21
in Revista de Comunicação e Linguagens n.º 40, «Escrita, Memória, Arquivo», trad. Luís Lima, org. Maria Augusta Babo e José Augusto Mourão, ed. Relógio d’Água, Lisboa, Outubro de 2009, p. 11. ANAMNESE E HIPOMNESE Platão, primeiro pensador do proletariado BERNARD STIEGLER 1. A exteriorização da memória como perda de saber Todos nós passámos pela experiência de perder um objecto portador de recordação – pedaço de papel, livro anotado, agenda, relíquia, fetiche, etc. Descobrimos então que uma parte de nós próprios (como que a nossa memória) está fora de nós. Esta memória material, que Hegel considerava objectiva, é parcial. Mas constitui a parte mais preciosa da memória humana: aí se forma o conjunto das obras do espírito, sob os mais variados aspectos. Escrever um manuscrito é organizar o pensamento confiando-o ao exterior sob a forma de marcas, isto é, de símbolos, somente por onde ele se reflecte, se constitui realmente, tornando-se repetível (Jacques Derrida dizia iterável) e transmissível: é aí que o pensamento se torna saber. Esculpir, pintar, desenhar é ir ao encontro da tangibilidade do visível, é ver com as mãos ao mesmo tempo que se dá a ver, isto é, a rever: é formar o olhar daqueles que vêem e, nessa medida, esculpir, pintar e desenhar esse olhar trans-formá-lo. Tal é também o sentido do que Joseph Beuys chama escultura social. A memória humana é originariamente exteriorizada e isso significa que é, desde logo, técnica. Formou-se antes de mais como utensílio lítico, há já dois milhões de anos. Suporte espontâneo de memória, o utensílio lítico não é feito, no entanto, para guardar a

Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

in Revista de Comunicação e Linguagens n.º 40, «Escrita, Memória, Arquivo», trad. Luís Lima, org.

Maria Augusta Babo e José Augusto Mourão, ed. Relógio d’Água, Lisboa, Outubro de 2009, p. 11.

ANAMNESE E HIPOMNESE Platão, primeiro pensador do proletariado

BERNARD STIEGLER

1. A exteriorização da memória como perda de saber

Todos nós passámos pela experiência de perder um objecto portador de recordação –

pedaço de papel, livro anotado, agenda, relíquia, fetiche, etc. Descobrimos então que

uma parte de nós próprios (como que a nossa memória) está fora de nós. Esta memória

material, que Hegel considerava objectiva, é parcial. Mas constitui a parte mais preciosa

da memória humana: aí se forma o conjunto das obras do espírito, sob os mais variados

aspectos.

Escrever um manuscrito é organizar o pensamento confiando-o ao exterior sob a forma

de marcas, isto é, de símbolos, somente por onde ele se reflecte, se constitui realmente,

tornando-se repetível (Jacques Derrida dizia iterável) e transmissível: é aí que o

pensamento se torna saber. Esculpir, pintar, desenhar é ir ao encontro da tangibilidade

do visível, é ver com as mãos ao mesmo tempo que se dá a ver, isto é, a rever: é formar

o olhar daqueles que vêem e, nessa medida, esculpir, pintar e desenhar esse olhar –

trans-formá-lo. Tal é também o sentido do que Joseph Beuys chama escultura social.

A memória humana é originariamente exteriorizada e isso significa que é, desde logo,

técnica. Formou-se antes de mais como utensílio lítico, há já dois milhões de anos.

Suporte espontâneo de memória, o utensílio lítico não é feito, no entanto, para guardar a

Page 2: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

memória: as chamadas mnemotécnicas seguramente não aparecem antes do paleolítico

superior. São os mitogramas da sociedade mágica, cujo churinga australiano é um

testemunho recente, as tatuagens no corpo feiticeiro, o cordel com nó dos Índios

americanos. As escritas na origem dos primeiros textos manuscritos, que só aparecem

depois do neolítico, dão origem ao alfabeto – que organiza, ainda hoje, a agenda do

quadro superior, mas este objecto calendário é doravante um aparelho: o computador de

bolso; e passa-se assim das mnemotécnicas às mnemotecnologias.

Originariamente objectivada e exteriorizada, a memória, que não cessa de se alargar

tecnicamente e de estender o saber e o poder dos homens, ao mesmo tempo, escapa-lhes

e ultrapassa-os, pondo em questão as suas organizações quer psíquicas quer sociais. Isto

torna-se particularmente sensível na passagem das mnemotécnicas às

mnemotecnologias – mas foi também o caso já na Antiguidade grega e, depois, com a

imprensa. Hoje, a memória tornou-se o elemento maior do desenvolvimento industrial e

tecnológico e os objectos do quotidiano são cada vez mais suportes de memória

objectiva, quer isto dizer também, de saberes. Ora, esses saberes tecno-lógicos,

objectivados sob a forma de aparelhos, engendram também, e sobretudo, uma perda de

saber, no próprio momento em que se fala de «sociedades de saber», de «indústrias do

conhecimento» e de capitalismo «cognitivo» ou «cultural».

Estamos permanentemente em relação com aparelhos mnemotecnológicos de toda a

espécie, desde a televisão ao telefone, passando pelo computador e pela orientação por

GPS. Ora, estas tecnologias cognitivas, às quais confiamos uma parte sempre mais

importante da nossa memória, fazem-nos também perder cada vez mais saber. Perder

um telemóvel é perder o rasto dos números dos seus correspondentes e aperceber-se que

já não estão na nossa memória mas no próprio aparelho. E é preciso perguntarmo-nos

então se o desenvolvimento industrial e maciço das mnemotecnologias não constituirá

uma perda estrutural de memória ou, mais precisamente, um deslocamento dessa

memória: deslocamento pelo qual ela pode tornar-se um objecto de controlo dos

saberes e constituir a base essencialmente mnemotecnológica das sociedades de

controlo que Gilles Deleuze começou a teorizar no fim da sua vida.

Page 3: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

Esta hipótese baseia-se numa velha questão da filosofia exposta por Platão no que ele

chama hypomnesis e que Michel Foucault reactivou, também ele no fim da sua vida,

como a questão dos hypomnemata.

