Augusto Silva Dias - ERRO SOBRE PROIBIÇÕES E ERRO SOBRE A ILICITUDE NO DIREITO PENAL SECUNDÁRIO

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    ERRO SOBRE PROIBIES E ERRO SOBRE A ILICITUDE NO DIREITO PENALSECUNDRIO 1

    Augusto Silva DiasProfessor Associado da Faculdade

    de Direito da Universidade de Lisboa

    Intrito

    1. No tratarei do erro no Direito Sancionatrio das Autoridades Reguladoras, mas,numa perspectiva mais abrangente, do erro no Direito Penal Secundrio e no Direitodas Contra-ordenaes.

    2. Os usos da expresso Direito Penal secundrio. Quando nada disser, estareiutilizando a expresso no sentido formal corrente: o DP que est localizado fora doCdigo Penal, em legislao penal avulsa, por vezes, em Cdigos sectoriais.

    I.Erro sobre as proibies do n1 do art.16 parte final

    1. Sistematizao do erro no CP, quanto s consequncias: o erro que afasta o dolo(art.16 ns.1 e 2) e o erro que exclui a culpa quando no censurvel (art.17 n1).

    2.Autonomia e instrumentalidade do dolo em relao conscincia da ilicitude: o dolo

    como condio de acesso ao problema da ilicitude do facto, do desvalor do facto luzda ordem jurdica: funo de apelo, de alerta ou de impulso do dolo.

    - que elementos so necessrios formao do dolo? O conceito de tipo de erro(ROXIN, FIGUEIREDO DIAS), que no nosso sistema penal dado pelo n1do art.16, d-nos a resposta: o tipo de erro o conjunto dos elementos cujodesconhecimento conduz excluso do dolo, ou seja, sem cujo conhecimentono est formado o dolo.

    1 Aula dada ao curso de ps-graduao sobre Direito Sancionatrio das EntidadesReguladoras em 3 de Maro de 2008 e em 27 de Abril de 2009.

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    - Mas o tipo de erro no constitudo pelos mesmos elementos em todos oscasos, antes apresenta uma certa margem de variao: dele fazem parte oselementos indispensveis em cada situao para o agente poder alcanar a

    conscincia da ilicitude do facto.- a base dolosa que serve de patamar de acesso conscincia da ilicitude no ,pois, homognea: varia consoante a natureza do ilcito-tpico. A estrutura doilcito-tpico fornece-nos o critrio principal para determinar que elementos tmde integrar o dolo.

    3.A distino entre delicta in se e delicta mere prohibita e os processos sociais deformao da conscincia no se trata de uma distino coincidente ou resultante dadistino entre Direito Penal nuclear e Direito Penal secundrio, tomada num sentidoformal, mas antes de uma distino que reconstitui materialmente esta outra:

    - condutas cujo desvalor imediatamente apreensvel na vida de todos os dias;

    - condutas cujo desvalor no imediatamente apreensvel ex. da exportaode mercadorias sem licena do art.33 do DL n28/84 ou o jogo ilcito doart.108 do DL n422/89.

    - condutas cujo desvalor , no essencial, apreensvel, ou seja, o sentido dedesvalor transmitido no essencial pela prtica do facto e a proibiodesempenha uma funo meramente complementar. Ex: A fabrica po comfeno destinado alimentao de gado (art.24 do DL n28/84): acaso necessrio que A conhea a proibio do uso de feno no fabrico do po para

    aceder ao desvalor do facto que pratica? No possui ele, independentemente daproibio, um quadro representativo suficiente para orientar a sua conscinciapara o mal causado aos outros (conscincia da elevada danosidade social dofacto)?

    - no primeiro grupo de condutas basta o conhecimento da factualidade tpicapara o agente se orientar no sentido do desvalor do facto: o conhecimento daproibio formal irrelevante para a constituio do dolo;

    - no segundo grupo esse conhecimento absolutamente indispensvel aproximao entre a aplicao do art.16 n1 e o art.8 n2 do RGCC;

    - no terceiro grupo (os novos delicta in se) esse conhecimento nem sempre importante ou essencial para o agente aceder cabalmente ao respectivo desvalor.

