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LUÍS ALBERTO DIAS FRANCO NEVES - VIANA DO CASTELO 2011 AUTO DA FLORIPES NÚCLEO PROMOTOR AUTO DA FLORIPES

Auto da Floripes

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Livro da autoria de Luís Franco, que contem um enquadramento histórico do Auto da Floripes, e respectivo texto e movimentações.

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L U Í S A L B E R TO D I A S F R A N C O

N E V E S - V I A N A D O C A S T E L O2 011

AUTO DA

FLORIPES

N Ú C L E O P R O M O T O R

AUTO DA FLORIPES

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FOTOGRAFIAS: Arquivo da Comissão de Festas em honra de Nossa Senhora das Neves;Arquivo de Jaques Ribeiro;Selecção e composição de Pedro Rego;Tratamento digital de Nuno SimõesIMPRESSÃO: Gráfica de BarroselasDESIGN:Designers Anónimos®TIRAGEM:1000 ExemplaresEDIÇÃO:Núcleo Promotor do Auto da FloripesMaio de 2011INFORMAÇÕES e CONTACTOS:http://www.facebook.com/nucleopromotorautodafloripeshttp://www.youtube.com/user/[email protected]

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A presente edição é a continuidade da divulgação e valorização do ex-libris, promovidas pelas mesmas entidades do ano de dois mil e nove, numa iniciativa do Núcleo Promotor do Auto da Floripes. Em tempos contur-bados, é louvável e visionário o apoio incondicional e consequente na cultura popular e no património imaterial.

Depois dos conterrâneos e dos espectadores, são agora comtemplados os muitos intervenientes, estudiosos e interessados neste representante do género teatral popular, que a modernidade revelou estar dotado de uma capacidade de adaptação e sobrevivência extraordinária. Este simples livro é composto por uma introdução histórica da importância do império de Carlos Magno para a religião cristã, da literatura de temática carolíngia e do Auto; pela disposição dos intervenientes; pela descrição da representação e o texto anotado que remanesceu até ao século actual, recolhido com o apoio dos Comediantes durante quinze anos de ensaios e actuações. Todos os versos cantados são apresentados em quadra. O texto do Auto para os actores tem e terá sempre três formas distintas: a escrita, a memorizada e a representada, pelo que é comum ocorrerem várias diferenças entre o que é representado no palco e o que aqui está escrito. Com o virtuosismo dos actores e a participação e sensibilidade dos restantes intervenientes cada representação do Auto da Floripes é sempre única e irrepetível.

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INTRODUÇÃO HISTÓRICA

Em busca primeiro da subsistência e da prosperidade e depois da riqueza e do poder, o homem ao longo dos séculos viajou, lutou, conquistou e cultivou. Migrações, inva-sões, guerras, ocupações, administrações, uniões e tratados foram meios para se estabele-cer, conservar ou conquistar territórios detentores do que se tornou a História: os povos, as nações, as edificações, as línguas e as tradições. Ao longo dos séculos as terras foram calcorreadas por nobres, guerrilheiros, soldados, marinheiros, mercadores e escravos, destacando-se aqueles que demarcaram as culturas: os líderes, os pensadores, os religiosos, os militares e os administradores territo-riais. Os povos e as culturas nunca foram os mesmos. O mar Mediterrâneo pelo dom que sempre teve de fertilizar as terras que banha e de afas-tar o frio do norte da Europa e o calor do sul do deserto Sahara, foi o impulsionador das maiores culturas que o homem moderno teve o privilégio de estudar. Reis, pensadores e empreendedores utilizaram-no para construir grandes culturas do que hoje conhecemos por Egipto, Grécia ou Roma.

A Europa, rica em recursos naturais, extremamente fértil e com mão-de-obra abundante, após o fim do mundo grego, conheceu nos séculos III e II a.C. a expansão social e económica de Roma que, através de César Augusto, veio a culminar no século I a.C. no estabelecimento do maior Império da História – o Romano. Com bons líderes, generais e administradores, o Império anexou e consolidou uma área que no século IV englobou quase todo o continente europeu (faltando apenas o centro-norte) e todos os países medi-terrânicos (anexos, mapa 1, página 71). Um império forte que quando bem governado, com as inovadoras vias a ligar Roma às províncias e uma língua comum a permitir o contacto entre os vários povos foram as bases para um desenvolvimento sociocultural sem paralelo.

Com as sucessões de césares e augustos, as dificuldades económicas e adminis-trativas em gerir um território tão vasto, os conflitos políticos em Roma e as necessidades estratégicas e militares, o império perdeu a organização e passou a ter divisões internas constantes. Diocleciano, imperador no ano 285, para estabilizar o império dividiu a ad-ministração entre os sectores oriental (pars Orientis) e ocidental (pars Occidentis) e em conjunto com Maximiano, os dois governaram e reorganizaram novamente o Império. Mas duas partes, dois césares e dois augustos acirraram ainda mais disputas, traições e conflitos. Flavius Valerius Constantinus, que havia servido a Diocleciano, foi proclamado pelos seus soldados augusto em 306 e ao derrotar Licínio na parte oriental em 324, tornou-se sob o nome de Constantino, o Grande, o último imperador romano carismático. Devido

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às intrigas políticas do senado, fundou no oriente uma nova capital na antiga cidade grega de Bizâncio, que viria a ter em sua homenagem o nome de Constantinopla (actual Istam-bul, na Turquia). Foi também o primeiro imperador cristão, que pelo Édito de Milão em 313 tornou o Império neutro em relação a confissões religiosas, dando fim às perseguições contra os cristãos que eram considerados os culpados dos males dos romanos. Constantino com as suas decisões alterou o futuro da Igreja Cristã e da Europa, pois ao passar a capital do Império para Bizâncio, esvaziou a cidade de Roma de poder e abriu espaço para nela se fixar a sede do Cristianismo, sendo estabelecida posteriormente a soberania temporal pontifícia que viria a culminar na fundação de uma cidade-estado independente, o Vaticano. Teodósio I foi o último líder do grande Império unificado pois ao decidir a divisão após a sua morte em 395, para os seus dois filhos, surgiram: o Império Romano do Ocidente, tendo como capital Roma, e o Império Oriental ou Bizantino, sede-ado em Constantinopla (anexos, mapa 2, página 71). Os povos não romanos incivilizados, brutais e cruéis, partindo do norte, centro e leste a partir do século II, com as migrações, e nos séculos IV e V com as invasões bárbaras transformaram uma parte do antigo Império Romano, que com tantos conflitos internos se tornou permeável a várias ofensivas. Os hunos, germanos, eslavos, e árabes sucederam-se no domínio da Europa (anexos, mapa 3, página 72). Os hunos, um dos povos bárbaros mais violentos, ávidos por guerras e pilhagens e ne-cessitados de terras para pastagem dos animais, surgiram do centro da Ásia e conseguiram sob o comando de Átila conquistar todo o território compreendido entre os montes Urais na Rússia até às margens do rio Ródano na actual França. Guer-rilheiros nómadas e imbatíveis venceram tudo e todos, obrigando vários povos a deslocarem-se e a fugir deles. Este facto originou um efeito dominó entre os outros povos bárbaros, maioritariamente tribos germânicas, que acabariam por migrar massivamente, a partir do século V, de uma forma não pacífica para o interior do Império Romano do Ocidente. Suevos, alanos, burgúndios, francos, lombardos, vândalos e godos penetraram, saque-aram e ocuparam a Gália, a Península Ibérica, a Itália e o norte de África. Anglos, saxões e jutos tomaram a Britânia. Para defenderem Roma dos

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sucessivos ataques, os imperadores recorreram ao auxílio de outros chefes bárbaros, fican-do à sua mercê. Os hérulos, originários da Escandinávia e estabelecidos na Europa Central, no ano de 476 liderados por Odoacro invadiram Roma e depuseram Rômulo Augusto em Ravena, o último soberano do Império Romano do Ocidente. Foi o acontecimento histó-rico que marcou o fim da Antiguidade e o início da Idade Média. Os eslavos, do leste da Europa, com a debandada dos germânicos para ocidente e a queda dos hunos emergiram da obscuridade, afirmando-se no centro do continente. Por fim os árabes no século VIII realizam a última invasão bárbara, ocupando o norte de África e a Península Ibérica. Do grande Império Romano restou apenas o Bizantino, resistente a todas as in-vasões e dominador do Mar Mediterrâneo, das suas ilhas e da costa desde o sul da França até ao Próximo Oriente. Foi o bastião do Cristianismo durante séculos. Constantinopla substituiu Roma como centro cultural e político de toda a Europa, sucumbindo apenas perante os otomanos no ano de 1453, demarcando o fim da Idade Média. A tribo germânica dos francos, estabelecida na foz e vale do Reno, a partir do sé-culo III entrou no Império Romano do Ocidente, chegando à Península Ibérica e ocupan-do parte da actual Bélgica. Entre invasões, expulsões e apaziguamentos, os francos tendo sido bons negociadores instalaram-se de forma permanente na Gália romana, primeiro como federados do Império e com o direito de administrar a Gália belga, e posteriormente ocupando toda a parte da Gália atlântica. Após a queda do Império do Ocidente, os francos fundaram em toda a Gália e Renânia o reino germânico mais sólido e duradoiro sob a dinastia merovíngia, mas subdivididos em sálios, ripuários e sicambrios, só se unificaram sob o carisma de Clóvis I, que casando-se com uma princesa burgúndia e uma irmã dele com o rei ostrogodo Teodorico o Grande, conseguiu evitar os ataques de outras tribos germânicas, exceptu-ando os visigodos que teve de travar nos Pirinéus. Clóvis I tendo-se convertido em 496 ao Cristianismo, quando ainda todos os outros reinos germânicos eram pagãos, tornou os francos no primeiro povo bárbaro convertido ao Cristianis-

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mo. Foi conseguida uma aliança importante com o Império Bizantino, fundiram-se os habitantes galo-romanos com os invasores recém-baptizados e foi assegurada a sobrevi-vência do culto cristão no extinto Império do Ocidente. Clóvis I construiu o que com o tempo se constatou ser o mais estável dos reinos sucessores no oeste. O grande problema da dinastia merovíngia e que se lhe tornou fatal foi a prá-tica germânica de divisão de terras entre os filhos. As sucessões implicavam divisões e reunificações frequentes e obrigavam a várias alianças e escolhas dos soberanos. No fim do século VII e início do VIII a ocorrência de mortes prematuras dos reis e a sucessões de outros menores de idade provocou o fim dos merovíngios, que perderam o trono para os sucessores dos mordomos de palácio, os administradores dos reinos francos. No ano de 751, com a bênção papal, Pepino o Breve, filho do mordomo de palácio Carlos Martel, tornou-se o primeiro rei franco da dinastia carolíngia. Após ter salvo Roma dos lombardos, Pepino estabelecendo alianças e doações com o papa Estêvão III obteve, em 754, para si e para os seus descendentes o título de patricius Romanorum, ou seja, os defensores dos ro-manos. No ano seguinte cumprindo uma promessa recuperou aos lombardos a província de Ravena, perdida pelo Império Bizantino. Em vez de a anexar ao seu reino ou devolver a Constantinopla, doou-a ao papado juntando ainda mais territórios circundantes de Roma. Tal acto, assinado no Tratado de Quierzy, deu origem a uma nova ordem e ao aparecimen-to do estado pontifício. A Santa Sé passou a ter independência política e a faculdade de exercer o poder sobre todos os outros poderes temporais. Pepino até à sua morte em 768 foi soberano de um reino amplo, sólido e estável. A fé cristã foi con-solidada e o pontificado ganhou protagonismo com a protecção franca. Na sua sucessão, o reino foi dividido pelos seus dois filhos, Carlos e Carlomano, para o pri-meiro a parte ocidental e para o segundo a parte orien-tal. Carlomano morrendo pouco tempo depois, ficou novamente o território franco inteiro para aquele que ficou na História conhecido como Carlos Magno, uma figura poderosa, ambiciosa, inteligente, interessada pelas artes e cultura. Tornou-se uma lenda ainda maior do que a corpulência atribuída. Tendo passado grande parte da vida em cam-panhas militares, conquistou o que nenhum outro tinha ainda conquistado, anexou territórios, impôs a conver-são cristã obrigatória sob penas de morte, incorporou missionários e fundou dioceses, conseguindo unir

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grande parte do que fora o Império Romano do Ocidente. Renovou a doação de territórios e continuidade da protecção franca ao papado, que consolidou o poder na península itálica (anexos, mapa 4, página 72). Carlos Magno foi o grande líder da cristandade ocidental. No dia 25 de Dezembro de 800 foi coroado, em Roma, pelo papa Leão III como imperador dos romanos. A coroação estabeleceu a legitimidade e primazia da dinastia carolíngia entre os francos. Carlos Mag-no ao aceitar tornar-se imperador cristão romano, provocou uma ruptura com o Império Bizantino, afastando para sempre o ocidente do oriente. Dos vários filhos nascidos, só um sobreviveu a Carlos Magno, Luís o Pio que con-tinuou a manutenção do Império, mas a sua morte ditou o seu fim. Do Tratado de Verdun em 843 resultou a partilha e divisão para os seus três filhos Lotário, Luís o Germano, e Carlos o Calvo. Do legado germânico-romano cristão começado pelos carolíngios resultou o conceito actual de Europa unificada, onde os vários reis governaram as suas partes com-partilhando as mesmas crenças e ideias e cumprindo lealdade a um soberano. O impacto histórico foi tão importante que a divisão de Verdun definiu a grande parte das fronteiras de países actuais como a França, a Alemanha, a Bélgica e a Itália. O termo franco, em árabe al-faranj ou em chinês falangji, na Idade Média serviu para descrever um europeu qual-quer. Os cruzados, nas expedições militares, identificavam-se como francos.

