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2021 Bernardo Gonçalves Fernandes Curso de DIREITO CONSTITUCIONAL 13 ª edição revista atualizada ampliada

Bernardo - Editora Juspodivm

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2021

Bernardo Gonçalves

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13ª edição

revista atualizada ampliada

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PrinCíPioS fundamentaiS (eStruturanteS) da ConStituição de 1988

5Princípios Fundamentais

(Estruturantes) da Constituição de 1988

Sumário: 1. Introdução – 2. A noção de Princípios Jurídicos e sua reconstrução a partir do movimento do pós-positivismo – 3. Classificação dos Princípios Estruturantes – 4. Princípio Republicano – 5. Princípio do Estado Democrático de Direito: 5.1. Introdução: a conexão interna entre Direito e Democracia; 5.2. Estado de Direito; 5.3. Democracia – 6. Princípio Federativo – 7. Princípio da Separação de Poderes – 8. Fundamentos do Estado brasileiro: 8.1. Introdução; 8.2. Soberania; 8.3. Cidadania; 8.4. Dignidade Humana; 8.5. Valores Sociais do Trabalho e da Livre Iniciativa; 8.6. Pluralismo Político – 9. Princípios que fixam os obje-tivos primordiais a serem perseguidos pela CR/88 – 10. Princípios que traçam diretrizes a serem adotadas nas relações internacionais.

1. INTRODUÇÃO

Já na abertura do texto constitucional de 1988, o constituinte se preocupou em destacar, no seu título I, o que chamou de princípios fundamentais – ou conforme a doutrina de Canotilho, os princípios estruturantes – da Constituição. Esses prin-cípios são responsáveis pela organização da ordem política do Estado brasileiro, demarcando teórica e politicamente o pensamento e as convicções da Assembleia Constituinte.

É importante que desde já se faça uma advertência: aqui não se trata de dire-trizes, mas sim de normas jurídicas, dotadas de vinculação aos órgãos encarregados da atividade de aplicação e criação do Direito.

2. A NOÇÃO DE PRINCÍPIOS JURÍDICOS E SUA RECONSTRUÇÃO A PARTIR DO MOVIMENTO DO PÓS-POSITIVISMO

A noção de princípios foi originariamente derivada de uma perspectiva ligada à afirmação da existência de um Direito Natural. Os autores ligados a uma herança de pensamento dessa tradição vão identificar os princípios como espécies de supra-normas – isto é, elementos norteadores da conduta humana, que atuam definindo padrões substanciais de justiça. É importante aqui lembrar que nesse momento histórico o Direito não havia conseguido se dissociar da amálgama normativa que indistintamente aglomerava ordens normativas como a moral, a ética, a religião, a economia etc., mantendo coesa a sociedade pré-moderna.

Num primeiro momento, esses padrões de justiça serão definidos a partir de uma determinada realidade religiosa, configurando, assim, o chamado “jusnaturalismo

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teológico”, que afirmará, sinteticamente, que a ordem jurídica é derivada de man-damentos originados por uma racionalidade superior à dos homens, isto é, Deus. Sendo assim, as ordens e disposições fixadas pela divindade corporificariam um conjunto de comandos aos quais o Direito positivo deveria se espelhar a fim de que fosse considerado legítimo. Por terem sua origem na divindade, os princípios forneceriam padrões de comportamento e de justiça perfeitos – sem anomias ou antinomias – e imutáveis (eternos).

Uma segunda corrente, dentro dessa mesma tradição, substituirá a fonte dos princípios de Deus, passando a compreender sua origem na razão. Aqui, uma racionalidade legisladora fixará também de modo atemporal padrões de justiça para toda a humanidade. O exemplo da ideia de imperativo categórico é bastante sugestivo: por meio de um mecanismo racional é possível pensar condutas morais que definam se uma determinada ação é sempre certa ou er-rada, isto é, justa ou injusta. A avaliação se dá em abstrato, sem levar em conta a situação particular envolvida, sem as perspectivas individuais do agente e do sujeito da ação. Essas normas morais materializariam os chamados Direitos naturais que, devido a sua abstração, funcionariam como princípios – ou seja, apenas referenciais de justiça.

Com o advento do positivismo jurídico, temos, nas palavras de Paulo Bona-vides1, uma etapa intermediária na afirmação e efetivação da juridicidade dos princípios. Nesses termos, com o positivismo, os princípios passam a figurar nos códigos jurídicos ao lado de outras normas jurídicas e, com isso, deixam de ser considerados uma instância supralegal, carente de juridicidade. Com isso, eles vão lentamente adquirindo a dignidade de normas jurídicas, sendo entendidos como generalizações das regras jurídicas (e não de um ilusório direito natural descoberto pela razão ou com fundamento divino). Porém, aqui, apesar de alocarem-se dentro do ordenamento jurídico (e não fora!), os princípios integram esse ordenamento no mais baixo grau de hierarquia, visto que na lógica positivista prepondera a concep-ção de que o Direito é um sistema fechado de regras (normas jurídicas cujas condi-ções de aplicação estão previstas no texto normativo). Nesses termos, os princípios são tidos como princípios gerais do Direito (normas generalíssimas nos dizeres de Norberto Bobbio), que têm como função impedir o vazio normativo que ocorreria no caso da falta de regras (específicas para situações concretas). Com isso, os prin-cípios vão se apresentar como verdadeiras fontes secundárias (válvulas de segu-rança) do sistema, tendo uma função de cunho supletivo. Teriam assim a tarefa de auxiliar o intérprete na interpretação e na integração (preenchimento de falhas) do ordenamento jurídico. Certo é que nesse período de transição as regras continua-vam a ser as normas jurídicas por excelência.2 Com o advento do pós-positivismo (e