Na aparelhagem mnemotécnica contemporânea, exteriorizamos cada vez mais funções

cognitivas e, correlativamente, perdemos cada vez mais os saberes que se encontram

assim delegados nos aparelhos e serviços que os agenciam, controlam, formalizam e

modelam mas que também, talvez, os destroem – já que esses saberes que nos escapam

parecem induzir uma «obsolescência do homem» que se encontra cada vez mais

desprovido e como que esvaziado por dentro. Assim, quanto mais os automóveis se

aperfeiçoam – o sistema GPS que hoje assiste o condutor, substitui-lo-á amanhã

completamente: teleguiará o veículo através de um sistema de condução automática –,

menos sabemos conduzir: perdemos os esquemas sensório-motores que são

formalizados pelo sistema à medida que ele se automatiza. Quanto mais delegamos a

assunção das séries de pequenas tarefas que constituem a trama das nossas existências

aos aparelhos e serviços da indústria moderna, mais nos tornamos vãos; mais perdemos

não só o nosso saber-fazer como também o nosso saber-viver – e, com eles, os sabores

da existência; aí, já não prestamos senão para consumir cegamente, sem esses sabores

que só os saberes conferem, ficamos incapazes. Tornamo-nos impotentes senão mesmo

obsoletos – se é verdade que é o saber que nos dá a capacidade de sermos humanos.

As economias de serviços, que repousam nestas tecnologias através quais os

comportamentos são formalizados e geridos, são características de uma época hiper-

industrial que reactualiza, singularmente, a análise platónica da hipomnese. Já que se é

verdade que a industrialização em geral é a generalização de uma reprodutibilidade

mnemotecnológica dos comportamentos motores dos produtores, a hiper-

industrialização é a generalização de uma reprodutibilidade mnemotecnológica dos

comportamentos motores dos consumidores. Tal como o produtor de quem o gesto é

reproduzido e cujo saber-fazer passa para a máquina, desapropriando-o do seu valor-

saber e não lhe deixando senão a sua força de trabalho quase animal – o que faz dele

aquilo a que chamamos um proletário –, o consumidor é destituído do seu saber-viver e

encontra-se, no mesmo lance, desindividuado: ele passa a ser um mero poder de

compra, isto é, de consumo cego – e que destrói o mundo cegamente.

Page 4: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

Jacques Derrida, em La Pharmacie de Platon, edificou em grande parte a sua empresa

de desconstrução da metafísica na leitura de Fedro mostrando como este diálogo opõe à

hypomnesis sofística uma anamnesis filosófica, lá onde é impossível (segundo o que

descreve em De la Grammatologie como uma lógica desse suplemento que é a marca)

opor o interior e o exterior: é impossível opor a memória viva a essa memória morta

que é o hypomnematon e que constitui a memória viva como sábia. Aí onde a metafísica

instala oposições estáticas, é preciso re-articular composições dinâmicas: é necessário

pensar processualmente – e Derrida chama a esse processo uma diferância.

Apesar disso, o que Sócrates descreve no Fedro – que a exteriorização da memória é

uma perda de memória e de saber – é aquilo que hoje em dia experimentamos

quotidianamente em todos os aspectos das nossas existências e, com uma frequência

cada vez maior, no sentimento da nossa incapacidade, senão da nossa impotência – no

próprio momento em que a extraordinária potência mnésica das redes digitais nos torna

também sensíveis à imensidão da memória humana que parece ter-se tornado

reactivável e infinitamente acessível.

Esse aparente paradoxo significa que a questão da hipomnese é uma questão política e

objecto de um combate: um combate por uma política da memória e, mais precisamente,

pela constituição de meios hipomnésicos duráveis. Uma vez chegada ao estado hiper-

industrial, a exteriorização da memória e dos saberes é, ao mesmo tempo, o que lhes

expande a potência sem limites e o que permite o seu controlo – controlo pelas

indústrias cognitivas e culturais dessas sociedades controladoras que formalizam

actualmente a actividade neuroquímica e as sequências de nucleótidos e que inscrevem

por esta via os substratos neurobiológicos da memória e dos saberes na história daquilo

que deve ser analisado como um processo de gramatização, cujas biotecnologias são o

estádio mais recente e cujas nanotecnologias serão a etapa seguinte, instalando

plenamente a questão de uma biopolítica, de uma psicopolítica, de uma sociopolítica e

de uma tecnopolítica da memória.

2. A gramatização como «história do suplemento»

Page 5: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

Não há uma interioridade que preceda a exteriorização, antes pelo contrário: a

exteriorização constitui o interior enquanto tal, isto é, distingue-o e configura-o na

própria esteira do que Leroi-Gourhan descreve como um processo de exteriorização

onde essa distinção configuradora, que incessantemente se desloca, coloca a cada vez

novas relações entre os indivíduos psíquicos e os indivíduos colectivos – novos

processos de formação dos indivíduos psíquicos e sociais: novos processos de

individuação psíquica e colectiva1.

Quando aparecem as mnemotecnologias, o processo de exteriorização que é o devir

técnico concretiza-se como a história da gramatização. O processo de gramatização é a

história técnica da memória, onde a memória hipomnésica relança a cada vez a

constituição de uma tensão da memória anamnésica. Esta tensão anamnésica

exterioriza-se ela mesma sob a forma de obras do espírito, onde se configuram as

épocas da individuação psicossocial: a gramatização é o processo através do qual os

fluxos e as continuidades que enredam as existências são discretizados : a escrita,

enquanto discretização do fluxo da palavra, é um estádio da gramatização. Ora, com a

revolução industrial, o processo de gramatização ultrapassa subitamente a esfera da

linguagem, isto é, também, do logos, para investir a dos corpos. E em primeiro lugar,

discretiza os gestos dos produtores com vista à sua reprodução automatizada –

enquanto no mesmo momento surgem as reprodutibilidades maquínicas e aparelhadas

do visível e do audível que tanto terão chocado Benjamin.

Esta gramatização do gesto que constitui a base do que Marx descreveria como uma

proletarização, isto é, como uma perda do saber-fazer, prosseguirá com os aparelhos

electrónicos e digitais como gramatização de todas as formas de saberes sob o aspecto

de mnemotecnologias cognitivas – cujos saberes linguísticos tornadas tecnológicos e

industriais do tratamento automático das línguas, mas também os saber-viver (ou seja,

os comportamentos em geral, do user profiling à gramatização dos afectos), são aquilo

que conduz ao capitalismo cognitivo das economias hiper-industriais de serviços.