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A LITERATURA CAROLÍNGIA

De A Canção de Rolando À História do Imperador Carlos Magno, e dos Doze Pares de França

Do francês antigo chansons de geste, as canções de gesta ou de feitos heróicos foram composições épicas dos séculos XI ao XIII que narraram os acontecimentos memo-ráveis, as grandes vitórias nas guerras contra os infiéis, e a ascensão de cavaleiros a heróis. Foram os romances que transformaram a história em lendas e as lendas na história popular. O género literário, em poesia e tendo o empenho dos monges na manuscrita foi utilizado em leituras colectivas, declamado e acompanhado com música, tendo formado o imaginário cristão durante longos séculos. Baseando-se uma parte significativa das canções em torno dos feitos de Carlos Magno, fizeram do imperador o líder histórico (e muitas vezes imaginário) das lutas contra os infiéis e o impulsionador de uma Europa una e católica. Quanto mais forte foi a presença ou invasão de inimigos infiéis, mais intensa foi a divulgação e implantação do estilo.

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La Chanson de Roland ou A Canção de Rolando1 em português, atribuída ao monge normando Turoldo que a terá compilado e manuscrito no final do século XI, foi a canção de gesta pioneira e talvez a mais importante. Narra a batalha travada por Rolando e os outros Pares de França em Roncesvalles, no nordeste da Hispânia2, contra os sarracenos liderados por Baligante3, Almirante da Babilónia4, na qual os Doze Pares foram embosca-dos e perderam a vida devido à traição de Ganelon5. A Carlos Magno só restou a vingança contra o traidor e os inimigos. Para além de heróis, as canções também transformaram vilões em lendas. No século XIII tendo como base o poema anónimo La Destruction de Rome, foi publicada por Philippe Mousket na sua La Chronique Rimée uma parte com uma canção composta por um autor anónimo no século anterior que relatava a história de um grande sarraceno que, protegido pelos po-deres de um bálsamo no qual foi o corpo de Jesus Cristo ungido, no ano de 846 invadiu e saqueou a cidade de Roma, levando o tesouro de São Pedro, no qual se encontravam as santas relíquias que tiveram de ser corajosamente resgatadas na Hispânia por Carlos Magno, numa batalha em que o seu cavalei-ro Olivier6 travou um duelo vitorioso com o gigante. Ficou conhecida como a canção de gesta Fierabras7. Em Compostela encontra-se conserva-do na catedral o Liber Sancti Iacobi, ou Livro de Santiago numa tradução livre. Trata-se de uma compilação de vários manuscritos iluminados e em latim com origem no século XII. Elaborado durante o papado de Calisto II, no início consta uma carta a ele atribuída pelo qual a obra adquiriu o título

1 Roldan em castelhano, tendo derivado no português como Roldão, presente no Auto da Floripes.2 Antiga província romana que compreendia todo o território da Península Ibérica.3 Almirante Balaão no Auto da Floripes.4 Na Idade Média a cidade da Babilónia já não era a antiga cidade mesopotâmica mas a cidade do Cairo, no Egipto.5 Galalão no Auto da Floripes.6 Oliveiros no Auto da Floripes.7 Ferrabrás no Auto da Floripes.

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pelo seu nome - Codex Calixtinus. Composto por cinco livros é um monumento autêntico ao culto do apóstolo. Nele é relatado a anunciação a Pelágio e o descobrimento do corpo de S. Tiago Maior, a sua participação determinante na reconquista cristã da Hispânia, os milagres, as aparições a Carlos Magno e a descrição das celebrações religiosas e do roteiro que os peregrinos deveriam tomar. O quarto livro escrito em prosa com o título L’Historia Karoli Magni et Rotholandi relata a aparição do apóstolo a Carlos Magno nos seus sonhos, as conquistas do rei franco contra o ídolo Mahoma e os mouros liderados pelos reis Aigolando, Ferrabrás e seu pai Balão, a grande batalha de Rolando contra o gigante Ferragut, a batalha de Roncesvalles e a morte nela de Rolando e mais companheiros, as igrejas man-dadas construir por Carlos Magno e outras benfei-torias, e ainda as mortes do imperador e de Turpim, arcebispo de Reims e um dos doze Pares de França a quem foi atribuída a autoria do texto, daí o história ser conhecida como a crónica Pseudo-Turpin. No século XIII o monge dominicano francês Vincent de Beauvais tendo ao seu dispor a biblioteca real de Luís IX escreveu uma importante enciclopédia sobre todos os conhecimentos da época. O Speculum Majus ou Espelho Maior composto por 80 livros e 9885 capítulos divididos em quatro partes: Speculum Naturale, Speculum Doctrina-le, Speculum Historiale e Speculum Morale (este último finalizado por discípulos). Na terceira parte, no Speculum Historiale, foi descrita a história do mundo desde a criação divina até ao ano de 1250. Jean Baignon ou Jehan Bagnyon, prestando tributo aos seus duques de Sabóia , publica entre 1475 e 1478 a obra Histoire de Charlemagne que ficaria também conhecida como Roman de Fierabras. Escrita em francês e em prosa, foi a maior narrativa até à época sobre a vida de Carlos Magno, a sua linhagem, as suas conquistas e os seus cavaleiros. Extremamente bem elaborada, acabou por ser uma excelente adaptação e compilação do Speculum Historiale de Vincent de Beauvais, do poema francês Fierabras e de uma tradução da crónica Pseudo-Turpin. Dividida a obra em três partes: na primeira é narrada a fundação da França, o seu primeiro rei cristão e de todos os seguintes até Carlos Magno se tornar o imperador de Roma; na segunda a cruel batalha e vitória do cavaleiro Oliveiros com Ferrabrás, rei de Alexandria; e na terceira as vitórias e obras realizadas por Carlos

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Magno, a traição de Galalão e a morte dos Doze Pares. A história teve um sucesso tão extraordinário que poucos anos depois, em 1521, o importante tipógrafo alemão ao serviço dos coroas ibéricas, Jacobo Cromberger, imprimiu na sua tipografia de Sevilha a versão em castelhano intitulada Hystoria del Emperador Carlomagno y de los Doze Pares de Francia, y de la cruda batalla que uvo Oliveros con Fierabras rey de Alexandria, hijo delAlmirante Balan. Desta versão são conhecidas cerca de 120 edições. A autoria foi atribuída a Nicolas de Piamonte (ou Nicolau de Piemonte), mas face à ausência de referências biográficas e a alusão do nome ao ducado de Sabóia8, não pode ser afastada a hipótese de tratar-se de um pseudónimo de Baignon. Embora fosse possível a história já circular pelo povo que dela poderia ter co-nhecimento através das peregrinações a Compostela ou de alguns livros importados, em Portugal apenas foi editada pela primeira vez no ano de 1613. Mais de um século depois e tendo talvez como tónico a brilhante vitória, em 1717 na batalha de Matapão (Grécia), da diminuta armada portuguesa contra a numerosa dos turcos, foram então elaboradas as versões portuguesas a partir das castelhanas acrescentadas com partes originais distintas. Com o título de História do Imperador Carlos Magno, e dos Doze Pares de França foi

8 Sabóia é actualmente uma pequena localidade que fica localizada na região de Piemonte, noroeste da Itália, tendo o ducado abrangido o nordeste da França, a Suíça e o noroeste da Itália.

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escrita e publicada em 1728 por Jerónimo Moreira de Carvalho a primeira parte, composta por cinco livros tratou-se do texto de Piemonte traduzido de Castelhano em Portuguez com mais elegância para a nossa lingua conforme a capa. A segunda parte publicada em 1737 pelo mesmo autor, com quatro livros aborda novos acontecimentos e proe-zas do Imperador e seus cavaleiros não relatados no primeiro tomo conforme o proémio. A obra ficou completa em 1743 com uma terceira parte escrita por Alexandre Caetano Gomes Flaviense nomeada Terceira Parte da História de Carlos Magno, em que se escrevem as gloriosas acções, e victórias de Bernardo del Carpio, e de como venceo em batalha aos Doze Pares de França anexa às outras duas par-tes de Jerónimo Moreira de Carvalho. A História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França é uma fábula cavaleiresca baseada em factos reais misturados com a história de histórias de batalhas que nunca aconteceram, com intervenientes e circunstâncias que nunca existiram, em locais onde Carlos Magno e os verda-deiros Doze Pares de França nunca estiveram e de uma conquista que Carlos Magno ambicionou mas não conseguiu, a reconquista cristã da antiga Hispâ-nia romana. Mas é inegável que teve mais interesse histórico e importância que muitas biografias, as-sim como um efeito extremamente moralizador e evangelizante que na Europa, e posteriormente na América latina, só foi superado pela Bíblia. Realidade ou ficção, coincidência ou intencionalidade subtil, manipulação religiosa ou devoção cristã, a História do Imperador Carlos Magno, e dos Doze Pares de França tem várias semelhanças com o Novo Testamento que visam o mesmo objectivo: a implantação da verdadeira fé. Je-sus Cristo para salvar o Mundo e o género humano

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agiu em nome de Deus, criou um reino, precisou de doze apóstolos, um deles traiu-o e todos os outros foram mártires pela forma como lutaram pela verdade, virtude e expansão da fé cristã. Pela nar-rativa da História, Carlos Magno e os Doze Pares pelo seu grande amor a Jesus Cristo lutaram sem-pre em desigualdade contra inú-meros exércitos de infiéis, falsos ídolos, diabos, gigantes e feitiços. Pela sua verdadeira devoção e dedicação divina foram presente-ados com milagres e vitórias.

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A ADAPTAÇÃO TEATRAL

Da História do Imperador Carlos Magno, e dos Doze Pares de FrançaAo Auto da Floripes

Tendo sido a cultura europeia na Idade Média dominada pela religião cristã, a literatura durante o Renascimento também não saiu da sua esfera de influência, tendo neste período ocorrido a maior proliferação do mito e dos textos alusivos ao grande imperador cristão. Os feitos do rei franco Carlos Magno não só fazem parte da literatura francesa e do imaginário do povo francês, como de todas as outras culturas da Europa ocidental. Fo-ram factos determinantes a queda impensável de Constantinopla nas mãos dos otomanos, maioritariamente turcos, e o medo generalizado de uma possível invasão que se instalou e permaneceu séculos na Europa; na Península Ibérica também o fim da longa ocupação árabe, as expulsões e conversões dos infiéis assim como os seus costumes e resistência que foram satirizados muito ao gosto do povo, em festas populares e religiosas, através de lutas entre cristãos e infiéis, nas quais os últimos eram sempre derrotados e humilhados. A História de Piemonte foi uma excelente base e devido à fidelidade da tradução da matriz francesa, por cá surgiram no lugar dos árabes, sarracenos ou mouros os terríveis turcos que afinal não eram da Turquia, mas sim da Hespanha (a Hispânia romana). Os autos, designação portuguesa e espanhola para peças dramáticas de assunto religioso, foram um género teatral original da Península Ibérica, surgido em plena Idade Média e muito cultivado nos séculos XVI e XVII. Os autos, provenientes ou variante dos dramas litúrgicos dos mistérios, moralidades e milagres, poderiam ser religiosos ou não, mistos de sacro e profano, pedagógicos, alegóricos ou satíricos. Eram em geral feitos ao gosto do público, tendo duas vertentes: a erudita e a popular. Na primeira, eram compo-sições devidamente elaboradas para serem levadas a cena para determinados públicos como os nobres, clérigos ou burgueses, tendo-se destacado Gil Vicente que foi consagrado, num sentido figurativo, como o pai do teatro português. Já na vertente popular, eram as adaptações do teatro medieval ou de temas da Idade Média pelo ou para o povo, que o moldou, representou e conservou, podendo-se constatar como exemplos o Auto de São João, em Subportela, como representação tipo dos mistérios e milagres na dramatização da anunciação e júbilo de Zacarias pelo nascimento de seu filho São João Baptista; ou pelo Auto da Floripes baseado na história e vidas de Carlos Magno e dos Doze Pares de França. Como o teatro e a literatura evoluíram com interligações constantes, entre os séculos XVI e XVIII, foi também muito popular em Portugal e Espanha, e posteriormente na América Latina, a literatura de cordel, pliegos de cordel ou pliegos sueltos (folhas soltas) em castelhano. Deve o seu nome ao facto de ser escrita em folhetos, de 8, 16, ou 32 páginas,

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presos por um cordel de forma a poderem ser pendu-rados para exposição e venda. Tiveram em Portugal uma composição similar aos textos dos autos, em poesia com versos em redondilha maior (de sete sí-labas) e estrofes em quadras com rima nos segundo e quarto versos. Provenientes de livros com muito interesse popular e geralmente adaptações de textos com muito sucesso, parte significativa dos folhetos eram peças de teatro, os temas geralmente baseavam-se nas vidas dos nobres e dos cavaleiros, tendo tido grande destaque a temática de Carlos Magno e dos Doze Pares de França. Em Portugal, como sátira aos ocupadores muçulmanos, a introdução das aventuras de Carlos Magno e dos seus cavaleiros em representações teatrais durante as festividades e romarias, foi bem sucedida e generalizada por todo o país, tendo algu-mas delas resistido até aos nossos dias ou até ao nosso conhecimento. A fórmula simples da temática carolíngia acabou por ser a junção de histórias das cavalarias tão ao agrado do povo com a divulgação da fé e a exemplificação dos bons cristãos. Nem a Santa Inquisição teria nada a opor à publicação de textos de tão nobre Imperador ou à realização de espec-táculos que tanto enaltecia a fé cristã.

