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Curso PSICOPEDAGOGIA INSTITUCIONAL Disciplina DINÂMICA DAS RELAÇÕES FAMILIARES E APRENDIZAGEM

AVM - Pós-Graduação - MBA Presencial e Distância …...os a ores Olá, meu nome é CRISTIANA MONIZ DE ARAGÃO BAPTISTA, possuo graduação em Psicologia pela Universidade Federal

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  • Curso PSICOPEDAGOGIA

    INSTITUCIONAL

    Disciplina

    DINÂMICA DAS RELAÇÕES

    FAMILIARES E APRENDIZAGEM

  • Curso PSICOPEDAGOGIA INSTITUCIONAL Disciplina

    DINÂMICA DAS RELAÇÕES FAMILIARES E APRENDIZAGEM

    Christiana BAPTISTA Eduardo BRANDÃO

    Maria POPPE

    www.avm.edu.br

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    Olá, meu nome é CRISTIANA MONIZ DE ARAGÃO BAPTISTA,

    possuo graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio

    de Janeiro (1996) e mestrado em Psicossociologia de Comunid. E

    Ecologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

    (2000). Atualmente sou Professora da Faculdade de Medicina de

    Petrópolis. Tenho experiência na área de Psicologia, com ênfase

    em Psicologia Social.

    Olá, eu me chamo EDUARDO PONTE BRANDÃO, e atuo no

    Instituto AVM desde 1997, dando aulas nos cursos presenciais de

    pós-graduação. Formei-me em psicologia pela UFRJ desde 1993,

    tendo ingressado logo em seguida no mestrado em Psicologia

    Clínica da PUC–Rio, concluído em 1997.

    Além das aulas que comecei a ministrar desde então no Instituto

    AVM e noutras instituições, ingressei no cargo público de

    psicólogo do Tribunal de Justiça em 1999, passando a atuar

    principalmente com adolescentes em conflito com a lei e famílias

    em situação de litígio.

    Em 2004 iniciei o doutoramento no programa de Teoria

    Psicanalítica da UFRJ. Desde então venho me debruçando sobre as

    discussões em torno das mudanças sócio-históricas de uniões

    amorosas e formações familiares.

    Meu nome é MARIA DA CONCEIÇÃO MAGGIONI POPPE, sou

    psicóloga formada pela UFRJ e atuo em dois segmentos da

    Psicologia: a docência e a clínica. Na atividade docente iniciei

    minhas atividades em 1997, aqui mesmo no IAVM, primeiramente

    só nos cursos de pós-graduação Lato Sensu na modalidade

    presencial. Foram muitos alunos/professores que tive e ainda

    tenho ansiando por uma qualificação e movidos por algumas

    incertezas quanto a sua atuação. No ano de 2001 passei a fazer

    parte também do corpo de professores que atuam no IAVM na

    modalidade a distância, primeiro nos cursos de pós-graduação e,

    agora também, nos cursos de graduação.

    A atuação nos cursos a distância me fez buscar uma certificação

    de especialista em Gestão de Ensino a Distância na Universidade

    Federal de Juiz de Fora, curso que, atualmente, estou em fase de

    conclusão.

    Face a essa trajetória pessoal é fácil, então, identificar que, ainda

    que os campos de minha atuação sejam em duas áreas distintas,

    estas conjugam desejos bem próximos na medida em que tenho

    de lidar com as necessidades de educandos, professores e

    familiares. Eis aqui nosso encontro e minha grata satisfação!

  • Su

    mário

    07 Apresentação

    09 Aula 1 Considerações gerais sobre família

    21 Aula 2 Família e conflitos sociais

    53 Aula 3

    As relações familiares e seus aspectos jurídicos

    85 Aula 4 História social da família

    113 Aula 5

    Questões contemporâneas sobre a constituição familiar

    135 Aula 6 Sobre os contextos sócio-históricos

    das representações da infância e da família

    155 Aula 7 A relação da família com a escola

    177 AV1 Estudo dirigido da disciplina

    180 AV2

    Trabalho acadêmico de

    aprofundamento

    182 Referências bibliográficas

  • Dinâmicas das Relações Familiares e

    Aprendizagem

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    Olá caro aluno, é mais um prazer estar aqui novamente com

    vocês. A partir de agora o nosso foco será a família. Neste

    caderno teremos 7 encontros, ou seja, 7 aulas. Na primeira aula

    discutiremos sobre considerações gerais sobre família, na segunda

    aula o nosso rumo são os conflitos sociais, nesta aula falaremos

    de temas como tutela, separação, paternidades, etc. Na terceira

    aula o assunto será as rreellaaççõõeess familiares e seus aspectos

    jurídicos. Ainda tem mais. Nem chegamos na metade! Respire

    fundo e vamos nós!! Na quarta aula pretendemos abordar

    questões pertinentes à família, com relação ao seu nascimento,

    constituição, sentimentos e formas de apresentação. Na quinta

    aula pretendemos abordar questões pertinentes ao nascimento,

    constituição e desenvolvimento das formas de organização

    familiar no Brasil, resgatando o contexto histórico em que essa

    organização se deu, assim como os desdobramentos que levaram

    a construção do conceito de família patriarcal brasileira até sua

    substituição pela “família conjugal moderna”. A sexta aula tem

    como tema ooss contextos sócio-históricos das representações da

    infância e da família e por fim a sétima e ultima aula faremos uma

    relação entre a família e a escola.

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    Este caderno de estudos tem como objetivos:

    Entender a família como um sistema; analisar o individualismo

    e a pluralidade das famílias;

    Analisar o dispositivo da sexualidade e a institucionalização da

    célula familiar;

    Estudar sobre crítica à hipótese repressiva, ao estruturalismo e

    a sombra do incesto;

    Apresentar estudos e contribuições teóricas de vital

    importância na construção e entendimento do conceito de

    família ao longo do tempo;

    Estudar sobre a formação da família patriarcal

    brasileira;

    Conhecer a formação da família moderna;

    Estudar sobre visões da infância relacionando a sociedade de

    consumo e a infância;

    Discutir o papel da família no desempenho escolar das crianças.

  • Considerações gerais

    sobre Família

    Christiana Moniz de Aragão Baptista

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    ão

    Olá caro aluno, esta aula servirá de base para o estudo da

    disciplina. Teremos então uma apresentação sobre o que é

    família.

    Para que possamos dar os primeiros passos na abordagem do

    nosso objeto de estudo - a família, faz-se necessário que

    possamos identificá-lo de forma mais clara. Infelizmente, por mais

    que tentemos, não conseguimos chegar a uma única definição,

    mas há múltiplos conceitos e visões a seu respeito. Mas com esse

    estudo, certamente, você será capaz de fazer sua própria

    definição. Então Mãos a obra e boa leitura.

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    Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja

    capaz de:

    Ter uma noção básica sobre questões que envolvem a família;

    Conhecer várias definições sobre a família;

    Buscar entender as funções da família;

    Conhecer o ciclo de vida da família;

    E entender a família como um sistema.

  • Aula 1 | Considerações gerais sobre família 10

    O que é família?

    A família é um modelo universal para o

    viver. Ela é unidade de crescimento;

    de experiência; de sucesso e fracasso;

    ela é também a unidade da saúde e da

    doença.

    (Nathan W. Ackerman)

    Segundo Ferreira, o nosso conhecido como

    Aurélio do dicionário. define família como: “pessoas

    aparentadas, q0ue vivem em geral na mesma casa,

    particularmente o pai, a mãe e os filhos”; “pessoas de

    mesmo sangue”, ou, ainda, “ascendência, linhagem ou

    estirpe” (1986). Desta forma, podemos antever a

    dificuldade de conceituação encontrada. De maneira

    geral, podemos falar de uma diversidade de

    composições que incluem: laços sangüíneos, relações

    não-formais de parentesco, conjugalidade, família

    nuclear, família extensa, entre outras.

    Podemos dizer, contudo, que a família é um

    sistema social crucial à continuação da espécie

    humana. Ela assume muitos aspectos; sendo produto

    do sistema social, além de refletir a cultura deste

    sistema. Além disso, ela reflete ainda as condições de

    vida num determinado espaço e tempo.

    A Antropologia e a Sociologia foram às primeiras

    ciências a se interessarem efetivamente pelo estudo da

    família através de inúmeros estudos e pesquisas que

    assumiram os povos primitivos, tribos indígenas e

    outros agrupamentos como foco de análise.

    A estrutura da família nuclear, isto é, o núcleo

    formado pelo casal e seus filhos, residindo juntos, tal

    como vemos nos dias de hoje é relativamente recente,

    datando aproximadamente do século XVII. As relações

    familiares, até esta época eram bem diferentes. O

    casamento era um contrato não firmado pelas partes

    Dica da professora

    Existem diferentes critérios para conceituar família, como exemplo, coabitação, consangüinidade, nome de família, afinidade afetiva, que variam segundo diferentes momentos históricos. Porém nas definições clássicas de família, o critério de consangüinidade é o mais freqüente, assim como, na modernidade, o de afetividade se sobressai. Portanto, quando falamos em família devemos contextualizar sócio-economicamente e compreender aspectos étnicos e

    religiosos, para reconhecer suas formas variadas de organização.

    O que é família 10 O ciclo de vida da família 13 A família como um sistema 16

  • Aula 1 | Considerações gerais sobre família 11

    interessadas; a criança não era valorizada na

    sociedade, não obtendo a atenção necessária a sua

    idade e desenvolvimento. A educação das crianças era

    garantida pela aprendizagem junto aos adultos. Assim,

    o normal era que, após o desmame que era tardio em

    torno dos 6 ou 7 anos as crianças eram mandadas para

    outras famílias para aprenderem um ofício, ou aprender

    a servir.

