Bento Prado Jr. : A Biblioteca e Os Bares Na Decada de 50

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  • 7/26/2019 Bento Prado Jr. : A Biblioteca e Os Bares Na Decada de 50

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    Revista FevereiroPOLTICA TEORIA CULTURA

    A Biblioteca e os bares na dcada de 50

    Bento Prado Jr.1

    No h lugar-comum mais repisado do que o que fala sobre a rapidez docrescimento da cidade que no pode parar. Menos trivial, talvez, ser a aluso aos

    efeitos desse tempo acelerado no estilo da sociabilidade e da vida cultural. Efeitos que possvel identificar e descrever, sem recurso artilharia pesada das cincias sociais,

    bastando dar livre curso espontnea ruminao da matria imediata e bruta da vidaquotidiana, com apoio no contraponto da memria. Puro exerccio de rememorao, aque est habilitado qualquer um que j fez cinquenta anos. Trinta e poucos anos oque basta, em nosso caso, para um trabalho de natureza quase arqueolgica.

    No raro, hoje em dia, quando visito So Paulo, ir noite ou de madrugadaao bar, sempre aberto, do hotel Eldorado, na Avenida So Luis. De l, possvel

    vislumbrar, com a desejada falta de nitidez, a Praa Dom Jos Gaspar e o trechoimportante da avenida. Bem escolhida a mesa, talvez nosso olhar possa abranger, deum s golpe, a Biblioteca Municipal e os locais ocupados, no passado, por quatro

    bares: Paribar, Mirim, Barbazul e Arpge. Trata-se, claro, de uma excursosentimental e saudosista: sem desmentir Paul Nizan, preciso reconhecer o privilgioda adolescncia nas idades da vida. Ou, pelo menos, nas idades da vida, tal como

    foram definidas, segundo Philippe Aris, pelo modelo escolar e familiar que aburguesia imprimiu ao processo de socializao.

    Foi em 1954 que comecei a frequentar a Biblioteca Municipal. Estudantesecundrio, ia l buscar livros de filosofia, literatura e teoria poltica. O que, na poca,correspondia a Filosofia Grega, Sartre e Camus, Drummond e Rilke, Herman Hesse,T. Mann, Trotsky, etc. Mas, o que encontrei foi sobretudo uma populao que

    partilhava minhas leituras, ignorncias e manias, a que fui rapidamente incorporado.A sala de leitura no era o nico espao usitado; no saguo, em torno da esttua deMinerva, os adoradores da deusa (como esses frequentadores foram ferinamentedenominados por jovens professores da Faculdade da Rua Maria Antonia, ciosos datecnicidade de seu saber universitrio) teciam um discurso interminvel onde arte,literatura, filosofia e poltica andavam em osmose permanente.

    A imaginao ideolgica funcionava em regime de ebulio e todas asvanguardasdo pensamento, da arte, e da poltica eram alegremente mimetizadas.Tudo isso, claro, sem o ascetismo das Escolas e sem economia de grandiloquncia

    ou sem muito senso de medida. Uma indubitvel falta de realismo, que era, todavia,compensada de alguma maneira por muita vivacidade e uma ateno sempre alertapara a experincia cultural contempornea. Uma espcie de reao imediata aopresente: assim, por exemplo, mal era publicadoNoigandrese, com meu amigo CelsoLuis Paulini, batamos porta de Augusto de Campos, para uma longa conversa, noiteadentro, sobre poesia. Mas sobretudo era notvel, pensando retrospectivamente, umarelao, por assim dizer, global com a cultura, assegurada, talvez, por uma espcie deesquerdismo difuso, rebelde diante de qualquer forma de compartimentao,

    institucionalizao ou doutrinarismo. Esquerdismo que oscilava entre os polos doanarquismo e do trotskismo, s recusando a vertente intolervel do stalinismo. Algoque poderia ser expresso no seguinte lema: socialismo, sim, mas com Proust e Kafka.

    1Publicado naRevista da Biblioteca Mrio de Andrade, n. 50, 1992.

    ISSN 2236-2037

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    Nem faltou um comeo e organizao propriamente poltica, numa tentativade institucionalizao de uma Juventude Socialista (da qual Paul Singer era a figuramais proeminente). Mas a organizao no era o forte desse grupo de adolescentes.

    Digamos que a marca registrada era a do mais puro espontanesmo, desejadoteoricamente e vivido praticamente. O que, alis, torna mais surpreendente a

    persistncia do grupo (ou dos grupos) que, paradoxalmente, acabou porinstitucionalizar-se, h pouco tempo, na forma da Associao dos Amigos daBiblioteca Mrio de Andrade.

    Livre do peso das instituies escolares e dos partidos polticos, essapopulao particularmente flexvel ignorava a tenso que opes normalmente estilosintelectuais, como o poltico e o artstico. Os polticos(quando no eram

    igualmente artistas, como o Baro de Fiori outros polticos da poca eramLencio Martins Rodrigues, Maurcio Tragtemberg e Carlos Henrique Escobar) eramalis menos numerosos do que os artistas, em cujas fileiras predominava a gente do

    teatro. o que se pode ver, lembrando os nomes (por ordem de entrada em cena) deManoel Carlos, Cyro del Nero, Flvio Rangel, Antunes Filho, Fernando Torres,Fernanda Montenegro e Augusto Boal, entre outros como dramaturgo que ,Roberto Schwarz pode entrar nesta lista.

