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1 Boletim Informativo IBRASPP - Ano 04, nº 06 - ISSN 2237-2520 - 2014/01 Barganha e acordos no Processo Penal: Crítica às tendências de expansão da justiça negociada no Brasil Comparação de perfis genéticos como prova no Processo Penal: Entre o sucesso dos métodos tecnológicos e a relativização de garantias Investigação criminal pelo MP: Entre eficiência e garantias O Problema da garantia da intimidade frente aos meios eletrônicos de investigação e de prova Prisão preventiva decretada de ofício pelo juiz e o sistema acusatório Sistemas processuais, a produção da prova e os sujeitos do processo penal “Vocês são os mortos”

Boletim Informativo IBRASPP - Ano 04, nº 06 - ISSN 2237-2520

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Boletim Informativo IBRASPP - Ano 04, nº 06 - ISSN 2237-2520 - 2014/01

Barganha e acordos no Processo Penal: Crítica às tendências de expansão da justiça negociada no Brasil

Comparação de perfis genéticos como prova no Processo Penal: Entre o sucesso dos métodos tecnológicos e a relativização de garantias

Investigação criminal pelo MP: Entre eficiência e garantias

O Problema da garantia da intimidade frente aos meios eletrônicos de investigação e de prova

Prisão preventiva decretada de ofício pelo juiz e o sistema acusatório

Sistemas processuais, a produção da prova e os sujeitos do processo penal

“Vocês são os mortos”

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EDITORIALRemando contra a maré das racionalidades fáceis

Em pouco se pode discordar dos velhos adágios básicos sobre o conceito e a função processual da prova, em que pese já seja bem sabido que ela não é apenas a “lanter-na que ilumina o passado” (diriam Malates-ta e seus contemporâneos), se não a ferra-menta com a qual uma versão específica do passado é construída. No jogo processual, a prova é, igualmente, caminho pelo qual a realidade assumida transita, como também direcionador dos rumos e das consequên-cias dessa realidade.

Na busca pela democratização do processo penal brasileiro, e sua reflexão constitucio-nalização cotidiana, as premissas infor-madas pela Carta de 1988 impõem uma abordagem inteiramente nova sobre a me-cânica probatória do processo penal, bem como uma revisão de conceitos que é tão pragmática quanto política, em si: o aban-dono de certas veredas de conceituação, bem como de certas definições e práticas desalinhadas da programação constitucio-nal (e do próprio núcleo de um processo penal assumidamente comprometido com as garantias individuais e sua maximiza-ção) deveria ser tão evidente quanto o é o constatar de que a estrada a ser percorrida nesse sentido ainda é longa.

Prejudicado, de um lado, por um caldo de cultura que associa o processo penal às funcionalidades punitivas (e punitivistas) de certas visões de política criminal, e por outro pela pétrea racionalidade advinda da doutrina processual-civilista de forte in-fluência doutrinária e legislativa em nosso país, o estudo da prova em âmbito proces-sual-penal ainda carece de uma defesa de ‘independência’, antes de qualquer coisa. A jurisprudência majoritária bem como um volumoso corpo dogmático ainda prefere igualar matrizes e ignorar deliberadamen-te a especificidade técnica e conceitual que o estudo da prova no âmbito do processo penal precisa ter, em busca de ‘objetivos’ incondizentes com o próprio cerne de sua funcionalidade.

Rumando equivocadamente para o cami-nho mais fácil e aparentemente mais ‘se-guro’ (em termos ‘midiáticos’), a premissa básica de que há de se interpretar o ônus

probatório – mesmo em matéria crimi-nal – tendo-se por base a ideia de que ele pertence a quem ‘alega’ é adotada de modo ‘oficial’, pouco importando a brutal dife-rença de conteúdo e de instrumentalidade relativos ao processo penal frente às demais situações processuais. Nessa mesma linha de raciocínio, são (infelizes) tendências perenes, a relativização dos ditames legais relativos às regras de produção probatória em juízo (sempre em detrimento das ga-rantias do acusado), e especialmente a ba-nalização total do binômio regras/exceções legais no que diz respeito à vedação (cons-titucional e legal) do uso de provas obtidas ilicitamente e suas correlações.

Manifestações jurisdicionais e doutrinárias que enxergam o óbvio principiológico são, nesse contexto, atacadas, em uma inversão ideológica, como aquilo que legitimamen-te o são e por serem justamente o que são. A banalização não só é trilha massificada: é populista, sofista e está enraizada. Aqui-lo que se define por baixa-intensidade do constitucionalismo brasileiro é visível de modo claro no estudo e na prática da lida com a prova no processo penal em territó-rio pátrio.

Nesse aspecto, principalmente, reside o ‘olho do furacão’ da nossa era: nunca fora tão preciso ampliar alguns conceitos e tra-balhar com um leque maior (e que clama por controle e discussão) quanto o das provas ditas ‘inominadas’: a evolução de técnicas investigativas, a difusão total do uso de meios tecnológicos, o avanço cien-tífico para (antes) incríveis possibilidades de ‘conclusões’, entre outros, pretendem cobrar um preço caro para seu ingresso no universo processual. Diante do quadro já formatado de ideário da doxa jurídico--processual brasileira, é evidente que toda essa gama de procedimentos e ‘resultados’ oriunda dos ‘novos’ meios de prova entra no processo com o passaporte epistemoló-gico que une ciência, evidência e verdade, em si. E é justamente com esse tipo de in-clusão que se deve ter cuidado, e é essa ade-são simplória que deve ser objetada.

As ‘cláusulas pétreas’ do constitucionalis-mo processual-penal informam todo um

conjunto de ditames que precisam ser res-peitados. E, mais: têm a difícil missão de advogar em favor da dolorosa (porém im-prescindível) ideia de que há que se admi-tir que as construções nascidas da situação processual (cambiante) não passam disso – construções – e justamente porque não vi-sam ser realidade in natura, mas a realida-de optativa e democraticamente possível de ser extraída após filtrada por um conjunto de elementos que estão ali justamente para servir de escudo contra o arbítrio.

Na batalha para ajustar o ‘arbítrio’ e a ‘afronta’ à democracia no lado oponente, é missão ainda mais complexa desbastar a argumentação de que há, de um lado, o compromisso com a ‘verdade’ (real) e em outro, ilusoriamente, o apego apenas à ne-cessidade de se ‘defender’ um lado. O jogo político-jurídico em relação a o que é a democracia e como ela pode ser (proces-sualmente) vivificada é muito mais denso, mas isso é algo que o ideário reacionário e autoritário sempre foi ardiloso em ocultar diante de seus truques encantadores. É lo-gicamente mais cômodo o lado da conten-da que crê defender a imortalidade de um conceito absoluto como a ‘verdade’ ante a uma dita ‘mentira programada’. A ausên-cia de questionamento quanto à própria ‘verdade’ enquanto valor, e a assunção da diferença de mundos entre o cotidiano e a ‘segurança jurídica’ parece, pelo visto, algo a ser relevado por alguns apenas nos mo-mentos e nos temas que lhes convém.

Entre os dias 12 e 13 de Setembro de 2013, o Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal (IBRASPP) realizou em Porto Alegre--RS (com transmissão internética simultâ-nea para diversas cidades do país e mesmo do exterior, como Buenos Aires-Arg., Sal-vador-BA, Rio de Janeiro-RJ, Passo Fundo e Santa Cruz do Sul, ambas no Rio Grande do Sul), a terceira edição do Encontro Nacional de Direito Processual Penal. Pesquisadores e estudiosos do Brasil inteiro estiveram reu-nidos em palestras e debates sobre o tema--base da discussão dessa edição, que girou justamente em torno dos desafios contem-porâneos e novas frentes de contato relati-vos à prova no processo penal.

Sócios-fundadores

Diretoria/PresidenteVice-Presidente

1o Secretário2o Secretário

TesoureiraDepartamento Editorial

Departamento Científico

Coordenadorias Regionais

Conselho Consultivo

Coordenadores RegionaisBahiaCeará

Distrito FederalGoiás

MaranhãoMato Grosso do Sul

Paraná

RondôniaSão Paulo

Santa CatarinaRio de Janeiro

Rio Grande do Sul

Nereu José GiacomolliAndré Machado MayaNereu José GiacomolliAndré Machado MayaGuilherme Rodrigues AbrãoMarcelo Almeida Sant’AnnaDenise Jacques MarcantonioAndré Machado MayaDenise LuzVitor Guazzelli PeruchinGuilherme Rodrigues AbrãoFabiano Kingeski ClementelCristina Carla di GesuAlexandre Morais da RosaAlexandre WunderlichAury Lopes Jr.Fabrício Dreyer de Ávilla PozzebonFauzi Hassan ChoukrGeraldo PradoJacinto Nelson de Miranda CoutinhoLuis Gustavo Grandinetti C. CarvalhoMaria Thereza Rocha de Assis MouraMaurício Zanoide de Moraes

Marcelo Fernandez UraniNestor Eduardo Araruna SantiagoEdimar Carmo da SilvaFelipe Vaz de QueirozThayara Silva Castelo BrancoRoberto Ferreira FilhoAline GuidalliFrancisco Monteiro Rocha Jr.Alexandre MatzenbacherJoão Paulo Orsini MartinelliMaciel ColliDiogo Rudge MalanLeonardo Costa de PaulaLuiz Fernando Pereira NetoSalah Hassan Khaled Jr.Bruno Seligman de Menezes

Fundado em 02/03/2010

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Unindo juristas comprometidos em remar contra mais essa maré, o evento foi ponta de lança para a discussão sobre como se poderia trabalhar para reforçar o com-promisso democrático-constitucional em relação a esse imprescindível elemento da lógica processual, e igualmente para deba-ter estratégias e definições em relação aos conteúdos e novos dogmas que parecem querer se imiscuir no ambiente do proces-so penal brasileiro sem qualquer tributo à imperatividade constitucional e à demo-cratização do processo ainda em processo lento de lapidação.

O conteúdo dessa edição do Boletim In-formativo do IBRASPP reúne não apenas textos relativos às manifestações de alguns dos participantes do evento em questão, como opiniões embasadas de outros pro-cessualistas igualmente sensíveis à temáti-ca e à gravidade da nova (velha) cantilena que procura se apropriar ideologicamente dos ditames republicanos e – sem rubor - invertê-los inteiramente. Enquadra igual-mente, manifestações sempre preocupadas em fazer frente a esse coro que ignora todo o leque de direitos fundamentais enquanto conquistas fundamentais a ser defendidas com unhas e dentes em prol não só, espe-cificamente, daqueles que se encontram fragilizados no momento da situação pro-cessual inicial, mas, de forma óbvia e ge-neralizada, em homenagem à própria exis-tência da democracia em si.

Paradoxalmente ao que alguns desavisa-dos (ou mal intencionados) apregoam, o cuidado e uma assumida intencionalidade no trato com a ‘lanterna’ e com o alcance de seu facho na busca (por vezes, doentia, frenética) pelo ‘passado’ é pauta constan-te de um debate democrático que assim o é e deve ser apenas quando tiver ciência de sua própria necessidade de limitação e delimitação.