    - a diversidade de situaes explica a formulao flexvel da parte final do n1do art.16: ...cujo conhecimento for razoavelmente indispensvel ....

    4. O erro sobre a proibio formal da parte final do n1 do art.16: o desconhecimentoda proibio subjacente ao tipo e o erro sobre o alcance da proibio penal: o erro sobrea norma penal em branco. Exs.

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    - A, jovem empresrio, recm-chegado actividade de exportao demercadorias, no sabe que as mercadorias que exporta carecem de autorizao,(porque no sabe da existncia de um rol legal de mercadorias cuja exportao

    necessita de autorizao prvia ou porque sabe de um modo geral que hmercadorias que carecem dessa autorizao mas pensa erradamente - queaquela em concreto no pertence a esse rol);

    - A, comerciante h pouco tempo, no sabe que proibido explorar mquinasde jogos de fortuna e azar (ou porque desconhece a existncia da proibiolegal ou porque sabe que proibido em geral mas pensa que a mquina emconcreto no integra o crculo da proibio);

    - A sabe que a utilizao de uma substncia na confeco de gnerosalimentcios proibida acima de certa quantidade e desconhece a disposiolegal recente que baixou o limite quantitativo do emprego lcito dessasubstncia.

    5. Crtica posio de JOS ANTNIO VELOSO, secundada por FREDERICO DACOSTA PINTO, segundo a qual a obrigatoriedade de conhecimento dos deveresprofissionais incompatvel com o erro do n 1 do art.16 parte final: presume-se que oagente que exerce de forma estvel uma actividade tem conhecimento dos deveres queregulam essa actividade. Deste modo, considera-se que ele j se encontrasuficientemente orientado para o problema da ilicitude e deve aplicar-se-lhe o regimemais severo do art.17.

    - Esta posio funcionaliza o erro a objectivos de preveno geral, como a

    promoo dos deveres profissionais nos vrios sectores de actividade,conduzindo presuno de dolo que no compatvel com os princpios daculpa e da presuno de inocncia. Ignora que, as mais das vezes, os deveres queregulam o exerccio de uma actividade econmica so numerosos ediversificados.

    - As mesmas razes que levam presuno de dolo levam tambm presunode conscincia da ilicitude ou, pelo menos, censurabilidade do erro sobre ailicitude. Segundo ROXIN, por exemplo, todo aquele que trabalha em sectoresespecificamente regulados h-de contar com uma punio por crime doloso casoinfrinja os deveres correspondentes. A circunstncia de que o agente desenvolve

    uma actividade regulada e de que desconhece de todo ou conhece apenas ahiptese abstracta de o seu comportamento ser proibido no fundamento nempara presumir o dolo nem para presumir a conscincia da ilicitude. A posiocontrria esmaga os princpios da culpa e da presuno de inocncia.

    - Os tribunais superiores nacionais no tm maioritariamente seguido estaorientao: v. Acrdo da Relao do Porto de 26 de Junho de 1985 (crime deespeculao); Acrdo da Relao do Porto de 8 de Outubro de 1997 (crime deusurpao) A tinha um estabelecimento comercial em Santa Maria da Feira,onde figurava uma aparelhagem sonora para os clientes ouvirem msica. A nopossua licena dos autores das canes nem da Sociedade Portuguesa de

    Autores para passar msica naquele local. Estava no negcio h 3 meses e no

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    sabia que era necessria a dita licena. De resto, tinha contratado uma agncia dedocumentao para que esta obtivesse todas as autorizaes necessrias aofuncionamento do estabelecimento naqueles moldes, a qual tambm no sabia

    que era necessria licena para ali passar msica. O Tribunal da Relao do Portoconsiderou que era compreensvel que A no tivesse conhecimento da proibiode passar msica sem licena e, mais ainda, que no tinha violado no casoqualquer dever de informao, pois, ao contratar uma empresa especializada,cumpriu o papel de um comerciante diligente.