    Até o fim da Idade Média, não havia intimidade

    entre os membros de uma família, que viviam em

    grandes casas com parentes, criados, clientes, etc., que

    freqüentavam e habitavam o mesmo espaço, em

    condições promíscuas; não havendo privacidade. Nesta

    época a família cumpria apenas uma função: assegurar

    a transmissão da vida, do nome; de bens, de glória,

    honra e de garantir a linhagem, fosse esta nobre ou

    não.

    O século XVII marca o começo de profundas

    transformações na sociedade. Podemos vislumbrar o

    nascimento da família moderna, que corresponde ao

    surgimento das escolas, da preocupação com a

    educação das crianças. Começa-se a valorizar a

    criança, e consequentemente há o desenvolvimento

    uma relação afetiva e íntima entre pais e filhos. A

    família passa a assumir uma função moral e espiritual,

    preparando a criança para a vida. A nova moral

    burguesa marca a passagem para reorganização da

    casa e dos costumes, refletindo-se na estrutura e

    funções da família ocidental moderna.

    Atualmente podemos entender o conceito de

    família de forma mais abrangente, se referindo não

    apenas ao modelo patriarcal judaico-cristão (pai, mãe,

    filhos e colaterais), mas também a diferentes formas de

    composições familiares como é o caso das famílias

    constituídas independente do matrimônio civil; das que

    Dica de leitura

    Sugerimos a leitura de Philippe Áries, seu livro “História Social da Criança e da Família” que no terceiro capítulo “A Família” descreve detalhadamente a formação do sentimento de família. Sentimento este desconhecido antes do período medieval, ainda que a família já existisse, porém sua função principal era garantir a manutenção do nome e dos bens.

  • Aula 1 | Considerações gerais sobre família 12

    são formadas pela dissolução das famílias originais e

    outras mais.

    Essa variedade acaba promovendo a

    necessidade por parte dos profissionais que trabalham

    na área de família de uma atualização constante e a

    realização de novos estudos e pesquisas.

    A FUNÇÃO DA FAMÍLIA

    Podemos enumerar algumas das funções

    primordiais da família moderna:

    Provedora as necessidades básicas de

    alimentação e habitação, ou seja, funções de

    sobrevivência e proteção dos perigos

    externos;

    Matriz do desenvolvimento de vínculos

    afetivos e sociais;

    Modeladora dos papéis sexuais.

    Ou seja, vemos como funções primordiais da

    família o asseguramento da sobrevivência física e de

    socialização, possibilitando o desenvolvimento da

    identidade e da individualidade de seus membros.

    Cada família desenvolve sua forma particular de

    existência; através do que podemos chamar de

    “padrões de interação”, nos quais vemos diferentes

    estruturas de poder, de formas de comunicação, de

    resolução de problemas, maneiras diferenciadas de

    responder às demandas afetivas de seus membros, de

    gerenciar conflitos, perdas e mudanças. Estes padrões

    são constituídos por laços, limites/fronteiras e papéis;

    em constante interação. Porém, esta interação é

    resultado de negociações explícitas e implícitas entre

    Dica da professora

    Mesmo essas funções primordiais estão afetadas tendo em vista as diferentes estruturas de família na atualidade. Destacamos o fato dos vínculos atuais serem tão transitórios que dificultam a garantia dessas funções.

    A família protege a criança do mundo exterior e a

    prepara para ele.

    Dica de leitura

    O livro “As Mudanças no Ciclo de Vida Familiar” de Carter, McGoldrick e col., Editora Artes Médicas, 1995. Traz uma visão abrangente e bem conceitualizada da família, conforme ela se movimenta através do ciclo de vida em direção aos nossos dias. Traz questões práticas e coloca as variedades de estilos familiares e ciclos de vida, diversidade cultural, mudanças nos papéis femininos e nas formas e estruturas familiares.

  • Aula 1 | Considerações gerais sobre família 13

    seus membros, em torno das questões que vão

    surgindo ao longo do seu desenvolvimento e do

    contexto em que estes se inserem, sendo que, estes

    padrões interacionais são influenciados pela bagagem

    histórica trazida através das gerações na família.

    Assim, a identidade de cada membro, é influenciada

    pelos diferentes elementos que fazem parte de cada

    família, de sua cultura, assim como de suas próprias

    vivências no mundo.

    O ciclo de vida da família

    O Ciclo de Vida Familiar é um processo bastante

    complexo envolvendo três ou quatro gerações que se

    movimentam juntas ao longo do tempo. Embora a

    versão mais moderna de família seja a da família

    nuclear, formada por um casal e seus filhos, morando

    juntos e separados de suas famílias de origem, as

    famílias são subsistemas que se comportam dentro de

    um sistema familiar mais amplo. Em outras palavras,

    nossas reações aos relacionamentos não se limitam às

    interações dentro do núcleo familiar, mas se estendem

    aos relacionamentos passados, presentes e antecipados

    da família mais extensa. As mudanças ocorrem

    simultaneamente no ciclo de vida de duas ou mais

    gerações e os eventos que geram perturbações em um

    determinado subsistema acabam por afetar

    consideravelmente os demais.

    Pode-se afirmar que uma família comum vive

    sob um fluxo constante de ansiedade que pode ser

    observado tanto verticalmente como horizontalmente.

    O fluxo vertical diz respeito aos padrões de

    relacionamento transmitidos através de gerações,

    incluindo-se aí as atitudes, expectativas, valores e

    regras que são levados de uma geração à seguinte,

    mantendo vivos os “temas” familiares, que devem

    orientar as vidas dos membros daquela família. O fluxo

    Dica da professora

    Com relação ao eixo horizontal podemos observar que atualmente, com o número crescente de separações e recasamentos, os laços afetivos se ampliam muito mais horizontalmente. A família tende a ter mais contato e convívio com os parentes da mesma geração e se distanciam mais das gerações passadas.

  • Aula 1 | Considerações gerais sobre família 14

    horizontal, por sua vez, refere-se à ansiedade

    provocada pelo estresse que afeta a família ao longo do

    tempo e que incluem eventos imprevisíveis que podem

    romper o equilíbrio e atingir o processo do ciclo vital,

    como por exemplo, as situações de adoecimento

    crônico, o nascimento de uma criança deficiente, dentre

    outros.

    Qualquer família irá parecer bastante

    disfuncional caso haja um excesso de estresse no eixo

    horizontal. Por outro lado, uma leve pressão no eixo

    vertical pode ocasionar uma brusca ruptura em um

    sistema que já seja sobrecarregado de estresse.

    Portanto, o grau de ansiedade encontrado no ponto

    onde cruzam esses dois eixos determina como a família

    lidará com as mudanças ao longo da vida. Quanto

    maior for a ansiedade gerada na família em qualquer

    fase de transição, mais difícil e/ou disfuncional será o

    processo de transição.

    A família também terá de lidar com os fatores

    estressantes atuais provocados pelo meio ambiente

    socioeconômico e influenciados pelos acontecimentos

    históricos da época e lugar em que vivem. Embora a

    família possa ser considerada um sistema em constante

    movimento, ela difere de outros sistemas, pois só tem

    a possibilidade de incorporar novos elementos através

    do nascimento, do casamento ou da adoção; a exclusão

    só se dá pela morte. Não escolhemos os

    relacionamentos familiares, salvo o casamento, e não

    temos como alterar as relações na rede complexa de

    laços familiares. Quando agimos como se as relações

    familiares fosse uma questão opcional, perdemos nosso

    próprio sentimento de identidade e a possibilidade de

    experimentar o contato afetivo e social que o convívio

    familiar proporciona.

    Dica da professora

    Devemos lembrar também que a grande contribuição da psicanálise freudiana foi o conceito de Complexo de Édipo, quando Freud identifica uma trama familiar presente na constituição da vida anímica do sujeito. O enredo familiar associado às fantasias sexuais toma parte do aparelho psíquico e determinam as neuroses na vida adulta.

    Dica da professora

    Devemos refletir sobre as mudanças sociais que afetam a família e sua organização, influenciando assim o ciclo de vida familiar e provocando “perturbação” no sistema familiar. Muitas vezes o ciclo de vida se encurta e observamos alterações como: a avó fica responsável pelo cuidado dos netos, alterando a relação da mãe com os filhos que se confunde com irmã. Logo, não há uma transição de papel

    de filha para mãe, modificando esse estágio do ciclo vital.

  • Aula 1 | Considerações gerais sobre família 15

    Existem alguns processos a serem negociados

    ao longo dos diferentes estágios do ciclo de vida

    familiar: a expansão, a contração e o realinhamento do

    sistema de relações da família para permitir a entrada,

    a saída e o desenvolvimento de seus membros de

    maneira funcional. O desenvolvimento clássico do ciclo

    de vida de uma família, por exemplo, se inicia no

    estágio do jovem adulto, quando um homem e uma

    mulher se casam, formando uma nova família. Nesse

    momento há a necessidade de realizar a separação e a

    diferenciação da família de origem, fazendo a passagem

    de maneira harmônica, sem criar conflitos ou

    rompimentos. O sucesso ou fracasso dessa fase

    influenciará como, quando e com quem o jovem adulto

    se casará e cumprirá os outros estágios do ciclo vital.

    O próximo estágio do ciclo vital, do recém-

    formado casal, exige que uma série de questões

    pessoais definidas pela família de origem seja

    renegociada. Além disso, é preciso que o casal defina

    as novas relações com suas famílias de origem, tais

    como: a freqüência das visitas aos pais, a distância

    física e emocional a ser mantida, dentre outras

    questões.

    A chegada do primeiro filho inaugura um novo

    ciclo da vida familiar, impondo novos comportamentos

    ao casal de pais e desafiando-os a manter a intimidade

    e, ao mesmo tempo, abrir espaço para acolher um novo

    membro. A chegada dos filhos à adolescência precipita

    a necessidade de redefinição das relações familiares. As

    famílias com adolescentes precisam estabelecer novas

    fronteiras, mas que sejam flexíveis o suficiente para

    permitir oscilações entre os comportamentos de

    independência e os momentos em que o adolescente

    sente necessidade de buscar a proteção e orientação

    dos pais.

