isso a importância doautomóvel e das políticas pró-carro ganha um ideário, um discurso e uma práticacentral no planejamento urbano da cidade. Afinal, tal qual está escrito nos avisos dasnovas obras de intervenção urbana: Cuidando do trânsito, cuidando de você.

Cuidando do t rânsito, cuidando de você

Ter a máquina se mistura com o ser cidadão. Cuidar da fluidez de seu usosignifica cuidar do cidadão-usuário, consumidor. A cidade passa a ser compreendidacomo meio pelo qual o transporte, o deslocamento, ocorre. A estética urbana éaquela das grandes avenidas com palmeiras imperiais nos canteiros centrais, e shopping-centers com enormes estacionamentos é a metrópole modernizada do One World.

As alternativas possíveis e utópicas, tal como um inovador sistema detransporte coletivo fluvial, são afastadas não só da realidade das políticas urbanas,mas, e principalmente, da imaginação e criatividade dos gestores. Os meios fluviaisde transporte coletivo que existiam em Manaus, tal como os catraieiros, não só sãoabandonados, mas, e principalmente, são desestimulados. Uma cidade de costaspara o rio e a opção pelo transporte rodoviário não só reflete está realidade comoa aprofunda.

TANCREDO NEVES -Parte Alta 1,43 0,657 7,6 0,719 8,88Colônia Antônio Aleixo/Puraquequara 0,43 0,635 5,14 0,670 16,38

SANTA ETELVINA 0,00 0,641 7,67 0,692 6,56

JORGE TEIXEIRA - JoãoPaulo 0,00 0,599 5,13 0,695 10,66

JORGE TEIXEIRA -Santa Inês, Brasileirinho 0,00 0,617 7,31 0,667 11,80

SÃO JOSÉ - Grande Vitó-ria ... ... 3,55 0,660 11,76JORGE TEIXEIRA - ValParaíso, Chico Mendes ... ... 6,64 0,676 11,13

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As alternativas utópicas e possíveis de um desenho urbano na dimensão docorpo se perdem na crítica da “falta de fluidez”. Falta fluidez para a maquina embairros tal como o Coroado ou o Japiim, mas não falta fluidez para o pedestre,ciclista que ocupa a rua (já que a calçada é inexistente) nos seus trajetos cotidianos.Porque não pensar uma urbanização a partir da estrutura de cidadela medievalcontemporânea que se apresenta nestes bairros originados por invasões? Urbanizarpode ser partir do desenho do existente e não no desenho utópico de cidade modernacom vias largas e fluídas.

Mas, poderia ser diferente? De fato a modernização se estabelece em todo omundo e com ela os seus mais diversos elementos, dentre os quais o sistemaautomobilístico que impulsiona um traçado urbano para a máquina. Este traçado éem si excludente, pois privilegia o uso de uma mercadoria individual. O automóvel,e o desejo nele embutido refletem uma sociedade que aceita a desigualdade deriqueza, de renda e acima de tudo do uso do espaço coletivo. Destrói o tempohumano e enaltece a velocidade. Possibilita uma expansão urbana extensa, característicadas cidades do terceiro mundo nas quais os espaços históricos, maleáveis no território,podem ser destruídos para dar passagem à máquina. Prédios, praças, igrejas sãopostas a baixo para se construir avenidas e viadutos. O centro histórico desvaloriza-se pela falta de estacionamento nas residências e a periferia cresce ao longo dasAvenidas e Ruas da Penetração, nome comum nos diversos bairros manaoaras.

Um discurso contra a dominação do automóvel é uma luta inglória daquelesque ainda sonham com cidades plenas de suas funções, como espaço de encontrode culturas, sonham com uma Manaus menos desigual e multicultural que reconheçana sua história e no seu desenho espaços de utopia como nos ensina Harvey (2004)que a tornem menos competitiva, menos inserida em uma modernização em colapso.É um utopismo espaço-temporal que parte das formas espaciais existentes parapensar formas espaciais diferentes, é olhar o Coroado e outros bairros construídosà revelia do poder público e distante da lógica da modernização automobilística epensar em como a partir destes desenhos um outro desenho de cidade é possível.São os espaços de esperança, de utopia que merecem voz e discurso mesmo quedistante da retórica desenvolvimentista que nos assola.

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Tatiana Schor

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Norma Felicidade Lopes da Silva Valêncio*

Antonio Roberto Guerreiro Júnior**

Milene Peixoto Ávila***

Cínthia Cássia Catóia****

ResumoDesenhos infantis têm sido entendidos como formas de expressão cultural quandofocalizam o contexto socioambiental. Este estudo analisa desenhos de crianças Ticunae Cocama para identificar aspectos da cultura não indígena na estrutura de pensamentoe percepção infantil. Uma comparação por idade e grupo social mostrou afinidadese diferenças no modo de expressar o entorno de suas casas.

Palavras-chave: desenhos infantis; representações sociais; cultura indígena.

AbstractChildren’s drawings have been understood as forms of cultural expression whenthey focus on their social and environmental context. This study analyses Ticuna andCocama children’s drawings in order to identify aspects of the non-indigenous culturein the structure of the infant mindframe and perception. A comparison by age andsocial groups shows affinities and differences in the ways of expressing around theirhomes.

Keywords: infant drawings; social representations; indigenous culture.

A heterogeneidade representacional da Amazônia nosdesenhos de crianças nativas

* Doutora em Ciências Sociais. Professora do Depar tamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos/SP.Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Engenharia Ambiental, UFSCar. E-mail:[email protected].

* * Antropólogo. Mestrando em Ciências Sociais/ UFSCar.* * * Antropóloga. Mestre em Ciências Sociais/UFSCar.* * * * Graduanda em Ciências Sociais/UFSCar.

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Introdução

A Amazônia brasileira repousa, no imaginário social mais amplo das demaisregiões do país, sobretudo no das camadas urbanas do Centro-Sul, como umterritório de grande extensão; abrigo de uma inigualável biossociodiversidade; berçode um dos maiores mananciais de água doce do planeta; ecossistema estratégico noprecário equilíbrio climático num cenário de oscilações e incertezas. A imagem tecidasobre a Amazônia, com tais elementos constitutivos, conduz a uma inevitávelrepresentação: trata-se uma porção, ainda terrena, do paraíso perdido.

Se, em parte, a existência de tais elementos corresponde à realidade regional,em parte corresponde a uma visão cristalizada do lugar. Os impedimentos ao acessoe à compreensão das representações socioambientais endógenas ocorrem por váriasvias, da imposição midiática da imagem paradisíaca aos discursos institucionais quea reforçam. Há, ainda, as temporalidades hierárquicas como as que colocam o Centro-Sul do país como intérprete válido de uma Amazônia vista como que numa desordemarcaica, o lugar do que é selvagem, bárbaro, lento, inocente e crente. Não é, a Amazônia,um Outro – posto que a alteridade exigiria mútuo reconhecimento cultural, político,socioeconômico – mas um mundo à espera de ser, precisando justificar-se nainstrumentalidade a outrem, oferecendo-se como refúgio, laboratório, variável denegociação nacional em protocolos ambientais multilaterais; enfim, funcional aossetores dinâmicos (LEONEL, 2004).

As representações acerca da Amazônia podem não apenas ser diversas entreos que a olham longinquamente e os que a habitam como também entre os grupossociais que partilham deste mesmo território.

O tema das representações sociais vem favorecendo a compreensão dosvalores e das crenças que subjazem aos mecanismos de produção e difusão dasidéias de molde a permitir analisar como uma realidade comum é percebida demúltiplas formas na vida cotidiana de uma dada comunidade (MOSCOVICI, 2004).As variações e diversidade de olhares entre sujeitos e seus grupos de pertencimentotransitam entre a estabilização da cultura e a procura de novos sentidos e significados,conformando dinamicamente as identidades. Dessa tessitura, se mantém acomunicação, as práticas e a coesão de um dado grupo, flexível o suficiente paracaber mudanças na forma como o grupo se entende e age no mundo. O risco dodesvio representacional é, daí, continuamente mitigado através da constante re-

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apresentação e re-endossamento das idéias. Assim, não só a inteligibilidade eestabilização de um conhecimento julgado apropriado à situação do grupo é umprocesso sem fim, no qual os fenômenos tornam-se visíveis no re-contar, mas aidentidade do grupo depende da eficácia deste processo, reconhecendo o “nós” e“eles” pelas distâncias das representações sociais.

Tal qual o universo adulto, o universo infantil está sujeito ao processo decoesão social por intermédio do partilhamento de representações sobre o mundocircundante. A construção social do olhar infantil sobre as representações do seuentorno deriva, dentre outros aspectos, do aprendizado dos signos e significadosque são caros àqueles com quem a criança mantém os laços societários primários, afamília nuclear, como daquele que é disseminado pela educação formal quando estapassa a fazer parte de seu cotidiano. De outro lado, a criança pode estar envolvidaem uma vida comunitária intensa, imbricando os aprendizados supra naquele quedecorre informal e ludicamente de suas interações no espaço público das praças,terreiros e ruas bem como da observação pulsante da dinâmica ecossistêmica, oque, de acordo com Candido (1977), é o comum na sociabilidade contida nosmodos de vidas interioranos.

Segundo a abordagem piagetiana, as feições físicas que o ambiente natural econstruído toma sob o olhar infantil são tangenciadas por condicionantes etários osquais correspondem a certo nível de desenvolvimento cognitivo. Tais representaçõespodem ser expressas por diversas linguagens, dentre as quais, a dos desenhos.Conforme a abordagem supra, entre os 07 e 10 anos de idade, os desenhos sesituam no chamado realismo visual, no qual o pensamento é construído na tentativade estabelecer comparações, registrar e adotar perspectiva, além de estabeleceresquemas representativos no qual ocorre uma repetição flexível dos objetos quefazem parte do seu jogo simbólico (BORDONI, 2000). Além disso, se antes elasdependiam de informações perceptuais, passam a usar princípios lógicos, tais comoo da identidade, estabelecendo que os atributos básicos de um objeto não mudam,e o princípio da equivalência (PIAGET, 1990). Os desenhos refletem, assim, oconhecimento objetivo e imaginativo da criança e do grupo a que pertence. Neles, épossível ver representado o sistema dinâmico organizador da relação dela com omundo, com o outro e consigo mesma (OLIVEIRA, 2003).

Frente a isso, tem-se por objetivo descrever e analisar um microrrecorte daAmazônia que brota dos desenhos de crianças nativas identificando os elementos do

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espaço que projetam compreensões similares e/ou diversas do entorno. Para tanto,tomar-se-á um conjunto de desenhos produzidos por crianças de ambos os sexosna faixa etária de 7 a 10 anos, residentes no município de Santo Antonio do Içá-Am.Tais crianças estão inseridas em três diferentes grupos sociais locais, a saber: gruposurbanos, rurais (ribeirinhos) e indígenas, este último das etnias Ticuna e Cocama.

A seguir, apresentamos uma breve descrição da localidade e os procedimentosde investigação adotados.

Amazônia: ambiente e sociedade

A Amazônia brasileira é uma região que ocupa uma área total estimada em 5milhões de quilômetros quadrados, aproximadamente 61% da área do Brasil, eabrange os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia,Roraima, Tocantins e parte do Maranhão. A vegetação principal é a Floresta Tropical(Floresta Ombrófila Densa), no interior da qual a temperatura média mantém-se emtorno de 25°C e vê-se regada por chuvas torrenciais bem distribuídas pela extensarede de drenagem fluvial (BRASIL, 2005a).

Sua população corresponde a 12,4% da população nacional, apresentando amenor densidade demográfica do país, de 4,14hab/km². A população amazônicacaracteriza-se como jovem uma vez que os habitantes com menos de 20 anos deidade correspondem a 51% do efetivo demográfico total. A base extrativista, aocupação das várzeas e o padrão de circulação fluvial condicionaram a dinâmicademográfica da região até a década de 1970, quando, então, políticas macrorregionaisde desenvolvimento ensejaram a construção de rodovias, as quais atraíram opovoamento para a terra firme, valorizando um estilo de vida menos isolado e maisurbano. Atualmente, 68,2% da população se encontra inserida nas áreas urbanas,crescendo o contingente dos que se fixam em municípios de até 50 mil habitantesque, no geral, apresentam inadequada infra-estrutura para absorvê-la e má resoluçãodos conflitos entre a malha político-administrativa e a malha das terras indígenas(BRASIL, 2005b). O município de Santo Antônio do Içá, localizado a oeste doestado do Amazonas, insere-se nesse contexto.

Com uma área territorial de 12.308 km², banhado pelos rios Içá e Solimõese fazendo, a oeste, fronteira com a Colômbia, o município de Santo Antonio do Içáapresenta uma população atual, estimada pelo IBGE, de 33.421 habitantes dos quais

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7.906 vivem na área urbana e quase quatro mil é constituída de indígenas, o restantevivendo em pequenas comunidades rurais, geralmente ribeirinhas e dispersas. Cercade 55% da área do município é formada por terras indígenas.

A coleta de relatos orais e a observação direta permitiram verificar que amaioria da população exerce atividades de subsistência, isto é, pescam e plantam osprodutos que consomem. Em termos nutricionais, a farinha de mandioca e o peixecompõem a dieta básica cotidiana, sendo os frutos da época (como a pupunha, ocupuaçu, a banana e o açaí) itens secundários da dieta. Ás vezes, há um excedente quepossibilita a venda e a conseqüente renda monetária para a compra de outros produtosalimentícios, vestuário, utensílios domésticos, materiais para a construção ou reformada casa etc. Pequena parte da população urbana possui ou trabalha em pequenoscomércios como lojas, bares e supermercados. Outros são servidores públicos, comofuncionários, professores da rede pública municipal e estadual de ensino, além deaposentados. As mulheres do meio urbano estão, no geral, concentradas nas atividadesdomiciliares e os homens na provisão de alimentos para a família, elas mantendo-secomo chefes dos lares e eles, como chefes de família (VALENCIO et al., 2005).

A pavimentação e eletrificação na área urbana são precárias, bem como oabastecimento hídrico e as condições sanitárias. A coleta e destino dos resíduossólidos são incertos: alguns os queimam, outros os jogam no rio Solimões ouem algum igarapé próximo à sua residência, ou em barrancos pela cidade(VALENCIO et al., 2005).

No geral, a família da localidade é do tipo nuclear. Todavia, é muito numerosa,devido à extensão da prole, sendo que a população infantil de 0 a 6 anos correspondea 20,7% do total, enquanto que os adultos, de 25 a 59 anos, equivalem a 27,4% dototal. As crianças, em sua maioria, freqüentam a escola, mas o nível de escolaridadeda população, muito raramente, ultrapassa o ensino fundamental. As poucas escolasexistentes – seja no núcleo urbano, comunidades ribeirinhas ou indígenas – sãoprecárias e desaparelhadas. Turmas diferentes funcionam em uma mesma sala e, nãoraro, ocorre descontinuidade do ensino por desistência do docente. Faltam, no geral,bibliotecas públicas assim como quadras poliesportivas nas quais atividades curricularese extracurriculares possam desenrolar-se a contento. As crianças e os jovens nãoindígenas estão muito influenciados pelo apelo cultural que vem por via da TV, umdos seus únicos meios de lazer. Por essa influência, aspiram formas de consumopouco acessíveis e valorizam heróis de seriados americanos e japoneses. Ainda assim,

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as crenças no Curupira e em personagens míticos da região são muito comuns e oouvir estórias sobre os mesmos é uma das formas de entretenimento das crianças(VALENCIO et al., 2005).

Porém, um problema urbano relevante no cotidiano dos cidadãos, relatadopelos mesmos, se relaciona com a segurança pública. Muitas pessoas, principalmentehomens jovens, participam do tráfico de drogas, incitando usuários sem renda apraticarem roubos freqüentes nos domicílios e deflagrando um clima deintranqüilidade similar ao vivenciado nas grandes capitais do país (VALENCIO etal., 2005).

Procedimentos de invest igação

A fim de obter o ponto de vista infantil sobre o contexto ambiental, naturale construído do município de Santo Antonio do Içá, a equipe contatou aleatoriamentefamílias inseridas no núcleo urbano e em núcleos ribeirinhos. Em ambos os casos,encontravam-se grupos caboclos e indígenas. As comunidades indígenas Cocamaem núcleo urbano abordadas foram as de São Gabriel e São José. As comunidadesribeirinhas abordadas foram a cabocla de Bom Futuro e as ticunas de Vila Betânia eSão Raimundo.

Com o consentimento dos pais e adesão das crianças do domicílio, foioferecido papel e lápis de cor para que as mesmas elaborassem um mapa mental doseu entorno, com uma representação gráfica dos elementos naturais e sociais da suapaisagem cotidiana. O pressuposto da atividade foi o de que os desenhos infantisfavoreceriam a identificação dos aspectos sócio-ambientais relevantes do meio; mas,sobretudo, revelaria os valores, crenças, anseios de que a criança estaria imbuída aponto de orientar sua percepção Os significados emergem, pois, do conjunto dossignos que constituem sua imagem, visto o processo relacional entre elementos(GRUBITS, 2003).

Para fins desse estudo, dos 78 desenhos coletados na localidade nas diferentesfaixas etárias foram selecionados 29 desenhos de crianças na faixa etária de 07 a 10anos, correspondendo a uma amostra das crianças desse mesmo estrato etário nomunicípio. Considerou-se, por um lado, as afinidades e dessemelhanças do olharinfantil pelo recorte etário e sociocultural; por outro lado, comparou-se as característicascomuns dos desenhos do grupo com aquelas comuns a outros dois grupos decontrole, a saber, o das crianças de 02 a 06 anos e o daquelas entre 11 e 14 anos.

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Resultados e discussão: idade, lugar e ident idade

O desenho é o mundo conhecido, uma representação figurativa da memóriado indivíduo, e do grupo a que pertence, acerca de sua realidade (RAMIRES eGUIMARÃES, 2004). No caso da criança, é uma linguagem que se disponibilizaprazerosamente para a sua memória, pois admite, nos limites do papel, a mais variadagama de elementos e ordenamentos, no qual, aparentemente, inexistem os rigoresque outras linguagens se lhe vão impondo.

Através dos recortes supra, quer-se demonstrar que a expressão gráfica dacriança, embora envolta na criatividade, obedece a padrões em termos de variabilidadee relações entre os elementos da paisagem. Tais padrões correspondem a determinadafaixa etária e permitem dar conta da identificação de certas especificidades espaciais– isto é, do processo dinâmico de integração de fixos e fluxos do território –considerando as particularidades culturais do grupo do qual a criança faz parte; ouseja, seu desenho não é apenas uma elaboração permitida por certos potenciaiscognitivos, mas é uma construção representacional de um ambiente concretamentevivenciado desde um conjunto de valores e práticas particulares.

1. Elementos ambientais dos desenhos infant is no viés etário

Os desenhos infantis, cujo tema é a paisagem do entorno, de modo geralcostumam reportar à casa, situada entre elementos do clima – representado por solou nuvens, ou chuva – e do relevo – montanhas e rios – aos quais se associam àfauna e flora (BORDONI, 2000).

No caso das crianças de Santo Antonio do Içá, na faixa de 07 a 10 anos, acasa é uma imagem persistente e quase sempre aparece suspensa do chão por pilares.São casas pequenas feitas de madeira, com cobertura de zinco e cujo acesso é feitopor escadas, caracterizando palafitas. Tais características construtivas são muitofidedignas aos materiais e à arquitetura residencial típica da região a qual adapta-se àsnecessidades de drenagem do terreno ao regime pluvial intenso (FIG. 1).

Como elementos da flora, há recorrência de uma imagem estereotipada deflor, seguida da de árvores (FIG. 2). Embora as últimas sejam identificáveis com asespécies frutíferas regionais, como o açaizeiro, o jambeiro, o cupuazeiro, árvoresincomuns também são grafadas, como a macieira e a laranjeira.

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Figura 1: Desenho de Carla, 9 anos, município de Santo Antonio do Içá/AM.

Figura 2: Desenho de Deisya, 10 anos, município de Santo Antonio do Içá/AM.

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O sol se destaca por ser o elemento natural constantemente representado,seguido das estrelas e nuvens. Outro objeto comum aos desenhos são canoas oubarcos de pesca, seguidos por elementos relacionados às águas, que perpassam oterritório representado (FIG. 3).

Figura 3: Desenho de Marciene, 9 anos, município de Santo Antonio do Içá/AM.

Como elementos da fauna, aparecem borboletas, cobras e pássaros, sendoque estes últimos costumam ter seus nomes e características físicas bem definidas aoinvés de um grafismo abstrato e simples. Além disso, o jabuti, a onça, o macaco e opacu também são recorrentes como elementos no imaginário dessas crianças, assimcomo o ato de caçar, que faz parte da cultura ribeirinha e indígena (FIG. 4).

Ao mesmo tempo em que aparece um tipo de brinquedo, como a bola, quese manifesta como elemento lúdico que faz sentido no cotidiano da criança, ligandoa casa à rua, aparece a imagem da bandeira do Brasil e, também, conforme a explicaçãoda criança, “barcos de soldados”, o que expressa o início de uma compreensão deque um outro território perpassa essa quotidianeidade: há símbolos, elementos esujeitos para além da localidade mas que interagem com esta e vai se impondo namemória do grupo (FIG. 5).

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Figura 4: Desenho de Carlos, 9 anos, município de Santo Antonio do Içá/AM.

Figura 5: Desenho de Regiane, 10 anos, município de Santo Antonio do Içá/AM.

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Entre elementos de infra-estrutura, fauna e flora ocorrem, em média, quinzediferentes imagens no desenho da faixa etária de 7 a 10 anos. Se comparados com opadrão apresentado por 24 desenhos – colhidos igualmente de forma aleatória – decrianças na faixa etária de 02 a 06 anos, vê-se que para as que estão entre os 07 e 10anos de idade há uma identificação maior da variabilidade de elementos do meio,embora ambos privilegiem os dois elementos centrais em torno dos quais seorganizam as principais atividades familiares: a casa e o barco/canoa. O grupo maisnovo ainda não reporta as águas, o rio, que é a base física onde o barco trafega e abase ecossistêmica para muitas espécies faunísticas e florísticas da região (FIG. 6).

Figura 6: Desenho de Elenia, 6 anos, município de Santo Antonio do Içá/AM.

Um grupo de controle mais velho, por seu turno, apresenta maior variabilidadedos elementos identificados no entorno. Entre 11 e 14 anos de idade, foram coletadosaleatoriamente 29 desenhos, nos quais se observam a reiteração da flora e da fauna

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que o grupo focalizado (de 07 a 10 anos) identificou, apenas mais diversa: há, aqui,o castanheiro, a mangueira, o buritizeiro, a goiabeira, o coqueiro, como tambémmaior riqueza de espécies da ictiofauna, como o pacu, o pirarucu, o curimatã, otambaqui, o surubim e bodó, com destaque aos desenhos das crianças ribeirinhas,caboclas e indígenas, cuja interação com o rio é mais freqüente (FIG. 7). Há, nestegrupo, destaques para o inusitado, o helicóptero, que é um meio de locomoção usualentre os militares que transitam nesta zona de fronteira e a inversão espacial entre olugar da canoa e o lugar do helicóptero, respectivamente representados acima eabaixo da casa. E há, também, elementos endógenos da cultura indígena, como apeneira e a cerâmica, elaboradas com detalhes étnicos.

Figura 7: Desenho de Josieli,12 anos, município de Santo Antonio do Içá/AM.

2 As dist inções pelo viés geográfico da inserção infant i l

A seguir, adotamos o critério de separação dos desenhos pela variávelgeográfica, constituindo um conjunto representativo do meio urbano e o outro, domeio rural. No meio urbano, estão compreendidas crianças não-indígenas e criançasindígenas provenientes de dois aldeamentos Cocama, respectivamente identificadoscomo as comunidades de São José e São Gabriel, configuradas na confusão entre amalha urbana e a de terras indígenas, conforme já mencionado. O meio rural ficou

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representado por desenhos de crianças não-indígenas da comunidade de Bom Futuroe crianças indígenas Ticuna, da comunidade de Vila Betânia.

Nos desenhos das crianças que moram na cidade e em seus arredores, ascasas e as canoas, ou barcos, juntamente com o sol, as flores e as árvores são asfiguras mais representadas. No entanto, destacamos, pelo seu caráter inusitado, figurascomo a de um dinossauro, de um boi e de um homem armado visto na televisão.As árvores que não são encontradas na região, a macieira e a laranjeira, tambémpertencem a este grupo. É nítida neste grupo a tendência a representar os elementosdo meio direto de inserção com grafias genéricas (por exemplo, o elemento “árvore”correspondendo a “uma árvore qualquer”) e valorizar a representação do conteúdotelevisivo como sendo o conteúdo interessante. A violência que se expressavirtualmente também existe na vida urbana de Santo Antonio do Içá: o “bandido”que aparece armado na tela que se projeta no interior da casa desenhada correspondeao tráfico de drogas e disputa entre grupos rivais que intranqüilizam a vida urbanalocal. Nas escolas locais, o aprendizado livresco, no qual há fauna e flora nãocondizentes com os regionais, favorece-se o imaginário infantil na direção das macieirasinexistentes no Alto Solimões bem como sua imersão desejante no mundo apresentadopela Tv.

Nos desenhos das crianças ribeirinhas, a casa e a flora são representadas deforma mais abundante do que pelas crianças da área urbana, além da ictiofauna e dafauna de pássaros, esta com a presença do maguari e do periquito. De fato, essadiversidade de representações corresponde à diferença da produção socioculturaldos espaços ribeirinho e urbano num mesmo município.

3. As dist inções pelo viés sociocultural

As imagens elaboradas por crianças não-indígenas mesclam de maneirarelativamente equânime, em termos de variabilidade, objetos do ambiente construído– casas, barcos, bolas – e aqueles do meio natural.

As crianças Cocama, entre 07 e 10 anos de idade, são as que representamfiguras como a bandeira do Brasil, barcos de soldados e a Bíblia, enquanto que ascrianças Ticuna não representam nenhuma figura do mesmo gênero.

Enquanto, entre os Cocama aparecem imagens mais relacionadas com oambiente construído, tais como a televisão, a “garrafa de pegar água” (garrafa PET),

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bolas e canetas; entre os Ticuna, são os elementos do ambiente natural que fazemparte da memória infantil sobre o entorno. Isso não significa dizer que entre ascrianças indígenas Cocama o meio natural não seja representado, mas que seuimaginário é povoado pela tecnologização progressiva de suas rotinas devido àsinfluências que o modo urbano tem sobre a dinâmica das aldeias onde os Cocamasanalisados estão inseridos.

Conclusões

As imagens hegemônicas sobre a Amazônia brasileira dão conta de umterritório selvagem, homogêneo em sua biodiversidade – por mais contraditóriaque as idéias de homogeneidade e diversidade sejam – e distante dos fixos e fluxostípicos da modernidade. Isso corresponde a uma visão cristalizada do lugar queprecisa ceder ao olhar sobre as múltiplas Amazônias que há na vasta extensão donorte do país.

O tema das representações sociais é o que favorece ver as especificidades daprodução e difusão de novas imagens de molde a que se possam considerar osvalores e as crenças que subjazem aos mecanismos de produção e difusão das idéias.Desde o mesmo, tomamos as representações infantis de populações nativas sobreos elementos naturais e construídos do seu entorno.

Tomando o caso do município de Santo Antonio do Içá-Am – onde semesclam espaços urbanos e indígenas, carência e violência, subsistência da pesca emandioca e afluência do tráfico de drogas – e adotando recortes etários, geográficose socioculturais, concluímos que as crianças nativas, na faixa etária compreendidados 07 aos 10 anos, mantêm uma representação figurativa que, de fato, correspondeao realismo visual. Os elementos gráficos têm consonância com as particularidadesambientais e sociais do meio, mas há uma mediação cultural que permitedistingui-los.

Se comparado à variabilidade de elementos que compõe a paisagemamazônica, essa faixa etária está mais habilitada a externá-la que a faixa mais jovem(entre 02 a 06 anos) e mais restrita a percebê-la se comparado com a faixa no estratosuperior (de 11 a 14 anos), o que demonstra capacidade progressiva de reconhecero meio e representá-lo. Todavia, essa variabilidade está condicionada pela própriavariabilidade dos elementos naturais e sociais que fazem parte do território. O tecido

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urbano monocromático acaba influenciando a diversidade e o tipo de imagensproduzidas pelas crianças indígenas que partilham dessa dinâmica, limitando oarcabouço de conhecimento sobre a pluralidade florística e faunística da região, oque aquelas que mantêm uma inserção rural – caboclas, e, sobretudo, indígenas –ainda preservam. Produzir representações acerca do lugar em que se vive, e re-elaborá-las a cada nova fase do desenvolvimento infantil, é o esperado. No caso dascrianças de Santo Antonio do Içá-Am, espera-se que suas re-elaborações futurastraduzam um projeto de espaço que seja saudável para seu desenvolvimento pessoale o coletivo em que se inserem.

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de Educação Intercultural, Gênero e Movimentos Sociais. 2 Anais. Florianópolis:UFSC. p. 1-12.PIAGET, Jean (1990). A formação do símbolo na criança – Imitação, jogo e sonho, imagem erepresentação. 3. ed. Rio de Janeiro: LTC.RAMIRES, Júlio; GUIMARÃES, Jussara (2004). Um olhar da criança sobre o espaçohospitalar através de percepções figurativas. Caminhos da Geografia, Uberlândia, v. 1, n.12, p. 1-28 Jun..VALENCIO, Norma F L S et al. (2005). Projeto Rondon: relatório de atividades nomunicípio de Santo Antonio do Içá-Am. São Carlos: Departamento de CiênciasSociais/UFSCar. (mimeo).

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Renato Athias*

ResumoEstudo das relações das práticas indígenas de cura e os serviços de saúde no atualmodelo nacional de atenção da saúde das populações indígenas. As principaisinformações etnográficas referenciadas estão baseadas em observações realizadas apartir de quatro encontros de sabedores indígenas, realizados na região do Uaupés,no Noroeste Amazônico entre os anos de 1999 e 2003. Preconiza-se como de realimportância um diálogo formal entre sabedores indígenas e profissionais de saúde.Esse diálogo possibilitará uma abordagem intercultural e visará a uma compreensãodos profissionais sobre os processos saúde e doença que se dão entre os diversospovos indígenas.

Palavras-chave: serviço de saúde indígena; medicina tradicional indígena;abordagem intercultural.

AbstractThis work studies the relationships of the Indians´ healing practices and the healthservices within the current national model of the health service provided to theindigenous populations. The main surveyed ethnographic data are based onobservations carried out during four encounter of indigenous knowers, carried outin the Uaupés region in the Amazon Northwest between 1999 and 2003. A formaldialog between indigenous knowers and health professionals is argued to be of realimportance Such a dialog would enable an intercultural approach and would aim atan understanding by the professionals of the health and disease processes which takeplace within several indigenous peoples.

Keywords: indigenous health service; indigenous traditional medicine;intercultural approach.

Kumuá, baiároá e yaís.Os especialistas da cura entre os índios do rio Uaupés-Am

* Antropólogo. Professor do Depar tamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social daUniversidade Federal de Pernambuco. Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Etnologia. E-mail: [email protected].

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Introdução

Este trabalho1 tem o objetivo de levantar algumas questões relacionadas àspráticas indígenas de cura, medicina indígena e os serviços de saúde no atual modelonacional de atenção da saúde das populações indígenas. Esse debate tem a ver comum maior entendimento sobre como as práticas tradicionais de cura podem ser“articuladas” com os serviços de saúde, tal como está previsto na Política Nacionalde Atenção à Saúde Indígena e que deveria fazer parte das atividades de um DistritoSanitário Especial Indígena – DSEI. As principais informações etnográficasreferenciadas, nesse artigo, estão baseadas em observações realizadas a partir dequatro encontros de sabedores indígenas, realizados na região do Uaupés entre osanos de 1999 e 2003. Estes encontros anuais foram organizados no âmbito doprojeto sobre a medicina indígena desenvolvido pela Associação Saúde Sem Limitese o Centro de Estudos e Revitalização da Cultura Indígena – Cerci, em parceria coma Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN, com recursos daagência internacional de cooperação NOVIB.

O objetivo principal desses eventos era de discutir aspectos da medicinatradicional visando subsidiar a organização dos serviços de saúde em implementaçãona região no modelo de Distrito Sanitário Especial Indígena do Rio Negro – DSEI-RN. A organização e as temáticas desses encontros foram discutidas e decididaspelos representantes das organizações indígenas e o registro dos eventos ficou sob aresponsabilidade dos membros do CERCI. Uma publicação sobre o resultado dessesencontros foi publicada em 2004 e recebeu enorme interesse dos índios dessa regiãoe está sendo utilizada pelos professores nas escolas do município.2

Essas discussões sobre a medicina indígena envolveram representantes dasetnias Tukano, Desana, Piratapuia, Uanano, Arapaso, Tuyuka e Tariano, procuroudar ênfase nos terapeutas tradicionais, pajés e os demais especialistas de cura, que sãovistos hoje por esses índios como pessoas detentoras de saber e importantes para amanutenção da saúde das comunidades. Percebeu-se também que nesses encontrosque os índios estão preocupados com a maneira de como está sendo “reelaborado”o papel e o significado que os pajés, os curadores e os benzedores estão sendo vistosnessa região. O que se pôde também visualizar nesses encontros foi a importânciaque os espaços geográficos, o espaço social e os processos de territorialização têmem relação às noções e aos entendimentos sobre o corpo e pessoa, entre os povos

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indígenas do Uaupés e como isso se conforma com as práticas xamânicas. Estetrabalho, além de apresentar elementos das práticas tradicionais de cura, busca aindaoferecer subsídios para discutir as possibilidades de articulação da medicina tradicionalindígena com os serviços de saúde na região do rio Negro.

Sistema cultural do Uaupés

É importante enfatizar que os povos indígenas do Rio Uaupés fazem partede um conjunto cultural peculiar. Portanto, o modelo analítico que desenvolvemosneste trabalho parte do princípio de que as relações sociais e a dinâmica interétnicaestão baseadas em uma concepção sistêmica, imbricadas nas heranças históricas enos processos de negociação entre as diversas etnias. Em outras palavras, o conjuntodas relações sociais entre as diversas etnias (ou grupos lingüísticos3, como são tambémcaracterizados os grupos indígenas de fala Tukano) faz parte de um mesmo universocultural, onde cada uma delas, com as suas especificidades, se desenvolvem formandocomplexo cultural homogêneo. Esse sistema está baseado em um modelo dehierarquia4 peculiar a essa região e regido através de um princípio básico estabelecidona ordem do nascimento. Em outras palavras, quem nasceu antes é superior àqueleque nasceu depois. Nossa atenção, nesse momento, se volta particularmente para areconstrução deste sistema hierarquizado, onde cada um dos grupos indígenascompartilha um conhecimento específico, e onde são identificados claramenteparticipando nessas relações seus territórios próprios, suas fronteiras, suas identidadesnomeadas e específicas. Aqui, a noção de fronteira não é vista como uma barreiraintransponível entre os diversos grupos, mas como um espaço nomeado e conhecidoonde se dão as relações interétnicas e a reprodução do modo de existência.

As trocas culturais e a dinâmica existente entre os povos Arawak5, Tukano eMaku da bacia do Uaupés possuem características bem específicas e engendramuma rede de relações, onde cada um dos grupos se organiza e interage nesse espaçosocial, nomeado e hierarquizado. Os índios, nessa área, participam ativamente de umsistema integrado, onde as relações têm por base uma compreensão cultural comumsobre sua presença naquela terra e as identidades dos diferentes grupos étnicos. Parase ter uma idéia da dinâmica dessas interações sociais é necessário, portanto, remeter-se a uma análise mais aprofundada sobre a operacionalização dessas relaçõesinterétnicas nos diversos espaços sociais nomeados e “ancestralizados” desse território,

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denominados pelos Tukano de Yepá6. Na realidade, ultrapassam um padrão de umsimples contato entre os grupos étnicos, pois as relações entre dois ou mais gruposétnicos que possuem uma especificidade, porém não se podem omitir as relaçõesentre cada um deles e os outros grupos étnicos que habitam essa região nas outrasbacias hidrográficas dos Rios Negro, Apaporis, Caquetá. Existe uma inter-relação,uma interdependência entre os diversos grupos indígenas baseada no entendimentodos mitos fundadores e nas relações com os ancestrais que se manifestam nas relaçõessociais onde cada um desses grupos respeita um espaço territorial próprio. Esseespaço é definido através do mito e na vivência mitológica de Pa’miri-Masa7, umtempo mitológico que reflete a transformação desse mundo (Yepá) nas coisas existenteshoje criadas por um demiurgo (Yepá-Oãkhe). Nem todos os grupos indígenasparticipam desse mesmo tempo mitológico. Então, as relações entre os parentes eos casamentos prescritivos se dão entre os índios que vieram para esse mundo atravésde Pa’miri-Masa e aqueles outros que chegaram de outra forma, através das águasdos rios. As águas representam o princípio vital entre os povos indígenas do RioNegro. A narração mitológica é realizada, nos processos de cura, numa cuia comágua através das palavras encantadas recebidas durante o tempo de Pa’miri-Masa.

Podemos perceber nesta região, e os índios fazem questão de enfatizar emseus discursos, as especificidades identitárias étnico-culturais de cada um,extremamente importante para entender os diferentes povos da bacia do Uaupés.Não apenas do ponto de vista físico, mas também em relação às formas de adaptação,conhecimento tecnológico, sobre o meio ambiente e entendimento cosmológico,bem como na forma hierarquizada que determinam as relações interétnicas. Essasidentidades étnicas nem sempre são percebidas pelos profissionais de saúde e agentesda sociedade nacional como sendo diferentes e específicas, portanto portadoras deconhecimentos próprios. E isso passa a ser tratado genericamente, criando-se assimuma idéia de que todos os índios são iguais e participam de uma mesma maneiranesse sistema cultural. Na realidade, cada um dos grupos indígenas tem suasespecificidades relacionadas aos mitos fundadores. E essa identidade de cada um éespecializada nos clãs. Esse conhecimento é reconhecido, falado e cantado através deuma música própria de cada um dos clãs (Kapivaiá) nas cerimônias de Dabucuri,festas tradicionais entre os grupos étnicos, que fazem parte de uma mesma aliança, eque trocam suas mulheres reforçando a ideologia patrilinear. Porém, a identidadeétnica de cada um dos grupos não está separada ou isolada do seu mundo simbólico,

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que se inscreve dentro de um espaço geográfico, como indicamos antes, nomeado,partilhado, reconhecido e respeitado por cada um dos clãs dos grupos étnicos. Ecada um destes grupos possui um território, um papel social e uma posição específicaneste sistema cultural hierarquizado.

No que se refere às instituições deste sistema cultural, de referência para cadaum dos grupos étnicos, a ideologia patrilinear de exogamia (lingüística para os Tukano)8

representa a principal instituição reguladora das relações sociais praticada na baciado Uaupés, formando assim um eixo central onde também são definidas as relaçõescom o sobrenatural. As instituições existentes entre os povos indígenas dessa regiãosão o culto a Jurupari, que regula as relações entre os diversos grupos étnicos; acelebração do Dabucuri, que interfere e faz parte das relações entre os diversosgrupos étnicos e diferentes grupos lingüísticos promovendo as alianças e as trocasmatrimoniais, e ainda a Maloca, a grande casa comunal, que institucionaliza e regulaas relações cotidianas no interior de um clã. Essa maloca tem um nome e um espaçogeográfico específico, e sempre será de posse de um clã para a eternidade, tal comodefinida no tempo de Pa’miri-Masa. Esses elementos representam os elementosdeterminantes nas negociações internas de uma aldeia e que determinam as relaçõesinterétnicas, refletindo assim centenas de anos de um processo de negociação entreos diversos povos que se estabeleceram nesta região a partir de um processo intensode interação e trocas culturais. Essas relações fazem parte da estrutura da organizaçãosocial e das relações de parentesco dos grupos étnicos e, sobretudo, do processo deterritorialização. São através dessas instituições que se manifestam os códigos quedão acesso à compreensão dos eventos dos diversos mitos e nas trocas ritualizadase especializadas.

Hierarquia, mito e discurso

Enquanto a ideologia holista, valorizando o todo e subordinando as partes(indivíduos), opera por oposições assimétricas (o que supõe a idéia de valor), aideologia individualista opera por oposições simétricas, distintivas, que não atribuemvalor às idéias, ocultando, assim, a relação entre as partes e o todo. Fazendo umagenealogia da categoria “indivíduo” na cultura pós-moderna, Louis Dumont (1978)9

aponta algumas pistas para compreender essa realidade e ter um modelo explicativopara a essa área específica.