    V. ainda, em sentido idntico (designadamente relevando o pouco tempo dosarguidos na profisso) o Acrdo da Relao do Porto de 6 de Abril de 2005(crime de jogo ilcito).

    - No podendo fundar uma presuno, a qualidade profissional do agente, podeconstituir, porm, um indcio da existncia de dolo. Distino entre presunes e

    indcios de dolo: o indcio institui uma metodologia probatria

    prova indiciria- distinta da implicada pela presuno ilidvel, pois no obriga a uma inverso donus da prova. Os indcios de dolo so colhidos atravs de um procedimentoindutivo consistente em inferir esse elemento interno de factos externosdirectamente relacionados com o caso sub judice. Esto sujeitos a confirmaoatravs do cruzamento com outros dados que formam o objecto do processo.

    - Aceita-se que os indcios da presena de dolo sejam tanto mais fortes quantomais intenso for o processo de profissionalizao (socializao secundria, naconcepo de LUCKMANN e BERGER) do agente. Em actividades cujoexerccio carece de habilitao esta adquirida ao cabo de um processo deaprendizagem que tem por objecto regras de percia, deontologia profissional edeveres jurdicos que regulam a actividade. No tendo os deveres profissionaissido objecto de alterao recente, tudo aponta para que o agente os conhea etenha agido, portanto, com conhecimento da proibio. A fora do indcio tornamais fcil a sua confirmao. No entanto, no s indispensvel essaconfirmao como inadmissvel uma inverso do nus da confirmao.

    6. Concluso: o erro sobre a proibio conduz no segundo grupo de casos acimamencionado excluso do dolo e no terceiro pode ter esse efeito: neste a conscinciada danosidade social do comportamento torna dispensvel o conhecimento daproibio para o agente aceder ilicitude do facto. Excluso do dolo e subsistncia denegligncia profissional: a violao censurvel do dever de informao.

    II. O espao do erro sobre a ilicitude do art.17

    1. A conscincia da ilicitude ao nvel penal como conscincia da ilicitude qualificada(FIGUEIREDO DIAS): no basta a representao do carcter ilcito do facto.Consequncias prticas desta caracterizao: ex. A tem conhecimento da proibio deexportao de uma dada mercadoria mas pensa que a violao dessa proibio constituiuma contra-ordenao e est disposto a pagar a coima. Pode dizer-se que A temconscincia da ilicitude penal? Pode sustentar-se que nos delicta mere prohibita o

    conhecimento da proibio sempre condio de acesso conscincia da ilicitude

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    penal, mas no d imediatamente essa conscincia. Esta passa pela qualificao daproibio segundo a norma de sano. Questo diferente a de saber se A devesuportar o risco penal da qualificao errada (censurabilidade do erro).

    2. Conscincia da ilicitude eventual: a dvida sobre a ilicitude qualificada e a indiferenaou desinteresse perante tal ilicitude. Estamos na zona limite entre a conscincia dailicitude e a sua falta.

    - A distino entre dvida insupervel e dvida supervel. Exemplo do primeirocaso o dfice de regulao jurdica ou a confuso jurisprudencial acerca doslimites do permitido e do proibido: em certos casos o legislador expressa-se deforma to vaga, difusa e complexa, ou as interpretaes jurisprudenciais so toequvocas e dependentes de factores to conjunturais, como o tribunal que lhecalha em sorte, que o agente no tem meio de se orientar para a ilicitude ou licitudedo seu facto. Nestes casos, se o agente decide actuar apoiando-se numa posiojurdica fivel, aconselhado, por exemplo, por um jurisconsulto, haver erro sobre ailicitude no censurvel, mas nunca conscincia da ilicitude (v. infra, 5. iiii). O dficecorre por conta da ordem jurdica.

    Ex. do segundo caso a indiferena ou desinteresse do agente pelas consequncias,em condies de dvida supervel. O agente no reflecte, no se informa, no seapoia numa posio jurdica, etc., aceitando ou acomodando-se valorao negativado facto. Haver aqui conscincia eventual da ilicitude.