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A HISTÓRIA

É uma peça de teatro representada no dia 5 de Agosto (dia da padroeira) no lugar das Neves, por populares das freguesias de Mujães, Barroselas, e Vila de Punhe, concelho de Viana do Castelo. Centrada numa luta entre o Imperador Carlos Magno e seu exército contra turcos de origem desconhecida, a representação é monopolizada pela batalha entre o ca-valeiro cristão Oliveiros e o rei de Alexandria Ferrabrás, na qual o primeiro vence, mas rapidamente é preso através de uma emboscada do exército turco. Ocorrendo embaixadas de parte a parte para serem resolvidas as divergências, são detidos quatro embaixadores cristãos e o clima de guerra intensifica-se para então surgir Floripes, a filha do rei turco Almirante Balaão, que movida por amores por um cavaleiro cristão (Guui9 de Borgonha) trai o seu pai, enfeitiça o carcereiro e solta os presos para acabar por se casar com Oliveiros. Ficando o exército de Carlos Magno restabelecido é travada batalha entre todos os soldados na qual os cristãos desarmados, mas providos de valentia, vencem os turcos que aceitando a conversão cristã são libertados. Termina o evento com cânticos e danças entre vencedores e derrotados, acompanhados pelo som das palmas do público e das bandas filarmónicas que tocam as músicas características, as Contradanças. Foi representado durante muitos anos em longos tablados, ao estilo do teatro me-dieval, com três partes bem definidas: num extremo o campo cristão, o dos bons; no centro o campo da batalha, o local das decisões; e no outro extremo o campo turco, o dos inimigos. Os infiéis são ridicularizados e humilhados pois perdem contra cristãos desarmados, e que para serem soltos sujeitam-se à conversão; para de seguida incorporarem uma dança, que na sua compreensão enquadra-se nas mouriscas e judengas muito populares a partir do reinado de D. Manuel I (1495-1521) após a expulsão ou conversão forçada dos mouros e judeus, e realizadas nas festividades religiosas ou até nas procissões mais relevantes, como as do Corpus Christi. Os cânticos da loa final são uma consagração a Nossa Senhora das Neves. Englobando estas características ao título também sugestivo, pode-se então considerar o Auto da Floripes como uma representação dramática medieval de temática carolíngia típica dos séculos XVI e XVII, conforme tem sido descrito por vários historiado-res e etnógrafos. Só que para tal ser possível, fica-lhe a faltar o mais importante – o que hoje poderíamos chamar de guião.

9 Gui na História do Imperador Carlos Magno, é pronunciado no Auto com a junção da consoante “g” mais as vogais “ui” e não pela leitura clássica pela qual só seriam sonorizadas duas letras.

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O Auto da Floripes herdou da Idade Média o anonimato da autoria do texto, da criação da dramatização e do início das representações. Sendo um evento tradicional transmitido oralmente de geração para geração e face aos registos do século XIX, pode-se deduzir que é indubitavelmente antigo. Foi cronografado como tendo cerca de 400 anos talvez baseado na designação, na forma e na época em que o género dos autos foi popular, cultivado e datado. À falta de documentos que comprovem que o texto tenha sido escrito ou as representações iniciadas nos referidos séculos XVI e XVII, pode o início da repre-sentação do Auto da Floripes ser temporizado, com uma boa margem de exactidão, entre a segunda metade do século XVIII e o início do XIX. Servem como fundamentos a evidência de o texto do Auto ser uma adaptação da versão nacional da História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, os nomes das personagens serem os aportuguesados por Jerónimo Moreira de Carvalho e não os das versões castelhanas, de referências regis-tadas por Leandro Quintas Neves no seu trabalho publicado em 1963 presentes apenas na segunda parte da matriz cuja primeira edição foi publicada em 1737, e a publicação de um texto sobre a romagem da Senhora das Neves no Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro para o ano de 1860, no qual o Auto da Floripes (ainda sem esta designação) já era descrito como o drama predilecto do seu povo.

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DISPOSIÇÃO DOS INTERVENIENTES

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A REPRESENTAÇÃO

No dia da padroeira Nossa Senhora das Neves, realiza-se a representação do secular Auto da Floripes no largo das Neves, ao fim da tarde quando a calma cai10. Vinte e cinco pessoas oriundas das freguesias de Mujães, Vila de Punhe e Barroselas, iniciam o dia como Comediantes11; à tarde transformam-se em lendários Carlos Magno e Doze Pares de França ou nos temíveis e ferozes turcos do Exército do Almirante Balaão12 e na formosa e graciosa Princesa Floripes; e à noite voltam a ser simples e comuns habitantes, como no dia anterior.

10 Expressão antiga utilizada para quando o calor perde a força, ou seja no início do pôr-do-sol.11 O Auto da Floripes é denominado nas freguesias pela expressão popular de Comédias das Neves, daí resultan-do o termo Comediante para os elementos que participam na representação.12 Balão na matriz História do Imperador Carlos Magno.

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Vindo do lado nascente da antiga estrada nacional o batalhão cristão é com-posto por Carlos Magno na frente, tendo ao seu lado Oliveiros à direita, e Guarim à esquerda, atrás oito Pares de França, em duas fileiras e no final o Porta-Bandeira. Atrás deles uma banda filarmónica toca a Contradança dos cristãos. O batalhão às ordens do seu rei é dirigido para o palco.

CARLOS MAGNO:Alargar fileiras!

Posicionados no extremo direito do palco, os soldados dão um passo para o lado exterior e fixam-se nas posições que irão ocupar em praticamente toda a representação. Carlos Magno, Oliveiros e Guarim recuam para trás dos oito Pares, o Porta-Bandeira posiciona-se sempre no fim do batalhão. Todas as movimentações são executadas em sentido13 e passo de marcha, só-brio e elegante, que só termina quando a banda pára de tocar a Contradança.

13 Gesto militar em que os soldados juntam os pés, esticam os corpos, e levantam os ombros e a cabeça. Os Comediantes Cristãos têm também de levantar a lança paralela ao corpo, devendo o cotovelo que segura a lança ficar num ângulo de 90º.

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CARLOS MAGNO:Descansar lanças!14

Pára a Contradança dos cristãos e começa-se a ouvir a dos turcos. O bata-lhão, vindo do lado poente da estrada é liderado pelo Almirante Balaão, com seu filho Ferrabrás à direita e composto por oito soldados dispostos em duas fileiras, pelo Porta-Bandeira na retaguarda e por Brutamontes, o bobo e carcereiro turco. Sobem ao palco, e quando se dirigem para o extremo esquerdo, são logo desafiados por Oliveiros e Guarim, que os ameaçam em movimentos ziguezagueantes. No palco, o batalhão Turco tem os mesmos alinhamento e disposição do Cristão, com o Almirante Balaão e Ferrabrás a recuarem para trás dos soldados e Brutamontes, um soldado errante, sem lugar nem paradeiro mas sempre próximo da prisão, edificada no lado esquerdo. O gesto de sentido e o passo de marcha dos Turcos é distinto, o porte é descontraído e a espada dança nas mãos com a expectativa da batalha. Pára a banda de tocar a Contradança e pára o passo de marcha.

ALMIRANTE BALAÃO:Descansar espadas!15

14 Os soldados separam os pés, descontraem o corpo e de braços cruzados encostam, na diagonal, a lança no peito com a ponta direccionada para o centro do batalhão.15 Os soldados turcos separam os pés, recolhem o braço direito e posicionam a espada recta e junta ao ombro.

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Perante o público, o cenário tem no centro o campo da batalha, no lado esquer-do o exército turco e no lado direito o cristão. Os soldados ficam distanciados entre eles, um metro para os da frente e detrás, três para os do lado e entre cada exército distam oito metros. O palco tem dimensões aproximadas de vinte metros de comprimento e oito de largura. Inicia-se a preparação da batalha com a apresentação dos soldados aos seus soberanos. Sempre com a mesma melodia, os reis cantam as quadras no esquema A-B-C-D, os soldados repetem os 3º e 4º versos, segundo o esquema: A-B-C-D-C-D.

CARLOS MAGNO:Soldados cristãos, sentido! Ombro lanças!

Cantando:Eu sou o nobre rei cristãoDas terras mui generoso.Venço em todas as guerrasCom meu braço esforçoso.Vinde cá, ó meus vassalos,Com prazer e alegria,Defender o nosso reino,Aqui, hoje, neste dia.

Os soldados avançam até à frente da formatura e viram para dentro, olham e dirigem-se para o seu rei, a quem dedicam uma vénia. Viram para fora e chegados aos seus lugares repetem o movimento, cantando:

SOLDADOS CRISTÃOS:Meu rei, meu senhor, já vimos,Com uma grande valentia,Defender o nosso reinoAqui, hoje, neste dia.

Depois de cantar, fazem nova vénia ao rei, viram para fora e regressam aos seus postos. De seguida, cada par16 de soldados executa os mesmos movimentos e canta uma quadra diferente. Quando um par sai do seu lugar para ir à presença do rei, os outros mantêm-se na mes-ma posição.

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16 Na História do Imperador Carlos Magno, o Par é uma designação antiga para um cavaleiro grão-vassalo do rei. Na descrição do Auto um par são os dois soldados posicionados lado a lado que se movimentam sempre em simultâneo.

1.º e 2.º SOLDADOS:Meu rei, meu senhor, não tema,Nem tenha mais que temer.Vamos lá para a batalhaSuceda o que suceder.

Os soldados, quando fazem referência, apontam sempre as lanças para o cam-po da batalha ou para os inimigos.

CARLOS MAGNO:Meus valorosos vassalos,Não tenhais medo à morte,Que o meu braço é defensorNesta batalha tão forte.

3.º e 4.º SOLDADOS:Meu rei, meu senhor, já vimos,Com uma grande valentiaPara fazer baptizarFerrabrás de Alexandria.

CARLOS MAGNO:Meus valorosos vassalos, Não temais o inimigo.Que à força das nossas lançasTudo há-de ser vencido.

5.º e 6.º SOLDADOS:Meu rei, meu senhor, já vimos,Com uma grande valentia,Para fazer baptizarToda a gente da Turquia.

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CARLOS MAGNO:Meus valorosos vassalos,Não tenhais que duvidar;Preparai as vossas lançasPara logo batalhar.

7.º e 8.º SOLDADOS:Meu rei, meu senhor, fujamosPor esse mundo além;Que quem foge sempre vence,Todos nós ficamos bem.

CARLOS MAGNO:Não ficamos bem nem nada,Aqui hoje neste dia;Se nós agora fugíssemos,Que risada não seria.Soldados cristãos... descansar lanças!

No campo turco, os soldados executam acção semelhante aos cristãos mas com a diferença que quando vão par a par apresentarem-se ao Almirante, ao saírem do seu posto, os que estão atrás dão um passo longo em frente e ocupam o lugar vago. O par que acaba de se apresentar e de fazer a vénia, desloca-se para o fim das fileiras. Depois de todos os pares terem ido à presença do rei, terminam nas posições iniciais. Brutamontes acompanha os companheiros, livremente e conforme a disposição da sua cacheira17 dese-jar ou não batalha.

BALAÃO:Soldados turcos, sentido! Braço espadas!Eu sou o rei da TurquiaA quem o respeito inclina;Sou eu que tenho o poderNesta terra argelina.

17 A cacheira ou moca é um longo bastão de madeira, com a parte superior semelhante a uma cabeça humana, que nas mãos do Brutamontes readquiriu vida e o comanda.

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Vinde cá, ó meus vassalos,Com prazer e alegria,Defender o nosso reino,Aqui, hoje, neste dia.

SOLDADOS TURCOS:Somos os turcos da naçãoCriados cá na Turquia;Vimos defender o reino,Aqui, hoje, neste dia.

Os soldados apontam as espadas para os inimigos, como fizeram os Cristãos, mas de forma mais agressiva e ameaçadora.

BALAÃO:Meus valorosos vassalos,Sempre fostes valorosos;E nossos deuses de Mafoma18 Sempre foram piedosos.

1.º e 2.º SOLDADOS:Meu rei, meu senhor, não tema,Nem tenha mais que temer;Vamos lá para a batalha,Suceda o que suceder.

BALAÃO:Meus valorosos vassalos,Estai firmes e verdadeiros,Pois não é para temerA Roldão e companheiros.

18 Denominação popular do profeta Maomé. A deturpação e a mistura de mitos pagãos com a religião islâmica da matriz estão espelhadas neste verso. O islamismo é uma confissão monoteísta, ou seja, existe a crença só num deus.

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3.º e 4.º SOLDADOS:Meu rei, meu senhor, já vimosEm nós uma grande esperança;Pois não são para temerOs Doze Pares de França.

BALAÃO:Meus valorosos vassalos,Não temais o inimigo,Que à força das nossas espadasTudo há-de ser vencido.

5.º e 6.º SOLDADOS:Meu rei, meu senhor, já vimosBem fortes e verdadeiros,Pois não é para temerA Roldão e companheiros.

BALAÃO:Meus valorosos vassalos,Não tenhais que duvidar;Preparai vossas espadasPara logo batalhar.

7.º e 8.º SOLDADOS:Meu rei, meu senhor, fujamosPor esse mundo além;Que quem foge sempre vence,Todos nós ficamos bem.

BALAÃO:Não ficamos bem nem nada,Considerai bem os termos;Se nós agora fugirmos,Que risada não teremos.Soldados turcos, descansar espadas!

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Os Turcos iniciam a guerra. O Almirante Balaão enquanto canta, acompanha o seu filho até ao campo da batalha. Brutamontes passa a seguir as pegadas de Ferra-brás.

BALAÃO:Aí vai Ferrabrás pró campo,Vai firme e verdadeiro;Pois não é para temerA Roldão e companheiro.

Balaão traz a espada de Ferrabrás e entrega-lha com uma vénia. Começa a tocar a Contradança dos Turcos, e a dançar recuam ambos aos postos iniciais, saindo apenas Ferrabrás para o desafio a Carlos Magno e aos Doze Pares de França, cantando numa melodia característica:

FERRABRÁS:Eu me rogo para a batalhaPorque tenho valentia.E vai pelejar para o campoFerrabrás de Alexandria.

Ó Doze Pares de França,Vós já perdestes o brio.Parece que estais temendoCom este meu desafio.

Eu estou aqui neste campo.Eu estou aqui a pé, quedo19.Vinde vós ó Doze Pares,Pois nenhum me mete medo.

Faz uma pausa, tira a capa e pousa-a numa extremidade do campo da bata-lha, e calma e provocadoramente incita os Cristãos.