A gramatização é a história da exteriorização da memória sob todas as suas formas:

memória nervosa e cerebral, memória corporal e muscular, memória biogenética. Assim

exteriorizada, a memória é aquilo que pode ser objecto de controlos sociopolíticos e 1 Cf Simondon, L’individuation psychique et collective, Flammarion, …

Page 6: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

biopolíticos através dos investimentos económicos de organizações sociais que

reagenciam assim as organizações psíquicas por intermédio dos órgãos

mnemotécnicos, entre os quais é, finalmente, necessário contabilizar as máquinas-

ferramentas (Adam Smith analisa, desde 1776, os efeitos da máquina sobre o espírito do

trabalhador) e todos os autómatos – incluindo os aparelhos electrodomésticos.

É por isso que o pensamento da gramatização faz apelo a uma organologia geral, isto é,

uma teoria da articulação dos órgãos corporais (cérebro, mão, olhos, tacto, língua,

órgãos genitais, vísceras, sistema neurovegetativo, etc.), dos órgãos artificias (suportes

técnicos da gramatização) e dos órgãos sociais (grupos humanos familiares, clãs, grupos

étnicos, instituições e sociedades políticas, empresas e organizações económicas,

organizações internacionais e sistemas sociais em geral, mais ou menos

desterritorializados – jurídicos, linguísticos, religiosos, políticos, fiscais, económicos,

etc.).

Se reabrirmos a questão de Fedro na época hiper-industrial do objecto hipomnésico

mnemotecnológico, e do ponto de vista de uma tal organologia geral (fundindo uma

organologia política, uma organologia económica e uma organologia estética),

descobriremos que a questão da hipomnese constitui a primeira versão de um

pensamento da proletarização, a ser verdade que o proletariado é o actor económico

sem saber porque sem memória: a sua memória passou para a máquina reprodutora dos

gestos que esse proletário já não precisa de saber fazer, máquina que ele deve

simplesmente servir, tendo-se assim tornado novamente um servo.

Examinar a questão da memória técnica hoje é, pois, reabrir a questão da hipomnese

como questão do proletariado e como processo de gramatização lá onde é o consumidor

quem é doravante lesado na sua memória e nos seus saberes: é estudar o estádio da

proletarização generalizada induzida pela generalização das tecnologias hipomnésicas.

A verdade de Platão estaria assim em Marx, mas na condição de se retirarem duas

conclusões suplementares:

· O próprio Marx não pensa o carácter hipomnésico da técnica e da existência humana,

o que faz com que ele não pense ainda a vida humana como ex-istência.

Page 7: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

· A luta inaugural da filosofia contra a sofística em torno desta questão da memória e da

sua tecnicização é o cerne da luta política que é, de antemão, a filosofia; e a reavaliação

do alcance da hipomnese em Platão, tal como a da desconstrução que dela propõe

Derrida, deve constituir a base de um projecto político renovado da filosofia onde a

técnica se torna o desafio central.

3. A filosofia como reacção ao estádio ortotético da gramatização

A ser verdade que a filosofia começa com Platão, concretiza-se no seu combate contra a

sofística em torno da memória enquanto mnomotécnica (hypomnesis, mas também

retórica e tecnologias da linguagem baseadas na logografia). A questão fundamental da

filosofia é a memória, isto é, a episteme concebida como anamnesis, e aquilo que

despoleta essa questão da filosofia é uma época da gramatização: a filosofia constitui-se

como afirmação da anamnesis enquanto reacção contra a prática sofística dessa

hypomnesis que é a escrita, definida como tecnicização da memória linguística e,

enquanto tal, como falso-saber (Gorgias) – sendo a técnica geralmente apreendida pela

filosofia platónica como um pseudo-saber do devir, ou seja, do contingente, do sensível

e do acidental, quando o verdadeiro saber é concebido como saber do necessário, isto é,

das essências inteligíveis do ser enquanto entidade imutável.

A gramatização é impensável no quadro dos pares edificados por Platão com base no

antagonismo entre anamnese e hipomnese e que o leva a opor 1) o ser e o devir ao

mesmo tempo que 2) a alma e o corpo, 3) o inteligível pensado a partir da imortalidade

dessa alma e o sensível enquanto mortalidade do corpo – que é também a sede das

paixões e a armadilha da queda –, tudo isto assentando por fim na 4) oposição entre o

logos e a tekhnè. Opor memória viva psíquica e memória morta técnica é induzir toda

esta série. Inversamente, repensar a memória como processo de gramatização onde a

memória viva e a memória morta estão em permanente composição, é tentar sair destas

oposições. Pensar hoje a memória, enquanto novo desafio político que constitui a

técnica, é esboçar esse passo em frente.

A questão da filosofia é a do amor pelo saber. Ora, esse amor pelo saber constitui-se na

prova de um saber perdido. Esse saber perdido faz do saber um objecto do desejo, do

Page 8: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

philein tanto quanto do eros, e todo o objecto do desejo é um objecto de antemão

perdido: só é desejado enquanto fizer falta. Esse saber é perdido pela memória: a

questão da memória apresenta-se pela primeira vez na filosofia de Platão em Ménon. É

aí que o saber se encontra definido como reminiscência, como relembrança. A

relembrança aí surge como o fruto da dialéctica, ela própria uma actividade do

pensamento, à qual Fedro opõe os artifícios da hypomnesis, que aí se tornam, qual

corpo técnico, a própria queda. Retomando, com o mito da alma alada, o tema que

Ménon declinava com o mito de Perséfone, Fedro ensina-nos através dele que se trata

de um saber que foi esquecido devido a essa mesma queda.

A questão amorosa da filosofia é a de um esquecimento tal que fica por cumprir uma

anamnese, mas que deve ser distinguida da hipomnese dos sofistas: a memória do

verdadeiro (da ideia) foi originariamente perdida, há, na origem, uma falta de origem,

mas essa origem não é a origem verdadeira, não é senão aquilo que Platão define como

queda, prefigurando assim a versão monoteísta da falta de memória como desobediência

e falha, isto é, como pecado original. Esta queda faz tombar a alma na técnica que a

encarcera dentro do corpo e, como paixão que esta memória artificial desencadeia (pela

qual os sofistas produzem o pithanon, a persuasão e as crenças falsas – esquema que se

irá repetir em Rousseau), a hypomnesis é a técnica em geral oposta à anamnesis como a

alma se opõe ao corpo, e é isto que constitui a cena de Gorgias. Neste diálogo, a

filosofia define-se contra esses sofistas que pretendem saber tudo através das técnicas

(enquanto «polímatos») como amor por um saber perdido que o irredutível não-saber

de Sócrates exprime – algo que a dogmatização do socratismo por parte de Platão

tenderá progressivamente a esbater. Ora, o que constitui a questão filosófica, o objecto

do seu desejo – o saber, episteme, ou a verdade, aletheia – é, precisamente, uma questão

do desejo (philein, philia, elo social na individuação, chamado justiça, o Um que o ser

constitui, etc.) mas de modo a que esse desejo seja constituído pela sua tecnicidade,

quando essa própria tecnicidade, cuja versão sofística causa problema na Atenas do

século Vº, é recalcada pela filosofia. É este nó problemático que a oposição entre

anamnese e hipomnese traduz, e é aquilo que constitui a filosofia como metafísica que

nesta medida se trata de desconstruir.