    4. Apesar de agir com dolo o agente pode no ter acedido ou alcanado a ilicitude oudesvalor qualificado do facto por ter feito interceder uma valorao errnea acerca do

    significado do mesmo. Exemplos:

    - o agente est convencido de que a proibio (que conhece plenamente) contrariaum direito que lhe assiste, por exemplo o direito constitucional de livre iniciativaprivada ou de livre gesto empresarial (art.61 n1 da CRP), e por issoinconstitucional (erro sobre a validade).

    - o agente est convencido de que o seu comportamento no causa dano aningum e por isso no concretamente desvalioso para o Direito.

    - Note-se que nas situaes de erro o agente exprime uma atitude diferente da que

    revela nas situaes de dvida que acima referi: naquelas o agente est convencido

    por motivos atendveis ou inatendveis, isso outra questo de que no actuailicitamente apesar de estarem reunidas todas as condies para apreciar o desvalordo facto de um modo diverso - em sintonia com a ordem jurdica.

    5.A censurabilidade da falta de conscincia da ilicitude

    - Como disse antes, a formao do dolo alerta para a possvel ilicitude docomportamento (funo de apelo). Apesar disso o agente fez interceder nopercurso uma valorao errada, diversa da valorao jurdica: podia ele ter evitadotal valorao? Era-lhe concretamente exigvel que a evitasse?

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    i) A tenso da conscincia tica critrio proposto por FIGUEIREDODIAS, em meu entender inadequado nos casos de criminoso por convicoe de delicta mere prohibita: nos primeiros porque a voz da conscincia s

    probe ao agente comportamentos que so desvaliosos luz do seu sistemade crenas; nos segundos porque a conscincia tica no tem orientaopara dar, j que o desvalor de tais comportamentos carece de ressonnciatica.

    ii) O esforo de reflexo - necessidade de recorrer ao tipo social do agenteconstrudo a partir das caractersticas do agente: profisso, nvel deeducao, nvel cultural, posio social, etc. Se se concluir que, usando umesforo reflexivo, exigvel a uma pessoa do seu tipo social, o agente noalcanaria o problema da ilicitude, o erro no ser censurvel.

    iii) A busca de informao ou consulta e a confiana nas fontes: 1) junto deentidades especializadas; uma entidade administrativa, designadamente aautoridade reguladora, um jurisconsulto, o Ministrio Pblico, um tcnicofiscal, etc.; 2) junto de pessoa da total confiana do agente, desde que talconfiana no seja infundada; 3) atravs da consulta directa dejurisprudncia se a jurisprudncia for contraditria, de tal forma que nopode fornecer orientao para agir, no deve ser censurvel o erro queresulta de o agente ter seguido uma das correntes jurisprudenciais.

    Nenhuma das fontes indicadas partida exclusiva ou prioritria: aadequao da fonte, aspecto importante do cumprimento razovel do deverde informao, aferida na situao concreta

    iiii) Se o agente no se informou, mas a questo era juridicamentecontroversa, de tal modo que subsistiria o estado de dvida mesmo que elese tivesse informado (caso de dvida insolvel), ou seja, o cumprimentorazovel do dever de informao no lhe forneceria nenhuma orientaoprtica, ento a falta de conscincia da ilicitude deve considerar-se tambmno censurvel (OTTO). No s a informao ou consulta no projectariaqualquer luz sobre a dvida, a qual, por isso, continuaria a subsistir, comono podemos exigir ao agente mais do que exigvel a juristas, impondo-lheque acerte na interpretao correcta quando aqueles no conseguementender-se acerca dela.

    - O erro sobre a ilicitude censurvel equivale a uma conscincia potencial dailicitude (distinta da conscincia da ilicitude eventual): o agente no representou ailicitude do facto mas podia ter acedido a ela - as circunstncias da ocorrncia doerro so exclusivamente imputveis ao agente.