19 O mesmo que parado.

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Ó imperador Carlos Magno, homem cobarde e sem valor, manda-me dois, três ou quatro dos mais valentes e melhores dos teus Doze Pares contra mim somente, que eu espero vencer a batalha. Venham ainda que sejam Roldão ou Oliveiros, que eu te juro pelos meus deuses que não lhes voltarei a cara, ain-da que sejam seis. E adverte-te que estou só no campo e muito longe do meu exército. E se isso assim não fizeres, eu publicarei por todo o mundo a tua cobardia e dos teus cavaleiros. E já que tivestes a ousadia, o atrevimento e o valor de acometer toda a Mauritânia20 e de ganhar reinos e províncias, tem esforço para dar batalha a um só cavaleiro turco no campo!(Faz nova pausa e fala ainda mais ousada-mente)Ó Carlos Magno, indigno dessa coroa que possuis, com um só cavaleiro turco perdes a honra que em grandes multidões muitas vezes tens ganhado. Ó Roldão, ó Oliveiros, e tu, Urgel de Danois21, e vós que vos cha-mais Doze Pares, de quem tantas façanhas e proezas tenho ouvido, como não ousais apa-recer diante de um só cavaleiro. Tendes já, porventura, esquecido o pelejar ou vos mete medo a minha fraca espada? Vinde todos os Doze Pares juntos, pois que um a um não vos atreveis! Ferrabrás deita-se na “cama” onde pousou a capa, sombreado por Brutamontes e aguarda a resposta dos cristãos.

20 Diferente do actual país africano e da antiga província romana onde Carlos Magno nunca esteve, Ferrabrás nesta incitação refere-se aos ataques do Imperador nas regiões dominadas pelos mouros, ou seja, a Península Ibérica.21 É pronunciado Danoá.

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CARLOS MAGNO:Soldados cristãos, sentido! Ombro lanças!Richard22, quem é aquele turco que tão atrevidamente me ameaça?

RICHARD:Senhor, é Ferrabrás, filho do Almirante Balaão, rei de Alexandria, senhor de muitos do-mínios e riquezas; é aquele que foi a Roma e matou o Apostolado; é aquele que roubou as santas relíquias pelas quais tens padecido tantos trabalhos23. É homem de grandes forças e muito destro em todas as armas.

CARLOS MAGNO:Pois espero em Deus, Richard, que a sua soberba há-de ser humilhada e abatida.

( faz uma pausa) Roldão, sobrinho, eu vos mando que vos armeis para ir pelejar com Ferrabrás, pois eu espe-ro em Deus que haveis de sair vitorioso.

ROLDÃO:Senhor, eu não hei-de ir à batalha, sem que outros vão primeiro, pois na última batalha que tivemos contra os infiéis, nós os cavaleiros moços, ficamos cercados por cinquenta mil tur-cos e pelejamos de tal maneira e com tanto valor que matamos a maior parte deles. Ainda que com grande batalha e ferindo os nossos corpos, como se vê com Oliveiros que dela está em perigo de morrer. Mas, chegados à tua presença, estando ceando, disseste publicamente que os cavaleiros velhos se haviam logrado melhor da batalha do que os cavaleiros moços. Como assim é, manda então os teus cavaleiros velhos e verás como se haverão com Ferra-brás. Em mim não tenhas esperança alguma, nem em nenhum dos meus companheiros!

CARLOS MAGNO:Prendam-no e dêem-lhe a morte! Urgel e o companheiro aproximam-se de Roldão e apontam-lhe as lanças.

22 É pronunciado Richar, sem o “d”.23 Episódio da referida canção de gesta Fierabras, com base histórica na invasão islâmica da península Itálica.

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ROLDÃO:Que nenhum seja tão atrevido que me pegue, porque de momento lhe tirarei a vida deste mundo.

URGEL:Senhor Roldão, muito erraste no que fizeste, porque só a ti tocava obedecer ao Imperador, mais que algum outro vosso companheiro, assim pelo parentesco, como porque sempre te honrou mais que os outros.

ROLDÃO:Dizes bem, senhor Urgel. É verdade que tive tanta ira que certamente o matara, se tu e os outros não estivessem no meio. Mas já estou arrependido, e pesa-me os ter ofendido.

Roldão faz uma vénia ao seu Rei e aos seus companheiros e colocam-se todos novamente nas suas posições. Momento de indecisão no campo cristão.

CARLOS MAGNO:Pois já que os meus Doze Pares, não me querem ajudar, eu saio ao campo da batalha tirar as armas a quem nos quer afrontar.

Ao som da Contradança dos Cristãos e em passo de dança, Carlos Magno vai ao campo da batalha e ameaça Ferrabrás com a espada. Como este protegido por Bruta-montes não reage, regressa então ao seu campo.

CARLOS MAGNO:Soldados cristãos, descansar lanças!

Prepara-se então Oliveiros, para sair à batalha contra Ferrabrás.

OLIVEIROS: Guarim! Guarim!

GUARIM:Real senhor!OLIVEIROS:Aparelha-me essas armas, que brevemente vamos para a batalha.

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GUARIM:Ó senhor Oliveiros, eu lhe dou de parecer não irmos à batalha, porque nela vamos mor-rer24.

OLIVEIROS:Faz brevemente, Guarim, o que te mando, pois não podemos estimar a vida quando se espera ganhar grande honra. Grande fraqueza seria a minha, se o turco se fosse embora sem batalha. E não é justo deixar o nosso imperador em tanto aperto e injúria.

Faz uma pausa e fala para Carlos Magno.Ó mui nobre e esclarecido senhor, peço-te que queiras ouvir as minhas explicações. Como já sabes, senhor, há nove anos que te sirvo como posso, mas não segundo o teu merecimen-to. Peço-te que, em remuneração desse serviço, me queiras conceder uma só coisa.

CARLOS MAGNO:Oliveiros, cavaleiro amigo e nobre conde, pede-me o que quiseres que nada te negarei.

OLIVEIROS:Senhor, peço-te que me dês licença para sair à batalha com Ferrabrás, que tantas vezes me tem chamado e blasonado25, e só por isto é que serão os meus serviços bem satisfeitos.

CARLOS MAGNO:Oliveiros, cavaleiro amigo, tal mercê não vos concedo, porque estais maltratado e ferido.

Interpelação de um Par de França.

24 Também pode ser citado conforme na História do Imperador Carlos Magno: Senhor, peço-te por amor de Deus que não faças tal excesso, em prejuízo da tua saúde e não queiras, com tal temeridade que o faças, acabar com os dias da tua vida, porque não estás capaz dessa empresa. 25 m.q. vangloriado.

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GALALÃO:Senhor, está ordenado na tua corte que nenhuma coisa que mandasses se revogasse, por onde, é justo que Oliveiros alcance a mercê que mandaste pedir26.

CARLOS MAGNO:Ah Galalão! Galalão! Tu tens muitas más entranhas, como te tenho dito outras vezes. E, pelo que me dizes, deixarei ir Oliveiros à batalha. Porém, se ele nela morrer, tu e toda a tua parentalha irão pagar com a vida.

( faz uma pausa e fala, desanimado, para Oliveiros)Oliveiros, cavaleiro amigo, roga a Deus que pela sua infinita misericórdia te dê a graça de vires com a vitória e te deixar voltar de saúde, diante dos meus olhos.

(cantando)Vai Oliveiros para o campoE vai bem aparelhado;Vai dar batalha ao turco,Pois que tanto tem chamado.

Vai Oliveiros para o campoCom a lança do Senhor.Vences em todas as guerras,Nesta serás vencedor.

Enquanto canta os versos desloca-se com Oliveiros e Guarim ao seu lado para o campo da batalha, onde se ajoelham.

OLIVEIROS:Ó muito amado e estimado Deus, peço-vos pela vossa infinita misericórdia que me queirais favorecer nesta tão grande guerra e cruel batalha.

Fazem o sinal da cruz, Carlos Magno entrega a espada a Oliveiros, e este beija-a. Levantam-se e ao ritmo da Contradança, recuam em passo de dança para o campo

26 É o Cavaleiro que na Canção de Rolando e na História do Imperador Carlos Magno traiu Carlos Magno e originou a morte dos Doze Pares de França.

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cristão. Carlos Magno ocupa a sua posição e voltam Oliveiros e Guarim para o campo da batalha. Pára a banda e Oliveiros faz o primeiro ataque ao adversário. Sempre que Oliveiros ataca Ferrabrás ou que ambos batalhem, o tocador da caixa executa o rufo de ataque. Oliveiros fala pausadamente, circula calmamente e gesticula habilmente. Quando ataca, fá-lo com muita rapidez e destreza.

OLIVEIROS:Levanta-te, turco infiel! Toma as tuas armas, monta a cavalo e vem pelejar. Porque tanto tens falado e blasonado, quero ver se és tão grande nos teus feitos e valentia como és na fama e corpulência.

FERRABRÁS:Quem és tu? Que tão simplesmente vens morrer?

OLIVEIROS:Turco, levanta-te! Toma as tuas armas, monta a cavalo e vem pelejar. Porque já não é acção de cavaleiro estar estendido nesse chão, vendo diante de si o seu inimigo. E eu não te disse que venho buscar a morte. O certo é que brevemente a experimentarás.

FERRABRÁS:Ainda és muito pequeno de corpo, falas muito ousado e atrevido, porém se queres tomar o meu conselho e viver mais dilatada vida, vai-te embora, porque, se porfias em pelejar comigo, é necessário que primeiro me digas quem és e o sangue donde procedes.

OLIVEIROS:Tu não podes saber o meu nome, sem que primeiramente eu saiba o teu e não me pareces nas tuas acções tal qual mostravas nos teus ameaços contra o nobre imperador Carlos Mag-no, o qual me mandou aqui vir para que desse fim aos teus dias ou deixasses os teus pobres ídolos, feitos por mãos de homens sem entendimento nem virtude. E quisesses crer na San-tíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo, três pessoas distintas e um só Deus verdadeiro e todo-poderoso, o qual é o criador do Céu e da Terra e do seu filho Jesus Cristo que, para salvar e remir o género humano, nasceu da Virgem Maria, Nossa Senhora. E quando isto creres firmemente, mediante o santo baptismo, poderás alcançar a glória eterna.

FERRABRÁS:Quem quer que tu sejas, falas com muita liberdade e presunção, e para que conheças a tua loucura, eu te quero dizer quem sou: eu sou Ferrabrás, coroado rei de Alexandria, sou filho

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do senhor Almirante Balaão, sou aquele que destruiu Roma, matou o Apostolado e levou as santas relíquias, pelas quais vós, os cristãos, tendes recebido grandes trabalhos. Eu possuo Jerusalém e o sepulcro onde foi posto o vosso Deus.

OLIVEIROS:Ferrabrás de Alexandria, tenho grande contentamento em saber quem és, que assim agora tenho maior desejo de dar-te a batalha, porque tenho por certo ganhar-te a vida. E levanta-te (ataca-o e toca a caixa) porque pelas armas se há-de acabar este nosso pleito27 e não por palavras.

FERRABRÁS:Cristão, rogo-te que me digas que homens são Carlos Magno, Roldão e Oliveiros, porque os tenho ouvido nomear muitas vezes lá nas partes da Turquia.

OLIVEIROS:Turco, saibas que Carlos Magno é mui poderoso senhor, homem de grande conselho, sa-gacidade e prudência, assim, tanto no regulamento do seu reinado, como nas facturas da guerra. E levanta-te (ataca-o e toca caixa) se não queres que te ofenda assim deitado e arrepender-te-ás quando já não tiveres remédio.

FERRABRÁS:Diz-me, cavaleiro, como não mandou Carlos Magno a esta batalha: Roldão, Oliveiros ou algum dos Dozes Pares, de quem tantas façanhas e proezas tenho ouvido; e porque não mandou três ou quatro dos Dozes Pares, senão a ti somente?

OLIVEIROS:Roldão nunca fez conta de um só turco, por mais nomeado que ele fosse, e somente para te desprezar não quis vir à batalha, porém se tu viesses acompanhado, ainda que fosse com todo o teu exército ele, só, te viria receber e então verias quem Roldão era.

FERRABRÁS:E tu, em que ofendeste a Carlos Magno, pois que assim te enviou aqui como quem manda um cordeiro ao carniceiro? Eu te juro pelos deuses em que creio, que pelo teu bom modo

27 É o Cavaleiro que na Canção de Rolando e na História do Imperador Carlos Magno traiu Carlos Magno e originou a morte dos Doze Pares de França.

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tenho lástima da tua mocidade. E assim toma o meu conselho: vai outra vez para Carlos Magno e diz-lhe que me mande seis dos Doze Pares, que eu te juro pelo poder dos meus deuses, os esperar e dar batalha.

OLIVEIROS:Turco, não te canses nem gastes o tempo com tanta prática28, porque se não te levantas para pelejar (ataca-o e toca a caixa) eu faço juramento à ordem de cavaleiro, que, ainda que seja feio, te hei-de ferir ou fazer levantar por força, ainda que tal não queiras.

FERRABRÁS:Diz-me o teu nome, antes que me levante!

OLIVEIROS:Eu me chamo Guarim, pobre fidalgo, novamente armado cavaleiro. É hoje a primeira vez que eu sirvo o meu senhor, Carlos Magno.

FERRABRÁS:Guarim, tu não me dizes a verdade, e não me podes negar que o teu corpo está ferido. Chega-te ao meu cavalo, acharás no arção da sela dois vasos atados, com bálsamo. Pela força das armas os ganhei em Jerusalém, e desse bálsamo foi teu deus ungido e embalsamado, quando o desceram da cruz e foi posto no sepulcro. Bebe dele, logo sararás todas as tuas feridas e ficarás com as tuas forças dobradas.

OLIVEIROS:Eu não estou ferido, isso em ti é uma grande história, porque este sangue é todo procedido do meu cavalo, que é muito duro nas esporas.

FERRABRÁS:Isso, Guarim, não é cordura29 nem valentia, mas creio que te arrependerás de entrar comi-go na batalha. Tu não queres senão continuar na tua porfia, mas eu creio que, quando me vires levantar, tu, só da minha vista, ficarás temeroso.

28 m.q. conversa.28 m.q. bom senso.

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OLIVEIROS:Turco, és mais abundante de palavras que de obras, não me importa a tua bebida nem me é necessária. E se não te levantas logo, como vilão estendido no chão, te tirarei tanto falar com dar-te a morte.

FERRABRÁS:Por tua vida, Guarim, te peço que me digas que homens são Carlos Magno, Roldão e Olivei-ros e a estatura de seus corpos.

OLIVEIROS:Oliveiros é da minha grandeza, nem mais nem menos; Roldão quanto ao corpo é um pouco menor, mas em comparação no valor da sua pessoa não há igual em todo o mundo.