    O saguo da Biblioteca no era, no entanto, uma ilha. Principalmente noite,seus frequentadores se espraiavam pelas imediaes. A comear pelos bancos do

    jardim, sobretudo ao lado do busto de Mrio de Andrade, que alguns chegaram atentar furtar. Houve mesmo quem tivesse a cabea ferida nessa tentativa meiosurrealista de homenagear o poeta, cujo pesado busto parecia esquivar o preito que lheera assim rendido. A praa revelava-se excelente local para o desdobramento dastertlias ltero-poltico-metafsicas; e tanto mais agradvel , quanto ramos seusnicos usurios naquelas noites tranquilas. Local de escolha, de que nosconsidervamos vagamente proprietrios e ao qual nos sentamos relegados acontragosto, mesmo quando a falta de dinheiro fechava qualquer outra possibilidade.

    Bastava, no entanto, que algum dispusesse de mais recursos, para que oseminrio permanente migrasse para o outro lado da rua, em direo aos espao

    privilegiado dos bares. E os bares no faltavam, na prpria praa e na adjacenteAvenida So Luis, com o seu estilo sedutor dos Cafs Parisienses. As mesinhas decalada do Paribar (onde amide pontificava Srgio Milliet), na prpria Praa DomJos Gaspar, dispunham-se como em continuidade com os bancos do jardim. Passarde um lado para outro no implicava em salto ou descontinuidade. No mximo,

    talvez, uma sutil promoo, algo como um ganho de dignidade, que compensava aperda de exclusividade ou hegemonia.Estvamos longe de ser, claro, hegemnicos nesses bares, onde predominava

    a jeunesse dorepaulistana. Uma gente que se distinguia da nossa j pelas roupas epelo consumo de bebidas importadasnossos bolsos chegavam cerveja com algumadificuldade. Seria possvel pensar, hoje, um grupo de alunos da Filosofia da USP,entusiasta da IV Internacional, frequentando pacificamente o Pandoro? Hoje, malcomparando, esse estilo de boemia intelectual me aparece como uma espcie decomunismo primitivo, anterior ao penoso trabalho de diviso social do lazer. Sem

    que houvesse muita comunicao, certamente no havia muita hostilidade entre osque vinham da Biblioteca e os Inocentes do Mirim, como apelidamos os outros,

    pensando em um poema de Drummond.

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    Nossos bares eram sincrticos e ignoravam qualquer tipo de especializao,como a que se esboaria em meados da dcada de 60 (para minha surpresa, quandovoltei ao Brasil, depois de dois anos no exterior), com bares do estilo do Ferros ou do

    Redondo, que possuam j uma natureza francamente corporativa.Faamos o contraponto com o Arpge. Ao contrrio dos demais j abolidos,

    no era um bar de estilo parisiense. Era apenas uma lanchonete, mas levava aoextremo a vocao comum de osmose social a que nos referimos. Com a turma daBiblioteca, convergiam no Arpge artistas plsticos, jornalistas, universitrios e todasas formas de dissidncia poltica, cultural ou simplesmente sexual.

    Quanto aos universitrios, no era raro ver reunidas, em torno de um chope, adireita e a esquerda da Faculdade de Filosofia, ponderando amigavelmente suasdiferenas, numa cena inimaginvel depois de 64 e, principalmente, da GrandeRepresso de 69.

    Era como se a sociedade global pudesse se espelhar inteira no espao estreito

    do bar, numa forma antes comunitria que societria.Numa palavra, todo mundo se conhecia e So Paulo aparecia ainda como uma

    cidade docemente provinciana. Ningum imaginava, creio, nesses anos 50, como ocrescimento demogrfico em surdina iria repercutir, logo a seguir, nesse pequenomundo, transformando to rpida e radicalmente a Universidade e o estilo da bomiaintelectual. Em menos de uma dcada, nossa Escola tornou-se uma Universidade demassa e nossos bares foram varridos do centro da cidade. Em meados da dcada de 60

    j havamos perdido nossa ptria paulistana.A cidade, portanto, desprovincianizou-se, para bem de sua vida cultural, cada

    vez mais profissional. Mas impossvel, para quem foi adolescente nos anos 50,no ter saudades daquela cidade que descobria ento, ao mesmo tempo que sedescobria a si mesmo.

    Na verdade, tenho a impresso de que, mesmo depois da maturidade,continuamos a trazer conosco, como uma espcie de prtese mental inalienvel, a

    paisagem urbana de nossa adolescncia. Principalmente quando, como a nossa, essamatriz a de uma cidade perfeitamente habitvel e confortvel, onde ainda se

    passeava, de dia como de noite. Cidade que nos vestia como roupa feita sob medida,sobretudo enquanto nosso olhar no alcanava muito alm dos limites da Praa DomJos Gaspar e da Avenida So Lus, qualquer que fosse o iderio poltico.