Estrutura e Organização Editor-Chefe

Assessoria Editorial

Conselho Diretivo

Conselho EditorialIntegrantes estrangeiros

Integrantes nacionais

André Machado MayaCleopas Isaias SantosDenise LuzGabriel DivanMarcelo Sant’AnnaAndré Machado MayaNereu José GiacomolliGuilherme Rodrigues AbrãoGiovani Agostini Saavedra

Juán Montero Aroca - EspanhaTeresa Armenta Deu - EspanhaMaría Félix Tena Aragón - EspanhaRaul Cervini - UruguaiRafael Hinojosa Segovia - EspanhaDaniel Obligado - ArgentinaRui Cunha Martins - PortugalAlexandre Morais da RosaAury Lopes Jr.Diogo Rudge MalanElmir Duclerc Ramalho JuniorFauzi Hassan ChoukrGiovani Agostini SaavedraGustavo H. R. I. BadaróJosé Antonio Paganella BoschiLeonardo Augusto Marinho MarquesMarcelo Caetano Guazzelli PeruchinMarcelo Machado BertolucciMarcos EberhardtMarcos Vinícius Boschi Marta Gimenes Saad

Revista e Boletim IBRASPP

EditoraPlanejamento Gráfico

Linha editorial

Periodicidade

AtlasColosseo Design Processo Penal, Direitos Humanos e DemocraciaSemestral

Álvaro Roberto A. FernandesAndré Luiz NicolittAramis NassifAugusto Jobim do AmaralDécio Alonso GomesDouglas FischerEduardo Pitrez CorreaGabriel Ferreira dos SantosJoão Batista Marques TovoLisandro Luis WottrichMarcio BarandierMiguel Wedy Ney Fayet Junior Odone Sanguiné Paulo Fayet Rafael Braude CanterjiRicardo Gloeckner Roberto Kant de Lima Rodrigo Ghiringhelli de AzevedoRômulo de Andrade MoreiraSimone SchreiberThiago BottinoVera Regina Pereira de Andrade Walter Bittar

Conselho de Pareceristas

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Barganha e acordos no Processo Penal: crítica às tendências de expansão da justiça negociada no Brasil

Vinicius Gomes de Vasconcellos

Em meio aos muitos fatores que permeiam o debate acerca do sistema criminal brasi-leiro, certamente a grande quantidade de processos e a habitual morosidade em seus julgamentos são pontos discutidos direta ou indiretamente pela grande maioria dos críticos. Tal cenário acaba por justificar demandas de atores do campo criminal e da sociedade em geral por ações estatais visando a acelerar o transcorrer dos julga-mentos criminais. É a partir daí que ten-dências internacionais de sumarização de procedimentos e relativização de garantias se fortalecem e se tornam pauta no debate político-criminal brasileiro.1 Nesse sentido, um dos principais meios de aceleração da resolução de processos penais é a antecipa-ção da punição por meio de acordos e bar-ganhas entre acusação e defesa (FERNAN-DES, 2005, p. 192).

Assim, a expansão dos espaços de con-senso é cristalina tendência internacional, que se faz presente também em âmbito brasileiro. Aqui, apontam-se as previsões contidas nos projetos de Lei do Senado Federal 156 de 2009 (reforma global do Código de Processo Penal) e 236 de 2012 (reforma global do Código Penal), ambos

introduzindo maiores possibilidades de consenso, por meio de acordos denomina-dos “procedimento sumário” e “barganha”, respectivamente, e inspirados no modelo estadunidense da plea bargaining.2 A de-finição de um conceito de mecanismo de barganha é complicada, devido às particu-laridades assumidas pelo instituto em cada ordenamento jurídico. Entretanto, John Langbein (1978, p. 08) aponta que ele se realiza “quando o promotor induz o acusado criminalmente a confessar sua culpa e a re-nunciar ao seu direito a um julgamento em troca de uma sanção penal mais branda da que poderia ser imposta se o acusado fosse julgado culpado ao fim do processo”.

Importante definir que, em regra, o siste-ma de barganha acarreta a relativização do princípio da obrigatoriedade da ação penal de iniciativa pública (ARMENTA DEU, 1991, p. 208), característico do ordenamen-to processual penal brasileiro (JARDIM, 1998, p. 93-94). Assim, resta fortalecida a admissão da não-obrigatoriedade, que possibilita uma certa discricionariedade do órgão acusador no manejo de seu po-der de atuação. Entretanto, existe cenário intermediário, que se define a partir dos es-paços consensuais na justiça criminal, pois, conforme Nereu Giacomolli (2006, p. 72): “ao gênero permissão legal de oportunidade há que se acrescentar as formas de consenso, as quais podem ser ilimitadas – plea bar-gaining –, ou ocorrer uma autorização legal para que tenham eficácia – sistema conti-nental –, com ou sem controle jurisdicional, dependendo do ordenamento jurídico”.

Vinicius Gomes de VasconcellosMestrando em Ciências Criminais pela PUCRS. Pós-graduado em Justiça Penal pela Universidade Castilla-La Macha (Toledo/Espanha). Bacharel em Direito pela PUCRS. Bolsista de Iniciação Científica CNPq/PIBIC (2009/2012).

Conforme Alberto Bovino (2005, p. 59), quase 90% das condenações criminais nos Estados Unidos são impostas com a renúncia do acusado à garantia do devi-do processo legal, tornando letra morta a garantia constitucional do julgamento por júri. Assim, pode-se analisar a propensão à expansão dos espaços de consenso na justiça criminal brasileira como sinal da relativização de garantias fundamentais do processo, com o fim de estabelecer meios céleres e abreviados para a concretização antecipada do poder punitivo, de modo a dar vazão à incessante ampliação do con-trole social por meio do Direito Penal. Nes-te sentido, observa Gabriel Anitua (2005, p. 158): “como conclusão se pode advertir que um processo penal com as característi-cas de ‘eficiência’ definidas com a promoção desta figura necessariamente terá efeitos contraproducentes. Não só em curto prazo com a configuração de uma sociedade re-pressiva, mas também a longo prazo para sustentar a superestrutura jurídica que, de alguma forma, brinda possibilidades de melhora social.”

Como se percebe, pode-se sustentar que ins-titutos correlatos ao plea bargaining violam frontalmente os fundamentos de um pro-cesso penal adequado ao Estado Democrá-tico de Direito, ao passo que introduzem a postura utilitarista e eficientista no núcleo de seus princípios reitores. Tal cenário acar-reta distorções por sua constante excepcio-nalidade, pois, conforme Ricardo Gloeckner (2009, p. 300): “exceções estas que ganham cada vez mais corpo, passando a se tornar a normalidade, gerando um processo penal cada vez mais defectivo em sua função de proteção e, por outro lado, cada vez mais ati-vo em sua função promocional, procurando oferecer a todo custo, funcionalidade ao siste-ma”. Assim, pode-se citar, ilustrativamente (em razão da concisão do presente artigo), diversas críticas ao instituto, como em re-lação à suposta autonomia e igualdade das partes para negociarem, o ressurgimento da confissão como rainha das provas, a viola-ção do sistema acusatório a partir do forta-lecimento do acusador e a relativização da essencial garantia do devido processo legal.

[...] pode-se analisar a propensão à expansão dos espaços de consenso na justiça criminal brasileira como sinal da relativização de garantias fundamentais do processo [...]

Em âmbito nacional, foi editada em 1995 a Lei 9.099, que instituiu os Juizados Espe-ciais Criminais, prevendo o procedimento sumaríssimo no processo penal brasileiro e introduzindo mecanismos consensuais, como a transação penal e a suspensão con-dicional do processo. Tal diploma, portan-to, apresenta características que podem ser estudadas, visando ao questionamento da adequação e da pertinência das propostas aqui analisadas. Neste sentido, em sede crítica, pode-se apontar que a introdução de espaços de consenso no justiça criminal brasileira, por meio dos institutos da tran-sação penal e da suspensão condicional do processo, embora cabíveis em casos limita-dos pelo texto legal, resultou na expansão do controle punitivo estatal nas relações sociais. Ou seja, a legislação inovadora pode ter trazido efeitos diversos daqueles aparentemente pretendidos.

Parte da doutrina percebeu reflexos intri-gantes trazidos pela Lei 9.099/95 e seus no-vos espaços de consenso. Conforme Maria Lúcia Karam (2004, p. 38), “no Brasil, não muito tempo depois da criação dos juiza-dos especiais criminais, já se percebia esta ‘economia’ funcional ao agigantamento do sistema penal”. A partir do ressurgimen-to do controle estatal em delitos menores ou até insignificantes (crimes de menor potencial ofensivo), pode-se dizer que tal inovação resultou em uma expansão do campo de controle social do sistema cri-minal, de modo a desvirtuar por completo os fins de sua redação (desburocratização e despenalização).

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Portanto, as tendências de expansão dos espaços de consenso na justiça criminal brasileira precisam ser analisadas critica-mente com rigor, considerando seus possí-veis efeitos em relação ao aumento do âm-bito de controle social por meio do poder punitivo estatal. Assim, tal tema apresenta relevância ímpar na estruturação do futu-ro do processo penal brasileiro, de modo a reafirmar ou relativizar direitos fundamen-tais e garantias constitucionais.3

Referências:

ANITUA, Gabriel Ignacio. El juicio penal abreviado como una de las reformas penales de inspiración estadouniden-se que posibilitan la expansión punitiva. In: MAIER, Julio B. J.; BOVINO, Alberto (comp.). El procedimiento abreviado. Buenos Aires: Del Puerto, 2005.

ARMENTA DEU, Teresa. Criminalidad de Bagatela y Principio de Oportunidad: Alemania y España. Barcelo-na: PPU, 1991.

BOVINO, Alberto. Procedimiento abreviado e juicio por jurados. In: MAIER, Julio B. J.; BOVINO, Alberto (comp.). El procedimiento abreviado. Buenos Aires: Del Puerto, 2005.

FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria Geral do Proce-dimento e O Procedimento no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, Oportunidade e Consenso no Processo Penal. Na perspectiva das garantias constitucionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Risco e Processo Penal. Uma análise a partir dos direitos fundamentais do acusa-do. Salvador: Juspodivm, 2009.

JARDIM, Afrânio Silva. Ação Penal Pública. Princípio da obrigatoriedade. 3a edição. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

KARAM, Maria Lúcia. Juizados Especiais Criminais. A concretização antecipada do poder de punir. São Paulo: Editora RT, 2004.

LANGBEIN, John H.. Torture and Plea Bargaining. The University of Chicago Law Review, vol. 46, n. 1, p. 3-22, 1978.

________. On the Myth of Written Constitutions: The Di-sappearance of Criminal Jury Trial. Harvard Journal of Law and Public Policy, vol. 15, n. 1, p. 119-127, 1992.

LANGER, Máximo. From Legal Transplants to Legal Translations: The Globalization of Plea Bargaining and the Americanization Thesis in Criminal Procedure. In: THAMAN, Stephen C. (ed.). World Plea Bargaining. Durham: Carolina Academic Press, 2010. p. 03/80.

Notas

1 THAMAN, Stephen C. (ed.). World Plea Bargaining. Consensual Procedures and the Avoidance of the Full Criminal Trial. Durham: Carolina Academic Press, 2010; MAIER, Julio B. J.; BOVINO, Alberto (comps.). El procedimiento abreviado. Buenos Aires: Del Puerto, 2005.