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Dumont (1978) arma duas possibilidades lógicas para a elaboração de suateoria da hierarquia aplicada ao sistema de castas na Índia. Esse aporte teórico podedar pistas para se compreender as relações interétnicas na região do Rio Negro e,sobretudo, as relações entre os grupos Tukano e os demais grupos da região. Oautor fez tentativas de universalização da sua construção teórica para entender outrassociedades e o fundamento das relações hierárquicas. Ele considera, de início, umuniverso, um conjunto (FIG. 1) dividido em duas categorias ou classes iguais, ondeas partes/classes A e B são, a priori, iguais e logo que se colocam em relação aoconjunto se pode evidenciar que elas são complementares e, por vezes, contraditórias,no sentido de que uma exclui a outra. Esta seria uma perspectiva estrutural, segundoo autor, e que se pode observar entre as relações sociais no Rio Negro. Existe umaexclusão e ao mesmo tempo uma complementaridade (HOUSEMAN, 1984).

Figura 1

A outra possibilidade está em considerar duas classes (ou dois grupos) umaem relação à outra. Neste caso, o universo, o conjunto (o quadrado maior da Figura2) é visto como pano de fundo das relações que se estabelecem entre as duas partes(o círculo e o quadrado) em um mesmo conjunto. Dito diferente, a classe/grupo Yna Fig. 2 é co-extensiva a todo conjunto e a classe ou grupo X, limitada dentro deum quadro, e que, portanto, também faz parte deste conjunto. Essa última (X), noentanto, é percebida como diferente e/ou inferior à outra (Y). Também aí neste casose poderia evidenciar, como na primeira possibilidade, uma forma decomplementaridade e/ou contradição. Esta segunda possibilidade está inserida dentrode uma perspectiva substancialista.

Figura 2

A B

YX

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A hierarquia, de acordo com Dumont (1978), consiste, pois, na combinaçãodestas duas possibilidades com níveis diferentes, onde a complementaridade e acontradição existem dentro de uma ordem superior que se engloba assim como naordem considerada inferior. Poderia parecer um, pois coexistem identidade,complementaridade e contradição. Na realidade, de uma forma ou de outra, oscontextos serão confundidos e perderão toda sua pertinência no momento deestabelecer a relação com o conjunto. Nenhuma situação é independente de umconjunto, de um contexto. É impossível classificar, definir ou analisar relações/situações entre dois grupos se considerarmos cada uma delas como um sistemamonolítico. Admite-se que a oposição hierárquica surge da oposição entre umconjunto, um todo e um elemento deste conjunto ou deste todo. Este elemento nãoé necessariamente simples, pode ser um subsistema. Esta oposição pode ser analisadalogicamente em dois aspectos parciais e contraditórios: de um lado, o elemento éidêntico ao conjunto, pois ele é também parte; de outro lado, ele é diferente.

No sistema interétnico da bacia hidrográfica do Uaupés, pode-se entãodistinguir dois níveis ou dois subsistemas, que se complementam e se contrapõe.Portanto, as relações interétnicas nesse contexto, por exemplo, as relações Hupdah/Tukano se efetuam no interior destes subsistemas ou, se preferirmos, níveis distintosde um sistema integrado onde existem, nos dois grupos indígenas em questão,elementos comuns, resultado de uma mesma interpretação de um mesmo contexto.Estes dois níveis, contraditórios e complementares, representam o pano de fundode um contexto único, de um espaço social compartilhado por todos os gruposindígenas da bacia do rio Uaupés.

Para entender melhor essa relação podemos visualizar da seguinte forma:um destes níveis, aquele onde se situam as relações interétnicas, está ligado à ordem,que chamaremos de ordem ideo-mitológica, onde todos os grupos étnicos participam,compartilham e se “territorializam” dentro de um espaço comum. Acima, citei ostrês elementos base deste sistema que são compartilhados por todos os gruposindígenas: o Jurupari, o Dabucuri e a Maloca. Cada um dos grupos indígenas, além decompartilhar um espaço geográfico, participa de um mesmo entendimento simbólico,presente na ideologia, onde esses três elementos estão fortemente inter-relacionados.Neste nível, podemos encontrar a unidade de um universo ideológico que permeiatodas as relações interétnicas. As diferenças entre os diversos grupos não são percebidaspelos índios como motivos ou pretexto para uma dominação de um sobre o outro.

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Estas diferenças existentes são as identidades específicas (diferenças marcantes) decada grupo, que, ao contrário, são motivos importantes para uma celebração ritual,entre os diversos grupos étnicos. E, portanto, nesta troca ritual, o Dabucuri, quecelebra a diferença, como citado acima, se formaliza a especificidade dos gruposétnicos e fornece um equilíbrio às relações interétnicas e nos processos internos denegociação (BARTH, 1963, 1981).

O segundo nível, que permeia as relações interétnicas no interior deste sistema,está estreitamente relacionado à ordem do cotidiano, representado pelas diferenças técnico-econômicas específicas de cada grupo étnico, bem como as diferenças nas diversasformas adaptações ao meio ambiente da região. Neste nível, as diferenças de cadagrupo são visualizadas, identificadas e hierarquizadas por todos os grupos indígenasda região. Aí, as diferenças são radicalizadas, manifestadas nas relações entre os gruposindígenas na exploração de um mesmo espaço geográfico. É neste nível que se dá aseparação existente entre os diversos grupos, que aparecem as fronteiras e os limitesde cada território. A diferença é concreta, real e discriminatória nas relações cotidianas.

Dentro desta abordagem, as relações sociais não podem ser analisadasisoladamente, sob o ponto de vista de cada grupo lingüístico particular. Estas devemser analisadas abrangendo um universo ideológico, simbólico, bastante elaborado epresente em todos os grupos. É nesta perspectiva, portanto, que a análise das relações,por exemplo, entre os Hupdah/Tukano, tem sua abrangência, sem que esta tendapara a visão particularizada e específica de cada um dos dois grupos indígenas.Quando se descrevem essas relações dentro do nível que chamei de ideo-mitológico,pode-se perfeitamente perceber que os Tukano englobam os Hupdah na suaconcepção cosmogônica e vice-versa. Neste nível, se apresenta uma hierarquia ondecada grupo tem seu lugar privilegiado, numa ordem que vai dos mais velhos aosmais jovens, do superior ao inferior, segundo a ordem de nascimento dos fundadoresancestrais. Pode-se perceber ainda neste nível uma harmonia de fato entre todos osgrupos no interior de um sistema hierarquizado abrangente e, ao mesmo tempo,reproduzido no interior de cada grupo lingüístico.

Esta análise, utilizando-se a ferramenta teórica da oposição hierárquica, talcomo desenvolvida por Louis Dumont, permite então determinar a relação entre aideologia coletiva e o pensamento individual, de uma maneira original, não maiscomo uma relação direta onde a estrutura de uma determinaria o funcionamento daoutra, mas como relação indireta, mediatizada pela agregação sintética da participação

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de diversos atores, entre modelos de organização social diferentes. Esta análise sugere,em suma, que as relações entre os dois planos são descontínuas, complementares ecomplexas. A passagem do funcionamento particular – aí vemos o pensamentoindividual para a construção do conjunto – responde não a uma extrapolação dosprincípios elementares e sim ao aparecimento de uma lógica que poderíamos chamarde nova.

Para mostrar a eficácia de uma análise segundo o modelo que tentamosapresentar faz-se necessário detectar com precisão, na região da bacia do Uaupés, osistema de representação coletiva e a passagem para o pensamento individual.Necessitaríamos de mais pesquisas neste terreno abrangendo uma série de povos euma teia de relações que enfatizamos serem por demais complexas. Cremos serimportante aplicar este esquema analítico – níveis dentro de um conjunto – na esferareligiosa, a prática xamânica comuns aos diferentes grupos.

Indivíduos, nomes e pessoas

A noção de pessoa sempre foi importante para os estudos antropológicos, edesde Marcel Mauss essa categoria tem uma importância fundamental nos estudosantropológicos. O desenvolvimento dessa noção vem sendo trabalhado em diversasdireções sem, no entanto, perder de vista o eixo central que esta representa para asrelações sociais. Não há sociedades sem indivíduos e isso não quer dizer que todosos grupos sociais se apropriam da mesma noção. São diferentes os aportes teóricosexistentes na Antropologia sobre a idéia de pessoa, onde nem sempre esta noçãopode ser vista como um agregado de papéis sociais e, portanto, deverá variar desociedade para sociedade. Não pretendemos desenvolver, aqui, todas as abordagensantropológicas sobre a concepção de pessoa na Antropologia, pretendemos, noentanto, apresentar como os papéis sociais na região do Uaupés estão associados àidéia de pessoa, e como essa se manifesta nas relações entre os diversos grupos, nocontexto hierarquizado.

No universo social do Uaupés, um Tukano se “autodefine” como fazendoparte de uma categoria social que ele denomina de Masa10. Este termo, ou melhordizendo, essa categoria engloba todos os grupos indígenas da região. Ou seja, todosfazem parte dela. Portanto, Masa está em oposição às categorias sociais que estãofora do universo territorial do Rio Negro, como, por exemplo, aos péhkasa, categoria

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que agrupa todos os não-índios. A idéia de Masa está presente nos diversos mundosda cosmologia Tukano, onde seres que não possuem a forma corpórea (anatômicae fisiológica) dos humanos também são reconhecidos como fazendo parte destacategoria. Esses seres (cada um deles tem um nome e um lugar) comungam dessemesmo espaço social em seus mundos específicos. Na camada abaixo da terraencontra-se, por exemplo, o mundo dos Mehkã-Masa. Ao mesmo tempo em quese englobam todos os animados em uma mesma categoria, logo também se separamem espaços específicos. Os Waí-Masa são seres vivos que moram nas águas e queinterferem no mundo de todos os Masa. E esses seres, cada um deles vivendo emseus espaços próprios, em suas camadas, como são visualizados pelos índios doUaupés nos remetem à idéia de “corpo” como um elemento desencadeador designificados social, também já amplamente desenvolvido na Antropologia.

No Uaupés a noção de “corporeidade” está associada à idéia de pessoa(aquela que tem um nome) em diferentes espaços e substâncias. Cada Masa tem seucorpo e sua forma de colocar para fora os fluidos, os cheiros e os líquidos, cujostemas fazem parte dos mitos e das interpretações dos seres das diversas camadas domundo cosmológico dos povos indígenas. Ao se referirem ao corpo humano ospovos da bacia do Uaupés remetem à noção e o tempo de Pa’miri, ou seja, a idéia defermentação, de transformação interna (assemelha-se a noção de metamorfose).Para todos que fizeram a grande viagem mitológica no tempo de Pa’miri estavamcom seus corpos em processos de transformação, antes de passarem para esse mundo,em fermentação como dizem. Na realidade, o “corpo da anaconda” (representadono tempo da viagem) era o mesmo corpo, a mesma substância, daqueles que viriama ser pessoas neste mundo, mostrando uma clara distinção entre uma substânciafísica e uma substância espiritual. A idéia de fermentação, de transformação docorpo é presente na existência neste mundo, na relação com a vida e com osecossistemas.

Os grupos lingüísticos da região do Uaupés enfatizam que no “tempo damaloca” em um momento onde não havia o contato com os missionários, os homensde um mesmo clã estavam ordenados nas linhagens de Chefes, Baiás, Kumu, Gerreirose Servos (domésticos) (HUGH-JONES, 1979). Cada um desses papéis sociais eraexercido no interior de uma maloca em um local específico nas margens dos rios daregião. Outros pesquisadores observaram essa mesma ordem em outras áreas ondeestão localizados grupos Tukuno. Cada um exercia uma especialidade, um papel em

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três domínios específicos: I) econômico e político pelos chefes e serventes, II) áreametafísica exercida pelos benzedores (kumu), os donos do canto (baiá) e yaís e, porúltimo, III) externo, onde os guerreiros exercem seu papel. E no interior de cadaespecialidade, no caso dos chefes, por exemplo, encontram-se dispostos em hierarquiatambém segundo a ordem de nascimento. Interessante notar que a palavra usadapara designar o servente [hosa] em Barasana é o mesmo termo para denominar osMaku (HUGH-JONES, 1979, p. 57). Esses papéis ainda estão vivos hoje na regiãodo Uaupés.

Kumuá, Baiároá e Yaís11

Pensar em xamanismo entre os povos indígenas do Uaupés, há que levar emconsideração a memória coletiva e a especificidade de cada grupo étnico quanto àsua posição dentro deste contexto étnico e cultural. Cada um dos clãs dos gruposétnicos tem os seus Kumuá e Baiároá, (não se aplica para os Yaís, que são poucos enão estão presentes em todos os clãs) os quais possuem sua própria prática depreparação para a vida de seus pares de acordo com a tradição mítica de seu clã. Talprática, segundo os próprios índios, distingue-se pela posição hierárquica existentena estrutura social vigente entre os diversos grupos lingüísticos. Na qual, de acordocom esta posição, recebe-se nomes próprios tradicionais (basesé heripona - wabe) queindicam tanto a posição hierárquica na estrutura do grupo de referência de cada clã.Esta característica não elimina a possibilidade de um Kumu ou um Baiá de preparar,prevenir e curar uma pessoa que não pertença a seu grupo étnico de origem, desdeque ele conheça as narrativas mitológicas da criação dos clãs.

Preparar o corpo para a vida significa determinar o que o indivíduo vai serpara o grupo e seu clã, que as “trilhas da vida” estão abertas para ele exercer o seupapel social ou simplesmente viver sua existência. Entre os povos indígenas do RioNegro o indivíduo é preparado/encantado antes mesmo de nascer. E após onascimento, durante a vida e até morte são proferidos encantamentos para que pessoapossa viver bem neste mundo, contido nas mais diversas fórmulas de proteção.Esses encantamentos são realizados pelo Kumu conhecedor das narrativas mitológicase onde se buscam as fórmulas de encantamentos, bem como os conhecimentosterapêuticos para as etapas do crescimento fazendo parte de uma prática preventivae de proteção das forças externas que provocam o desequilíbrio no corpo e no

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ambiente. A preparação para a vida, a prática desta, deve estar de acordo com opapel determinado para o indivíduo no seu grupo de origem, e que pode ser lidoatravés de seu nome próprio. Para se tornar um Yaí, Kumu e Baiá existe umapreparação especial e longa, que consiste em cerimônia ritualizadas onde a pessoaescolhida receberá os ensinamentos para acumular os saberes tradicionais, trata-sede um processo planejado segundo os próprios Yaí. Para que não ocorra nenhumproblema, o local é preparado dois dias antes com breu e cigarro, nesta primeiracerimônia já ficam marcados a próxima, na qual o indivíduo que recebeu osensinamentos tem que realizar “prestação de contas” com a comunidade.

Quando um grande sabedor morre, o indivíduo que recebeu os ensinamentos,algum benzedor tem que fazer uma oração específica para que ele descanse em paz.Seus pertences têm que ser guardados, e não podendo ficar solto, porque podeprejudicar as comunidades, segundo a tradição os pertences daquela pessoa têmque ser levado para um lugar específico como a “terra de iniciação”, este lugar égeralmente para os grandes conhecedores da sabedoria tradicional. Nesse caso, apreparação tem que ser especial, para que não fique aparecendo o fantasmadaqueles que morreram.

Em cada aldeia geralmente existe um Kumu e um Baiá. Esses conhecem arelação de seu clã com os lugares desse mundo. Essa identidade é, na realidade,cantada (tem um toante próprio de conhecimento próprio do dono-do-canto, oBaiá), e celebrada principalmente nos Dabucuris. Porém, o Yaí não existe em todosos lugares. E nem existem muitos na atualidade. Esses sempre foram poucos, porémtodos eram poderosos. Tinham seu corpo preparado para exercer suas atividadesxamânicas em qualquer lugar, em qualquer clã. Podiam ultrapassar todas as fronteirasdesde que solicitados. Tinham um aprendizado próprio, que segundo os sabedoresindígenas poderia durar até nove anos com um acompanhamento direto de ummestre. Yaí é o nome dado também ao bastão que Oãkhe trazia quando fez essemundo (yepá) no tempo de Pa’miri-Masa. Yaí também é o nome dado à onça,animal que tem um poder imenso na cultura do Uaupés. Por isso que muitos chamamde pajé-onça, pois esse tem o poder de transformação do seu próprio corpo.

A preparação do corpo para o mundo exigia dessas pessoas um profundoconhecimento das plantas alucinógenas e de diversas plantas medicinais. O kapi, oparicá, a coca e o tabaco estão profundamente relacionados aos processos ritualísticos.Esses vegetais são todos personagens mitológicos e fazem parte das principais

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fórmulas de encantamento utilizadas por esses especialista de curas. Essas plantasremetem cada um desses especialistas em suas viagens nas diversas camadas douniverso cósmico em busca de um conhecimento específico para curar ou paraprovocar um malefício.

Nas descrições que os sabedores indígenas do Uaupés fazem dos yaís elesinsistem em dizer dos períodos em que essas pessoas deviam se abster de todas asrelações sexuais. Neste sentido, a abstinência sexual é um elemento importante nãosó no aprendizado, mas na prática de cura, como também nas prescrições feitas aospacientes. Esses elementos parecem ser comuns entre os xamãs amazônicos e aparecemem geral em todas as narrativas. Se as pessoas que curam e cantam (preparam ocorpo e o ambiente) nas aldeias indígenas do Uaupés têm os nomes de Kumu, deBaiá, o Yaí não tem um nome, principalmente porque não está ligado a um espaçogeográfico. Este pode ser chamado de pajé-yaí, ou simplesmente Yaí, e pode invocaro demiurgo criador de todas as coisas. Porém, nos discursos dos sabedores indígenasdo Uaupés, esses são reconhecidos também como “ahkó-sitahgué”, ou seja, comoum Yaí também é reconhecido e chamado. Este começa a pertencer a todas ascamadas da cosmologia. Não tem lugar específico, tem a chave para ir para emtodos os lugares. Na realidade, o “ahkó-sitahgué” significa “aquele que cura jogandoágua”. E só eles podem curar jogando água. Os Kumu, os benzedores, não tocamno corpo do paciente. Neste caso, a palavra e os encantamentos são os instrumentos dacura. Eles dizem que curam com o som das palavras. Os Baiá curam e fazem aproteção dos ambientes usando a música, o toante.

Na tradição do Uaupés existem dois tipos de yaís que utilizam a água. Aquelesque usam a planta inoñoá (carajuru) para concentrar o seu poder de diagnosticar, eaqueles que cheiram o wihõiua (paricá). E o mais interessante é que essas duas práticasespecíficas estão localizadas em dois distintos territórios. O primeiro tipo na baciado Uaupés e o segundo na bacia do Içana. Esses dois territórios contíguos possuemtradições bem diferentes e bem conhecidas por todos. É comum escutar que nãoexistem mais pajés no Uaupés. Não se tem certeza sobre isso, pois essas práticasainda estão sendo contadas e vistas hoje. Esse conhecimento que foi por dezenas deanos proibido, desde a chegada dos missionários na região, hoje está voltando ebusca-se cada vez mais esse conhecimento especializado.

Talvez uma das primeiras atividades a ser realizada nas ações de saúde emáreas indígenas não seja simplesmente o respeito passivo dos profissionais de saúde

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que atuam no DSEI, mas um reconhecimento e a formalização de um diálogo comos terapeutas e especialistas de cura. E essa formalização seguirá um modelo própriopara cada área indígena e a criatividade local. Apesar da política nacional de atençãoà saúde indígena abordar em forma de “articulação” dever-se-ia possibilitar espaçoscriativos e inovadores na atuação nas diversas áreas indígenas. Cada uma das culturascolocará a ênfase necessária para o desenvolvimento de um diálogo interculturalem saúde.

Além dessa formalização, desse reconhecimento de uma ciência indígena,dever-se-ia buscar mecanismos para que sabedores indígenas pudessem estarpresentes nas etapas formativas do pessoal do DSEI, inclusive dos agentes indígenasde saúde. E essa inserção deveria estar acompanhada de um processo formal paraque esses terapeutas tradicionais estivessem também presentes nos espaços de discussãoe decisão sobre todas as etapas formativas do pessoal do DSEI.

Para finalizar, acredito ser importante que se busquem alternativas, nas diversasáreas indígenas, para a efetivação de um diálogo formal entre sabedores indígenas eprofissionais de saúde. Esse diálogo possibilitará, de fato, uma abordagem interculturale visará uma compreensão dos profissionais sobre os processos de saúde e doençaque se dão entre os diversos povos indígenas. Ainda a favor desse diálogo efetivoencontra-se a possibilidade de uma mudança estrutural no funcionamento do distritopossibilitando uma adequação, de fato, dos interesses dos povos indígenas e dosprofissionais de saúde. Essa adequação pode dar a base para uma organização dosserviços de saúde mais respeitosa e a construção de uma nova prática em saúde,com relação às questões culturais dos povos indígenas. Assim como na construçãode novas práticas de saúde, novas maneiras de produzir conhecimento e a formaçãoem saúde implicam também em aceitar desafios e muitos problemas, talvez semrespostas. Não temos uma fórmula mágica e nem sabemos o final dessa história,mas já é possível desvendar alguns caminhos a partir das diversas experiências queestão sendo desenvolvidas nas diversas áreas indígenas.

Notas

1 Este texto é parte da comunicação apresentada no Seminário Images, performance andrepresentation in American shamanistic societies, realizado em St. Andrews, Escócia, nosdias 31 de janeiro a 2 de fevereiro de 2003, promovido pelo Departamento de

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Renato Athias

Antropologia da St. Andrews University e organizado pelos antropólogos MarkHarris, Jean Chiappino e Catherine Alés. Gostaria de agradecer a Casimiro Beksta,por possibilitar outras leituras dessa mesma realidade, e aos colegas Marina Machado,Norimar Oliveira e Simone Celestino pelas conversas instigadoras sobre essatemática.

2 O livro Pa’miri Masa, a origem do nosso mundo. Revitalizando as culturas indígenasdos rios Uaupés e Papuri relata todas as temáticas debatidas nesses encontros.

3 Sobre essa discussão de grupos lingüísticos ver Jean Jackson (1983), Christine eStephen Hugh-Jones (1979) e Renato Athias (1995).

4 Vários antropólogos têm se dedicado ao estudo da hierarquia e as relações deparentesco nessa região. Remetemos aqui a um trabalho que poderá ilustrar essaquestão: Hornborg, Alf (1988). Dualism and hierarchy in Lowland South America.Uppsala studies in Cultural Anthropology 9. Estocolmo: Almqvist & Wiksell.

5 Na região do Uaupés apenas os Tariano, pertencentes à família lingüística Arawak,vivem em lugares estratégicos no Rio Uaupés. Os outros Arawak encontram-se nabacia do Rio Içana-Aiari.

6 A noção de Yepá está em complementação àquela de Dita e expressa a idéia deterritório compartilhado entre os “poteriká”, os filhos da região, ou a gente desseterritório.

7 Este tempo está associado à grande viagem onde os lugares, as casas, as malocas(Wií) foram determinados nesse tempo de transformação. Sobre isso ver GabrielGentil (2001).

8 Entre os Arawak, a exogamia se dá através das fratrias e entre os Hupda-Maku aunidade exogâmica é o clã. Apenas os Tukano reconhecem a exogamia lingüísticacomo fundamental para manutenção da própria identidade.

9 Esta edição em particular de Homo hierachicus, de Louis Dumont, conta com umposfácio explicativo sobre a teoria das oposições hierárquicas.

10 A outra grafia da língua tukano escreve assim: mahsã.11 Estes termos estão no plural. No singular, seriam: Kumu, Baiá e Yaí, que são, na

realidade, os especialistas. Não existe um pajé. Existem diferentes tipos de pajés.

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Tony Marcos P. Braga**

José Fernandes Barros***

Maria do Perpétuo Socorro Chaves****

ResumoO presente estudo se propõe a analisar aspectos da atividade pesqueira e sua relaçãocom os conflitos sócio-ambientais entre diferentes usuários dos recursos ícticos daregião conhecida como Costa do Canabuoca, município de Manacapuru-AM, comdois sistemas de lagos em uma área de várzea onde populações tradicionais ocupamhistoricamente a região e dependem dos recursos naturais para sua subsistência,principalmente do peixe.

Palavras-chave: lagos de várzea; acordos de pesca; populações tradicionais.

AbstractThe present study proposed to analyze aspects of the fishing activity and theirrelationship with the social-environmental conflicts among different users of fishingstock of area Costa of Canabuoca, Manacapuru’s Município do Amazonas, whereexists two systems of lakes in a floodplain area where traditional populations occupythe area historically, depend on natural resources for their subsistence, mainly of thefish.

Keywords: floodplain lakes; fishing accords; traditional populations..

Pesca e conflitos sócio-ambientais na Amazônia Central:estudo em uma área com manejo comunitário*

* Trabalho financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – Fapeam.* * Mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior pelo Inpa – Ufam. Pesquisador do Programa Integrado de Recursos

Aquáticos e da Várzea, PYRÁ. E-mail: fishpor [email protected].* * * Mestre em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade da Amazônia pela Ufam. Pesquisador do Programa Integrado de

Recursos Aquáticos e da Várzea, PYRÁ.* * * * Doutora em Políticas Cientificas e Tecnológicas pela Unicamp. Professora do Depar tamento de Serviço Social e do

Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas. E-mail:[email protected].

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Introdução

A utilização dos recursos ícticos por populações humanas foi e continuasendo fundamental para a reprodução e sobrevivência do homem rural amazônico.No entanto, nos últimos anos tem-se verificado uma intensificação de conflitos deordem social e ambiental. Esses conflitos são decorrentes, sobretudo, do aumentoda pesca comercial, ocasionado principalmente pelo incremento da população urbana,como também pela insuficiência de políticas públicas voltadas para o setor quesejam capazes de diminuir os riscos da atividade agrícola e de criar alternativaseconômicas além da pesca (MELLO, 1995).

Neste contexto, a atividade pesqueira se tornou palco privilegiado de conflitose tensões decorrentes de uma série de situações cujas raízes remetem-se àstransformações impostas pelos mecanismos do mercado sobre a produção pesqueiraartesanal. Os impactos sociais e ecológicos causados por esta nova conjuntura sãograndes e precisam ser mais bem compreendidos.

A produção bibliográfica existente sobre o tema é ainda incipiente. Até omomento poucos trabalhos têm-se dedicado a investigar as condiçõessocioeconômicas dos pescadores e suas organizações político-institucionais,bem como suas estratégias de manejo dos recursos naturais. Os estudos existentessobre o tema voltam-se principalmente para a região estuariana do Estado doPará, onde a literatura científica sobre a pesca artesanal e industrial é considerável(BARTHEM et al, 1992; FURTADO, 1981, 1987, 1990, 1993, 1997; LEITÃO,1995 e MELLO, 1995).

No Estado do Amazonas a carência de trabalhos acadêmicos sobre a temáticacomeça a ser suprimida1, mas as produções científicas concentram-se geralmentesobre os aspectos bioecológicos, relegando a um segundo plano as alteraçõesdecorrentes do contexto sóciopolítico e econômico.

Diante disto, o presente estudo se propôs a analisar aspectos da atividadepesqueira e sua relação com a existência de conflitos sócio-ambientais entre diferentesusuários dos recursos ícticos da região conhecida como Costa do Canabuoca, emuma área de várzea onde populações tradicionais2 ocupam historicamente a região edependem dos recursos naturais para sua subsistência, principalmente do peixe.

A área escolhida para a realização da pesquisa é uma típica área de várzea daAmazônia Central no Município de Manacapuru, na região à margem direita do Rio

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Solimões, com dois sistemas de lagos: o Sistema Lacustre Jacaré (com 27,7 km2) e oSistema Lacustre Cururu (com 35,1 km2), que são utilizados por 20 comunidadesribeirinhas (FIG. 1).

Figura 1. Imagem de satélite da área de estudo, indicando os dois sistemas de lagos de terrafirme: Jacaré (03o38’21”S/60o50’03”W) e Cururu (03o29’18”S/60o43’38”W), no município deManacapuru-AM. Imagem LANDSAT (2005).

Este estudo faz parte de um projeto aprovado e realizado em 2004, dentrodo Programa Jovem Cientista Amazônida – JCA da Fundação de Amparo àPesquisa do Estado do Amazonas – Fapeam, executado no âmbito do ProgramaIntegrado de Recursos Aquáticos e da Várzea – PYRÁ, da Universidade Federal doAmazonas. Segundo Minayo (1994), a importância da observação participante resideno fato de podermos captar uma variedade de situações ou fenômenos que não sãoobtidos por meio de perguntas, uma vez que, observados diretamente na própriarealidade, transmitem o que há de mais imponderável e evasivo na vida real.

Quanto à natureza dos dados, a pesquisa constituiu-se pelo levantamento dedados quali-quantitativos (primários e secundários), através de aplicação de 51formulários direcionados aos chefes de família e usuários dos recursos pesqueiros erealização de seis entrevistas informais direcionadas às lideranças das comunidadesenvolvidas na pesquisa.

Dentre as vinte comunidades pertencentes à área focal, foram escolhidasquatro de cada sistema lacustre, a saber: Sistema Jacaré: Treze de Junho, São Geraldo,

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Adventista do Sétimo Dia e Nossa Senhora do Carmo; Sistema Cururu: CristoRessuscitado, Divino Espírito Santo, São Francisco do Cururu e São João dosCordeiros. A seleção das comunidades obedeceu aos seguintes critérios: a) acessoaos recursos pesqueiros (maior e menor disponibilidade de uso desses recursos nossistemas Jacaré e Cururu); b) porte populacional (as de maior e menor número dehabitantes) e c) organização sociopolítica (participação e atuação nas Associações deDesenvolvimento Sustentável dos lagos Jacaré e Cururu – ADESC/ADERJ).

Formas de uso da diversidade íct ica

Foram identificadas três diferentes formas de uso da diversidade íctica dossistemas: a primeira, e sem dúvida a mais importante, é o uso para a alimentação,através da pesca de subsistência. Esta é uma atividade praticada cotidianamente deforma artesanal por todos os moradores dos Sistemas Jacaré e do Cururu. Pararealizar a captura fazem uso de diversas tecnologias, que tornam as diferentes espéciesde peixes vulneráveis à pesca nos mais diversificados habitats e de acordo com asmudanças dinâmicas no ritmo das enchentes e vazantes. A segunda forma de uso dadiversidade íctica identificada é a comercial, sendo que esta forma é feita em pequenaescala e quase não é divulgada pelos comunitários, devido aos acordos em vigor.Por último, foi verificado o uso para fins de “lazer”, ou seja, nos finais de semana écomum a presença de moradores da sede do município (Manacapuru) que se reúneme vão aos lagos para realizar o que eles denominam de “pesca esportiva”, mesmoconfirmando que o pescado capturado era para consumo próprio.

Esta última finalidade não é bem vista pelos comunitários, principalmentepelos moradores de “dentro do lago Jacaré”, uma vez que há grandes diferençasentre os que foram encontrados na área e aqueles pescadores cujas atividades sãogeralmente divulgadas pela imprensa. Estas diferenças se observam desde o perfilsocioeconômico do pescador, nas espécies alvo, tipo de equipamento, até na infra-estrutura utilizada nas pescarias, que é bastante simples. Também foi observado quea verdadeira atividade de pesca esportiva estava aumentando bastante no lago doJacaré. Entretanto, estas atividades eram realizadas por pescadores esportivosocasionais (IPAAM, 2001) que eram levados até o local por uma empresa de turismo.

A importância dos recursos pesqueiros é múltipla; porém, longe do tradicionalenfoque sobre o papel ecológico ou econômico, cabe ressaltar o impressionante

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impacto social e cultural deste recurso na região. O pescado é destacadamente aprincipal fonte protéica na alimentação das populações ribeirinhas amazônicas, sendoo consumo direto estimado em mais de 400g/dia (CERDEIRA et al., 1997; BATISTAet al., 1998; FABRÉ; ALONSO, 1998). Os moradores dos sistemas Jacaré e Cururunão fogem à regra e apresentam valores de consumo médio de pescado de 599±0,12g/dia, que são os maiores já registrados no mundo, refletindo a forte relação dapopulação ribeirinha com o peixe.

Caracterização dos meios e modos de vida das populações locais

As comunidades presentes na área focal da pesquisa estão distribuídaslinearmente ao longo do rio Solimões ou nas margens dos lagos Jacaré e Cururu,sempre ocupando as áreas mais altas, as restingas. Nelas se assentam os núcleoscomunitários, as moradias, jardins, canteiros, assim como grande parte de suasatividades produtivas associadas ao plantio e à criação de gado.

As casas são construídas em áreas sujeitas a inundação e possuem assoalhossuspensos. Os vãos inferiores durante a época de seca servem de abrigos sombreadospara os animais de criação e domésticos. Essas casas, tipo palafitas, possuem em suamaioria três cômodos, têm paredes e assoalhos de madeira e telhados cobertos depalha ou zinco. Outra concepção de moradia é o “flutuante”, casa que possui oassoalho construído sobre grandes troncos de árvores conhecidas vulgarmentepor assacu (Hura creptans-Euphorbiaceae) (BRAGA, 2001) e que flutuam naságuas do rio, gerando estabilidade quanto às mudanças do nível da água(RIBEIRO; FABRÉ, 2003).

A infra-estrutura de saneamento e serviços públicos é insuficiente na maioriadas comunidades. Somente em duas (Nossa Senhora do Carmo e Nossa Senhorada Conceição) há serviço de telefonia. A energia elétrica é disponível em algumascasas ou na igreja e sede social e é fornecida através de geradores a diesel de pequenoporte de propriedade privada ou da comunidade. O comércio local é restrito apequenas vendas de artigos diversos. A comunidade Nossa Senhora do Carmodiferencia-se do resto das localidades, aproximando-se a uma concepção urbana.

A vida social desenrola-se principalmente no seio da família, nos torneios defutebol, na formas de organização para produção, nas festas de aniversários etc.Tudo gira em torno das famílias, congregando todo um círculo de relações, seja

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dentro ou fora da extensão familiar. O parentesco constitui um fator importantepara o estabelecimento de relações pessoais. Uma forma de estender as relaçõesfamiliares além dos laços biológicos se dá por meio do compadrio. Esse tipo derelação está ligado à necessidade do grupo familiar em estender seus laços e é tambémuma forma de a comunidade manter a ordem social nas suas relações solidárias(SILVA; BARROS, 2003).

A organização produtiva dos moradores desta região baseia-se no modelode agricultura familiar. As principais atividades produtivas estão basicamente voltadaspara a agricultura, a pecuária de pequena escala, o extrativismo vegetal e a pesca.Essas ocupações econômicas são desenvolvidas em todos os povoados dessa região,acompanhando o ciclo natural de subida e descida das águas. A pesca é a únicaatividade praticada na cheia e na vazante do rio, tanto para fins de subsistência comopara comercialização.

A agricultura aparece como a atividade principal. Este fator está diretamenterelacionado com a representação social que os moradores desta localidade fazemem relação ao agricultor e pescador. A agricultura é vista como a atividade merecedorade respeito e prestígio enquanto atividade produtiva. Os pescadores profissionais,entendidos aqui como sujeitos que vivem exclusivamente da pesca comercial, sãoreconhecidos perante o grupo como sujeitos com pouco prestígio. Na visão dosmoradores destas localidades, o trabalhador é aquele que planta, manuseia a terra,acompanha o processo de fabricação da farinha e seus derivados, colhe a malva etc.,ou seja, aquele indivíduo que, ao empregar a força de trabalho na elaboração damercadoria, “vê” a ação humana no produto final que surge da sua relação com oambiente, pois em sua visão de mundo o peixe é um produto que já se encontrapronto na natureza, portanto não requer a ação do homem na sua elaboração (SILVA;BARROS, 2003).

Uso dos recursos pesqueiros e sua importância para a reprodução socialdas populações da várzea

Estima-se que a atividade pesqueira no estado do Amazonas envolva maisde 20.000 pescadores comerciais, com uma produção desembarcada na cidade deManaus até 1998, de aproximadamente 25.000 t/ano (BATISTA, 1998). Estudosrecentes (RIBEIRO; FABRÉ, 2004) indicam que cerca de 30 a 60% das populações

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rurais economicamente ativas na Amazônia dependem diretamente da atividadepesqueira para sua reprodução material, diferentemente do que ocorria no passado.

Nas localidades enfocadas neste estudo, a pesca apresenta-se dicotomizadaem duas categorias distintas de pescadores: o pescador-lavrador, polivalente ouribeirinho, que combina diferentes atividades, e o pescador comercial ou monovalente(FURTADO, 1990), que ocupa o seu tempo quase exclusivamente nas atividades depesca, durante todo o ano, sem o incremento de outras atividades. Os dados dapesquisa revelam que mais da metade (53%) dos moradores locais praticam outraatividade além da pesca para a sobrevivência, como agricultura, extrativismo, criaçãode gado, coleta e prestação de serviços. Os demais (47%) entrevistados afirmarampraticar exclusivamente a pesca durante o ano todo, revelando sua importânciaenquanto atividade produtiva para a reprodução social dos moradores da várzea.

A pesca de subsistência é usualmente efetuada por pescadores residentes. Jáa comercial é mais restrita, sendo efetuada por pescadores que possuem instrumentosapropriados para tais fins. Os ambientes mais utilizados para a atividade da pescaem geral são: “boca” dos lagos, beira dos lagos ou rio, cabeceira dos lagos, igapó epoços que se formam com a vazante dos lagos. Esses ambientes encontram-se emuma variedade de corpos d’água que existem na várzea e nas depressões da terrafirme (RIBEIRO; FABRÉ, 2004).

Os apetrechos mais utilizados são: malhadeira, caniço (principalmente parafinalidades de subsistência), tarrafa e redinha (de uso para fins comercial). As espéciesalvo da pesca de subsistência são principalmente: aruanã (Osteoglossum bicirrhosum),branquinha (Potamorhina altamazonica), curimatã (Prochilodus nigricans), pacu (Mylossomaduriventre), ruelo (Colossoma macropomum), sardinhas (Characidae) e tucunaré (Cichla spp.).Para atividades comerciais destacam-se o pacu, ruelo e tucunaré.

Acordos de uso integrado e confl i tos sócio-ambientais em torno dosrecursos pesqueiros

Entende-se por conflitos sócio-ambientais “embates entre múltiplos grupossociais em função de seus distintos modos de inter-relacionamento ecológico, isto é,com seus respectivos meio sociais e naturais” (LITTLE, 2001).

Na busca por alternativas viáveis de desenvolvimento social, econômico,ambiental e politicamente viável, as populações tradicionais, junto com instituições e

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organizações governamentais e não-governamentais, têm desenvolvido mecanismosde gestão coletiva ou co-gestão dos recursos naturais, integrando práticas históricasde uso dos recursos com experiências inovadoras construídas em conjunto com aspopulações usuárias dos recursos.

A definição das Unidades de Co-gestão3 se deu a partir da disponibilidadede ecossistemas lacustres, da identificação das suas características fisiográficas, dadistribuição espacial das comunidades, da acessibilidade aos recursos naturais daárea, das formas de apropriação e conflitos de uso dos recursos pesqueiros e davisão sistêmica dos capitais humano, social e natural (RIBEIRO; FABRÉ, 2004).

Na área onde o estudo foi realizado, os instrumentos normativos são osAcordos de Uso Integrado dos Recursos Naturais, reconhecidos e regulamentadospelas instituições competentes (Portarias do Ibama nº. 11 e 12, de 2002), que foraminspirados nos Acordos de Pesca. Esses acordos representam formas participativasde regulamentação dos recursos pesqueiros das regiões de várzea da AmazôniaCentral, instrumentos de gestão já considerados tradicionais nas comunidadesribeirinhas desde os anos 60 e 70, mas que somente no fim da década de 90 passarama ser reconhecidos e regulamentados pelo Ibama em forma de portarias, paradiferentes sistemas de lagos da região (ISAAC; CERDEIRA, 2004).

Esses Acordos de Uso Integrado estabelecem regras de uso, definindo cotasde captura por pescador cadastrado, apetrechos que podem ser utilizados em cadaambiente de pesca, ambientes de preservação permanente, lagos de pesca demanutenção e lagos de exploração comercial, além do uso de outros recursos: floresta,água, solo. O diferencial dos Acordos de Uso Integrado é a abrangência de regrasde uso para além da pesca, pois prevêem restrições para uso da terra, da floresta edos recursos hídricos, já que os moradores da várzea utilizam esses recursos deforma integrada e interdependente.

Embora a grande maioria dos entrevistados (71%) tenha afirmado ter havidodiminuição dos conflitos em torno da pesca após a criação dos Acordos de Uso,quase a metade dos entrevistados (44 %) acredita que ainda prevalecem alguns tiposde conflitos em torno do uso dos recursos pesqueiros. Esses conflitos decorrem deuma série de situações que podem ser assim descritos:

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Em nível macro:· Verificou-se, segundo depoimento dos entrevistados, a continuidade de pressão

sobre os estoques pesqueiros por pescadores de dentro e fora das comunidadesque utilizam os lagos dos Sistemas Jacaré e Cururu;

· Embates pela posse de áreas tradicionais de pesca entre moradores antigos, queutilizam os recursos pesqueiros principalmente para subsistência, e pescadorescomerciais locais das comunidades;

· Concorrência de métodos mais modernos de apresamento entre pescadorescomerciais e ribeirinhos (pescador-agricultor);

· Monopolização do mercado por comerciantes não-pescadores que se instalam noramo.