1. BONAVIDES, Paulo, Curso de Direito Constitucional, p, 232-245.2. A partir da transição do Estado Liberal para o Estado Social, Weber identificará um processo de materialização

do direito – recepção de conteúdos morais e de termos indeterminados, verdadeiras cláusulas gerais ou termos

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PrinCíPioS fundamentaiS (eStruturanteS) da ConStituição de 1988

as suas inúmeras perspectivas), os princípios passam a ser considerados tão nor-mas como as regras jurídicas. Ou seja, eles passam a ter força normativa plena com juridicidade equivalente à das regras jurídicas. Eles, nessa vertente contemporânea (de verdadeira reconfiguração do sistema jurídico), deixam de ser uma mera fonte supletiva (de interpretação e integração) e passam a serem usados de forma prin-cipal (e primária) tanto quanto as regras em situações de aplicação. Com isso, nas atuais Constituições da segunda metade do século XX em diante, para uma série de teóricos as normas constitucionais se apresentam como um gênero que contém as espécies: regras e princípios3. Nesses termos (já que normas não são apenas regras jurídicas), uma questão é colocada: como diferenciar essas duas espécies?

Nesse sentido, Canotilho, recorrendo a uma plêiade de autores (Larenz, Esser, Borowsky, Alexy, Dworkin, entre outros) irá nos apresentar excelente síntese sobre os principais critérios diferenciadores entre essas normas, sendo eles: “a) Grau de abstração: os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstração relativamente reduzi-da; b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legis-lador ao juiz), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação direta; c) Caráter de fundamentalidade no sistema das fontes do Direito: os princípios são normas de natureza estruturante ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex: princípios constitucio-nais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de Direito); d) Proximidade da ideia de Direito: os princípios são “standards” juridicamente vinculantes radicados nas exigências de justiça (Dworkin) ou na “ideia de Direito” (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional; e) Natureza normogenética: os princípios são fundamentos

indeterminados como “boa-fé” ou “interesse público” ou “razões de Estado”. É agora nesse cenário que os princí-pios jurídicos voltam a aparecer na ordem jurídica. Nessa perspectiva, Karl Larenz declara que princípios são elementos interpretativos do direito – bússolas de referência, como também pensa Celso Antônio Bandeira de Mello apesar da enorme distância histórica entre ambos os pensamentos – que permitem ao aplicador do direito atingir uma decisão. Aqui, os princípios são postos para dentro do ordenamento jurídico, mas são destituídos de normatividade, uma vez que não trazem sanção. No final, seriam apenas máximas doutrinárias que atuariam como guias no processo de aplicação e concretização dos direitos, ou seja, permitiram auxiliar os aplicadores a escolher as regras – estas sim, normas jurídicas por excelência – a serem utilizadas. ÁVILA, Humberto, Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos.

3. É interessante que o professor Canotilho, seguindo essa nova linha, cuida em sua obra (2003) de diferenciar os princípios pela função desempenhada. Ou seja, os princípios (atualmente) teriam apenas função retórico-argu-mentativa ou são normas de conduta? Com isso, Canotilho distingue o que intitula de princípios hermenêuticos e princípios jurídicos. Segundo ele, os princípios hermenêuticos (mais precisamente: cânones de interpretação) desempenham uma função argumentativa, permitindo, por exemplo, denotar a ratio legis de uma disposição ou revelar normas que não são expressas por qualquer enunciado legislativo, possibilitando aos juristas, sobretudo aos juízes, o desenvolvimento, integração e complementação do direito. Já os princípios jurídicos são verdadeiras normas, qualitativamente distintas de outras categorias de normas, ou seja, das regras jurídicas. Direito Constitu-cional e Teoria da Constituição, p. 1161, 2003.

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de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, um a função normogenética fundamentante”.4

Porém, temos que as duas teorias (critérios de diferenciação) que ganharam maior destaque na teoria do Direito foram a distinção quantitativa (tese fraca) e a distinção qualitativa (tese forte) entre regras e princípios.5

Para os autores tributários Norberto Bobbio e Del Vecchio, os princípios e regras deveriam se discernir pelo grau de abstração (ou de determinabilidade). Nesses termos, as regras teriam baixa abstração e alta determinabilidade. Já os princípios seriam dotados de alta abstração e baixa determinabilidade. Essa perspectiva inti-tulada de critério quantitativo (por colocar em relevo a quantidade de abstração) foi objeto de inúmeras críticas na doutrina6. Robert Alexy irá nomeá-la de tese fraca em oposição a sua tese forte, que busca diferenciar as espécies de normas pelo critério qualitativo7. Este leva em consideração a forma ou modo de aplicação das regras e princípios no caso de colisões (tensões). Nesses termos, as regras são aplicadas ao modo tudo ou nada (sim/não), ou seja, se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou a regra é válida e a consequente normatividade deve ser aceita, ou ela não é considerada válida e deve sair do ordenamento jurídico.8 Portanto, as regras garantem direitos (ou impõem deveres) definitivos, ou seja, são mandamentos definitivos, e os conflitos entre regras que porventura venham a surgir devem ser resolvidos pela dimensão da validade por meio da técnica da subsunção. Com isso, uma das regras é válida e a outra deve ser declarada invá-lida, sendo extirpada do ordenamento (exceto se existir uma cláusula de exceção que permita sua continuidade). Já os princípios não apresentam razões definiti-vas. Eles irão apresentar razões prima facie. Como consequência (de não serem normas definitivas), são passíveis de cumprimento em diferentes graus. Por isso, em casos de colisão não há que se falar em declaração de invalidade de um deles (ou mesmo determinação de uma cláusula de exceção) em detrimento do outro. Aplica-se um princípio no caso concreto e o outro (não aplicado) continua válido e pode ser aplicado em outro caso. Certo é que, em uma colisão entre o princípio da liberdade e o da igualdade, pode ser aplicado o princípio da igualdade sem que o princípio da liberdade seja extirpado do sistema jurídico.9 A conclusão é a de que a colisão entre princípios é decidida pela dimensão do peso por meio da técnica do