4. A memória humana é epifilogenética

Page 9: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

À queda, logo, à falha, ao pecado original pelo qual Platão pensa a falta de origem que

precederia uma origem plena, uma interioridade, uma alma imortal, em suma, à

oposição platónica entre anamnese e hipomnese, a arqueologia a a paleontologia

humanas permitem responder com uma teoria da memória onde a tecnicidade aparece

como aquilo que constitui a vida como ex-istência, isto é, como desejo e como saber: é

o que permite caracterizar a hominização pelo aparecimento de uma memória

epifilogenética.

O Zinjantropus descoberto em 1959 é um australopiteco datado de 1,75 milhões de anos

– e cujos ascendentes bipedóides mais antigos remontarão a 3,6 milhões de anos. Pesa

cerca de trinta quilogramas. É um verdadeiro bípede: tem um furo occipital exactamente

na perpendicular do topo do seu crânio. Libertou, portanto, os seus membros superiores

da motricidade: estão doravante essencialmente votados ao fabrico e à expressão, ou

seja, à exteriorização. O seu esqueleto foi encontrado juntamente com os seus utensílios

no desfiladeiro de Olduvai. É com base nestes factos que Leroi-Gourhan mostra que

aquilo que faz a humanidade do homem, e que constitui uma ruptura na história da vida,

é o processo de exteriorização técnica do vivencial. O que até então relevava do

vivencial, como as condições de predação e de defesa, passa para fora desse registo: a

luta pela vida – ou antes, pela existência – não pode já ficar acantonada na cena

darwiniana. O homem trava essa luta, que também poderia ser dita espiritual, através de

órgãos não biológicos, isto é, através de órgãos artificiais que é aquilo em que as

técnicas consistem. Mas essa vida que não é já uma simples bio-logia, que é uma

existência, é uma técnica económica do desejo2 sustentada por meios técnicos

hipomnésicos que são também simbólicos.

Leroi-Gourhan demonstra que a técnica é um vector de memória. Do australopiteco ao

Neandertal produz-se a diferenciação biológica do córtex cerebral designada por

abertura do leque cortical. Mas a partir do Neandertal o sistema cortical praticamente já

não evolui: o equipamento neuronal Neandertal é bastante semelhante ao nosso. Ora, do

Neandertal até nós, a técnica evolui de modo extraordinário, e isso significa que a

evolução técnica não depende já da evolução biológica. O espaço da diferenciação

técnica produz-se fora da dimensão biológica, e independentemente dela, fora desse

2 Neste ponto, cf, em particular B. Stiegler, Mécréance et discrédit 3. L’esprit perdu du capitalisme, Galilée, 2006.

Page 10: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

«meio interior» no qual se banham, para Claude Bernard, os elementos constitutivos do

organismo. O processo de exteriorização é assim o processo de constituição de uma

terceira camada de memória.

A partir do neo-darwinismo oriundo da biologia molecular, e na sequência dos trabalhos

de Weismann, admite-se que os seres vivos sexuados são constituídos por duas

memórias: a memória da espécie, ou genoma, que Weismann designa por gérmen, e a

memória do indivíduo, dita somática, conservada pelo sistema nervoso central onde se

deposita a memória da experiência. Isto existe desde as limneias do Lago Leman

estudadas por Piaget até ao chimpanzé, passando pelos insectos e pelos vertebrados.

Ora, o homem acede a uma terceira memória suportada e constituída pela técnica. Um

sílex talhado forma-se numa matéria inorgânica organizada pelo acto da talha: o gesto

técnico engrama uma organização que se transmite por via do inorgânico, abrindo pela

primeira vez na história a possibilidade de transmitir saberes adquiridos

individualmente, mas por uma via que não é biológica. Esta memória técnica é

epifilogenética: é, ao mesmo tempo, o produto da experiência individual epigenética e o

suporte filogenético da acumulação dos saberes, constituindo o phylum cultural inter-

geracional.

Porque o seu saber procede dessa exterioridade primordial da memória, o escravo de

Ménon desenha na areia para aí traçar a figura em que encontra o objecto geométrico:

para pensar o seu objecto deve exteriorizá-lo, organizando a inorganicidade da areia que

se torna, no mesmo lance – qual superfície plástica podendo receber e conservar uma

inscrição –, no espaço e suporte de projecção de um conceito geométrico. Por mais

efémero que possa ser, o desenho na areia pode conservar mais duradouramente que o

espírito do escravo uma característica de um elemento da figura, porque esse espírito do

escravo é essencialmente movente: os seus pensamentos não cessam de passar e de se

apagar, ele é retentivamente finito. A sua memória flecte incessantemente, a sua atenção

é sempre desviada dos seus objectos para novos objectos, e ele tem dificuldade em

«intencionalizar» o objecto geométrico – em visualizá-lo na sua identidade orgânica, na

sua necessidade, na sua essência íntima: o seu eidos.

O desenho, enquanto memória hipomnésica, é pois indispensável a este filósofo em

potência que é o escravo, e à sua passagem ao acto, isto é, à sua anamnese: este desenho

Page 11: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

constitui uma bengala do entendimento3, um espaço de intuição inteiramente produzido

pelos gestos do escravo que traça na areia, à medida do seu raciocínio, os efeitos

figurados desse mesmo raciocínio – que a areia guarda como resultados que o escravo, a

sua intuição e o seu entendimento têm desde logo «debaixo dos olhos» e sobre os quais

podem prolongar e construir o raciocínio geométrico. Ora, é isto que a oposição

platónica entre o inteligível e o sensível, ou seja, entre o logos e a tekhnè, tornará

literalmente impensável nos diálogos subsequentes a Ménon – e é desde modo que se

formará a metafísica como denegação da tecnicidade original da memória.