Em nível micro:· Detectou-se uma lacuna muito grande entre as lideranças comunitárias (membrosparticipantes das discussões de elaboração dos Acordos) e os comunitários emgeral acerca de repasse de informações e esclarecimentos do conteúdo dos Acordosde Uso dos Recursos;

· Falta de inserção e representatividade das entidades gerenciadoras dos Acordos(ADESC/ADESJ) no universo cotidiano comunitário, a fim de gerenciar os conflitosinstaurados;

· Desrespeito às regras dos Acordos por pescadores de dentro e fora dos lagos, pordesconhecimento do conteúdo dos instrumentos de gestão.

Apesar dos Acordos de Uso terem sido implementados somente em 2002,alguns resultados já podem ser vislumbrados, como o fortalecimento sociopolíticodas comunidades, através da criação de dois órgãos representativos das comunidadesenvolvidas, responsáveis pelo gerenciamento dos acordos e mediação dos conflitos:a Associação de Desenvolvimento Sustentável do Sistema Cururu – ADESC e aAssociação de Desenvolvimento Sustentável do Sistema Jacaré – ADESJ.

Considerações finais

A abordagem que fizemos sobre as modalidades de uso dos recursospesqueiros e seus desdobramentos em torno dos conflitos sócio-ambientais permitiuperceber que a implantação de medidas reguladoras para a pesca amazônica é

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necessária e ao mesmo tempo desafiadora. O papel das iniciativas de co-gestão,através dos Acordos de Uso, é fundamental, pois além de imprimir medidas dedisciplinamento do uso sustentável dos recursos naturais, contribui para ofortalecimento das instâncias locais e seu subseqüente protagonismo político.

O desafio de desenvolver técnicas e processos que facilitem a negociação deconflitos tem motivado inúmeras iniciativas, porém, é necessário verificar as estratégiase mecanismos de ação que melhor contribuam para o tratamento dos conflitosencontrados. A negociação é um processo político e, nesse sentido, requer práticasamadurecidas.

Dependendo do contexto no qual os Acordos são construídos e a formacomo são conduzidos, ao invés de se reduzir os conflitos pode-se até aguçá-los. Umdos fatores que contribuem é a falta de experiência organizacional das comunidadesem negociar e gerenciar estas tensões.

Deve-se encontrar um meio para o tratamento dos conflitos expostos, quepode acontecer mediante a articulação de um grupo externo negociando com osatores envolvidos. Dessa forma, torna-se necessário incentivar o intercâmbio entrelideranças em âmbito local e regional, a fim de instrumentalizá-los sobre o processosociopolítico e ambiental onde estão inseridos, o que poderá ampliar os horizontesde possibilidades de ação no desenvolvimento comunitário.

Notas

1 Recentemente alguns estudos se dedicaram a uma análise exploratória do cenáriosocioeconômico e político da pesca no estado do Amazonas. Dentre eles podemosdestacar: PARENTE (1996); BATISTA et al. (1998); FARIA-JUNIOR (2002);PEREIRA (2004); BARROS e RIBEIRO (2005).

2 O termo populações tradicionais há muito vem sendo discutido por pesquisadores dasmais diferentes linhas de pensamento, no entanto, sua definição enquanto categoriaanalítico-explicativa ainda não constitui consenso, principalmente no âmbito dasciências sociais. Aqui o termo é utilizado para definir grupos sociais (agricultores,pescadores, extrativistas, quilombolas, quebradeiras de coco etc.) que desenvolvemformas particulares de manejo dos recursos naturais, dentro de um sistema deorganização econômica e social, voltada, sobretudo, para a sua reprodução sociale cultural (DIEGUES, 2000).

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3 Segundo Azevedo e Apel (2004), a co-gestão pode ser entendida como a gestãocompartilhada dos recursos naturais, na qual todos os usuários diretos e indiretossão co-responsáveis pela gestão – definindo regras de uso, monitoramento, controle,distribuição e execução de tarefas – participando de forma mais ou menos intensadeste processo em espaços e tempos diversos, que implica em participação eresponsabilidades pessoais e institucionais, tanto do Estado (federal, estadual emunicipal), como da sociedade civil organizada.

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Therezinha de Jesus Pinto Fraxe*

Antonio Carlos Witkoski**

Resumo

Este artigo elabora uma reflexão sobre a noção de habitus na obra O desencantamentodo mundo, de Pierre Bourdieu, procurando evidenciar como se deu a gestação doconceito de habitus nessa obra, considerada pelo próprio autor como a sua grandepesquisa de campo, de onde floresceu parte do conjunto de outros temas e questõesdesenvolvidos em seus trabalhos posteriores – os conceitos de ethos, estilo de vida(gosto) e sentimento de honra (hexis corporal).

Palavras-chave: : : : : habitus, ethos, estilo de vida (gosto), sentimento de honra (hexiscorporal).

AbstractThis article elaborates reflection about the notion of habitus in The desencantamento ofthe world, of Pierre Bourdieu, to seeks to show up as gave the gestation of theconcept of habitus, in that work, considered by the own author as its great fieldresearch, from where part of the group of another themes and subjects developedin its posterior works flourished - the concepts of ethos, lifestyle (taste), feelings ofhonor (hexis corporal).

Keywords: : : : : habitus, ethos, lifestyle (taste), honor feeling (corporal hexis).

A noção de habitus em O desencantamento do mundo

* Professora do Depar tamento de Ciências Fundamentais e Desenvolvimento Agrícola da Universidade Federal do Amazonas.Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: [email protected].

* * Professor do Depar tamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação de Sociologia e o de Sociedade e Culturana Amazônia da Universidade Federal do Amazonas. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. E-mail:[email protected].

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A noção de habitus em O desencantamento de mundo

Introdução

Discutir a noção de habitus em Pierre Bourdieu nos levou a um impasse:inseri-la no presente trabalho, a partir das várias obras referenciais do autor, ouagrupar, ordenar e situar num discurso único, contínuo e não conclusivo, um conjuntode proposições e reflexões em torno da noção de habitus a partir de uma obra?Adotamos a segunda perspectiva. No entanto, faz-se necessário explicitar que, noprimeiro momento, trataremos da noção de habitus e de temas e/ou questões que aela se articulam, recorrendo a outras obras de Pierre Bourdieu, assim como faremosalusões a duas das obras de Norbert Elias, Os alemães: a luta pelo poder e a evoluçãodo habitus nos séculos 19 e 20 (1997) e A sociedade dos indivíduos (1994), por entenderque discutir a noção de habitus, na obra de Pierre Bourdieu, sem dialogar comalgumas passagens da obra de Norbert Elias, significaria deixar de apontar odiálogo tácito entre os dois autores. Quais seriam as linhas gerais da noção dehabitus em Norbert Elias? Para Eric Dunning e Stephen Menell, no prefácio deOs alemães (ELIAS, 1997, p.9),

[...] por habitus – uma palavra que usou muito antes de suapopularização por Pierre Bourdieu – Norbert Elias[compreende] basicamente ‘segunda natureza’ ou ‘sabersocial incorporado’. O conceito não é, de forma alguma,essencialista; de fato, é usado em grande parte para superaros problemas de antiga noção de ‘caráter nacional’ comoalgo fixo e estático. Assim, Elias afirma que ‘os destinos deuma nação ao longo dos séculos vêm a ficar sedimentadosno habitus de seus membros individuais’, e daí decorre queo habitus muda com o tempo precisamente porque asfortunas e experiências de uma nação (ou de seusagrupamentos constituintes) continuam mudando eacumulando-se. O conceito de habitus implica um equilíbrioentre continuidade e mudança [...]

Este artigo pretende, pois, evidenciar a noção de habitus elaborado por PierreBourdieu a partir de seu livro Travail et travailleurs en Algérie, traduzido para o portuguêscomo O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais (1979).Por que optamos em dar relevância à noção de habitus em O desencantamento do mundo?Por entendermos que, apesar dessa noção aparecer nas diversas obras de Pierre

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Therezinha Fraxe e Antonio Carlos Witkoski

Bourdieu – Meditações pascalianas (2001), O poder simbólico (1989), A economia das trocassimbólicas (1992), As regras das artes: gênese e estrutura do campo literário (1996), Amiséria do mundo (1997) entre outras –, na obra O desencantamento do mundo, o autoraborda a gênese e a formação do habitus entremeada tanto pela pesquisa empírica –trabalho de campo realizado na Argélia com a sociedade Cabília, que o marcouprofundamente –, como pela profícua discussão teórica que gira em torno da noçãode habitus.

O que seria habitus para o homem ordinário? Segundo Aurélio B. de HolandaFerreira (1994), o termo hábito vem do latim habitu e significa: 1. disposição duradouraadquirida pela repetição freqüente de um ato, uso, costume; 2. maneira usual de ser:[por exemplo], mulher pedir homem em casamento é contra os hábitos sociais. ParaPierre Bourdieu e Norbert Elias, o habitus viria de uma repetição da vida do homemordinário ou da prática mundana através do senso comum? Esta reflexão é o objetivode cada seção deste ensaio.

Assim, na primeira seção do artigo, pretende-se explicitar a noção de habitusacompanhada das idéias que a ela se articulam, tais como ethos, estilo de vida (gosto),sentimento de honra (hexis corporal), para, em seguida, explicar a noção de habitus emO desencantamento do mundo.

Não se trata de um acaso se a interrogação sobre as relações entre as estruturasdo mundo e o conceito de habitus foi formulada a propósito de uma situação históricadentro da qual a obra se propõe esclarecer, ou seja, dentro da própria realidade soba forma de uma discordância permanente entre as disposições econômicas dosagentes e o mundo econômico no qual estes deveriam agir. Na situação de transiçãoentre uma economia pré-capitalista a uma economia tipicamente capitalista, PierreBourdieu movimenta-se de forma teórico/prática e nos diz que as disposições arespeito do futuro, a partir das estruturas estruturadas, funcionam como estruturasestruturantes, orientando e organizando as práticas econômicas da existência cotidiana,operações de compra, de poupança ou de crédito, assim como as representaçõespolíticas – resignadas ou revolucionárias.1

Em O desencantamento do mundo, Pierre Bourdieu (1979, p. 8) reflete de formaevidente o tema do futuro – questão que se relaciona tácita e explicitamente com anoção de habitus:

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[...] aqueles que, como se costuma dizer, não tem futuro,têm poucas possibilidades para formar o projeto, individual,de criar seu futuro ou para trabalhar no advento de umoutro futuro coletivo. É na relação com o futuroobjetivamente inscrito nas condições materiais de existênciaque reside o princípio da distinção entre o subproletário e oproletariado, entre a disposição para a revolta das massasdesarraigadas e desmoralizadas e as disposiçõesrevolucionárias dos trabalhadores organizados que têm umsuficiente domínio de seu presente para poderemempreender a retomada de seu próprio futuro.

Desse modo, para Bourdieu (1998), a construção do Estado acompanha-seassim da construção de uma espécie de transcendental histórico comum que, notermo de um longo processo de incorporação, torna-se imanente a todos os seussujeitos. Assim, o Estado cria as condições de uma orquestração imediata dos habitusque é ela própria o fundamento de um consenso sobre um conjunto de evidênciaspartilhadas que são constitutivas do sentido comum. É assim que os grandes ritmosdo calendário social, e em particular os das férias escolares, que determinam asgrandes migrações sazonais das sociedades contemporâneas, garantem ao mesmo temporeferentes objetivos comuns para tornarem a vida social possível.

Sobre a noção de habitus

Creio, que a escolha desta velha palavra há muito fora deuso, por não ter herdeiros e só ocasionalmente empregada,não é estranha à realização ulterior do conceito. Os quequiserem ligar a palavra à sua origem na intenção de reduzi-la ou de destruí-la, não deixarão de descobrir, por poucointeligente que seja o modo de conduzir o inquérito, que asua força teórica residia precisamente na direção da pesquisapor ela designada, a qual está na própria origem da superaçãoque tornou possível (BOURDIEU, 1989, p.62).

Para o autor estudado, construir o modo de geração das práticas sociais, irdo opus operantum ao modus operandi – isto é, sair da regularidade estatística ou daestrutura algébrica para alcançar o princípio da produção dessa ordem – implicanão cair no realismo da estrutura e construir a teoria da prática, condição de uma

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ciência experimental da dialética da interioridade e da exterioridade das práticas domundo social. Por isso, Renato Ortiz (1983, p. 14-15) nos diz que,

[...] enquanto Sartre, para a construção de uma teoria daprática, encontra a mediação entre sujeito e história noconceito de projeto, que sublinha a especificidade de umaação colocada no tempo futuro, Pierre Bourdieu recuperaa velha idéia escolástica de habitus que enfatiza a dimensãode um aprendizado passado. Com efeito, a escolásticaconcebia o hábito como um modus operandi, ou seja, comodisposição estável para se operar numa determinada direção;através da repetição criava-se, assim, numa certaconaturabilidade entre sujeito e objeto no sentido de que ohábito se tornava uma segunda dimensão do homem, oque efetivamente assegurava a realização da açãoconsiderada.

Como alternativa, Bourdieu propõe aprofundar o conhecimentopraxiológico que tem como objeto as relações dialéticas entre essas estruturas e ossistemas de disposições estruturadas – por meio da noção de habitus. Dessa maneira,pretende dar conta do duplo processo de interiorização da exteriorização e deexteriorização da interioridade, e assim tentar procurar o princípio gerador das práticassociais, situando-se no próprio movimento de sua realização.

Na proposta de conhecimento praxiológico, a noção de habitus é umacategoria chave. O conhecimento do mundo social teria que tomar em conta oconhecimento prático que lhe preexiste. Trabalhar com a noção de habitus permiteincluir no objeto esse conhecimento que os agentes, que fazem parte do objeto, têmdo objeto, resgatando a contribuição que este conhecimento faz à realidade do objeto,devido a seu poder propriamente constituinte. Assim, Bourdieu (1989, p. 60), nosdiz que “a noção de habitus exprime, sobretudo, a recusa a toda uma série dealternativas na qual a ciência social se encerrou, a da consciência (ou do sujeito) e doinconsciente, a do finalismo e do mecanicismo etc.”

A noção de habitus, especialmente enquanto matriz prática, poderia lembrar adescrição dos modelos inconscientes de Sapir e o conceito de arte de Émile Durkheim –aquilo que é prática pura, sem teoria. Mas os usos históricos do conceito opredispuseram a ser uma noção disposicional, designando um sistema de disposição

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adquirido, permanente e generativas. Segundo depoimento do próprio Bourdieu(1989, p.60-61), é por ocasião da publicação em francês de dois artigos de Panofskyque nunca tinham sido cortejados – um sobre a arquitetura gótica, no qual a palavrahabitus era empregada, a título de conceito nativo, em francês indigène, para dar umaexplicação do efeito do pensamento escolástico no terreno da arquitetura, [e] ooutro, o Abade Suger em que ela podia também se tornar útil –, que ele começa aaprofundar sua reflexão sobre a relação entre habitus, práticas sociais e obras. Assim,reinterpreta esta noção de habitus no interior do embate objetivismo/fenomenologia,para defini-la como:

[...] sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadaspredispostas a funcionarem como estruturas estruturantes,isto é, como princípio que gera e estrutura as práticas e asrepresentações que podem ser objetivamente‘regulamentadas’ e ‘reguladas’ sem que por isso seja oproduto de obediência de regras, objetivamente adaptadasa um fim, sem que se tenha necessidade da projeçãoconsciente deste fim ou do domínio das operações paraatingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo, coletivamenteorquestradas sem serem o produto da ação organizadorade um maestro (1983, p. 15).

O habitus se sustenta, pois, através de esquemas generativos que, por um lado,antecedem e orientam a ação e, por outro, estão na origem de outros esquemasgenerativos que presidem a apreensão do mundo enquanto conhecimento. As análisesdo autor sobre “Reprodução simples e tempo cíclico” assim como as “Condiçõeseconômicas da transformação das disposições econômicas” – respectivamentecapítulos 1 e 4 de O desencantamento do mundo, são bastante esclarecedores a esse respeito.Para ele, por exemplo, “o gosto não é visto como simples subjetividade, mas simcomo objetividade interiorizada, ele pressupõe certos esquemas generativos queorientam e determinam a escolha estética” (1983, p.17). Na medida em que os sistemasde classificação são engendrados pelas condições sociais e que a estrutura objetiva dedistribuição dos bens materiais e simbólicos dá-se de forma desigual, toda escolhatende a reproduzir as relações de dominação. A luta de classes pode, dessa forma,ser percebida através do estilo de vida das diferentes classes ou grupos sociais.

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O habitus apresenta-se, pois, como produção social e individual referindo-sea um grupo ou a uma classe, mas também ao elemento individual: o processo deinteriorização implica sempre em internalização da objetividade, o que ocorrecertamente de forma subjetiva, mas que não pertence exclusivamente ao domínioda individualidade. A relativa homogeneidade dos habitus subjetivos (de classe, degrupo) encontra-se assegurada na medida em que os indivíduos internalizam asrepresentações objetivas segundo as posições sociais de que efetivamente desfrutam.A análise de Bourdieu tende, assim, a enfatizar a importância de se estudar o modode estruturação do habitus através das instituições de socialização dos agentes. A açãopedagógica na primeira fase de formação do agente é vista como produtora de um“hábito primário, característica de um grupo ou de uma classe que está no princípioda constituição ulterior de todo outro hábito” (ORTIZ, 1983, p.18). As estruturasde um habitus logicamente anterior comandam, portanto, o processo de estruturaçãode novos habitus a serem produzidos por novas agências pedagógicas. Dessa maneira,

[...] o habitus seria o produto do longo trabalho de inculcaçãoe de apropriação que, mesmo que muito mais intenso edeterminante durante as primeiras experiências do mundosocial, prolonga-se por toda a existência dos agentes. Essetrabalho se faz necessário para que as estruturas objetivasconsigam reproduzir-se, sob a forma de disposições“duráveis”, em todos os organismos (individuais)duravelmente submetidos aos mesmos condicionamentos,colocados nas mesmas condições de existência(BOURDIEU, 1979, p.13).

Das idéias art iculadas à noção de habitus

Relacionado com a noção de habitus, Pierre Bourdieu sistematiza, através daobra O desencantamento do mundo, um conjunto de conceitos que conformariam alinguagem com a qual tenta dar conta desse aspecto ativo da vida prática. Ao mesmotempo, é através das múltiplas articulações e da própria linguagem utilizada, que sedefine melhor o sentido da noção de habitus. Sem pretender esgotar esse conjuntode múltiplas articulações, gostaríamos de chamar a atenção sobre três conceitosintimamente vinculados ao de habitus na obra em questão: ethos, gosto (estilo de vida)e hexis corporal (sentimento de honra).

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O gosto seria uma disposição2 duradoura e fundante, constitutiva do habitus,que implicaria a propensão e aptidão para apropriação (material ou simbólica) deuma classe determinada de objetos ou de práticas sociais classificadas e classificantes.É a fórmula generativa que está no princípio do estilo de vida. É o operador práticode transformação das coisas em signos distintos e distintivos, das distribuiçõescontínuas em oposições descontínuas; ele transporta as diferenças inscritas na ordemfísica dos corpos à ordem simbólica das distinções significantes. Transforma as práticassociais objetivamente classificadas em práticas sociais classificantes, ou seja, emexpressão simbólica da posição de classe. Também é o princípio do sistema detraços distintivos que está voltado a ser percebido como uma expressão sistemáticade uma classe particular de condições de existência, ou seja, como um estilo de vidadistintivo. Sendo o produto da incorporação da estrutura do espaço social tal comose lhe impõe através da experiência de uma posição, determinada nesse espaço, ogosto está nos limites das possibilidades e das impossibilidades econômicas (que eletende a reproduzir em sua lógica), no princípio de práticas sociais ajustadas àsregularidades inerentes a uma condição de classe determinada3.

O ethos conformar-se-ia como uma disposição geral de uma classe ou de umgrupo – por exemplo, ethos camponês, ethos pré-capitalista, ethos profissional etc. É oprincípio das eleições de condutas, forçadas por uma condição. Bourdieu nos dizque o ethos é uma matriz prática, ou seja, orienta as práticas sem ascender à explicitaçãoe, menos ainda, à conceitualização sistemática, opondo-se ao logos enquanto matrizsimbólica, que se expressa num discurso social e expressamente reconhecido, comoé o caso das normas abstratas e transcendentes de moral e do direito, quando semanifestam numa ética sistematizada e explícita4. Para finalizar a exposição dos trêsconceitos escolhidos, que articulam a noção de habitus, chamamos a atenção para ahexis corporal que, em O desencantamento do mundo, comumente simboliza a moral dahonra, enquanto disposição duradoura, característica de uma classe ou de um grupo,onde se exprime – de maneira muitas vezes quase que imperceptível no corpo dosagentes, em sua presença através dos menores gestos, entonações, ou traçosfisionômicos socialmente construídos – toda a relação com o mundo social.

Neste estudo de Pierre Bourdieu, uma das funções da primeira educação –especialmente do rito e do jogo, que se organizam freqüentemente segundo as mesmasestruturas – seria a de restaurar a relação dialética que levaria à incorporação de umespaço estruturado segundo as oposições mitico-rituais. Assim, para os argelinos, a

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relação com o próprio corpo estaria, sempre, mediatizada pelo mito, fazendo dahexis corporal o mito realizado, incorporado, transformado em disposição duradoura.Esta disposição implicaria uma maneira constante de compostura, de falar, de andare, através dela, de sentir, de pensar e de agir. Dessa forma, toda a moral da honra –tão relevante a essa sociedade – encontrar-se-ia de uma vez por todos simbolizadae realizada na hexis corporal, o que encontra apóio na seguinte passagem:

[...] as regras da honra regularam também os combates. Asolidariedade impunha a qualquer indivíduo proteger umparente contra um não-parente, um aliado contra umhomem de outro “partido”, um habitante da sua aldeia,mesmo do partido adverso, contra um estranho à aldeia,um membro da tribo contra um membro de uma outratribo (BOURDIEU, 1965, p.164).

Segundo o mesmo, para os argelinos (Cabília) o homem desprovido derespeito por si próprio é aquele que deixa transparecer o seu eu íntimo, com as suasafeições e as suas fraquezas. O homem sábio, pelo contrário, é aquele que sabeguardar segredos, que dá provas a todo o momento de prudência e de discrição. Ohomem de honra define-se essencialmente pela fidelidade a si próprio, pelapreocupação de ser digno de certa imagem ideal de si próprio; “o homem de honraé ao mesmo tempo um homem virtuoso e um homem de boa fama” (BOURDIEU,1965, p.172). Com relação à mulher, a hexis corporal (moral de honra), na sociedadeCabília, é essencialmente feita de atributos negativos – o que guarda relação comcertos postulados fundamentais que constituem o sistema de valores dessa sociedadee decorrem de um número de regras de conduta fortemente estabelecidas.

O imperativo maior é a ocultação de todo o domínio da intimidade: asdiscussões da vida particular, as falhas e insuficiências não devem nunca ser expostasa um estranho ao grupo. A casa é primeira ilha de segredo no seio do subclã ou doclã; este no seio da aldeia, esta fechada sobre o seu segredo em relação às outrasaldeias. Quanto mais comunidades encaixadas umas nas outras, mais zonas do segredoconcêntricas – segredo da família diante de um membro do clã, segredo do clãdiante de um membro da aldeia, segredo da aldeia de um estranho à aldeia etc.

Nesta lógica, é natural que a moral da mulher, assente no coração destemundo fechado, seja essencialmente feita de atributos negativos: “a tua sepultura é

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tua casa”, diz o preceito. “A mulher deve fidelidade ao seu marido; deve olhar bempela casa; deve zelar pela boa educação dos seus filhos. Mas deve, sobretudo, preservaro segredo da intimidade familiar; não deve nunca apoucar o seu marido ou fazer-lhevergonha (mesmo com todas as razões e com todas as pessoas) nem na intimidadenem diante de estranhos: seria obrigá-lo a repudiá-lo. Deve mostrar-se satisfeita,mesmo se, por exemplo, o seu marido, demasiado pobre, não traz nada do mercado;não deve meter-se em discussões de homens. Deve ter confiança no seu marido,evitar duvidar dele ou procurar provas contra ele”. Em suma, a mulher, sendosempre a filha de fulano ou a esposa de sicrano, reduz a sua honra à honra do grupo deparentesco a que está ligada. Deve zelar por não alterar, pela sua conduta, o prestígioe a reputação do grupo.

O homem, pelo seu lado, deve antes de tudo proteger e velar o segredo dasua casa e da sua intimidade. A intimidade é, em primeiro lugar, a esposa a quemnunca se chama assim e menos ainda pelo seu nome próprio, mas sempre porparáfrases tais como “filha de fulano”, “mãe dos meus filhos” ou, ainda, “minhacasa”. Em casa, o marido nunca se lhe dirige na presença de outras pessoas; chama-a com um sinal, com um grunhido ou pelo nome da filha mais velha e não mostraem nada o seu afeto, sobretudo em presença do próprio pai ou do irmão maisvelho. Pronunciar em público, por exemplo, o nome da mulher seria uma desonra;conta-se muitas vezes que os homens que iam registrar civilmente um recém-nascidose recusavam obstinadamente a dizer os nomes das esposas; da mesma maneira aboa educação recomenda que não se fale nunca sobre o homem da sua mulher ouda sua irmã. É assim que a mulher, para os homens, aparece como “seres” sagrados,como revelam as expressões habituais nos juramentos – que a minha mulher me sejailícita se eu não fizer isso ou aquilo.

A intimidade é ainda aquilo a que se pode chamar a natureza: o corpo etodas as funções orgânicas, o eu e os seus sentimentos e as suas afeições. Todas ascoisas que – recomenda a honra – devem ser veladas. Qualquer alusão a estes assuntos,sobretudo à própria vida sexual, é não só proibida mas quase inconcebível. Durantevários dias, antes e depois do casamento, o noivo refugia-se numa espécie de retiro,para evitar encontrar-se com seu pai, o que causaria a ambos um mal-estar insuportável.Da mesma maneira a moça que chega à puberdade aperta bem o peito numa espéciede colete abotoado e forrado; e quando na presença do pai e dos irmãos maisvelhos, cruza, além disso, os braços sobre o peito. Um homem não seria capaz de

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falar de uma moça ou de uma mulher estranha à família com o pai ou com o irmãomais velho; donde se segue que quando o pai quer consultar o filho a propósito docasamento dele, o faz através de um parente ou amigo que serve de intermediário.Um cabílio não pode entrar num café onde esteja já o seu pai ou seu irmão maisvelho (e inversamente), menos ainda escutar com eles um desses cantores ambulantesque recitam poemas brejeiros. As relações sociais são sempre cercadas de interdiçõessemelhantes cuja intenção dominante é dissimular e velar o conjunto daquilo a quepoderíamos chamar natureza. Essa tradição cultural é formada através do habitus edas noções articuladas a esta categoria, no exemplo específico, ethos e hexis corporal.

Produção (e aquisição histórica) do habitus

Para Bourdieu (1983), o habitus é o produto engendrado pela e através daprática histórica, entendida esta como o lugar da dialética do opus operantum e domodus operandi. Enquanto produto da história, o habitus está presente nas práticascoletivas/individuais, ou seja, no sentido de que os homens fazem a sua própriahistória, mas a fazem conforme os esquemas engendrados pela própria história.Nesse mesmo espírito, Norbert Elias (1994) afirma que “é um erro aceitar semquestionamento a natureza antitética dos conceitos de indivíduo e sociedade”.

Nesse contexto, cabe uma digressão sobre a natureza social do habitus5 ou daparticipação individual em sua composição. A concentração da sociologia dosprocessos nos seres humanos dá acesso científico a problemas conhecidos desde oestágio pré-científico do conhecimento, mas que não podem ser adequadamenteexplorados por falta de conceitos científicos. Conceitos como estrutura social depersonalidade ou estágio e padrão de auto-regulação individual figuram entre os que podemser úteis nesse ponto. Em particular, o conceito de composição ou habitus social,com o qual Elias trabalha para explicar o problema da relação entre os diferentesestágios de desenvolvimento de uma mesma pessoa e do entrelaçamento peculiarda identidade pessoal com a diferença da personalidade, tem papel fundamental.Isto porque, em combinação com o conceito de individualização crescente oudecrescente, ele favorece nossas chances de escapar da abordagem “ou é isto ou éaquilo” que amiúde se insinua nos debates sociológicos sobre a relação do indivíduocom a sociedade.

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Para Elias (1994), quando o conceito de habitus social e o conceito muitosimilar de estrutura social de personalidade são compreendidos – e adequadamenteaplicados –, é mais fácil entender porque o velho hábito de usar os termos indivíduoe sociedade, como se representassem dois objetos distintos, é enganador. Nesse caso,não mais fechamos os olhos para o fato, bastante conhecido fora do campo daciência, de que cada pessoa singular, por mais diferente que seja de todas as demais,tem uma composição específica que compartilha com outros membros da sociedade.Esse habitus, a composição social dos indivíduos, como que constitui o solo de quebrotam as características pessoais mediante as quais um indivíduo difere dos outrosmembros de sua sociedade. Dessa maneira, alguma coisa brota da linguagem comumque o indivíduo compartilha com outros indivíduos e que é, certamente, umcomponente do habitus social.

Em sua perspectiva sociológica, a identidade eu/ nós é parte integrante dohabitus social de uma pessoa e, como tal, está aberta à individualização. Essa identidaderepresenta a resposta à pergunta quem sou eu? como ser social e individual. As sociedadesnacionais atingem um nível de desenvolvimento em que a organização já avançou atal ponto que toda criança recém-nascida tem que ser registrada perante o Estadopara ser, posteriormente, reconhecida como cidadão do país e precisa da certidãode nascimento em muitas ocasiões de seu crescimento e durante a vida adulta. Nessassociedades a resposta mais elementar à questão da identidade/eu do indivíduo –traduzida pela pergunta quem sou eu? – é o nome/símbolo com que ele é registrado aonascer. Sobre esse nome, evidentemente, a pessoa pode dizer: Hubert, Humbert sou eue mais ninguém! Normalmente, ninguém mais tem esse nome. Mas esse tipo de nomecom seus dois componentes, prenome e sobrenome, indica a pessoa tanto comoindivíduo singular como membro de determinado grupo, a sua família. Assim,enquanto de um lado o nome dá a cada pessoa um símbolo de sua singularidade euma resposta à pergunta sobre quem ela é a seus próprios olhos, ele também servede cartão de visita. Indica quem se é aos olhos dos outros. Vemos, por esse prisma,o quanto a existência da pessoa como ser individual é indissociável de sua existênciacomo ser social – o que se relaciona direta/indiretamente com a construção dohabitus como elemento central da vida social.

O processo de desenvolvimento e sua representação simbólica, o processocomo tal e como objeto da experiência individual, são igualmente entrelaçados einseparáveis. Como exemplo do processo social, como algo em si, Elias (1994)

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aponta inicialmente para o fato de que cada fase posterior do processo dedesenvolvimento atravessada por um indivíduo pressupõe uma seqüência contínuados estágios precedentes. É verdade, tanto em relação aos seres humanos quanto aoutros processos, que não se pode completar a idade e a forma de uma pessoa de30 anos sem se passar por todas as idades precedentes e suas respectivas formas. Acontinuidade do processo de desenvolvimento é uma das precondições para aidentidade de uma pessoa no decorrer de um processo que se estende por anos afio. A forma posterior da pessoa emerge, necessariamente, da seqüência das formasanteriores. Mas não cumpre necessariamente essa seqüência. Uma pessoa pode morrerantes de chegar ao estágio posterior. A estrutura da personalidade posterior dependedo fluxo do desenvolvimento das fases anteriores, mas de início com uma margemconsiderável da variação – o que com a maturação do homem diminuigradativamente.

Ao estudar os processos do desenvolvimento social, defrontamo-nosrepetidamente com uma constelação de eventos onde a dinâmica dos processossociais não/planejados tende a ultrapassar determinado estágio em direção a outro,que pode ser superior ou inferior, enquanto as pessoas afetadas por essa mudança seagarrem ao estágio anterior em sua estrutura de personalidade, em seu habitus social.Depende inteiramente da relação recíproca entre a força relativa da mudança sociale a força do arraigamento (resistência) do habitus social saber com que rapidez adinâmica do processo social não/planejado acarretará uma reestruturação mais oumenos radical desse habitus, ou se a feição social dos indivíduos logrará êxito em seopor à dinâmica social, quer tornando-a mais lenta, quer bloqueando-a por completo.

Com efeito, veremos como o processo de desenvolvimento social eeconômico alterou a sociedade Cabília, e consequentemente alguns argelinos sedesencantaram com o mundo.

O desencantamento do mundo ou a temporalidade na sociedade Cabília

O desencantamento do mundo, isto é, o desaparecimentodos encantos e dos prestígios que propendiam para umaatitude de submissão e de homenagem para com a natureza,coincide com o prejuízo do esforço para cativar a duraçãopela estereotipização mágico-mítica dos atos técnicos ourituais que visavam fazer do desenvolvimento temporal ‘aimagem nobre da eternidade’(BOURDIEU, 1979, p.46).

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A especificação da situação de dependência econômica – cujo limite, segundoBourdieu (1979), é representado pela situação colonial – consiste no fato de que aorganização econômica e social não é resultado de uma evolução autônoma dasociedade que se transforma segundo sua lógica interna, mas de uma mudançaexógena e acelerada, imposta pelo poderio imperialista. Por conseguinte, a parcelade livre decisão e de arbítrio deixada a critério dos agentes econômicos parecereduzir-se a nada; e poder-se-ia acreditar que, por oposição a seus homólogos dosprimórdios do capitalismo, eles não têm aqui outra escolha senão adaptar-se aosistema importado. Aqui, o autor nos diz que os agentes criados dentro de umatradição cultural totalmente diferente só conseguem se adaptar à economia monetáriaàs custas de uma re-invenção criadora que não tem nada a ver com uma acomodaçãoforçada, puramente mecânica e passiva. À medida que evolui, a organização econômicatende a se impor como um sistema quase autônomo que espera e exige do indivíduoum tipo de prática e de disposições econômicas: adquirido e assimiladoinsensivelmente através da educação implícita e explícita, o espírito de cálculo e deprevisão tende deste modo a aparecer como incontestável porque a racionalização é aatmosfera da qual se alimenta.6

Para os homens das sociedades pré-capitalistas, esses pressupostos constituemoutras tantas contribuições alheias que é mister adquirir laboriosamente. Assim, onovo sistema de disposições não é elaborado no vazio, ele se constitui a partir dasdisposições costumeiras que sobrevivem ao desaparecimento ou à desagregação desuas bases econômicas e que não podem ser adaptadas às exigências da nova situaçãoobjetiva senão ao preço de uma transformação criadora.

O devir da sociedade argelina (o mundo da Cabília) é um caso particular. Oprocesso de adaptação à economia capitalista lembra o que a simples consideraçãodas sociedades capitalistas avançadas poderia fazer esquecer, a saber, que ofuncionamento de todo sistema econômico é ligado à existência de um sistemadeterminado de disposições em relação ao mundo, e mais precisamente em relaçãoao tempo; porque o sistema econômico e as disposições se acham aí em harmoniarelativa, vindo a racionalização a se estender aos poucos para a economia doméstica,corre-se o perigo de ignorar que o sistema econômico se apresenta como um campode expectativas objetivas que não saberiam ser realizadas senão por meio de agentedotados de um tipo de disposições econômicas e, mais extensivamente, temporais.

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A dimensão tempo na sociedade Cabília, sociedade marcada pelas formas deprodução pré-capitalista, apesar de ser condicionada de acordo com seus ritos derepresentação do futuro, possui, para além dessa determinação, um conjunto decaracterísticas que são peculiares à sua cultura. Um exemplo disso é a questão da(pré)vidência, que se distingue da previsão na medida em que o futuro que ela apreendeestá diretamente inscrito na própria situação tal como ela pode ser percebida atravésde esquemas de percepção e de apreciação técnico-rituais inculcados por condiçõesmateriais de existência, elas próprias apreendidas através dos mesmos esquemas depensamento: a decisão econômica não é determinada pela tomada em consideraçãode um alvo explicitamente assentado enquanto futuro como aquele que é estabelecidopelo cálculo dentro de um planejamento; a ação econômica se orienta em direção deum porvir diretamente assenhoreado dentro da experiência ou estabelecido por todasas experiências acumuladas que constituem a tradição.

Considerações finais

Tivemos, neste artigo, a pretensão de evidenciar como se deu a gestação doconceito de habitus na obra O desencantamento do mundo, de Pierre Bourdieu, consideradapelo próprio autor como a sua grande pesquisa de campo – de onde floresceu partedo conjunto de outros temas e questões desenvolvidos em seus trabalhos posteriores.De modo direto, explicita a noção de habitus acompanhada das idéias a que a ela searticulam, tais como ethos, estilo de vida (gosto), sentimento de honra (hexis corporal).Não deixa de mostrar a dialética da interioridade/exterioridade das práticas domundo social – o que acaba nos permitindo compreender a noção de habitus comoum sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionaremcomo estruturas estruturantes, redimensionando de modo definitivo a relaçãorecíproca homem/estruturas sociais.

Na concepção teórico/prática de Pierre Bourdieu, o habitus – um sistema dedisposições permeado pela história social dos homens que sobrevive no mundoatual, atualizando-se igualmente nas práticas sociais – tende a perpetuar-se na vidafutura. Sendo um princípio gerador de estratégias que permitem fazer frente asituações imprevisíveis e sempre renovadas, produz práticas sociais que aparecemcomo determinadas pelo futuro, mas que estão determinadas, em sua perspectiva,pelas primeiras experiências, pelas condições passadas de sua produção.

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Essa característica – de que as práticas sociais apareçam como quedeterminadas pela antecipação do porvir – dá-se em razão de que as práticas sociaisque engendram o habitus, comandadas pelas condições passadas de seu princípiogerador, estão, de início, adaptadas às condições objetivas, toda vez que as condições– nas quais funciona o habitus – sejam semelhantes às condições nas quais ele foiproduzido. Os mecanismos sociais que asseguram a reprodução de habitus, conformes,ajustados, que adiantam o porvir, são parte integrante das condições do aparelho deprodução e de reprodução da ordem social, os quais não poderiam funcionar semas disposições que o grupo inculca e reforça e que delimitam os impensáveis daspráticas sociais.

Nas formações sociais em que a reprodução das relações de dominação nãoestá assegurada por mecanismos objetivos, o trabalho incessante de dominação conta,basicamente, como constância dos habitus socialmente constituídos e semprereforçados pelas sanções coletivas/individuais – nesses casos, a ordem social repousa,principalmente, sobre a ordem que reina nas cabeças e o habitus funciona como amaterialização da memória histórica. Mas o ajustamento antecipado do habitus àscondições objetivas é só um caso particular do possível. Levar em conta estaconsideração evita cair no modelo da relação quase circular de reprodução quaseperfeita. Neste caso, as disposições duravelmente inculcadas pelas condições objetivase pela ação pedagógica tendem a engendrar práticas sociais compatíveis, assegurandoa correspondência imediata entre as possibilidades a priori e as possibilidades a posteriori.

Assim, o habitus inculcado pelas primeiras experiências do mundo social – nafamília, no grupo, na ação pedagógica institucionalizada – é reforçado pela experiênciamesma do trabalho e pelas transformações das disposições que ele implica. Ascondições de trabalho, até as mais alienantes do trabalho forçado, são apreendidas,assumidas e postas em ação por um trabalhador que as percebe, as acomoda seacomodando, em função de toda sua história, de sua própria trajetória social. Esseprocesso dar-se-ia por meio de tipo de acordos tácitos entre as condições de trabalho– ainda as mais desumanas – e os homens preparados a aceitá-las pelas condições deexistência – desumanas ou não – da qual são produtores e produtos.

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Notas

1 Para Bourdieu (1979, p.18-19), “a adaptação a uma ordem econômica e social,qualquer que ela seja, supõe um conjunto de conhecimentos transmitidos pelaeducação difundida ou específica, ciências práticas solidárias a um ethos que permitemagir com razoáveis probabilidades de sucesso. É assim que a adaptação a umaorganização econômica e social tendendo a assegurar a previsibilidade e acalculabilidade exige uma disposição determinada em relação ao tempo e, maisprecisamente, em relação ao futuro, sendo que a ‘racionalização’ da condutaeconômica supõe que toda a existência se organiza em relação a um ponto de fugaausente e imaginário. Para compreender o processus de adaptação à economiacapitalista e, mais precisamente, para explicar suas lentidões e suas dificuldades,parece ser necessário analisar, mesmo que sumariamente, a estrutura da consciênciatemporal que está associado à economia pré-capitalista”.

2 Na perspectiva sociológica de Pierre Bourdieu (1992, p.183-202), “as ‘disposições’seriam uma sorte de ‘elementos’ componentes do sistema, que é o habitus. A noçãode ‘disposição’ está relacionada à de ‘posição’ num ‘campo’ de relaçõesdeterminado. As diferenças nas disposições – do mesmo modo que as diferençasde posição na estrutura do ‘campo do poder’ por exemplo – estarão no princípiode diferenças de percepção e apreciação do mundo social”. O termo disposiçãodaria conta do que recobre o conceito de habitus, devido a que ele exprime: a) oresultado de uma ação organizada (apresentando um sentido próximo ao de termoscomo “estruturas”); b) uma maneira de ser, um estado habitual; c) particularmente,uma predisposição, uma tendência, uma propensão, uma inclinação.