4. CANOTILHO, Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, p. 1159-1162, 2003.5. O próprio Canotilho adota o viés da tese qualitativa em suas digressões. In: Direito Constitucional e Teoria da Cons-

tituição, 7ª Edição, p. 1159-1162, 2003.6. Entre elas, a que afirma que essa é uma classificação estática e meramente textual que define uma norma pelo

seu texto (apenas pelo seu texto) sem levar em consideração a situação de aplicação da mesma.7. ALEXY, Robert, Derecho y razón práctica.8. GALUPPO, Marcelo Campos, Princípios e a solução de seus conflitos, p. 134-142. SILVA, Virgílio Afonso, Direitos Fun-

damentais, p. 47-48. QUINAUD PEDRON, Flávio, Comentários sobre as interpretações de Alexy e Dworkin.9. “Os princípios, ao contrário das regras, como demonstra Dworkin, podem ser contrários sem ser contraditórios,

sem se eliminarem reciprocamente. E, assim, subsistem no ordenamento princípios contrários que estão sempre em concorrência entre si para reger uma determinada situação.” CARVALHO NETTO, Menelick de, Requisitos prag-máticos da interpretação jurídica sob o paradigma do estado democrático de direito, p. 483.

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sopesamento (balanceamento). Na teoria de Alexy, então, é famosa a definição de que “os princípios são mandamentos de otimização, ou seja, normas que exigem que algo seja realizado na maior medida possível diante das condições fáticas e jurídicas existentes”.10 Com isso, na aplicação dos princípios, Alexy aposta na me-todologia da ponderação/proporcionalidade,11 ao passo que Dworkin (conforme já estudado), desenvolvendo um raciocínio hermenêutico, apostará na preservação da integridade do Direito.12

De qualquer modo, o texto constitucional, logo em sua abertura, apresenta os chamados princípios estruturantes ou princípios fundamentais, que estabelecem as decisões políticas essenciais quanto à forma e à estrutura do Estado e do governo (arts. 1º a 4º).

A doutrina constitucional ainda busca afirmar a existência de princípios gerais na Constituição, que, por sua vez, seriam especificações dos princípios fundamen-tais, como se fossem desdobramentos destes. É o caso, por exemplo, de inúmeros direitos fundamentais individuais contidos no art. 5º da CR/88 (princípios: da legali-dade, igualdade, liberdade).

Fala-se, ainda, em princípios setoriais ou em princípios especiais, cuja lógica seria a de presidir um conjunto de normas específicas sobre determinado tema ou de fornecer um detalhamento dos princípios gerais. Aqui os exemplos poderiam ser os princípios da legalidade tributária, no primeiro caso, ou o princípio da reserva legal em matéria penal, no segundo.13

10. Nesses termos, explicitando a tese de Alexy das relações condicionadas de precedência, conforme Virgílio Afonso da Silva, temos que: Esse conceito costuma ser expresso da seguinte forma: (P1 P P2) C”. Isso significa, pura e sim-plesmente, que nos casos de colisão entre dois princípios – P1 e P2 – o primeiro P1 prevalece sobre o princípio P2 apenas nas condições daquele caso C. É possível – e provável –, contudo, que em uma situação C’ seja o princípio P2 que prevaleça sobre o P1, ou seja: (P2 P P1) C’. A despeito de se tratar, nos dois casos dos mesmos princípios não é possível formular, em abstrato, uma relação de precedência entre eles. Essa relação é sempre condiciona-da à situação concreta. SILVA, Virgílio Afonso, Direitos Fundamentais, p. 50-51; ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 97-98.

11. Nessa lógica, Canotilho resume que: (...) os princípios coexistem, as regras antinômicas excluem-se. Consequente-mente, os princípios, ao constituírem exigências de otimização, permitem o balanceamento de valores e interes-ses (não obedecem, como as regras, à lógica do tudo ou nada), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exata medida de suas prescrições, nem mais nem menos. (...) em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objeto de ponderação e de harmonização, pois contém apenas exigências ou “standards” que, em primeira linha (prima facie) devem ser realizados. As regras contêm fixações normativas definitivas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1161-1162, 2003.

12. Escapa ao presente momento tecer maiores considerações sobre a distinção entre o pensamento de Alexy e Dworkin, bem como às críticas ao primeiro pensador, remetendo nosso leitor a tópico específico no capítulo sobre Hermenêutica Jurídica.