  • Aula 1 | Considerações gerais sobre família 16

    A saída dos filhos de casa, uma etapa do ciclo

    vital também conhecida como “Síndrome do Ninho

    Vazio”, é o momento em que os filhos mais velhos

    começam a partir e, ao mesmo tempo, inicia-se a etapa

    da entrada dos cônjuges e netos. Muitas vezes, esse

    estágio coincide com situações de adoecimento e morte

    na família e exige do casal uma renegociação do

    casamento, que já não pode funcionar com base nas

    funções parentais. Freqüentemente, essa fase envolve

    sentimentos de vazio e depressão.

    A família mais velha deve enfrentar mudanças

    importantes e, muitas vezes, dolorosas, como morte do

    cônjuge e a perda da autonomia. Em todos os estágios,

    no entanto, a família enfrenta novos desafios e cada

    etapa do percurso é construída sobre a precedente. A

    cada mudança se deparam com a instabilidade, a

    tensão e o desequilíbrio. Dependendo da habilidade

    com que a família mobiliza padrões alternativos de

    reação, nos momentos em que se sentem pressionadas

    a fazer mudanças internas e externas, oriundas de seus

    próprios membros ou do meio social, esse sistema será

    mais ou menos forte para enfrentar as etapas seguintes

    do ciclo vital.

    A família como um sistema

    A partir da Teoria dos Sistemas podemos

    conceber a família como sistema aberto, que troca

    materiais, energia e informação com o meio ambiente à

    sua volta. A família se constitui de um conjunto de

    regras de comportamento e por funções dinâmicas que

    estão em constante interação e intercâmbio com o meio

    externo. Embora possa ser percebida como um sistema

    em si, a família é um subsistema de um sistema maior:

    a sociedade. Como unidade, ela também é constituída

    de subsistemas: seus membros, suas díades (pai-filho,

    mãe-filha), o sexo, as gerações e interesses e funções.

    Você sabia?

    A “Síndrome do Ninho Vazio” tem levado muitas mulheres a sérios estados depressivos, uma vez que investiu a maior parte de seu afeto na relação com os filhos depois de uma separação. Ou então, quando o casal, ainda juntos, não foi capaz de planejar e priorizar aspectos afetivos da vida conjugal.

    Dica da professora

    A teoria dos sistemas marca uma mudança de paradigma dos modelos intrapsíquicos para os de destaque psicossocial, contextual e sistêmico. Logo, no interior de cada grupo familiar podemos analisar as relações interpessoais entre os membros da família e sua relação com os outros sistemas.

  • Aula 1 | Considerações gerais sobre família 17

    Cada um desses subsistemas tem suas fronteiras, ou

    seja, as regras que definem quem e como se pode

    participar; essa é função que cada subsistemas tem

    para manter-se diferenciado.

    Além dessa função, existem outras, mais

    específicas, que impõem exigências a seus membros.

    Portanto é importante que as fronteiras sejam bem

    definidas para que seus membros possam exercer

    essas funções. Uma boa avaliação do funcionamento

    familiar pode se basear na observação da delimitação

    das fronteiras entre os subsistemas familiares. As

    famílias com pouca individualidade e privacidade

    geralmente são aquelas cujos subsistemas são pouco

    diferenciados e se encontram fusionados.

    A estrutura familiar é moldada pelas relações

    dentro do sistema, estando este permanentemente

    aberto a novas formulações, adaptações e respondendo

    às necessidades de mudança de cada membro. Uma

    família saudável é sempre dinâmica e está em

    constante processo de evolução e transformação. Como

    qualquer outra organização social, tem regras, política

    e padrões de comportamento próprios. Seu bom

    funcionamento depende de uma clara separação entre

    as gerações e da possibilidade que é dada a cada

    membro de experimentar se sentir parte de um todo

    seguro e acolhedor.

    O mais importante, para o terapeuta de família,

    é o que ocorre entre os membros, sua relação e

    interação. O desenvolvimento de cada membro é

    percebido através dos processos interativos dos quais

    participa. As mudanças nas funções de um indivíduo

    acarretam alterações nas funções complementares dos

    outros membros da família. Uma família saudável é

    aquela que, através do tempo e dos ciclos de vida

    familiar, permite que o processo de crescimento e a

    Quer saber mais?

    Num primeiro momento, o reconhecimento da participação da família na etiologia das doenças mentais serviu de explicação para alguns teóricos e gerou sentimentos ameaçadores para as famílias, que passaram a ser vista como “culpadas” e responsáveis em muitos casos.

    Dica da professora

    Nos atendimentos familiares a observação terapêutica deve identificar os comportamentos, as interações verbais e não-verbais dos membros da família. Estas observações contribuem no reconhecimento das possibilidades existentes na própria família para superação do problema que os levou a buscar o tratamento.

  • Aula 1 | Considerações gerais sobre família 18

    reorganização do sistema familiar ocorram

    continuamente.

    EXERCÍCIO 1

    A versão mais moderna de família é denominada de:

    ( A ) Família matriz;

    ( B ) Família nuclear;

    ( C ) Família pós-moderna;

    ( D ) Família contextual;

    ( E ) Família matriarcal.

    EXERCÍCIO 2

    A chamada "síndrome do ninho vazio" refere-se a:

    ( A ) Dissolução familiar;

    ( B ) Novos agrupamentos familiares;

    ( C ) Crise do casamento face a revolução sexual;

    ( D ) Saída dos filhos da casa dos pais;

    ( E ) As pressões externas sofridas pela família em

    momentos de crise.

    EXERCÍCIO 3

    Defina família e descreva sua função.

    ____________________________________________

    ____________________________________________

    ____________________________________________

    ____________________________________________

    ____________________________________________

  • Aula 1 | Considerações gerais sobre família 19

    EXERCÍCIO 4

    O que é o ciclo de vida familiar?

    ____________________________________________

    ____________________________________________

    ____________________________________________

    ____________________________________________

    ____________________________________________

    RESUMO

    Vimos até agora:

    A definição de Família segundo Aurélio:

    “pessoas aparentadas, que vivem em geral na

    mesma casa, particularmente o pai, a mãe e

    os filhos”; “pessoas de mesmo sangue”, ou,

    ainda, “ascendência, linhagem ou estirpe”

    (1986). Desta forma, podemos antever a

    dificuldade de conceituação encontrada;

    A Antropologia e a Sociologia foram às

    primeiras ciências a se interessarem

    efetivamente pelo estudo da família através

    de inúmeros estudos e pesquisas que

    assumiram os povos primitivos, tribos

    indígenas e outros agrupamentos como foco

    de análise;

    Até o fim da Idade Média, não havia

    intimidade entre os membros de uma família,

    que viviam em grandes casas com parentes,

    criados, clientes, etc., que freqüentavam e

    habitavam o mesmo espaço, em condições

    promíscuas; não havendo privacidade;

    Vemos como funções primordiais da família o

    asseguramento da sobrevivência física e de

  • Aula 1 | Considerações gerais sobre família 20

    socialização, possibilitando o desenvolvimento

    da identidade e da individualidade de seus

    membros;

    O Ciclo de Vida Familiar é um processo

    bastante complexo envolvendo três ou quatro

    gerações que se movimentam juntas ao longo

    do tempo. Embora a versão mais moderna de

    família seja a da família nuclear, formada por

    um casal e seus filhos, morando juntos e

    separados de suas famílias de origem, as

    famílias são subsistemas que se comportam

    dentro de um sistema familiar mais amplo;

    A família se constitui de um conjunto de

    regras de comportamento e por funções

    dinâmicas que estão em constante interação

    e intercâmbio com o meio externo.

  • Família e conflitos

    sociais

    Eduardo Ponte Brandão

    AU

    LA

    2

    Ap

    res

    en

    taç

    ão

    “No presente momento, tornou-se banal constatar que a família

    vai mal”. É com essa frase que o psicanalista Jurandir Freire Costa

    introduz seu conhecido livro Ordem Médica e Norma Familiar,

    publicado originalmente em 1979. Passados mais de trinta anos,

    pode-se dizer que tal observação continua extremamente atual.

    Contudo, se Jurandir F. Costa lança mão desse comentário, não é

    para afirmar que as relações entre os membros da família

    começaram a se deteriorar no tempo em que ele redige seu livro.

    Ao contrário, a tese central de toda a argumentação desenvolvida

    ao longo de sua obra é de que, em meados do século XIX, a

    família pequeno-burguesa surge no Brasil sob a tutela da política

    higienista. Com efeito, a posição de dependência da família em

    relação ao aparato médico-pedagógico e aos discursos de que ela

    está sempre em defasagem à norma estabelecida, acompanha-na

    desde a sua origem e se perpetua até os dias de hoje. Essa tese é,

    sem dúvida, importante e serve como ponto de partida para

    desenvolver o tema sobre “Família e Conflitos Sociais”.

    Ob

    jeti

    vo

    s

    Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja

    capaz de:

    Discutir sobre tutela sobre as famílias e o método genealógico;

    Analisar o individualismo e a pluralidade das famílias;

    Estudar as tecnologias médicas e a autonomia do sexo;

    Abordar a separação entre paternidade social e biológica;

    E a transgressão das famílias;

    Discutir sobre conjugalidade privada e parentalidade pública;

    E outras análises da contemporaneidade.

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 22

    Introdução

    Dizer que o discurso sobre a crise das famílias

    está inserido num jogo de poderes que visa manter a

    tutela sobre os seus membros, possibilita ao menos um

    novo entendimento das implicações que envolvem o

    conceito de “crise” ou “conflito”.