3 É o que acorre quando Pierre Bourdieu (1979) se reporta ao apartamento modernoe, a esse título, exige daqueles que devem ocupá-lo a adoção de um estilo de vida.

4 “Se as práticas econômicas do camponês argelino não podem ser compreendidassenão em relação às categorias de sua consciência temporal, permanece o fato deestarem estritamente ligadas, pela mediação do ethos, às bases econômicas dasociedade. [...] A interdependência da economia e do ethos é tão profunda que todaatitude em relação ao tempo, ao cálculo e à previsão se acha como que inscrita namaneira de apropriação do solo, a saber a indivisão. [...] Coisa notável, o ethos seprolonga sem solução de continuidade na ética: os preceitos da moral da honraque denunciam o espírito de cálculo e todas suas manifestações, tais como a avidez

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e a precipitação, que condenam a tirania do relógio, ‘moinho do diabo’, podem semanifestar como outras tantas explicitações parciais e veladas da ‘intenção’ objetivada economia.” São exemplos tirados do Desencantamento do mundo no que dizrespeito ao ethos como “matriz prática” (BOURDIEU, 1979, p. 33-34).

5 Para Norbert Elias (1994, p.9), habitus social, ou a composição de uma sociedade,reflete mudanças na maneira como a sociedade é compreendida, e até na maneiracomo as diferentes pessoas que formam essas sociedades entendem a si mesmas:em suma, a auto-imagem e a composição social dos indivíduos.

6 “O sujeito dos atos econômicos não é o homo economicus, mas o homem real que faza economia. Portanto considerando que as práticas (econômicas ou de outro tipo)de cada agente têm como raiz comum a relação que esse agente mantémobjetivamente, pela mediação do habitus que é por sua vez o produto de um tipodeterminado de condição econômica, com o futuro objetivo e coletivo que definesua situação de classe, somente uma sociologia das disposições temporais conseguesuperar a questão tradicional que consiste em saber se a transformação das condiçõesde existência antecede e condiciona a transformação das disposições ou o posto, eao mesmo tempo determinar de que maneira a condição de classe pode estruturartoda a experiência dos sujeitos sociais, a começar por sua experiência econômica,sem agir por intermédio de determinações mecânicas ou de uma tomada deconsciência adequada e explícita da verdade objetiva da situação” (BOURDIEU,1979, p.12-13).

ReferênciasBOURDIEU, Pierre (1992). A economia das trocas simbólicas. 3 ed. São Paulo: Perspectiva.________ (1997). A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes.________ (1996). As regras da arte. 4 ed. São Paulo: Companhia das Letras.________ (1998). Meditações pascalianas. Oeiras (Portugal): Celta Editora.________ (1979). O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturastemporais. São Paulo: Perspectiva.________ (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.________ (1965). O sentimento da honra na sociedade Cabília. In: PERISTIANY,J. G. (Org.). Honra e vergonha: valores das sociedades mediterrânicas. 2 ed. Lisboa:Fundação Calauste Gulbenkian.ELIAS, Norbert (1994). A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

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Therezinha Fraxe e Antonio Carlos Witkoski

________ (1997). Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculosXIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.FERREIRA, Aurélio B.de Holanda (1994). Novo dicionário da Língua Portuguesa. 15impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

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Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves*

Débora Cristina Bandeira Rodrigues**

ResumoEste artigo aborda a discussão do manejo de recursos naturais sob as basessocioculturais em comunidades ribeirinhas no município de Coari/Am. O resultadodo estudo permitiu perceber, nas atividades produtivas, as práticas de ajuda mútuanas comunidades.

Palavras-chave: Amazonas; conhecimentos tradicionais; práticas socioculturais.

AbstractThis article approaches the discussion of the handling of natural resources under thepartner-cultural bases in riverine communities in the municipal district of Coari/Am. The result of the study allowed to notice, in the productive the practical, activitiespartner-cultural of the communities’ mutual help.

Keywords: Amazon; traditional knowledge’s; sociocultural practices.

Manejo de recursos naturais por populações ribeirinhas noMédio Solimões

* Doutora em Políticas Cientificas e Tecnológicas pela Unicamp. Professora do Depar tamento de Serviço Social e do Programade Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas. E-mail: [email protected].

* * Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia. Doutoranda em Biotecnologia na área de Gestão da Inovação/UFAM/INPA.Pesquisadora do Grupo Inter-Ação. E-mail [email protected].

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Manejo de recursos naturais por populações...

Introdução

No passado, as fontes de vantagemcompetitiva eram o trabalho e os recursosnaturais, agora e no próximo século, a chavepara construir a riqueza das nações é oconhecimento.

Drucker (1993, p. 183)

Uma das principais temáticas que ganha destaque, relativa às questõesamazônicas, nos mais diversos fóruns, diz respeito à utilização dos recursos naturaispelas populações tradicionais de forma sustentável. Neste sentido, entende-se anecessidade e urgência de se discutir e divulgar os resultados das pesquisasdesenvolvidas sobre as formas de manejo dos recursos naturais desenvolvidos pelaspopulações amazônicas na contemporaneidade (GODARD, 1997; CHAVES, 2004;DIEGUES, 2001) a fim de contribuir no processo de construção de referenciaisteórico-metodológicos que subsidiem a elaboração de propostas de desenvolvimentosustentável coerente com os interesses locais, abrangendo tanto as questões relativasà proteção da biodiversidade quanto dos conhecimentos da população da região.

Dessa forma, o desafio que se coloca, neste momento histórico, é conhecere apreender as formas de organização sociocultural destas populações, considerandoas modalidades de uso dos recursos naturais e os conhecimentos acumulados nesteprocesso. Nesta perspectiva, segundo Diegues (2001, p.4) “é fundamental realizar oinventário dos conhecimentos, usos e práticas das sociedades tradicionais indígenas enão-indígenas, pois, sem dúvida, são depositárias de parte considerável do sabersobre a diversidade biológica hoje reconhecida”.

Este artigo relata uma pequena parte da experiência de pesquisa realizada noprojeto “Estudo-diagnóstico sobre o modo de organização da produção pesqueirapara implantação de empreendimentos solidários nas comunidades ribeirinhas nosmunicípios de Coari e Tabatinga – Estado do Amazonas”, desenvolvido pelo GrupoInterdisciplinar de Estudos Sócio-ambiental e de Desenvolvimento de TecnologiasApropriadas na Amazônia (Grupo Inter-Ação), do Departamento de Serviço Socialda Universidade Federal do Amazonas, em parceria com a Agência de Agronegóciosdo Estado do Amazonas – Agroamazon, financiado pela Fapeam / Poppe (2006).

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O referido estudo se constituiu em ações de pesquisa-ação e teve comoobjetivo caracterizar as condições de vida e de manejo dos recursos pesqueiros nascomunidades ribeirinhas dos municípios de Coari e Tabatinga. No entanto, valeenfatizar que no presente artigo serão apresentados, de modo sucinto, os resultadosobtidos com o estudo apenas em duas comunidades ribeirinhas do município deCoari, São Pedro de Vila Lira e Esperança I.

De modo mais específico, o estudo foi focalizado na identificação dosfundamentos socioculturais que incidem na prática (saber-fazer) das populaçõesenvolvidas no desenvolvimento das atividades pesqueiras, quantificando e qualificandoas informações da produção pesqueira nas áreas da pesquisa com o propósito decontribuir com o debate acadêmico na área sócio-ambiental e na produção de políticaspúblicas. Daí a relevância da parceria com a Agroamazon, no sentido de consolidarum estudo com resultados prático-operacionais com caráter participativo parasubsidiar a formulação de políticas públicas para o segmento social envolvido.

Assim, para abordar as práticas coletivas das comunidades ribeirinhas sob osmarcos socioculturais, propósito deste artigo, faz-se necessário o estabelecimento deuma discussão sobre as concepções e formas de gestão dos recursos naturaisconstruídos historicamente pelas comunidades amazônicas.

Manejo de recursos naturais em comunidades amazônicas

Uma decisão sobre o uso da terra é corretaquando tende a preservar a integridade, aestabilidade e a beleza da comunidade biótica.Essa comunidade inclui o solo, a água, a faunae flora, como também as pessoas. É incorretoquando tende para uma outra coisa.

(LEOPOLD, 1949, p. 224)

A Amazônia é ocupada por uma diversidade de grupos sociais que foramhistoricamente constituídos nos vários momentos que compuseram o processo decolonização ocorrido na região. Nesta perspectiva, pode-se afirmar que o homemamazônico é hoje resultado de muitos intercâmbios, entre diferentes povos e etnias.Os diferentes segmentos sociais que habitam a hinterlândia amazônica são resultadode um processo de colonização proposto e imposto para a região. Para Morán

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Manejo de recursos naturais por populações...

(1990) a heterogeneidade das populações da Amazônia também está associada àdiversidade de ambientes existentes na região.

Neste sentido, a Amazônia nem é apenas ambiente físico, nem somenteambiente humano, mas se constitui em um todo complexo que também envolveaspectos políticos e sociais, como resultado, fruto de uma construção histórica,do estabelecimento de relações sociais dos homens entre si e com a natureza(CHAVES, 2001).

Assim, os vários segmentos sociais que compõem a Amazônia não sãohomogêneos, mas apresentam uma diversidade, uma pluralidade que coloca emevidência as particularidades regionais com base nos conhecimentos herdados daspopulações tradicionais, sobretudo indígenas da região, articulados com os saberes econhecimentos aprendidos historicamente com outros povos e culturas. A influênciadestes outros povos, principalmente dos portugueses, fez surgir a cultura regionaldos caboclos amazônicos (CHAVES, 2001; MORÁN,1990)

No que se refere à relação homem-natureza na Amazônia, esta pode seridentificada a partir de diversos fatores: a origem sociocultural, as trajetórias de vida,as formas de uso e propriedade da terra, as formas peculiares de organizaçõessocioculturais e políticas, bem como as atividades produtivas no manejo dos recursoslocais, entre outros.

No que se refere ao conjunto das atividades produtivas desenvolvidas,historicamente, pela população amazônica destacam-se a agricultura e a pesca, sendoestas as mais tradicionais práticas realizadas pelas populações que vivem na região,principalmente as que vivem na área rural, seja nas terras de várzea ou na terra firme,como também nas áreas urbanas mais distantes das capitais dos estados da Amazônia.Vale ressaltar que a prática da pesca pelos grupos domésticos1 que vivem no meiorural da Amazônia destina-se a dois propósitos básicos: a maior parcela desenvolvea pesca para subsistência, enquanto outro grupo consorcia consumo ecomercialização. Da mesma forma, o agricultor (pequeno produtor familiar)desenvolve suas atividades produtivas visando uma dupla destinação, uma parcela épara consumo do grupo familiar e o excedente é destinado à comercialização.

Um outro aspecto importante aliado ao saber-fazer, ou seja, relativo às práticasprodutivas destas populações tradicionais, diz respeito à posição de afirmação desua identidade sócio-política enquanto grupo social. A identidade sócio-política seconstitui como um dos elementos importantes para análise, pois distingue categorias

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sociais e tipos de ocupação cuja afirmação está relacionada: a) à origem étnica dosagentes sociais por meio da adoção, adaptação de saberes e técnicas de acordo comsuas necessidades e interesses; b) ao seu padrão de organização da produção e degestão dos recursos naturais que se diferenciam de um grupo para outro em termosde divisão do trabalho, relações de gênero e processo técnico de trabalho; c) àmodalidade de organização sócio-política na luta pela garantia de sobrevivência e deacesso a bens e serviços sociais. (CHAVES, 2001)

Entende-se que as relações homem-natureza encontram-se mediadas pelacultura, por experiências acumuladas pelos povos ao longo de gerações e pelosvalores sociais e políticos construídos numa perspectiva sócio-histórica (MORÁN,1990, p.30). A partir desta ótica de análise, o componente cultural é percebido como“um conjunto de práticas, idéias e sentimentos que exprimem as relações simbólicasdos homens com a realidade (natural, humana e sagrada)” (CHAUÍ et al, 1984, p.11), podendo esta ser percebida, ainda, enquanto um conjunto de representações,das valorizações efetivas, dos hábitos, das regras sociais e dos códigos simbólicos.(THIOLLENT, 1985).

As populações rurais estabelecem o manejo dos recursos locais da fauna e daflora, desenvolvendo formas de extrativismo vegetal, animal, de cultivo, numa gestãocomunitária orientada por seus saberes tradicionais em bases cooperativas. Nestecontexto, a relação homem-natureza encontra-se pautada pelo respeito à dinâmicapeculiar de seus grupos doméstico-familiares e dos ciclos ecológicos, não se instituindosomente em função das relações de produção para atender às demandas de mercadoe nem de acumulação de bens, mas, sobretudo, priorizando as condições desubsistência, de reprodução social e cultural.

É importante destacar que as práticas de manejo desenvolvidas por estaspopulações encontram-se pautadas em um saber diferenciado do saber técnico-científico. Desse modo, não são apenas as modalidades técnicas de gestão dabiodiversidade que importam, mas certas formas sociais que orientam a gestão eimplantação técnica também devem ser consideradas neste processo (DIEGUES,2001). Assim, nestas formas de gestão é possível perceber um ordenamento no usodos recursos, o que historicamente contribui para garantir a sustentabilidade dosrecursos manejados por estes grupos sociais e/ou comunidades na região. Nestalinha de discussão, Diegues (2001) afirma que a manutenção e mesmo o aumento da

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Manejo de recursos naturais por populações...

diversidade biológica nas florestas tropicais estão relacionados intimamente com osconhecimentos e as práticas das populações tradicionais.

O manejo dos recursos naturais nas comunidades S. P. de Vila Lira eEsperança I

Na comunidade São Pedro de Vila Lira, 70,6% dos comunitários,representantes dos grupos domésticos, são oriundos do Município de Coari, sendoque 11,7% são nativos de outras localidades do próprio município, seguido de 29,4%que nasceram em outras localidades ribeirinhas ou municípios do Estado doAmazonas. Contudo, na comunidade de Esperança I a variação da origem dosinformantes é mais significativa: 60,0% são originários do Município de Coari e40,0% são provenientes de outras localidades ou municípios do Estado. O que sepode perceber, a partir da identificação da origem destes informantes, é que o fatode nascer e permanecer nas áreas lhes assegura, numa perspectiva histórica, umdeterminado tipo de saber, um conhecimento que orienta o manejo dos recursosnaturais locais existentes.

Assim, é importante ressaltar a relação que estas comunidades estabelecemcom a natureza nas diversas formas de manejo dos recursos naturais disponíveis,tendo por base os saberes e conhecimentos apreendidos e (re)elaborados a partir desuas experiências de vida. Segundo Diegues (2001), Bonnemaison (apud Leveque,1997,p.55-56) afirma que “se as sociedades tradicionais viveram até o presente no interiorde uma natureza que nós ocidentais julgamos hostil, é essencialmente devido aosaber e ao saber-fazer acumulados durante milênios dos quais nós reconhecemoshoje seu valor intrínseco.”

Estes saberes podem ser identificados em vários momentos da vida destaspopulações, sobretudo nas atividades produtivas. É interessante notar que mesmosendo característico destes produtores o desenvolvimento da agricultura e da pesca,a ocupação que se destaca na comunidade Esperança I é de agricultor (52,9%) assimcomo na comunidade São Pedro de Vila Lira (53,3%). Todavia, todos os produtoresse autodenominam como agricultores e pescadores.

Segundo Batista et al (2004), um ponto relevante que merece destaque, quantoao desenvolvimento das atividades de subsistência realizadas no decorrer do ano, éem relação à sazonalidade na realização das atividades pesqueiras, pois a produção

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Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves e Débora Cristina Bandeira Rodrigues

do pescado varia em função de diversas condições geradas pelas: 1) dinâmicas naturaisque decorrem dos ciclos naturais das águas (enchente, cheia, seca e vazante), dereprodução das espécies; 2) dinâmicas sociais marcadas pela apropriação/exploraçãodos recursos pesqueiros pelas populações locais. No entanto, é importante salientarque a pesca e a agricultura são aliadas a outras atividades (extrativismo vegetal eanimal, artesanato) que complementam a renda de modo a garantir a subsistência dogrupo doméstico.

Tomando por base a prática destas populações, sobretudo nodesenvolvimento de suas atividades produtivas, foram identificadas diversasmodalidades de coletivização do trabalho. Uma parcela significativa dos informantesreconhece que a vivência sustentada por relações de vizinhança na comunidadefavorece a prática de ajuda mútua entre eles: 17,5% dos pesquisados da Vila Lira e20,0% da Esperança I. Eles informam que gostam dos vizinhos porque há umarelação de reciprocidade no enfrentamento das dificuldades e afazeres cotidianos,contudo, também destacam que estas relações não se encontram isentas deconflitos internos.

No entanto, atividades coletivas, identificadas na pesquisa como práticas deajuda mútua, são praticadas por um número bem superior de comunitários emrelação aos que apontam estas práticas como relevantes para vivência comunitária.Na comunidade Vila Lira, as atividades coletivas são desenvolvidas por 71,0% dosseus moradores, e na Esperança I, por 60,0% dos comunitários. Assim, as atividadescoletivas, em ambas as comunidades, se constituem em prática comum para maioriados comunitários.

Em Vila Lira, moradores afirmaram que a ajuda nas roças é uma das atividadesque os comunitários realizam preferencialmente de maneira coletiva, sob forma demutirão. Esta prática, em geral, caracteriza-se pela realização de ações coletivas emque os comunitários atuam visando um benefício para toda a comunidade atravésda limpeza e cuidados dos equipamentos da comunidade e das áreas de lazer; amanutenção da casa de farinha; a limpeza da comunidade, convocada, quase semprepelo presidente da associação comunitária; a pesca e a agricultura. O mutirão denotauma modalidade de prática, cuja responsabilidade é divida entre os membros dacomunidade, ou seja, é realizada por homens e mulheres, com ajuda dos adolescentese das crianças.

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Todavia, é importante registrar que a composição e o arranjo entre osmembros da comunidade/grupos doméstico-familiares na execução das atividadescoletiva variam muito. Assim, embora se verifique a existência de certa divisão dotrabalho em relação ao gênero do agente social, em algumas atividades observa-se apredominância da participação masculina, principalmente naquelas atividades querequerem maior esforço físico, enquanto as mulheres, prioritariamente, encarregam-se das ações de apoio para a implementação da atividade principal (preparação dealimentos, cuidados com as crianças, organização do local). A divisão gera-se tambémem relação às gerações, ou seja, aos idosos são atribuídas responsabilidades de efetuaratividades que requerem menor esforço ou que exigem habilidades que os mesmosdominam, as quais os mais jovens ainda não são hábeis (tessumes2 cocção de alimentos,técnicas de cultivo e coleta tradicionais).

Observa-se que em relação às práticas coletivas das populações tradicionais(Rémond-Gouilloud, apud GODARD, 2002) ocorrem profundas transformaçõesna combinação de regras jurídicas tradicionais, econômicas, políticas, demográficase sociais, tanto nos aspectos de regulação quanto de significados dessas práticas nodecorrer dos anos. Assim, vale enfatizar que a rede de ajuda mútua, que se estabelecenas ações coletivas, institui momentos fundamentais nos quais ocorre a formaçãodas novas gerações para o mundo do trabalho, as possibilidades concretas demanutenção dos vínculos e da consolidação dos valores socioculturais pela dinâmicae intercâmbio de saberes entre os comunitários.

Outrossim, em relação às práticas de ajuda mútua, mesmo sofrendo mudanças,estas ainda expressam o modo de enfrentamento estabelecido por estas populaçõesfrente às demandas impostas pelos contextos interno e externo à comunidade. Destemodo, são orientados por práticas e técnicas provenientes de conhecimentos ehabilidades em bases comunicativas e cooperativas (CHAVES, 2001).

Segundo Fraxe (2000), as práticas de ajuda mútua são permeadas por váriasformas tradicionais de relações que os homens amazônicos estabelecem entre si, asaber: relações de confiabilidade, de compadrio, o acordo verbal e a relação de vizinhança,que extrapola a proximidade, para vivência de uma interação fecunda e criativa. Taisformas de interagir, nas comunidades de Vila Lira e Esperança I sinalizam relaçõesconstruídas tradicionalmente e que são parte da herança social dos povos amazônicos.

Nesta perspectiva, o desenvolvimento das atividades de ajuda mútua épermeado pela “consciência coletiva” desses grupos sociais, isto é, por um saber

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Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves e Débora Cristina Bandeira Rodrigues

coletivo acumulado na memória social, apropriado por intermédio da cultura(MORIN, 2002). Vale salientar que, apesar das determinações geradas pelo contextoexterno, a gestão comunitária dessas populações carregam estes fortes traços culturais.

Para Godard (2002), no contexto das populações tradicionais, de algumassociedades, as regras são estabelecidas de forma coletiva, com prevalência do respeitoe de certo consenso, o que permite uma melhor utilização dos recursos naturais, apartir do estabelecimento de códigos de conduta intragrupais.

Vale ressaltar, ainda, que nas comunidades estudadas ocorre uma fecundaarticulação homem – natureza, “tanto no campo das atividades do fazer, das técnicase da produção, quanto no campo simbólico” (DIEGUES, 1996, p. 61). As condiçõesde vida, a organização do trabalho, a gestão dos recursos locais praticada pelosagricultores e pescadores ribeirinhos das comunidades de São Pedro de Vila Lira eEsperança I, pautada nos valores socioculturais e na dinâmica sócio-histórica daregião amazônica, expressam a identidade sócio-política destes agentes sociais.

Considerações finais

As populações que vivem nas comunidades ribeirinhas pautam suas ações,principalmente, pela dinâmica da natureza, intensificando as atividades produtivasde acordo com o período do ano, obedecendo aos ciclos de enchente, cheia, seca evazante. Tal dinâmica os particulariza e diferencia em relação a outros segmentosrurais, em razão da dinâmica social local. Na região, a identidade assumida por essesatores sociais (ribeirinhos, pescadores, indígenas, extrativistas) determina uma lógicadiferenciada no manejo dos recursos e de relações socioculturais e político-organizativas.

Na base da economia tradicional das populações amazônicas identifica-se aforte incidência do componente cultural, que compõe mapas de orientação para aação de manejo dos recursos locais, mediatizada pelas representações cognitivas deseus grupos sociais. Tais representações constituem-se em mecanismos pelos quaisos homens e mulheres, no estabelecimento de suas relações, reinventam seus mundos,reforçam ou transformam seus valores.

Neste contexto, as práticas sociais das populações tradicionais são permeadaspelo simbólico, em que o manejo dos recursos deriva de tais orientações. Assim, oscódigos peculiares e específicos, que regem as ações destes grupos e comunidades,

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Manejo de recursos naturais por populações...

as interpretações e leituras da natureza desenvolvidas por estas populações, em muitoscasos não são decifráveis por outros grupos ou pela própria sociedade em geral,daí a necessidade da busca do significado, da explicação ou da compreensão, dedeterminadas expressões sociais, a princípio enigmáticas em sua superfície(GEERTZ, 1989).

Assim, faz parte do modo de vida das populações tradicionais na Amazôniauma maneira singular de manejar os recursos naturais, de modo compatível comseus ritmos de vida e organização sociocultural, aliada ao conhecimento e saberesacumulados sobre esta realidade. Estes fatores foram observados nos resultados dapesquisa desenvolvida nas comunidades São Pedro de Vila Lira e Esperança I, nomunicípio de Coari/AM. Neste sentido, pode-se afirmar que as formas de vida e agestão dos recursos naturais, desenvolvida por estas populações, enquanto segmentodas populações tradicionais na Amazônia, apresentam forte determinação advindadas representações simbólicas, míticas e de uma forma de organização social particular,ou seja, dos conhecimentos que possuem sobre a natureza, enfim, da maneira própriade representar, interpretar e agir sobre o meio natural.

Neste sentido, faz-se necessário valorizar e reconhecer a importância dossistemas tradicionais de manejo, pois suas técnicas têm contribuído não apenas paraa subsistência dos grupos domésticos nas comunidades ribeirinhas estudadas, parasua reprodução sociocultural e física, mas também para a manutenção da diversidadebiológica na região.

Notas

1 O grupo doméstico compreende não apenas a família, os membros com laçosconsangüíneos, mas todos aqueles que partilham o espaço doméstico, o convíviocomum, os laços de afetividade que surgem aliados aos esforços laborais quedesenvolvem conjuntamente, formando o grupo doméstico-familiar.2 Tipo de artesanato produzido com recursos naturais locais.

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Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves e Débora Cristina Bandeira Rodrigues

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Thaís Brianezi*

ResumoNa Floresta Nacional de Tefé, criada em 1989, vivem 360 famílias, consideradascomo populações tradicionais e reconhecidas como assentadas em 2002. A implantaçãoda política nacional de reforma agrária em unidades de conservação é uma experiênciapioneira no país. Esta comunicação traz para debate a inserção desses moradoresnesse processo e o respeito às suas formas tradicionais de reprodução social.

Palavras-chave: : : : : desenvolvimento sustentável; populações tradicionais; reproduçãosocial.

AbstractIn the Tefe´s National Forest, which was created in 1989, live 360 families. They areconsidered traditional population and were recognized by federal government as seatpeople. The implementation of rural reformation politic in conservation units is anew experience in the country. This communication brings to debate the insertion ofthese communities in this process and the respect to their traditional ways of socialreproduction.

Keywords: : : : : sustainable development; traditional population; social reproduction.

A reforma agrária ecológica na Floresta Nacional de Tefé

* Jornalista. Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas. E-mail: [email protected].

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A reforma agrária ecológica na Floresta Nacional de Tefé

Introdução

O Amazonas é palco de uma ação pioneira de reconhecimento dosmoradores de unidade de conservação – UC de uso sustentável como assentados.Essa política pública foi iniciada em 1999, a partir de um convênio entre o órgãofederal responsável pela gestão das áreas protegidas (Ibama) e o órgão federalresponsável pela reforma agrária (Incra). Ela se insere no contexto da chamadareforma agrária ecológica – termo que foi incorporado ao vocabulário governamental,mas surgiu a partir do processo de organização política dos sindicalistas acreanos.

A união entre as ações de regularização fundiária e as de proteçãoambiental atingiu também as Florestas Nacionais – Flonas. Esse tipo de unidadede conservação tem seu histórico ligado ao preservacionismo, linha ambientalistaque apostou na delimitação autoritária de áreas protegidas e que promoveu aexpulsão de muitos grupos humanos de seus territórios. A Flona de Tefé nãofugiu à regra de criação imposta pelo Estado, sem consulta às comunidades locais.Criada em 1989, no contexto do Programa de Pólos Agropecuários eAgrominerais da Amazônia (Polamazônia), catorze anos depois essa unidade éalvo de um convênio entre Incra e Ibama para a aplicação da política de reformaagrária em benefício de seus cerca de três mil moradores.

Embora haja uma vasta bibliografia sobre as reservas extrativistas, há poucostextos sobre Florestas Nacionais e, especialmente, sobre a política de reforma agráriaem unidades de conservação. Este artigo, portanto, pretende contribuir para osestudos sobre a aproximação entre a política fundiária e a política ambiental naAmazônia, tomando como referência o projeto de reforma agrária executado peloIncra e pelo Ibama na Flona de Tefé. Centramos nosso olhar sobre esse processoinovador e desafiante, porque pioneiro na Amazônia, a partir da relação entre oEstado e as comunidades, o respeito a sua cultura tradicional e a garantia das suasformas de reprodução social.

A pesquisa de campo foi desenvolvida em maio de 2006, nos três povoadosque constituem as chamadas comunidades sedes das Associações de Moradores daFlona de Tefé: São João do Mulato, no rio Tefé; São Sebastião, no rio Curumitá deBaixo; Vila Sião, no rio Bauana. Ao longo do texto, o termo comunidade aparecealgumas vezes como sinônimo de localidade (espacialização), traduzindo o usocorriqueiro do vocábulo entre os moradores da Flona. Entretanto, entendemos

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Thaís Brianezi

comunidade a partir da perspectiva analítica proposta por Joseph Gusfield (1975),conceito existencial organizador da relação das pessoas ao grupo, do sentimento deidentidade comum e do apelo à solidariedade, ou seja, como critério de açãogovernado por pertencimento comum, não como a arena física onde a ação ocorre.

Além da revisão bibliográfica, os dados da pesquisa foram obtidos a partirde observações diretas e anotações no diário de campo, do preenchimento de umextenso formulário de caracterização das comunidades e da realização de entrevistassemi-estruturadas com 36 informantes (12 em cada localidade estudada). Este textose construiu não só com o apoio bibliográfico e o documental (das informaçõesempíricas obtidas na Flona de Tefé), mas também por meio de entrevistas comtécnicos do Incra e do Ibama.

A Floresta Nacional de Tefé e a população t radicional

A Floresta Nacional – Flona de Tefé foi criada em 1989 na região do MédioSolimões, no estado do Amazonas, por meio do Decreto nº. 97.629. É administradapelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis(Ibama), órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente – MMA. Sua grande superfíciede 1.020.000 hectares está dividida entre os municípios de Tefé (47,3%), Alvarães(36,7%), Carauari (4,5%) e Juruá (11,5%), todos pertencentes ao estado do Amazonas.Seus limites hidrográficos são: ao norte, o rio Bauana; ao Sul, o rio Curumitá deBaixo; a oeste, o rio Andirá; e a leste, o rio Tefé (IBAMA, 2000).

As Florestas Nacionais são unidades de conservação de uso direto ousustentável, que admitem a presença de moradores em suas áreas. Na Flona de Tefévivem 500 famílias, agrupadas em 30 comunidades que localizadas nas calhas dostrês principais rios: 11 vilas ao longo do rio Tefé, 08 no rio Bauana e 11 no Curumitáde Baixo. Como a composição familiar média é de seis membros por unidadefamiliar, tem-se uma estimativa de 3 mil habitantes.

A Flona de Tefé integra o Corredor Central da Amazônia1caracterizado porapresentar baixas taxas de desmatamento (MMA, 2003). Um dos fatores que têmbeneficiado sua conservação é a localização afastada dos centros urbanos e o fatode não ser ponto de passagem para outras localidades que recebam fluxo regular devisitantes. O acesso até a Flona se dá exclusivamente por via fluvial, a partir da sededo município de Tefé, tendo o rio Tefé – afluente da margem direita do rio Solimões

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– como principal caminho. Nos transportes convencionais da região, com motoresdo tipo rabeta (5hp), demora-se em média três horas no deslocamento entre ocentro urbano ao início da Flona. No interior da unidade de conservação, os trêsprincipais rios são o único meio de se transitar de uma comunidade à outra - já quenão há estradas nem ramais que liguem esses 30 povoados ribeirinhos.

As populações t radicionais e seus modos de vida na Flona de Tefé

As estratégias de subsistência econômicas dos moradores das comunidadesda Flona estão baseadas principalmente na agricultura familiar, com destaque aocultivo de pequenas roças de mandioca, para a produção de farinha. Apenas oexcedente produzido é comercializado em Tefé, seja diretamente ou por meio deatravessadores (que passam ou vivem nas comunidades em barcos recreios,conhecidos como regatões). Mas tanto os pequenos agricultores quanto oscomerciantes itinerantes possuem um único comprador de farinha e fornecedor deprodutos industrializados, considerados de necessidade básica: Roberval Takafaji, o“Japonês”, também conhecido na região como o “Rei da Farinha”.

As chamadas populações tradicionais da Flona de Tefé2 de acordo com adefinição de Diegues (1996, p. 87) se caracterizam basicamente por: não-uso detrabalho assalariado; produção independente em pequena escala, baseada no usoequilibrado dos recursos naturais renováveis e no conhecimento dos ciclos biológicos,transmitidos de geração em geração; baixa densidade populacional.

Nas comunidades ribeirinhas da Amazônia, o ambiente físico, especialmenteo ciclo hidrológico anual marcado pela enchente e pela vazante, determina o espaçoe o tempo - mas o modo como são vividos e percebidos pelas pessoas depende deprincípios estruturais humanos, construídos historicamente. O território é o locus dasrepresentações e do imaginário mitológico das chamadas culturas tradicionais, alémde espaço de fornecimento e criação dos aspectos materiais das relações sociais. Osrecursos naturais constituem, então, bens identitários, que ao mesmo tempo mantêma vida física da comunidade e servem como suporte simbólico das suas atividades(GODARD, 1999, p. 251).

As três comunidades nas quais realizamos a pesquisa, assim denominadaspelo trabalho pastoral da Igreja Católica no município de Tefé, possuem menos de30 anos de existência. Apesar de cada uma ter menos de 50 famílias, elas são

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consideradas pelos moradores da Flona como grandes povoamentos rurais. SãoJoão do Mulato foi constituída em 1992 e tem 23 famílias; Vila Sião foi criada em1982 e tem 35 famílias; São Sebastião passou a ser considerada comunidade em1986 e tem 48 famílias.

A maior parte desses habitantes descende de nordestinos que migraram paraa região entre 1890 e 1910, atraídos pela economia gomífera. Os relatos dosinformantes moradores dessas comunidades trazem em comum a afirmação deque eles se estabeleceram nas localidades estudadas porque receberam convites deparentes para se fixar lá e trabalhar com a produção de farinha. Outros dois motivosrecorrentes são as afirmações de que nos três lugares há bastante terra firme (ou seja,é possível fazer o roçado e a casa em locais que não sofrem alagações periódicas) ede que comunidades onde estavam anteriormente não havia escolas.

A infraestrutura nas comunidades

Tanto o Mulato3, quanto a Vila Sião e o São Sebastião estão dentro domunicípio de Alvarães e possuem escola municipal com turmas da primeira à quartasérie. Os jovens que conseguem continuar os estudos são obrigados a viver na sedede Tefé ou em Alvarães. Em São Sebastião já está em construção uma escolamaior, que ofertará também aulas de quinta à oitava série e servirá de pólo paracomunidades vizinhas.

As três comunidades receberam da prefeitura municipal de Alvarães poçosartesianos e um pequeno grupo gerador de energia elétrica – chamado pelosmoradores de “motor de luz”. Mas são as próprias famílias que arcam com asdespesas do óleo diesel (“combustol”) para garantir o fornecimento de, no máximo,três horas de energia elétrica por noite (geralmente, entre as 18h30 e as 21h30). NoMulato e na Vila Sião elas contribuem com uma cota mensal de cinco a 20 litros decombustível (de acordo com a quantidade de eletrodomésticos que possuírem); naVila Sião, a cota é monetária e igual para todas as famílias (R$ 30 mensais).

Como nas demais comunidades no estado do Amazonas, os moradoresapresentam queixas comuns. Entre as principais, estão a falta de um atendimentoeficiente de saúde e de uma rede de comunicação externa. Na Flona inteira não háradiofonia nem sinal que permita o uso de telefones celulares; em apenas umacomunidade (Vila Sião) existe telefone público – quebrado há quatro meses4. As

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famílias sofrem com a malária e com as verminoses, especialmente na época em queos rios estão mais secos. Nas três comunidades pesquisadas também não há postode atendimento médico ou de enfermagem – apenas um agente comunitário desaúde e/ou microscopista (técnico que realiza o exame de detectação da malária, achamada “lâmina”). Quando adoecem, os moradores recorrem à rede públicahospitalar de Tefé – enfrentando, no caso do São Sebastião, uma viagem de pelomenos seis horas no motor rabeta (ou três horas na voadeira ou baleira, canoas demetal com motor de 15 hp).

As igrejas – tanto a Católica, no caso do Mulato, quanto a Assembléia deDeus, na Vila Sião e no São Sebastião – participaram ativamente na constituiçãodessas comunidades, incentivando o nucleamento das famílias e a organização social.Nesse processo, destaca-se a figura do presidente da comunidade, presente nas trêslocalidades estudadas. No Mulato, na Vila Sião e no São Sebastião, esses líderescomunitários são eleitos a cada dois anos pelos moradores. Entre suas funções estáa de representação junto ao poder público, especialmente nas reivindicações porinfra-estrutura de transporte, comunicação e serviços de saúde e educação. Elestambém atuam como mediadores de conflitos internos, coordenadores de mutirõesde limpeza, do trabalho em roçado comunitário e, no caso da comunidade SãoJoão do Mulato, da festa do santo padroeiro.

A reforma agrária ecológica: uma experiência pioneira

A discussão sobre reforma agrária no Brasil ganhou força nos anos 60, quandoera ligada à necessidade de modernização da agricultura nacional. Mas o meio ruralbrasileiro se mecanizou mesmo sem distribuição de terras ou renda. Entre 1975 e1985 o número de tratores no país dobrou (chegou a 600 mil unidades), mas aproporção de estabelecimentos com trator se manteve nos 7% (GRAZIANO, 1993,p. 192). Assim, nos anos 80, o debate mudou de foco e se politizou: a luta pelareforma agrária incorporou a temática da democracia e da cidadania (AUED, 1997,p. 243-247).

Em janeiro de 1985, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST)iniciou as ocupações de fazendas improdutivas e realizou em Curitiba (Paraná, suldo Brasil) seu primeiro congresso nacional. Em maio desse mesmo ano, o entãopresidente José Sarney entregou aos trabalhadores reunidos no IV Congresso de

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Trabalhadores Rurais, na Capital Federal, a primeira versão do Plano Nacional deReforma Agrária da Nova República. É também em 1985 que, para combater osavanços conquistados pelo movimento social, surge a União Democrática Ruralista– UDR (AUED, 1997, p. 234-238).

No plano regional, 1985 também é um ano significativo na história daconstrução de uma reforma agrária que atendesse às especificidades da Amazônia.Em outubro, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri (Acre) organiza o IEncontro Nacional dos Seringueiros, que reuniu em Brasília líderes sindicais do Acre,do Amazonas e de Rondônia. Este evento marcou o surgimento do ConselhoNacional dos Seringueiros – CNS, que passou a reivindicar a desapropriação dosseringais, mantendo, porém, a estrutura original de posse e uso coletivos da terra,configurada em torno das “colocações” de seringa. Nasce, assim, a luta pela criaçãodas Reservas Extrativistas – Resex e a adoção, por parte do CNS, do termo “reformaagrária ecológica” (ALMEIDA, 2004; PAULA, 1999).

O conceito de reserva extrativista foi inspirado na definição de reservasindígenas: terras da União sobre as quais os seringueiros teriam direito perpétuo deusufruto coletivo. Em 1987, surge a primeira tentativa de concretização desse novomodelo de reforma agrária: o Projeto de Assentamento Agro-Extrativista – P.A.E.São Luiz do Remanso, em Rio Branco, no Acre. Ele incorporava as reivindicaçõesdos seringueiros e apresentava estrutura e função semelhantes àquelas contidas naproposta das Resex. Já a primeira reserva extrativista – a Resex do Alto Juruá,também no Acre – foi criada apenas em 1990, quase dois anos depois de o assassinatodo líder seringueiro Chico Mendes alcançar repercussão internacional.

De maneira geral, podemos delimitar três grandes fases no desenvolvimentorural brasileiro dos últimos 35 anos. A primeira delas corresponde à década de 70 eà modernização da agricultura no Centro-Sul do país, promovida pelo governomilitar. A segunda fase, na década de 80, marca a perda da capacidade financeira doEstado em fornecer crédito rural abundante e de baixo custo, como no períodoanterior. A terceira – fase atual – seria caracterizada pelo reconhecimentogovernamental da agricultura familiar e por políticas públicas diferenciadas paraesses agricultores. (NAVARRO, 1998, p. 235-239)

Na Amazônia, em 1910, quando o preço da borracha entra em queda, osseringueiros, majoritariamente imigrantes nordestinos, passam a diversificar aprodução para a sua subsistência, a caçar e a plantar, a se apropriar da floresta.

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Muitos, inclusive, casam com mulheres indígenas. Aos poucos vão se constituindo,assim, os povoados ribeirinhos, formados por moradores que historicamente nãopossuem garantias legais da posse e uso legítimos sobre o território. Assim,principalmente a partir da década de 70, com o financiamento do governo militaraos grandes projetos madeireiros e agropecuários na região, o país assiste à explosãoda grilagem da terras, da depredação da floresta e da expulsão de seus moradorestradicionais (ALMEIDA, 2004, p. 36-40)

O modelo de reforma agrária adotado pelo governo não dava conta darealidade desses pequenos agricultores e extrativistas da floresta amazônicas. NoAcre, os dados do Plano Regional de Reforma Agrária revelam que nos últimos 30anos os projetos de assentamentos convencionais – que seguem a estrutura dedistribuição de lotes individuais de terra, com incentivo à prática da agricultura epecuária predatórias – levaram à reconcentração fundiária, cujo índice estimado é de40 a 50%, recriando e regularizando o latifúndio no estado (INCRA, 2004).