13. O que causa curiosidade, para não dizer perplexidade, é o fato de a despeito da teoria constitucional dominante, com nomes como Luís Roberto Barroso, Ana Paula de Barcellos, Humberto Ávila, Marcelo Novelino etc., concorda-rem que os princípios jurídicos são normas próprias, distintas das regras e de que os mesmos não se distinguem pelo critério de abstração (como em Alexy), em segundos depois em suas obras, ainda abraçam, ora as concep-ções de Esser e Larenz, ora de Bobbio e Del Vecchio, ou pior, tecem raciocínios que buscam apagar as diferenças histórico-paradigmáticas e de posições existentes entre esses grandes pensadores do direito, desenvolvendo, a

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Por fim, Humberto Ávila afirma, também, a existência de postulados normativos, ou princípios instrumentais de interpretação constitucional, como quer Novelino (entre outros14). Esses (postulados) devem ser entendidos como normas ainda que não previstas no texto das constituições, e que foram desenvolvidas pela doutrina e pela jurisprudência, atuando como premissas conceituais, finalísticas ou metodo-lógicas no processo de aplicação do Direito. Seriam, assim, metanormas que fixam o raciocínio, com o qual as demais normas constitucionais deveriam ser aplicadas. Como exemplos, teríamos o princípio da unidade; do efeito integrador, da concordân-cia prática; da força normativa; da proporcionalidade; da razoabilidade; da máxima efetividade, entre outros.15

3. CLASSIFICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES

Segundo a doutrina,16 os princípios estruturantes (ou fundamentais) podem ser divididos no seguinte esquema lógico: – Princípios que definem a forma, estrutura e fundamento do Estado brasileiro: art. 1º; – Princípio da divisão dos poderes: art. 2º; – Princípio que fixam os objetivos primordiais a serem perseguidos: art. 3º; e – Prin-cípios que traçam diretrizes a serem adotadas nas relações internacionais: art. 4º.

Na sequência, analisaremos alguns desses princípios estruturantes.

4. PRINCÍPIO REPUBLICANO

O princípio republicano é responsável por fixar a forma de Governo do Estado, estabelecendo a relação entre governantes e governados. A res publica (ou a coisa

nosso ver, de forma inadequada um tipo de “sincretismo”, como bem diria Virgílio Afonso da Silva. Basta ver: BAR-ROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de, O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro; ÁVILA, Humberto, Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos; e NOVELINO, Marcelo, Direito constitucional.

14. Aqui é interessante relembramos citação anterior, em que Canotilho distingue o que intitula de princípios herme-nêuticos e princípios jurídicos. Segundo ele, os princípios hermenêuticos (mais precisamente em nosso entendi-mento: cânones de interpretação) desempenham uma função argumentativa, permitindo, por exemplo, denotar a ratio legis de uma disposição ou revelar normas que não são expressas por qualquer enunciado legislativo, possibilitando aos juristas, sobretudo aos juízes, o desenvolvimento, integração e complementação do direito. Já os princípios jurídicos, conforme o professor de Coimbra, são verdadeiras normas, qualitativamente distintas de outras categorias de normas, ou seja, das regras jurídicas. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1161, 2003.

15. Mas uma vez, aqui fica um questionamento: o que se quer dizer com metanorma? E até que ponto tal afirmação não acaba por apagar novamente a dignidade jurídica dos princípios? De qualquer modo, fato é que tais autores que alegam seguir o raciocínio de Alexy e compreender que princípios não podem ser razões definitivas, mas sim relativas, passíveis de cumprimento em graus, assinam uma enorme incoerência, que Virgílio Afonso da Silva (O proporcional e o razoável) já denuncia: como seria possível cumprir em graus tais princípios? Ora, se tomarmos o exemplo da proporcionalidade, o próprio Alexy identifica aqui uma regra constitucional, e não um princípio! Ou se segue a metodologia proposta para aplicação ou não se está aplicando a proporcionalidade! O mesmo vale para outro raciocínio: não há como aplicar em graus a ideia de unidade da Constituição ou mesmo de força normativa. Será mesmo que tais autores imaginam uma situação na qual no curso da aplicação de uma norma a Constituição deixe de ser o referencial normativo para atribuirmos maior hierarquia a uma norma de Direito Civil ou de Direito Penal?

16. NOVELINO, Marcelo, Direito constitucional, p. 337.

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do povo) se caracteriza pelo fato do povo, em todo ou em parte, possuir o poder soberano, ao passo que na monarquia, tem-se apenas um governante, marcando uma oposição, principalmente, contra a tradição do Absolutismo.

Tal forma de governo tem por base a defesa da igualdade formal entre as pessoas, de modo que o poder político será exercido eletivamente, por mandato representativo, temporário.17 Destaca-se, ainda, uma característica importante na forma republicana, que é a responsabilidade: os governantes são responsabilizá-veis por seus atos, seja com sanções políticas (impeachment), seja com sanções penais e civis.

O princípio republicano, portanto, é radicalmente oposto ao princípio monár-quico, já que com base no princípio monárquico o critério de exercício do poder político se assenta na determinação de ordem genética-hereditária.

Ao se falar em República, destacamos os seguintes elementos:

1) forma de Governo que se opõe ao modelo monárquico, pois o povo é o titular do poder político, exercendo este direta ou indiretamente por meio de representantes;

2) igualdade formal entre as pessoas, pois não há tratamento estamental na sociedade, e a legislação não permite discriminações, devendo todos receber o mesmo tratamento;

3) eleição dos detentores do poder político, tais eleições marcam o caráter temporário de permanência como detentor do poder;

4) responsabilidade política do Chefe de governo e/ou do Estado, cabendo a prestação de contas de suas condutas.

Monarquia República

Vitaliciedade Temporariedade

Hereditariedade Eletividade

Irresponsabilidade Responsabilidade

Por fim, Canotilho destaca que o princípio republicano traz internamente me-canismos de criação e manutenção de instituições políticas vinculadas à decisão e à participação da sociedade (cidadãos) – o que os norte-americanos chamam de self-government. Isso implica a afirmação de autodeterminação e autogoverno,

17. CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Curso de direito constitucional, p. 492. Ver, STF: Inq 1.376-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 15-2-07, Plenário, DJ de 16-3-07.