5. O desafio da questão filosófica da memória é a transindividuação

As questões filosóficas são todas elas questões de transindividuação. A

transindividuação é aquilo que resulta do processo de co-individuação dos indivíduos

psíquicos dentro do indivíduo colectivo que os reúne como grupo humano – processo

que não pára de colocar e individuar a questão do Um e do Múltiplo4. Ora, a

individuação é uma operação de memorização psíquica e colectiva onde a

transindividuação é a meta-estabilização de significações. E a transindividuação é, desta

feita, aquilo que, por intermédio dos indivíduos psíquicos, individua colectivamente

fundos pré-individuais eles próprios constituídos e suportados por formas

hipomnésicas5.

Postulemos que o indivíduo psíquico é um eu e que o indivíduo colectivo é um nós. O

eu não pode ser pensado senão enquanto fazendo parte de um nós: constitui-se ao

adoptar uma história colectiva que herda e na qual se reconhece uma pluralidade de eus.

Esta herança é uma adopção, no sentido em que posso perfeitamente, enquanto neto de

um emigrado alemão, reconhecer-me num passado que não foi o dos meus antepassados

e que posso, no entanto, tornar meu enquanto francês ou americano: esse processo de

adopção é estruturalmente factício, é uma memória intrinsecamente artificial6. Ora, esta

artificialidade, que é um defeito de origem, é também aquilo que abre o jogo do eu, 3 Cf B. Stiegler, La technique et le temps 3. Le temps du cinéma et la question du mal-être, Galilée, 2001. 4 Referência a Garelli. 5 A posição de Simondon sobre este ponto é ambígua e hesitante. Sobre este tema, cf «L’apolitique de Simondon» dans La revue philosophique, Outono de 2006 e «Nanomutations, hypomnémata, grammatisation» em Nanomutations, Avital Ronell ed. Bayard, no prelo. 6 É este o pensamento de Renan em Qu’est-ce qu’une nation?

Page 12: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

essencialmente enquanto processo e não enquanto estádio: esse processo é uma in-

dividuação enquanto tendência a tornar-se-um, isto é, in-divisível, mas essa tendência

nunca se realiza (o que Kant questiona nos Paralogismos da Crítica da Razão Pura)

porque depara – enquanto sistema aberto, neguentrópico e dinâmico – com uma contra-

tendência com a qual forma um equilíbrio meta-estável: um equilíbrio no limite do

desequilíbrio, num meio mnésico pré-individual onde o eu se co-individua num nós.

Isto só é possível porque este nós é igualmente um processo: a individuação do eu está

sempre processualmente inscrita na do nós, enquanto que, inversamente, a individuação

do nós só se cumpre através das individuações – processualmente polémicas – dos eus

que o compõem. O que liga o eu e o nós na individuação é o meio pré-individual, de

acordo com as suas condições positivas de efectividade, dependendo de dispositivos

retentivos pelos quais se forma como meio mnésico. Estes dispositivos retentivos são

apoiados pelo meio técnico que é a condição do encontro entre o eu e o nós: a

individuação do eu e do nós é igualmente, neste sentido, a individuação de um sistema

técnico (o que Simondon, estranhamente, não viu). O sistema técnico é um dispositivo

que goza de um papel específico (no qual todo o objecto é tomado: um objecto técnico

só existe agenciado, no seio de um tal dispositivo, com outros objectos técnicos – é

aquilo que Simondon designa por conjunto técnico). A espingarda e, de modo mais

geral, o devir-técnico com o qual constitui sistema, são assim, em Foucault, a

possibilidade de constituição de uma sociedade disciplinar7.

O sistema técnico é aquilo que sustenta a possibilidade de constituição dos dispositivos

retentivos que são ele mesmos oriundos do processo de gramatização: este desdobra-se

no seio do processo de individuação do sistema técnico. Os dispositivos retentivos dos

meios mnésicos engendrados por cada novo estádio da gramatização são aquilo que

condiciona os agenciamentos entre o indivíduo do eu e o indivíduo do nós num mesmo

processo de individuação psíquica, colectiva e técnica (ou seja, mnésica e onde a

7 «Marx faz, por exemplo, soberbas análises do problema da disciplina no exército e nas oficinas. A análise que vou fazer sobre a disciplina no exército não se encontra em Marx, mas que importa! O que se passou no exército desde o fim do século XVI e o início do século XVII até, praticamente, aos finais do século XVIII? No exército, que havia sido até então essencialmente constituído por pequenas unidades de indivíduos relativamente intermutáveis, organizados em torno de um chefe, sucedeu toda uma enorme transformação que fez com que estas unidades fossem substituídas por uma grande unidade piramidal, com toda uma série de chefes intermediários, de sub-oficiais, de técnicos também e essencialmente porque havia sido feita uma descoberta técnica: a espingarda com um tiro relativamente rápido e ajustado». Dits et Écrits, Quarto Gallimard, p. 1006.

Page 13: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

gramatização é um subsistema da técnica)8, um processo que comporta assim três

ramais, e onde cada ramal se divide ele próprio em subconjuntos processuais (por

exemplo, o sistema técnico, ao individuar-se, individua também os seus sistemas

mnemotécnicos ou mnemotecnológicos onde bifurcam os estádios da gramatização,

etc.).

Antes mesmo da filosofia (chegada tardiamente), o que se coloca aos primeiros

pensadores pré-socráticos (ao mesmo tempo geómetras, fisiólogos, poetas e legisladores

– nomótetas) é a questão daquilo que articula o Múltiplo, constituído pela multidão dos

cidadãos, dos «eus», com o Um – que se chama água (Tales) ou ser (Parménides) – que

funda o «nós» até ao seu horizonte mais vasto: como universal. A questão política assim

formada é a das condições da metaestabilização das leis jurídicas, mas também

epistémicas, enquanto horizonte comum, isto é, transindividual, das significações

oriundas da individuação psicossocial e que os filósofos pensam como eidè, idealidades.

Ora, o início do pensamento pré-socrático é o aparecimento deste pensamento do Um e

do Múltiplo no momento em que a gramatização que conduziu à alfabetização abre a

krisis da qual surge esse novo processo de individuação psíquica e colectiva que é a

pólis, – que substitui a sociedade basílica do «preste-rei». De Tales a Platão, esta krisis

inaugura a era do pensamento crítico, ou seja, também, político, e como processo de

individuação psicossocial: como processo no qual o cidadão se distingue do grupo, mas

inventa esse grupo como estruturalmente incumprido e em devir, precisamente através

dessa distinção onde ele se destaca como singularidade de direito.