    Ora, teríamos evidentemente a opção de

    confortarmo-nos com nossas convicções teóricas sobre

    a família e recusar as mudanças contemporâneas que,

    como veremos adiante, abalam as referências do que

    seja paternidade, maternidade, filiação, casal, entre

    outros. Assim, encontraríamos à nossa disposição as

    classificações necessárias para dizer que, sem nosso

    saber e nossa técnica, a família continua mal. Num só

    golpe, poderíamos do alto de nossa sapiência alternar,

    entre a família e a sociedade, a culpa pelos males

    vivenciados, isto é, se não é a sociedade adoentada

    que atinge de chofre a família, é a família

    desestruturada que gera indivíduos que irão perturbar a

    sociedade. Entre mortos e feridos, nossas teorias são

    as únicas que sobrevivem ilesas. Mas, não é essa opção

    que faremos.

    Em primeiro lugar, a proposta de situar o que

    seria da ordem de um conflito num eixo opositivo entre

    família e sociedade, ou seja, entre domínio privado e

    vida pública, apóia-se numa falsa premissa. Nem a

    família, especialmente a família moderna, é um reduto

    impenetrável às intervenções do Estado, nem tampouco

    os governos deixam de lidar com a população enquanto

    problema político e econômico a ser gerido, e, por isso,

    elegem as relações familiares como foco privilegiado de

    suas ações.1 Seguindo esse raciocínio, não há

    simplesmente oposição entre família e sociedade, pois

    ambas as esferas são permeáveis entre si.

    1 Retornaremos sobre esse ponto a respeito da arte de governar na apostila seguinte.

    Dica do professor

    Este posicionamento é muito freqüente! Culpabilizar a família e a sociedade (como se não fôssemos integrantes das duas) parece uma solução mágica, ou talvez uma forma de isenção de culpa que muitos profissionais têm feito. Pense nisso e nas frases que usualmente falamos sobre família e sociedade... busque se questionar sobre cada uma delas.

    Introdução 22 A tutela sobre as famílias e o método genealógico 24 O individualismo e a pluralidade das famílias 28 As tecnologias médicas e a autonomia do sexo 36 Separação entre paternidade social e biológica e a transgressão das famílias 39 Conjugalidade privada e parentalidade pública e outras análises da Contemporaneidade 43

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 23

    Em segundo lugar, o conflito por si só não tem

    um caráter negativo, ao contrário, na maioria das

    vezes, ele é positivo.

    Expliquemo-nos. A expressão de novas formas

    de aliança, seja conjugal seja parental, costuma ser

    repudiada sob a pecha de serem tributárias de

    distúrbios patológicos ou desvios morais. Tal repúdio

    recai, num só golpe, na nostalgia de um tempo

    supostamente perdido em que os pais gozavam de

    autoridade e os filhos a respeitavam, ou em que

    homem detinha o poder decisório sobre a mulher e sua

    prole. O rigor moral e o anacronismo dessas

    concepções são evidentes! Tal nostalgia mobiliza todo

    um aparato de repressão sobre as famílias, não sem

    excluir, para agravar a situação, que historicamente

    sempre houve diversidade no campo dos

    relacionamentos e das famílias, mas que não era

    legitimada pelos poderes vigentes.

    Desse modo, convém adotar o pressuposto de

    que o conflito aponta amiúde para a insuficiência de

    nosso aparato teórico e técnico, convidando-nos a

    revisá-lo a cada vez em que nos deparamos com novos

    impasses. Trata-se menos de submetermo-nos aos

    conceitos, aplicando-os sem levar em conta contextos

    distintos e sem admitir as implicações éticas e políticas

    daqueles, do que submetê-los a nosso serviço.

    Mas, como usar os conceitos por aquilo que eles

    efetivamente são, isto é, instrumentos de pensamento

    e de ação, sem cair num relativismo acrítico em que

    toda e qualquer manifestação seria aceita sem medir

    suas conseqüências?

    Em busca de alguma resposta, convém determo-

    nos mais nos argumentos de Jurandir F. Costa.

    Quer saber mais?

    Jurandir Costa é psiquiatra, com formação psicanalítica. Nasceu em Pernambuco e é hoje em dia um dos maiores intelectuais brasileiros vivos. É membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), no Instituto de Medicina Social (IMS), onde desenvolve suas pesquisas e orienta dissertações de mestrado e teses de doutorado. Visite o site de Jurandir Costa. Lá você encontra várias informações e textos interessantes do autor. http://www.jfreirecosta.com/

    Dica do professor

    Tente responder a questão ao lado, antes de prosseguir na sua leitura. Interagir com o texto é se antecipar com perguntas e tentar respondê-las. Assim, você também constrói um pensamento livre e uma argumentação consistente.

    Não poupe esforços!

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 24

    A tutela sobre as famílias e o método

    genealógico

    No Brasil das primeiras décadas do século XIX, a

    política higiênica se insinua como micropolítica na

    intimidade da família de elite com objetivo de salvar os

    indivíduos do caos de alta mortalidade infantil e das

    precárias condições de saúde em que se encontravam

    os adultos. Submetida a uma educação física, moral,

    intelectual e sexual, a família modifica seu perfil na

    medida em que expulsa do lar doméstico a desordem

    dos costumes coloniais. “A família nuclear e conjugal,

    higienicamente tratada e regulada”, escreve Costa,

    “tornou-se sinônimo histórico da família burguesa”

    (Costa, [1979]1999, p. 13).

    VAMOS VER COMO ESTA RELAÇÃO ENTRE

    POLÍTICA, MEDICINA E FAMÍLIA SE DEU NA

    EUROPA, AINDA NO SÉCULO XVIII.

    O século XIX no Brasil reflete diretamente este

    processo:

    “A política médica, que se delineia no século XVIII

    em todos os países da Europa, tem como reflexo a

    organização da família, ou melhor, do complexo

    família-filhos, como instância primeira e imediata de

    medicalização dos indivíduos; fizeram-na

    desempenhar o papel de articulação dos objetivos

    gerais relativos à boa saúde do corpo social com o

    desejo ou a necessidade de cuidados dos indivíduos;

    ela permitiu articular uma ética "privada" da boa

    saúde (dever recíproco de pais e filhos) com um

    controle coletivo da higiene e uma técnica científica

    da cura, assegurada pela demanda dos indivíduos e

    das famílias, por um corpo profissional de médicos

    qualificados e como que recomendados pelo Estado.

    Os direitos e os deveres dos indivíduos concernindo

    à sua saúde e à dos outros, o mercado onde

    coincidem as demandas e as ofertas de cuidados

    médicos, as intervenções autoritárias do poder na

    ordem da higiene e das doenças, a

    institucionalização e a defesa da relação privada

    com o médico, tudo isto, em sua multiplicidade e

    coerência, marca o funcionamento global da política

    de saúde do século XIX, que entretanto não se pode

    compreender abstraindo-se este elemento central,

    formado no século XVIII: a família medicalizada-

    medicalizante.”

    Foucault, Microfísica do poder, 1992, p.201.

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 25

    A estratégia principal usada pelo higienismo

    para romper com as regras do casamento de razão,

    típico da família colonial, é justamente a promoção da

    sexualidade. O sexo é elevado à condição de laço

    matrimonial, desde que ele esteja comprometido com a

    estabilidade conjugal e a proteção da infância. A família

    transforma-se num lugar de densidade afetiva e sexual.

    Ao mesmo tempo, as diferenças sócio-sentimentais

    entre homem e mulher são tipificadas como se fossem

    atributos naturais.

    Por sua vez, esse novo sentimento de família e

    de infância solicita a presença constante de

    intervenções disciplinares. A normalização das relações

    intrafamiliares é garantida pelas próprias terapêuticas

    educativas que se propõem a resolver seus impasses.

    Cria-se um mecanismo de tutela em que cada membro

    da família é solicitado a se abrir ao exame infindável de

    suas relações.

    Em face desse panorama histórico, Jurandir F.

    Costa alerta para o fato de que as práticas terapêutico-

    pedagógicas que visam curar as disfunções, os males,

    as desestruturações da família são o componente ativo

    daquilo que elas pretendem resolver. De um lado, por

    exemplo, têm-se pais e mães que jamais se sentem

    suficientemente seguros sobre o que fazer com seus

    filhos, encontrando-se em defasagem às normas de

    saúde e equilíbrio. De um outro, têm-se especialistas

    que, atados ao cientificismo de suas práticas e

    confiantes da isenção política, redobram as medidas de

    controle, vigilância e de adaptação interminável às

    normas do corpo, do sexo e da intimidade.

    Os especialistas sobre a família refazem o

    percurso da higiene médica, fazendo eternizar sutis

    mecanismos de tutela à sombra de um modelo ideal de

    família pequeno burguesa.

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 26

    Não é exagero supor que Jurandir F. Costa se

    inspira num método utilizado amplamente por

    Foucault2, que, em sua fase da genealogia dos poderes,

    procura apresentar criticamente as questões cruciais de

    seu tempo através do retrospecto histórico. Ora, como

    o próprio Costa anuncia na introdução de seu livro, a

    massa de discursos que advertem sobre a deficiência

    das famílias ao mesmo tempo em que prometem

    resolvê-la, sem jamais o fazerem, é o ponto de partida

    de sua reflexão crítica.

    Seguindo esse raciocínio, Jurandir F. Costa

    colocou-se como um estrategista no campo do

    pensamento, assim como Michel Foucault fez ao

    evidenciar os confrontos em acontecimento no campo

    da loucura, da sexualidade, da linguagem, da

    criminalidade, entre outros. Lançar mão de uma

    retrospectiva histórica tem somente alguma

    importância, nessa perspectiva, se ela incide nas linhas

    de força presentes nos discursos do aqui-e-agora.