Se no Acre surgem os primeiros projetos de assentamento agro-extrativistase as primeiras reservas extrativistas, é no estado vizinho – o maior do Brasil, oAmazonas – que em 1999 foi assinado o primeiro convênio entre o Instituto Nacionalde Colonização e Reforma Agrária – Incra e o Ibama para implantação da políticade reforma agrária dentro de unidades de conservação – UCs. Segundo relato dochefe de projetos especiais da superintendência do Incra no Amazonas, Raul PereiraBarbosa, verificou-se que não havia diferença de perfil entre os assentados dos projetosagro-extrativistas que o Incra vinha criando desde 1987 e os moradores das UCs deuso direto. A superintendência regional do Incra encaminhou, então, à procuradoriageral do órgão, em Brasília, uma consulta sobre a possibilidade de reconhecer osmoradores de Flonas, Reservas Extrativistas – Resex e Reservas de DesenvolvimentoSustentável – RDS como assentados – obtendo um parecer positivo. O primeiroconvênio celebrado referia-se à Resex do Médio Juruá, também na região do MédioSolimões. Aos poucos, essa parceria entre o Incra e o Ibama foi estendida a outrasáreas5, tendo sido formalizada na Flona de Tefé em 2002.

A chamada reforma agrária ecológica tem como pressupostos a conservaçãoda floresta, a assistência técnica agro-florestal, o estímulo ao associativismo e à geraçãode renda. O primeiro passo após a celebração do convênio entre o Incra e o Ibamaé o cadastramento voluntário das famílias no Sistema de Informações de Projetosde Reforma Agrária – Sipra. Para que o reconhecimento oficial como assentado seja

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possível, o morador deve atender ao perfil estabelecido no Estatuto da Terra (1964)não pode ter renda mensal familiar superior a três salários mínimos provenientes deatividades não-agrícolas, não pode ser funcionário público, aposentado ou pensionistanem empresário.

A partir do cadastramento no Sipra, cada família está apta a receber do Incrao crédito implantação, que se divide na modalidade instalação (R$ 2.400,00 para acompra de alimentos e equipamentos de trabalho) e na modalidade habitação (R$5.000,00 para construção de uma casa).6 Dados do Incra7 revelam a quantidade defamílias que já receberam os materiais do crédito fomento nas três comunidadesestudadas: 18, no Mulato; 33, na Vila Sião e 33, no São Sebastião. Em cada uma dastrês comunidades, 11 famílias já construíram sua casa nova.

Após a concessão desse crédito inicial, os assentados passam a ter direito aduas linhas especiais de financiamento do Programa Nacional de Fortalecimento daAgricultura Familiar – Pronaf, criado em 1996, graças à pressão exercida sobre ogoverno federal pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST8.Mas, até agora, nenhuma família da Flona tentou acessar esse crédito, que exige aapresentação à instituição financeira (no caso, o Banco da Amazônia) de um projetoindicando no que o recurso será investido e como será pago (em outras palavras: acomprovação da viabilidade econômica do empreendimento). Ou seja, a reformaagrária ecológica na Flona de Tefé caminha a passos lentos, talvez, pelo fato da nãoconclusão do Plano de Manejo.

As mudanças observadas nas e pelas comunidades

Maria Helena Augusto (1989, p. 114) observou que as políticas sociais noBrasil, ao mesmo tempo em que são conquistas importantes de participação políticae social, representam também a “articulação de mecanismos mais complexos dedominação”. Na Flona de Tefé, em 2003, graças às exigências burocráticas para orepasse direto do crédito de implantação da infraestrutura para as comunidades, osmoradores tiveram que se organizar em três associações juridicamente constituídas:as associações de Moradores do Rio Tefé, do Rio Curumitá de Baixo e do RioBauana. Seus atuais presidentes – Raimunda de Fátima (Maria), Lázaro Feitosa dosSantos (Padre) e José Carlos dos Santos Matias, respectivamente – revelaram nosseus depoimentos que o Incra e o Ibama coordenaram tanto o processo de elaboração

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do estatuto e de registro das associações quanto as assembléias gerais para a renovação(bienal) dos dirigentes.

A pesquisa “Os impactos regionais da reforma agrária: um estudo sobreáreas selecionadas”9, encomendada pelo Núcleo de Estudos Agrários eDesenvolvimento Rural do Ministério do Desenvolvimento Agrário, revelou que nacriação de qualquer assentamento diversos organismos internos de representaçãoassumem importância, sendo as associações a forma predominante, elas são apersonalidade jurídica do assentamento e sua presença é quase obrigatória para orepasse de créditos (LEITE et al, 2004, p. 112). O estudo também apontou que osassentados constituem um segmento social cuja principal característica é a relaçãodiferenciada com o Estado: ao criar o assentamento, o Estado assume aresponsabilidade de viabilizá-lo por meio de políticas públicas e, assim, estabelece asregras do seu funcionamento e faz exigências formais, como a criação de associaçõespara o relacionamento com os organismos governamentais.

Na Flona de Tefé, as associações de moradores participaram ativamente noprocesso de distribuição das cestas básicas e dos instrumentos de trabalho quematerializaram o crédito implantação – modalidade fomento. Do valor total de R$2.400,00 R$ 1000,00 foram entregues na forma de gêneros alimentícios. O restantedeveria ser usado para comprar ferramentas e insumos agrícolas para cada famíliacadastrada – mas, seguindo sugestão dos gestores governamentais, os assentadosdestinaram parte do crédito familiar (uma cota que variou entre R$ 300,00 e R$400,00) para compra de bens coletivos. Assim, a Associação de Moradores do RioTefé comprou um pequeno barco (atualmente parado, porque é velho e necessita deconsertos), uma balieira (motor 15 hp) e está à procura de um flutuante. Já a Associaçãode Moradores do Rio Bauana também comprou um barco estilo regional e umabalieira, mas optou por substituir o projeto do flutuante pela construção de umasede para a entidade (o que também ainda não se concretizou, embora já haja recursodisponível). Por fim, a Associação de Moradores do Rio Curumitá de Baixo foi aúnica na qual a primeira leva de assentados a receber o crédito-fomento decidiu nãorealizar compras coletivas, visto que na comunidade da Vila Sião já existia um barcoda Igreja Evangélica. Mas, entre os dois grupos seguintes de beneficiados houve acontribuição para a compra de uma balieira e para a viabilização do projeto deaquisição de um flutuante (também ainda a ser realizado).

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Paul Little (2004, p. 327-328) observou que

[...] a apropriação ambientalista dos caboclos tende a apagara situação de exploração econômica e dominação políticaque estes grupos sofreram durante os últimos dois séculospara concebê-los como potenciais parceiros nos novosprojetos de desenvolvimento sustentável.

Não se pode perder de vista, portanto, que os moradores da Flona de Tefésão também fruto de processos coloniais e imperiais de exploração da Amazônia,sendo relegadas às margens das economias nacional e internacional – e que, portanto,o reconhecimento deles como assentados significou uma conquista importante, poishistoricamente foram abandonados pelo poder público local, estadual e federal.

A pesquisa mostrou que a maioria dos informantes avaliou positivamenteo processo de reforma agrária no qual estão inseridos, dando destaqueprincipalmente à melhoria das condições de moradia. Uma das afirmações maiscomuns foi a de que muitos moradores não conseguiriam sozinhos construiruma casa nova tão grande e confortável quanto a que estavam erguendo graçasà distribuição do crédito habitação.

Foram os engenheiros do Incra que apresentaram às lideranças comunitáriasda Flona o modelo da casa nova. Esse padrão arquitetônico poderia ser modificadoapenas parcialmente segundo decisão de cada família, desde que elas construíssemum banheiro dentro da casa, respeitassem o tamanho mínimo total da construção(80 metros quadrados, incluindo as varandas) e mantivessem a estrutura da fachada.

Os próprios informantes avaliaram essa exigência de uma aparência externacomum como uma estratégia de construir um aspecto distintivo do assentamentoem relação às comunidades do entorno que não pertencem à Flona. Ou seja, comouma propaganda das ações do governo federal, um sinal diacrítico que permitisse aidentificação automática das áreas beneficiadas pela política nacional de reformaagrária, onde o Incra está atuando em conjunto com o Ibama. Esses informantestambém classificaram esse modelo das moradias como “colonial”, em referência aoestilo das casas da região sul do país (caracterizada principalmente pelas varandas aoredor de toda a construção).

A exigência de banheiro dentro da casa também representou uma novidadepara os moradores da Flona de Tefé. Nenhum dos 36 informantes da pesquisa

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possuía banheiro na casa em que moravam anteriormente – as necessidades fisiológicaseram feitas em um buraco na terra (latrina), escondido por um cubículo de madeira(chamado de “casinha” ou “privada”), localizado geralmente nos fundos do quintal.Todos eles foram unânimes em afirmar, porém, que aprovaram a mudança porquediminuiu o risco de picadas de serpentes que se corria no momento em que usava aprivada à noite e reduziu também o incômodo de se molhar quando se necessitavair até a latrina durante uma chuva. Os moradores apontaram, porém, que ainda nãopodem usufruir plenamente dos benefícios de se ter banheiro dentro de casa, porquenas três comunidades estudadas não há água encanada – logo, eles precisam carregarem baldes e panelas a água do rio ou do poço para realizar a descarga dos dejetos.

Mas talvez a maior mudança ocorrida até agora nesse processo de reformaagrária na Flona de Tefé não seja material, mas sim identitária. Utilizamos aqui oconceito de identidade nos termos propostos por Hall (2005), como uma estratégiaorganizativa, um modo de construir sentidos que influencia e organiza nossas açõese a concepção que temos de nós mesmos. No seu discurso, os informantes começama se identificar como moradores da Flona de Tefé e se referem a essa unidade deconservação como se ela tivesse sido criada a partir do convênio entre o Incra e oIbama. De fato, o próprio chefe da Flona, Astrogildo Martins, relatou que a presençados servidores do Ibama na unidade era pequena antes do início do processo dereforma agrária, em virtude especialmente da falta de pessoas e de recursos para setrabalhar com esses pequenos agricultores.10

É apenas com a existência de políticas públicas concretas voltadas aosmoradores da Flona – ou seja, graças às ações da política nacional de reformaagrária – que ganha sentido na vida deles a política nacional de meio ambiente (inclusivecom suas restrições legais e com o convite à co-gestão da unidade). Desde 2002, oconsultor contratado pelo Ibama para elaborar a versão prévia do Plano de Manejoda Flona de Tefé, Rafael Pinzón, esteve por três ocasiões na unidade, ministrandooficinas de associativismo e de educação ambiental nas três comunidades estudadas(além dos povoados Caru e Itaúba, no rio Tefé). Quando perguntados sobre se ecomo estão participando da elaboração do Plano de Manejo, a maioria dosinformantes respondeu afirmativamente, citando as “reuniões com o professorRafael”. Mas o Plano de Manejo11 – esse importante documento técnico que deveestabelecer o zoneamento e as regras de uso para os recursos naturais de cada áreada Flona – ainda não está concluído.12

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Os presidentes das três associações de moradores afirmaram que sofremcobrança dos moradores da Flona e dos próprios gestores federais para que atuemdiretamente na fiscalização da unidade, coibindo a pesca predatória e a retirada ilegalde recursos naturais madeireiros e não-madeireiros. Mas tanto Raimunda, quantoPadre e Matias argumentaram que sem um sistema de comunicação é impossívelnotificar a tempo ao Ibama a ocorrência de infrações. Eles também se queixaramque, por viverem na área do conflito e não contarem com proteção policial, sofremrisco maior que os servidores do Ibama nas atividades de fiscalização, colocandoem perigo inclusive membros de sua família. Além disso, afirmaram que a falta deum Plano de Manejo dificulta a discussão de acordos de pesca e a divulgação deregras mais claras para o uso dos recursos naturais da Flona.

Considerações finais

É importante salientar que o objeto deste trabalho – a reforma agrária naFlona de Tefé – é um processo social e, como tal, ainda em construção. Os resultadosda pesquisa, portanto, não são conclusões fechadas sobre fatos pré-definidos, masuma leitura preliminar e cautelosa de um movimento, apontando caminhos para oseu entendimento presente e contribuindo, dessa forma, com sua construção futura.

O objetivo geral da pesquisa era apreender se o modelo de reforma agráriaexecutado pelo Incra e pelo Ibama na Flona de Tefé respeitava a cultura tradicionalde suas comunidades ribeirinhas, garantindo a reprodução social das mesmas. Aolongo dos levantamentos bibliográficos e de campo, porém, verificamos queesse objetivo, da maneira como foi inicialmente formulado, corria o risco detender para uma visão idealizada e conservadora da chamada cultura tradicional,ao concebê-la como estática. A questão essencial não era se a reforma agráriaecológica respeitava a cultura tradicional dos moradores da Flona de Tefé, mascomo a ação do Estado estava influenciando no dinâmico e contínuo processode (re)construção de identidades locais.

A política ambiental do governo brasileiro e das agências multilaterais vem,nos últimos 25 anos, deslocando-se do preservacionismo para o socioambientalismo.Nesse movimento, há o risco de que as estratégias e ações do Estado e dasorganizações não-governamentais preservacionistas congelem os pequenos produ-

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tores familiares nopapel de guardiões da floresta, não reconhecendo como direitossuas aspirações por melhores condições de infra-estrutura, saúde e educação.

O cadastramento dos moradores da Flona de Tefé como assentados estáligado a esse contexto de idealização da chamada cultura tradicional, mas também éfruto do processo de organização dos trabalhadores extrativistas da AmazôniaOcidental. A partir do convênio entre Incra e Ibama, as pessoas que vivem na Flonade Tefé saíram da invisibilidade a que estavam condenadas e passaram a ser vistaspelos agentes estatais como sujeitos de direitos. Não por acaso, a Rede Grupo deTrabalho Amazônico – Rede GTA, que reúne aproximadamente 600 movimentossociais, sindicatos e associações, considera que a experiência da Flona de Tefé deveser replicada para outras áreas protegidas da região.

Líderes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST argumentamque a chamada reforma agrária ecológica representa um mero processo deregularização fundiária, por meio do qual o governo federal maquia as estatísticasoficiais de famílias assentadas. De fato, a principal característica desse modelo adotadona Amazônia é o processo de regularização fundiária diferenciado: no lugar dadistribuição de terras a colonos, está o reconhecimento do direito de posse e uso depessoas que já habitavam a região.

Na Flona de Tefé, porém, apesar de o processo de reforma agrária não estarconcluído, diversas melhorias estão sendo percebidas pelos moradores comoresultantes dele. Entre as principais, destacadas pelos próprios informantes estão: aconstrução das novas moradias (com banheiro) e as aquisições coletivas feitas pelasAssociações de Moradores (compra de barcos regionais e balieiras).

A maior mudança identificada por nós na configuração territorial do SãoJoão do Mulato, da Vila Sião e do São Sebastião, entretanto, não é física, mas identitária.A partir da distribuição dos créditos pelo Incra e do processo (ainda não concluído)de elaboração do Plano de Manejo da unidade, os informantes passaram a seidentificar como moradores da Floreta Nacional de Tefé e reconhecer-se como co-responsáveis por sua fiscalização e gestão.

Em seus relatos, por outro lado, fica clara a consciência de que essaresponsabilidade atribuída pelo Estado é maior do que as condições materiaisoferecidas para seu cumprimento. Como ajudar no controle da caça e da pesca emuma área de um milhão de hectares, quando não há verba para comprar o combustíveldas balieiras? Como comunicar os fiscais do Ibama da ocorrência de algum crime

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ambiental, quando na Flona não há radiofonia e o único telefone público existentepassa meses sem funcionar?

Outra mudança perceptível vivenciada pelas comunidades diz respeito àcriação de associações juridicamente constituídas, uma exigência formal do Incrapara a distribuição dos créditos. Os informantes perceberam a constituição dasAssociações de Moradores dos rios Tefé, Bauana e Curumitá de Baixo como algopositivo e a relacionaram aos benefícios que os créditos habitação e fomentotrouxeram para suas comunidades. Mas o associativismo, fomentado pelo Estado,não está levando em consideração o processo histórico de nucleamento dos chamadosribeirinhos do Médio Solimões. Para que essas entidades se constituam de fato comosujeitos autônomos, elas precisam dialogar melhor com o modelo tradicional deorganização comunitária.

A partir da análise dos dados obtidos em campo, pudemos concluirtambém que o processo de reforma agrária na Flona de Tefé, até o momento,não teve efeitos significativos na produção e comercialização da farinha, fonteprincipal (quase sempre exclusiva) de renda das comunidades estudadas. Continuaa predominar na região a cadeia de crédito e dívida alimentada por compradoresde farinha que funcionam também como fornecedores de mercadoriasindustrializadas. É grande a expectativa dos informantes pela oportunidade dediversificar a produção e melhorar as condições de venda, a partir do acesso àslinhas de crédito especiais do Pronaf. Para que essa possibilidade se viabilize, épreciso que o Estado invista em consultorias para elaboração de projetos eassistência técnica agro-florestal, o que ainda não aconteceu.

Há estudiosos que alertam que o associativismo formal e a distribuição decréditos podem provocar a inserção abrupta dos agricultores da Flona de Tefé nomodo de produção capitalista e a perda da sua cultura. Mas, como demonstrouBarth (2000), a identidade se fortalece na relação, não no isolamento. Por isso, apesardas inúmeras imposições da política nacional de reforma agrária, pudemos concluirque esses moradores estão buscando assumir o lugar de protagonistas no processode reorganização sócio-produtiva – e reivindicando do governo condições materiaispara que possam exercer esse protagonismo. É tênue o limite entre a participaçãosocial e a mera legitimação de ações governamentais – é justamente por essa corda-bamba que caminham os agricultores e extrativistas do São João do Mulato, VilaSião e São Sebastião.

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Notas

1 O Corredor Central da Amazônia corresponde a 25% do estado do Amazonas eé um dos dois corredores ecológicos que recebem investimentos do ProgramaPiloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil – PPG7), criado naConferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada pelaOrganização das Nações Unidas – ONU no Rio de Janeiro, em 1992 (MMA,2003). A Flona de Tefé, porém, ainda não foi palco de qualquer ação ou projetodo programa.

2 Edna Castro chama atenção para a imprecisão e generalidade do conceito, mas queele tem sido usado também como auto-nomeação, comportando elementos deidentificação política e de reafirmação de direitos (CASTRO, 2000, p. 165).

3 A comunidade de São João do Mulato é cotidianamente designada pelos moradoresapenas pelo seu último nome.

4 A referência temporal aqui é a data da última visita da pesquisadora à localidade:maio de 2006.

5 Dados do Incra de agosto de 2005 mostram que seis reservas extrativistas e duasflorestas nacionais já tinham adquirido o status de projetos de reforma agrária.São elas, com sua data de formalização do convênio entre o Incra e o órgãoambiental gestor: Resex do Médio Juruá, em Carauari (1999); Resex Baixo Juruá,em Uarini (2001); Resex Auati-Paraná, em Fonte Boa (2001); Resex Rio Jutaí, emJutaí (2002); Flona de Tefé, em Tefé (2002), Resex do Lago do Capanã-Grande,em Manicoré (2004); Resex Catuá-Ipixuna, em Coari (2004); Flona de Humaitá,em Humaitá (2004).

6 O crédito implantação modalidade instalação é um empréstimo a fundo perdido.Já o crédito implantação modalidade habitação deve ser pago em até 20 anos,com três anos de carência e desconto de 50% para pagamento em dia. Os valorescitados são referentes a maio de 2006.

7 Fornecidos à pesquisadora em maio de 2006.8 As duas linhas são o Pronaf Grupo A e o Pronaf Grupo A/C, exclusivas para

assentados. A primeira disponibiliza até R$ 13,5 mil, com mais R$ 1,5 mil paraassessoria técnica, com juros de 1,15% ao ano e bônus (desconto para pagamentoem dia) de até 46% sobre o principal. O prazo para pagamento é de até dez anos,com até cinco anos de carência. A segunda é um crédito de custeio, com valoresde R$ 500 a R$ 3 mil, com juros de 2% ao ano e bônus de adimplência de R$

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200,00, independentemente do valor contratado. O prazo para pagamento é deaté dois anos. Os valores referem-se a maio de 2006.

9 O estudo foi realizado entre janeiro de 2000 e dezembro de 2001, por pesquisadoresdo Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, daUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro – CPDA/UFRRJ e do Núcleo deAntropologia da Política – NUAP do Museu Nacional, da Universidade Federaldo Rio de Janeiro – UFRJ. As áreas pesquisadas foram os assentamentos do sudestedo Pará (região do Bico do Papagaio), do sertão do Ceará, da Zona CanavieiraNordestina, do entorno do Distrito Federal, do sul da Bahia e do Oeste de SantaCatarina.

10 Atualmente há dois servidores lotados na Flona de Tefé, mas durante a maiorparte de sua história existia apenas um, Astrogildo Martins. Em 2002, três servidoresrecém-aprovados em concurso nacional foram designados para compor o quadrotécnico da FLONA, mas permaneceram em Tefé por menos de um ano, atéconseguirem sua transferência para outros estados.

11 Uma exigência legal imposta pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação– SNUC, válido desde 2000. Por ele, todas as UCs deveriam elaborar seu Planode Manejo em no máximo cinco anos após a criação da unidade ou a aprovaçãoda lei. O cumprimento das determinações acordadas no documento deveria serfiscalizado por um Conselho Deliberativo (no caso das UCs de uso direto) ouConsultivo (para as de uso indireto), nos quais os moradores teriam assento. NaFlona de Tefé, porém, o Conselho Deliberativo já se reuniu, mas ainda não foicriado oficialmente. Segundo Astrogildo Martins, chefe da Flona, o Ibama aprovouum projeto no Fundo Nacional de Meio Ambiente para a implantação do conselhoe aguarda a liberação do recurso para efetivar sua criação.

12 De acordo com Astrogildo Martins, faltam ainda levantamentos nas áreas defauna e de flora e a discussão de acordos de pesca.

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Conf erência

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Boaventura de Souza Santos**

Muito obrigado a todos por terem vindo. É uma grande emoção paramim estar aqui. É um grande privilégio. E não o digo por retórica, digoprofundamente emocionado por estar num lugar, numa região do mundo míticapara mim, crucialmente importante para minha reflexão, mas que eu até agora apenasvi de longe, vivi de longe e agora tenho de tal modo a possibilidade de vivê-la maisde perto. Eu penso que há algo simbiótico, congênito, de confluência entre aquiloque vos vou falar e o trabalho que venho desenvolvendo e a Amazônia. Penso,realmente, que é neste lugar do mundo, neste templo do mundo, é talvez o melhorlugar e o melhor tempo para instaurar esta Epistemologia do Sul, este conhecimentodo Sul que eu tenho vindo a tentar perseguir no sentido de renovar as CiênciasSociais. E realmente o faço, olhando para essa Amazônia física, para essa Amazôniamítica, que também o é do imaginário das populações ribeirinhas e das populaçõesindígenas. Essa Amazônia, que também é a história que ontem vivi ao ver essareprodução fidelíssima no Museu do Seringal Vila Paraíso, a partir da reconstruçãodo grande romance de autor, um escritor português (A selva, de Ferreira de Castro).A Amazônia, social e política, dos conflitos agrários que meu já amigo Luiz AntônioNascimento de Souza me tem vindo a falar. Tanta violência! E poderíamos dizerque este ano, neste momento, celebramos infamemente os dez anos do massacre doEldorado dos Carajás e é bem provável que o governador que ordenou esse massacrevolte a ser governador do Pará nas próximas eleições de outubro.

* Conferencia proferida no dia 11 de setembro de 2006, no Auditório da Reitoria da Universidade do Estado do Amazonas,em Manaus, quando da aula inaugural do Mestrado Profissional em Ensino de Ciências na Amazônia (UEA) e do lançamentode seu ultimo livro: A gramática do tempo: para uma nova cultura política (Cortez, 2006). Conferência transcrita por MarcoAntonio Brito, cientista social. Supervisão técnica de Selda Vale da Costa.

* * Doutor em Sociologia do Direito (Yale) e professor da Universidade de Coimbra. Professor visitante da Universidade deWisconsin, Madison. Possui mais de 30 publicações na área das Ciências Sociais. E-mail: [email protected].

Conhecimento e transformação social: para uma ecologiados saberes*

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Conhecimento e transformação social: para uma ecologia dos saberes

Esta é a Amazônia, a Amazônia contraditória, de conflitos e de lutas, demortes, de Julião Silva, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Sul de Lábrea,que foi emboscado e assassinado em 26 de fevereiro de 2006. Mas é, também, aAmazônia da biodiversidade, da sociobiodiversidade, a Amazônia dos nossos sonhos,dos nossos mitos, de tudo aquilo que de futuro nós podemos aspirar pra nós próprios.Portanto, eu queria vos dizer que, neste contexto muito especial em que vos falo, aminha fala de alguma maneira procura seguir a correnteza dos rios que entraramdentro de mim como uma emoção profunda. Me sinto realmente muito dentrodessa correnteza e que o meu pensamento flua nessa correnteza, é o que vos desejo,e desejo para mim, claro.

Este livro de que vos vou falar é um livro que tem vários componentes dosquais eu vou falar apenas de alguns, muito brevemente. Uma componenteepistemológica, uma componente pós-colonial e uma componente de cultura política.

Eu vou dar a cada uma delas algum espaço, mas eu vou talvez centrar-me,logo de início, na primeira, porque é aquela que pode falar melhor e mais a esteprograma, a este auditório. Porque se estamos à busca de um novo caminho, de umnovo sentido, de um novo senso comum e de uma reinvenção da emancipaçãosocial, nós precisamos congregar universidades, movimentos sociais, organizaçõessociais, que todos lutam pela dignidade humana e por um mundo melhor, a que nósreconhecemos ter direito. E para isso é que precisamos nos armar não da guerra dosoutros, que procuram criar uma outra Amazônia militarizada, mas da arma dopensamento e da ação solidária. E essa é uma arma que tem uma dimensãoepistemológica forte, porque eu estou convencido de que a diversidade cultural domundo, da qual a Amazônia é um exemplo muito próprio, não pode ser concebidanem tratada sem uma concepção epistemológica adequada.

Nós não temos ainda hoje uma epistemologia, ou seja, uma reflexão sobrea construção de um conhecimento adequado à diversidade cultural do mundo. Onosso pensamento da globalização é muito menos global que a globalização. Anossa compreensão do mundo é ainda hoje uma compreensão ocidental do mundo.E a compreensão do mundo é muito mais ampla que a compreensão ocidental domundo. Portanto, nós precisamos de uma revolução epistemológica, outros olhares,outros sentidos que nos permitam captar essa diversidade. E é a isso que eu chamode epistemologia do sul. Por que do sul? O sul, pra mim, é a metáfora que simbolizao sofrimento humano causado pelo capitalismo global, o imperialismo, por este

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mundo moralmente repugnante que não cessa de concentrar riqueza e de concentrarviolência e de destruir as condições de democracia que tantos de nós queremos levara sério, não como uma hipocrisia institucionalizada, mas como uma vivência dademocracia radical, das nossas vidas na rua, nas famílias, nos mercados, nascomunidades, no espaço político, nas escolas, nas universidades.

E essa epistemologia do Sul tem que ser construída, porque não podemosconfiar na epistemologia do Norte. A epistemologia do Norte, que ainda hoje dominaas nossas universidades, que ainda hoje domina o nosso saber, é uma epistemologiaque, de algum modo, ainda está fechada dentro de si mesma. Nós não podemosesquecer que as teorias, por exemplo, sociológicas e antropológicas, foram criadasem quatro ou cinco países do Atlântico Norte no século 19 e a partir daí ousaram ase considerar universais e são elas que ainda estudamos e repetimos, quando de foradelas ficou toda a experiência do mundo, que ainda hoje é muito mais diversa e que,na altura, não contava, porque esse outro mundo, essa outra grande diversidade daAmérica Latina, da África, da Ásia, na altura, eram colônias, estavam incluídas dentrodesse imaginário europeu e eurocêntrico como não significando uma alternativaviável, uma diversidade credível as vivências e as consciências dos países do Norte.

Portanto, não é de surpreender que essas teorias não cubram esta diversidadede vida do mundo, desta experiência do mundo que hoje nos aparece cada vez maisinesgotável e cada vez mais rica. E desde que estou aqui na Amazônia sinto pordentro para além do meu pensamento, da minha sensibilidade e faço do meucorpo essa diversidade profunda dos conhecimentos, dos saberes, das práticas,das tecnologias, das tradições, dos mitos que compõem essa diversidade enormedo mundo.

E o conhecimento e a epistemologia que temos reduz tudo isso a um pouconúmero de experiências que tornam praticamente irrelevante e invisível toda estadiversidade. Portanto, a epistemologia dos Norte e o conhecimento científico quedesenvolvemos no Norte não nos serve mais para as tarefas que nos propomosneste início do século 21. Mas isto já seria mal, penso, mas o pior é que as CiênciasSociais do Norte estão estéreis, não produzem idéias novas. Eu tenho a possibilidadede viver parte do meu ano numa universidade norte-americana, na Universidade deWisconsin/ Madison. Há vinte e tal anos que eu o faço e posso dar esse testemunhode que no Norte se aprofundam as idéias que foram construídas ou há muito tempoou que foram construídas fora do Norte, mas não se criaram idéias novas, mas ao

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mesmo tempo bloqueia-se a emergência de idéias novas, vindas de outros lugaresdo mundo desde que elas não sejam apropriáveis pela ciência do Norte. Essaexperiência do conhecimento do Sul, essas experiência sociais, políticas e culturaisficam fora das nossas lentes, dos nossos olhares, da maneira de ver, dos nossosconceitos, das nossas teorias.

E é dessa exterioridade que surge muita idéia, hoje, de que não há alternativas,de que chegamos ao final da história. É que o capitalismo global é o futuro paratodo o sempre, é que não há qualquer alternativa a esse modo de vida que noscoloca a nós, sim, num campo privilegiado, em lugares privilegiados como este, masque deixam a esmagadora população do mundo subnutrida a morrer com umaesperança de vida de trinta e seis anos ou quarenta e dois anos, vítima de trabalhoescravo não apenas nos tempos dos seringais, mas, hoje, aqui, pelo menos no Estadodo Pará, a morrer de doenças curáveis.

Portanto, eu penso que é preciso uma outra epistemologia. E é essa que meproponho apresentar-vos aqui muito rapidamente, para tentar mostrar que o quevos vou falar não é de modo nenhum o depreciar ou desprezar a ciência moderna.De maneira nenhuma. Sou um cientista, temos aqui muitos cientistas, é essa a nossavida. O que está em causa não é desprezar a ciência, é colocá-la no seu contexto. Oque criticamos na ciência moderna não é aquilo que ela pode produzir comointervenção no mundo. É o arrogar-se como uma única forma de conhecimentoválido no mundo. É o monopólio do rigor que nós criticamos. E, portanto, estamosem condições de poder apreciar o que na ciência deve ser apreciado, e deve serresgatado ao mesmo tempo criando espaço para outros conhecimentos, para outrasexperiências de saberes e, como digo, é aqui, neste lugar que, se calhar, faz muitosentido falar disto.

A importância disto é que se não tivermos um saber, uma epistemologiasuficientemente ampla, para captar essa diversidade, ela desperdiça-se, ela perde-se,ela fica invisível, fica ausente. Daí que o meu trabalho se centra num conceito que euchamo de a sociologia das ausências. É a idéia de que muito daquilo que não existeé produzido ativamente como não existente. De fato, existe ,mas não se vê, é invisível,é desprezível, está marginalizado, suprimido, oprimido, ocultado, impronunciável.Não tem sequer linguagem ou conceitos para ser falado. E, portanto, a minha tarefaé, de alguma maneira, fazer que essas ausências se tornem presentes. Para isso eupreciso submeter a uma crítica não apenas as ciências, mas a racionalidade que está

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por trás. E essa racionalidade é, de fato, uma racionalidade indolente, como eu diziana Crítica da razão indolente. E agora avanço no sentido de vos mostrar como é que secria, como é que se produzem ausências no nosso tempo, como é que se produz aincapacidade de ver a riqueza das experiências que nos cercam, de não as valorizar enão as valorizando também não valorizamos os grupos sociais, as comunidades quesão detentoras desses saberes e dessas práticas.

São cinco as grandes formas de produção da ausência:* A primeira, e todas elas, são monoculturas, como a da soja, a monocultura, issomesmo, a monocultura do saber científico e do rigor. É a idéia de que só há umaforma de conhecimento válido e que todas as outras formas não têm qualquervalidade, todas as formas de saberes. Esta monocultura, que está muito enraizada nanossa epistemologia do Norte, cria uma forma específica da ausência: é considerartudo aquilo que não cabe nessa monocultura como ignorante. A primeira forma deprodução da ausência é, pois, a ignorância, é chamar algo de ignorante.* A segunda monocultura é a monocultura das classificações. É a idéia de queas diferenças têm naturalmente existência como hierarquias. Há raças que sãosuperiores, há sexos que são superiores, há culturas que são superiores e há outrasque são inferiores. E é essa idéia de uma natural diferenciação hierárquica que fazcom que aquilo que é inferior seja inexistente, não possa nunca ser uma alternativacredível a quem é superior. Portanto, a segunda forma de produção da ausência éconsiderar algo ou alguém inferior.* A terceira forma de produzir ausências é a monocultura da escala dominante.Na cultura ocidental, há duas maneiras de dar relevo às coisas importantes, que têmuma escala importante. A primeira é o universalismo. O que é o universal? É toda aidentidade, toda entidade, todo o conhecimento que é independente do seu contexto,que vale independentemente do seu contexto de criação. Isso é que é universalidade,obviamente falsa, porque tudo tem o seu contexto e nunca nada se liberta dessecontexto. Mas, ao considerar o universal como superior, tudo que é particular nãotem credibilidade, torna-se invisível. Portanto, o particular é uma forma também deproduzir invisibilidade, de produzir ausência na nossa sociedade. A outra forma deescala dominante é o global. O global é toda a capacidade que se cria em entidades,em realidades, que se expandem a todo globo e, ao fazê-lo, adquirem a prerrogativade considerar, entidades rivais, como locais. Quando a gente globaliza o hamburguerdo Macdonald’s obviamente que localizamos as nossas comidas locais, as nossas

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comidas, que alimentam a nossa identidade sejam elas o bolo, o bacalhau, o pato notucupi ou as costelas do tambaqui. Elas são vernaculizadas, são localizadas, e comotal tornam-se como alternativas não credíveis aquilo que é global. Portanto, esta é aterceira forma de considerar também, exatamente, ausência.* A quarta monocultura é a do tempo linear. É a idéia de que a história tem umadireção e um sentido e os países desenvolvidos vão na frente do tempo, vão nadianteira do tempo. Tudo que é assimétrico com esse tempo não é desenvolvido, éresidual, é subdesenvolvido, é atrasado, é selvagem, é bárbaro. E ,como tal ,não éuma alternativa credível. Essa forma de pensamento, que parece tão natural a nossamaneira hoje de teorizar, tem uma conseqüência dramática. É que não é pensável,nesse regime de pensamento, imaginar que um país menos desenvolvido possa sermais desenvolvido que um desenvolvido nalguma aspecto. É impossível pensarmosisso. Porque a sociabilidade das práticas, as convenções, os conceitos, as teorias dessespaíses mais desenvolvidos são sempre superiores. Portanto, a idéia de produzir ausênciaé através de considerar que algo é residual, que algo está desincronizado. E aqui háuma armadilha nesta epistemologia e nesta monocultura que não posso deixar dereferir. É exatamente algo que talvez já tivessem notado. É esta falsa relação entresimultaneidade e contemporaneidade. Quando um camponês ribeirinho ou quandoum povo indígena se encontra com um executivo do Banco Mundial, eles sãosimultâneos no encontro, mas não são contemporâneos. São não-contemporâneosapesar de o encontro ser simultâneo. Esta disjunção entre simultaneidade econtemporaneidade é o que cria a inferioridade do atrasado, do residual, do que nãotem dignidade como alternativa.* E, finalmente, a monocultura da produção capitalista, da produção da natureza,aqui bem visível hoje num contraste entre uma produção socioambientalmentesustentável e a produção do desmatamento, da depredação, da destruição ambiental.É que a produção, a monocultura da produtividade capitalista, reduz a produtividadeou concentra a produtividade da natureza e do trabalho humano num ciclo só deprodução. É uma novidade que tem cento e cinqüenta anos. Antes, a produtividadeera medida por vários ciclos de produção. É assim que os camponeses olham praterra. A terra cultiva-se um ano, no ano seguinte não se cultiva, está de pousio, está adescansar, para poder voltar a ser cultivada. Não é um ciclo, é uma seqüência deciclos. E é assim também o trabalho humano na sua dimensão natural. Mas amonocultura da produtividade concentrou tudo num ciclo. Não interessa que

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depois deste ciclo a natureza esteja estéril, ou o homem, o trabalhador, estejacom uma doença incurável, o que interessa é a produtividade num determinadociclo. E, portanto, tudo que não cabe, tudo que é produzido fora desta lógica éconsiderado estéril, preguiçoso, pouco qualificado, indolente, que é outra formade produzir ausência.

Eu proponho-vos não uma, mas cinco formas de produzir ausências nonosso tempo: é o ignorante, o inferior, o residual ou atrasado, o particular ou o local,o residual, que já referi e o improdutivo ou o estéril. Qualquer coisa que sejadenominada desta forma é considerada uma alternativa não credível. Não estou demodo nenhum a propor, e é muito importante que o tenhais em mente, qualquersolução relativista, de que todos os saberes são iguais e que todas as formas deprodução ou de tempo são iguais. Não, eu não sou relativista, porque quem luta pelaemancipação social não pode ser relativista, porque se tudo vale o mesmo, tudo valenada! Tantos os opressores como os oprimidos, todos têm as mesmas razões.

Ora, eu proponho-vos uma outra lógica epistemológica, assente numadiferença fundamental entre objetividade e neutralidade. Nós precisamos de serobjetivos, mas não devemos ser neutros. E esta é a proposta epistemológica quevou contrapor às monoculturas. Porque ser objetivo é respeitar todas as metodologiasque nós podemos criar para criarem uma coisa que é fundamental a toda pesquisacientífica: é deixarmos-nos surpreender pela realidade. Nós só não seremosdogmáticos se nos deixarmos surpreender pela realidade. E para nos deixarmossurpreender pela realidade temos que ter metodologias de distanciamento crítico, daorganização do conhecimento. E essas metodologias são a garantia da objetividade,mas a objetividade não é neutralidade. Nós devemos sempre saber de que ladoestamos, porque neste mundo moralmente injusto há os opressores e os oprimidos,e nós como cientistas, como cidadãos, devemos saber de que lado estamos. Devemossaber para que serve a nossa ciência ou o nosso conhecimento. E esta organizaçãodo pensamento, que dá sempre a distinção entre a objetividade e neutralidade, é quevai permitir fazer uma proposta às monoculturas.

Proponho- vos, pois, cinco alternativas às monoculturas. São as cincoecologias. A primeira ecologia é a ecologia dos saberes contra a monoculturado rigor científico, termos uma ecologia dos saberes. O que é isso?. É sabermosque há várias formas e vários saberes no mundo e que todos eles se caracterizampor um certo tipo de intervenção no mundo. O que nós temos que saber é como é

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que eles podem coexistir, complementar-se, articular-se, de acordo com a intervençãono mundo que nós pretendemos. Se eu quero ir à Lua, eu não posso ir a Lua com oconhecimento indígena ou com o conhecimento caboclo. Eu tenho que, para ir aLua, eu preciso do conhecimento científico, mas se eu quero preservar a biodiversidadeda Amazônia eu já não posso, de modo nenhum, confiar no conhecimento científico.Pior, se eu confiar exclusivamente nele provavelmente irei destruir asociobiodiversidade da Amazônia. Portanto, eu tenho que ter outros conhecimentose aqueles os conhecimentos indígenas das comunidades ribeirinhas, dos povos destaregião, são absolutamente fundamentais. Portanto, eu tenho que saber quais são asintervenções no real que eu quero, para poder saber que tipo de conhecimento é queeu tenho que acionar para poder obter estas intervenções no real. E esta ecologia éuma ecologia que permite complementaridades, ainda que muitas vezes haja conflitos,mas os conflitos, por vezes, são falsos.