Este pensamento político-filosófico do Um e do Múltiplo é o pensamento da

transindividuação enquanto tal – e, a partir de Platão que assim funda a metafísica,

como mnémè atravessada pela tekhnè, isto é, ao mesmo tempo como anamnesis e

hypomnesis. A questão filosófica – passando pela krisis sofística e saindo assim da

época pré-socrática – consiste então em saber em que condições é possível

transindividuar na facticidade. E a transindividuação é a questão do espírito tal como se

irá tornar princípio de unidade no monoteísmo cristão.

8 Este último ponto encontra-se mais particularmente desenvolvido em La technique et le temps 4. Symboles et diaboles, ou la guerre des esprits, ed. Galilée, no prelo.

Page 14: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

Quando o Um se torna Ser, este divide-se em regiões que constituem disciplinas: os

saberes fundados nas «ontologias regionais», para falar como Husserl. Estes definem o

que se transindividua entre o psíquico e o colectivo e a legalidade dessa

transindividuação de acordo com esses regimes de individuação que formam também

paridades (colectivos de pensamento e nós transcendentais, para falar ainda com

Husserl). Estas ontologias regionais estão elas próprias de acordo com as regras

fundamentais da transindividuação definida pela ontologia formal da lógica e / ou da

metafísica, sendo esta, por sua vez, enquanto meta-transindividuação, aquilo que resulta

da individuação filosófica.

Estas operações urdem a história da metafísica, tal como foi diversamente desconstruída

desde Marx até ao pensamento da gramatologia, passando por Freud. Mas para além

desta desconstrução, e aquém dela (como na era pré-socrática), a questão da

individuação permanece fundamental, e a da transindividuação na tensão anamnésica

do Um e do Múltiplo permanece o objecto da filosofia propriamente9.

É por isso que a filosofia não acabou.

6. A transindividuação como retenção

A transindividuação como actividade da memória enquanto agir psicossocial revela que

qualquer questão em torno da memória é uma questão de selecção, e, inversamente, que

qualquer questão de selecção é uma questão de memória. A partir do momento em que

selecciono (isto é, por exemplo, assim que falo e que calo aquilo de que não falo), estou

a constituir uma memória, ou seja, transindividuo ou participo num processo de

transindividuação. Para pensar esta selecção é necessário passar pela fenomenologia

husserliana do objecto temporal (zeitobjekt) e criticá-la lá onde transparece que a

transindividuação na qual o psíquico e o colectivo se conjugam ocorre às condições

organológicas de retenções terciárias formadas pelos suportes hipomnésicos dos meios

preindividuais. A epifilogénese é o processo de produção dessas retenções terciárias

9 Descrever aquilo que designei, em Mécréance et discrédit 1. La décadence des démocraties industrielles, Galilée, 200…, «regimes de consistência» é descrever regimes de transindividuação, onde o que permite transindividuar as existências são, justamente, as consistências.

Page 15: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

hipomnésicas que suportam as retenções primárias e secundárias definidas por Husserl e

que formam a urdidura da vida anamnésica.

A retenção primária, e a sua distinção da retenção secundária, é aquilo que Husserl

retira de uma análise fenomenológica da melodia. No «agora» de uma melodia, ou seja,

no momento presente de um objecto musical que se escuta, a nota que está presente não

pode ser uma nota, e não apenas um som, senão na medida em que retém em si a nota

precedente, que aí permanece presente, nota precedente ainda presente que por sua vez

retém em si aquela que a precede, etc. E não se deve confundir esta retenção primária,

que pertence ao presente da percepção, com a retenção secundária, que é a melodia

que posso, por exemplo, ter ouvido ontem, que posso tornar a ouvir na imaginação pelo

jogo da relembrança, e que constitui o passado da minha consciência. Não se deve

confundir, diz Husserl, percepção (retenção primária) com imaginação (retenção

secundária).

Mas existe uma terceira espécie de retenção que é hipomnésica: assim, antes da

invenção do fonógrafo era absolutamente impossível ouvir duas vezes de seguida a

mesma melodia. Ora, desde o aparecimento do fonograma, que é um caso de retenção

terciária, e um estádio da gramatização, ou seja, uma época do suplemento, a idêntica

repetição de um mesmo objecto temporal tornou-se possível, o que permite, aliás,

compreender melhor os processos retentivos. Porque o que aparece aqui como resultado

é que:

· Quando o mesmo objecto temporal se produz duas vezes de seguida, engendra dois

fenómenos temporais diferentes, o que significa que as retenções primárias variam de

um fenómeno para o outro: as retenções da primeira audição, tornadas secundárias,

desempenham um papel de selecção nas retenções primárias da segunda audição – isto é

verdade em geral, mas a retenção terciária que é o fonograma torna-o evidente. A

repetição hipomnésica produz uma diferença.

· Por outro lado, os objectos temporais terciarizados (fonograma, filmes, emissões de

rádio e de televisão), gravados ou teledifundidos e, nessa medida, controlados, são

tempo materializado que sobredetermina as relações entre retenções primárias e

secundárias em geral e permitem, assim sendo, controlá-las. A diferença tanto pode

Page 16: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

então ser intensificada pela repetição terciária como anulada por ela: a repetição pode

gerar indiferença.

Ora, o jogo das retenções primárias e secundárias, enquanto é o jogo, anamnésico, de

uma selecção – mas tal que se revela ser sobredeterminada pelas retenções terciárias

hipomnésicas – é aquilo que constitui a realidade concreta de toda a operação de

transindividuação10. E o pensamento da retenção terciária, na medida em que as suas

épocas constituem uma história do suplemento como gramatização, decorre da

organologia geral onde a história do suplemento só é pensável na sua tripla dimensão

fisiológica, técnica e social11.

Em termos de filosofia política, a questão está em descrever e criticar (de discernir,

krinein) os processos concretos de transindividuação. Por exemplo, o jurídico é um

processo concreto de transindividuação – concreto significa que ele pertence a uma

época da gramatização que o sobredetermina. Produzir uma lei é transindividuar

literalmente – e a operacionalidade recente das gravações da imagem animada e sonora

nas instituições judiciárias levanta novas questões de transindividuação jurídica.