2 Por certo, existem marcantes diferenças entre o instituto estadunidense e aqueles existentes ou propostos ao orde-namento brasileiro, entretanto sua influência não pode ser totalmente afastada. Sobre a importância de tendências estrangeiras, especialmente do modelo norte-americano em sistemas da civil law, ver: LANGER, Máximo. From Legal Transplants to Legal Translations: The Globalization of Plea Bargaining and the Americanization Thesis in Cri-minal Procedure. In: THAMAN, Stephen C. (ed.). World Plea Bargaining. Durham: Carolina Academic Press, 2010. p. 03/80.

3 Tal conclusão é a hipótese que permeia a realização de pesquisa para dissertação de mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, sob orientação do prof. Dr. Nereu Giacomolli. Assim, o presen-ta artigo é convite para o aprofundamento crítico do tema, o qual será explorado no referido trabalho.

O DEVIDOPROCESSO PENALABORDAGEM CONFORME A CONSTITUIÇÃO FEDERALE O PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA

AbordagemInédita no

Brasil

CONHECIMENTOQUE SE RENOVAA CADA DIA

NEREU JOSÉGIACOMOLLI

1ª edição (2014)456 páginas

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Comparação de perfis genéticos como prova no processo penal: entre o sucesso dos métodos tecnológicos e a relativização de garantias

Introdução

Sob os signos de ferramenta eficaz de com-bate à criminalidade (como redutor da im-punidade) e confiável meio de prova é que foi aprovada a Lei no 12.654/12, prevendo a coleta de perfil genético como hipótese de identificação criminal (!), quando es-sencial às investigações policiais (delito em apuração naquele procedimento preli-minar) e em relação a condenados por cri-mes hediondos ou dolosos praticados com violência de natureza grave contra a pessoa (procedimentos criminais futuros).

Mais tarde, através do Decreto no 7.950/2013, foram instituídos o Banco Nacional de Perfis Genéticos, para arma-zenamento de dados de perfis genéticos coletados para subsidiar ações destinadas à apuração de crimes, e a Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos, permitin-do-se o compartilhamento e a comparação de perfis genéticos constantes dos Ban-cos de Perfis da União, dos Estados e do Distrito Federal.

[...] apesar da eficiência prometida pelos apoiadores da Lei no 12.654/12, estamos atrasados!

Marcos EberhardtAdvogado. Professor da PUCRS e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS.Rodrigo ScalonBacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS. Integrante do Grupo de Pesquisa Processo Penal Contemporâneo da PUCRS.

Marcos EberhardtRodrigo Scalon

O DNA como prova: verdade absoluta ou mera auxiliariedade processual (?)

A dogmática processual penal é gestada na possibilidade de recriar um aconteci-mento passado através da recapitulação de informações probatórias na qual a ver-dade “seria atingida pelo juiz através da livre apreciação da prova” (CARVALHO, 2010, p. 56). Trata-se, principalmente, de um método cartesiano que auxiliará o julgador a suportar os motivos do seu (já formado) convencimento.

Na prova pericial, o seu destinatário se convence a partir de um conteúdo técnico--científico em relação ao qual são remotas as perspectivas de erros, ofuscado, sobre-tudo, pelo discurso sedutor e utilitarista da certeza absoluta (a “verdade” virá à tona!). O pressuposto guia nesse sentido é a con-sagração do desejo mais íntimo do julga-dor: a identificação do autor do fato atra-vés da genética. Tudo se resume a buscar sinais do delito e fazê-lo dizer, mirando a extração de uma verdade (mito!) histórica (CORDERO, 2003, p. 594-595).

Apesar dos limites impostos pelo próprio CPP (toda prova é relativa), a partir do laudo, indicando como positiva a com-paração de perfis genéticos do suspeito/investigado com aquele encontrado na cena do crime, as sentenças implicarão na mesma sistemática padronizada na qual se subscrevem que “o réu está sendo julgado com base nas provas colhidas no processo, quando, na verdade, os juízes continuarão utilizando as clássicas viradas linguísticas do ‘cotejando’ a prova judi-cializada com os elementos do inquérito” (MARTINS, 2010, p. 31).

O cientificismo da prova, como caracterís-tica inquisitiva, sempre teve por bem afas-tar o magistrado (e também as partes) dos equívocos de valoração, indicando, portan-to, para evitar a assunção de riscos, a pre-valência da perícia em relação aos demais meios de prova, podendo relativizar inclu-sive confissões.

Não bastassem tais inquietações, o valor probatório da perícia encontra (ou já de-veria ter encontrado!) limites na ausência de contraditório pleno (FERNANDES, 2005, p. 61) já que, comumente realizada e juntada no curso das investigações, poderá ser efetivamente contestada apenas tardia-mente, preferencialmente pela atuação de assistentes técnicos e formulação de quesi-tos no curso da ação penal.

Contraprova e assistente técnico na fase pré-processual: problemas à vista

Diante das considerações anteriores e a especificidade das perícias, bem como de toda complexidade que envolve a cadeia de custódia – não detalhada pela lei até o momento (nem a tipicidade de tal mode-lo pericial foi especificada pela legislação!) –, a possibilidade de contraditório, pela defesa e pelo Ministério Público, torna-se exigência como oposição ou resistência e, principalmente, influência (GRINO-VER, 2007, p.145). O apregoado alto grau de confiabilidade do exame do DNA tor-na evidente a necessidade de contraprova imediata e efetiva.

Assim, em nosso atual modelo processual penal, mesmo que a perícia pudesse ser repetida – na fase judicial – ou questiona-do o perito em audiência a partir de con-traprova de assistente técnico nomeado, a defesa/assistência técnica já teria perdido a chance de acompanhar a evolução da cadeia de custódia até a comparação dos perfis genéticos.

Imaginando-se apenas para argumentar que todos os clientes da Justiça Criminal possam dispor de assistentes técnicos, a realidade do processo penal brasileiro é outra! É cada vez mais incentivada a quali-ficação e criação de meios de prova ineren-

Em apertada síntese, o perfil de DNA, ex-traído das amostras coletadas a partir de vestígios biológicos presentes em locais de crime, poderá ser comparado, em proce-dimento pericial e respeitadas as (poucas) determinações contidas na legislação apli-cável, com os perfis de DNA de suspeitos/investigados ou condenados.

Na linguagem do projeto (PLS no 93/2011), a utilização do DNA em matéria criminal trará a aceleração da resposta à sociedade, com significativo aumento da eficiência do sistema penal, sendo determinante no combate à impunidade. O aparato tecno-lógico ganha importância, assim, como medida de contenção dos altos índices de crimes graves sem elucidação (cold cases), seguindo orientação da legislação estran-geira – que discutiu amplamente os con-tornos do uso da tecnologia e harmoniza-ção com o sistema processual penal.

Para além das conhecidas posições sobre o tema, a proposta deste curto escrito não é discutir a eficiência do DNA como meio de prova, da qual não duvidamos, mas sim contextualizar esta nova modalidade peri-cial com o atual modelo de processo penal brasileiro, indicando evidentes descom-passos e sugerindo alternativas.

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tes à investigação sem, contudo, especificá--los, obstando a atuação efetiva das partes em tais circunstâncias.

Nessa perspectiva, o Código de Processo Penal Português, por exemplo, ao indicar os meios de obtenção da prova, disciplina que “Ao exame só assistem quem a ele pro-ceder e a autoridade judiciária competente, podendo o examinando fazer-se acompa-nhar de pessoa da sua confiança, se não houver perigo na demora, e devendo ser informado de que possui essa faculdade.” (art.172o, 3).

Não é só, em Portugal a Lei n.º 5/2008, apesar das merecidas críticas (BOTELHO, 2013, p.253), ao criar a base de dados de perfis de DNA para fins de identificação civil e criminal, definiu princípios gerais, finalidades e especificou em várias pers-pectivas a coleta de amostras, tratamento de dados, fiscalização e custódia. Discipli-nou ainda, em seu art.38, que “Em caso al-gum é permitida uma decisão que produza efeitos na esfera jurídica de uma pessoa ou que a afecte de modo significativo, tomada exclusivamente com base no tratamento de dados pessoais ou de perfis de ADN”.

De tudo isso, fica fácil concluir que, apesar da eficiência prometida pelos apoiadores da Lei no 12.654/12, estamos atrasados! Nosso sistema processual penal ainda não está preparado para, aliado às tecnologias vinculadas aos novos meios de prova, per-mitir decisões judiciais amparadas em de-bates construídos a partir do contraditório pleno das partes.

Cabe referir, no entanto, que o PLS no156/2009, disciplinando a figura do juiz de garantias num processo penal alicer-çado em contraditório, parece fortalecer a paridade de armas, permitindo a partici-pação efetiva dos envolvidos na discussão do caso criminal. É o que demonstram, por exemplo, as disposições do art. 14 daquele projeto, ao disciplinar que compete ao juiz de garantias deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a pro-dução da perícia (Inciso XVI).

Apesar da indicação de alguns pontuais descompassos da Leio 12.654/12, o que se

Referências:

BOTELHO, Marta Maria Maio Madalena. Utilização das técnicas de ADN no âmbito jurídico: em especial, os pro-blemas jurídico-penais da criação de uma base de dados de ADN para fins de investigação criminial. Coimbra. Al-medina. 2013.

CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2010.

CORDERO, Franco. Procedurapenale. Milano: Giuffrè. 2003.

FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitu-cional. RT. 2005.

GRINOVER, Ada Pellegrini. As Nulidades no Processo Pe-nal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 145.

MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito. Rio de Janei-ro. Lumen Juris. 2010.

espera é que a comparação de perfis gené-ticos realmente possa tornar a investigação mais eficiente, mas desde que sejam asse-guradas todas as garantias técnicas à defe-sa e ao Ministério Público, principalmente aquelas inerentes ao contraditório pleno.

Portanto, é preciso, sobretudo, dialética!

Investigação criminal pelo MP: entre eficiência e garantias

Elmir Duclerc

Rejeitada a PEC-37, que chamou tanto a atenção da mídia e da “voz das ruas”, é che-gada a hora de refletir sobre a tormentosa questão (há muito debatida de forma in-conclusiva no STF) da investigação crimi-nal diretamente conduzida por órgãos do M.P., para além do enfrentamento “classis-ta” entre Ministério Público e polícia.

Evitar o debate corporativo, entretanto, não significa fazer qualquer tipo de análi-se cientificamente neutra, desvinculada de influência ideológica. Ao contrário, desde já gostaria de deixar claro qual o meu “lu-gar de fala”.

Se pudesse reduzi-lo a três palavras, diria: liberdade, igualdade, fraternidade, que sintetizam, de alguma maneira, os ideais iluministas e revolucionários que até hoje inspiram as várias formas de pensamento social emancipatório, desde os escritos ilu-ministas de um Voltaire, até a crítica socia-lista que atravessou todo o século XX e, ao que tudo indica, está muito longe do esgo-tamento (HOBESBAWN, 2007, p. 85-86).

Nessa linha de raciocínio, posso dizer que qualquer discussão acerca dos poderes in-vestigatórios do Ministério Público deve partir de uma pergunta prévia, relaciona-da ao modelo de direito penal e processo penal que seria compatível com essa tra-dição, recepcionada, em grande medida, em todos os textos constitucionais oci-dentais, na forma de Estado Democrático e Social de Direito.