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impondo a observância das seguintes normas: (1) representação territorial; (2) procedimento justo de seleção de representantes; e (3) deliberação majoritária.18

O princípio republicano em nosso entendimento ainda se liga (conecta) ao prin-cípio da democracia e ao princípio da igualdade (tratamento igual, ou seja, com igual respeito e consideração a todos os cidadãos que participam da esfera públi-ca), bem como também a virtudes como integridade e justiça.

Por exemplo, na ADI 4545/PR, envolvendo dispositivo normativo da Constituição do Estado do Paraná, afirmou o STF ser inconstitucional o pagamento de subsídio mensal e vitalício a ex-Governadores de Estado, assim, como o pagamento de pen-são às viúvas dos ex-ocupantes do cargo de Governador.

Segundo o STF, a instituição de prestação pecuniária mensal e vitalícia a ex--governadores corresponde à concessão de benesse que não se compatibiliza coma Constituição Federal (notadamente com o princípio republicano e o princípio daigualdade, consectário daquele), por configurar tratamento diferenciado e privi-legiado sem fundamento jurídico razoável, em favor de quem não exerce funçãopública ou presta qualquer serviço à administração.19

Já no RE 637.485, o STF decidiu que o art. 14, § 5º, da CR/88, deveria ser inter-pretado no sentido de que a proibição de segunda reeleição seria total (ampla e sem flexibilizações) e tornaria inelegível para determinado cargo de Chefe do Poder Executivo o cidadão que já cumprira 2 mandatos consecutivos (reeleito uma única vez) em cargo da mesma natureza, ainda que, por exemplo, os municípios não se-jam limítrofes ou mesmo sejam em ente da federação diverso. Essa prática agora proibida configuraria um terceiro mandato que não é permitido, configurando a intitulada figura do “Prefeito itinerante” ou “Prefeito profissional”.20

5. PRINCÍPIO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

5.1. Introdução: a conexão interna entre Direito e Democracia

O chamado Estado Democrático de Direito é também nominado pelos autores de tradição alemã como Estado Constitucional, uma vez que as aquisições históricas deixaram claro que não é a submissão ao Direito que justificaria a limitação quer do próprio Estado quer dos Governantes, mas necessariamente uma subjugação total à Constituição.

18. CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito constitucional e teoria da Constituição, 2. ed., p. 217-218.19. ADI 4545/PR, STF. Plenário. Rel. Min. Rosa Weber, julg. em 05.12.2019 (Info 962). Ver também: ADI 3418, Rel. Min.

Dias Toffoli, julg. em 20.09.2018.20. RE 637.485/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julg. 01.08.2012. Ver, AC 2821 em 25.08.2011. “(...) de acordo com a

interpretação do art. 14, § 5º, da CF, à luz do princípio republicano (CF, art. 1º, caput), não seria permitida a reeleição do requerente ao cargo de Chefe do Poder Executivo municipal, pois o novo Município teria surgido, (...) como des-membramento do primeiro, onde já exercido o mesmo cargo em 2 gestões. Dessa forma, assinalou estar presente a figura do “Prefeito itinerante”, caracterizada pela alteração do domicílio eleitoral com a finalidade de burla à regra constitucional que tolera a reeleição por uma única vez.”

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açõeS ConStituCionaiS

8Ações Constitucionais

Sumário: 1. Mandado de segurança: 1.1. Conceito; 1.2. Requisitos do Mandado de Segurança; 1.3. Espécies de Mandados de Segurança; 1.4. Direito Líquido e Certo; 1.5. Cabimento; 1.6. Legitimidade do Mandado de Segurança; 1.7. Competência no Mandado de Segurança; 1.8. Procedimento; 1.9. Decisão, Efeitos e Recursos Possíveis – 1.10. Prazo do Mandado de Segu-rança – 2. Mandado de Segurança Coletivo: 2.1. Conceito; 2.2. Finalidades; 2.3. Legitimidade do Mandado de Segurança Coletivo; 2.4. Procedimento; 2.5. Decisão e Seus Efeitos – 3. Mandado de injunção: 3.1. Conceito e Antecedentes Históricos – 3.2. Finalidades – 3.3. Espécies de Manda-do de Injunção – 3.4. Requisitos – 3.5. Legitimidade – 3.6. Competência – 3.7. Procedimento; 3.8. Decisão, recursos viáveis e o relevante debate dos efeitos da decisão concessiva da injunção – 3.9. Considerações Finais – 4. Habeas Data: 4.1. Conceito; 4.2. Cabimento; 4.3. Legitimidade; 4.4. Competência; 4.5. Procedimento; 4.6. Decisão; 4.7. Considerações finais – 5. Ação Popular: 5.1. Antecedentes Históricos; 5.2. Conceito; 5.3. Requisitos da Ação Popular; 5.4. Legitimidade; 5.5. Procedimento; 5.6. Competência; 5.7. Decisão na Ação Popular; 5.8. Considerações finais – 6. Habeas corpus: 6.1. Origem do habeas corpus, a doutrina brasileira do habeas corpus e a sua inserção nas Constituições pátrias (breve histórico); 6.2. Conceito e natureza jurídica do insti-tuto; 6.3. Algumas características da ação de habeas corpus; 6.4. Espécies de habeas corpus; 6.5. Cabimento do habeas corpus; 6.6. Legitimidade ativa e passiva; 6.7. Competência; 6.8. Procedimento, decisão e recursos cabíveis; 6.9. Considerações finais – 7. Reclamação: 7.1. In-trodução; 7.2. Conceito e Natureza Jurídica; 7.3. Hipóteses de Cabimento: 7.3.1. Para preservar a competência do Tribunal; 7.3.2. Para garantir a autoridade de decisão do Tribunal; 7.3.3. Para Garantir a Observância de Súmulas Vinculantes do STF; 7.3.4. Para garantir a observância de decisão do STF em controle concentrado de constitucionalidade; 7.3.5. Para garantir a obser-vância ao precedente proferido em julgamento de resolução de demandas repetitivas e ao precedente proferido em incidente de assunção de competência; 7.3.6. Reclamação proposta contra decisão que tenha descumprido tese fixada pelo STF em recurso extraordinário julgado sob o rito da repercussão geral. 7.4. Da Legitimidade; 7.5. Do Procedimento.