Eu vou lhes contar uma história que mostra exatamente isso e que pode termuita aplicação aqui na Amazônia, embora seja uma história da Indonésia, da ilha deBali. Quando houve a revolução verde, foi uma revolução que procurou, no fundo,produzir uma revolução agrícola, substituindo a agricultura camponesa pela agriculturaindustrial, o agro-negócios, como chamais aqui no Brasil, o agribusiness. Reduzir avariedade de espécies, a grande variedade de espécies de milho e de arroz e usaragrotóxicos, adubos, fertilizantes e transformar a agricultura no subcontinente asiáticoe também da Indonésia. Os campos de arroz, os arrozais de Bali, que são aquelesmaravilhosos arrozais em socalcos, que alguns já devem ter visto, como a agriculturaandina, dos povos indígenas dos Andes, eram irrigados de uma maneira ancestral hámuitos e muitos séculos por um sistema de irrigação que era administrado porsacerdotes da deusa da vida, que é a deusa hindu da água. Ora bem, quando chegoua revolução verde, os engenheiros disseram: “mas, que coisa estúpida, que o sistemade irrigação possa ser administrado por sacerdotes, por padres, por pastores!. Coisasmíticas, coisas mágicas, que não têm consistência científica. Vamos eliminar estesistema”. Expulsaram os sacerdotes e começaram a fazer a irrigação tecnicamenterecomendada pela engenharia da irrigação. Safra deste ano: 50% do arroz do anoanterior. O governo indonésio entendeu que talvez fosse um problema de adaptaçãoe esperou pelo próximo ano. Próxima colheita: 30% da produção de arroz. Anoseguinte: 30% da produção do arroz. Daí as autoridades ficaram perplexas: “comoé possível que agora um sistema científico de irrigação nos dê 30% do arroz que

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tínhamos antes! E vai daí, como também são políticos e também há eleições, o queeles fizeram foi mandar de volta os sacerdotes. “Regressem os sacerdotes aos arrozaispara poderem voltar o seu sistema de irrigação”. Voltaram e o arroz começou denovo a ser produzido nos arrozais de Bali.

Trinta anos depois, três jovens cientistas do MIT e de Harvard, especialistasnas novas ciências da computação, de modulação computacional, intrigados comaquela história de que tinham ouvido falar, vão estudar o sistema de irrigação dossacerdotes da deusa da vida de Bali. E chegam à conclusão, pelas análisescomputacionais da modulação do regime das águas, que o sistema de irrigaçãoancestral de Bali era tecnicamente o mais rigoroso, o mais ótimo, não era possívelotimizar doutra forma o sistema de irrigação, para além do que faziam os sacerdotes.Ou seja, a incompatibilidade que se criou entre aquele conhecimento ancestral e oconhecimento científico resultava de má ciência. Quando a ciência aprofundouverificou que em vez de incompatibilidade havia complementaridade. É esta anova lógica de uma ecologia dos saberes que nós precisamos impor. Porque elaé que vai resgatar a riqueza da experiência social, porque se ela não for credibilitadadentro das universidades, amanhã obviamente que é o conhecimento científico,que muita vezes é errado, que vai dar naturalmente conseqüências políticas esociais muito importantes.

Para vos dar um exemplo, talvez muito mais próximo de vós, há o perigode que a vossa rica tecnologia naval, de construção de barcos de madeira, aqui doAmazonas, que é uma tecnologia riquíssima, possa estar a ser posta em causa poruma tecnologia supostamente mais desenvolvida do Norte, da produção de barcosmetálicos, e que podem facilmente tentar destruir a vossa riqueza tecnológica navalpor um sistema fácil É que as empresas seguradoras dos barcos só seguram asnovas tecnologias e não seguram os vossos, da tecnologia do Amazonas. Portanto, épossível credibilizar essa tecnologia naval para poder impedir que não fiquem forado sistema de seguros, por exemplo. Esta é a lógica epistemológica que temconseqüências políticas, sociais e econômicas imediatas.

Portanto, essa ecologia dos saberes é uma ecologia que eu vos proponho,que tem também que ter mais outras, mas falo de apenas mais uma, que é a ecologiados tempos, Contra o tempo linear, a idéia da multiplicidade dos tempos. E aqui eusinto-me realmente em casa, profundamente em casa, epistemologicamente, alémde emocional e cientificamente. É essa idéia de que os tempos têm que se medir de

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acordo com diferentes lógicas e não apenas com uma lógica, digamos, do tempolinear, do tempo do relógio cronometrado, duma maneira mecânica, por umamonocultura industrial do Norte. Porque aqui a própria distância do rio, é umamaravilha, se ir de um lugar ao outro, pode demorar numa altura, dez dias, na outraaltura, catorze dias e o regresso, que é exatamente a mesma distância, pode demoraro dobro do tempo. Eu acho que é isso a ecologia dos tempos. Eu dou-vos outrahistória, da minha pesquisa, que vos ajuda a mostrar que isto não são sutilezas, isto éimportante do ponto de vista político, econômico e imediato, para os movimentossociais, para as organizações e para as universidades.

Eu estava fazendo um projeto na Colômbia, era um projeto sobre os povosindígenas Hua, da Sierra Nevada de Cucuí que é no norte da Colômbia. E essespovos Hua são povos que têm uma grande riqueza petrolífera, petróleo, e que aempresa multinacional Oxidental começou a querer prospectar em seu territóriosagrado. E os indígenas Hua ameaçaram que se suicidariam coletivamente se opetróleo fosse explorado. As pessoas ficaram a pensar que os índios, os indígenas,são estúpidos ou são loucos. Que é que é isso de um suicídio coletivo perantea exploração do petróleo!?

Acontece que já no século 17, quando os espanhóis tinham tentado ocuparefetivamente aquela serra, os povos Hua para se recusarem à intervenção colonialespanhola, decidiram suicidar-se, jogaram-se quase todas as famílias de uma falésiaabaixo e ficaram apenas um pequeno grupo de famílias para manter a memória dopovo. São elas que constituem hoje os povos Hua. Portanto, era uma ameaça séria.Ao falar com eles eu entendi perfeitamente o que significava para eles a idéia de umsuicídio coletivo. É que eles me diziam, de uma maneira simples: “é que para vós, opetróleo é um recurso natural. Para nós, o petróleo é o nosso sangue. Porque paranós a terra é nossa Pacha Mama. É a terra-mãe. Não se separa de nós. Se noschuparem o petróleo, estão-nos a chupar o sangue. Se nos chupam o sangue, a gentemorre. A gente se suicida, não por vontade, mas porque nos estão a sugar o sangue”.O problema, como imaginam, tornou-se um problema político, complicado, naColômbia. O ministro do Meio Ambiente resolve ir à serra, de helicóptero, paraexplicar aos indígenas as vantagens da prospecção de petróleo. Chegou, juntou oschefes (os chefes chamam-se taitas), juntaram-se a volta dele os taitas. Explicou,durante uma hora, as vantagens da exploração petrolífera e disse: “vocês agora vãoter escolas, vão ter estradas, ter eletricidade, vão ter celular, vão ter tudo”. Falou por

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uma hora, depois perguntou aos taitas: “O que vocês pensam disso tudo que eu lhesdisse?”. Os taitas se calaram. Nenhuma palavra. O ministro ficou um pouco chateadoe disse pro seu assessor: “Eu disse alguma coisa errada?”. “Não”. “Então, digam láo que vocês pensam”. Calados. Nenhuma palavra. Até que o taita mais velho levantao braço e diz: “Nós queremos falar, sobre aquilo que nos disse, mas não podemosfalar sem consultar os nossos antepassados”. O ministro frisou o sobrolho e disse:“Mas pra quê? Vocês é que vivem aqui, vocês é que estão vivos, não são os vossosantepassados! O que é isso de consultar os vossos antepassados!?”. E eles disseram:“Não, os nossos antepassados estão vivos, estão aqui, aqui conosco”. “Bem, se estãoaqui convosco por que não os consultam já?” Vejam a lógica da racionalidade emcurso, do tempo!. E o taita mais velho disse: “Nós consultamos obviamente, mas,depende da lua. Só o podemos fazer à noite, depende da lua”. Aí o ministro ficouabsolutamente descontrolado. “Mas, o que é isso? Então, quer dizer que vamosesperar a lua, agora não há lua, quando é que vão consultar os vossos antepassados?”.E eles, obviamente muito angustiados: “Logo que seja possível, logo que a lua nospermita a consulta”. O ministro, obviamente, disse: “Bem, eu tenho mais uma horade sol, o helicóptero não levanta de noite. Eu tenho de regressar a Bogotá e eu vou-me embora”. Levantou vôo e foi embora. Nos dia seguinte, como calculam, aspáginas dos jornais, as primeiras páginas dos jornais de Bogotá tinham, naturalmente,o título que era de se esperar: “Os indígenas Hua recusaram-se a falar com o ministrodo Meio Ambiente”. Obviamente que não se recusaram. Eles quiseram falar nosseus termos, de acordo com os seus tempos. Com a comunidade, que pra elesinclui seus antepassados. Mas isso estava fora da concessão, da monocultura dotempo linear.

Ora, a ecologia de temporalidade que eu vos lhes proponho é uma ecologiaque é capaz de ver estas diversidades de tempos. E ao ver essas diversidades detempos, ela não só permite considerar o que é valido na ciência mas o que é validotambém nos outros saberes que se organizam segundo outros conceitos de tempo.E ao fazermos isso ainda vamos fazer uma outra demarche epistemológica. É que aoverificarmos isto, não apenas credibilizamos outros saberes, outras temporalidades,outras produtividades, outras formas de criar produção, mas vamos, ao mesmotempo, fazer outra coisa, que é fundamental pra ciência: é mostrar que não há umamaneira única de produzir ciência. A própria ciência é plural internamente. Quemprimeiro viu isso, de uma maneira notável, foram as epistemólogas feministas. Mulheres

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feministas, teóricas da ciência, que mostraram como a construção das teorias e dasmetodologias era muitas vezes sexista. Era orientada muitas vezes por preconceitos,que eram preconceitos sexistas. Que não eram de modo nenhum neutros àdiscriminação sexual. E a partir daí começou-se a ver que havia uma forma, e haviaoutra forma, de se produzir ciência. E, depois, vêm os estudos pós-coloniais, quetambém mostram que é possível fazer intregações da ciência, de outra forma,culturalmente integradas. E num de nossos livros, o volume 4, Semear outras soluções,nós temos esse exemplo de um grande químico indiano, Chexadre, que resolveutilizar a melhor ciência química que havia aprendido em Harvard, para juntar comas tecnologias locais do sul da Índia, para produzir os melhores catamarãs do mundo,aqueles barcos flutuantes, levíssimos, para a pesca artesanal daquela região, utilizandoa tecnologia local e o saber científico que tinha aprendido em outro local. Ou seja,não desprezar nem esse conhecimento científico nem os saberes locais.

É possível, pois, mostrar que a ciência tem sempre por trás de si uma culturae que é melhor explicitar essa cultura. O grande problema que nós temos hoje é umproblema que um filósofo espanhol, Ortega y Gasset, identificou bem, no início doséculo 20, quando ele disse: “a grande diferença entre uma crença e uma idéia, nóssomos as nossas crenças e temos idéias”. A crença é o campo da certeza, a idéia é ocampo da dúvida. A ciência faz parte das idéias, não das crenças, porque a ciênciaestá sempre também a mudar-se, e o que hoje é verdadeiro, amanhã é falso.

O drama do século 20, que acabamos de determinar, é que a ciência deixoude ser uma idéia para passar a ser uma crença. A gente hoje acredita na ciência muitomais do que ela pode dar. E o que vos estou a propor é separar a crença da idéia e,ao fazê-lo, trazer à possibilidade de uma ecologia dos saberes. Isso, no meu entender,é a proposta que vos faço, e, nessa proposta, que é aquela que, de alguma maneira,me quero concentrar aqui, porque penso que este é o campo, e talvez esse programanos possa ajudar de alguma maneira, esta maneira de ver hoje, o campo do saber edo conhecimento, porque ele tem um outro prolongamento. É que quando entramoscom esta epistemologia do Sul, e se o sul é ver o mundo a partir das vítimas, não éapenas capitalista, é também colonialista. E aí, portanto, isto significa exclusivamenteuma mudança, relativa, em relação ao meu pensamento da crítica da razão indolente.É que na Crítica da razão indolente eu falo, e continua a ser fundamental pra mim, quea modernidade ocidental tem esses dois pilares: a regulação e a emancipação, econtinuo a defender isso. Só que na altura eu não terei tematizado como tematizo

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hoje, que a duplicidade, esses dois pilares: regulação e emancipação social, só seaplicou às sociedades metropolitanas. As sociedades coloniais não tiveram essadualidade, não tiveram essa possibilidade. Então, a modernidade Ocidental tem olado europeu, que é o lado da inovação científica, dos direitos humanos, dademocracia, da igualdade, do direito internacional e tem o lado extra-europeu,que é o lado do colonialismo, da escravatura, da guerra, da destruição do outro,do genocídio e do epistemicídio, que é a morte dos conhecimentos dos outros.Ora bem, é essa dualidade, entre o europeu e o extra-europeu que nós temosque recuperar, porque o colonialismo não terminou com a independência. Ocolonialismo continuou sob outras formas; e essas formas são as formas doracismo. Nós vivemos em sociedades racistas e eu vejo que, finalmente, o Brasilestá a confrontar-se dolorosamente com essa idéia de que é também umasociedade racista. Aliás, basta olhar para esse auditório, se alguém puser emcausa o que eu estou dizendo, para mostrar que ainda vivemos numa sociedaderacista. Uma sociedade que já viveu e já superou, provavelmente, a discriminaçãosexual, mas ainda não superou a discriminação racial, de maneira nenhuma.

E, portanto, esta é a idéia de que nós temos que tematizar o racismo e deencontrar formas de o superar. Felizmente, hoje começam a discutir-se no Brasil,com força e com polêmica, e todos nós nos envolvemos com diferentes posições,mas é importante que ela avance, a questão das cotas, das políticas afirmativas, oreconhecimento desse racismo. Mas esse reconhecimento, e é importante que tambémse note, o racismo só é legítimo reconhecê-lo para eliminá-lo. Porque de outra formapodemos estar, exatamente ao negar o racismo, a permitir a sua consideração impune.E, nesse trabalho, eu tento explicar porque é tão difícil, no espaço do colonialismoportuguês ou espanhol, aceitar que somos racistas. Porque se olharmos bem, osestudos pós-coloniais, mesmo aqui no continente, às vezes me surpreendem. Citamautores, todos eles autores que vêm do colonialismo anglo-saxônico. Ora, ocolonialismo ibérico foi muito distinto. Qual foi a grande distinção? É que ocolonialismo anglo-saxônico criou apartheid, leis de segregação, escolas pra brancos,escolas pra pretos, segregação total. Sistemas de apartheid. O sistema ibérico nãocriou estas leis de segregação. Estas leis de segregação não existem e como nãoexistem dão a idéia de que não há racismo. Porque o racismo está nas sociabilidades,está no encontro face a face. Está na experiência da diferença da cor da pele. Estános elevadores, está nas ruas, está nos empregos. Uma doutoranda minha, hoje em

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Conhecimento e transformação social: para uma ecologia dos saberes

Coimbra, que vem de Belém, que veio pela ação afirmativa da Fundação Ford,conta essa história que nos convenceu a todos. Ela disse: “Eu trabalhei durante muitotempo na Bahia como babá. Era empregada doméstica, babá, em casa de família.Nunca tive falta de emprego. Mas era uma jovem inteligente, fui fazer o secundário,o ginásio. Fui pra universidade e licenciei-me em Direito. Agora não tenho emprego.Agora, finalmente, não tenho emprego na Bahia”. Ora, isto é realmente o racismo.

Ora bem, é exatamente esta dimensão que eu penso que nós temos quetrazer, se queremos construir uma epistemologia do Sul, porque ela também temque ter uma transformação de nossas instituições. Aliás, aí no meu livro que está aífora, eu proponho uma reforma, uma reforma profunda da universidade pública, eproponho, desde 2003, no âmbito do Fórum Social Mundial, uma UniversidadePopular dos Movimentos Sociais, um ponto de encontro entre cientistas sociais,artistas e intelectuais comprometidos com as lutas sociais, e dirigentes associativosdos movimentos e das associações, que possam começar a trocar saberes, a organizarações no sentido de termos cada vez mais a possibilidades de pensar globalmente,porque estamos a ser atingidos por atores globais. Cada vez mais nós vemos isso, asgrandes empresas... os povos indígenas, eu venho agora de Cuzco, onde se criou aCoordenadoria Andina dos Povos Indígenas, e eles contavam histórias da Bolívia,do Equador, do Peru. Todas iguais. Por que? São as mesmas empresas de mineraçãoque operam nos mesmos países, nos diferentes países. As mesmas técnicas, a mesmaexpulsão de camponeses ou indígenas, a mesma lógica pra dividir os camponeses eos indígenas.

Ora, nós temos que ter um pensamento global, e esse pensamento global éum pensamento que exige uma outra epistemologia e uma outra forma de inclusãosocial. Essa inclusão não é apenas a igualdade, é o reconhecimento da diferença, dadiferença sexual, da diferença racial, da diferença da orientação sexual, da diferençareligiosa, de todas as diferenças, que podem efetivamente enriquecer verdadeiramenteo mundo. Só assim, penso eu, é que podemos criar uma cultura política nova, a quededico bastante o meu trabalho, que é uma radicalização da democracia, que leva ademocracia a sério e leva os direitos humanos a sério, em vez de dizer, hipocritamente,que eles não valem nada. É evidente que pela forma dominante como eles hoje seapresentam, valem muito pouco, temos que o dizer, mas o que nós precisamos é deos levar a sério e pra isso é fundamental esta demarche que vos proponho, que temuma dimensão epistemológica, que tem a dimensão pós-colonial e que permitem,

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Boaventura de Souza Santos

no meu entender, e com isso concluo, poder realizar aquilo que parece ser o objetivofundamental do mundo em que a gente se situa: é que não há justiça social globalsem justiça cognitiva global. Nós nunca atingiremos um mundo mais justo se nãotivermos uma idéia de uma ecologia de saberes, de produções, de tempos, de escalas,que nos permita garantir a justiça cognitiva do mundo. Muito obrigado.

Entrevista

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Uma conversa com Julio Cezar Melatti*

Julio Cezar Melatti é Doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, com tesedefendida em 1970 sobre a sociedade Krahó e com pós-doutorado pela Smithsonian Institution.Considerado Decano da Antropologia Brasileira é professor da Universidade de Brasília – UnBdesde a década de 1970. Entre suas principais publicações estão Índios do Brasil e o MessianismoKrahó. E-mail: juliomelatti@ unb.br

Lenita de Assis – Professor Melatti, o senhor poderia nos falar um pouco de suatrajetória?

Julio Cezar Melatti – Sou natural de Petrópolis, estado do Rio de Janeiro. Nasci lá,lá estudei e fiz lá o meu curso universitário. Na época eu não tinha recursos para sairdali. Fiz o curso de Geografia e História, que em outras universidades mais avançadasjá estava em desuso, pois História e Geografia já estavam separadas, mas lá não. Foium bom curso, porque afinal de contas os professores eram do Rio, numa épocaem que as universidades não tinham campi, os professores não tinham salas nasuniversidades e os que faziam pesquisas, as faziam por conta própria. Eles não eramestimulados. As universidades, as maiores, eram como “grandes colégios” e haviaprofessores que davam aulas em várias universidades, em mais de duas, três até.Então, meus professores de História vinham do Rio de Janeiro e também os deGeografia, que geralmente eram ligados ao Conselho Nacional de Geografia, aoIBGE do Rio. Professores de Antropologia eu tive dois, a professora Maria LaísMoura Mouzinho e o Anselmo Moretti. Os dois tinham feito um curso de

Notas sobre história da Antropologia no Brasil

* Entrevista realizada por Lenita de Assis, cientista social, e Davi Avelino Leal, historiador, professor substituto doDepar tamento de História da Universidade Federal do Amazonas, mestres em Sociedade e Cultura na Amazônia, pela Ufam.E-mails: [email protected] e [email protected].

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especialização dado por Darcy Ribeiro. Naquela época não havia curso de pós-graduação no Brasil, a não ser em São Paulo. No Rio de Janeiro, Darcy Ribeiro crioueste curso de especialização, com duração de um ano completo, um ano de trezentose sessenta e cinco dias, não era um ano letivo, e este curso era dado no Museu doÍndio. Ele foi dado duas vezes no Museu do Índio, em 1955 e 1956 e depois foidado mais duas vezes no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais – CAPE, quefuncionava no mesmo prédio do INEP, na rua Voluntários da Pátria.

Assim que eu estava terminando o curso seriado da faculdade (com primeirasérie, segunda, terceira até a quarta série, que era a licenciatura com disciplinas didáticas,o professor era o Dom Evaristo Arns, que na época era o Frei Evaristo, professorde Didática), a professora Maria Laís me informou que no Rio de Janeiro havia umcurso de especialização no Museu Nacional dado pelo Roberto Cardoso de Oliveira,que era um professor que tinha idéias novas em Antropologia, que era muito bom.Então, eu fui fazer o exame de seleção para o curso. O Roberto na época tinha 33anos, eu tinha 23. Passei na seleção. Gozado, a Antropologia era pouco procurada,parece que, se bem recordo da entrevista, eram 15 vagas com bolsa para o curso,compareceram oito candidatos, sendo que entraram quatro, que seguimos o curso,que era ficar numa mesa lendo a bibliografia. Tínhamos duas aulas por semana, umadada por Roberto Cardoso de Oliveira e a outra dada por Luís de Castro Faria.Este dava mais a parte de Antropologia Econômica e o Roberto Cardoso davamais a parte de Antropologia Social.

Neste curso, além das aulas, que começaram no dia 1º de março de 1961 eacabaram em 28 de fevereiro de 1962, havia uma parte de aula prática, de campo.Como treinamento e pesquisa de campo eu tive que acompanhar o Roberto DaMatta.Essa foi minha formação em Antropologia. Depois, no ano seguinte, aliás, em 1962,o Roberto já tinha dois projetos em desenvolvimento, um era o Projeto de “fricçãointerétnica” e o outro era um estudo comparativo das organizações sociais indígenasno Brasil. Ele tinha incluído os Krahó nos dois projetos e me designou para fazer apesquisa com eles. Eu fui e continuei como estagiário do Museu Nacional.

Esta pesquisa teve seis visitas aos Krahó, num total de 15 meses talvez,sendo que a última visita foi em 1981, e estas visitas aos Krahó resultaram no livroÍndios e criadores (1967), que é sobre contato interétnico, e no livro, que não estavaplanejado, cuja idéia nasceu na própria pesquisa de campo onde eu vim tomar

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conhecimento de um movimento messiânico lá entre os Krahó mesmo, e que nãoera conhecido fora dos meios indígenas, pois passou despercebido. Então, eu escreviO messianismo Krahó, escrevi a tese, me inscrevi para fazer a tese em São Paulo, na USP.Fiz a tese e depois eu peguei uma parte e desenvolvi num livro, Ritos de uma triboTimbira, e simultaneamente escrevi um livro de divulgação, Índios do Brasil, livro peloqual eu sou mais conhecido, porque os outros não tiveram grande sucesso editorial,por motivos vários.

Lenita – O que o levou a trabalhar com os indígenas?

Melatti – Bom, eu nunca tive interesse em muita coisa, pois eu sempre andeiempurrado. Meu pai tinha uma brincadeira, que dizia “por que cachorro entra naigreja?”, resposta: “porque encontra a porta aberta” [risos]. Eu entrei na Antropologiaporque encontrei a porta aberta, já que não havia muita resistência, os exames erampouco concorridos. Quando eu acabei o ginásio, o colégio lançou um curso clássicoe outro cientifico e eu fiz. Então, eu tenho o clássico e o cientifico. Assim que euacabei o clássico, o colégio fechou esse curso, pois não tinha muitos alunos. Eu

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Notas da história da Antropologia no Brasil

acabei o curso superior, a minha professora indicou um curso de Antropologia, e euque não estava muito satisfeito com aquelas aulas no ginásio e no científico, eu jáestava no último ano da universidade, aí eu resolvi fazer e fiz. Quando eu acabei ocurso, o Roberto Cardoso tinha um projeto para o estudo das relações interétnicase organização social, eu entrei. Então, não partiu de nenhuma paixão pela Antropologia.

“Os Krahó para mim deram duas dicaspelo menos para eu ir para frente. Então eu fui, as portas

foram se abrindo e eu fuipassando, até eu terminar Krahó”

Eu fui encontrando a porta aberta e fui passando. Acho que esta foi aexperiência que explica o porque da Antropologia. Eu fui me acostumando, fui meinteressando e até na própria pesquisa de campo os índios foram me abrindo portasque eu não suspeitava. No meu primeiro trabalho, por exemplo, talvez este sejaainda meu melhor trabalho, o primeiro trabalho que escrevi sobre a cura foi resultadode uma conversa com um Krahó. Ele me falou o que era um pajé, e eu falei :“Como é que você aprendeu a ser pajé?”, ele disse que foi um gavião que ensinou, aíeu pensei que ele tinha entrado em contato com os índios Gavião, mas ele disse quenão, pois tinha sido a ave gavião. Aí eu perguntei: “Mas, como assim, foram osgaviões que ensinaram a Turkem, o herói mítico?” Pois é, está no mito Turkem, oherói mítico que foi levado pelos urubus aos céus, ele aprendeu o xamanismo comos gaviões. Bom, então eu comecei a perguntar aos outros como eles tinham aprendidoa ser pajés, lá eles usam a palavra curador, ou a palavra indígena wai. Com isso, junteiuma serie de casos e na Reunião de Antropologia, realizada em São Paulo em 1963,eu apresentei este trabalho como comunicação, se eu não me engano é o melhortrabalho que eu tenho, foi o primeiro, eu tinha 25 anos. Depois, os próprios Krahóme abriram uma outra porta que foi para o messianismo, pois eu tinha ganhado umnome Krahó. É costume Krahó nomear pessoas que eles simpatizam. Então, euganhei um nome Krahó, e quem me deu o nome foi o José Nogueira, um líder domovimento messiânico Krahó. Um dia, um Krahó brincando comigo me disse:”Vocêé maluco, você é maluco”. Eu perguntei: “Mas por que eu sou maluco?” Ele disse:“Seu tio (meu tio é aquele que me deu o nome) também é maluco, se seu tio émaluco você também é maluco”. Perguntei: “Mas, por que ele é maluco?” Ele

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respondeu: “É porque um dia ele mandou a gente amarrar a boca de todos oscachorros da aldeia”. Perguntei novamente: “E vocês amarraram?” Ele disse:“Amarramos”. Eu disse: “Bem, ele é maluco! Mas por que vocês amarraram?” Elerespondeu: “Porque ele queria falar com a chuva, e a chuva só queria falar com ele seos cachorros não latissem”. Ele foi aos poucos dando as pistas para o movimentomessiânico que tinha ocorrido e eu fui fazendo perguntas a outros, juntandofragmentos aqui e ali até que juntei um material que deu para escrever esse livrosobre o messianismo Krahó. Os Krahó para mim deram duas dicas pelo menospara eu ir para frente. Então eu fui, as portas foram se abrindo e eu fui passando, atéeu terminar Krahó.

Depois eu fiz defesa de tese em 1970 na Universidade de São Paulo, ondeeu também não precisei fazer nenhum curso, pois era no antigo regime da USP, apessoa se inscrevia no doutorado e o secretário da faculdade recomendava nãoentregar a tese antes de dois anos, só que tinha um detalhe, como eu não tinha omestrado, pois tinha feito uma especialização no Museu Nacional, eu tinha quesubstituir o mestrado por duas teses subsidiárias. Então, as teses subsidiárias que euapresentei foram os Índios e criadores, que eu estava escrevendo, eu apresentei e foiexaminada pelo Florestan Fernandes, não havia banca e as teses subsidiárias recebiama nota do examinador apenas. O messianismo Krahó foi examinada pela Maria IsauraPereira de Queiroz, ela também deu nota. Depois essas notas entraram na médiafinal com a defesa da tese, que eu fiz em 1970. Na defesa da tese participaram meuorientador, João Batista Borges Pereira, Egon Schaden, David Malbury-Lewis, quena época estava no Brasil, era da Universidade de Harvard e também diretor doprojeto de Harvard do qual eu estava participando, Luis Pereira, professor deSociologia e Rui Coelho, da Antropologia. Foi essa minha defesa.

Terminada a pesquisa com os Krahó, na verdade a pesquisa não termina, agente pára, pois eu poderia continuar indefinidamente, e neste ponto eu até lamentonão ter continuado, mas, terminada essa fase Krahó eu comecei a fase Marubo, jáem 1974. Mais uma vez partiu de Roberto Cardoso de Oliveira. Não havia projeto,mas ele fez pesquisa com os Ticuna, acho que foi em 1959 a primeira vez que ele foi,voltando em 1963. Entre os Ticuna, no posto do Umariaçu, estavam hospedadosquatro índios Marubo, ele gostou muito dos Marubo e quando chegou ao Rioperguntou: “Por que você não faz uma pesquisa com os Marubo?” Aí eu fui fazer a

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pesquisa com os Marubo [risos]. Eu tinha casado e minha mulher à época, DelvairMontagner, me acompanhou. Ela já tinha feito uma dissertação de mestrado naUSP sobre os índios Kaigang de São Paulo e me acompanhou. Nós fomos a primeiravez em 1974/1975 e depois voltamos em 1978 e depois mais uma pesquisa em1982/1983. Bom, eu parei em 1983, ela continuou por mais tempo e fez a sua tesede doutorado sobre a religião dos Marubo. Eu não fiz nenhum livro sobre osMarubo, escrevi apenas três artigos e aproveitando essa viagem entre os Marubo eufui convidado por Carlos Alberto Ricardo do Instituto Socioambiental-ISA, antesCentro Ecumênico de Documentação – CEDI, que estava começando uma coleçãode 18 volumes divididos em áreas sobre informações de indígenas. Ele me convidoupara coordenar o volume sobre o Javari, então, aproveitando o que eu e a minhaesposa tínhamos coletado sobre os Marubo e lendo os relatórios da Funai sobre oJavari, porque não havia muita pesquisa naquela região nessa época, tomandoinformação com um pesquisador aqui e outro ali eu redigi o volume Javari. Bem,foi uma coleção que não foi para frente, saíram uns três volumes só e nãocontinuou mais.

Depois dessa pesquisa com os Marubo eu não fui mais fazer trabalho decampo. Então desde 1983 até 2006, faz 23 anos que eu não fui mais fazer campo,fiquei trabalhando em pesquisa de gabinete e trabalhando na universidade. Emdeterminado momento eu tentei fazer um Atlas histórico da América do Sul, mas aspessoas que iam me ajudar, não apareceram... Aí comecei a perceber que os tempostinham mudado. No meu tempo, quando estava no Museu Nacional, havia estudantesdo Rio de Janeiro que compareciam para trabalhar de graça no Museu, ou entãocomo estagiários. Era para estudar, não tinham que trabalhar, não tinham bolsa, nãotinham nada. Gilberto Velho foi um deles, Roberto DaMatta antes de fazer seucurso de especialização no Museu também foi um deles e, se não me engano aAlcida Ramos também. Eu me lembro de um professor da Federal Fluminense,hoje já aposentado, Wagner Neves Rocha, ele ia ao Museu e além dele tinha outros.Mas eu comecei a perceber que os meus alunos da UnB, para trabalharem nesseAtlas, eles queriam bolsa e nós cavamos as bolsas pra lá e pra cá, mas essas bolsasnão saíram e por isso o Atlas não saiu. Eu, mais adiante, resolvi trabalhar sozinhonestas áreas etnográficas da América do Sul e fui fazendo devagarzinho ao longo dotempo. É mais ou menos esse o meu caminho.

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Davi Avelino – Professor, a sua trajetória marca, de certa forma, a própria trajetóriada Antropologia brasileira. Como o senhor avalia as transformações da Antropologiano Brasil nas últimas décadas?

Melatti – Não sei se o meu caminho é o caminho típico, mas, enfim, eu acho quemuitos começaram assim, começaram como estagiários em instituições de pesquisa,numa época em que a pesquisa era separada do ensino, pois na universidade seensinava e nos museus, Museu Nacional do Rio de Janeiro, Museu Goeldi no Pará,Museu Paulista, Museu Paranaense etc, aí se fazia pesquisa. Bom, é diferente, numaépoca em que a Antropologia está associada aos museus, embora só fisicamente,mas nos museus a Antropologia cultural ou social está ao lado da Arqueologia e daAntropologia biológica, embora eu ache que mesmo naquela época os especialistasjá se ignoravam. Eles até conversavam mas um não se interessava pelo trabalho dooutro, pois era muito raro fazerem alguma pesquisa juntos, se bem que havia pessoascomo Luis de Castro Faria que tinha trabalhado em Arqueologia, tinha trabalhadoem Antropologia biológica e também em Antropologia cultural. Havia também aLingüística que funcionava nesses museus.

No Museu Nacional havia esses quatro campos. Na Antropologia Culturalnão havia muito intercâmbio com essas outras áreas, talvez um pouco com aLingüística, pois a Ivone Leite nos dava um treinamento em Lingüística para trabalhode campo, mas nas outras, não. Ao passar para a universidade, a Antropologia culturale social passou a conviver mais com a Sociologia do que com a Antropologiabiológica, esta continuou, como nos museus, na área de Biologia das universidades,já em departamentos separados. A Lingüística foi para o Departamento de Letras, aAntropologia biológica para o Departamento de Biologia, a Antropologia Socialpara o Departamento de Ciências Sociais e a Arqueologia, bem, a Arqueologia ficou,na dança das cadeiras, sem cadeira. A Arqueologia ficou como área de concentraçãoem Antropologia.

Em alguns lugares, como na USP, tem área de concentração em Arqueologiae parece que em Pernambuco a Arqueologia faz parte de um departamento separadoda Antropologia. Bom, ela ficou assim sem lugar, mas é curioso porque, segundoLuis de Castro Faria, não há nenhuma diferença entre Arqueologia e Antropologia/Etnologia, é mais uma questão de método, pois elas lidam com sociedadeshumanas, só que uma lida com sociedades humanas que estão aí, vivas e

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funcionando, e a outra estuda sociedades do passado que só deixaram vestígiosmateriais. É uma outra metodologia, mas a teoria é a mesma, mas parece queisso não é levado muito a sério.

Davi – O senhor chegou a aprender alguma língua indígena? Krahó, por exemplo.

Melatti – Eu sou muito ruim para aprender língua indígena, eu só aprendiarudimentos, não passava disso. Talvez se eu tivesse mais paciência eu teria aprendidoKrahó, mas não aprendi. Marubo também não aprendi. São línguas bem diferentes,Krahó tem um grande número de vogais, sendo que só de vogais orais tem quasedez, fora as nasais. Já os Marubo só têm quatro, então o Marubo parece mais fácilque Krahó, mas eu não acabei aprendendo porque os índios falavam português. Euacho que mesmo assim temos que aprender, isso é uma coisa que talvez os etnólogosbrasileiros da atualidade têm tomado mais a capricho, aprender línguas indígenas,principalmente a língua indígena do grupo que ele trabalha. Então, eu conheço váriosetnólogos recentes, mais novos que eu, provenientes já dos cursos de pós-graduação,que falam, ou pelo menos entendem e estão mais a par das línguas indígenas. Osantropólogos mais antigos que eu, brasileiros, e os da minha geração talvez, nãoaprenderam as línguas indígenas. Por outro lado, os antropólogos estrangeiros norte-americanos, os franceses ou ingleses que vinham para o Brasil, naquela época, jáaprendiam. É uma tradição que talvez tenha começado com Malinowski entre osanos de 1914 a 1918 e que só veio pegar no Brasil lá pela década de 1970, de certamaneira nós perdemos com isso.

“Eu não pretendo fazer nenhuma reconstituiçãohistórica a partir de traços culturais, esse meu recurso

a áreas tem finalidade didática”

Davi – Entrando um pouco neste trabalho que o senhor vem desenvolvendo nosúltimos anos, como a Antropologia brasileira tem encarado o seu trabalho comáreas etnográficas, que visa uma compreensão mais ampla dos povos indígenas daAmérica do Sul?

Melatti – Bom, em primeiro lugar eu gostaria de alertar que esta questão de áreasetnográficas não pretende ser nenhuma contribuição teórica à Antropologia. As áreassão uma preocupação do passado da Antropologia. Nos já vimos os antropólogos

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difusionistas trabalharem com círculos culturais, depois antropólogos que tambémtinham a difusão como importante, pois pretendiam levantar uma teoria geral daexpansão das culturas humanas, mas não se limitavam a regiões. Há ainda osantropólogos americanos que trabalharam com áreas também na tentativa de fazercerta reconstituição histórica a partir da distribuição dos traços culturais.

Eu não pretendo fazer nenhuma reconstituição histórica a partir de traçosculturais, esse meu recurso a áreas tem finalidade didática. Sua história é a seguinte: omeu único livro que deu certo foi Índios do Brasil, os outro tiveram uma divulgaçãolimitada. Índios e criadores foi editado pela UFRJ, pelo Departamento de CiênciasSociais, certamente teve uma distribuição gratuita, eu acho que a UFRJ não tinhanenhum esquema comercial. Ela fez certamente aquela distribuição de livros quesaem pelo departamento de governo, que ficam estocados em algum lugar e sãodados a quem pedir, às vezes são até negados porque os funcionários não têmautorização para distribuí-los. Então eu não sei como foi a distribuição desse Índiose criadores, eu sei que hoje eu não encontro esse livro em livraria nenhuma, não sei seele ainda existe em algum porão da UFRJ, estocado e guardado[risos]. Eu lembro oprofessor Roberto Cardoso que depois que lançou a segunda edição de Processo e aCivilização dos Terena, que saiu com o título Do índio ao bugre, encontrou lá no estoquedo Museu Nacional uma pilha do Processo e a Civilização, que estava lá dentro. Eu achoque o meu livro deve ter tido um destino mais ou menos semelhante.

Depois o Messianismo Krahó saiu por uma editora chamada Herder, que depoisganhou o nome de Editora Pedagógica Universitária (EPU), acho que hoje nemexiste mais em São Paulo. Essa editora fez também uma distribuição muito tímida,de modo que dois anos depois me comunicou que o livro não vendia nada e que iavendê-lo como papel velho. Bom, eu estava sem dinheiro e eles me ofereceram olivro por preço mais baixo, mas como eu estava sem dinheiro para comprar orestante da edição e lembrei que eles não tinham me pago os direitos autorais eupedi para que eles me pagassem pelo menos os direitos autorais e eles tiveram amiserabilidade de só me mandar os livros que correspondiam aos direitos autorais,sem me mandar o resto que eles iam vender como papel velho. Eu peguei aqueleslivros e como eu tinha um colega, que já faleceu, nós tínhamos uma revistamimeografada e então decidimos doar aos assinantes da revista um exemplar comobrinde. Foi com isso que o livro teve maior divulgação. O Índios do Brasil e o último

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livro, Ritos de uma tribo Timbira, que saiu pela Ática, uma editora séria, pagava osdireitos autorais, mandava mapas de vendas e etc. Esse livro vendia, a julgar pelosmapas de venda, ele vendia meia dúzia por semestre, meia dúzia de exemplares, edepois de 18 anos a Ática disse que ainda tinha livros no estoque, que não queriamais manter contato, então ela ia desfazer o contrato e me oferecia para eu compraros livros, senão ela ia vender o restante como papel velho. Eu pedi humildementeque eles me doassem o restante da edição e eles me doaram uns 500 exemplares[risos] que eu em parte deixei lá no ISA, para eles distribuírem como brinde paraquem comprasse. A outra parte eu trouxe para Brasília e distribui entre os alunos quequisessem ter, então eu fiz essa distribuição. Bem, aí eu pensei, o único livro quevendeu e as pessoas só perguntam por ele, e pelos outros não, é Índios do Brasil. Euacho que a minha vocação é a divulgação, mas Índios do Brasil ficou um livro velhocom o tempo e para não escrever o livro de novo resolvi fazer um outro. Para meanimar a fazer o outro resolvi ministrar este curso e resolvi também que o livro nãodevia ser mais por tópicos: parentesco, economia, religião, arte etc. Mas queria fazerum livro por áreas, por isso que o curso é sobre áreas, mas as áreas aí são apenas umrecurso didático e não tem nenhum alcance teórico maior, é apenas para dividir dealguma maneira grupos que tenham algo parecido, uma história semelhante, ouestejam articulados de alguma maneira, já que eu não posso tratar nesse curso grupopor grupo, pois seria excessivamente longo, então juntá-los de alguma maneira é arazão das áreas. Essas são áreas, como eu já disse logo na introdução, que possuemalto grau de arbitrariedade, pois eu posso traçar essas áreas, usando ou dando outropeso aos critérios, de uma ou de outra maneira.

Davi – Como o senhor avalia a relação entre Estado nacional e as populaçõesindígenas, tendo em vista que já há algumas décadas os povos indígenas vêm seorganizando fortemente e lutando pela sua autodeterminação.

Melatti – Creio que teve uma virada nestas relações a partir dos anos setenta, porque,quando eu comecei na Antropologia, eu ainda comecei no tempo do Serviço deProteção aos Índios (SPI), que estava no seu final e o posto Krahó, por exemplo,estava em completo abandono. Lá tinha um encarregado do posto mas ele nãotinha o que fazer, havia uns funcionários braçais que faziam uma roça para o posto,para consumo do próprio posto. Havia dois vaqueiros que tomavam conta de 700cabeças de gado, que era para o posto, caso os índios quisessem comer carne eles

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tinham que roubar do posto, então dificilmente era dado uma cabeça de gado a eles.Atendimento médico nenhum, de enfermagem também não.