Pode-se dizer, por outro lado, que esse mo-delo de direito e processo penal nitidamen-te reconhece e assume como pressuposto que o poder punitivo precede historica-

Elmir DuclercPromotor de Justiça Criminal em Salvador-BA, Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá-RJ, Mestre em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes-RJ, Professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal da Bahia, Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal - IBADPP.

mente o direito e, muitas vezes, simples-mente atua à sua margem, reclamando, portanto, uma atitude de contenção por parte do direito (BATISTA, ZAFFARONI, 2003, p. 602), mediante um sistema inte-grado de garantias (FERRAJOLI, 1998, p. 21). Em suma, tal sistema deve partir da premissa segundo a qual quem precisa do processo é a pessoa que se coloca na alça de mira do poder punitivo.

Exatamente por isso, tudo o que não se pode permitir é que o próprio processo funcione como instrumento de punição antecipada, mediante a introdução de car-gas excessivas e desnecessárias de sofri-mento físico e psicológico ao acusado, ou a sua estigmatização social e jurídica (LO-PES JUNIOR, 2003, p. 36).

A compreensão do processo nesses termos, aliás, é o que torna impossível falar de uma teoria geral do processo (penal e não penal) e o que exige, na atualidade, um esforço urgente no sentido de construir uma teo-ria geral do processo penal, que possa re-almente servir de fundamento teórico para a discussão de temas como o que estamos a tratar.

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Além disso, parece claro que o princípio da impessoalidade exige que o emprego de esforços e serviços públicos, sobretudo em áreas tão sensíveis como a segurança, não dependa da avaliação pessoal dos seus eventuais titulares, mas, ao contrário, exi-jam a demonstração de interesse público a ser perseguido, mesmo em se tratando de parâmetros de conveniência e oportu-nidade. Trocando em miúdos, tal como ocorre com qualquer outro serviço essen-cial, a vítima e a comunidade em geral precisam estar informados sobre as razões (jurídicas) pelas quais esse ou aquele fato aparentemente criminoso não foi objeto de investigação pelo Ministério Público, em detrimento de outros considerados “prioritários”. Se o que norteia a adminis-tração são os interesses de ordem pública, ninguém em sã consciência pode imagi-nar que os órgãos do MP possam decidir sem qualquer critério que investigações merecem ou não os seus esforços investi-gativos, nem mesmo se vingar, algum dia, a idéia de que a ação penal não é obrigató-ria. Facultatividade (no exercício da ação e na instauração da investigação) não pode se confundir com arbítrio, e o arbítrio só poderá ser controlado, em cada caso, se os requisitos que recomendam a investigação direta (não apenas na forma) estejam pre-vistos em lei. Isso significa, inclusive, que da mesma forma que o exercício da ação penal não pode partir de uma opção pes-soal do promotor, a instauração da inves-tigação também não (poderes implícitos...deveres também).

Nesse aspecto, aliás, o princípio da efici-ência não chega a entrar em conflito, mas, muito ao contrário, caminha de mãos da-das com os princípios de garantia, para exigir que o Ministério Público investigue, sim, diretamente, mas em caráter comple-mentar, para apurar fatos criminosos atri-buídos a policiais ou quando a instituição policial mostrar-se incapaz ou claramente desinteressada na investigação, tudo, aliás, conforme a norma constitucional que lhe atribui o controle externo da polícia.

Aliás, é justamente essa lacuna teórica que ainda permite a sobrevivência de um dis-curso que associa as garantias processuais à falta de “eficiência” do processo (Douglas Fischer), e à produção de “impunidade” - não por acaso, o substantivo que foi usado no discurso corporativo do MP como “ad-jetivo” da PEC 37.

Urge, portanto, que, a partir da tradição filosófica iluminista, tratemos de construir uma teoria geral do processo penal que seja adequada às funções garantidoras do processo penal, tendo a coragem, se for o caso, de romper com as categorias que fo-ram acriticamente assimiladas do processo civil. Algo assim já se tem tentado, muito timidamente, com a introdução de concei-tos como justa causa, como uma das con-dições da ação penal.

Entretanto, enquanto ainda não construir-mos nossas próprias categorias, não resta alternativa senão trabalhar com a tecnolo-gia que tomamos por empréstimo ao pro-cesso civil, embora procurando sempre espaços hermenêuticos para a introdução, ou melhor, para o resgate da filosofia e da tradição iluminista do pensamento penal.

No que se refere à questão que estamos examinando, considerando as premissas assentadas até aqui, parece claro que:

1) A resposta à questão deve ser buscada menos na literalidade da regra que atri-bui os poderes investigatórios à Polícia, e muito mais nas bases principiológicas mais profundas do texto constitucional.

2) A partir dessas bases principiológi-cas, francamente protetoras dos direitos fundamentais da pessoa contra quem se volta a persecução, a resposta deve levar em conta que a eficiência dessa atividade está condicionada precisa ser perseguida dentro dos estritos limites da função garantidora do processo e da própria investigação preliminar.

No plano dos direitos fundamentais do indivíduo, há algumas limitações impor-tantes aos poderes investigatórios ao Mi-nistério Público, que podem ser assim enunciadas: a) o princípio da ampla defesa

[...] mesmo em serviços considerados essenciais o princípio de eficiência da administração recomenda que o estado se organize para evitar a superposição de atividades.

Referências:

FERRAJOLI, L. Democracia y garantismo. Madrid: Trotta. 2008.

LOPES JÚNIOR, A. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 2ª ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

HOBSBAWM, E. J. A era das revoluções: Europa 1789-1848. Tradução de Maria Tereza Lopes Teixeira. 22. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

ZAFFARONI, E. R. et al. Direito penal brasileiro: teoria geral do direito penal. Tradução de Nilo Batista; Helena Ferreira. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v. 1.

não é compatível com o assédio investiga-tório múltiple, isto é, levado a termo por vários órgãos do estado ao mesmo tempo (Ministério Público, polícia, CPI´s); b) o princípio do contraditório (como parida-de de armas) resta violado se advogados de defesa não têm análogos poderes, como ocorre (para que ninguém se espante) em outros países, e como está previsto, inclu-sive, no PLS 156, que pretende introduzir um novo Código de Processo Penal, como se sabe; c) o princípio do devido processo legal resta violado, visto que não há regra-mento legal para a investigação do MP, e essa lacuna não pode ser suprida pela apli-cação analógica das normas que regulam o inquérito (porquanto restritivas de direitos fundamentais), ou por normas de cunho administrativo (como tem tentado fazer o CNMP), por tratar-se de matéria processu-al penal, de competência exclusiva do Po-der Legislativo da União.

No plano da eficiência, parece claro, numa primeira mirada, que quanto mais institui-ções se debruçarem sobre um mesmo fato com aparência delitiva, tanto mais chances de que ele seja elucidado e de que provas sejam reunidas de forma a viabilizar o exer-cício da ação penal. Entretanto, mesmo em serviços considerados essenciais o prin-cípio de eficiência da administração reco-menda que o estado se organize para evitar a superposição de atividades, isto é, que dois ou mais órgãos empreguem esforços e recursos para fazer aquilo que um só deles poderia fazer como a mesma eficiência.

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O Problema da garantia da intimidade frente aos meios eletrônicos de investigação e de prova

Miguel Tedesco Wedy

A intimidade e a vida privada1 são valores ou bens jurídicos defendidos na quase to-talidade dos países de cariz democrático.2

Ainda assim, não há constrangimento em se reconhecer que um dos direitos mais afetados pelo espraiamento da ideia de efi-ciência instrumental no processo vem sen-do a esfera da intimidade e da vida privada (art. 5º, inciso X, da CF/88). Todos os dias, milhares de telefones e dados telemáticos são interceptados e violados com autoriza-ção judicial, sob o abrigo de Constituições democráticas e de leis infraconstitucionais.

Não nos cabe, pois, nos tempos atuais, re-pelir, de forma absoluta, a invasão da inti-midade e da vida privada por medidas ju-diciais proporcionais aos fins pretendidos. Contudo, que isso se dê dentro de limites racionais, à luz da Constituição, por uma decisão judicial devidamente fundamen-tada e que não seja proferida de ofício. E, como se não bastasse, que haja um limite para tais intromissões na vida privada, sob pena de se legitimar não uma investigação criminal, mas uma devassa, na qual não se investiga um fato concreto e determinado, mas a pessoa humana suspeita ou acusada.3 Um limite não apenas material, mas tam-bém temporal e ético.

A experiência hodierna das escutas telefô-nicas vem demonstrando a gravidade da invasão da intimidade, como forma de in-vestigação que acaba por aniquilar um re-duto muito fechado da vida privada, como também por abalar os direitos de defesa.4

Impõe-se, assim, que tais invasões da inti-

Miguel Tedesco WedyAdvogado criminalista, Doutor em Ciências Jurídico Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coordenador Executivo do Curso de Direito da Unisinos.

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midade sejam absolutamente excepcionais, subsidiárias, necessárias, proporcionais e eficientes ao fim pretendido, de forma que não se generalizem. A sua generalização será um sinal da incapacidade estatal de produzir uma investigação proficiente, mas também uma peculiaridade própria de Es-tados em situação de erosão democrática.

Como aponta Costa Andrade, “os meios ocultos de investigação não representam uma novidade... É o que bem ilustra a ex-periência das escutas telefônicas, que hoje, poucas décadas decorridas sobre o início da prática, se contam, em todo o lado por muitos milhares. Na certeza de que por cada autorização de escuta se interceptam dezenas, se não milhares de chamadas, devassando-se, directamente ou indirecta-mente, a vida privada de um universo in-contável de pessoas. Vale por dizer que na conversão das escutas em valores relativos à efectiva danosidade social, o número de autorizações deve ser multiplicado por um factor particularmente elevado.”.5

Como prova da complexidade e proble-maticidade dessas invasões da intimida-de, encontra-se a afirmação de Albrecht, de que a vigilância das telecomunicações, a busca de arrastão, a vigilância domicili-ária, os agentes encobertos e infiltrados, a vigilância acústica e visual de espaços pú-blicos são cada vez mais objeto de acordos europeus e internacionais, como demons-tram a Convenção das Nações Unidas so-bre Criminalidade Transnacional (a Con-venção de Palermo de 2000) ou a Directiva 2006/24/CE da União Europeia relativa ao armazenamento e utilização de dados de tráfego de telecomunicações.6

Por isso tudo, há necessidade de não tor-nar massificadas essas gravosas técnicas de investigação, a fim de manter a eficiência, a justiça e as garantias do ordenamento ju-rídico-penal, bem como a segurança míni-ma de um Estado de Direito.

A prodigalidade das invasões da intimida-de enfraquece o Estado de Direito e, bem ao contrário do que se pensa, acaba por fomentar a impunidade, pois mais e mais processos serão anulados e extintos em ra-

zão dessa perversão da segurança jurídica.

Como refere Albrecht (2009, p. 740), “quanto mais rara é a autorização de vi-gilância de telecomunicações, mais alta é a taxa de condenações. Inversamente, tal também significa que quanto maior é o nú-mero de autorizações de vigilância de tele-comunicações, maior é a resolução através de acordo ou absolvição”.