Esta transidividuação é feita de acordo com leis elas próprias constitucionais, no sentido

filosófico, isto é, constituídas por uma lógica transcendental, e a filosofia política

consiste em descrever as legalidades que permitem a transindividuação do jurídico a

partir desta constituição que também condiciona a matemática, etc. Ora, levar em conta

a hipomnese na formação da anamnese torna impossível e caduca uma tal compreensão

transcendental, isto é, a priori, da constituição. E não é por simples coincidência que a

filosofia, enquanto «rainha das ciências», entra em crise no momento em que surgem

novos estádios da gramatização, que não são já unicamente os das letras.

Em termos de filosofia política, a questão consiste em saber quem se apropria e quem

controla os processos de transindividuação que poderiam ser ditos meta-

10 A própria anamnese deve ser pensada, nesta abordagem, com o conceito aristotélico de «acto», de energeia e de entelecheia: a partir de um par não oposicional do acto e da potência, onde a potência forma o pré-individual ao ultrapassar a oposição entre a forma e a matéria oriunda do esquema hilemórfico, como o demonstra Simondon. 11 Mostrei algures de que modo os três níveis organológicos se articulam com as três formas de retenção, e como as três sínteses da imaginação transcendental que Kant estabelece na Dedução transcendental da Crítica da Razão Pura são constituídas por uma quarta síntese protética e a posteriori.

Page 17: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

transindividuantes e que permitem controlar as meta-transformações sócio-económicas

e sócio-políticas através das hipomneses próprias a cada época da gramatização –

estando as meta-transindividuações sobredeterminadas pelas características técnicas e

tecnológicas das retenções terciárias. Dito de outra forma, o e da individuação psíquica

e colectiva, onde se formam as condições da transindividuação, é a técnica – e é,

precisamente, aquilo que a filosofia tinha até agora excluído. É por isso que se deve

constituir um novo horizonte filosófico onde a tecnicidade esteja no seio da

transindividuação. Esse caminho que passa pela desconstrução não se detém nela: esta

não é um impasse, na condição de se fazer dela uma história técnica do suplemento

concebido como retenção terciária no processo de individuação de uma organologia

geral12.

7. Capitalismo e gramatização do desejo

A memória trabalha, e o seu trabalho, que se aparenta ao do luto, idealiza os seus

objectos. Esta idealização espontânea (entendida aqui no sentido freudiano) é uma

condição da transindividuação. Mas, por outro lado, a transindividuação, enquanto

processo de produção de significações, supõe a idealização. Há idealização assim que

há linguagem, como o demonstraram as Recherches Logiques de Husserl. Quando

aparece o logos enquanto tal, o trabalho da memória, enquanto trabalho transindividual

do espírito, faz passar a ideação a idealização através da elaboração conceptual

entendida como anamnesis: é a dianoia enquanto skholè, mélétè, otium. Mas não é

12 Nietzsche, pensador da marca e da inscrição na Segunda Dissertação da Genealogia da Moral, é o filosofo que introduz a questão genealógica e, desta feita, organológica da selecção. Freud faz dela a questão do inconsciente, residindo o problema no facto do pensamento de Freud não conseguir pensar as retenções terciárias, logo, nem a técnica; facto que o encurralou numa fabulação neo-Lamarckiana. Bergson, pelo privilégio que concede ao tempo, opondo-o ao espaço, fabrica um par oposicional que é muito diferente daquele de Husserl que, por sua vez, opõe as retenções primárias às retenções secundárias mas que exclui as retenções terciárias pelos mesmos motivos, ou seja, por serem espaciais e não temporais. Deleuze fica preso neste par oposicional bergsoniano que ele próprio opõe ao par oposicional bergsoniano. Nesta medida, Deleuze é mais bergsoniano do que nietzschiano. Os trabalhos de Barbara Stiegler (Nietzsche et la critique de la chair, PUF, 2005) mostraram que em Nietzsche a questão das relações entre o apolíneo e o dionisíaco coloca desde logo em fundo estas questões da técnica e da indústria. Pelo contrário, um pensamento como o de Bergson, que domina ainda Deleuze, não pode colocar a questão da técnica – como se pode ver, por exemplo, no «diagrama», ... Daí a sua crítica das sociedades de controlo ser desesperada.

Page 18: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

possível opor a anamnesis à hypomnesis, e foi por isso que Foucault pôde mostrar que o

otium é uma prática dos hypomnemata13.

Todavia, há que reavaliar o discurso de Platão sobre os hypomnemata e a hypomnesis

enquanto factores de perda de saber. Do ponto de vista de uma história da gramatização,

Fedro antecipa questões que reaparecem em O Captital. São as questões de uma

economia política da memória. Fedro diz que a memória pode proletarizar-se, que a

hypomnesis, enquanto exteriorização, é uma desindividuação, e que esta questão é

política (é então a questão da sofística). Hoje, o controlo industrial da memória através

dos hypomnemata que são as mnemotecnologias constitui uma perda de saber-viver

tanto quanto de saber-fazer e de saberes teóricos (de transindividuação das idealidades).

No actual estado de hegemonia que o capitalismo financeiro exerce sobre as tecnologias

hipomnésicas, e das quais faz tecnologias de controlo retentivo, perdemos o poder de

transindividuar.

Individuar-se é individuar o grupo: é transindividuá-lo e transindividuar-se.

Reciprocamente, não aceder à transindividuação, perder o poder e o saber de

transindividuar, é desindividuar-se – é arruinar a psique e precipitá-la em direcção à

psicose.

Os Gregos pensam no interior de um processo de individuação psíquica e colectiva

fundado pela letra enquanto retenção terciária ortotética: a transindividuação torna-se aí

hegemonicamente literal, na medida em que os meios simbólicos, que também são

mnésicos, aí se encontram todos sobredeterminados pela hypomnesis alfabética que rege

a cidadania. A memória alfabética objectivada é ortotética (orthotès significa exactidão)

na medida em que permite engramar sem ambiguidade uma significação linguística pelo

princípio de uma decomposição (análise) e de uma recomposição (síntese) fonética.

Interiorizada pelos locutores, engendra uma nova relação com a língua e,

consequentemente, um novo processo de transindividuação das significações: coloca o

sentido à prova de uma nova diferância (no sentido de Derrida). Já que a identificação

textual dos enunciados, isto é, a sua objectivação hipomnésica, engendra uma

intensificação da subjectivação respectiva: da sua individuação anamnésica. Mas ao

mesmo tempo – é o que Platão sublinha – o controlo hipomnésico literal permite 13 Michel Foucault, «L’écriture de soi», Dits et Écrits, Gallimard, p...

