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8/3/2019 Berlim 1900. O Independente 8 Setembro, 1989
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V E R...........................................................EXPOSIÇÕES
BERLIM, 89 ANOSLisboa pode ver o que sefez em Berlim de 1900 até hoje. Um projecto ambicioso.
O Independente, 8 Setembro, 1989. página III-38
8/3/2019 Berlim 1900. O Independente 8 Setembro, 1989
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ARTE EM BERLlN DE 1900ATÉ HOJE; C.A.M., Fundaçãocalou8te Gulbenkian; deterça-feIra a domingo, das1OhOO à8 17hOO.
do Dada de Berlim deve-se,
talvez, à natureza efémera das
obras produzidas na altura
note-se, no entanto com prazer,
a presença de várias das raras
colagens e fotomontagens de
Hanna Hõch. (Em contrapar-Aécada de 80 presenciou tida, para quem teve a oportu
um retomo à pintura, nidade de ver, esta Primavera,
liderado por artistas ale- a reconstrução da Erste /nter
mães e italianos. Foram, TUltional Dada-Messe na expo
de facto, as obras de Anselm sição de arte de Berlim no
Kiefer e de Georg Baselitz, Centro Reyna Sofia em Ma
apresentadas na Bienal de Ve- drid, a presente escolha sabe
neza de 1980, que deram o distintamente a pouco.)
primeiro sinal desta alteração. Seja como for, o espectador
: Nove anos depois, a represen- pergunta-se necessariamen e
: tação pictória enfrenta um novo que é que terá acontecido
: período de crise. Através de durante os anos 30 e 40 - já que
: várias exposições retrospecti- os poucos espécimes apresenta: vas de grande impacte, os pin- dos são até pouco típicos,
: tores alemães que marcaram como por exemplo Klage um
: tão profundamente os anos 80 das Haupt des Orpheus (1949): vão adquirindo o estatuto de de Werner Gilles. A resposta
: clássicos contemporâneos. não é simples nem linear e, é
: Kiefer foi contemplado com claro, passa pela Segunda
: uma grande retrospectiva no Guerra Mundial - o grande e: MOMA de Nova Iorque, no devastador acontecimento dos
: Outono do ano passado, e anos 40 - , assim como peia
: ainda com mais duas importan- operação que o Terceiro Reich
: tes exposições em Londres este dirigiu, nos finais dos anos 30,
: Verã , ao mesmo tempo que a contra a «Arte Degenerada». A
: Tate de Liverpool organiza versão mais divulgada dos
: uma exposição de arte contem- acontecimentos relata como,: porânea de Berlim. Uma expo- depois de um leilão em Lu
: sição itinerante viaja este ano cerna das obras que tinham
: do Museu Guggenheim em sido confiscadas e armazenadas (
: Nova Iorque para Dusseldorf e em Berlim, vários altos funcio-
: Frankfurt, marcando assim o nários do Partido Nacional So- f: que continua a ser o eixo geo- cialista se apropriaram de umas
: gráfico predominante da arte tantas. O restante - 1004 pin-: contemporânea (ou pelo menos turas a óleo e 3825 aguarelas _ I: do mercado de arte contem- foram simbolicamente queima- I: porânea). Intitulada Refigured das a 20 de Março de 1939 no
: Paintings: the German /mage pátio da Brigada de Bombeiros
: /960-/988, a mostra pretende da Kõpernickerstrasse em Ber-
: esclarecer a forma como a pin- limo Recentemente, vários es-
: tura alemã recente se situa tudiosos - alemães, como se: «entre a era do petroquímica e pode imaginar - têm tentado '
: a da informática». demonstrar que este auto de fé
Em Lisboa, a presente expo- não teve lugar. Aceitando, no
: sição sobre a arte de Berlim é, entanto, que ele ocorreu, um
: sem dúvida, o projecto mais tal acto de «proscrição por
: ambicioso e interessante abor- demonstração» representa o
: dado pelo CAM até hoje. A «ponto máximo do pathos e da: mostra reúne trabalhos de artis- implacabilidade como forma
: tas importantes, muitos dos de purgação moral» (vide
: quais nunca expostos em Portu- Georg Bussman, «Degenerat
: gal, dando ao público lisboeta a Ar! - a look at a useful myth»
: oportunidade de participar no no catálogo German Art in the
: discurso crítico que assinala o 20th Century, Royal Academy,
: terminar da nossa década. Londres, 1985). A pintura que: Se os limites temporais são ressurge na Alemanha nos anos
: de 1900 aos nossos dias, uma 80 continua a dar testemunho
: questão se levanta, inadiavel- desta culpa colectiva, desta
: mente: que terá acontecido en- chaga que continua aberta na
: tre o início dos anos 20 e os cultura alemã contemporânea.