Assim, em nossa noção, é possível tornar a intimidade uma garantia fundamental não apenas de direito, mas também de fato, sendo afastada apenas naquelas situações muito graves e caracterizadas por uma ne-cessidade imperiosa, mas sempre de forma motivada e com prazo determinado, a fim de se manter sempre equilibrada a relação entre eficiência, garantias e justiça no pro-cesso penal.

Notas

1 Como salienta Paulo José da Costa Júnior, a pessoa possui uma personalidade com duas esferas, uma particular ou privada, na qual pretende desenvolver seus interesses como indivíduo e outra, que poderia ser chamada de individual, na qual desenvolve seu interesse na vida de relação. No pri-meiro caso, trata-se da intimidade, no último, trata-se do direito ao nome e reputação digna. COSTA JÚNIOR, Paulo José da. O direito de estar só: a tutela penal da intimidade. São Paulo: Siciliano, 2004. p. 27-28.

2 Assim é no Brasil (Art. 5º, X, da CF/88): “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.” Também tratam de inti-midade os incisos XI (a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial) e XII (é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunica-ções telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal). Na Alemanha, segundo Roxin, a vigilância acústica domiciliá-ria, ou seja, a audição de conversas em casas ou residências privadas nunca foi admitida. Porém, o legislador resolveu por modificar a Constituição e, em 1998, acabou por prever tais medidas. O Tribunal Constitucional considerou parte dessas medidas inconstitucionais, pois deveria limitá-las aos casos mais graves e de modo a não ferir o núcleo fun-damental da intimidade da vida privada. Esse núcleo seria protegido pela dignidade da pessoa humana, protegida pela Constituição, especialmente para que o cidadão pudesse exprimir fenômenos pessoais, como sensações, sentimen-tos, pensamentos, opiniões e vivencias altamente pessoais, sem receio de que as autoridades estatais o vigiassem, para tanto necessitaria de um domicílio privado, como uma espécie de último refúgio. ROXIN, Claus. “Sobre o desen-volvimento do direito processual penal alemão.” In: MON-TE, Mário Ferreira et al. (Org.). Que futuro para o direito processual penal? Coimbra: Coimbra Editora, 2009. p. 394.

3 Não se pode esquecer que o Tribunal Europeu de Di-reitos Humanos (TEDH) estabeleceu limites claros para a interceptação telefônica, como se depreende dos ca-sos Huvig v France (24.04.1990) e Doerga v Netherlands. Em www.echr.coe.int.

4 Segundo dados fornecidos por operadoras de telefonia do Brasil, dão conta de mais de quatrocentas mil intercepta-ções telefônicas. Boletim do IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 191, p. 1, out. 2008.

5 ANDRADE, Manuel da Costa. “Métodos ocultos de in-vestigação (plädoyer para uma teoria geral).” In: MONTE, Mário Ferreira et al. (Org.). Que futuro para o direito pro-cessual penal? Coimbra: Coimbra Editora, 2009. p. 532. Veja-se o caso das técnicas de IMSI SMS-Blaster, em que a primeira permite identificar o número de um aparelho e do cartão que se encontrem num determinado espaço, e a

segunda permite mandar mensagens imperceptíveis para o telemóvel, ativando o aparelho, permitindo sua localização. Ibid., p. 534.

6 ALBRECHT, Hans-Jörg. “A vigilância das telecomuni-cações: análise teórica e empírica da sua implementação e efeitos.” In: MONTE, Mário Ferreira et al. (Org.). Que futuro para o direito processual penal? Coimbra: Coimbra Editora, 2009. p. 725. Segundo Albrecht, com a transposi-ção dessa directiva, o armazenamento de dados de teleco-municações, inclusive de telemóveis, deverá alcançar cerca de 300 milhões de pessoas. Ibid., p. 726. Ademais, o Tribu-nal Constitucional vem repelindo a vigilância domiciliária, bem como a vigilância policial de telecomunicações. Ibid., p. 730. Relevantes são os dados estatísticos trazidos por Al-brecht, acerca do número de interceptações por cem mil habitantes. Nos EUA, chega a 0,5 por cem mil, na Itália a 76 por cem mil e na Alemanha, chega a 15, por cem mil. Ibid., p. 737. Notável ainda é que cerca de 97% dos pedidos do Ministério Público são deferidos, e as fundamentações são formais, apenas se remetendo ao sustentado pelo órgão da acusação ou investigação. Ibid., p. 739. Ademais, metade dos inquéritos são arquivados. Ibid, p. 740.

A prodigalidade das invasões da intimidade enfraquece o Estado de Direito e [...] acaba por fomentar a impunidade, pois mais e mais processos serão anulados e extintos em razão dessa perversão da segurança jurídica.

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Prisão preventiva decretada de ofício pelo juiz e o sistema acusatório

João Paulo Orsini MartinelliProfessor adjunto na Universidade Federal Fluminense (UFF)Mestre e Doutor em Direito Penal (USP)Pós-doutor em Direitos Humanos (Universidade de Coimbra).

João Paulo Orsini Martinelli

do processo e, consequentemente, ao ti-tular da ação penal. Essa relação de estri-ta dependência entre processo e medida cautelar indica que qualquer providência auxiliar à instrução criminal – e à satis-fação da pretensão punitiva do Estado – impõe limites à atividade do magistrado, uma vez que este não é parte na relação de direito material.

Assim, preliminarmente, conclui-se que as medidas cautelares no processo penal são acessórias ao processo no qual se discute a pretensão punitiva do Estado. A aplicação dessas medidas interessa exclusivamente a quem busca a prova da culpa e conse-quente condenação do acusado ou a quem defende sua inocência. O juiz não é parte do processo e, portanto, resta-lhe analisar o requerimento das partes e decretar ou denegar, sempre fundamentadamente, a medida solicitada.

3. Prisão preventiva como medida cautelar

O atual sistema processual penal brasileiro possui um rol de possíveis medidas caute-lares, as quais devem ser aplicadas segundo critérios de necessidade e adequação. Ficou estabelecido em lei – o que já estava deter-minado pela Constituição Federal – que a prisão deve ser medida cautelar subsidiá-ria, aplicável apenas quando as demais me-didas demonstrarem-se insuficientes. Re-forçou-se o princípio fundamental de que a liberdade deve ser regra enquanto a prisão é excepcional, especialmente quando não houver ainda condenação definitiva.

Para a concessão da prisão preventiva, de-ve-se considerar, como em qualquer medi-da cautelar, especialmente as privativas de liberdade, os indícios de autoria e materia-lidade do fato criminoso (fumus comissi delicti) e a necessidade de restringir um di-reito fundamental – no caso, manter o acu-sado preso durante a instrução criminal -, antes de condenação definitiva (periculum libertatis). A decisão que concede a prisão preventiva deve ser rigorosamente funda-mentada com a necessidade de privação antecipada de liberdade e a insuficiência das demais medidas cautelares menos rigo-rosas. Em nome da motivação das decisões

judiciais e das garantias individuais, deve o juiz afirmar os motivos pela privação da liberdade e, ao mesmo tempo, as razões pelas quais não cabe outra medida cautelar menos rigorosa.

4. O Sistema Acusatório

É comum a doutrina e a jurisprudência afirmarem que, no Brasil, há dois sistemas de persecução: na fase de inquérito policial, temos um procedimento inquisitivo; na fase processual, temos um procedimento acusatório. Uma leitura constitucional do processo penal impõe um cuidado maior ao considerar um “sistema misto” como mera somatória de dois sistemas. Não cabe neste espaço a discussão em torno da ques-tão2, porém, fundamental compreender que os direitos fundamentais do indivíduo devem incidir tanto na fase de investigação quanto na fase jurisdicional.

O sistema acusatório é produto de evolu-ção do direito processual penal ao longo de séculos, como negação a um sistema no qual o acusado era tratado como mero objeto de investigação e os poderes de acu-sação e julgamento concentravam-se num único órgão. O sistema acusatório, ao con-trário do sistema inquisitório, estabelece um conjunto de garantias ao acusado, que se torna um sujeito de direitos, dentre as quais um julgamento realizado por órgão distinto daquele que acusa. A imparcia-lidade (possível) do juiz e a ampla defesa são direitos fundamentais a quem ocupa a condição de réu no processo.

A lição de COUTINHO é precisa:

“A cultura acusatória (...) impõe aos juízes o lugar que a Constituição lhes reservou e de importância fundamental: a função de garante! Contra tudo e todos, se constitucio-nal, devem os magistrados assegurar a or-dem posta e, de consequência, os cidadãos individualmente tomados. À ordem de pre-valência, nesta dimensão, não se tem mui-to o que discutir, mormente porque não há direito coletivo mais relevante que aqueles fundamentais dos cidadãos”.3

Os papéis desempenhados por cada sujei-to processual impõe ao juiz a inércia nas

1. Introdução

Apesar das diversas e recentes alterações pelas quais passou o Código de Processo Penal nos últimos anos, um dispositivo, em especial, persiste na teimosia de desa-fiar o sistema processual acusatório e os princípios processuais de natureza consti-tucional: a prisão preventiva decretada de ofício pelo juiz. Sua ilegitimidade está fun-dada na divisão de papéis entre os sujeitos do processo acusatório – órgão julgador, órgão de acusação e defesa – que impede a intromissão de um na atividade do outro. A natureza jurídica da prisão preventiva – medida cautelar, acessória ao processo – impede sua decretação de ofício pelo ma-gistrado, pois este não é parte do processo.

2. Medidas cautelares

As medidas cautelares são instrumentos a serviço da causa principal do processo pe-nal. Tanto na fase pré-processual quanto na fase processual as medidas cautelares têm a finalidade de auxiliar na persecução crimi-nal, enquanto o objeto principal do proces-so é a pretensão punitiva do Estado. Assim, “as providências cautelares possuem caráter instrumental: constituem meio e modo de garantir-se o resultado da tutela jurisdicio-nal a ser obtida por meio do processo. (...) As providências cautelares ligam-se, instru-mentalmente, ao processo cujo resultado vi-sam garantir”.1

Pode-se afirmar, portanto, que as medidas cautelares não são processos autônomos e independentes. Ao contrário, depen-dem intimamente do processo iniciado ou que se pretende iniciar. Assim, o êxito de uma medida cautelar interessa ao sucesso

O juiz não é interessado na condenação ou absolvição, seu interesse reside na legalidade do procedimento e na correta aplicação da lei processual e material penal.

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Notas

1 MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. IV. Campinas: Bookseller. 1998. pp. 31-32.

2 A respeito do problema de se considerar o sistema misto como mera somatória de dois sistemas diferentes, cf. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. O novo processo penal à luz da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2010. pp. 01-17.

3 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. op. cit. p. 15-16.

4 SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. As medidas cautelares pessoais no projeto de Código de Processo Penal – PLS 156/2009: uma leitura a partir do princípio da presunção de inocência. O novo processo penal à luz da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2010. p. 254.

5 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. op. cit. p. 09.