1. MANDADO DE SEGURANÇA

1.1. Conceito

Podemos conceituar o mandado de segurança como uma ação constitucional de natureza civil1 e procedimento especial, que visa a proteger direito líquido e certo lesionado ou ameaçado de lesão, não amparado por habeas corpus ou por habeas data, em virtude de ilegalidade ou abuso de poder praticado por autorida-de pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições públicas. Nesse

1. Sobre a natureza de ação civil do instituto, é corrente majoritária na doutrina pátria que o mandado de segurança mesmo impetrado no âmbito penal e processual penal (contra ato, por exemplo, de juiz criminal) não perde anatureza civil. Nesse sentido: STF – 1ª T. – HC nº 70.392 e STF 2ª T – RE nº 85.278/SP. Em relação à impetração naseara penal e processual penal podemos observar a Súmula nº 701 do STF que afirma caber a impetração domandamus contra decisão judicial em processo penal.

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sentido, temos que o mandado de segurança não deve ser encarado apenas como um procedimento civil de jurisdição especial e contenciosa, mas, mais do que isso, por força constitucional, ele se apresenta como verdadeira garantia fundamental, entre outras atinentes ao nosso Estado Democrático de Direito.

O mandado de segurança foi introduzido no ordenamento jurídico pátrio na Constituição de 19342, no art. 113, alínea 33.

Posteriormente, só é mencionado novamente pela Constituição de 1946, segui-do pela carta autoritária de 1967 e pela atual Constituição democrática de 1988, no art. 5º, LXIX. No que diz respeito à normatividade infraconstitucional, registra-se, de início, que o mandado de segurança foi disciplinado pela Lei nº 1.533/51, sendo sub-sidiário o manejo do Código de Processo Civil. Porém, recentemente, em 10.08.2009 foi publicada a Lei nº 12.016/09,3 que passou a regulamentar o mandado de seguran-ça. Esse novo diploma legal revogou a tradicional Lei nº 1.533/51 e outros arcabouços normativos que diziam respeito ao mandamus.4

1.2. Requisitos do Mandado de Segurança

Para que possamos trabalhar de forma adequada com o instituto, é mister ob-servarmos, conforme a doutrina, os requisitos necessários para a existência de um mandado de segurança. Nesses termos, seriam eles:

1º) Ato comissivo ou omissivo da autoridade pública ou agente jurídico no exer-cício de atribuições públicas. Em regra: não haverá mandado de segurança sem ato (seja administrativo, legislativo ou judicial). E o mesmo, conforme externado, deve ser praticado por autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no uso de atri-buições públicas.

Mas, a rigor, o que a doutrina e a jurisprudência entendem por autoridade pública?

Ora, por autoridade pública deve-se entender todo agente público que detém poder de decisão e é titular de uma esfera de competência. Nesse sentido, são

2. Embora existisse, antes dessa Constituição, a chamada doutrina brasileira do habeas corpus que interpretava omesmo habeas corpus de forma ampla não só para proteger a liberdade de locomoção, mas também para pro-teger o indivíduo de qualquer tipo de abuso de poder (ainda que sem relação com direito de ir e vir); inspirando, portanto, o que posteriormente foi concebido como mandado de segurança na Constituição seguinte.

3. A Lei nº 12.016/09 foi sancionada em 07.08.2009 e publicada no D.O.U de 10.08.2009 e entrou em vigor de formaimediata na data de sua publicação. Certo é que a nova Lei revogou inúmeros textos legais sobre o mandado desegurança. Porém, não inovou de maneira radical a tradicional ação do mandamus. O que a lei traz, além de umaspoucas inovações, é a consolidação em um único diploma das diversas normas concernentes ao mandado desegurança, que existiam espalhadas nos textos normativos sobre o mesmo, bem como uma plêiade de direcio-namentos jurisprudenciais sobre o remédio heroico, que já estavam sumuladas pelo STF e pelo STJ.

4. Conforme o art. 29 da Lei nº 12.016/09, foram revogadas as Leis nºs 1.533, de 31 de dezembro de 1951, 4.166, de4 de dezembro de 1962, 4.348, de 26 de junho de 1964, 5.021, de 9 de junho de 1966; o art. 3º da Lei nº 6.014, de 27 de dezembro de 1973, o art. 1º da Lei nº 6.071, de 3 de julho de 1974, o art. 12 da Lei nº 6.978, de 19 de janeiro de 1982, e o art. 2º da Lei nº 9.259, de 9 de janeiro de 1996.

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autoridades públicas os representantes da administração pública direta (União, Es-tados, Distrito Federal e Municípios) e os agentes da administração indireta (autar-quias e fundações).

Mas, atenção, pois o conceito de autoridade pública para fins de mandado de segurança é ainda mais extenso, alcançando, também os agentes que desempe-nham atividades em nome de pessoas jurídicas de direito privado cujo capital social seja majoritariamente titularizado pelo Poder Público. Estamos obviamente falando dos agentes vinculados às sociedades de economia mista e às empresas públicas, quando praticarem atos regidos pelo direito público.5

E o que a doutrina entende pela expressão agente de pessoa jurídica no exer-cício de atribuição pública?