FERRABRÁS:Pela fé que devo a Apolim e Tavalgante30, meus muito amados e venerados deuses, me ad-miro do que dizes. Porque, se eu tivesse diante de mim dez cavaleiros como tu, eu não teria por grande façanha passá-los todos ao fio da minha espada.

OLIVEIROS:Turco, muito falas, porém eu creio que só de mim tens medo e por isso dilatas a batalha. Arma-te e sai ao campo, porque nem as tuas grandezas me espantam, nem os teus louvores te acreditam, antes com isso ficarás mais desprezado.

FERRABRÁS:Guarim, eu te rogo que te queiras apear e me ajudes a armar.

OLIVEIROS:Não creias que tal faça, pois não hei-de confiar em ti.

30 Referidos já n’ A Canção de Rolando, estes deuses pagãos foram designados na Idade Média como ídolos dos sarracenos compondo uma trindade com Maomé ou Mahomét que derivou no popular Mafoma. Apolim ou Appolon corresponde ao Apolo grego, deus do sol; e Tavalgante também referido como Tervagan ou Tervagant foi um ídolo pagão imaginário atribuído aos muçulmanos. Na História do Imperador Carlos Magno é também referido Magor, este com origens no paganismo germânico.

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FERRABRÁS:Com muita segurança podes confiar em mim, pois jamais coube no meu coração vileza ou traição alguma.

OLIVEIROS:Eu sempre te vou ajudar a armar, mas em turco há-de haver pouco que fiar!

Com a ajuda de Oliveiros, Ferrabrás levanta-se, veste a capa e arma-se de es-pada. Movimentar-se-ão da esquerda para a direita e vice-versa parando em forma de X, assim como os seus companheiros da batalha, Guarim e Brutamontes.

FERRABRÁS:Guarim, peço-te que sejas fidalgo no teu pelejar.

OLIVEIROS:Eu te prometo que o serei sem dúvida alguma.

Batalham ao toque da caixa.

OLIVEIROS:Turco, cuida este dia em ser bom cavaleiro, porque tenho esperança naquele que pelo gé-nero humano padeceu paixão e morte, que te hei-de levar morto ou vivo a Carlos Magno.

FERRABRÁS:Guarim, eu te rogo que deixes a batalha, que eu te ofereço toda a honra dela.

OLIVEIROS:De nenhum modo a deixarei, salvo se quiseres ir prisioneiro a Carlos Magno.

FERRABRÁS:Tu que és cristão, tens grande confiança na ajuda do teu deus, pelo qual te peço, pelo bap-tismo que recebeste e pela reverência que deves à cruz onde o teu deus foi cravado e assim também pela fidelidade que deves a Carlos Magno, teu senhor, que me digas se és Roldão, Oliveiros ou algum dos Doze Pares, porque a tua grande ousadia e valor me faz crer que és algum ou o mais principal deles. Diz-me com verdade o teu nome e a linhagem donde procedes.

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OLIVEIROS:Não sei, turco, quem te ensinou a conjurar31 um cristão, mas mais fortemente não podias obrigar-me a dizer-te a verdade. Assim saibas que sou Oliveiros, filho do duque de Regnier, um dos Doze Pares de França.

FERRABRÁS:Por certo que eu bem conheci nesse teu modo e bizarria que eras outro e não o que me di-zias. Pois já que é o senhor Oliveiros, seja muito bem-vindo porque se eu antes o conhecera logo fizera o teu mandato. E porque vejo as tuas armas todas tintas de sangue, que do teu corpo sai, hás-de fazer-me uma de duas coisas: ou retirar-te e curar as tuas feridas, ou beber do bálsamo que comigo trago e que já te tenho oferecido. E se dele beberes, logo sararás e assim poderás pelejar e defender a tua vida; e eu não terei por cobardia matar-te, estando tu já ferido de outros cavaleiros.

OLIVEIROS:Senhor Ferrabrás de Alexandria, agradeço-te muito a mercê que me fazes, mas tem por certo que não tenho necessidade nenhuma nem de me curar nem de beber do teu bálsamo. Deixemos a prática e vamos à batalha, porque esta não se escusa, salvo com a condição que deixes os teus deuses e te baptizes, e queiras crer na lei de Jesus Cristo; porque, se isto fizeres, alcançarás a vida eterna e terás por bom amigo o nobre imperador Carlos Magno e eu te prometo que nunca mais deixarei a tua companhia.

FERRABRÁS:Oliveiros, não te canses, porque de nenhum modo hei-de fazer o que dizes.

(Faz uma pausa)Oliveiros, bebe do meu bálsamo e lograrás saúde e toda a força que tens perdido.

OLIVEIROS:Ferrabrás, não te quero vencer por virtude do teu bálsamo, se não pelas armas como bom cavaleiro.

Lutam e Oliveiros perde a sua lança. Brutamontes festeja e exibe a arma con-quistada ao Almirante Balaão e ao exército turco.

31 m.q. conspirar.

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OLIVEIROS:Ó meu Deus, que cruel golpe! Ó Virgem Santíssima, a ti me encomendo. Roga Senhora a teu amado filho Jesus Cristo, que não permita que morra este cavaleiro às mãos deste turco.

Guarim entrega a Oliveiros uma espada extra que consigo trazia. FERRABRÁS:Oliveiros, nobre cavaleiro, já sabes como corta a minha espada, e assim toma o meu con-selho: vai para casa, cura as tuas feridas, porque, se porfias nesta batalha, não viverás mais uma hora; pois te vejo já desmaiado pelo muito sangue que tens perdido e derramado. E assim manda-me Roldão ou qualquer dos Doze Pares, que eu te juro pelos meus deuses que os hei-de esperar aqui a pé firme. E isto hás-de fazer antes que mais experimentes as minhas forças.

OLIVEIROS:Ó turco, todavia tu me ameaças em querer dar-me a morte, mas eu é que espero naquele justo Deus, que ta darei eu a ti.

Combatem.

CARLOS MAGNO:Soldados cristãos, ajoelhar, tirar o barrete!

OLIVEIROS (com voz suplicante reza o credo cristão):Ó meu Deus, princípio, meio e fim de todas as coisas que estão no firmamento, com a tua própria mão formaste o nosso primeiro pai Adão e por companheira lhe deste Eva, formada de sua costela, e colocaste no Paraíso Terreal. Um só fruto lhes proibiste, e enganados pelo Demónio comeram e perderam o Paraíso. E tu, Senhor, condoendo-te a perdição do género humano, baixaste ao mundo e tomaste a humana carne no ventre virginal da Santíssima Virgem Maria, Nossa Senhora. Vieram os três reis de longe terras adorar e oferecer-te dádivas de ouro, incenso e mirra. E logo o rei Herodes, imaginando matar-te, fez morrer muitos meninos inocentes. E depois pregaste neste mundo a tua santa doutrina e os judeus invejosos te cravaram numa cruz. Estando nela, Longuinhos abriu o teu santo peito com uma lança e logo jorrou sangue e água, que era a figura do Santíssimo Sacramento, e caindo nos olhos do cego Longuinhos recuperou a vista que se tinha perdido e crendo em ti se salvou. O teu santíssimo corpo foi sepultado num monumento de pedra. Ao terceiro dia ressuscitaste, baixaste ao Limbo e tiraste as almas dos Santos Padres, que lá estavam espe-

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rando pela tua santa vinda. No dia da Ascensão, à vista dos teus discípulos, subiste ao céu. E assim, Senhor, como firmemente creio, sem contradição alguma de incredulidade, te peço que queiras ser em minha ajuda contra este turco, porque vencido se converta, creia em ti e entre no verdadeiro caminho da sua santa salvação.

CARLOS MAGNO:Soldados cristãos, levantar, colocar o barrete!

FERRABRÁS:Por tua vida, Oliveiros, te peço que me declares essa oração, que ainda agora disseste com tanta devoção.

OLIVEIROS:Provera32 a Deus, Ferrabrás, que tu cresses no que disse como eu creio; e que deixasses os teus falsos ídolos e conhecesses o teu verdadeiro criador e redentor e recebesses o santo baptismo e guardasses os seus santos mandamentos.

FERRABRÁS:Nisso não me fales, porque os meus deuses são piedosos para quem os chama e vejo que o teu deus não te quer ajudar em tão grande necessidade, por isso te dou de conselho que deixes o teu deus e te faças mouro.

OLIVEIROS:Turco, simplesmente me falas para deixar o criador do Céu e Terra, para adorar um falso ídolo feito de ouro ou prata. Isso só fazem os cegos sem entendimento nem virtude, e os quais o Diabo traz enganados, como traz a ti e aos teus. E deixemo-nos de razões e vamos à batalha.

FERRABRÁS:Todavia tu porfias em querer morrer nas minhas mãos. Pois procura defender-te que eu já não terei de ti nenhuma piedade.

OLIVEIROS:Nem eu terei de ti, nem descansarei até dar-te a morte ou levar-te preso a Carlos Magno.

32 m.q. tomara.

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Combatem por momentos.

OLIVEIROS:Turco, faz de mim o que puderes que nenhuma vantagem te conheço, ainda que tu estejas a cavalo e eu a pé, sempre te hei-de matar, ferir ou render33.

FERRABRÁS:Não creias, Oliveiros, que eu levante a minha espada para ferir-te, enquanto estiveres de pé, porque tu não tens culpa da falta do teu cavalo, e assim conserta as rédeas e monta nele e prossigamos a nossa batalha, se quiseres. E, se a quiseres deixar para outro dia, neste campo te esperarei, sem dúvida alguma.

OLIVEIROS:Ferrabrás, nobre cavaleiro, não há-de cessar a batalha sem a morte ou vencimento de um ou outro.

FERRABRÁS:A tua nobreza e bizarria fazem-me, Oliveiros, perder o desejo desta batalha. E assim te peço por mercê, que a deixes e leves toda a honra dela.

OLIVEIROS:De nenhuma maneira a deixarei. Salvo se quiseres ir prisioneiro a Carlos Magno.

FERRABRÁS:Oliveiros, por certo que estou admirado do teu grande valor e esforço do teu coração. Com o teu sangue tenho regado todo o campo e vejo o teu elmo34 e arnês35 despedaçados e des-guarnecidos, a minha cortante espada toda tinta de sangue que do teu corpo sai, o teu ca-valo muito cansado pelos golpes e pancadas que hoje tem recebido e eu enfadado36 já de te

33 Esta fala do diálogo e a próxima não têm actualmente sentido, porque os Comediantes não utilizam cavalos. Já o texto do Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro refere existir luta a cavalo e posterior subida a palco para a entrada em cena da princesa Floripes e a batalha final. É possível que no século XIX, Oliveiros e Ferrabrás tenham representado a luta a cavalo, o que conferiria então sentido às falas. 34 Capacete.35 Armadura.36 m.q. aborrecido.

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ferir. O teu forte coração nunca enfadado nem perturbado, antes está mais feroz e atrevido que no princípio desta batalha. E por isso muito quisera que gozasses a tua nobre mocidade, e por isso te tenho pedido muitas vezes que deixes a batalha, e de novo te rogaria se te visse com um propósito de tomar o meu conselho, mas como vejo as tuas forças muito diminu-tas, os teus braços e membros muito cansados e por outro lado, vejo o teu enganado coração a arder no desejo de pelejar, desprezando os golpes da minha cortante espada, aborrecendo as minhas razões e práticas, atribuindo a cobardia o que é generosidade da minha pessoa ou a nobreza do meu real sangue que me obrigas a dizer-te a verdade. E assim, já que tanto foges do que todos os viventes desejam, que é viver, entrega a tua alma ao teu Deus, porque o teu cansado corpo já não terá esforço para livrar-se do furor do meu forte braço.

OLIVEIROS:Ó verdadeiro Deus todo-poderoso, ouve esta alma já que o corpo não te mereceu ser ouvi-do, que vejam os teus clementíssimos olhos este indigno servo que te chama na última hora. Não peço, Senhor, o vencimento da batalha, só peço que esta pecadora alma, resgatada com o teu precioso sangue, não perca a glória que prometeste às tuas fiéis criaturas. Ó virgem bendita, mãe de misericórdia, roga pelo teu cavaleiro que hoje te chama em tão grande necessidade e ânsia.

FERRABRÁS:Oliveiros, nobre cavaleiro, muito me pesa do teu mal. Chega-te depressa para mim e bebe-rás do meu bálsamo, lograrás saúde e toda a força que tens perdido.

OLIVEIROS:Ó generoso turco, quão grande é a tua cortesia e nobreza! Bem parecem as tuas acções com o nobilíssimo sangue donde procedes; mas adverte-te que não hei-de beber do teu bálsamo, se com a minha espada não o ganhar.

Combatem. Oliveiros furta o balsámo a Ferrabrás, bebe um trago e deita o odre aberto para o chão.

FERRABRÁS:Oliveiros, homem simples e sem juízo. Porque deitaste a perder o que nem com todos os tesouros do mundo se pode comprar?37 Aparelha-te, pois entendo que bem haverá mister38, antes que de mim te apartes.

Combatem e Oliveiros perde a sua espada.

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FERRABRÁS:Ó nobre Oliveiros, cavaleiro de grande honra, por certo que já tenho alcançado alguma coisa do que desejava sobre ti e que tu não imaginavas. E assim te podes dar já por vencido, porque estás sem espada e já não te atreves a tomá-la. E pela tua grande nobreza e bizarria quero fazer um partido contigo, para que possas lograr da tua mocidade. E é que prometas deixar a tua lei, adores os meus deuses e lhes peças perdão dos muitos danos que tens feito aos turcos. Desta maneira poderás evitar a morte e casar-te-ei com a minha irmã Floripes, que é a mais formosa dama que há em toda a Turquia. E se isto fizeres, antes de um ano voltaremos com um grande exército e ganharemos o reino da França, far-te-ei coroar rei dela e depois entraremos por toda a Alemanha e tudo o que ganharmos será teu e das terras que possuo ainda te darei uma grande parte delas.

OLIVEIROS:Turco, debalde39 falas, pois ainda que me desses todos os reinos e tesouros do mundo, não faria coisa alguma do que dizes, antes consentiria que me despedaçassem todo o meu cor-po, membro por membro, pedaço por pedaço, do que discrepar40 num só ponto da lei do meu Deus e meu Senhor Jesus Cristo.