6 CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2011. p. 501.

7 COUTINHO, op. cit. p. 17.

atividades processuais relacionadas à pre-tensão acusatória. Sua função é controlar a atividade das partes (acusação e defesa) conforme a provocação. Excepcionalmen-te, o sistema acusatório permite atos de ofício do juiz quando houver ilegalidade na atividade das partes (como, por exem-plo, retirar dos autos uma prova produzida ilicitamente pela acusação mesmo que a defesa não o reclame), sempre com o obje-tivo de garantir os direitos do acusado. Em síntese, a rigor, toda atividade destinada à pretensão punitiva deve ser de iniciativa da acusação, a quem cabe o ônus da prova da culpa.

A prisão preventiva, como medida cautelar, é acessória ao processo. Se o titular da ação é o Ministério Público (ou o ofendido), in-teressa ao órgão de acusação a satisfação da pretensão punitiva do Estado. O juiz não é interessado na condenação ou absolvi-ção, seu interesse reside na legalidade do procedimento e na correta aplicação da lei processual e material penal. Sendo assim, também não há interesse do magistrado na aplicação de medidas cautelares auxiliares.

O Código de Processo Penal, em seu art. 311, autoriza a prisão preventiva decretada de ofício (“Em qualquer fase da investiga-ção policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofí-cio, se no curso da ação penal, ou a requeri-mento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial”). Esse dispositivo auto-riza a decretação de uma medida cautelar por quem não é parte do processo e, assim, não tem interesse na satisfação da preten-são punitiva.

A prisão preventiva deveria ser decretada somente quando houver requerimento da acusação. Ao juiz deve ser vedado qualquer ato destinado ao titular da ação, o único interessado na satisfação da pretensão pu-nitiva. A autorização legal para a prisão preventiva de ofício demonstra “evidente resquício inquisitorial”4 e deve ser supera-da por uma leitura constitucional do Códi-go de Processo Penal. Deve-se acrescentar, ainda, que, a partir do momento em que o julgador decide pela prisão preventiva,

fica evidente uma provável inclinação pela posterior condenação. Quando o magis-trado não é provocado, e mesmo assim decide pela prisão de alguém que ainda é considerado inocente, sua imparcialidade fica comprometida (e, consequentemente, o devido processo legal).

Uma enorme barreira a ser superada é a inversão na cultura do processo penal no Brasil. Parte-se de uma leitura do CPP iso-lada do ordenamento jurídico, deixando de lado a Constituição Federal e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Mais uma vez recorrendo a COUTINHO:

“(...) tem sido difícil – muito difícil – fazer entender a alguns que primam pela leitura óbvia da vida como linearidade, como se fossem imagens de um espelho e, assim, se-guem insistindo, contra a Constituição, em manter o Sistema Inquisitório que se reti-ra, antes de tudo, do CPP, em permanente conflito com o modelo constitucional que reclama um devido processo penal e, assim, incompatível com aquele no qual o juiz é o senhor do processo, o senhor das provas e, sobretudo – como sempre se passou no Sistema Inquisitório – pode decidir antes (naturalmente raciocinando, por primá-rio e em geral bem intencionado) e depois sair à cata da prova que justifique a decisão antes tomada”.5

5. Conclusão

Todo Estado democrático de Direito recla-ma o devido processo legal em seu sistema processual penal. Cada parte deve colocar--se em seu lugar no processo penal, inclu-sive nas medidas cautelares. Assim a lição de CHOUKR: “(...) é forçoso indicar que cada vez que se confere ao magistrado ou à autoridade policial (ou a quem quer que não seja o titular da ação penal) o poder de atuar a ação penal cautelar está-se distan-ciando do modelo acusatório”.6 Portanto, o juiz NÃO tem legitimidade constitucio-nal para decretar a prisão preventiva sem ser provocado.

Fecha-se esse artigo com as palavras de COUTINHO, para quem “o Sistema Acu-satório não é e nunca foi sinônimo da impu-nidade, algo, por sinal, por que se reclama

tanto do sistema atual. Trata-se – isso sim – de um sistema que realça o papel das partes – a começar por aquele do juiz – não só por compatibilizá-los com os ditames constitu-cionais mas, sobretudo, em razão de permi-tir que se caminhe na direção de uma maior democracia processual”.7

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Sistemas processuais, a produção da prova e os sujeitos do processo penal

Leonardo Augusto Marinho Marques

Recorrentemente, o estudo do tema sis-tema processual vem suscitando algumas imprecisões: (a) referência a sistemas ho-mogêneos; (b) abordagem reduzida ao dualismo acusatório/inquisitório; (c) des-consideração da nova inquisitoriedade; (d) associação do termo acusatório à solução dos problemas atuais do processo penal; (e) desconhecimento do sistema adversarial; (f) equiparação do sistema adversarial ao sistema acusatório; (g) abordagem concen-trada na forma procedimental, sem víncu-lo com o perfil do Estado; (h) incompreen-são de que o sistema moderno se orienta pela constitucionalidade democrática.

Deve-se compreender sistema processu-al como o resultado de uma construção teórica. Por meio da pesquisa histórica e da comparação dos diversos modelos, consegue-se identificar as características da acusatoriedade, inquisitoriedade, nova inquisitoriedade e adversariedade. Ob-viamente, a demarcação teórica auxilia na compreensão do sistema democrático. O sistema delineado na Constituição impe-de que a administração da justiça se fun-de em si mesma (CARVALHO NETTO: 2004, 25-26), originando estruturas judi-ciais hierárquicas e burocráticas, incom-patíveis com o pluralismo democrático (DAMASKA 2008).

O tema proposto apresenta alto grau de complexidade. Considerando a limitação de espaço, será impossível esgotar a matéria.

O sistema acusatório pode ser subdivido em dois grandes períodos. Em sua primei-ra fase, a vítima formulava a acusação pe-rante o tribunal. Ela tinha a obrigação de produzir prova, sob pena de ser penalizada

Leonardo Augusto Marinho MarquesDoutor em Ciências Penais pela UFMGProfessor de Processo Penal da PUCMinas e da UFMG.

por falsa querela. O julgamento ocorria no espaço público, mas alheio à intervenção estatal. O Tribunal era composto por juí-zes cidadãos, que se vinculavam à ativi-dade das partes (AMBOS, 2008:50). Não havia, pois, uma estrutura hierárquica de poder comandada por funcionários públi-cos, nem tampouco um método específico de aplicação do direito. A dificuldade da vítima na obtenção da prova constitui um dos pontos frágeis desse período. A racio-nalidade da prova girava em torno do tes-temunho. Os jurados valoravam a prova na audiência. (FOUCAULT, 1999:54)

Posteriormente, instaurou-se um novo padrão de racionalidade probatória. O ju-ramento, as fórmulas verbais, os duelos e as ordálias substituíram a palavra da teste-munha na audiência. Nessa segunda fase, não se investigava o que tinha acontecido, não havia valoração dos fatos. As possi-bilidades eram variadas. O juramento era assistido pelos conjuradores e compurga-dores, que se baseavam no prestígio social do acusado e na credibilidade do seu de-poimento (WINTER: 2008, 18). Na prova verbal, o acusado contestava a acusação pronunciando certas fórmulas. Se incor-resse em erro, saía derrotado. As provas corporais simbolizavam a batalha judi-cial travada entre as partes. No final, uma parte saía vencedora e a outra derrotada (FOUCAULT, 1999:60-61). Importante

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destacar que o julgamento continuava pú-blico, e sem intervenção estatal. As autori-dades somente conferiam a regularidade do procedimento.

No período compreendido entre a Antigui-dade e o final da Idade Média despontam manifestações inquisitoriais distintas. Per-mitam-me, pois, promover um corte trans-versal, para focar em dois momentos histó-ricos específicos: a inquisitoriedade romana e a inquisitoriedade religiosa medieval.

Na Roma imperial, a investigação e o jul-gamento de ofício ganharam importância, incidindo especialmente nos delitos gra-ves. A expansão da civilização, o aumento da criminalidade, a dificuldade da vítima em exercer o ônus da prova na acusação particular, o interesse público embrioná-rio, a “irracionalidade” das ordálias e o descrédito dos juramentos contribuíram para a institucionalização da investigação e oficialização da acusação. Gradativamente, o Estado foi assumindo o controle sobre a justiça criminal. Interessante observar que a experiência romana resgatou a proposta de valoração do fato, mas não estabeleceu inquisitoriedade stricto sensu, porque o procedimento inquisitivo não partia em busca da veritas delicti (AMBOS: 2008, 53). Nessa época, a racionalidade da prova con-tinuava na órbita da testemunha.

No medievo, vários sistemas inquisitórios foram edificados em leis que se sucederam no tempo e no espaço, quase sempre sob forte influência religiosa. O século XIII re-gistrou o surgimento da inquisitoriedade espiritual. Primeiro, o Concílio de Latrão vedou a presença de religiosos nas Ordá-lias. Em seguida, o Papa Inocêncio III ins-tituiu o procedimento inquisitivo, elimi-nando a acusação particular. Teve início, então, a temporada das investigações de ofício, baseadas na denúncia e no rumor de má-fama, cujo objetivo era alcançar a verdade material (AMBOS: 2008, 55-56).

A inquisitoriedade medieval ganhou pro-porções inimagináveis com a instauração da Inquisição. O conflito foi definitiva-mente publicizado. A confissão se tornou a principal prova, por ter capacidade de

revelar a verdade real (não obstante a irra-cionalidade dos tormentos). Como “único corpo econômico-político coerente da Eu-ropa” (FOUCALT: 1999,71), a Inquisição promoveu a institucionalização da justiça, criando um aparato hierárquico e centra-lizador, comandando rigorosamente pelos clérigos. Não existiam sujeitos processuais, a acusação independente foi extinta e o acusado transformado em objeto de inves-tigação. O inquisidor dominava a investi-gação e tinha o poder de produzir a prova em segredo, blindando o cognitivismo.

A nova inquisitoriedade despontou no século XIX, impulsionada pelo Código de Instrução Criminal Francês. Difere-se, essencialmente, da inquisitoriedade me-dieval por ter restabelecido o actum trium personarum, instituído o procedimento binário (com juizado de instrução ou o inquérito antecedendo o julgamento pú-blico), abandonado a tortura, relativizado a confissão e também por ter eliminado o regime de prova tarifada. Registre-se, po-rém, que a nova inquisitoriedade se opôs à barbárie promovida pela Inquisição, não à tecnologia inquisitória original (AMBOS: 2008, 65).

Exatamente porque não rejeitava a tecnolo-gia, a neoinquisitoriedade preservou o mo-nismo interpretativo do Estado, a gestão autocrática da prova, a formação de culpa na fase pré-processual, a desvalorização da audiência, a desqualificação do acusado, o superdimensionamento do segredo, o pro-tocolo escrito e a busca da verdade real. No entanto, a livre valoração da prova instituiu um novo eixo racionalidade probatória. Movido pela íntima convicção e compro-metido com a pesquisa da verdade absolu-ta, o juiz da nova inquisitoriedade sempre produziu prova de ofício, sem se importar com o actum trium personarum. Como tu-tor da acusação, ele estava preparado para exercer função acusatória supletiva e salvar o processo penal do fracasso absolutório.