: finais do anos 70? Poderíamos A questão que se levanta é até
: talvez explicar este lapso como que ponto a arte pode ou deve: resultando de problemas de or- expiar a culpa das atrocidades
: ganização ou de dificuldades da guerra.
: na obtenção de obras, mas O trabalho mais recente de
: outros factores devem ser tidos Anselm Kiefer - que é, sem
: em conta. A escassa presença sombra de dúvida, a figura......................................................................III-1R O INDEPENDENTE. 8 DE SETEMBRO DE 1989
8/3/2019 Berlim 1900. O Independente 8 Setembro, 1989
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• I. I
Reflexlon I Realdlon V. Acrílico I tela 200X200, Salomé
demiúrgica da nova pintura alemã - trata a noção do auto de fé
em proporções wagnerianas,
vendo a Alemanha como a
Nova Alexandria. Kiefer é um
demagogo, um retórico que
marcha pela linha incerta que
separa o heróico do autoritário
- caminhos perigosos para um
alemão do nosso século. Através da sua obra, é-nos dada
uma visão de como o Terceiro
Reich captou temas há muito
presentes na grande tradição
alemã; uma descendência que,
vinda dos Românticos, passou
por Nietszche e Wagner, antes
de ser apropriada por Hitler. A
Alemanha é-nos apresentadanos seus trabalhos como uma
terra queimada, interpene
trando o tema romântico da
paisagem com o tema heróico e
religioso do martírio: a Paixão
como expiação de uma culpa.
Temas que, afinal, surgem na
exposição de Lisboa.
É interessante verificar que oespaço temporal representado
pela mostra do CAM aponta
não só para uma continuidade
entre os dois tempos predomi
nantes (1900-1924 e os anos
80) como para a persistente
vitalidade de tradição alemã,
da qual Kiefer é o mais elo
quente porta-voz dos nossos
dias. Enquanto que a exposição
Refigured Paintings de NovaIorque, Frankfurt e Dusseldorf
tenta rectificar esta imagem da
arte alemã como predominante
mente figurativa, a exposição
de Lisboa - à parte poucas
excepções, entre as quais se
destaca 10hannes Geccelli
reforça a visão desta tradição
como primariamente figurativa. Apesar da noção de Ber
lim como cidade dividida ser
totalmente ignorada, abundam
referências aos temas ligados à
ideia de Deutschland. As pin
turas a óleo de Johannes Grutze
retratando jovens mulheres defeições rudes em situações ru-
rais, aproximam-se excessivamente do mito germânico para
poderem ser vistas como uma
crítica. Lupertz e Fetting nas
suas pinturas, assim como Die
ter Appelt na sua instalação,
tratam do tema da floresta, tão
central à imaginação teutónica
(cf. Carl Otto Friedrich, Max
Ernst); a Wald como repositório do irracional e misterioso,
do sonho e do inconsciente.
Han Trier opta por uma re
ferência mais generalizada à
paisagem e à natureza nas suas
bem sucedidas e sedutivas pin
turas expostas na sala de entra
da do CAM.