FERRABRÁS:Juro-te pelo poder dos meus deuses que és o mais obstinado homem do mundo. Pois que nenhum perigo ou trabalho te hão feito mudar o propósito, nem afrouxar o coração e assim te podes gabar de que nunca homem nenhum durou tanto tempo diante de mim, nem em alguma batalha fui tão combatido e cansado como nesta tenho sido. E por isso te rogo e dou de conselho que tomes a tua espada, que eu deixarei o escudo para que fiquemos ambos iguais nas armas.

OLIVEIROS:Nobre turco, não posso negar a tua cortesia. Mas por tudo quanto há no mundo nunca tal farei, porque o meu propósito é acabar a batalha e esta não terá fim sem a morte ou

37 Na História do Imperador Carlos Magno, nesta parte Ferrabrás havia sido ferido numa perna, tomara do seu bálsamo e ficara imediatamente curado. Oliveiros indignado, lançou um golpe no arção da sela do cavalo de Ferrabrás, conquistou o seu bálsamo, bebeu dele e também ficou curado das suas feridas. De seguida atirou-o para um rio próximo, daí o desespero de Ferrabrás em ter perdido o seu maior tesouro.38 m.q. necessidade.39 m.q. inutilmente.40 m.q. discordar.

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vencimento de um de nós. Se eu tomasse a minha espada e com ela alcançasse vitória ou poder sobre ti, como te poderia negar a paz ou tréguas, se mas pedisses? E assim faz tudo o que puderes contra mim, porque a minha vida ou morte deixo-a nas mãos do meu redentor e deus omnipotente, por cuja graça espero resgatar a minha espada.

FERRABRÁS:Por certo, Oliveiros, que és demasiadamente teimoso. Porém depressa verás a tua destrui-ção e que o teu deus não te poderá livrar das minhas mãos.

Combatem por um breve instante e Oliveiros com um golpe de destreza rouba a espada a Ferrabrás.

OLIVEIROS:Ferrabrás de Alexandria, guarda-te agora que estou provido de boa espada.

Combatem.

FERRABRÁS (pesaroso):Ó minha tão admirável espada, tanto tempo há que te possuo e estimo que agora pesa-me muito de te perder41. Oliveiros toma a tua espada e dá-me a minha e prossigamos a nossa batalha.

OLIVEIROS:Por certo, cavaleiro, que não deixarei a tua espada, sem que primeiramente veja se é tão boa como dizes. E por isso aparelha-te e vem depressa para a batalha, porque desejo ver toda a bondade dela.

Olhando para o céu, com tristeza Oliveiros lamenta a falta da verdadeira fé de Ferrabrás.

Ó todo-poderoso Deus! Que grande alegria para o rei da cristandade se este infiel se fizesse cristão, porque ele, Roldão e eu faríamos tremer toda a Turquia. Ó virgem bendita, mãe de

41 Na História do Imperador Carlos Magno as espadas têm nomes e curiosidades: três irmãos ferreiros, forjaram milagrosamente cada um e de uma só vez três espadas únicas. Gallus fez a Flamberge, a Altaclara e a Joyosa, as duas primeiras pertencentes a Oliveiros e a última a Carlos Magno. Munificas fez a Durindana.

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misericórdia, pede ao teu bendito filho que inspire no coração deste turco para que venha a conhecer o seu verdadeiro criador e redentor, e assim entre no verdadeiro caminho da sua santa salvação. FERRABRÁS:Oliveiros, deixa já essas razões e vê se queres dar fim a esta dilatada batalha.

OLIVEIROS:Ferrabrás, chega-te depressa para mim e agora verás que os teus deuses já não terão mais poder para te livrar dos meus fortes golpes.

Combatem até, finalmente, Ferrabrás ser vencido.

FERRABRÁS (com voz suplicante):Oliveiros, nobre cavaleiro e de mui grande valor, por honra do teu deus, o qual confesso ser verdadeiro e omnipotente, te rogo que não me deixes morrer sem que primeiro receba o santo baptismo e depois faz de mim o que quiseres, pois me vencestes em muito leal ba-talha. E se pela tua falta ou negligência, morrer pagão, ser-te-á pedida estreita conta diante de Deus. E já que tanto mostravas o desejo de ver-me cristão, cuida muito da minha vida e cura-me estas feridas que bem vês que me estou esgotando de sangue, senão morrerei diante dos teus olhos e será minha alma perdida.

Faz uma pausa e fala apoiado em Oliveiros.

Oliveiros, convém muito para que minha alma se salve que montes no meu cavalo, me aju-des a subir às ancas e me leves, atravessado sobre o pescoço, para solo cristão onde receba o santo baptismo. E assim é necessário que seja já com brevidade, porque se te detiveres algum tempo temo que não tenhas poder para valer-te a ti mesmo e me levares para onde tanto desejo ir. Deixei esta manhã dez mil turcos emboscados detrás daquele monte e vendo-me vencido virão todos contra ti para eu ser resgatado, e eu já não quero viver senão na fé de Jesus Cristo.

(célebre na Canção de Rolando), a Balvagina e a Corante, estando a primeira na posse de Roldão e as outras duas na de Urgel de Danois. E Aufiax forjou a Baptizo, a Plotança e a Braba todas no poder de Ferrabrás, que se lamenta agora de ter perdido para Oliveiros a Baptizo.

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OLIVEIROS:Senhor Ferrabrás, perdoa-me mas bem vês que é preciso que te apeies do cavalo, porque não se escusa haver batalha com os turcos que ali vêm à rédea solta contra mim, imaginan-do que te levo por força e violentado.

FERRABRÁS:Oliveiros, tens agora quatro espadas que valem quatro cidades42!

OLIVEIROS:Ferrabrás, dizes bem e falas como grande cavaleiro e por isso eu te prometo não te deixar, enquanto puder manear esta minha espada.

O Almirante Balão tendo conhecimento da vitória do inimigo, envia o seu exér-cito para o capturar. Ferrabrás esconde-se no campo da batalha.

BALAÃO:Soldados turcos, sentido! Braço espadas!

42 Embora Oliveiros só tenha uma espada na mão, conforme a História do Imperador Carlos Magno, Ferrabrás refere-se às duas espadas que Oliveiros trouxe para a batalha mais as duas dele ganhas na batalha.

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43 Na História do Imperador Carlos Magno, quando Oliveiros é preso os soldados turcos atam-lhe os pés e vendam-lhe os olhos. Comediantes antigos lembram que há muitos anos nas representações também se fazia o mesmo, pormenor que entretanto se perdeu.44 Na História do Imperador Carlos Magno, Oliveiros está sozinho, ou seja, Guarim nunca o acompanhou na batalha.

Em frente, marcha!

Toca a caixa.

BALAÃO:A retirar!

Sempre em função destas ordens, os soldados turcos vão lutar contra Oliveiros e Guarim na seguinte sequência: sai à batalha um par de cada vez que quando acaba de lutar retira-se, pelo lado de fora, para trás dos outros, os restantes pares adiantam-se sempre um passo quando o da frente avança; depois vão dois pares de cada vez com a execução dos movimentos anteriores; e finalmente os quatro pares. Face ao insucesso da ofensiva, o rei turco altera a táctica.

BALAÃO:Soldados turcos, pela esquerda rodar.

Os quatro soldados do f lanco esquerdo do batalhão dão, pelo lado esquerdo, meia volta.

Em frente, marcha!

Toca a caixa e vão os soldados turcos (Porta-Bandeira incluído), em fila india-na, rodear e emboscar Oliveiros e Guarim.

BALAÃO:A retirar!

Retiram os soldados, ficando o D. Pelintrão e o seu companheiro no campo de batalha com Oliveiros capturado, seguro pelos braços e com as espadas dos inimigos apontadas ao peito43. Perante o interesse exclusivo dos inimigos no vencedor de Ferra-brás, Guarim foge à emboscada44.

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Ao toque da caixa e com volteios, Oliveiros lamenta-se de tão grande infortúnio:

OLIVEIROS (lento e pesaroso):Ó Carlos Magno, muito nobre imperador, onde é que estás agora? O certo é que não sabes a grande necessidade e aperto em que está o teu leal cavaleiro Oliveiros.

Toca a caixa e os três dão uma volta. Os soldados turcos vão encaminhando Oliveiros para o cárcere, perante um Brutamontes impaciente por o novo ocupante se prolongar tanto na viagem até ao cativeiro.

Ó nobre Roldão, desperta se acaso dormes! Cheguem aos teus ouvidos os meus infortúnios. Se acaso tem já chegado a ti a notícia, porque me tardas tanto com o socorro? Adverte-te que me levam onde, sem o temor do teu auxílio, me podem dar uma vituperiosa45 morte.

Nova volta.

Ó Pares de França, porque vos esqueceis do vosso leal companheiro? Não sejais preguiço-sos em ajudar a quem nas mais cruéis guerras e maiores afrontas e tiranas batalhas nunca foi preguiçoso em ajudar-vos.

Nova volta.

Ó cristãos, que nas perigosas e tiranas batalhas muitas vezes tivestes o socorro de Oliveiros, apressai, apressai os vossos pés e vinde socorrer-me, se já não é que a ingratidão vos detém.

Nova volta.

Ó muito amado e estimado pai! Quanto melhor fora não me teres gerado! Pois em galardão do ser e da criação que me destes, te darei com o pesar e sentimento do meu miserável e funesto46 fim uma mais apressada morte.

Nova volta.

Ó lastimosa velhice! Eu bem creio que não terás mais vida enquanto cheguem aos teus ouvidos a notícia da minha desastrada morte. E só, meu pai, te fica uma consolação: é que com minha morte te livrarás dos muitos sobressaltos que te poderia dar com a minha vida.

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Nova volta. Brutamontes venda os olhos e ata os pés e mãos de Oliveiros. Ó sempre amado e querido pai dos meus olhos! Alívio da minha vida, objecto único do meu coração, cada vez que me vias armado te tremiam as carnes com o temor da minha morte, mas principalmente quando saí à batalha com o nobre Ferrabrás, pelo muito amor que me tinhas. Mais grande consolação terias se eu acabasse a vida na batalha ou nas mãos de tão nobilíssimo cavaleiro, do que nas mãos de tão vil canalha, porque atado de pés e mãos e tapados meus olhos me levam ao degoladouro.

Nova volta.

Ó muito justo justo e misericordioso Deus! Serve-te consolar o meu pobre pai que hoje perde um só filho que tinha e de guardar o teu servo e convertido Ferrabrás, e a mim dai-me paciência nesta tão afrontosa morte para que a minha alma se salve e vá lograr a eterna glória que para os teus fiéis tens destinado.

Oliveiros é encarcerado na prisão do campo turco. Ao toque da caixa os solda-dos regressam aos seus postos e Guarim dirige-se a Carlos Magno.

GUARIM:Real senhor, aqui vos entrego a lança do vosso leal cavaleiro Oliveiros, que ficou prisioneiro.Vieram os turcos à rédea solta. Depois de muita batalha e porfia levaram-no prisioneiro para a Turquia.

CARLOS MAGNO:Ah Guarim! Guarim! Fracas notícias me trazes.Vai ao campo da batalha e encosta-te à árvore mais forte que lá encontrares, para que não venha algum turco roncão dar estrago à nossa nação.

FERRABRÁS:Ó Jesus, consolador dos aflitos, não deixeis que assim acabe este convertido turco47!

45 m. q. vergonhosa.46 m. q. doloroso.47 Na História do Imperador Carlos Magno, Oliveiros após vencer Ferrabrás e avistar o batalhão turco, deixa-o junto a uma árvore. Esta citação de Ferrabrás só é feita quando ele é encontrado pelos soldados cristãos que procuravam os feridos.

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CARLOS MAGNO:Ordinário, marcha!

Ao toque da caixa Guarim junta-se a Ferrabrás.

CARLOS MAGNO:Embaixadores das minhas embaixadas, bem vos podeis preparar que embaixada ides levar. Preparai-vos e vinde à minha presença!

Richard e o seu parceiro vão à presença de Carlos Magno. Os embaixadores, cristãos e turcos, durante as embaixadas deslocam-se sem-pre ao toque da caixa.

Ide ao campo da batalha. Se encontrares alguns mortos, enterrai-os bem fundo. Se encon-trardes alguns feridos, recolhei-os ao hospital. Se encontrardes algum turco que se queira baptizar, conduzi-o ao santo baptismo. Ordinário, marcha! Os soldados encontram, no campo de batalha, Ferrabrás que os interroga.

FERRABRÁS:Quem sois vós?

RICHARD: Somos dois embaixadores que vimos ao campo de batalha. Se encontrarmos algum morto, enterrá-lo bem fundo. Se encontrarmos algum ferido, levá-lo ao hospital. Se encontrarmos algum turco que se queira baptizar, recolhê-lo ao santo baptismo.

FERRABRÁS:Eu sou turco e ferido e vos acompanharei, o vosso baptismo com gala receberei.

Os dois soldados ao lado de Ferrabrás e Guarim, dirigem-se a Carlos Magno.

CARLOS MAGNO:Quem és tu e como te chamas?

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FERRABRÁS:Eu sou Ferrabrás, filho do senhor Almirante Balaão e rei de Alexandria, vencido em batalha pelo vosso cavaleiro Oliveiros, de quem sou prisioneiro.

CARLOS MAGNO:Ferrabrás de Alexandria, tanto me tem custado a tua vinda. Por tua causa perdi cavaleiros, qualquer deles melhor do que tu48.

FERRABRÁS:Senhor, enquanto que são cristãos reconheço que são melhores que eu, porém, quanto ao resto não conheço primazia senão ao nobre Oliveiros, de quem sou prisioneiro.Mas agora desejo ir para terra de cristãos, ser baptizado e crismado, ser cristão como vós.

CARLOS MAGNO:Pois vais para Mormionda, que Regnier e meu sobrinho Roldão serão teus padrinhos. Eu vou à campanha dar batalha aos turcos, que vêm aí à rédea solta.

FERRABRÁS:Senhor, as vossas armas estão muito desguarnecidas, primeiro fazei mobilização de gente, e então depois fazei o que pensais.