O sistema adversarial pertence à cultura anglosaxã. A Inglaterra não vivenciou a in-quisitoriedade eclesiástica e conviveu com expedientes acusatórios por mais tempo

do que a Europa continental. Não significa, contudo, que passou imune pela experiên-cia inquisitória. O inquérito do Império Carolíngeo foi utilizado no ano de 1096, por Guilherme o Conquistador (FOU-CAULT: 1999, 69). A Star Chamber e a High Comission foram extintas no final do século XVII, porque os suspeitos estavam sendo obrigados a se auto-incriminar, an-tes mesmo de existirem indícios concretos. A tortura não constituía prática recorrente nesses Órgãos, mas a imposição da confis-são foi associada à mentalidade inquisitó-ria (THAMAN: 2008, 162)

O sistema adversarial surgiu em resposta aos resquícios inquisitórios que insistiam em sobreviver na Inglaterra do século XVIII. Entre os anos de 1740 e 1770, di-versas garantias foram integradas ao pro-cesso. Nos séculos seguintes, as garantias constitucionais se estenderam para a in-vestigação. O cidadão adquiriu o direito de apresentar a própria argumentação e de desenvolver a sua defesa. VOGLER (2008: 182-189).

Por ter se desenvolvido em um ambien-te de descentralização administrativa e jurisdicional, o sistema adversarial sem-pre incentivou a atuação das partes. Elas sempre tiveram liberdade para produzir prova e debater o caso penal na audiência pública. Ou se preferissem, podiam, alter-nativamente, entrar em acordo e encerrar o processo. O acordo mostra que as partes produziram o justo sem a ingerência do Estado. Tradicionalmente, o juiz se man-teve distante das partes. Frente à cultura publicista do processo penal europeu, o sistema anglosaxão lembra, à primeira vis-ta, o antigo processo privado acusatório. Todavia, para evitar conclusões precipita-das, é preciso conhecer a descentralização política que marca a tradição anglo-saxã, bem como as inúmeras especificidades da adversariedade.

Identificadas as características gerais de cada modelo processual, podemos pensar na construção do sistema democrático. Esse sistema deve privilegiar o debate em contraditório, valorizando a exclusividade da função acusatória, a ampla argumenta-

O sistema democrático não comporta o juiz espectador, mas também não admite o juiz instrutor.

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ção e o direito à prova. Deve reconhecer o juiz como sujeito do conhecimento, inte-grando-o ao debate processual. Não para que ele venha dizer ou contradizer na audi-ência. Mas, para que ele, na companhia das partes, fixe o mérito. E, principalmente, de-marque o discurso acusatório, sem inverter o ônus da prova. Na primeira audiência, o juiz precisa associar o argumento da de-núncia à pretensão de prova do Ministé-rio Público. E, na audiência que encerra instrução, precisa fazer o chek-list prova

Referências:

AMBOS, Kai. El principio acusatório y el proceso acusató-rio: un intento de comprender su significado actual desde la perspectiva histórica. In: WINTER, Lorena Bachmaier. Proceso penal y sistemas acusatórios. Marcial Pons: Madrid, 2008.

CARVALHO NETTO, Menelick. A Hermenêutica consti-tucional sob o paradigma do Estado Democrático de Di-reito. In: OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Coord.). Jurisdição e Hermenêutica constitucional no Estado Demo-crático de Direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

DAMASKA, Mirjan R. Las caras de la justicia y el poder del Estado: análisis comparada del proceso legal. Santia-go: Editorial Juridica de Chile, 2000.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Editora Nau,1999.

THAMAN, Stephen C. Aspectos advesariales, acusatorios e inquisitivos em el proceso penal de los Estados Unidos. In: WINTER, Lorena Bachmaier. Proceso penal y sistemas acusatórios. Marcial Pons: Madrid, 2008.

VOGLER, Richard. El sistema acusatório en los procesos penales em Inglaterra Y en Europa continental. In: WIN-TER, Lorena Bachmaier. Proceso penal y sistemas acusató-rios. Marcial Pons: Madrid, 2008.

WINTER, Lorena Bachmaier. Acusatorio versus inquisi-tivo. Reflexiones acerca Del proceso penal. In: WINTER, Lorena Bachmaier. Proceso penal y sistemas acusatórios. Marcial Pons: Madrid, 2008.

“Vocês são os mortos”

Gabriel Antinolfi Divan

A questão da ilicitude probatória no pro-cesso penal passa por uma assunção inicial que é tão singela (do ponto de vista argu-mentativo) quanto complexa (sob um viés, pode-se dizer, ético-filosófico): nos moldes em que nossa Constituição Federal e nos-so Código de Processo Penal disciplinam a matéria das ‘provas ilícitas’, decantando--as de uma obtenção viciada, se pode di-zer que a discussão gira em torno de uma escolha política.

Mais, uma escolha de tratamento que, não raro, contraria a lógica e a própria nature-za humana: a opção democrático-consti-tucional pune a obtenção probatória que se imiscui pelos caminhos da violação de direito material e do próprio invólucro da principiologia valorativa exibida des-de o núcleo da carta maior. Trata-se – ao deflagrar a ilicitude de uma prova e suas derivações – de um curioso exercício que a axiologia jurídico-processual em habitat democrático recomenda: em última aná-lise, os operadores jurídicos (mormente o magistrado) estão autorizados a, a partir dali, fingir ou descartar o fato de que se viu o que se viu, se ouviu o que se ouviu ou, por todos, expurgar um conhecimento que efe-tivamente se passou a ter, como se nunca o tivessem.

Tendo-se a intimidade em termos gené-ricos, como uma sequência dos valores maiores liberdade e dignidade (Art. 5º, X, CF), é mais do que óbvia a primazia de re-gramentos que obriguem os atores jurídi-co-processuais à adequação a essa realida-de. A ‘busca’ pela ‘verdade’ dentre a arena processual-penal existe, mas não é possível transigir em relação à constatação de que essa ‘busca’ deve ser mediada por parâme-tros democráticos e que, portanto, não é

Gabriel Antinolfi DivanDoutor em Ciências Criminais pela PUCRS. Bolsista do Programa PUCRS/PROBOLSA. Professor de Direito Processual Penal e Criminologia da Universidade de Passo Fundo – RS. Advogado criminalista.

No instante em que meios de captação de registros não são mais exclusividades policialescas, é preciso (re)debater o grau de qualificação dessa ‘busca’ pela verdade no processo e seus parâmetros.

x argumento. Argumentos não provados devem ser rejeitados; argumentos compro-vados incorporados na decisão. O sistema democrático não comporta o juiz especta-dor, mas também não admite o juiz instru-tor. O magistrado não produzirá prova de ofício. Proposição é atribuição da acusação e da defesa. Mas, como sujeito do conheci-mento, o julgador participará da instrução, interagindo com a prova proposta, de for-ma subsidiária e complementar à atuação das partes.

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uma ‘busca’ ilimitada (GOLDSCHMIDT, 1936, p.114) e muito menos visando uma ‘verdade real’ – o que seria uma contradi-ção em termos diante do âmbito de ‘bus-ca’ mediada ou ‘busca’ qualificada que se defende.

Uma série de elementos - que facilmente se transmutam em meios de prova, ou de obtenção de - cujo domínio técnico e tec-nológico se popularizou e se aperfeiçoou já desde as últimas quadras do século XX - oferece um formidável desafio ao operador jurídico da nossa era: em meio a uma ra-cionalidade ocidental que deifica a imagem, nada de surpreendente na massificação de dispositivos e técnicas de captura, exibição, modificação e compartilhamento de ‘gra-vações’ ou ‘registros’ fotográficos, sonoros e audiovisuais. Se as provas processuais se destinam à captura psíquica (LOPES JR., 2012, p. 538) da atenção e argumentação jurisdicional, a imagem é ‘capital psíquico’ de valia incomensurável.

Somados à atual fartura de possibilidades de publicização desses registros e ao cres-cente desenvolvimento das transmissões particulares de sinais internéticos por apa-relhos de operacionalidade cada vez mais móvel e mais simples, o desafio se amplia.

É imperioso admitir que os registros cada vez mais frequentes de atividades em espa-ços públicos não possuem nenhum tipo de óbice ou bloqueio aparente para que não se plasmem enquanto elemento de prova (válida) dentre o processo penal. Não são registros ilícitos, se constituindo apenas de registros que em um passado ainda re-cente se imaginavam impossíveis pela falta de disponibilidade tecnológica adequada e portátil. Destaca-se como exemplo o re-cente trabalho do grupo/coletivo denomi-nado “Narrativas Independentes, Jornalis-mo e Ação” (alcunhado de “Mídia Ninja”), que consiste basicamente em um jornalis-mo investigativo de inserção nos eventos cobertos, e cuja técnica de transmissão prevê envio audiovisual ao vivo direta-mente para um ‘link’ internético que pode ser acessado e distribuído para audiência imediata – sem qualquer tipo de edição ou elaboração esteticista.

Diante do quadro verificado, onde a maio-ria dos telefones celulares – desde aqueles de baixo custo – já dispõem de câmeras que comportam além de capacidade fotográfi-ca considerável, possibilidade de gravação de vídeo/áudio, é necessário deixar claro que o caráter da prova testemunhal talvez sofra uma verdadeira reconfiguração com possibilidades de aliança cada vez maiores entre os registros racionalizados e aqueles tecnológicos disponíveis.

Parece, contudo, que uma coisa não se mo-difica, ainda, no esquema das escolhas ou opções político-éticas no trato com a ques-tão: o esteio ou pilar fundamental de traba-lho deve gravitar em torno da consideração da intimidade de quem está exposto, sem-pre temperada ou munida de uma análise conjunta do grau de confiança ou privaci-dade que a pessoa ‘exposta’ possui em rela-ção àquela que obtém o registro.

A ‘consciência’ ou ‘advertência’ em rela-ção à possibilidade da gravação não de-vem ser exclusivamente os parâmetros que informam uma possibilidade de prova admissível em um processo verdadeira-mente democrático: pessoas que eventual-mente estejam usando drogas sendo ‘filma-das’ por amigos ou pessoas que se exibam em poses de nudez erótica para um(a) amante fotografar estão fazendo isso cons-cientemente em relação ao registro, mas, é possível afirmar, não estão nem previa-mente autorizando a divulgação do regis-tro, nem sempre agindo com a expectativa da quebra do binômio intimidade-con-fiança que a ocasião faz minimamente se plasmar (um certo grau de ‘boa fé’ do tipo ‘objetiva’, aqui).

No instante em que meios de captação de registros não são mais exclusividades po-licialescas, é preciso (re)debater o grau de qualificação dessa ‘busca’ pela verdade no processo e seus parâmetros. Em relação a essas técnicas, o topos interpretativo deve ser mediado pelo quantum de expectativa de intimidade e o quanto de invasão de pri-vacidade com os quais se está trabalhando. O dado qualitativo da permissão ou veto da ‘busca’ deve se dar nesse parâmetro. A tarefa jurisdicional é refrear táticas de pro-

va que em nome da ‘verdade’ (ou de uma verdade) venham a franquear os valores constitucionais relativos ao mais profundo grau de dignidade em troca da glorificação imagética.