    Por sua vez, evidenciar os jogos de força

    pressupõe, tratando-se aqui de um segundo aspecto do

    método genealógico, lançar luz sobre as condições

    políticas de existência de certos saberes. Em outras

    palavras, a análise histórica das condições de

    possibilidade de formações discursivas e de campos do

    conhecimento implica em afirmar que não existe saber

    sem práticas de poder:

    Temos antes que admitir que o poder

    produz saber (e não simplesmente

    favorecendo-o porque o serve ou

    aplicando-o porque é útil); que poder e

    saber estão diretamente implicados;

    que não há relação de poder sem

    constituição correlata de um campo de

    saber, nem saber que não suponha e não

    2 Michel Foucault , filósofo francês, tem entre seus títulos mais conhecidos A História da Loucura, As Palavras e as Coisas, Vigiar e Punir, História da Sexualidade, entre outros não menos famosos.

    Quer saber mais?

    Quem foi Michel Foucault? Filósofo francês (1926-1984), com rica

    produção teórica em torno das relações entre poder, conhecimento e subjetividade, Michel Foucault escreveu, entre os títulos mais conhecidos, A História da Loucura, As Palavras e as Coisas, O Nascimento da Clínica, Vigiar e Punir, História da Sexualidade, entre outros livros não menos famosos e inúmeros artigos, além de seminários no prestigioso Collège de France.

    MICHEL FOUCAULT

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 27

    constitua ao mesmo tempo relações de

    poder.

    (Foucault, 1987: 30)

    No contexto em que Jurandir F. Costa escrevia o

    seu livro, ou em que Foucault escrevia o volume

    inaugural de sua História da Sexualidade, já ocorria

    uma série de transformações sociais, mas cujos efeitos

    se fazem sentir atualmente com mais ênfase. Sobre

    essas mudanças, pode-se elencar as principais: o

    movimento feminista, o ingresso da mulher no mercado

    de trabalho, a pílula anticoncepcional, a liberação

    sexual, a institucionalização do divórcio, a legitimação

    de uniões extramatrimoniais, o desenvolvimento dos

    grandes centros urbanos, o incremento da informação e

    do consumo, o avanço das técnicas de fertilização e

    reprodução e, mais recentemente, a hipótese da

    clonagem reprodutiva.

    Pode-se afirmar que esses acontecimentos no

    campo da política e das tecnologias médicas estejam na

    origem da multiplicação e da legitimação dos arranjos

    parentais e conjugais com os quais nos deparamos

    freqüentemente hoje em dia, a saber, famílias

    divorciadas, recompostas, monoparentais, fecundadas

    artificialmente, adotivas, de homossexuais e de

    lésbicas.

    Se quisermos seguir a metodologia acima,

    devemos então partir do que se apresenta hoje em dia

    no campo complexo de acontecimentos sociais e que

    suscitam tantos discursos sobre a crise ou os conflitos

    na família e nos relacionamentos interpessoais.

    Afinal, o panorama hoje em dia de discussão

    sobre as famílias é complicado o suficiente para não ser

    creditado integralmente à tutela herdada do

    higienismo.

    Dica de leitura

    Para compreender melhor o método genealógico de Foucault, assim como sua obra, nós sugerimos a leitura de alguns de seus comentadores:

    BRANCO, Guilherme; NEVES, Luiz F. (orgs). Michel Foucault; da arqueologia do saber à estética da existência. Rio de Janeiro: NAU; Londrina, PR: CEFIL, 1998. PORTOCARRERO, Vera; BRANCO, Guilherme (orgs). Retratos de Foucault. Rio de Janeiro: NAU, 2000. Do próprio autor, sugerimos: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 28

    Ora, em face de rumorosos casos veiculados na

    mídia, tal como o de Suzana Richthofen ou dos

    adolescentes que queimaram o índio Galdino em praça

    pública ou ainda daqueles que são acusados de brigar

    em boates por diversão, em suma, não é difícil

    encontrar psicólogos, médicos, educadores, juristas,

    religiosos, entre outros que alertam a opinião pública

    sobre os riscos da demissão educativa e da ausência de

    afetos que repentinamente parecem ter atingido as

    famílias. Em face desse quadro, é inegável que há,

    como sempre houve, tutela e norma. Mas, a

    complexidade dos discursos e das práticas em jogo

    parece indicar que esses não se limitam a querer

    reproduzir a ordem social burguesa no seio da família.

    O individualismo e a pluralidade das

    famílias

    É conhecido que, até algumas décadas atrás, o

    casamento era ainda considerado no Direito laico

    necessário à legitimação dos cônjuges e dos filhos.

    Com o decorrer dos anos, ele perdeu sua força

    simbólica na mesma proporção em que se aumentou o

    número de divórcios. Antes visto como ato fundador da

    célula familiar, o casamento foi “cada vez mais”,

    observa Roudinesco sobre as transformações ocorridas

    a partir das décadas de 60 e 70 no Ocidente,

    “assimilado a um rito festivo que acontecia (...) como

    um contrato mais ou menos duradouro entre duas

    pessoas” (Roudinesco, 2003: 153). Hoje em dia, ele é

    precedido freqüentemente por um período de

    experiências múltiplas da vida comum ou solitária,

    chegando a situações em que os filhos assistem às

    núpcias de seus próprios pais.

    Por sua vez, até então temido como ameaça à

    instituição familiar por diversos setores da sociedade, o

    Para refletir

    Você lembra do caso policial em que Suzana Richthofen assassinou os próprios pais? E do assassinato do índio Galdino, queimado em praça pública por diversão de adolescentes? Que outros casos você conhece? Pesquise outras situações de violência intrafamiliar ou cometidas por adolescentes e reflita a respeito delas.

    Dica do professor

    Vamos ao dicionário? Laico – secular, por oposição a eclesiástico. Ou seja, laico é um adjetivo para aquilo que não é religioso. Por exemplo: governo laico, escola laica. A instituição LAICA não professa nenhuma religião. Quando isso acontece, geralmente a instituição é chamada de confessional. Exemplo: escolas religiosas.

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 29

    divórcio adquire não somente legitimidade à luz do

    Estado como também passa a ser prática comum entre

    os casais, sem que os discursos de alerta e repúdio se

    façam repercutir com a ênfase de outrora.

    No Brasil, sabemos que a Lei do Divórcio (Lei

    6515) foi promulgada apenas em 1977, e originalmente

    restrita à possibilidade de somente um divórcio por

    cidadão. Tal restrição tinha o intuito de aplacar a

    oposição da Igreja Católica, que receava a aniquilação

    da família brasileira.

    Vale acrescentar que houve uma série de fatores

    que concorreram a favor da promulgação de uma lei

    brasileira que regulamentasse a dissolução da

    sociedade conjugal e do casamento.

    Parte dos fatores assinalados acima (movimento

    feminista, liberação sexual, métodos contraceptivos,

    acrescidos do chamado “milagre econômico”)

    redefiniram o perfil das famílias, ao menos em alguns

    estratos da sociedade, de modo bem diverso do que

    Jurandir F. Costa descreve a propósito da família

    pequeno-burguesa higienizada.

    Se na família higienizada a mulher estava

    comprometida com a imagem de mãe amorosa e

    responsável, nesse novo modelo de família, marcada

    pelo individualismo, ela liberta-se em parte do destino

    “natural” de maternidade. A mulher passa a buscar

    certa independência do marido, adquirir sua renda

    própria, fazer uso de seus próprios bens e abandonar a

    aura de mãe dedicada aos filhos e afazeres domésticos

    (Russo, 1987).

    Por sua vez, o homem desvincula-se, ao menos

    idealmente, do papel tradicional de “machista”, cuja

    relação privilegiada com o trabalho fora de casa e com

    Para pensar

    “Ser mãe é natural”. Esta é uma questão muito delicada, principalmente quando certos atributos são também naturalizados como comuns em todas as mães... Se a possibilidade de conceber é inata na mulher, o modo de ser mãe é construído na

    cultura e na história. Percebemos isso quando utilizamos expressões do tipo: - as mães italianas são diferentes! - na “terra dela” isso é coisa de mãe. - antigamente as mães faziam isso, agora é diferente. O que você pensa sobre isso? Os atributos dados às mães são inatos e universais, ou relativos?

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 30

    os próprios interesses sexuais deixa de ser

    exclusividade de seu gênero.

    Com efeito, a hierarquia que dividia as esferas

    pertencentes a cada sexo e geração na família

    higienizada cai por terra com o crescimento de certa

    ênfase no individualismo.

    Num contexto de época em que o contato com

    costumes mais modernos e cosmopolitas e a abertura

    para o consumo são incentivos para a realização de

    projetos de cunho pessoal, começa a surgir uma

    concepção moral de indivíduo que se opõem as redes

    mais amplas de relações e de solidariedade (Russo,

    1987).

    A própria família torna-se uma espécie de

    indivíduo-coletivo, em que caberia aos filhos a

    responsabilidade de perpetuar a ascensão social e

    material almejada por seus pais. É a partir do

    casamento e dos filhos que os planos e objetivos em

    longo prazo adquirem uma dimensão temporal que, de

    certa forma, ultrapassa a própria existência pessoal.

    Com a ressalva de que isso não significa “um momento

    de desindividualização realizado através da família

    nuclear”, observa Velho num estudo sobre as

    acusações em famílias de camadas médias urbanas, e

    sim “uma ênfase num projeto individual que, para se

    expressar, necessita do espaço mínimo fornecido pelo

    casamento, mulher e filhos” (Velho, 1981: 84).

    Nesse novo modelo familiar, são as

    individualidades que passam a orientar as relações

    interpessoais, seja entre marido e mulher, seja entre

    pais e filhos. As roupas, os discursos, os

    comportamentos, os sentimentos, etc. não são mais

    sinais exclusivos de cada sexo, posição e idade, de

    modo que os marcadores visíveis da diferença passam

    Importante

    Outro tema bastante analisado nas ciências humanas diz respeito à noção de indivíduo. Vamos ver o que Foucault fala sobre isso? “o indivíduo é, sem dúvida, um átomo fictício de uma representação ‘ideológica’ da sociedade; mas ele é também uma realidade fabricada por esta específica tecnologia do poder chamada ‘disciplina’. É preciso parar de uma vez por todas com a descrição dos efeitos do poder em termos negativos: ele ‘exclui’, ele ‘reprime’, ele ‘censura’, ele ‘subtrai’, ele ‘mascara’, ele ‘dissimula’. De fato, poder produz; ele produz realidade; ele produz domínios de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que pode ser obtido dele pertencem a essa

    produção.”