Ferrabrás coloca-se junto ao rei cristão.

CARLOS MAGNO:Embaixadores das minhas embaixadas, bem vos podeis preparar, que embaixada ides levar.

ROLDÃO:Senhor, eu me rogo de boa vontade para servir Vossa Real Majestade.

CARLOS MAGNO:Preparai-vos e vinde à minha presença!

Roldão e o parceiro aproximam-se.

48 A última frase é recente, foi citada e escrita durante muitos anos: Por tua causa perdi cinco cavaleiros, qualquer deles melhor que tu; conforme a História do Imperador Carlos Magno. A explicação está no facto de que na histó-ria da matriz quando Oliveiros foi atacado pelo exército turco foi em seu auxílio um exército cristão tendo sido capturados mais quatro Pares de França.

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CARLOS MAGNO:Ide ao rei da Turquia, que me mande Oliveiros, que lá tem prisioneiro, que em troca lhe mandarei seu filho Ferrabrás, que já está baptizado e crismado e já não é turco como ele.Quando isto não queira fazer nem mandar com cem mil homens de guerra o palácio lhe vou tirar. E com muita mais ousadia e ousadia lhe declaro guerra por cem anos e um dia.E à força deste meu braço forte lhe darei uma dita e poderosa morte.Ordinário, marcha!

Os embaixadores vão ao campo turco.

D. PELINTRÃO:Quem sois vós e quem vos deu autorização de entrar cá pelo nosso reinado dentro?

ROLDÃO:Nós somos dois embaixadores, que vimos do reino da cristandade. Vimos trazer uma embaixada a Vossa Real Majestade. D. PELINTRÃO:Vós dizeis que sois dois embaixadores? Vós sois mas é dois ladrões e espiões, que andam roubando e espiando por esse mundo além e que dizem que são embaixado-res de Carlos Magno. Mas façam alto, que a vossa embaixada será dada.

Saem os dois primeiros soldados turcos à presença de Balaão, dando um passo em frente os 3º e 4º para vigiar os cristãos.

D. PELINTRÃO:Real senhor, chegaram ali dois embaixadores, que vêm lá da cristandade. Vêm trazer uma embaixada a Vossa Real Majestade.

BALAÃO:Sendo embaixadores têm licença para falar, baixando as lanças, podem entrar.

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Os soldados turcos vão buscar à presença do rei os embaixadores cristãos.

D. PELINTRÃO:Sendo embaixadores, tendes licença para falar, baixando as lanças podereis entrar.

BALAÃO:Quem sois vós e quem vos deu o atrevimento de entrar cá pelo meu reinado dentro?

ROLDÃO:Somos dois embaixadores, que vimos lá da parte da cristandade. Vimos trazer uma embai-xada a Vossa Real Majestade.

BALAÃO:Falai, falai, dizei o que quereis, mas se não falais verdade, eu vos executo com as penas que mereceis.

ROLDÃO:Meu rei e senhor manda que lhe mandeis o seu cavaleiro Oliveiros que cá tendes prisionei-ro, que em troca dele vos mandará vosso filho Ferrabrás que já está baptizado e crismado, e já não é turco como vós.E quando isto não queira fazer ou mandar, com cem mil homens de guerra o palácio lhe vai mandar tirar.E com muita mais ousadia e ousadia vos declara guerra por cem anos e um dia.

BALAÃO:A vossa embaixada é mais louca do que avisada e eu vos juro e contra juro que com resposta não voltareis.

2º SOLDADO CRISTÃO:E à força do seu braço forte lhe dará uma dita e poderosa morte.

BALAÃO:A resposta que vos vou dar é para o cárcere vos mandar. Ó Brutamontes!

Os embaixadores são levados para a prisão onde está Oliveiros. Os soldados turcos depois de encarcerarem os prisioneiros fim voltam aos seus lugares ao toque da

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caixa. Carlos Magno ao constatar que os embaixadores não voltam com a resposta envia nova embaixada.

CARLOS MAGNO:Embaixadores das minhas embaixadas, bem vos podeis preparar, que embaixada ides levar.

URGEL:Eu me rogo de boa vontade para servir Vossa Real Majestade.

CARLOS MAGNO:Preparai-vos e vinde à minha presença!

Urgel e o parceiro aproximam-se.

Ide ao rei da Turquia, que me mande Oliveiros mais dois cavaleiros que lá tem prisioneiros, que em troca lhe mandarei seu filho Ferrabrás, que já está baptizado e crismado e já não é turco como ele.Quando isto não queira fazer nem mandar com cem mil homens de guerra o palácio lhe vou tirar.E com muita mais ousadia e ousadia lhe declaro guerra por cem anos e um dia.E à força deste meu braço forte lhe darei uma dita e poderosa morte.Ordinário, marcha!

Vão os dois embaixadores ao campo turco.

D. PELINTRÃO:Quem sois vós e quem vos deu autorização de entrar cá pelo nosso reinado dentro?

URGEL:Nós somos dois embaixadores, que vimos do reino da cristandade. Vimos trazer uma em-baixada a Vossa Real Majestade.

D. PELINTRÃO:Vós dizeis que sois dois embaixadores? Vós sois mas é mais dois ladrões e espiões, que andam roubando e espiando por esse mundo além e que dizem que são embaixadores de Carlos Magno. Mas façam alto, que a vossa embaixada será dada.

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Perante o rei turco, D. Pelintrão anuncia nova embaixada cristã.

Meu rei e senhor, estão ali mais dois embaixadores, que vêm lá da cristandade. Vêm trazer uma embaixada a Vossa Real Majestade.

BALAÃO:Pois sendo embaixadores, têm licença para falar, baixando as lanças, podem entrar.

Os soldados turcos vão buscar os dois emissários cristãos.

D. PELINTRÃO:Pois sendo embaixadores, tendes licença para falar, baixando as lanças, podereis entrar.

BALAÃO:Quem sois vós e quem vos deu o atrevimento de entrar cá pelo meu reinado dentro?

URGEL:Nós somos dois embaixadores, que vimos lá do reino da cristandade. Vimos trazer uma embaixada a Vossa Real Majestade.

BALAÃO:Falai, falai, dizei o que quereis, mas se não falais verdade, eu vos executo com as penas que mereceis.

URGEL:Meu rei e senhor manda que solteis o seu cavaleiro Oliveiros e mais dois cavaleiros que cá tendes prisioneiros, que em troca deles lhe mandará seu filho Ferrabrás, que já está baptizado e crismado, e já não é turco como vós. Quando isto não queira fazer nem man-dar, com cem mil homens de guerra o palácio lhe vai mandar tirar.E com muita mais ousadia e ousadia vos declara guerra por cem anos e um dia.

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BALAÃO:A vossa embaixada é mais louca que avisada, pois eu vos juro e contra juro que com respos-ta não voltareis.

4º SOLDADO CRISTÃO:E à força do seu braço forte lhe dará uma dita e poderosa morte.

BALAÃO:A resposta que vos vou dar é para o cárcere vos mandar. Ó Brutamontes!

São presos os soldados cristãos e o rei turco prepara uma embaixada.

BALAÃO:Clama, clama D. Pelintrão!

D. PELINTRÃO:Senhor, eu me rogo de boa vontade para servir Vossa Real Majestade.

BALAÃO:Preparai-vos e vinde à minha presença.

D. Pelintrão e companheiro dirigem-se a Balaão.

BALAÃO:Ide ao reino da cristandade e dizei ao seu imperador que me mande meu filho Ferrabrás que lá tem prisioneiro, que em troca eu lhe mandarei o seu cavaleiro Oliveiros e mais quatro companheiros que cá tenho prisioneiros.E quando isto não queira fazer nem mandar, a fogo e ferro frio do palácio o vou tirar.E com muita mais ousadia e ousadia lhe declaro guerra por cem anos e um dia.E à força deste meu braço forte lhe darei cruel batalha e uma dita e vergonhosa morte.Ordinário, marcha!

Parte a embaixada ao campo cristão.

RICHARD:Quem sois vós e quem vos deu o atrevimento de entrar pelo nosso reinado dentro?

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D. PELINTRÃO:Nós somos dois embaixadores que vimos lá da Turquia. Vimos trazer uma embaixada a Vossa Real Senhoria.

RICHARD:Façam alto que a vossa embaixada será dada!

Enquanto Richard e seu parceiro se dirigem ao rei, os 7º e 8º soldados dão um passo em frente para vigiarem os inimigos.

Real senhor, chegaram ali dois embaixadores que vêm da parte da Turquia. Vêm trazer uma embaixada a Vossa Real Senhoria.

CARLOS MAGNO:Sendo embaixadores, têm licença para falar, baixando as espadas podem entrar.

Os soldados levam a resposta.

RICHARD:Sendo embaixadores, tendes licença para falar, baixando as espadas podereis entrar.

Os embaixadores dirigem-se ao Imperador.

CARLOS MAGNO:Quem sois vós e quem vos deu o atrevimento de entrar pelo meu reinado dentro?

D. PELINTRÃO:Nós somos dois embaixadores, que vimos lá da Turquia. Vimos trazer uma embaixada a Vossa Real Senhoria.

CARLOS MAGNO:Falai, falai, dizei o que quereis, se não falares verdade, eu vos culpo com as penas que me-receis.

D. PELINTRÃO:Mandou o meu rei e senhor, que mandasse seu filho Ferrabrás, que em desconto dele man-dará Oliveiros e mais quatro companheiros, que lá tem prisioneiros.

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Quando isto não queira fazer nem mandar, a fogo e a ferro frio o palácio lhe vai tirar.E com muita mais ousadia e ousadia meu rei lhe declara guerra por cem anos e um dia.

CARLOS MAGNO:A tão vil canalha não dou resposta. Ide, que logo vindes todos.

2º SOLDADO TURCO:E à força do seu braço forte lhe dará uma dita e poderosa morte!

CARLOS MAGNO (aos seus soldados):Apontar lanças!

Os soldados cristãos atacam os turcos que fogem em direcção ao seu campo com Brutamontes, que aparece para os auxiliar.

Brutamontes vê a princesa Floripes a aproximar-se, desce do palco e acompa-nha-a, ao som da Contradança dos turcos, na entrada em cena, pelo centro do campo de batalha em direcção à prisão.

FLORIPES:Ó cavaleiros de França, dizei-me porque razão, o senhor pai vos tem presos nesta horrível prisão.

OLIVEIROS:Ó princesa Floripes, eu lhe conto a razão: fui eu quem tive o combate com Ferrabrás, vosso irmão.

FLORIPES:Foste tu quem venceste meu irmão Ferrabrás?

OLIVEIROS:Fui sim, em muito leal batalha. Fiz dele o que ele queria fazer de mim. E pela sua própria vontade se fez cristão.

FLORIPES:Quem são os cavaleiros que contigo estão?

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OLIVEIROS:Os cavaleiros que comigo estão são de mui nobre sangue, chamam-se os Doze Pares de França.

Passam os dois a cantar.

FLORIPES:Se eu tivera notícia Do senhor Guui de Borgonha, Vos mandaria soltarDesta prisão tão medonha.

OLIVEIROS:Ó princesa Floripes,Aqui estou prisioneiro,Soltai-me por vida vossaDeste triste cativeiro.

FLORIPES:Ó cavaleiros de França,Eu vos quero dar a vida.O meu amado esposo Considero na partida.

OLIVEIROS:Ó princesa Floripes,Aqui estou ao seu dispor.A partida está bem boa,Não podia estar melhor49. Floripes vai pedir a liberdade dos soldados cristãos a seu pai.

49 Houve anos em que estas quadras não foram cantadas pelo Oliveiros mas antes pelo Roldão, o que tornava o enredo mesmo difícil de acompanhar, ou seja, Floripes aproximava-se da cadeia, perguntava por Guui de Borgo-nha e considerava alguém esposo à partida, Roldão aceitava a proposta porque estava bem boa e não podia estar melhor e depois de soltos os prisioneiros a princesa acabava por se casar com Oliveiros!

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FLORIPES:Ó senhor pai, senhor pai, eu lhe dou de parecer: soltar os presos da cadeia, que estão sem comer nem beber.

Balaão diz a Floripes para pedir ao carcereiro a libertação dos inimigos, nunca acreditando que a sua filha o traia.

BALAÃO:Considera minha filha, eu aprovo a tua ideia. Vai ao Brutamontes que te dê a chave da ca-deia.

FLORIPES ( falando a Brutamontes perto do cárcere):Ó Brutamontes insolente, dá-me as chaves da cadeia senão mato-te e morres de repente!

BRUTAMONTES:Ó princesa Floripes, a chave não lha posso dar, vai soltar os presos que o senhor seu pai me mandou guardar.

Floripes espalha, na frente de Brutamontes, um pó que o desmaia, tira-lhe as chaves do cárcere e solta os soldados cristãos. Ao toque da Contradança dos turcos, Floripes dança com Oliveiros a seu lado e os restantes dois Pares atrás de si até ao campo cristão, contornando os outros soldados. Convida Carlos Magno para a dança que se prolonga até ao centro do palco, enquanto os soldados libertados ocupam os seus postos. Floripes pede o perdão ao seu pai pela traição, cantando ambos:

FLORIPES:Ó senhor pai, senhor pai,Eu lhe conto a razão:Fui eu quem soltei os presosDaquela horrível prisão.

BALAÃO:Minha filha Floripes,Tu sempre me falseaste;Desprezaste minhas leis,Meus inimigos soltaste.

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FLORIPES:Ó senhor pai me perdoeEsta acção mal considerada,Se eu lhe fiz esta ofensa, Foi para ser mulher casada.

BALAÃO:Minha filha Floripes,Eu te hei-de abençoar;Casaste com um cavaleiro,Dá-me a mão, vamos dançar.

Ao toque da Contradança dos turcos, Balaão vai ao centro do palco dançar com sua filha, de mão dada roda uma volta para cada lado. Após a dança, Floripes vai levantar Brutamontes que culmina a festa de reconciliação lançando guloseimas para o povo.

Pára a música e inicia-se o desafio.

BALAÃO:Vamos lá nós os dois reis, dar princípio e fim a esta batalha, pois certo é que se não apareces, é porque temes um só cavaleiro turco no campo.