“[No governo militar] tudo era censurado, mas se podia falarde índio e os índios podiam falar, porque para eles índio não tinha

importância nenhuma, não era perigoso, não era nada”

O que eu vi ao chegar ao posto foi um grande vidro desses de guardarbombons de boteco cheio de bolinhas verdes, elas pareciam bolinhas de gude, maseram macias, eram remédios contra os vermes. Eles tinham que ter uma porção decuidados para poder tomar um remédio daqueles. Bom, era um lugar que não tinhanada, os índios ficavam doentes, morriam, também não tinha uma viatura para tirareles dali e acredito que o que acontecia com os Krahó, acontecia em outros lugarestambém. Eu mesmo fiquei na casa da escola da aldeia, que os índios me deram paraeu ficar lá. No entanto, a casa da escola era de pau-a-pique mal feito, já quase caindo,uma janelinha de meio metro, a porta coberta de palha e não tinha nada, não tinhacarteira, não tinha mesa, o chão era batido e foi lá onde eu amarrei minha rede.Durante minha pesquisa de campo nunca apareceu nenhum professor para dar aula,havia só a história que fulano foi professor aqui, ficou três meses e desistiu, fulano háuns tempos atrás foi professor mas desistiu... Tinha três Krahó que sabiam escrevere era isso e mais nada. As coisas foram mudando e talvez, não sei se até a contragostodo governo militar, mas no tempo do governo militar é que as coisas foram mudando.Primeiro, porque tudo era censurado, mas se podia falar de índio e os índios podiamfalar, porque para eles índio não tinha importância nenhuma, não era perigoso, nãoera nada. Então as reivindicações indígenas eram toleradas e também os própriosintelectuais podiam falar mais livremente com relação a índios do que com relação aoperários, por exemplo, pois aí a censura e a repressão batiam em cima. Parece queo movimento foi ganhando força e encontrando uma porta aberta por aí, e depoisveio também a iniciativa da Igreja, no sentido de apoiar as Assembléias Indígenas, aprópria Antropologia teve uma iniciativa que não era um movimento só local,brasileiro. Na verdade, era um movimento internacional, houve no começo dosanos setenta a chamada reunião de Barbados, em que várias instituições e antropólogosse reuniram e fizeram uma crítica das políticas indigenistas no país, uma crítica das

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instituições. Isto está relacionado também aos índios norte americanos nesta época,com o chamado Red power. Então, era uma movimentação geral a partir daí.

Bem, de certa maneira, o que havia de proposta no passado de ambas, naAntropologia Aplicada e na Igreja, eram projetos para atender as populações indígenas,mas no Brasil não teve muito resultado, passou a ter um outro rumo e os antropólogospassaram a assessores dos movimentos indígenas, ou seja, eles já não tinham a direçãodesses projetos, pois havia movimentos indígenas que naturalmente precisavam lidarcom uma série de instituições, as quais eles não sabiam lidar, precisavam de umassessor, e assim os antropólogos se colocaram como assessores desses movimentos.Neste cenário vão surgindo as ONGs que dão apoio aos indígenas, e as coisascomeçam a se modificar a partir daí. Me parece que até as próprias melhoras nascomunicações, as novas estradas, as comunicações telefônicas, tudo isso começouem um tempo em que para fazer uma ligação interurbana a gente tinha que telefonar,discar 01, falar com a telefonista, isso para uma cidade próxima, a telefonista anotavao número, pedia para aguardar e retornava quando a ligação estivesse pronta. Então,ela procurava fazer a ligação e depois retornava. Às vezes, a gente esperava horas. Sea ligação não fosse para uma das cidades maiores, você esperava horas para fazeruma ligação dessas. Só depois que eu me instalei em Brasília, isso nos anos setenta,foi que se instalou o sistema DDD de discagem direta e não foi instalado em toda acidade. Então, essas ligações telefônicas e as estradas também facilitaram aos índiosrecorrer, pois se há um índio doente pode-se usar um telefone, tem uma estrada,pode-se colocar o doente em busca de socorro, é aí que se dá a virada.

Aquele reparo que se faz ao Darcy Ribeiro de que ele não foi muito otimistacom relação às sociedades indígenas, eu acho que tem uma razão de ser, pois realmenteo futuro estava obscuro na época e acho que foi a partir, não sei se isso é generalizávelpara todo o Brasil, mas no Brasil Central foi mais ou menos a partir dos anoscinqüenta e sessenta que as populações indígenas deixaram de descer para começara ascender. No Xingu começou nos anos sessenta, embora eles tenham começado ater atendimento médico depois que se instalou o campo da FAB lá no Xingu. Começoua chegar médicos e darem um atendimento. Em meados dos anos sessenta houveum surto, uma moléstia qualquer, que acabou com muitos índios, e só depois dosanos sessenta é que a população xinguana começou a subir. Os Apinayé chegaramao mínimo dos mínimos: de 1.930 pessoas, eles eram 128. Os Suruí do Tocantins,

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Julio Cezar Melatti

eu fui visitá-los em 1961, eles também estavam lá embaixo, eram 40 e poucos eos homens eram o dobro do número de mulheres e todos esses grupos voltarama subir.

A melhora nas comunicações, estradas, o movimento indígena, o apoiomaior das missões, da Antropologia, tudo isso se conta a partir mais ou menos dadécada de setenta pra cá. Bom, eu acho que isso tem dado o seu resultado.

Lenita – Como é que o senhor percebe, dentro dessa mesma abordagem, a atitudede antigamente o pesquisador é que ia lá fazer seu trabalho de campo, agora oindígena vem para a cidade e encara uma universidade. Como o senhor vê essemovimento?

“...não vai acabar o antropólogo branco, ele não vai seextinguir, mas vai ter que ficar ao lado do antropólogo indígena, que,inclusive, tem um conhecimento muito mais aprofundado da cultura,

da própria língua indígena, mas também não quer dizerque o antropólogo indígena

tenha que estudar seu próprio grupo... ”

Melatti – Isso tende a se acentuar cada vez mais, pois hoje o próprio antropólogotem que ver a seu lado os indígenas que estão fazendo curso universitário e fazendopesquisa também. Então, quando eu escrevi os meus trabalhos eu não contava queos próprios índios, que eram “objeto” daquele estudo, viessem a ler estes trabalhos.No entanto, hoje eu já recebo pedidos dos meus trabalhos para eles lerem, porqueisso aí é uma coisa nova e acredito que no futuro vai continuar assim, não vai acabaro antropólogo branco, ele não vai se extinguir, mas vai ter que ficar ao lado doantropólogo indígena, que, inclusive, tem um conhecimento muito mais aprofundadoda cultura, da própria língua indígena e que também não quer dizer que o antropólogoindígena tenha que estudar seu próprio grupo, porque há uma tendência naAntropologia que está sendo corrigida, que é, por exemplo, mulher tem que estudarmulher, os estudos de gênero são feitos por mulheres, então mulher estuda mulher,homossexual estuda homossexual e assim por diante. Então, indígena não tem queestudar indígena, ele pode estudar arte, o indígena Tukano pode estudar Krahó...Tem uma coisa interessante nesses vídeos nas aldeias, esses vídeos que eu estou

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Notas da história da Antropologia no Brasil

mostrando aqui. Tem um, “Eu já fui seu irmão”, focalizando uma visita que osíndios Gavião do Pará fazem aos índios Krahó do Tocantins e depois os Krahó doTocantins vão visitar os Gavião do Pará. Eu não sei quem faz a visita primeiro, masdeve ser os Gavião, porque eu ouvi dizer que os Gavião tinham um programa devisitas a todos os outros Timbira, pois eles são Timbira e vão visitar todos os outrosTimbira para conhecê-los. Isso é curioso porque os Gavião hoje são alfabetizados,têm dinheiro, administram a própria extração da castanha, também recebem umaindenização da estrada de ferro, da Eletronorte, que passa pela área indígena. Então,são os Timbira ricos, os Gavião. Eu conversei com os Krahó em 1972, converseicom um Krahó que tinha estado em frente de atração para lidar com os Gavião,pelo contato, porque Krahó fala a mesma língua dos Gavião e o Krahó com todosos preconceitos dos brancos contra os Gavião, chamava eles de brutos e tudo omais, e hoje provavelmente os Gavião estejam em situação melhor do que os Krahó.

Davi – E sobre as organizações indígenas, como a COIAB, a COIAM, a FOIRN...

Melatti – Hoje nós temos varias situações. Não sei falar de COIAB estritamente ede nenhuma dessas organizações maiores da Amazônia, eu não lido com elas, masacredito que haja uma diferença entre essas organizações grandes e que têm a tendênciaa serem permanentes, assim como há uma série de associações pequenas, criadas emfunção de um projeto, parece que há quase uma indústria de projetos e que se criauma associação para se ter acesso a uma verba de um projeto e quando esse projetotermina, a associação não termina formalmente, mas ela decai e acaba naturalmente.Luis Donisete Benzi Grupioni fez um levantamento das associações e lá tem umasduas ou três centenas de organizações indígenas no Brasil, desde as maiores até essaspequenas que vivem em função dos projetos e que decaem. Então nos temos essetipo de liderança indígena através das associações e acredito que essas associaçõesmaiores são importantes, mas as menores são associações precárias. Temos tambémdois tipos de lideres indígenas, temos os nacionais que representam uma região,representam uma associação e que normalmente se dirigem a Brasília, têm acesso aoexterior e tudo o mais, e temos um outro tipo de líder, que não sei se também tema mesma atenção, que é o índio que se candidata no seu município, às vezes chega avice prefeito ou até a prefeito. Dificilmente eles chegam a deputado estadual emqualquer estado.. Bom, o único que chegou a deputado federal foi o Juruna Xavantedo Mato Grosso, eleito pelo Rio de Janeiro. Eu não sei até que ponto o Juruna foi

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Julio Cezar Melatti

eleito como algo exótico, porque não houve outro líder indígena que conseguiu sereleito depois. Mas há um certo número, não só no sul, de indígenas que estão nascâmaras de vereadores e, eventualmente, também nas prefeituras. Nós temos,portanto, esses líderes mais locais de um lado e os líderes mais nacionais do outro.

Lenita e Davi – Professor, nós lhe agradecemos esta entrevista, foi um prazer teressa conversa com o senhor.

Melatti – Eu é que agradeço.

Resenha

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CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de (Org.) (2007). Arquitetura da memória: ensaiossobre os romances Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte.Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas; Uninorte.

Marcos Frederico Krüger Aleixo*

A Editora da Universidade do Amazonas – Edua vem procedendo aolançamento de uma coleção sobre artistas amazonenses, pelo que Enéas Valle e ZécaNazaré já tiveram livros organizados em sua homenagem. No terceiro volume dasérie, editado em parceria, o homenageado não foi um artista plástico, mas MiltonHatoum, escritor internacionalmente conhecido e premiado, graças a três primorososromances: Relato de um certo Oriente (de 1989), Dois irmãos (de 2000) e Cinzas do Norte(de 2005).

Intitula-se Arquitetura da memória o livro que homenageia o artista e foiorganizado por Maria da Luz Pinheiro de Cristo, ex-aluna do curso de Letras daUfam e doutora pela Universidade de São Paulo.

A organizadora resistiu à tentação do livro colorido e o que se vê são páginase ilustrações em preto, cinza e branco, mais de acordo com a recuperação da memória,técnica que caracteriza os livros do escritor. A memória, em sentido metafórico, ésempre envolta em névoas, posto a imprecisão de que se reveste e as deformaçõesque sofre.

O livro se estrutura em três partes. A primeira funciona como pórtico e nelaconstam a “Introdução”, feita pela organizadora, um “Perfil Milton Hatoum”, que

* Doutor em Literaturas de Língua Por tuguesa. Professor aposentado do Depar tamento de Língua e Literatura Portuguesae do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas. Professor daUniversidade do Estado do Amazonas – UEA. E-mail: [email protected].

Visões sobre a obra de Hatoum

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Visões sobre a obra de Hatoum

são informações biográficas escritas (felizmente!) sem rigidez cronológica, e umaentrevista com o homenageado, constante da revista Magma, da USP, mas sobre aqual não se informam nem o número da edição nem a data em que foi publicada.

Na segunda parte, alinha-se o corpo principal do trabalho: 28 estudosreflexivos sobre a produção de Milton Hatoum, formado por algumas resenhase ensaios comparativos mais extensos, os quais abordam múltiplos aspectos daarquitetura literária por ele elaborada. Infelizmente, sobre alguns artigos nãoconsta a informação que seria esperada: onde foram publicados originalmenteou se foram escritos especialmente para a obra de homenagem, como parece ser,muitas vezes, o caso.

Encontram-se na parte final detalhes técnicos como as referênciasbibliográficas e as principais publicações de Hatoum. E, embora no subtítulo seobserve o romance Cinzas do Norte, ele não está na relação das obras do artista nemhá estudos que a ele se reportem. Constata-se, portanto, com esse fato, uma lamentávelfalha de organização.

Numa resenha como esta, cumpre selecionar o que é relevante expor, dadaa impossibilidade de nos referirmos a todas as concepções dos ensaístas ou fazermosum resumo de cada texto. Sem dúvida, ressaltar a entrevista do autor é imprescindível,pelas revelações que contém sobre suas concepções e método de trabalho. Dentreos estudos, sem entrar em qualquer julgamento do mérito que porventura apresentem,vamos destacar os que se referem a três aspectos que revestem a obra de Hatoum:o regionalismo, a construção do narrador e as relações com o mito.

Sobre a entrevista

A “Entrevista com Milton Hatoum”, que serve de pórtico para as quase trêsdezenas de ensaios sobre a sua obra, fornece ao leitor revelações relevantes sobre ométodo de trabalho e concepções de mundo do escritor.

À pergunta óbvia de sempre, sobre a função social da literatura, Hatoumadmite essa arte como “uma maneira enviesada ou indireta de conhecimento domundo, de nós mesmos e do Outro”. Na seqüência da resposta, faz uma declaraçãoacertada, mas que pode se tornar polêmica em relação a radicais da política. “Nãogosto da literatura de denúncia, um duplo empobrecido de uma boa reportagem”.Isso em que pese a sua preocupação com as condições de existência dos pobres, o

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Marcos Frederico Krüger Aleixo

que o fez abandonar um projeto de construção de casas populares, em que trabalhavaquando de seu retorno a Manaus.

Como freqüentador de cursos de literatura e teoria literária, à época em queestudava arquitetura, e como professor de língua e literatura francesa, não escamoteiaas suas influências, pois sabe que as obras literárias dialogam entre si, se recriam.Nesse aspecto, torna-se impossível não declarar a evidente influência de Machadode Assis com o romance Esaú e Jacó, nem as menos óbvias relações com As mil e umanoites. Uma recriação surpreendente, para um escritor memorialista, é a influência deGustave Flaubert, que se patenteia, na confissão do autor, através do conto “Umcoração simples”. Hatoum cita, num rasgo de sinceridade, o estudo de Samuel TitanJr., com quem traduziu três contos do realista francês, sobre “traços da personagemDomingas inspirados diretamente da Félicité”, personagem do conto acimamencionado.

Finalmente, o escritor revela seu método de trabalho, dizendo que é “bemmais disciplinado na leitura”, pois “na escrita isso é mais complicado”. Embora oestudo de uma obra literária possa prescindir de informações biográficas, nolivro que homenageia Milton Hatoum tais aspectos se tornam indispensáveis,já que completam o quadro em que de modo inevitável se dividem o autorempírico e o narrador.

A cor local

Uma outra questão debatida é a do regionalismo, característica presente noslivros de Hatoum. Essa, aliás, é uma das “acusações” que se faz a seus romances,como se a chamada “cor local” fosse um mal em si mesmo. Particularmente,acreditamos que o regionalismo é um preconceito, uma visão colonialista de quemestá no “centro” e considera “exótica” a vida das periferias. Embora nenhumarticulista coloque o problema nesses termos, vale a pena considerar algumasreflexões feitas a respeito.

Tânia Pellegrini, em “Milton Hatoum e o regionalismo revisitado”, faz umabusca histórica do significado dessa tendência na literatura brasileira, para concluirque o artista amazonense a revitalizou através da observação e da memória. Mediante aobservação, mantém a questão da fidelidade ao factual, o que caracteriza oregionalismo tradicional; graças à memória, reelabora a realidade. Com isso, criou,

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Visões sobre a obra de Hatoum

por exemplo, duas cidades de Manaus: uma verdadeira, outra expressiva dosubjetivismo interior dos narradores.

A comparação entre Hatoum e Márcio Souza, outro escritor amazonense, setorna inevitável. Tânia Pellegrini, porém, marca bem as diferenças entre os artistas:Márcio é mais histórico; Hatoum, mais memorialista. Tais traços são suficientes paramarcar a diferença entre o produto final de seus escritos.

Inevitável fez-se também a comparação com Graciliano Ramos e GuimarãesRosa, autores cujo suposto regionalismo foi desculpado em face da “visão maiscrítica das relações sociais”, no caso do primeiro, e pela subversão da linguagempara expressar um sertão “mitopoético”, em relação ao segundo.

Em “A prosa sedutora de Hatoum”, Lourival Holanda, como outrosensaístas, compara Hatoum a Raduan Nassar, outro escritor brasileiro a trabalharcomo migrantes libaneses. Assim como Pellegrini, salienta que o regionalismo doamazonense tem a sustentá-lo o lado estético, pois ele “é filho de uma outratemporalidade e sua sensibilidade está mais antenada com um mundo sem margens– ainda que bem ancorado entre o Negro e o Solimões – e o brilhantismo verbal”.Também a comparação com Márcio Souza se torna inevitável: Holanda diz que oautor de Mad Maria se expressa através de um “realismo feroz”, enquanto Hatoumé dotado de um “furor frio”.

Nesse texto, encontramos também a comparação com Graciliano Ramos– espécie de paradigma da literatura dita regionalista. Nesse instante, o ensaísta salientacom propriedade as semelhanças entre Sinha Vitória, de Vidas secas, com AnastáciaSocorro, personagem secundária do Relato de um certo Oriente, já que ambas “precisamfalar, precisam dizer-se para sentirem-se”.

Leyla Perrone-Moisés, na resenha “A Cidade flutuante”, publicada logo apóso lançamento de Dois irmãos, defende Hatoum da pecha de ser meramente regionalistae resume com precisão a questão, inclusive concordando implicitamente com a maneiracomo vemos, particularmente, esse problema. Diz Leyla que Milton “não pode serrotulado de exótico porque só o é para um olhar de fora, e não para quem, sendoparte dele, o vê sem idealização, com melancólica lucidez”. Perfeita a colocação quefaz a articulista. Mais adiante, faz uma pequena ressalva ao romance (a única em todaa Arquitetura da memória), dizendo que, “no fim do livro o andamento da tramacomeça a girar em círculo, com idas e vindas das personagens”. Essa observaçãonos parece improcedente.

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Marcos Frederico Krüger Aleixo

A construção dos narradores

A construção dos narradores, técnica que alicerça os três romances deHatoum, é assunto quase sempre enfatizado pelos críticos. Constituindo-se em assuntoexclusivo de alguns textos, permeia com maior ou menor intensidade os ensaiospostos à disposição do leitor na obra que o homenageia.

No estudo “Relatos de uma cicatriz”, Maria da Luz Pinheiro de Cristorefere-se aos narradores dos dois romances iniciais de Milton. Organizadora dolivro e possuidora dos manuscritos do escritor, especula sobre a importância dessesdocumentos e indaga: até que ponto “podem contribuir para a compreensão daconstrução de Nael?” Salienta, com esse tópico, a chamada Crítica Genética.

Há cerca de três ou quatro anos proferimos palestra sobre Dois irmãos emuma Semana de Letras, evento periodicamente organizado na Universidade Federaldo Amazonas. O texto, inserido no livro organizado por Maria da Luz sob o títulode “O Mito de origem em Dois irmãos”, conserva o tom coloquial da palestra, bemcomo os desenhos que, na ocasião, ilustraram nosso discurso. Analisamos ali as técnicasque levaram à construção de Nael: o autor empírico Milton Hatoum constrói umnarrador que, por sua vez, constrói um romance com base na memória e eminformações de terceiros. À técnica utilizada chamamos, por motivos explicitadosno texto, de narrativa em afluência. Finalizamos comparando o desconhecimento dapaternidade de Nael com o estudo que Claude Lévi-Strauss fez do mito de Édipo,que também não sabia quem era seu pai (apenas julgava saber). Estendemos o dilemade Nael a toda a sociedade amazonense, cuja identidade é problemática, em face datransculturação que a caracteriza, graças à mistura de povos que aqui se fixaram.

Relações com os mitos

A questão mitológica, por nós esboçada na palestra supramencionada, ébem explorada no ensaio de Ana Amélia Andrade Guerra, intitulado “O mito e olugar em Dois irmãos”. Inicialmente, considera-se, nesse texto, que o segundo romancede Hatoum constitui uma tragédia moderna. Na Grécia antiga, a cidade se organizavade modo coletivo, era “desinvidualizante”, e é isso que caracteriza a Manaus deHatoum, quando, por exemplo, da perseguição movida a Omar. Ainda no planomítico, a articulista explora a perene contradição entre o apolíneo e o dionisíaco.

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Visões sobre a obra de Hatoum

Yakub, o gêmeo engenheiro, é Apolo, enquanto o desorganizado Omar representaDionísio, o deus do vinho e da orgia. Outro grande mérito desse ensaio é terpercebido que Hatoum estende a dicotomia entre os dois deuses gregos à própriacidade de Manaus. Dessa forma, a modernização da cidade, o levantar de edifícios,a instalação da Zona Franca e o apogeu do capitalismo se relacionam a Yakub e, porextensão, ao seu arquétipo grego: Apolo; quanto a Dionísio, a sobrevivência se dá“no colorido dos barcos, no rio caudaloso, nos índios e imigrantes”, em tudo, enfim,que prejudica ou atrasa os ideais positivistas de ordem e progresso que enfeitiçam acapital do Amazonas.

Benedito Nunes, conhecido e reputado crítico brasileiro, comparece emArquitetura da memória com o texto “Volta ao mito na ficção brasileira”. Inicialmente,para fins que nos pareceu didático, estabelece três surtos míticos na literatura brasileira,começando com José de Alencar, no século 19, e passando por Machado de Assis,com Esaú e Jacó, Mário de Andrade, com Macunaíma, e Clarice Lispector, com APaixão segundo G.H. Os últimos romances a recriar o mito são, segundo o ensaísta,três obras-primas: A Pedra do reino, de Ariano Suassuna, Lavoura arcaica, de RaduanNassar, e Dois irmãos, de Milton Hatoum. Mostra na análise a que procede do livrode Hatoum, dentre outros aspectos importantes, inversões levadas a efeito em relaçãoao “mito original”, que é a história dos filhos de Isaac: Esaú e Jacó. Yakub, graças àprimogenitura e à prosperidade que obtém, é comparado a Esaú; Omar, por exclusão,é Jacó. Como exemplo de inversão, podemos salientar o fato de que, no mitobíblico, é Jacó quem parte, enquanto na narrativa de Hatoum quem efetua a partidaé Yakub, primeiro para o Líbano, depois para São Paulo. O ensaio de BeneditoNunes se dignifica ainda por fazer um painel, embora resumido, da presença domito em nossa literatura e de enquadrar com precisão, nesse mosaico mítico-histórico,o romance Dois irmãos.

* * *

O livro Arquitetura da memória vai além da simples homenagem a um artistamuito admirado. Nele reúnem-se relevantes estudos, selecionados dentre a enormemassa de textos produzidos na mídia especializada e nas universidades brasileirassobre a escritura do autor enfocado: resenhas, críticas, trabalhos de conclusão decurso e iniciação científica, dissertações de Mestrado, teses de Doutorado. Torna-se,

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Marcos Frederico Krüger Aleixo

por isso, um indispensável instrumento de trabalho, posto levar à reflexão osinteressados, assim abrindo-lhes sendas e iluminando veredas, para que não se percamno “bosque da ficção” plantado por Milton Hatoum.

Documentos

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Samuel Isaac Benchimol nasceu em Manaus, em 1923, e aqui veio a falecerem 2002. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Amazonas, em 1945,com mestrado em Economia e Sociologia pela Universidade de Ohio (1947), foium dos mais destacados professores da Universidade do Amazonas, onde, além delecionar por mais de 50 anos, coordenou a Comissão de Documentação e EstudosAmazônicos – Cedeam, de 1979 a 1984, quando recuperou parte da história local,microfilmando o acervo sobre o Amazonas colonial e provincial em arquivos ebibliotecas de Portugal. Foi conselheiro de Instituto Superior de Estudos da Amazônia– IESA, membro da Academia Amazonense de Letras e Presidente do ComitêIsraelita do Amazonas, de 1975 a 1985.

Autor de dezenas de publicações, de sua extensa obra ressaltam Estruturageo-social e econômica da Amazônia, 2 v. (1966), Amazônia: um pouco-antes e além-depois (1977),Romanceiro da batalha da borracha (1992), Eretz Amazônia: os judeus na Amazônia (1998) eZênite ecológico e Nadir econômico-social (2001).

Por seus méritos intelectuais, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria eComércio Exterior instituiu, em 2004, o Prêmio Professor Samuel Benchimol, deestímulo ao desenvolvimento sustentável da Amazônia.

1 DIAS, Edineia Mascarenhas. Djalma Batista. Memória, n. 114, nov. 2002, SESC-AM.2 Livro que recentemente teve nova edição, revista, pela Editoria Valer, Manaus, 2006.

Samuel Benchimol, um intérprete da Amazônia

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Samuel Benchimol

O complexo cultural amazônico compreende um conjunto tradicional devalores, crenças, atitudes e modos de vida que delineam uma organização social eum sistema de conhecimentos, práticas e usos de recursos naturais, extraídos pelosíndios da floresta, rios, lagos, várzeas e terras firmes que estruturam a sua vidaeconômica. Essas práticas e usos foram responsáveis pelo estabelecimento originalde uma base de subsistência e de mercado, que serviu de apoio para a formação dasociedade amazônica no seu singular processo histórico-cultural.

O conhecer, o saber, o viver e o fazer na Amazônia colonial foi, assim, umprocesso predominantemente indígena. Os ameríndios que iniciaram essa ocupaçãoe os seus descendentes caboclos (do tupi caá-boc, “tirado ou procedente do mato”,segundo Teodoro Sampaio) desenvolveram as suas matrizes e os seus valores, apartir do íntimo contato com o ambiente físico e biológico. O seu ciclo de vida seadaptava às peculiaridades regionais, delas retirando os recursos materiais desubsistência e as fontes de inspiração do seu imaginário de mitos, lendas e crenças.Especiarias, drogas do sertão, ervas medicinais, madeiras, óleos, essências, frutos,animais, pássaros, bichos de casco e peixes, constituíram um mundo novo e exóticoque exaltava a cobiça do colonizador e excitava o paladar dos novos senhores. Nofundo desse quadro, centenas de nações e etnias indígenas, divididas pelas falas,linguajares e rivalidades, apesar da rebeldia, insubmissão, pouca resistência puderamoferecer ao invasor caraíba.

Assim, começou a Amazônia lusíndia, mais índia que lusa, porém, mesmoassim, suficientemente forte para impor novos padrões culturais e espirituais europeusa serviço da “fé e do império”, que acabaram por desintegrar a identidade cultural

Os índios e os caboclos na Amazônia: uma herança cultural-antropológica*

* Comunicação apresentada ao 48º Congresso de Americanistas, em Estocolmo/ Uppsala, de 4 a 9 de julho de 1994.

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Os índios e os caboclos na Amazônia: uma herença cultural-antropológica

desses povos, através das tropas de resgates, aldeias, missionários, reduções, catequeses,queima de malocas, dízimos e trabalho servil.

Mais tarde, quando se iniciou a marcha dos caucheiros e seringueiros nosbaixos e altos-rios, a onda invasora nordestina transformou os seringais e castanhaisem centros de extermínio de muitas tribos e etnias ameríndias, processo esse queseria, mais tarde, repetido quando da expansão da fronteira agrícola e pecuária que,nas últimas décadas, desceram do planalto central para ocupar as terras dos eixosrodoviários dos projetos de colonização e dos assentamentos garimpeiros em todaa região.

Apesar desse quadro, a contribuição indígena-cabocla para a ocupação edesenvolvimento da Amazônia foi considerável e sem ela a tarefa de descoberta eexploração teria sido impossível. Submissos, subordinados, adaptados ou integrados,eles ensinaram aos novos senhores e imigrantes os segredos do rio, da terra e dafloresta. Dessa herança cultural indígena-cabocla destacam-se muitas contribuições,que abaixo procuraremos resumir e inventariar:1. Conhecimento dos rios, furos, paranás, igarapés e lagos como meio de transporte,

fonte de água doce, viveiro de plantas, peixes, animais e gramíneas;2. Aproveitamento das várzeas dos rios de águas barrentas e claras, aos quais

denominavam de paranás-tinga, em contraste com os pobres rios de água preta –os paranás-pixuna;

3. Convivência com o regime das enchentes e vazões fluviais, um importante fatorde adaptação e uso potencial de suas águas e terras;

4. Uso da floresta com a sua distinção entre o caa-etê das terras firme das madeirasde lei e o caa-igapó das áreas inundadas das madeiras brancas;

5. Construção de montarias, igarités, jacumãs, remos, balsas e jangadas para dominaro transporte sobre os rios e vencer os estirões da distância;

6. Percalços da navegação dos sacados, remansos, terras caídas, praias, pedras, calhause troncos;

7. Práticas agrícolas dos roçados de mandioca e o seu preparo mediante maceração,uso do tipiti, fervura para eliminar os tóxicos dos tubérculos e o seu preparo nascasas de farinha;

8. Técnicas de desmatamento da floresta pela broca, derrubada, queima e coivara,típicas da agricultura itinerante do slash-and-burn, em virtude da pobreza dos solostropicais de terra firme;

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Samuel Benchimol

9. Caça e identificação de animais silvestres para fins alimentares e aproveitamentodo couro para fins industriais, como o caitetu, capivara, anta, cotia, tatu, veado,onça e outros bichos do mato;

10. Pesca e identificação das principais espécies, como o pirarucu, tambaqui, tucunaré,pacu, sardinha, jaraqui, matrinchã, piramutaba, piraíba e outros peixes de escamase peles, bem como dos instrumentos e artefatos de apanha e captura;

11. Apanha dos bichos de casco como a tartaruga, tracajá, iaçá, jaboti, matá-matá,muçuã e dos mamíferos aquáticos como peixe-boi, lontra, ariranha e os lendáriosbotos vermelho e tucuxi;

12. Construção de casas de paxiúba e palha de buçu, de pau a pique para vencer asenchentes, de flutuantes, tapiris, marombas, palafitas e malocas;

13. Artesanato de cuias, paneiros, jamaxis, cestos, tipitis, redes e produtos ergológicosde cerâmica como alguidares, igaçabas, vasos e objetos de adorno, tatuagem eoutras manifestações criativas da arte indígena plumária, cestária, tecelagem,artefatos de barro e amuletos;

14. Culinária e preparo de peixes: frito, assado, cozido, moqueado, seco-salgado,defumado, temperado com molhos de pimenta de cheiro, murupi e jambu; nopreparo da mixira do peixe-boi e na farinha de piracuí; no cozimento das carnesdeliciosas dos bichos de casco e no preparo dos seus ovos, no estilo do arabu(com sal) ou mujanguê (com açúcar), para comer ou para ser transformado embanha de tartaruga que, durante décadas, serviu de energia alternativa parailuminação das casas portuguesas ou para fins culinários, proteção eembelezamento da pele;

15. Descoberta dos deliciosos frutos silvestres como tucumã, pupunha, cupuaçu,bacuri, mari, pajurá, abio, cubiu, murici, açaí, bacaba, patauá, uxi, mangaba, sorva,piquiá, caramuri, camu-camu, buriti, maracujá do mato, camapu, castanha-do-pará, castanha sapucaia e de macaco, ingá, cutitiribá, sorva, abricó, biribá, jenipapo,entre outros;

16. Revelação e preparação de raízes e tubérculos de alto alimentício como a mandioca,macaxeira, ariá, cará e outros rizomas;

17. Divulgação de bálsamos, resinas voláteis como o breu jauaricica, bálsamo decopaíba, óleos de andiroba,patauá, mutamba, essência de pau-rosa, louro pimenta,vetiver, aromáticas como o patchouli, priprioca, canela, casca preciosa, favas decumaru;

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Os índios e os caboclos na Amazônia: uma herença cultural-antropológica

18. Fibras como a piaçava, tucum, malva, jauari, buçu, miriti, uacima, painas desamaúma, cipó-titica;

19. Plantas e ervas medicinais como a ipecacuanha ou poaia, salsaparrilha, copaíba,andiroba, preciosa, ucuuba, quina, curare, sacaca, carajiru, jaborandi, amor-crescido, caapeba, capim santo, carapanaúba, cidreira, cumaru, erva de bicho,imbaúba, jambu, jurubeba, malicia (sensitiva e juquiri-rasteiro, que o povo chamade “maria-fecha-a-porta-que-a-tua-mãe-morreu”), malva, marupá, mastruço,mulungu, mururé, pega-pinto, quebra-pedra, saracura-mirá, vassourinha, verônica,entre centenas de outras plantas, ervas, raízes, frutos, cascas, folhas, cujos princípiosativos e fármacos, um dia irão revolucionar a biotecnologia médica e farmacêutica;

20. Especiarias como a pimenta grossa e fina, cravo, canela, anil, urucu, baunilha,puxuri, jarina, mutamba, louro, cacau e outras que eram conhecidas no períodocolonial como “as drogas do sertão”, a primeira atividade de intercâmbio eexportação dos colonizadores europeus;

21. Madeiras de lei e pesadas como itaúba, angelim, sucupira, acariquara, macacaúba,pau amarelo, pau mulato, piquiá, jacarandá, paracuuba, aguano, cedro, freijó, emadeiras leves e brancas como açacu, virola, faveira, marupá, quaruba, molongó,munguba, pau-de-balsa e centenas de outras espécies de madeiras para movelaria,ebanisteria, obras hidráulicas, estacas, tanoaria, tinturaria, oleaginosas e palmáceas;

22. Alucinógenos como ipadu, coca, ayuasca, iagê, caapi; estimulantes e afrodisíacoscomo guaraná, muirapuama, catuaba, xexuá; e plantas tóxicas e venenosas comobuiuçu, cipó amargoso, curare, gameleira, erva de passarinho, timbó, entre outros;

23. Hábitos alimentares baseados no complexo da mandioca e seus derivados comofarinha d’água, seca, surui, tapioca, beiju, caribé, carimã, “mingau de caridade”,goma, tucupi, tacacá, maniçoba, fécula, amido, sagu, polvilho, cauim, cachiri,tiquira;

24. Nomenclatura e nomes que serviram para identificar as plantas, árvores, bichos,peixes, aves, madeiras, rios e lugares que constituem a riqueza da toponímia e dalinguagem regional. A maior parte desses nomes provém do nheengatu ou abanheenga,linguagem geral e boa, derivada do tupi, que era falada pelos índios mansos e“domesticados”, imposta pelos missionários e catequistas que a aprenderam e agramaticalizaram - em oposição ao nheengaíba ou língua má, rebelde dos índiostapuias, de fala travada do interior bravio.

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Samuel Benchimol

25. Revelação de lendas, mitos, crenças, crendices e estórias que constituem um ricoacervo do seu místico e messiânico imaginário;

26. Criação de símbolos, heróis-civilizadores e mártires, como o Ajuricaba dos Manause o mártir-tupinambá do Forte do Presépio de Belém, que preferiram a morte àescravidão da vida.

27. Etno e antropo-diversidade que criou dentro da própria Amazônia uma pluralidade de culturas, línguas e valores ameríndios que se diferenciavam em funçãodo espaço, rio, floresta e heranças ancestrais e imemoriais. Essa etnodiversidadeestá hoje, ainda, representada por 156 grupos indígenas remanescentes, comcerca de 172.000 indígenas, falando 170 línguas e dialetos diferenciados.

A seguir listamos, num esforço de apresentar um sumário desse rescaldocultural-antropológico que sobrou, após séculos de destribalização e perda deidentidade cultural. Para maior facilidade, esses grupos estão elencados de acordocom a sua distribuição geográfica, feitos pela Funai, pelos diferentes Estados daAmazônia Legal:a) ACRE – Grupos indígenas: Kaxinawá, Katukina, Kulina, Kampa, Arara, Nukini,

Jaminawá, Poyanawá, Yawanawá;b) AMAPÁ – Grupos indígenas: Galibi, Karipuna, Waiãpi;c) AMAZONAS – Grupos indígenas: Yanomami, Apurinã, Sateré-Mawé, Jamamadi,

Kokama, Kambeba, Tikuna, Mura, Kulina, Mundurucu, Baniwa, Baré, Kobewa,Deni, Kuripaco, Parintintin, Kanamati, Juma, Kanamari, Kaxarari, Kaxinawá,Paumari, Mayoruna, Maku, Desana, Miranha, Hichkaryana, Wai-wai, Tukano, Piraná,Katukina, Arapaso, Tenharim, Matis, Marubo, Kurubo, Warekana, Waimiri, Atroari,Zuruahá;

d) PARÁ – Grupos indígenas: Amanayé, Anambé, Parakanã, Arara, Araweté, Xikrin,Menkranotire, Maramã, Penebe, Urubu, Kaapor, Karajá, Kararaó, Kayabi, Kayapó,Assurini, Gavião, Menkragnoti, Munduruku, Juruna, Parakanã, Apalai, Waiana,Suruí, Tembé, Wanana, Xipaia, Curuaya;

e) RONDÔNIA – Grupos indígenas: Apurinã, Arude, Pakaa-nova, Gavião, Jaboti,Karipuna, Makurap, Massacá, Parintintin, Tupari, Aikana, Latunde, Uru-eu-wau-wau, Uru-pa-in, Urubu;

f) RORAIMA – Grupos indígenas: Yanomami, Makuxi, Wapixana, Ingarikó,Taulipang, Wai-wai;

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Os índios e os caboclos na Amazônia: uma herença cultural-antropológica

g) TOCANTINS – Grupos indígenas: Apinayé, Karajá, Xerente, Krahó, Ava-canoeiro, Javaé, Tapirapé, Guarani;

h) MARANHÃO – Grupos indígenas: Urubu-kaapor, Guajajara, Timbira, Gavião-katige, Krikatii, Guajá, Kanela;

i) MATO GROSSO – Grupos indígenas: Apiaká, Kaiabi, Arara, Xavante, Apurinã,Cinta Larga, Bakairi, Mentuktire, Txucarramãe, Canoeiro, Erikpatsa, Pareci, Irantxe,Bororo, Menku, Nambikwara, Kawarib, Suyá, Matipu, Ywalapiti, Kamaiwurá,Trumai, Txikão, Aweti, Tapayuna, Waura, Kren-akarore, Juruna, Krukuru, Nafugua,Melanaku, Enauene-naué, Karajá, Manairisu, Surui, Wasusu, Tapirapé, Halo-tezú,Barbados, Zoró.

Dessa floresta e desses rios, os índios e seus descendentes caboclos brasileirose “cholos” peruanos retiravam tudo o que precisavam para as suas casas, montarias,arcos, flechas, redes, vernizes, tintas, venenos, remédios, alimentos, frutos, amêndoas,drogas, alucinantes para os sonhos, fantasias e visões do pajé e dos shamans, bebidaspara as suas festas e danças, remédios para os curumins e adornos para as suascunhãs, cunhantãs e seus guerreiros. Só não conseguiram, com a chegada docolonizador e dos outros imigrantes, paz e incentivo, para que pudessem dar o saltoqualitativo que possibilitasse criar espírito empreendedor e ambição material paratransformar essas riquezas biológicas e físicas em recursos econômicos de valia.

Riquezas e recursos que foram sendo apropriados por outros grupos maisaudazes e agressivos, que se tornaram patrões e senhores de suas terras, aldeias,malocas, desintegrando as suas culturas e anulando as suas identidades tribais.

Em meio de toda essa biodiversidade e a despeito de tanto haveremcontribuído para o desenvolvimento regional, o grupo indígena constitui, hoje, umgrupo étnico empobrecido e discriminado. Os caboclos deles descendentes, segundoCharles Wagley (Uma Comunidade Amazônica, São Paulo, 1988, p. 121), são gente dequarta classe social, depois dos brancos, favelados e gente de sitio. Eles constituemna camada social da imaginária cidade de Itá, “os caboclos da Beira ou os que vivemem cabanas construídas sobre estacas, nos pântanos das baixadas e nas ilhas alagadiçase que ganham a vida nas indústrias puramente extrativas”.