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 31

    a ser única e exclusivamente as expressões do gosto

    pessoal (Figueira, 1987).

    Os membros da família passam a se perceber

    como iguais em suas idiossincrasias. A ênfase no

    indivíduo faz-se acompanhar do ideal de igualdade de

    relacionamento, apontando para uma nova moral no

    campo dos relacionamentos.

    A tradição e a rede familiar cedem lugar às

    individualidades, aos prazeres e às realizações

    pessoais. Desse modo, começa a prevalecer o modo de

    subjetivação calcado no exame de si mesmo, por meio

    do qual as relações entre homens e mulheres, maridos

    e esposas, pais e filhos passam a ser negociadas a

    todo e qualquer momento.

    Não é por coincidência que nos anos 70 se inicia

    um alto consumo da psicanálise e de práticas

    alternativas, pois num momento em que as definições

    tradicionais do gênero sexual e das gerações são postas

    em xeque, os saberes psi surgem como coordenadas

    subjetivas (Birman, 1995; Katz, 1979).

    Donde explode o sucesso das práticas

    terapêuticas, das colunas de aconselhamento

    psicológico em revistas femininas, do uso quotidiano do

    vocabulário psicanalítico, em suma, da solicitação

    crescente da tutela de psicólogos, educadores e

    psicanalistas sobre questões que dizem respeito aos

    casais e às famílias.

    Todavia o imenso consumo da psicanálise e da

    psicologia não implica pura e simplesmente a subversão

    de formas instituídas pela tradição, mas também a

    multiplicação de micro-poderes que são mais

    persuasivos do que impositivos (Foucault, 1997). Pode-

    se dizer que a tutela médica que orientava as famílias

    Dica do professor

    O princípio de negociação nos relacionamentos vai ser encontrado abaixo nas formulações de Julien sobre a arte da cortesia entre amantes e nas de Giddens sobre o relacionamento puro.

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 32

    higienizadas se amplia com a inclusão de outras

    disciplinas que permitem cada individualidade

    transformar, contra as formas tradicionais, as normas e

    disciplinas num desejo particular.

    É o que Almeida (1987) observa a propósito de

    um estudo comparativo entre a vivência de

    maternidade nos anos 50 e nos anos 80. Se até a

    década de 50 a gestante aceitava a interferência de

    uma ampla rede feminina de aconselhamento e

    autoridade, sendo sua mãe a referência principal de

    transmissão de saber sobre a maternidade, na década

    de 80 a situação é inteiramente outra. A família de

    origem passa a ser vista como um obstáculo e uma

    interferência negativa à vivência da gravidez e

    maternidade. A figura da mãe dos anos 50 perde seu

    lugar potencial de transmissão de saber e regras. Não

    há mais identidade entre mãe e filha sobre o significado

    da experiência de gravidez e maternidade.

    Portanto, a maternidade nos anos 80 é

    vivenciada como mais independente e livre em relação

    não apenas à família, assim como às normas médicas,

    na medida em que se baseava em escolhas individuais.

    Não obstante, tal experiência não deixa de estar

    atrelada a uma nova e imensa rede de mecanismos e

    estratégias disciplinares. Saem de cena os médicos

    tradicionais e a rede familiar para dar passagem a

    novos agentes tutelares (médicos “modernos”,

    especialistas em psicologia e trabalho de corpo). “A

    opção individual que a gestante de 80 faz pela

    maternidade”, escreve Almeida, “depende, no fundo, da

    conquista de “sentimentos modernos” sustentada por

    “agentes externos”, como médicos modernos e

    terapeutas alternativos, assim como a maternidade

    pouco problematizada de sua mãe dependeu, na

    década de 50, de normas e conselhos vindos dos

    Para pensar

    Analise aqui cuidadosamente a relação entre maternidade e história que

    apontamos anteriormente. As mães da década de 80 são diferentes das da década de 50. Quais seriam estas diferenças?

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 33

    médicos “tradicionais” e da família” (Almeida, 1987:

    67).

    É evidente que todo esse panorama de

    mudanças entre os anos 60 e 80, não restritas

    somente, vale dizer, ao território nacional, torna

    extremamente frágil o ideal de indissolubilidade do

    matrimônio. O abismo entre o tipo ideal de família da

    doutrina jurídica, fundada na assimetria sexual e

    geracional, e as práticas sociais ficou muito evidente.

    Vale acrescentar que na época em que a Lei do

    Divórcio foi promulgada, o Brasil estava em pleno

    regime militar, sob a presidência do General Ernesto

    Geisel, cuja origem protestante luterana admite o

    divórcio. Ademais, havia certa insatisfação entre os

    militares na medida em que os desquitados tinham

    dificuldades de promoção, de modo que apenas os

    casados chegavam ao generalato e até mesmo à

    Presidência da República. Desse modo, eles

    influenciaram - ao lado de uma gama imensa de

    desquitados com famílias recompostas – o Poder

    Executivo com objetivo de legitimar e regular o fim do

    casamento.

    O período compreendido entre a Lei do Divórcio

    de 1977 e a Constituição Federal de 1988 que, além de

    inúmeras mudanças, reconheceu como sendo entidade

    familiar a união estável entre homem e mulher (além

    daquela formada por qualquer dos genitores e seus

    descendentes), é um momento histórico bastante

    eloqüente em que a família passa a ser aceita em sua

    pluralidade no Brasil. Em outras palavras, as regras do

    casamento deixam de ser garantia de legitimidade das

    uniões conjugais e das famílias.

    Donde acostumamo-nos a encontrar com certa

    freqüência famílias recompostas cujos filhos de diversos

    Importante

    Outras leis importantes que, historicamente, no Brasil foram ou ainda são importantes no campo das uniões e das famílias: Código Civil de 1916 Estatuto da Mulher Casada (1962) Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) Código Civil de 2003 Houve também uma série de outras leis e jurisprudências que afetaram direta e indiretamente as famílias. Procure saber sobre cada uma das leis acima e as modificações jurídicas e política entre uma e outra.

    Dica do

    professor

    A Constituição é a Lei fundamental do Estado, cujo corpo de regras e

    princípios norteiam os poderes públicos e asseguram as liberdades e os direitos individuais. Depois da Constituição, é no Código Civil que se encontra a principal fonte legal sobre a família.

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 34

    leitos coabitam e são educados ao mesmo tempo por

    dois pais, por duas mães ou ainda por outros parentes

    e parceiros. Tais arranjos correspondem amiúde a

    alianças extensas e horizontais que não gravitam ao

    redor de uma figura central, tal como o era em relação

    à figura do pai pequeno-burguês.

    Mas o desenvolvimento das tecnologias médicas

    é que costuma acarretar maiores inquietações nas

    querelas em torno das famílias.

    QUEM PODE TER FILHOS? - 6/4/2004

    Jornal de Brasília

    A lei sobre tecnologias reprodutivas que acaba de

    ser promulgada na Itália reacende o debate sobre

    quem pode ter acesso às tecnologias reprodutivas,

    conjunto de técnicas médicas que auxiliam mulheres

    e homens a ter filhos. Grande parte das pessoas que

    procura a medicina reprodutiva apresenta alguma

    restrição de fertilidade que impede a reprodução

    natural.

    As técnicas não são atraentes apenas para as

    pessoas com alguma restrição clínica de fertilidade,

    mas também para todas as pessoas que desejam ter

    filhos e que, embora saudáveis, não querem

    submeter-se à relação sexual heterossexual. Esse é

    o caso, por exemplo, de mulheres e homens

    homossexuais. Garantir o acesso dessas pessoas às

    técnicas de reprodução é certamente uma das

    questões mais importantes do debate legislativo

    também no Brasil, onde tramitam quatro projetos de

    lei sobre o assunto.

    A expectativa original era que somente homens e

    mulheres heterossexuais, e de preferência em

    relação estável como propõe a lei italiana,

    buscassem as tecnologias reprodutivas. A idéia era

    que a medicina fosse capaz de substituir a natureza

    onde ela falhasse, mas sob a garantia de que os

    códigos morais relacionados à reprodução social

    fossem mantidos. Ou seja, esperava-se que

    somente homens e mulheres heterossexuais

    buscassem a medicina reprodutiva, uma expectativa

    que rapidamente se mostrou infundada.

    Estima-se que 20% das pessoas heterossexuais que

    buscam ter filhos com o auxílio das tecnologias

    reprodutivas não tenham um diagnóstico para a

    infecundidade. Sabe-se apenas que elas desejam ter

    filhos e não conseguem tê-los por vias naturais.

    Essas pessoas encontram na medicina reprodutiva a

    melhor saída para a realização do projeto de filiação. Não se exige a presença de uma doença para que mu

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 35

    lheres e homens heterossexuais tenham acesso às

    tecnologias reprodutivas, apenas o desejo de ter

    filhos e sua impossibilidade de tê-los por vias

    naturais.

    Esse é exatamente o raciocínio que leva homens e

    mulheres homossexuais à medicina reprodutiva. O

    desejo por filhos independe da existência ou não de

    uma situação de infertilidade, pois infecundidade

    não é o mesmo que infertilidade. Homens e

    mulheres infecundos são pessoas sem filhos que se

    convertem em usuários das tecnologias reprodutivas

    no momento em que buscam realizar um projeto de

    filiação biológica. É a situação de infecundidade

    associada ao desejo de filhos o que a medicina

    reprodutiva se propõe a resolver.