CARLOS MAGNO:Tem-te, turco infiel e não enganes o teu coração. E nunca esperes vencer um só rei, fiel cristão.

BALAÃO:Meu coração é de bronze, meu peito com tal vigor, que espero hoje neste dia, vencer teu ânimo e valor.

CARLOS MAGNO:Ó minha Senhora das Neves, me queirais hoje ajudar, para este turco convencer e a vitória lhe ganhar.

BALAÃO:Eu também peço aos meus deuses, que são de grande piedade, para que hoje neste dia,

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vença o rei da cristandade.

CARLOS MAGNO:Também me está parecendo, que oiço um grande tremor de terra; toquem as caixas a rebate e principiemos esta guerra.

BALAÃO:Eu também me está a parecer, que oiço um grande espalhafato, mas se falta fizer, só eu a todos mato.

Balaão ataca Carlos Magno. A caixa nesta fase da batalha acompanha todos os movimentos de combate: marcha, ataque e retirada; só parando durante as falas dos reis. Entre cada ordem dada aos seus soldados os reis lutam cruzando três vezes as espa-das.

BALAÃO:Soldados turcos, pela esquerda rodar.

Os soldados do f lanco esquerdo voltam a dar meia volta como fizeram na cap-tura de Oliveiros.

Em frente, marcha!

Os soldados turcos em fila indiana, com o Porta-Bandeira incluído, rodeiam os reis que se posicionaram de costas um para o outro.

CARLOS MAGNO:Soldados cristãos, pela esquerda rodar.

Realizam a mesma manobra dos inimigos.

Em frente, marcha!

Os soldados cristãos (e o seu Porta-Bandeira) rodeiam os turcos.

CARLOS MAGNO:A retirar!

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Em corrida os cristãos retomam as suas posições.

BALAÃO:A retirar!

Os soldados turcos voltam aos seus lugares ao mesmo ritmo dos cristãos. Repetem-se as mesmas ordens e movimentos, invertendo-se a ordem: primeiro os cristãos e depois os turcos.

CARLOS MAGNO:Soldados cristãos, pela esquerda rodar.Em frente, marcha!

Em frente, marcha!

BALAÃO:Soldados turcos, pela esquerda rodar.Em frente, marcha!A retirar!

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BALAÃO:Soldados turcos, pela esquerda rodar.Em frente, marcha!A retirar!

CARLOS MAGNO:A retirar!

De seguida dá-se o combate frontal entre exércitos. Os soldados vão ao centro do palco, em toque de marcha, cruzam quatro vezes as armas em toque de ataque e dirigem-se pelo lado de fora dos batalhões, em toque de retirada, para os lugares em vago no fim das fileiras. Os soldados lutam primeiro par contra par, depois dois pares contra dois pares e de seguida os oito pares. As ordens de luta:

CARLOS MAGNO e BALAÃO (em uníssono):Marcha!

CARLOS MAGNO:Apontar lanças!

BALAÃO:A retirar!

CARLOS MAGNO:Meus valorosos vassalos, já que as nossas lan-ças não têm valor, vamos a ferro frio que será o nosso brio.

Os soldados cristãos pousam as lanças no chão e lutam desarmados contra os turcos até estes perderem o confronto e serem presos no cárcere do lado cristão.Avançam pela ordem:

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CARLOS MAGNO e BALAÃO:Marcha! Após a luta entre os soldados, Carlos Magno digla-dia-se com o Almirante, até este ser derrotado. Segue-se a batalha entre os Porta-Bandeiras:

PORTA-BANDEIRA CRISTÃO:Ó Porta-Bandeira insolente, faz-me uma pura entrega da tua bandeira, porque senão eu mato-te e morres de repente.

PORTA-BANDEIRA TURCO:A minha bandeira, nunca tu a chegarás a ver em teu poder, e à força desta minha espada é que eu te hei-de dar a saber.

PORTA-BANDEIRA CRISTÃO:Ó Porta-Bandeira desgraçado, faz-me uma pura entrega da tua bandeira, porque senão eu mato-te e morres degolado.

PORTA-BANDEIRA TURCO:A minha bandeira nunca tu a chegarás a ver, nem verás, e à força desta minha espada é que tu a experimentarás.

Ao toque da caixa lutam até o turco ser vencido e aprisionado. Depois, das conversões de Ferrabrás e Floripes, das derrotas do Almirante e dos seus soldados, da queda da bandeira turca, resta ao inimigo cristão um ridículo bobo, guiado pela sua cacheira e encantado com a posse de umas chaves de um cárcere sem prisioneiros. É Guarim quem trava a batalha.

GUARIM:Ó Brutamontes insolente, faz-me uma pura entrega da tua cacheira, porque senão eu mato-te e morres de repente.

BRUTAMONTES:A minha cacheira, nunca tu a chegarás a ver, e à força deste

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meu braço é que tu hás-de saber50.

GUARIM:Ó Brutamontes desgraçado, faz-me uma pura entrega das chaves do teu cárcere, porque senão eu mato-te e morres degolado.

BRUTAMONTES:As minhas chaves, nunca as chegarás a ver, nem verás, e à força desta cacheira é que tu a experi-mentarás.

Batalham, Brutamontes utiliza os seus truques para ludibriar Guarim, mas acaba por perder, terminando então a guerra. Os turcos derrotados e convertidos, são soltos e colocam-se, no palco, nas posições iniciais, com a princesa Floripes entre o seu pai e o irmão Ferrabrás. Inicia-se a celebração da padroeira com a loa. Às ordens dos reis os soldados formam duas linhas no comprimento do palco, numa os soldados cristãos e na outra os turcos.

CARLOS MAGNO:Soldados cristãos, pela esquerda rodar.

BALAÃO:Soldados turcos, pela esquerda rodar.

CARLOS MAGNO e BALAÃO (em uníssono):Em frente, marcha!

50 Última anotação do texto para melhor compreensão da originalidade do Auto moldado pelo seu povo. António Novo, conhecido popularmente por Magnífico (na imagem supra), foi um Brutamontes virtuoso com o dom de ser poeta, mesmo sendo analfabeto. Para além da recitação de quadras no final da representação, nesta parte a sua resposta começava da seguinte maneira: Guarim, Guarim, tu não me fales assim. Tu para mim fala-me baixinho, porque senão ainda levas no focinho!

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A passo, os elementos nobres aproximam-se uns dos outros e depois deslocam-se todos, alternadamente, para um dos extremos do palco, enquanto cantam as seguintes quadras no esquema A-B-C-D-C-D. Ao pararem de caminhar num extremo e de cantar a quadra, os nobres deslocados recuam para as suas posições, sendo acompanhados pe-los soldados que em espiral, circulam no palco enquanto repetem o cântico da quadra no mesmo esquema até terminar e estarem ao mesmo tempo na posição inicial. Nossa Senhora das Neves,Sois guia de toda a terra,Já se renderam os turcos,Já se acabou toda a guerra.

Nossa Senhora das Neves,Quando era o seu dia:A cinco do mês de Agosto,Quando a calma caía.

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Principiemos um baile,Adeus, adeus, regalar,Dai-nos licença senhores,Agora vamos dançar.

Depois destas três quadras, segue-se uma dança par a par, chamada Contra-dança, acompanhada pelas músicas com o mesmo nome, entre: os reis; Floripes e Olivei-ros; Ferrabrás e Guarim; os soldados vencedor e vencido; e finalmente de mãos unidas. Os soldados, durante a dança trocam de linha e à ordem de Carlos Magno retornam à posição anterior.

CARLOS MAGNO:Unir fileiras!

De seguida cantam a última quadra.

Dêmos fim a este baile,Pois que assim nos convém;Regalem-se meus senhores,Até ao ano que vem.

Pela seguinte ordem os soldados regressam à posição inicial de combate:

CARLOS MAGNO:Soldados cristãos, pela esquerda rodar.

BALAÃO:Soldados turcos, pela esquerda rodar.

CARLOS MAGNO e BALAÃO (em uníssono):Em frente, marcha!

Ao som das Contradanças e pelas ordens dos reis, os batalhões retiram-se do palco para regressarem aos locais de onde partiram para a representação. Não terminam a caminhada sem fazerem uma devida vénia, em frente da capela, à Nossa Senhora das Neves.

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BIBLIOGRAFIA:

MOREIRA DE CARVALHO, Jerónimo, História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, Lisboa, Officina de Maurício Vicente de Oliveira, 1737;MOREIRA DE CARVALHO, Jerónimo e CAETANO GOMES FLAVIENSE, Alexandre, História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, Lisboa, Typographia Rollandiana, 1863;SAMPAIO E MATOS, “Romagem da Senhora das Neves” in Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro para o anno de 1860, Lisboa, Typographia Franco-Portugueza, 1859;BASTO, Cláudio, “Auto da Floripes” in Tradições e Falas de Viana do Castelo, Revista Lusitana XV, 1912; GALLOP, Rodney, Portugal: a Book of Folk-Ways, Cambridge, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, Cambridge University Press, 1936;GALLOP, Rodney, Floripes 21, Caderno 02, Teatro do Noroeste, 1997;CHAVES, Luís, “Um Auto Carolíngio em Terras de Viana” in Arquivo do Alto Minho, Viana do Castelo, 1948 QUINTAS NEVES, Leandro, Auto da Floripes, Viana do Castelo, Comissão das Festas das Neves, 1963;GUERRA, Maurício, Auto da Floripes, Braga, Companhia Editora do Minho, 1982;

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ANEXOS

Mapa 1: Império Romano, no século IV.

Mapa 2: Divisão do Império Romano, no final do século IV.

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Mapa 3: Invasões bárbaras.

Mapa 4: Império Carolíngio, no século IX.

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Núcleo Promotor do Auto da Floripes

A MissãoPreservar, valorizar e promover a tradição o Auto da Floripes através de uma gestão que maximize a criação sustentável de valor, procurando a excelência dentro das suas características genuínas e em per-manente harmonia com a cultura e identidade da comunidade das três freguesias.

A VisãoContribuir para a perpetuação do legado Auto da Floripes, mas também potenciá-lo, enquanto patrimó-nio vivo, num produto cultural de excelência, sendo entendido como um símbolo cultural e identitário de toda a comunidade.

Os Valores1. Responsabilidade: O actual projecto é de cariz cultural, ainda que a consciência social e o reforço dos laços comunitários, orientados para a consolidação da auto-estima e da identidade colectiva, estejam também patentes. No âmbito do papel do Auto da Floripes na comunidade e na defesa da sua credibili-dade, é primordial respeitar a missão e a visão da estrutura, sem se deixar de compreender que, de uma forma ponderada e imparcial, as decisões devem ser tomadas e, ao mesmo tempo, respeitadas. Na base do compromisso público assumido perante os conterrâneos, a cidadania activa e a dedicação à causa pública devem manifestar-se até à exaustão em cada acto. Nesse sentido, o caminho deve ser revestido de honestidade, verdade e lealdade mas também de rigor, empenho e coesão.

2. Autenticidade: Através de um método transparente, inclusivo e cooperativo, pautar as acções pela coerência e pela singularidade positiva, abrindo-se espaço ao incentivo da inovação e da criatividade sem que a identidade e as particularidades de raiz do Auto da Floripes e da comunidade sejam adulteradas e/ou desconsideradas.

3. Criação de Valor: Privilegiar de forma transversal as parcerias e considerar o valor acrescentado como um veículo soberano para se alcançar o êxito e o prestígio. Procurar a excelência e valorizar o mérito com a preocupação constante de evitar a exclusão, a marginalização e o beliscar da alma, mas renegando a cul-tura da mediocridade. Para além de uma abertura ao envolvimento cívico e institucional e de amparo ao inter-câmbio, interessa acolher e favorecer o aprofundamento, a partilha e a divulgação da investigação e do conhecimento.

4. Ambição: Contrários à resignação e à incúria, mas também sem medos e receios da mudança e dos riscos, nutrir o desejo de superar limites através de ideias e acções que são calculadas, realistas e sustentá-veis. Possibilitar uma acção relativamente abrangente no âmbito da cultura e da tradição mas tendo como farol o substrato popular e genuíno do Auto da Floripes.

5. Paixão: Jamais algo pode ser bem feito e alcançar o belo e a excelência sem haver paixão. Este senti-mento contribui para a felicidade das pessoas e mobiliza-as; mas, para além de lhes permitir um envol-vimento recheado de bem-estar e alegria, dá-lhes disponibilidade interior para cederem e aceitarem a renúncia pessoal em favor do interesse colectivo e da tradição Auto da Floripes. Através do fomento de um orgulho saudável e de uma auto-estima equilibrada, consolidar e reforçar, enquanto património comum, identificativo e valioso, o sentimento de pertença que gravita em redor do Auto da Floripes.

Núcleo Promotor do Auto da Floripes

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Os meus agradecimentos aos elementos do Núcleo Promotor do Auto da Floripes, pela honra da primeira edição e à Co-missão de Festas em honra de Nossa Senhora das Neves do biénio 2010/2011, por mais uma publicação do texto do Auto da Floripes.A minha estima e consideração pela Câmara Municipal de Viana do Castelo e pelas Juntas de Freguesia de Barroselas, Mujães e Vila de Punhe por terem viabilizado novamente tão singela edição.

Luís Alberto Dias Franco

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P R O M O T O R E S

“O Auto da Floripes pertence só às Neves? Pertencerá a todos os vizinhos das Neves? Pertencerá ao património

nacional? Creio que as Neves, Mujães, Barroselas, Vila de Punhe, Viana e Portugal, todos têm orgulho no Auto da Floripes. Ele está confiado à guarda da

gente das Neves, da mesma gente que promove a festa a Nossa Senhora das Neves. Só se entende integrado

na festa, mas o seu alcance é nacional. Ele mostra-nos quem somos, o que sentimos, o que pensamos:somos pessoas em luta contra adversos males;

somos criaturas que combatem, riem e choram;homens e mulheres somos, e representamos

nosso papel no teatro do mundo;vivemos e experimentamos a festa, os cantos e danças;

somos assembleia que celebra a alegria de viver.”

Padre Maurício Guerra, in Programa de Festas das Neves, 1983