Estes seriam os representantes de pessoas jurídicas de direito privado (em cujo capital social não há a participação do Poder Público). Sendo assim, toda vez que o particular atuar sob delegação do Poder Público seria cabível o remédio heroico.6

Mas, aqui, há uma advertência: não devemos confundir os conceitos de ativi-dades delegadas e autorizadas. Na atividade delegada, o particular desempenha função que seria de atribuição do Poder Público, possibilitando, assim, o cabimento do mandado de segurança (vide Súmula nº 510). Porém, na atividade (meramente) autorizada, tem-se apenas a fiscalização do Poder Público (com seu poder de polí-cia) em face de sua natureza ou importância social, o que não possibilita (a priori) o mandado de segurança.7 Daí a conclusão insofismável de que a simples razão deser a atividade autorizada pelo Poder Público (como, por exemplo, no caso dasescolas, seguradoras, bancos e consórcios...) não torna automaticamente viável oajuizamento da ação heroica, pois o agente de pessoa jurídica privada pode tam-bém realizar atos de interesse interno e particular. Assim, é sempre condição sinequa non a existência de delegação (ato realizado por delegação pública) para quehaja a possibilidade de impetração do writ contra particular.8

5. Se o ato estiver regido apenas pelo direito privado (atos realizados no interesse interno e particular da empresaou instituição), não caberá mandado de segurança! Aqui é importante citar uma interessante e recente delimi-tação do STJ com a edição em 2007 da Súmula nº 333, que preleciona: cabe mandado de segurança contra ato praticado em licitação promovida por sociedade de economia mista ou empresa pública.

6. Nesses termos, a súmula 510 do STF afirma que: “Praticado o ato por autoridade, no exercício de competênciadelegada, contra ele cabe o mandado de segurança ou a medida judicial” É interessante aqui, observarmos deforma extensiva que, conforme a doutrina: A expressão competência delegada deve ser compreendida comosinônimo de exercício de função pública. Onde quer que haja função pública cabe mandado de segurança, desdeque estejam presentes seus demais pressupostos constitucionais e legais. In: Mandado de Segurança, ScarpinellaBueno, Cássio, p. 22, 2009.

7. In: Mandado de Segurança. Sodré, Eduardo, p. 92, 2007.8. Nesses termos, conforme abalizada doutrina: quando o diretor de uma escola particular nega ilegalmente uma

matrícula, ou uma instituição bancária rejeita ilegalmente uma operação de crédito, ou a empresa comete uma ilegalidade no desempenho de função delegada, cabe mandado de segurança. STF, RTJ nº 66/442, RDA nº 72/206, RT nº 329/840 e Súmula nº 510; STJ REsps nº 100.941-CE e nº 101596-CE, ambos Rel. Ari Pargendler, DJU 13.10.97.Mas, quando tais entidades, por seus dirigentes, realizam atividade civil ou comercial estranha à delegação, res-pondem perante a Justiça como particulares desvestidos de autoridade pública e por isso só se sujeitam às ações

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A recente Lei nº 12.016/09, em consonância com a doutrina e jurisprudência sobre o tema, ora debatido, afirma categoricamente que “não cabe mandado de segurançacontra os atos de gestão comercial praticados pelos administradores de empresaspúblicas, de sociedade de economia mista e de concessionárias de serviço público”.

Por último, é importante deixarmos consignado que a regulamentação do manda-mus também explicita aqueles que devem ser equiparados à autoridade, reforçando, no seu texto, a necessidade do exercício de atribuições do Poder Público. Nesses termos, para esse diploma legal, “equiparam-se às autoridades, os representantes ou órgãos de partidos políticos e os administradores de entidades autárquicas, bem como os dirigentes de pessoas jurídicas ou as pessoas naturais no exercício de atri-buições do Poder Público, somente no que disser respeito a essas atribuições”.

2º) Ilegalidade ou abuso de poder. É mister que o ato seja dotado de ilegalida-de9 (entendida de forma ampla como violação no que diz respeito a: norma consti-tucional, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos, resoluções, editais de concurso, decretos regulamentares etc.) ou abuso de poder (entendido como uma ilegalidade que vai além dos parâmetros e limites permitidos por lei)10. E, segundo entendimento doutrinário e jurispruden-cial, esse ato pode ser tanto vinculado como discricionário11 (este, sobretudo, no que diz respeito a alguns pressupostos, como, por exemplo, aos elementos de com-petência, forma e finalidade, existindo resistência da doutrina e da jurisprudência apenas no que diz respeito ao cabimento de mandamus para atacar o mérito dos atos administrativos discricionários, ou seja, seus elementos motivo e objeto. Assim, o Judiciário, conforme corrente majoritária, só pode controlar a legalidade dos atos

comuns, excluindo o mandamus. Certo é que a jurisprudência vem reconhecendo a possibilidade de impetração de mandado de segurança contra agentes de: estabelecimentos particulares de ensino, sindicatos, agentes fi-nanceiros e serviços sociais autônomos (SESI, SESC, SENAI, entre outros). DI PIETRO, Maria Sylvia, Direito adminis-trativo, 2003, p. 662.

9. Nesses termos, conforme doutrina: “A ilegalidade é delimitada como contraste entre o ato cuja invalidade é pre-tendida no mandado de segurança e a norma jurídica na qual deveria ter sido (o mesmo) praticado [...] A elocução ilegalidade alcança os vícios da ilegalidade e da inconstitucionalidade, porquanto o mandado de segurança éhábil para suscitar o controle de constitucionalidade difuso, instrumentalizado pela via de exceção.” MORAES,Guilherme Peña de, 2008, p. 159.