Tal como Kiefer, vários artistas berlinenses abordam o
motivo da Paixão. A sugestãoda cara por detrás de grades no
tríptico Passion de Alexander
Camaro, situa o mártire do
século XX na terra queimada
de Auschwitz ou Bergen Bel
seno O díptico de Castelli inti
tulado Passion: Christuspor-
triit n. · 2 (1987), se bem que
mais estridente, insiste nomesmo tema, ao trocar a coroa
de espinhos por uma quanti
dade de arame farpado. Da
mesma geração de pintores, os
chamados <dunge Wilden»,
Salomé apresenta obras que
perderam algo da vitalidade
que lhe conhecíamos devido à
aplicação menos interessanteda tinta (lembremo-nos das pe
ças expostas em 1984 na
SNBA, por exemplo). No en
tanto, a sua viragem para o
tema do martírio contemporâ
neo - a SIDA - é perturbante.
Estes espaços claustrofóbicos
tomam o consultório médico
num espaço sinistro de investi
gação I interrogação. Helmut
Middendorf, um outro dos Wil-
den, expõe sete eloquentes e
sombrias telas pintadas recen
temente, utilizando só a cor
natural da tela, o preto e o
branco. As suas figuras totémi
cas vão ganhando corpo sobre
o fundo negro para logo nele
desaparecerem. Profundamente
8/3/2019 Berlim 1900. O Independente 8 Setembro, 1989
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penetrado por referências ao
simbolismo cristão e à mitologia pré-cristã, estas obras fa
zem lembrar a forma como o
grupo do Biaue Reiler lidava
com o primitivismo e a noçãodo «outro».
Comparado com Kiefer, o
seu parceiro da Bienal de Vienade 1980, Baselitz emerge nos
dois trabalhos aqui e x p o s t o ~como cheio de muita retórica e
pouco conteúdo. O que, nosinícios da década, nos parecia
ser uma quebra audaciosa
inovadora com as limitações o
arte conceptual, apresenta
agora, nos finais da décaa
como pouco mais do que u'
gesto de panache relativamen,grosseiro. Da mesma forma.
gigantesca montagem Mylho:
Beriin (1987), de Wolf Vostell,
serve mais para propagar d
que para desconstruir um mito
Desenvolvendo-se em tomo d",
dialéctica entre imagens de pa-lhas e violência, por um lado, e .
a neutralização de tais i m a g e n ~pelos órgãos de informação.
por outro, esta é uma obriprogramática, fria, sem qual
quer tenção: muito Slurm e
pouco Drang.
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Não será de surpreender queas obras mais empolgantesdesta exposição não tenham
nada a ver com esta panachegrosseira, nem com a tirania da
escala e da pincelada. Kleine
Sterbszene (1906), uma pintura
intimista dos primeiros temposde Max Beckam raramente exposta, é uma representação comovente do luto. As fotomontagens de Hanna Hôch e asséries litográficas de Backmane Georg Grosz são cada uma à
sua maneira, testemunhos dapobreza espiritual do «homemmoderno». Dos três, a série deGrosz, com a sua visão aguda
mente satírica (em obras como«Ich Dien» ou «o Mundo tornado seguro para a democracia»), é a que ataca mais directamente o militarismo alemão;Beckman endereça temas semelhantes mas de uma forma
mais universal e mitológica;enquanto, em Hôch, a utilização do material etnográfico edas questões do primitivismo e
da raça é particularmente sinistra, considerando a altura emque as obras foram executadas(oa meados dos anos 20). To
dos estes trabalhos, tão modestos na escala e no materialutilizado. são bem mais pertur
bantes e fascinantes que asgrandiosas obras contemporâneas desta exposição. Elas chamam bem a atenção para o
facto de que, no final de contas, os artistas de Berlim dosnossos dias - ou, pelo menos.os que aqui nos são apresenta
dos - são mais propensos aperpetuar os velhos mitos teutónicos do que a desconstruÍ-los. Se bem que. nesta passagem para os anos 90. a sátirapossa estar um pouco fora demoda, há algo de desconcer
tante e assustador no facto daAngst se ter tomado chique.
Ruth Rosengarten..................................