Esses caboclos, no entanto, têm uma história que não é tão pacífica secontarmos a sua participação na revolta dos Cabanos, ou se analisarmos com maiorprofundidade, numa releitura de sua participação e contribuição, iremos verificar

229Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Samuel Benchimol

que eles constituem, hoje, um numeroso grupo étnico-social que, talvez, ultrapasse atrês milhões de pessoas, vivendo no beiradão da calha central, que vai de Belém atéIquitos, e nos baixos rios dos afluentes setentrionais e meridionais. Muitos delesestão aculturados por força de sua miscigenação com outros grupos étnicos, comoportugueses nos tempos coloniais e, mais recentemente, com os cearenses-nordestinos,quando estes abandonaram os altos rios de seringa para viver na calha central doBaixo, Médio e Alto Amazonas, Solimões, Marañon e Ucayale. Outros, no entanto,conservam grande parte de sua pureza e ascendência indígena, pois ficaram maisdistantes da assimilação nordestina, na medida em que o rio se distancia do Baixo eMédio Amazonas e se aproxima do Alto Solimões e Marañon, onde vamos encontrarcaboclos brasileiros e “cholos” peruanos mais próximos de suas origens e menosaculturados do que os seus irmãos do Baixo Amazonas.

Poucos pesquisadores se aperceberam que o grupo indígena na Amazônianão é, hoje, apenas representado por cerca de 170.000 habitantes, vivendo em 156grupos lingüísticos, não-aculturados, aculturados ou de contactos intermitentes. Essegrupo está presente através de seus descendentes nessa grande massa da populaçãocabocla do beiradão. Se esse numeroso grupo social caboclo for adicionado aosseus irmãos, primos ou ascendentes índios, a nossa visão da população ameríndia seamplia consideravelmente, passando a representar, talvez, cerca de 30% da populaçãoda Amazônia Clássica, ou seja, cerca de três milhões de pessoas. Se a sua culturaancestral-original foi destruída pela destribalização, catequese e servidão, o extermínio-físico e o holocausto étnico não se realizou, pois uma grande massa de caboclos,seus descendentes, estão presentes na sociedade amazônica nos dias de hoje.

Eles constituem a chamada Amazônia tradicional dos povos ribeirinhosdos baixos rios e do beiradão da calha central e estão presentes em todos os pequenossítios, povoados, vilarejos e cidades que se estabeleceram ao longo do rio Amazonas.

Caboclos da Beira, como os cognomina Charles Wagley, ou caboclos dobeiradão e da roça estão, hoje, vivendo e trabalhando como oleiros e vaqueiros noMarajó;* apanhadores de açaí, frutas, lenha e carvão nas ilhas;* pescadores de piramutaba, dourado e surubim no delta estuário, mariscadores de

caranguejo e ostras nas margens e chavascais do litoral e das baixadas paraenses emaranhenses;

* pescadores de camarão no litoral do Amapá;

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Os índios e os caboclos na Amazônia: uma herença cultural-antropológica

* vendedores de frutas, açaí, verduras e plantas medicinais no mercado do Ver-o-Peso;

* tripulantes de barcos à vela que singram a baía de Marajó e do rio Guamá, práticosfluviais responsáveis pela entrada na barra do porto de Belém;

* ceramistas e fabricantes de artesanato em Icoaraci;* coletores de castanha no Tocantins;* plantadores de cacau em Cametá, Óbidos e Parintins;* agricultores de guaraná em Maués;* piaçabeiros e apanhadores de peixes ornamentais em Barcelos e rio Negro;* tiradores de pau-rosa, copaíba, sorva, andiroba, patauá em Parintins, Maués, Madeira

e Purus;* viradores de tartaruga nos tabuleiros dos rios Trombetas e Solimões;* caçadores de jacaré nos lagos e paranás;* pintadores de cuia em Monte Alegre;* fabricantes de doces de cubiu, buriti, bacuri, tamarindo e geléia de cacau no Baixo

Amazonas;* extratores de madeira em Santarém;* pais e mães de santos dos terreiros caboclos de Faro e Terra Santa;* juteiros de Parintins;* arpoadores de pirarucu em Codajás, pescadores de tambaqui, tucunaré e jaraqui

nos lagos do Rei e de Janauacá;* roceiros de mandioca, milho, feijão das águas no Médio Amazonas;* fabricantes de farinha d’água amarela de Uarini e da farinha de tapioca na zona

guajarina;* produtores de jerimum, melão, melancia e hortigranjeiros nas ricas várzeas do

Solimões;* plantadores de patchuli, priprioca e outros cheiro-cheirosos;* peixeiros e vendedores de açaí, bacuri, pimenta-de-cheiro e murupi, tucupi, jambu

nos mercados de ferro do Ver-o-Peso de Belém, do Adolfo Lisboa de Manaus,de Santarém, Itacoatiara e Manaçapuru;

* vendedores de tacacá, maniçoba, sucos de cupuaçu, açaí, tapioca, beiju nas bancasdo Largo da Pólvora (Praça da República) de Belém-do-Pará e nas Praças daSaudade, São Sebastião e da Polícia, em Manaus

* empregadas domésticas, cozinheiras, copeiras, amas-secas das casas de família, ou

231Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Samuel Benchimol

quando se “perdiam” pelos descaminhos da vida iam parar nos bas-fond dos bordéise pensões das Travessas 12 de Março e Padre Prudêncio e Ruas Riachuelo e GeneralGurjão em Belém, ou nos cabarés e “zonas” das Ruas Saldanha Marinho, JoaquimSarmento, Lobo d’ Almada, Frei José dos Inocentes e Itamaracá em Manaus;

* plantadores de ipadu, ayuausca, maconha e coca nas fronteiras da calha norte e nasterras vizinhas da Bolívia, Peru e Colômbia.

Isto sem contar com os contingentes numerosos de trabalhadores rurais quemigraram do interior e hoje vivem nas baixadas de Belém, nos subúrbios de Santarém,Parintins, Itacoatiara, Manacapuru e nos fundos dos vales e dos igarapés alagadiçosdos mutirões e invasões das favelas da periferia de Manaus, que incorporaram centenasde milhares de caboclos na sua massa de trabalhadores, operários, vendedoresambulantes, camelôs, desempregados e marginais dos grandes centros urbanosmetropolitanos da Amazônia.

Eram e são ainda índios puros, meio-índios, índios-caboclos, caboclos, meio-caboclos, caboclos-índios de diferentes grupos étnicos e tipos de miscigenaçãogenética, resultado do cruzamento racial com os colonizadores e imigrantesnordestinos. Uma herança cultural indígena aculturada pela convivência com essesnovos elementos humanos portadores de outros valores, hábitos e costumes, queforam sendo incorporados pelas necessidades de sobrevivência ao longo dos tempose dos ciclos econômicos.

Assim surgiram os novos tipos humanos que passaram a ser identificadosnos diferentes rios e lugares pelas suas origens e procedências: caboclos Makus,Makuxis e Ianomamis dos rios Mucujaí, Branco, Catrimani, Tacutu e Uraricoera;Tucanos e Dessanos do rio Waupés e Içana; Barés do Cassiquiari; Tikunas do Içá eJapurá; Kulinas e Kaxinawás do Acre; Pakaas, Gaviões e Uru-eu-wau-wau deRondônia; Muras do baixo Madeira; Satere-mawé do rio Andirá; Waimiri-Atroaridos rios Urubu e Uatumã; Mundurucus de Parintins; Kaiapós do Araguaia; Karajásdas serras Norte e Azul, descendentes dos Tupinambás dos rios Capim e Guamá;Marajoaras de Soure, Salvaterra, Arari e Chaves; Timbiras dos rios Gurupi, Pindaré,Mearim, Itapecuru e baía de São Marcos. A maioria deles índios-caboclos oucaboclos-meio-índios.

Os representantes e descendentes desse grupo nativo pré-colombiano epré-orelaniano e seus descendentes caboclos pouco conseguiram se classificar social,

232 Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Os índios e os caboclos na Amazônia: uma herença cultural-antropológica

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econômica e politicamente na sociedade nacional e amazônica. Pouquíssimos delesconseguiram notoriedade e respeito, a não ser através da exposição exótica e daexploração de artistas, viajantes e até de alguns pesquisadores que precisam delespara fazer as suas exposições e teses de mestrado e doutorado. Por isso raramenteassistimos um referencial de sucesso, prestígio e poder alcançado por algumdescendente desses grupos primitivos nas universidades, profissões liberais, magisté-rio, sacerdócio, empresariado, prefeituras, ou como representantes nas AssembléiasLegislativas, Câmaras dos Deputados ou Senado Federal.

Quando o conseguem, excepcionalmente, passam a receber a homenageme o reconhecimento de seus pares e de outros grupos sociais que passam a distingui-los com o apelido carinhoso ou irônico de seu linguajar típico: “caboclos suburucus,vento de pupa, pupa de lancha, bandeira azul”. Talvez para reconhecer a sua mestriacomo práticos, pilotos e marujos de bordo.

Nas vilas e cidades quando eles começaram a chegar e se fazer notados,passaram a receber apelidos jocosos por parte, sobretudo, do povo do BaixoAmazonas que os chamavam de mocorongos em Santarém, ximangos em Alenquer,pinta-cuias em Monte Alegre; chupa-ossos em Óbidos e espoca-bodes em Oriximiná. Outros,quando se destacavam, passaram a ser reconhecidos pela alcunha de cabôco esturdis,pávolo e sagica, para descrever a sua inteligência, orgulho, sabedoria e dureza. O que jáé um princípio do fim do preconceito e da exclusão. O sucesso e o status social eeconômico não chegaram, ainda, à maioria das suas últimas malocas e reservas nãodemarcadas, nem também aos caboclos aculturados do beiradão.

O primitivo dono da terra, sem justo título, domínio, escritura ou registropara provar a sua propriedade e posse pode reclamar, todavia, o “usucapião” social-fundiário. Um novo instituto ou mandado de injunção que lhe permita obter melhoriade vida, status social e cidadania econômica e política. Por isso, não devemos perdera esperança de que a sociedade nacional, um dia, reconhecerá o valor e a importânciade sua participação e dessa herança no desenvolvimento regional.

Not iciár io

235Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Dissertações defendidas

1.º semestre de 2007

Alfredo Tadeu Oliveira Coimbra: Novos tempos e autosustentabilidade: os índios do rio Xié no Alto Rio Negro. (Orientadora: Maria Luiza Garnelo Pereira). Em 04/01/2007.Márcia Honda Nascimento Castro: Reconstruindo a Belle Èpoque manauara: projeto de revitalização do entorno do Teatro Amazonas e da Praça de São Sebastião. (Orienta- dor: Hideraldo Lima da Costa). Em: 09/01/2007.Aldair Oliveira de Andrade: O perfil do trabalhador da indústria de eletroeletrônicos da Zona Franca de Manaus: características e transformações. (Orientadora: Maria Izabel de Medeiros Valle). Em 19/01/2007.Claudemilson Nonato Santos de Oliveira: Urbanização no Médio Amazonas: a importância de Itacoatiara - Am como intermediária. (Orientador: José Aldemir de Oliveira). Em 26/01/2007.Thaís da Silva Brianezi: A reforma agrária ecológica na Floresta Nacional de Tefé. (Orientadora: Elenise Faria Scherer). Em 23/02/2007.Cynthia Alcantara Teixeira: MAD MARIA: do romance à minisérie. (Orientador: Marcos Frederico Krüger Aleixo). Em 12/04/2007.João Bosco Ferreira: Comunicação comunitária: processos de comunicação em comunidades rurais do Amazonas e impactos da comunicação de massa. (Orientador: Narciso Julio F. Lobo). Em 10/05/2007.Cecília Sayonara G. Leite: Corpo doente: introdução aos estudos das representações sociais de deficientes físicos na cidade de Manaus. (Orientador: Nelson Matos de Noronha). Em 04/06/2007.

236 Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Noticiário

Eventos

1.º semestre de 2007

Aula Inaugural

A Dra. Anamaria Fadul (Universidade Metodista – SP) foi a professoraconvidada para abrir as atividades do primeiro semestre de 2007 do PPGSCA, coma palestra “Mídia e Cultura na Amazônia”, no dia 11 de abril de 2007, às 15:00h noAuditório Rio Negro do Instituto de Ciências Humanas e Letras da UniversidadeFederal do Amazonas.

Seminário

Nos dias 13, 14 e 15 de abril de 2007, no Auditório Rio Negro do Institutode Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Amazonas, ocorreu oEncontro de Pesquisadores dos Projetos: Nova Cartografia Social da Amazônia,Nova Cartografia Social dos Povos e Populações Tradicionais do Brasil e Processosde Territorialização, Movimentos Sociais e Conflitos.

Debate

No dia 13 de maio de 2007, às 19:30h no Auditório Rio Solimões do Institutode Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Amazonas, ocorreu odebate com a presença dos autores dos livros A Morte do Manicômio de JacquesLesage de la Haye e A ordem do castigo no Brasil de José Luiz Solazzi que foramlançados no mesmo dia. Este evento encerra, em Manaus o Seminário “Psicologia,Poder e Encarceramentos – Reflexões e Práticas Libertárias” que se realizou de 28 a30 de maio, em São Paulo.

Palestra

Numa promoção com o Departamento de Ciências Sociais e o deAntropologia da UFAM, o prof. dr. Edgard de Assis Carvalho, antropólogo daPUCSP e coordenador do Núcleo de Estudos da Complexidade (Complexus),proferiu a palestra “Natureza e Complexidade” no dia 05 de junho de 2007, às

237Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Noticiário

A distribuição dos povos entre rio Branco, Orinoco, rio Negro e Yapurá. Theodor Koch-Grünberg. Manaus: Edua, 2006.Baixas nas carteiras. Desemprego e trabalho precário na Zona Franca de Manaus. EleniseScherer. Manaus: Edua, 2005.Cahiers du Brésil Contemporain – n. 61, 62, 63 e 64, 2005. Paris: Editora Aubrée.Cidades de Manaus Visões Interdisciplinares.José Aldemir de Oliveira, José Duarte Alecrim,Thierry Ray Jehlen Gasnier (Org.). Manaus: Edua, 2003.Fragmentos de Cultura – Universidade Católica de Goiás, v. 16, n. 5 e 6, 2006.História dos saberes sobre a Linguagem. Nelson Matos de Noronha. Manaus: Edua.1997.Kalagatos – Revista de Filosofia do Mestrado de Filosofia. Universidade Estadualdo Ceará, v. 2, n. 4, 2005.Magia e religião na modernidade. Os rezadores em Manaus. Júlio César Schweickardt. Manaus:Edua, 2002.O diário do padre Samuel Fritz. Renan Freitas Pinto (Org.). Manaus: Edua, 2006.Revista Crítica de Ciências Sociais – Universidade de Coimbra, n. 75 e 76, 2006.Revista de Antropologia – USP, v. 48, n. 02, 2005.Revista Tellus – UCDB, Campo Grande, ano 6, n. 11, 2006.Todo ano tem. As festas na estrutura social. Regina de Paula Santos Prado. São Luís:Edufma, 2007.

14:30h no Auditório Rio Solimões, do Instituto de Ciências Humanas e Letras daUFAM. O prof. Assis Carvalho reuniu uma enorme e seleta audiência que participouentusiasticamente dos debates que se prolongaram até às 18h15min. O evento foifilmado pela TV-UFAM.

Publicações recebidas

1.º semestre de 2007

A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no Porto de Manaus 1899-1925. Maria LuizaUgarte Pinheiro. Manaus: Edua, 2003.

238 Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Noticiário

Programa de segurança alimentar e geração de renda em comunidades ribeirinhasdo Alto Amazonas.

Elenise Faria SchererModo de vida ribeirinha: políticas públicas, sindicato e relação de gênero.O antigo Roadway e a Nova Estação Hidroviária de Manaus: modernizaçãoexcludente.Ernesto Renan Freitas PintoVozes da Amazônia: investigação sobre o pensamento social brasileiro.

Gabriel Arcanjo Santos de AlbuquerqueElaboração de indicadores para avaliação e acompanhamento dos Programas deBolsas da Fapeam – PGCT 2006.

Gilson Vieira MonteiroA história dos meios de comunicação em Manaus.Tecnologia da comunicação e da informação.

Heloísa Helena Corrêa da SilvaGravidez na adolescência e o índice de evasão escolar nas escolas públicas de Manaus.

Heloisa Lara Campos da CostaVozes da Amazônia: as representações sociais femininas na obra de Dalcídio Jurandir.

Produção científica dos docentes do PPGSCA

1.º semestre de 2007

Pesquisas em andamento

Alfredo Wagner Berno de AlmeidaNova Cartografia Social da Amazônia.

Amélia Regina Batista NogueiraLugar e cultura. A produção da vida no Careiro da Várzea-Am.

Antonio Carlos WitkoskiDesenvolvimento rural e sustentabilidade em comunidades ribeirinhas do Amazonas.O caboclo-ribeirinho e a etnoconservação dos recursos pesqueiros do lago deManacapuru.

239Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Noticiário

Hideraldo Lima da CostaRios e homens: história, natureza e cultura na Amazônia (Piatam).Memórias Fapeam: trajetória institucional da Ciência e Tecnologia no Amazonas.

Iraíldes Caldas TorresCaracterização das condições de vida das famílias do município de Barcelos/AM.Modo de vida ribeirinha: políticas públicas, sindicato e relação de gênero.

Jose Aldemir de OliveiraAs cidades e os rios: tipificação da rede urbana na calha Solimões-Amazonas.A cidade de Manaus, expansão urbana: transformações e permanências (1967 a2000).Projeto Cidades: construindo uma tipologia dos aglomerados urbanos na Amazônia.

Márcia Eliane Alves de Souza MelloAmazônia Portuguesa: documentos coloniais.Rios, cidades e homens: trajetórias coloniais e pós-coloniais.

Márcia Perales Mendes SilvaRede de garantia de direitos de crianças e adolescentes do Estado do Amazonas.

Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues ChavesImplantação de um sistema de monitoramento e controle da intoxicação humana eambiental por agrotóxicos do Estado do Amazonas.Uso sustentável da biodiversidade regional e a gestão ambiental: as representaçõessociais dos agentes de biotecnologias no Amazonas.Adolescentes vítimas de traumas na cidade de Manaus.Empreendimentos solidários nos municípios de Coari e Carauari.Análise epidemiológica, clinica e laboratorial das meningites bacterianas agudas emcrianças atendidas na Fundação Medicina Tropical.

Maria Luiza de Carvalho CruzEstudo de língua indígena e do Português falado no Amazonas (Dialetologia).A realização da vogal posterior média fechada /o/, em posição tônica, nos municípiosde Parintins e Tefé.Comportamento fonético-fonológico da vogal posterior média fechada /o/ emcontexto tônico, no falar dos municípios de Itacoatiara e Manacapuru.

Narciso Julio Freire LoboMídia na Amazônia.

240 Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Noticiário

História e etnografia na fronteira amazônica – Dr. Nelson Matos de Noronha

Cultura popular, identidades e meio ambiente na Amazônia – Dr. Sérgio IvanGil Braga e Dr. Antonio Carlos Witkoski

Culturas, técnicas, educação e sustentabilidade para Amazônia – Dra. MarileneCorrêa da Silva Freitas

Desenvolvimento regional na Amazônia – Dr. Ricardo José Batista Nogueira

Educação à distância – Dr. Gilson Vieira Monteiro

Enertec – Desenvolvimento tecnológico e energia – Dra. Simone Eneida Baçalde Oliveira

Estudos contemporâneos da Amazônia – Dra. Marilene Corrêa da Silva Freitas

Estudos de línguas indígenas e do Português falado no Amazonas – Dra.Maria Luiza de Carvalho Cruz

Gênero e cultura – Dra. Heloisa Lara Campos da Costa

Geografia da Amazônia, ambiente e cultura – Dra. Amélia Regina BatistaNogueira e Dr. Ricardo José Batista Nogueira

Grupo de estudo de resíduos – Dr. João Bosco Ladislau de Andrade

Nelson Matos de NoronhaProcessos socioculturais na Amazônia - História do pensamento antropológico eprocessos étnico-culturais.O elementar e o universal: análise da evolução e das tendências das Dissertações deMestrado do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia.

Patrícia Maria Melo SampaioProcessos socioculturais, direitos e identidades na Amazônia: programa de induçãoe consolidação da pesquisa e pós-graduação em IPES no Amazonas.

Núcleos de Pesquisa dos docentes vinculados ao PPGSCA1.º semestre de 2007

Centro de estudos e pesquisas em filosofia e ciências humanas – Dr. NelsonMatos de Noronha, Dr. Ernesto Renan Freitas Pinto, Dr. José Aldemir de Oliveira,Dr. Odenildo Teixeira Sena e Dr. Alfredo Wagner Berno de Almeida

241Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Noticiário

Grupo de estudos de literatura Brasileira e Portuguesa – Dr. Gabriel ArcanjoSantos de Albuquerque

GETRA – Grupos de estudos e pesquisas contemporâneas sobre processosde trabalho e serviço social na Amazônia – Dra. Márcia Perales Mendes Silva

Grupo de estudo e pesquisa em ciência da informação – Dra. Célia ReginaSimonetti Barbalho

Grupo de estudos e pesquisa em ciências da informação, comunicação, designe artes (Inter-Faces) – Dra. Célia Regina Simonetti Barbalho, Dr. Gilson VieiraMonteiro, Dr. Narciso Julio Freire Lobo e Dr. Walmir de Albuquerque Barbosa

Grupo de estudos e pesquisa em políticas sociais e seguridade social noAmazonas – Dra. Yoshiko Sassaki, Dra. Heloísa Helena Corrêa da Silva e Dra.Iraíldes Caldas Torres.

Grupo interdisciplinar de estudos socio-ambientais e de desenvolvimento detecnologias apropriadas na Amazônia (Inter-Ação) – Dra. Maria do PerpétuoSocorro Rodrigues Chaves

Grupo interinstitucional de processos semióticos e de design – Dra. CéliaRegina Simonetti Barbalho

Núcleo de pesquisas e estudos das cidades na Amazônia Brasileira – Dr. JoséAldemir de Oliveira

História colonial da Amazônia – Dra. Márcia Eliane Alves de Souza e MelloHistória e economia mundial contemporâneas – Dra. Elenise Faria SchererHistória indígena da Amazônia: políticas indígenas e indigenistas – Dra.Patrícia Maria Melo Sampaio, Dra. Maria Luiza Garnelo e Dr. Alfredo WagnerBerno de Almeida

História, saúde e instituições na Amazônia – Dr. Hideraldo Lima da Costa

História social da Amazônia – Dra. Patrícia Maria Melo Sampaio

Modos de governar: política e negócios do império português ao império doBrasil – Dra. Márcia Eliane Alves de Souza e Mello

Núcleo de antropologia visual – Dra. Selda Vale da Costa e Dr. Narciso JúlioFreire Lobo

242 Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Noticiário

Núcleo de pesquisa em política, instituições e práticas sociais (Polis) – Dra.Patrícia Maria Melo Sampaio, Dr. Hideraldo Lima da Costa e Dra. Márcia ElianeAlves de Souza e Mello

Petróleo, meio ambiente e socioeconomia na Amazônia Ocidental – Dr.Hideraldo Lima da Costa, Dr. Antonio Carlos Witkoski, Dra. Márcia Eliane Alvesde Souza e Mello e Dra. Patrícia Maria Melo Sampaio

Planejamento e gerenciamento de recursos hídricos no Amazonas – Dra.Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves

Políticas públicas, território e ambiente na Amazônia – Iraíldes Caldas Torres,Dra. Elenise Faria Scherer, Dra. Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves,Dra. Maria Luiza Garnelo e Dr. João Bosco Ladislau de Andrade

PYRÁ – Dra. Marilene Corrêa da Silva Freitas

Questão social e assistência social no Amazonas – Dra. Heloísa Helena Corrêada Silva

Saúde, ambiente e condições de vida das populações amazônicas – Dra. MariaLuiza Garnelo

Sustentabilidade na Amazônia – Dr. Antonio Carlos Witkoski

Tecnologia educacional – Dr. Gilson Vieira Monteiro

Trabalho e sociedade na Amazônia – Dra. Maria Izabel de Medeiros Valle, Dra.Marilene Corrêa da Silva Freitas, Dra. Márcia Perales Mendes Silva e Dra. HeloisaLara Campos da Costa

Rede de estudos urbanos Brasil-Portugal – Dr. Sérgio Ivan Gil Braga

243Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Números Anteriores

v. 1, n. 1, 2000

ArtigosPolifonia cultural e pensamento radical – Edgard de Assis CarvalhoO pensamento social na Amazônia: (re)visões da Ciência – Peter WeigelPaul Ricoeur e Walter Mignolo – um estudo de hermenêuticas racionalistas num campo interpretativocomum – Marilene Corrêa da SilvaNarcisismo & sociedade – Narciso Júlio Freire LoboTeoria crítica, educação e delinqüência política ou do cidadão mínimo e da tirania do mercado –José Alcimar de OliveiraDireito à vida: reafirmação da exclusão – Elenise Faria SchererDe Vice-reino à Província: tensões regionalistas no Grão-Pará no contexto da emancipação políticabrasileira – Luiz Balkar Sá Peixoto PinheiroAmazônia e questão regional: um regionalismo sufocado – Ricardo José Batista NogueiraReflexões em torno das raízes culturais da mulher na Amazônia – Heloisa Lara Camposda Costa

PesquisasUm olhar fenomenológico sobre a cidade – Júlio César SchweickardtAspectos estruturais das cidades e suas transformações – Luiz de Oliveira CarvalhoA dialética do seringal – Ricardo Pereira ParenteA rede de fortificações na Amazônia brasileira: uma abordagem sobre a militarização (séculos 17 e18) – Mírcia Ribeiro FortesCarne de Sol: uma análise discursiva da narrativa curta de Álvaro Maia – José RibamarMitosoRepresentações e realidade social intersubjetiva – Ricardo Ossame

ImagensCores de um meteoro – Otoni Mesquita

ResenhaAs vítimas do massacre – José Aldemir de Oliveira

244 Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

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Ano 2, n. 2 – Edição especial, 2002

ArtigosArte e Cultura PopularO boi é bom para pensar: estrutura e história nos bois-bumbás de Parintins – Sérgio IvanGil BragaA festa de boi-bumbá em Parintins: tradição e identidade cultural – Raimundo DejardVieira FilhoParintins: turismo e cultura – Ângelo César Brandão Pimentel

Globalização e TurismoSaga do boi-bumbá em preto-e-branco – Fátima GuedesUma viagem ao boi-bumbá de Parintins: do turismo ao marketing cultural – Luiza ElaineCorrêa AzevedoO boi-bumbá e a nova estrutura urbana de Parintins – José Camilo Ramos de SouzaEducação ambiental e festas populares: um estudo de caso na Amazônia utilizando o FestivalFolclórico de Parintins – Elizabeth da Conceição SaotosFestival folclórico: o que muda em Parintins? – Ana Rúbia Figueiredo Fernandes

Mito e ImaginárioTradição, tradução e transparência – João de Jesus Paes LoureiroO indianismo revisitado pelo boi-bumbá. Notas de pesquisa – Maria Laura Viveiros deCastro CavalcantiA geografia mítica do boi – Amarildo Menezes GonzagaBoi-bumbá, memória de antigamente – Selda Vale da Costa

Ensaio fotográficoParintins: brincando com arte – Andreas Valentin

ComunicaçõesArte e cultura regional – Odinéia Andrade, Fred Góes, José Mayr Mendes, RooseveltMax Sampaio Pinheiro, Mêncius Mello, Tony Medeiros e Marcos SantosGlobalização e turismo – Wilson Nogueira e Gerson Severo DantasProdução audiovisual – Elaine Meneghini e Salete LimaMito e imaginário – Marcos Frederico Krüger Aleixo

Produção acadêmica sobre os bois-bumbás e o Festival de Parintins

245Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

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Ano 3, n. 1/2, jan./dez. 2003

ArtigosNatureza e cultura na Amazônia: evolução e tendências da pesquisa e da pós-graduação – NelsonMatos de NoronhaMeditação e devaneio: entre o rio e a festa – João de Jesus Paes de LoureiroOs enredos caboclos e nativistas nas toadas dos Bois-Bumbás Garantido e Caprichoso, heróis doFestival Folclórico de Parintins – Maria Eva LetíziaEscolas indígenas: a que será que se destinam? – Márcio SilvaUma comunidade da várzea: organização e morfologia social – Marilene Corrêa da Silva eJosé Fernandes BarrosPolíticas agrárias e políticas ambientais na Amazônia: encontros e desencontros – Kátia HelenaSerafina Cruz SchweickardtPolíticas energéticas no Estado do Amazonas: implicações e questões em face do meio ambiente –André Jun MikiManaus ontem e hoje: transformações do espaço urbano e memória popular – Lucynier OmenaMeloCidades desaparecidas: Poiares, século 18 – Patrícia Melo SampaioPós-modernidade: uma tentativa de reflexão sobre sua expressão econômica, política e cultural –Marinez Gil NogueiraFilosofia, antropologia: o fim de um mal-entendido – Claude Imbert

Ano 4, n. 1, jan./jun. 2004

ArtigosAmazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais” como fator essencial de transiçãoeconômica – pontos resumidos para uma discussão – Alfredo Wagner Berno de AlmeidaTradição, modernidade e políticas públicas no Alto Rio Negro – Maria Luiza Garnelo PereiraDimensão pedagógica da violência na formação do trabalhador amazonense – Marlene RibeiroInovações tecnológicas e qualificação profissional – Maria Izabel de Medeiros ValleImpactos da reestruturação produtiva nas expressões de consciência de classe dos operadores deprodução da Zona Franca de Manaus – Márcia Perales Mendes SilvaDesemprego, trabalho precário e des-cidanização na zona Franca de Manaus – Elenise FariaSchererImpactos da reestruturação produtiva no Amazonas – níveis de emprego e de desemprego na ZonaFranca e demais setores – Iraildes Caldas Torres

246 Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

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Suframa: agência de agentes – Izaura Rodrigues NascimentoUm debate sobre a Agenda 21 Brasileira: em defesa da floresta amazônica – Pérsida da SilvaRibeiro Miki

Ano 4, n. 2, jul./dez. 2004

ArtigosDesenvolvimento sustentável e educação ambiental: para uma integração da dimensão interculturalnas abordagens pedagógicas e didáticas – Olivier MeunierAgricultura e identidade cabocla-ribeirinha – Terezinha de Jesus Pinto Fraxe/AntônioCarlos WitkoskiO cooperativismo popular como forma de inserção econômica – Celso Augusto Tôrres doNascimentoNoção de trabalho e trabalhadores na Amazônia – Iraildes Caldas TorresCategorias de análise de sustentabilidade social em relações de trabalho na indústria madeireira doAmazonas – Jessé Rodrigues dos SantosA terceirização como estratégia para a competitividade: uma análise do processo na GradienteEletrônica S.A. – Zânia Maria Rios Aguiar VieiraLa escritura de Neruda: itinerario de três viajes – Elsa Otilia Heufemann-BarríaUma leitura amazônica a partir de Judas Asvero, de Euclides da Cunha – Nícia PetreceliZucoloRomance-documentário em Inferno verde e A selva – Rita Barbosa de OliveiraPor uma antropologia do espaço social: os ensaios de Garantido e Caprichoso em Manaus – Huelitonda Silveira Ferreira e Sérgio Ivan Gil BragaRuídos na comunicação: o homem amazônico sob a ótica do preconceito – Maria das GraçasFerreira de MedeirosJornalismo científico na Amazônia – Walmir de Albuquerque Barbosa

ConferênciaDelineando corpos – Maria Izilda Santos de Matos

ResenhasA complexa fala operária – Narciso Júlio Freire LoboUm jogo filosofante ou a demolição do narcisismo dos autores – João Bosco Ladislau de Andrade

Homenagem Póstuma ao Prof. Dr. Octavio Ianni

247Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

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Ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

ArtigosE tu me amas? – Aurélio MichilesA narrativa poética em Dois irmãos – lugar de intercâmbio entre suportes arquivísticos –Allison LeãoA importância dos fatores socioculturais no processo da comunicação – Allan S. B. Rodrigues eGrace S. CostaO modo de ser e viver o caboclo por Dalcídio Jurandir – Fabiane Maia Garcia/João BoscoFerreiraMercado faz a festa na floresta – Wilson NogueiraRepresentações sociais das comunidades rurais amazônicas do conceito ambientalismo ou preservaçãoambiental: os casos de Fátima e Livramento – Renan Albuquerque RodriguesO desafio ético do desenvolvimento com diversidade – Carlos LopesNas margens do igarapé do Mindu: dois lados da história - Ângela Maria de Abreu CavalcanteDesenvolvimento sustentável e ecodesenvolvimento: uma reflexão sobre as diferenças ídeo-políticasconceituais – Marinez Gil Nogueira e Maria do Perpétuo Socorro R. ChavesAfirmação étnica e movimento indígena em Tefé: o caso dos Cambeba – Benedito MacielA inserção do indivíduo em novos espaços sociais e a criação de novos papéis – Aldair Oliveirade AndradeDinâmica territorial na fronteira Brasil-Colômbia – Ricardo José Batista Nogueira

ResenhasA contribuição seminal de Koch-Grünberg – Renan Freitas PintoPonto e contraponto – Marcos Frederico Krüger

Homenagem Póstuma a Leandro Tocantins

Ano 5, n. 2, jul./dez. 2005

ArtigosDarwin e Marx: diálogos nos trópicos. para uma interpretação do Brasil – Alfredo WagnerBerno de AlmeidaA Geografia em Foucault – Marcos Castro de LimaAfirmação e erotismo: os reflexos da indústria cultural na música popular produzida na RegiãoNorte – Marcio Lima Noronha

248 Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Números anteriores

Lixo & Arte – João Bosco Ladislau de AndradeO ignorado Benjamin Sanches e o Modernismo: uma leitura inicial de sua obra no contexto brasileiroancorada no conto “A Gravata” – Nícia Petreceli ZucoloMovimento teatral em Manaus e identidade regional – Selda Vale da CostaAtlas Lingüístico do Amazonas – ALAM: natureza de sua elaboração, resultados e perpectivas- Maria Luiza de Carvalho CruzTecnologia e Comunicação: os mediadores de confrontos – Cristina Teresa Salvador RebeloSantosGlobalização e saber local: mito e racionalidade na Amazônia como diálogo intercultural – HaraldSá Peixoto PinheiroAs mulheres e o patrimonialismo (Amazônia: 1840-1930) – Heloisa Lara Campos da CostaO avanço da terceirização no cenário de reestruturação produtiva na Zona Franca de Manaus –Márcia Perales/Maria R. A. Vieira /Zânia M. Silva Aguiar

ConferênciaOs itinerários urbanos de Claude Lévi-Strauss – Claude Imbert

ResenhasUm livro que é bom para pensar – Marcos Frederico KrügerAmazônia: mito e literatura ou o relato de tudo quanto viu o viajante Marcos Frederico Krüger –Gabriel Albuquerque

Homenagem póstuma a Mário Ypiranga MonteiroMário Ypiranga Monteiro, meu pai – Marita Socorro MonteiroO pescador – Mário Ypiranga Monteiro (inédito)

Ano 6, n. 1, jan./jun. 2006

ArtigosA vivência individual do sagrado e do místico em Manaus – Lucynier Auxiliadora OmenaMeloOs rumos da produção científica sobre mulher e gênero na Universidade Federal do Amazonas(1975/ 2002) – Heloisa Lara Campos da Costa e Priscila Freire RodriguesO povo Dâw do Alto Rio Negro-Am – Lenita de Paula Souza AssisA imagem da cidade de Manaus em Jules Verne – Otoni Moreira de MesquitaVidas molhadas – Um estudo socioambiental de comunidades ribeirinhas da várzea amazônica –Geandro Guerreiro Pantoja, Therezinha de Jesus Fraxe e Antônio Carlos Witkoski

249Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Números Anteriores

As toadas dos bois Garantido e Caprichoso de Parintins-Am na versão de 2004 – Maria EvaLetíziaMedicina Tradicional Baniwa: doença, poder, conflito e cura – Luiza Garnelo, Sully Sampaio,André Fernando Baniwa e Gary LynnO patrimônio no Amazonas: natureza e cultura em processo – Ana Lúcia Nascentes da SilvaAbrahim

ConferênciaSaberes humanos e educação do futuro – Edgard de Assis Carvalho

DocumentoIntrodução à dramaturgia indígena – Manoel Nunes Pereira

EntrevistaSobre Antropologia Visual – Renato Athias

ResenhasDuas cidades, duas memórias... – Narciso Júlio Freire LoboEntre Luiz Vitalli , Clarice Lispector e Polifônicas Idéias – Ricardo Parente

Ano 6, n. 2, jul./dez. 2006

ArtigosViagem com um regatão – Julio Cezar Melatti“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers during World War II – SethGarfieldMulheres nos seringais: etnia, parentesco e afetividade – Mariana Ciavatta PantojaO etnoconhecimento dos cablocos-ribeirinhos no manejo ecológico do solo em uma comunidade amazônica– Albejamere Pereira de Castro, Therezinha de Jesus Pinto Fraxe e Herinaldo NarcisoLimaEntre o branco e o negro. Política e cultura no início da trajetória intelectual de Mário YpirangaMonteiro – Marco Aurélio Coelho de PaivaÁgua amazônica: ouro azul, fonte de vida, instrumento de poder – Luiz Henrique da SilvaSantanaMigrações fronteiriças: uma reflexão necessária no Amazonas – Márcia Maria de OliveiraA migração dos símbolos. Diálogo intercultural e processos identitários entre os bolivianos em SãoPaulo – Sidney Antonio da Silva

250 Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Normas para apresentação de trabalho

EntrevistaFilosofia e Literatura – Benedito Nunes

ResenhasO Diário de Samuel Fritz – Renan Freitas PintoO Brasil se revela na crítica de Walter Benjamin – Nelson de Matos Noronha

DocumentoManaus e Belém. Aspectos históricos, sociais, folclóricos, psicológicos e, sobretudo, sentimentais –Djalma Batista

251Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Normas para apresentação de trabalho

Somanlu, publicação semestral do Programa de Pós-Graduação Socieda-de e Cultura na Amazônia – ICHL/Ufam, tem caráter multidisciplinar e divulgatrabalhos sobre os processos socioculturais da Amazônia. As seguintes normas de-vem ser seguidas na elaboração e envio de trabalhos para a revista:

1. Os artigos, resenhas e entrevistas deverão ser enviados em disquete, cometiqueta identificando o(s) autor (es), e em duas vias impressas, em corpo 12,Times New Roman.

2. O ARTIGO deverá conter, no máximo, 30 mil caracteres, sem espaços; título, onome e a identificação do autor (titulação, área de estudo da titulação, vinculaçãoprofissional, endereço eletrônico e telefone), resumo e palavras-chave em portu-guês e inglês. As notas explicativas – nunca nota para indicar a obra citada –deverão vir sempre no final do texto, antes das referências. Os resumos deverãoconter, no máximo, 350 caracteres sem espaços.

3. As referências a obras devem vir no corpo do trabalho, entre parênteses, comono exemplo: (SOUZA, 1998, p. 157) ou (SOUZA, 1998, p. 155-157).

4. As citações até três linhas são identificadas por aspas no texto. A partir de quatrolinhas, devem ser destacadas do texto, em corpo 11, sem aspas.

5. As referências devem obedecer aos seguintes modelos: MARCUSE, Herbert (1972).Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar; GALVÃO,Eduardo (1951). Boi-bumbá, versão do baixo Amazonas. Anhembi. São Paulo, v.3, n. 8, julho, p. 276 - 291; SACHS, Ignacy (1993). Estratégia de tradição para oséculo XXI. In: BURSZTYN, Marcel. (Org.). Para pensar o desenvolvimento sustentável.São Paulo: Brasiliense, p. 29 -56.

6. Anexos: caso existam, devem vir depois das referências.7. A RESENHA de livros, com publicação nos últimos três anos, deve conter

indicação do autor, título, local da edição, editora e ano de publicação da obraresenhada, em até 13 mil caracteres sem espaços, corpo 12, na fonte TimesNew Roman.

8. A ENTREVISTA deve conter informações do entrevistado, do(s) entrevistador(res), data e local, e evento, se for o caso, em que se deu a oportunidade da

252 Somanlu, ano 7, n. 1, jan./ jun. 2007

Normas para apresentação de trabalho

entrevista. Deve sempre ater-se a temas de interesse da revista e conter, no máxi-mo, 20 mil caracteres.

9. Os trabalhos serão submetidos ao Conselho Editorial que os enviará a pareceristashad hoc, que decidirão da sua publicação. Conforme a avaliação destes, o textoserá programado para publicação ou devolvido a seu autor para ser reformuladoe novamente enviado para nova avaliação. Os trabalhos não aprovados ficarão àdisposição de seus autores pelo prazo de até um mês após a comunicação. Osautores que tiverem seus textos aprovados deverão encaminhar à Comissão Edi-torial uma autorização para sua publicação. O conteúdo dos textos será de inteiraresponsabilidade de seus autores.

10. Os autores que tiverem artigos, resenhas ou entrevistas publicados receberão trêsexemplares da Revista.

Obs.: O disquete e as cópias impressas devem ser entregues ou enviadas para aSecretaria do PPGSCA ou para o endereço eletrônico da Revista:rsomanlu@ ufam.edu.br, quando da impossibilidade da entrega direta. O texto devevir revisado pelo(s) autor(es) e obedecer às normas de apresentação, caso contrárioserá devolvido pela Comissão Editorial.