    Não é preciso, portanto, que exista uma doença

    para que o desejo por filhos se instaure em um

    relacionamento. Diante do desejo por filhos e da

    impossibilidade de concretizá-lo por vias naturais, a

    medicina reprodutiva converte-se em uma

    alternativa sedutora para todas as pessoas,

    independe de suas orientações sexuais. Mas é

    exatamente a dificuldade em reconhecer que o

    desejo por filhos não é exclusivo de casais

    heterossexuais em relacionamento estável o ponto

    mais controverso das regulamentações sobre o

    acesso às tecnologias reprodutivas na Itália e no

    Brasil.

    O uso dessas técnicas para garantir o projeto

    reprodutivo de casais heterossexuais somente

    passou a ser um problema moral quando se

    entendeu que essas mesmas técnicas eram também

    a condição de possibilidade para que homens e

    mulheres homossexuais tivessem filhos com o

    auxílio da medicina reprodutiva. De avanços

    tecnológicos do passado, doação de esperma e

    gestação de substituição passaram a ser vistas

    como técnicas imorais que ameaçam a estabilidade

    dos valores heterossexuais no campo da reprodução

    biológica e social. Por isso, foram banidas da lei

    italiana, e o Brasil segue um rumo semelhante.

    A questão sobre quem pode ter filhos não deve ser

    resolvida pelo apelo às moralidades que sustentam

    ser a homossexualidade um desvio e que

    consideram homens e mulheres homossexuais

    inelegíveis às técnicas. O desejo por filhos como um

    princípio legítimo para o acesso às técnicas

    reprodutivas por casais heterossexuais deve ser

    estendido a todas as pessoas, independentemente

    de suas orientações sexuais. No campo das

    tecnologias reprodutivas, o desejo por filhos deve

    ser entendido como um desdobramento do direito ao

    planejamento familiar, e, como um direito

    fundamental, a discriminação por orientação sexual

    não deve ser tolerada.

    Debora Diniz é doutora em Antropologia e diretora

    da Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero).

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 36

    As tecnologias médicas e a autonomia do

    sexo

    Não é exagero afirmar que os avanços

    tecnológicos de fertilização e reprodução vêm ao

    encontro da aspiração de autonomia do indivíduo no

    campo das relações interpessoais. As chamadas

    “produções independentes” são os exemplos mais

    eloqüentes da individuação no próprio campo da

    procriação (Bucher, 1999).

    No campo das “produções independentes”,

    encontram-se em sua maioria as famílias

    monoparentais cujas mulheres são fecundadas por

    meio de inseminação artificial com doador anônimo ou,

    então, por homens sem que elas desejem nada mais do

    que o sêmen masculino.

    Pode-se verificar nessas e noutras situações a

    inversão da dominação masculina que marcou a

    tradição histórico-familiar no Ocidente.

    O domínio de técnicas destinadas a impedir a

    fecundação proporciona às mulheres a reivindicação do

    direito ao prazer independente do dever de procriar.

    Em outras palavras, a contracepção permite fazer uso

    dos prazeres sem risco de gerar filhos, a ponto de

    permitir às mulheres recusarem o papel materno que o

    casamento as destinava.

    A emancipação da mulher em relação ao

    domínio do homem evolui no mesmo compasso em que

    se avança na medicalização da fertilidade e da

    procriação. Com efeito, torna-se possível não somente

    ter prazer sem gerar filhos, como ter filhos sem prazer.

    Para citar a tecnologia mais conhecida, a fecundação in

    vitro ocorre fora do corpo da mãe, gerando o feto que

    Para pensar

    A relação homem, mulher, maternidade, contracepção e casamento mudou muito nos últimos tempos. Você acha que isso acontece em todos os lugares? Essas mudanças são sempre relativas a determinados contextos culturais, mas atingem o mundo como um todo, principalmente em função dos instrumentos da globalização, principalmente a mídia. Mas reserve-se sempre o cuidado de encontrar diante de você pessoas que vivem a relação homem, mulher, casamento e maternidade de forma bastante tradicional, sem julgá-la!

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 37

    será depois reimplantado no útero que, diga-se de

    passagem, pode ser de uma “barriga de aluguel”.

    É inegável que as tecnologias médicas impõem

    questões complexas para o campo de reflexão sobre a

    vida, a morte, o homem, entre outros pontos cujo

    interesse não pertence somente a filósofos e

    legisladores. Para citar alguns casos mais alarmantes,

    há os de famílias que utilizam o sêmen de parentes

    falecidos com a intenção de fertilizar as respectivas

    viúvas. Ou, particularmente, o conhecido caso da

    menina, Elisabetta, cuja mãe biológica havia morrido

    num acidente de carro, mas cujos óvulos foram

    fecundados pelo viúvo e implantados no útero de sua

    cunhada.

    Em diversos países, surgem embates nos mais

    diversos níveis da sociedade em torno de práticas tais

    como o aborto consentido em vista de diagnóstico pré-

    A temática da tecnologia reprodutiva conceptiva

    desperta a atenção de disciplinas variadas. Essa

    preocupação ganha destaque ao se considerar a

    inter-relação desse conjunto de técnicas com a

    biotecnologia moderna e seu potencial de

    transformação da vida futura da humanidade.

    Estudos sobre reprodução humana mostram que

    transformações de impacto já ocorreram - os limites

    da concepção humana e as relações de parentesco

    foram redesenhados com o advento das técnicas de

    reprodução humana assistida. Ante esses avanços e

    embates, a saúde pública não pode se furtar aos

    desafios trazidos pela aplicação de novas tecnologias

    à vida e à saúde humanas.

    (...)

    Tratando-se de tecnologias geradoras de impactos

    variados, é importante compreender a rede de

    responsabilidades implicadas. Isto é, que a

    responsabilidade é das pessoas que desenvolvem

    novas técnicas, das que aplicam essas técnicas e

    das pessoas que buscam esses serviços. Mas,

    também, é responsabilidade de órgãos que

    formulam leis para regulamentar o campo, de

    comitês de ética e de bioética e de pesquisadoras e

    pesquisadores que produzem conhecimento sobre essa temática.

    Vera Sonia Mincoff Menegon

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 38

    natal, a manipulação genética, a seleção de fetos e, por

    fim, a clonagem reprodutiva, cujo ineditismo está na

    possibilidade de reprodução sem prazer e sem sêmen.

    Essas práticas estão no cerne da discussão sobre

    o racismo, sendo o que, numa sociedade de controle

    sobre a vida, permite o exercício do direito de matar

    (Foucault, 1999). As técnicas de manipulação e seleção

    da vida estão intimamente associadas à eliminação do

    perigo biológico, em que a morte de uma raça inferior,

    degenerada ou anormal cede lugar para outra mais

    sadia e pura. A distinção e hierarquização de raças no

    interior de uma mesma população ou espécie são

    condição fundamental para as decisões sobre quem

    deve viver e quem deve morrer.3

    Em suma, o quadro complexo de transformações

    políticas e de avanços tecnológicos permite-nos

    diagnosticar o desatrelamento entre três registros que,

    no modelo normativo e jurídico da família pequeno-

    burguesa, estavam entrelaçados. A saber, os registros

    do sexo, da reprodução e do casamento.

    Ora, o casamento não legitima mais a família,

    tampouco a união conjugal. Por sua vez, o casal pode

    fazer uso da sexualidade sem necessidade de procriar.

    E por fim a concepção da criança pode se realizar sem

    sexo e fora do pacto conjugal.

    Não há dúvidas sobre a independência atual

    entre esses três domínios, pondo-se em xeque, num

    outro nível, a inseparabilidade judaico-cristã entre

    paternidade social e paternidade biológica (Roudinesco,

    2003).

    Senão vejamos.

    3 Retornaremos ao ponto sobre o biopoder na apostila seguinte.

    Dica do

    professor

    Explicando O que significa o desatrelamento

    entre sexo, reprodução e casamento? Ora, o casamento não legitima mais a família, tampouco a união conjugal. Por sua vez, o casal pode fazer uso da sexualidade sem necessidade de procriar. E por fim a concepção da criança pode se realizar sem sexo e fora do pacto conjugal.

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 39

    Separação entre paternidade social e

    biológica e a transgressão das famílias

    É conhecido que a tradição judaico-cristã associa

    a paternidade adotiva do Direito romano, cujo pater é

    quem designa a si próprio como pai de uma criança e a

    conduz pela mão, à paternidade biológica.

    Expliquemo-nos. Em Roma Antiga, o pai exercia

    absolutamente o poder em suas famílias. Ele é o chefe

    da casa, é quem se apodera da mulher e a faz

    conformar-se à condição legal de mãe, assim como é

    também quem possui direito irrestrito sobre os filhos

    (Julien, 1997). Nesse contexto, como todo ato de

    soberania, a paternidade é auto-referencial. O patriarca

    autoriza-se ser pai de uma criança, reconhecendo-a

    como seu filho ou sua filha. O que define a paternidade

    não é a consangüinidade, mas o ato de um soberano

    que se apossa de uma criança e a declara

    publicamente. Em outras palavras, a paternidade é

    adotiva e voluntária (Julien, 2000).

    Com o advento da tradição judaico-cristã, o pai

    passa a ser somente aquele que o casamento designa.

    A criança tem por pai o marido da mãe. O direito de

    paternidade sobre a criança repousa não mais sobre o

    poder político ou religioso, mas sobre um laço prévio: a

    cerimônia de produção dos cônjuges:

    À imagem de Deus, o pai é visto como

    a encarnação terrestre de um poder

    espiritual que transcende a carne. Mas

    não deixa por isso de ser uma

    realidade corporal submetida às leis da

    natureza. Como conseqüência, a

    paternidade não decorre mais, como

    no direito romano, da vontade de um

    homem, mas da vontade de Deus (...).

    Só é declarado pai aquele que se

    submete à legitimidade sagrada do

    casamento, sem o qual nenhuma

    família se integra.