10. Conforme a doutrina: o abuso de poder é uma ilegalidade qualificada pela arbitrariedade. Todavia pode ocorrero abuso de poder também quando o ato impugnado for formalmente legal, mas substancialmente desproporcional.ALMEIDA, Gregório Assagra de, Manual das ações constitucionais, 2007, p. 443.

11. Conforme as lições de Raquel Melo Urbano de Carvalho: [...] No tocante aos atos discricionários, não se pode imis-cuir no núcleo da conveniência e oportunidade administrativas, o que em nenhum momento significa a exclusão de qualquer controle jurisdicional como ortodoxamente já se defendera no Direito Administrativo. Atualmente, pode o Judiciário aferir os aspectos vinculados do ato que seja discricionário no conteúdo e/ou no motivo. Um ato discricio-nário quanto ao conteúdo pode ter, p. ex., o sujeito, a finalidade, o motivo, e a forma fixados de modo vinculado nalei. Nesse caso, incumbe ao magistrado verificar os pressupostos (subjetivo, teleológico e fático) e o elemento formal vinculado da atuação administrativa. Outrossim, no tocante à discricionariedade, impõe-se uma interpretação sis-têmica do ordenamento constitucional, das normas legais e administrativas de regência, de modo a definir qual éa margem de liberdade que, de fato, remanesce naquele caso concreto. Deve o judiciário delimitar os contornos da discricionariedade (ação dentro dos limites da lei) a fim de evitar que, com base nela, possa o administrador resvalar em comportamento arbitrário (ação fora dos limites da lei). Curso de direito administrativo, 2008, p. 567-568.

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administrativos discricionários de outros Poderes, mas não pode controlar o mérito dos mesmos).12

3º) Lesão ou ameaça de lesão a direito líquido e certo. Nesses termos, o man-dado de segurança poderá ser tanto repressivo quanto preventivo. O primeiro para cessar com a lesão a direito líquido e certo e o segundo para evitar a lesão a direi-to líquido e certo.

4º) Requisito da subsidiariedade: o ato dotado de ilegalidade ou abuso de poder que lesiona (ou ameaça de lesão) direito líquido e certo não pode ser ampa-rado por habeas corpus (art. 5º, LXVIII, da CR/88) ou habeas data (art. 5º, LXXII, da CR/88).13

1.3. Espécies de Mandados de Segurança

Tradicionalmente, temos a diferenciação do mandado de segurança em repres-sivo e preventivo. O primeiro visa a cessar a lesão a direito líquido e certo já existente e o segundo objetiva a evitar a lesão a direito líquido e certo em virtude de ameaça concreta (demonstração de atos ou situações atuais que configurem a ameaça ou risco de lesão ao direito subjetivo14).

1.4. Direito Líquido e Certo

Conforme entendimento doutrinário15 e jurisprudencial, o direito líquido e certo é aquele direito comprovado de plano, que resulta de fato certo, com prova

12. Nesse sentido, explicita Raquel Carvalho que: [...] O controle judicial, destarte, é possível para aferir a juridicida-de que condiciona os limites da liberdade outorgada à Administração. Não se legitima a invasão do espaço dedecisão política reservado ao Poder Público, sob pena do magistrado transmutar-se indevidamente em adminis-trador, substituindo, por seus próprios critérios de escolha, a opção feita pela autoridade competente com baseem razões de oportunidade e conveniência que ela, melhor do que ninguém, pode decidir diante de cada caso concreto [...] (Curso de direito administrativo, 2008, p. 567-568). Na mesma linha, Celso Antônio Bandeira de Mello,Curso de direito administrativo, 2006, p. 837 e 850. Mas, aqui, é bom que se diga, que a cada dia mais, teorias vemsendo desenvolvidas para enfrentar os limites dos atos discricionários (e a atuação do administrador com baseneles). Essas, à luz de um intitulado “ativismo judicial”, visam a ampliar o nível de controle judicial sobre os mes-mos, com fundamentos em princípios como o da proporcionalidade.

13. Exemplos: 1) À luz do art. 5º, XVI, da CR/88 é marcada uma reunião para determinado logradouro com fins líci-tos, pacífica e sem armas e com prévio aviso às autoridades competentes. Se o destacamento da Polícia Militarpor ordem de seu comandante impede a passagem dos manifestantes para não deixar que aconteça a reunião, caberia o manejo de um Mandado de Segurança ou de um Habeas Corpus? A resposta correta seria o mandado de segurança, pois o cerceamento da passagem foi o meio para atingir o fim, qual seja, cercear o direito de reu-nião. Portanto, se o direito não estiver amparado pelo artigo 5º, incisos LXVIII e LXXII, da CR/88, caberá Mandado de Segurança, tendo em vista a subsidiariedade. 2) Um cidadão solicita certidão em repartição pública na qualtrabalhou para fins de aposentadoria e lhe é negado esse direito. Apesar de ser dado da pessoa do impetrantesolicitado e em banco de dado público, o remédio constitucional será o Mandado de Segurança (art. 5º, LXIX) e não o habeas data (art. 5º, LXXII), em virtude do direito de certidão pleiteado estar alocado no art. 5º, XXXIV, e não no acima referido art. 5º LXXII. Portanto, essa é a lógica da subsidiariedade.

14. Conforme o STF – 2º T. – RE nº 106.849/SC e o STJ – 3ª T. Ms nº 6.971 – rel. Min. José Arnaldo Fonseca, DJU, 20.11.2000, p. 266.

15. Certo é que, de longa data, a questão do direito líquido e certo, que se direcionava à certeza (ou incerteza) do direi-to, foi deslocada na doutrina pátria para a necessidade de comprovação dos fatos. Portanto, direito comprovado