Page 19: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

também a «logografia», ou seja, esse conjunto de técnicas da linguagem que consistem

em manipular a opinião através do pithanon (a arte de persuadir) ao curto-circuitar a

anamnesis, que é a transindividuação, e que Platão chama dialéctica – que é, antes de

mais, um diálogo.

No século XIX, com os primeiros aparelhos de gravação analógicos, surgem os

engramas ortotéticos mnemotecnológicos. Os aparelhos mnemotecnológicos tornam-se

digitais na segunda metade do século XX. As mnemotécnicas e as mnemotecnologias

ortotéticas são aquilo que permite ao mesmo tempo intensificar a individuação e

controlá-la no sentido de uma desindividuação. As formas de hypomnemata analógicas

e digitais relançam nesta medida as mais velhas questões da filosofia num contexto

capitalista e mercante que a actividade mercantil dos sofistas prefigura sem dúvida, mas

onde a dimensão industrial introduz novas questões. Porque a indústria é um novo

estádio da gramatizão.

A gramatização dos meios mnésicos e simbólicos pelos aparelhos tecnológicos produz-

se efectivamente enquanto a máquina ferramenta desenvolve uma outra forma de

ortótese pelo controlo dos gestos e, logo, dos corpos. As hipomneses que controlam, ao

reproduzi-la, a motrocidade do gesto aparecem no início da Revolução Industrial, lá

onde as hipomneses literais controlavam desde a Antiguidade as funções intelectivas do

espírito e onde as hipomneses audiovisuais controlariam as suas funções sensitivas a

partir do século XX. E, aqui, a fotografia e o cinema participam nesta gramatização do

gesto. O controlo do trabalho pela respectiva organização científica que se apoia na

gramatização é teorizado por Taylor em Principles of Scientific Management.

O gesto gramatizado é um gesto tercializado: a sua reprodução maquínica intervém

como retenção terciária na actividade motriz de produção. Sempre houve retenção

terciária na actividade motriz de produção. É isso que faz aparecer o que chamamos em

termos pré-históricos «tecnologia experimental» aplicada à reconstituição do entalhe

dos sílex neandertais. Mas toda a gestão oriunda da teoria tayloriana do trabalho é um

pensamento e um controlo do gesto por um tipo de retenção terciária ortotética e

maquínica que constitui uma hipomnese do gesto através da qual o operário é

transformado em proletário e privado dos seus saberes.

Page 20: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

Os aparelhos analógicos e, depois, numéricos, que se desenvolvem na esteira do

maquinismo industrial e das máquinas ferramentas, afectam não só os modos de

produção como também as modalidades de consumo. Produz-se aqui um novo estádio

da exteriorização dos saberes e da hipomnese que constitui o processo de proletarização

generalizada como perda dos saberes. A gramatização literal é posta ao serviço da

concepção, a gramatização dos gestos ao serviço da produção e a gramatização dos

sentidos ao serviço do consumo: este capitalismo cognitivo e cultural constitui uma

nova organização hipomnésica integrada que permite o controlo de todas as formas do

movimento, isto é, da emoção e, desta feita, do inconsciente.

O facto do aparecimento dos corpos no processo de individuação – quer seja o corpo do

produtor controlado pelo gesto ou o corpo do consumidor controlado pelos sentidos – se

dar no momento em que se formam os pensamentos nietzschianos e freudianos do

desejo e da pulsão, como fenómenos surgidos do inconsciente, significa que (no

momento em que vivemos) o reaparecimento da questão da anamnese e da hipomnese

(no momento em que retorna, como telecracia, e em termos que ganharam uma

dimensão industrial e tecnológica colossal, e mundial) – questão que a sofística

colocava à filosofia e à democracia – reveste-se de um alcance que é uma reelaboração

da questão do desejo enquanto propriamente constituído ou destituído

hipomnesicamente e segundo os estádios da gramatização.

Porque o processo de individuação é a economia do que, desde Freud, se chama desejo:

é a economia libidinal. Ora, Feud não soube articular um pensamento da hipomnese em

psicanálise, quando o seu pensamento é o da anamnese como tão bem o demonstrou

Jean François Lyotard – uma anamnese pensada a partir da questão do narcisismo, do

ideal do eu e da sublimação como poderes de individuação e de ransformação espiritual

do psíquico e do colectivo, através da constituição de um processo de transindividuação

que já Aristóteles chamava philia, ou seja, amor.

A questão que nos é actualmente dirigida a título de política da memória é pois a de

uma política do desejo, isto é, também, de uma economia política do inconsciente. O

inconsciente é aquilo que articula corpos sobre retenções terciárias e suportes

hipomnésicos, constituindo o corpo como poder técnico, ou seja, como poder da

imaginação, como potência do fantasma. Pensar actualmente a questão da memória, na

Page 21: Bernard Stiegler (sobre a exteriorização da memória).pt-cópia

medida em que esta é originariamente exteriorizada e permite ao mesmo tempo

intensificar a individuação e produzir desindividuação por via da perda de saber e por

proletarização, é reelaborar um pensametno hipomnésico e anamnésico da economia

geral dos saberes na medida em que estes são formas da libido.

Porque, na nossa época – tal é o carácter eminentemente estranho e inquietante do

capitalismo contemporâneo –, vemos que os saberes estão a ser destruídos, e através

deles a libido, por uma exteriorização que permite um controlo e uma intensificação dos

processos pulsionais em detrimento da economia libidinal, isto é, da anamnese: o

capitalismo das sociedades de consumo, mimético, gregário e pulsional, que é uma

verdadeira gramatização do próprio desejo, reactiva as técnicas sofísticas a um grau

incomparavelmente mais poderoso e perigoso que constitui um limite lá aonde se torna

evidente que esse mesmo capitalismo se dirige – se nada acontecer que possa alterar

este estado de coisas – e que irá conduzir ao seu desmoronamento por autodestruição.

Trata-se desde logo de accionar programas de investigação sobre a economia

hipomnésica do desejo actualmente permitidos pelos media digitais: estes são

portadores de possibilidades anamnésicas tanto quanto hipomnésicas de individuação e

de transindividuação totalmente inéditas. Trata-se de pensar os hypomnemata digitais, e

as formas novas de otium que aí podem brotar, e fundar uma nova economia política da

memória e do desejo14.

Trad. Luís Lima

14 Este programa é o que se encontra em Réenchanter le monde. La valeur esprit contre le populisme industriel e em La télécratie contre la démocratie. Lettre ouverte aux représentants politiques, ed. Flammarion, 2006.