    (Roudinesco, 2003: 22)

    Dica de leitura

    A família contemporânea em debate. Maria Brant de Carvalho. Ed.

    Cortez.

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 40

    Com efeito, o cristianismo relativizou o direito do

    pai sobre as crianças. O cristão não é soberano, mas o

    servidor. Da lei, o pai não é legislador, mas o

    representante. A paternidade é presumida legalmente,

    pois o pai é marido da mãe. Seguindo esse raciocínio,

    pode-se dizer que, desde esse primeiro momento, há

    um declínio da autoridade masculina que irá se agravar

    ao longo da história no Ocidente (Julien, 1997).

    Na legitimidade sagrada do casamento, o pai

    toma posse do filho na medida em que transmite um

    duplo patrimônio: o nome e o sangue, fazendo-se a

    observação de que, na Idade Média, acredita-se que o

    sêmen masculino é o único que detém a virtude de

    transmissão de semelhanças para a prole. À mãe, é-lhe

    exigida fidelidade absoluta para não introduzir sêmen

    estranho ao sangue da família. Por sua vez, a

    infidelidade do homem não tem efeito na descendência,

    pois os filhos concebidos fora do casamento e da família

    não têm direitos de reconhecimento no campo da

    filiação.

    Donde o cerceamento e o temor em relação à

    emancipação das mulheres ao longo dos séculos. A

    nomeação do paterfamilias faz-se necessária para

    afastar a progenitura da animalidade, do adultério, dos

    instintos maternos. A palavra do pai delineia a lei

    abstrata do logos e da verdade, separando o filho do

    laço carnal que o une ao corpo da mãe (Roudinesco,

    2003). O masculino é situado ao lado da razão, ao

    passo que o feminino é posto ao lado da paixão. Fonte

    de desordem, o feminino deve ser mantido, na tradição

    judaico-cristã, sob o crivo das leis do casamento para

    não ameaçar o corpo social (Birman, 1999).

    Com o advento da modernidade, há um declínio

    acentuado da imagem social do pai, ao mesmo tempo

    em que se modificam as razões da escolha conjugal.

    Dica do professor

    Como é a figura paterna em sua família? Identifique no texto os aspectos da paternidade encontrados em sua experiência familiar.

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 41

    Doravante, um homem e mulher podem consentir no

    casamento independente do pai ou da mãe (Julien,

    2000). A união conjugal deve se apoiar a partir de

    então nos laços de afetividade, tornando secundárias as

    razões outrora fundamentais (ajuda mútua quotidiana,

    preservação dos bens, proteção da honra e da vida).

    Desaparece a antiga sociabilidade onde se davam as

    trocas afetivas. A família fecha-se no lar doméstico,

    passando a ser lugar privilegiado de afeição entre

    cônjuges e pais e filhos (Ariès, 1981).

    Simultaneamente, começa a surgir um novo

    sentimento de infância. A criança passa a ser

    reconhecida como aquela que possui particularidades

    distintas do adulto, devendo ser preservada do contato

    direto com eles, sobretudo, no que tange ao sexo. Os

    pais tornam-se vigilantes e passam a girar em torno

    dos cuidados em relação aos filhos, com a reserva e o

    pudor necessários para não macular a inocência infantil

    (Ariès, 1981). Conseqüentemente, assiste-se a uma

    lenta e uma progressiva horizontalização da família, em

    que a proliferação dos discursos a favor da proteção da

    infância realça a figura da mãe como capaz de suprir as

    necessidades infantis, a ela cabendo decisões que não

    cabem ao homem (Brito, 1999).

    Com a lenta decomposição das representações

    tradicionais de soberania, pode-se entrever não

    somente a emancipação das mulheres e dos filhos em

    relação ao jugo paterno, como também verificar a

    separação entre paternidade adotiva e biológica.

    Levada a seu termo, tal separação implica na

    possibilidade de que, hoje em dia, um homem não

    queira nada além de um ato carnal com uma mulher

    para gerar filhos e que, como vimos acima a propósito

    de certas famílias monoparentais, uma mulher não

    deseje de um homem mais que seu sêmen para

    Para refletir

    Você tem um “modelo” seu sobre as atribuições de pais e mães? Procure identificá-las para assim analisar suas próprias concepções. Este é um exercício importante na prática profissional com famílias.

    Para refletir

    Como você vê a reivindicação dos homossexuais por direitos de família?

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 42

    procriar. Como aponta Roudinesco, eis aí o ponto de

    transgressão das famílias na contemporaneidade

    (Roudinesco, 2003).

    A reivindicação dos homossexuais ao direito de

    casamento, adoção e procriação medicamente assistida

    é o exemplo mais expressivo dessa transgressão.

    Até então, a homossexualidade era repelida da

    instituição do casamento e da família. Não que os

    homossexuais não pudessem fundar uma família. Havia

    tal possibilidade desde que dissociassem as práticas

    sexuais ligadas à inclinação homossexual, vista como

    patologia pela American Psychiatric Association até

    1974, dos atos sexuais necessários à reprodução. Em

    outras palavras, o prazer homossexual não poderia

    interferir no campo da aliança conjugal e familiar que,

    por sua vez, estaria intimamente ligado à reprodução

    biológica (Roudinesco, 2003).

    O “escândalo” atual reside menos no fato de que

    um homossexual possa ter filhos com uma pessoa de

    outro sexo do que na recusa de se submeter às regras

    do sistema de aliança. Com o movimento iniciado por

    gays e lésbicas na costa californiana em 1965-70, a

    ordem familiar que até então era vista como cárcere do

    desejo e da liberdade sexual passa a ser desejada e

    não mais repudiada. Ao mesmo tempo em que cai por

    terra o princípio da diferença sexual sobre o qual

    repousava a célula familiar, esta passa a ser

    reivindicada como norma desejável e desejada

    (Roudinesco, 2003).

    A impossibilidade de os pais homossexuais

    dissimularem para seus filhos as condições biológicas

    em que esses foram gerados torna mais evidente a

    separação entre paternidade biológica e adotiva. Nessa

    nova ordem familiar, a parentalidade não está fundada

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 43

    necessariamente na reprodução entre homem e

    mulher. Mulheres e homens podem prescindir do coito

    sexual para fundar uma família.

    A parafernália tecnológica capaz de interferir na

    biologia do corpo não impede que a paternidade seja

    reivindicada e assumida sem a constância do

    casamento, tampouco sem a reprodução entre homem

    e mulher.

    Em última instância, pode-se até mesmo dizer

    que a biologia é menos determinante do que a adoção

    simbólica. Mais ainda, toda paternidade, biológica ou

    não, só o é se a criança é adotada por aqueles que se

    reconhecem como responsáveis por ela.

    Conjugalidade privada e parentalidade

    pública e outras análises da

    contemporaneidade

    Acrescentando-se à separação moderna entre

    paternidade adotiva e biológica, há também o que

    Julien (2000) chama de cisão entre conjugalidade

    privada e parentalidade pública. Tal cisão é deduzida

    das “figuras de disjunção entre uma sexualidade

    privada e uma família pública” (Julien, 2000: 17), com

    as quais já estamos familiarizados, a saber, a união

    extramatrimonial, a institucionalização do divórcio, os

    direitos das uniões homossexuais, a assistência médica

    à procriação e a adoção plena de crianças

    abandonadas.

    Segundo Julien, na medida em que amor e

    sexo não são dependentes das regras do casamento, o

    que acontece entre amantes é da ordem do privado.

    Sabe-se que a qualquer momento essa união pode se

    extinguir, pois “o que importa é a arte da cortesia, a

    renovação cotidiana do apelo ao desejo do outro por

    Dica de leitura

    Adoção para Homossexuais. Luiz Carlos Figueiredo. Ed. Juruá.

    Dica de leitura

    Uma leitura leve, e muito interessante sobre o tema. Atenção! Esta não é uma sugestão para fundamentação bibliográfica, mas para pensar sobre o assunto de forma inteligente e prazerosa. JABOR, Arnaldo. Amor é prosa. Sexo é poesia. Ed. Objetiva.

  • Aula 2 | Família e conflitos sociais 44

    uma fala ‘entre nós-dois’ (...)” (Julien, 2000: 17). O

    mesmo princípio vale para as uniões homossexuais:

    “quanto à orientação sexual dos contratantes, a justiça

    não tem nada de saber disso: ela é de ordem íntima”

    (Julien, 2000: 19).

    Por sua vez, o nascimento de um filho ou a

    adoção de uma criança introduz a dimensão pública. O

    casal é obrigado a reconhecê-lo legalmente para em

    seguida adquirir a autoridade parental.

    A disjunção entre sexo e aliança inscreve-se

    portanto na fronteira entre público e privado, pois se o

    amor e os prazeres são contratuais, dependendo

    exclusivamente dos parceiros, por sua vez a aliança

    parental está vinculada às leis do Estado em nome dos

    direitos do filho.

    Em suma, tanto a separação entre paternidade

    adotiva e biológica assinalada por Roudinesco quanto a

    cisão entre conjugalidade privada e parentalidade

    pública de Julien são ambas expressões da autonomia

    entre os registros do sexo, casamento e da reprodução.

    A autonomia entre esses domínios é examinada

    também por Giddens (1993) à luz do conceito de

    “sexualidade plástica”.

    Segundo Giddens, a sexualidade plástica inicia-

    se com a limitação da dimensão da família no século

    XVIII e se desenvolve com a difusão da contracepção

    moderna e das novas tecnologias reprodutivas. Ela não

    é senão uma propriedade potencial do eu cuja

    maleabilidade permite que seja assumida de diversas

    formas.

    A sexualidade plástica põe em ação o que

    Giddens chama de “relacionamento puro”.

    Quer saber mais?

    Anthony Giddens: Frequentemente referido como o guru do Primeiro-Ministro Britânico Tony Blair, Anthony Giddens teve