As fartas possibilidades audiovisuais dessa era em conjunto com a sanha punitivis-ta emergencial (CHOUKR, 2002, pp. 55-56) perigam gerar um eficientismo que se traduz em necrose ética, como anunciou a teletela secretamente disposta atrás de um quadro, justamente quando, no 1984 de Orwell, Winston e Julia se acreditavam des-frutando da intimidade suprema de pensar em voz alta (ORWELL, 2009, p. 261):

“Vocês são os mortos”

O compromisso jurisdicional com as va-lorações éticas orientadas constitucional-mente e sempre vergadas ante parâmetros democráticos que nem sempre pagam tributo a uma lógica matemática parecem ter mais essa grande tarefa nesse primeiro esboço de século XXI: impedir que as pes-soas só estejam verdadeiramente seguras para praticar certos atos e expor certas in-tenções no escuro ou em pensamento.

Referências:

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

GOLDSCHMIDT, James. Principios generales del Proceso II. Problemas jurídicos y políticos del proceso penal. Buenos Aires: EJEA, 1936.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2012.

ORWELL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner e Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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Informe de JurisprudênciaTribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do SulApelação-crime nº 70056883572, Rel. Des. Diógenes Vicente Hassan Ribeiro, 3ª Câmara Criminal, julgado em 19/12/2013.

APELAÇÃO-CRIME. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. NULIDADE. Verificou-se a quebra da imparcialidade, atributo mor da magistratura, no momento da coleta da prova oral. O juízo dispensou tratamento diferenciado às testemunhas de defesa e aos usuários ouvidos em juí-zo, em relação aos policiais, advertindo os primeiros de que, se achasse que estavam mentindo, sairiam da audiência direto para a Delegacia de Polícia. Em contrapartida, no momento do depoimento da autorida-de policial, nem o compromisso foi toma-do. A postura é inadequada porque, além de intimidar a testemunha, nem sequer seria possível eventual prisão em flagran-te durante o depoimento judicial, no caso dos autos. Por outro lado, especificamen-te em relação a uma testemunha arrolada pela defesa, houve exagero na condução, quando foi dito para “tomar cuidado com as suas respostas” e “não subestimar a sua inteligência”. Outrossim, em dado momen-to, disse que o relato feito pela testemunha configurava tráfico, antecipando o mérito da causa. O magistrado imparcial deve manter-se dis-tante durante a instrução, não cabendo tecer considerações ou tirar conclusões das colo-cações das testemunhas ou dos réus antes do momento apropriado, que é a sentença condenatória. No caso, poderia ter deixado para valorar o depoimento da testemunha na decisão da causa, abstendo-se de con-clusões na audiência. Por fim, quando do interrogatório de um dos acusados, houve a promessa indevida de certeza da redução da pena se confessasse. O magistrado não pode fazer promessas indevidas de atenuação de pena para obter confissão. Inexistência no

sistema jurídico pátrio do instituto da bar-ganha norte-americano, em que há possibi-lidade de reduzir a pena em troca da confis-são e da economia do processo.

VOTOSDes. Diógenes V. Hassan Ribeiro (RELATOR)

PROCESSO ANULADO DE OFÍCIO.

Impõe-se, de ofício, reconhecer a nulidade da instrução, por verificar-se a quebra da imparcialidade do magistrado na audiên-cia de instrução, conforme mídia audiovi-sual constante dos autos.

A primeira constatação que se faz é a di-ferença de tratamento conferido aos poli-ciais e às testemunhas arroladas pela defesa e aos usuários de drogas ouvidos. Quando da oitiva de Juliano Pereira, Sandro Ro-drigues, Davi Cristiano, Gustavo, Rodrigo de Almeida e Maiquel Volnei ao compro-missá-los, constou a seguinte advertência: “tu tem o dever de me dizer a verdade, sob pena de responder processo por falso testemunho, se eu achar que tu estás men-tindo tu sai daqui direto para a Delegacia de Polícia”.

Quando da oitiva dos policiais Rodrigo Queiroz, Jean Carlos, Laudinor Luiz e Van-derlei, contudo, houve apenas referência ao dever de dizer a verdade. Ainda, quando da oitiva do Delegado de Polícia Mauro nem sequer esta advertência houve, não sendo colhido, pois, o seu compromisso.

Ora, quando da inquirição das testemu-nhas deve o juízo tomar o compromisso

– ou ouvi-las como informantes – e pode informar que, se a testemunha faltar com a verdade, poderá responder pelo crime de falso testemunho, conforme disciplina o art. 203 do Código de Processo Penal. Nada mais é necessário dizer. A colocação de que “se o juízo ‘achar’ que o inquirido está mentindo fará com que saia da sala de audiência ‘direto para a Delegacia de Polícia’” é indevida, porquanto intimida a testemunha. Aliás, a respeito disso há a disciplina do art. 211 do Código de Proces-so Penal, que estabelece que, na sentença, o magistrado poderá fazer essa considera-ção, caso em que determinará a remessa dos autos à autoridade policial para o in-quérito policial.

No caso, insta reiterar que se tratava do primeiro depoimento em juízo (sendo que algumas das testemunhas nem na fase po-licial foram ouvidas) e, portanto, não havia a mínima possibilidade de concluir pela falsidade do depoimento com a simples confrontação com as declarações policiais. Seguidamente há relatos na fase policial que não se confirmam em juízo, conside-rando o contexto em que são colhidas as declarações policiais. No ponto, vale lição doutrinária de Guilherme de Souza Nucci:

(...) Logo, para aqueles que entendem ser cabível prisão em flagrante nesse caso, devem esperar que a testemunha assine o que declarou. Jamais deve-se dar a voz de prisão durante o depoi-mento, pois há possibilidade de a tes-temunha tornar atípica a conduta que possa ter-se iniciado típica, isto é, voltar atrás na mentira que estaria a narrar.1

Por outro lado, no depoimento da teste-munha arrolada pela defesa de nome Davi Cristiano houve outros dois momentos que contiveram exagero na condução. Após a testemunha aduzir que ele e o réu Cristia-no eram usuários de drogas, explicando a maneira como adquiriam a droga e a com-partilhavam, foi manifestada conclusão que antecipa conclusão favorável à condenação: “tá é isso que eu acabei de falar, é tráfico” (1min50seg da mídia audiovisual de fl. 337). Contudo, descabem consideração so-bre o mérito da causa durante a coleta dos

depoimentos em audiência. A situação re-tratada evidenciou, claramente, que o des-fecho meritório do processo seria pela con-denação dos réus, ainda durante a coleta da prova, o que efetivamente ocorreu.

Ainda, após questionamento da defesa so-bre se a testemunha sabia onde o réu Cris-tiano ficava à noite, Davi respondeu que acreditava que ele ficasse em casa, porque falava com o réu pelo “faceboock” e “MSN”, sendo que naquela época disse que não havia tanta acessibilidade. Nesse momen-to, houve interrupção ao relato e pergunta “que época o que, o ano passado tu quer di-zer?” E a testemunha responde “é, acho que é”. Neste momento a magistrada diz “pelo amor de Deus né”, tendo a testemunha justificado “eu não sei ao certo, não tenho como assegurar que ele estava em casa”. A julgadora responde “só não subestime a nossa inteligência, tá” e “então cuida bem das tuas respostas” (4min40seg mídia au-diovisual de fl. 337). A partir de então não são feitas outras perguntas.

Ora, o julgador deve manter-se distan-te durante a instrução, não cabendo tecer considerações ou tirar conclusões das co-locações das testemunhas ou dos réus antes do momento apropriado, que é a sentença condenatória. No caso, poderia ter deixado para valorar o depoimento da testemunha na decisão da causa, abstendo-se de con-frontá-la na audiência, pois isso evidencia que descrê das suas palavras naquele mo-mento, quando ainda nem haviam sido ouvidos os réus, ou seja, quando, em tese, não teria formado a sua convicção. Além disso, também houve intimidação da teste-munha, advertindo-a para “cuidar com as suas respostas”.

Por fim, quando foi interrogado o réu Cris-tiano, a magistrada disse-lhe que “se even-tualmente o senhor confessar os fatos, o se-nhor com certeza receberá a atenuante da confissão e uma vez condenado a pena será menor” (40segundos da mídia audiovisual de fl. 337).

Ora, convém destacar que os atributos fundamentais que devem presidir a ma-gistratura são a independência e a impar-

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Des. Jayme Weingartner Neto (REVISOR) De acordo com o(a) Relator(a).

Des. Nereu José Giacomolli (PRESIDENTE) De acordo com o(a) Relator(a).

DES. NEREU JOSÉ GIACOMOLLI Presidente - Apelação Crime nº 70056883572, Comarca de Teutônia:

À unanimidade, anularam, de ofício, a audiência de instrução, prejudicada a análise de mérito do recurso. Expeçam-se alvarás de soltura na origem, se por outro motivo não estiverem presos.

1 NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 1155-1156.

2 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 651-655.

3 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 8. Ed., revista, atualizada e ampliada. São Pau-lo: Saraiva, 2008, p. 437.

cialidade e que o modelo constitucional do processo penal obedece a diretrizes de um sistema acusatório que prima pela separa-ção entre as funções de acusar e de julgar. Assim, o julgador deve figurar como repre-sentante do Estado, sendo terceiro desinte-ressado e equidistante, e o Ministério Pú-blico deve atuar no processo como agente acusador estatal.

Nesse sentido, não cabe ao julgador atuar a qualquer custo em busca da suposta ver-dade, deixando de atentar à regra mor da imparcialidade, tendo em vista que o sis-tema acusatório se define quanto ao for-talecimento das partes, com consequente redução da participação do julgador na produção da prova.

Assim preleciona Aury Lopes Júnior, tra-tando sobre o tema2:

A mudança foi muito importante e adequada, para conformar o CPP à estrutura acusatória desenhada na Constituição que, como visto ante-riormente ao tratarmos dos sistemas processuais, retiro do juiz o papel de protagonista da instrução. Ao demar-car a separação das funções de acusar e julgar e, principalmente, atribuir a gestão da prova às partes, o modelo acusatório redesenha o papel do juiz no processo penal, não mais como juiz-ator (sistema inquisitório), mas sim de juiz-espectador. Trata-se de atribuir a responsabilidade pela pro-dução da prova às partes, como efeti-vamente deve ser num processo penal acusatório e democrático.

Portanto, o juiz deixa de ter o papel de protagonismo na realização das oitivas, para ter uma função comple-tiva, subsidiária. Não mais, como no modelo anterior, terá o juiz aquela postura proativa, de fazer dezenas de perguntas, esgotar a fonte probatória, para só então passar a palavra ás par-tes, para que, com o que sobrou, com-plementar a inquirição.

No mesmo sentido, Guilherme de Souza Nucci3:

8. Procedimento do interrogante: a autoridade que interroga deve agir com cautela, prudência e equilíbrio, estando cônscia de que sua tarefa não é conseguir, a qualquer custo, a admissão de culpa do indiciado ou acusado.

(...)

Assim, resolvendo prestar esclare-cimentos, não deve ser coagido, de qualquer modo, a responder o que não pretendene. Tom Williamson menciona os erros mais comuns no procedimento do interrogante, que pode macular eventual confissão daí advinda: a) inaptidão do interrogan-te para inquirir, demonstrando ner-vosismo fora do comum e ânsia de buscar rapidamente a confissão, b) presunção de culpa, assumindo desde logo o inquiridor que o interrogado é culpado, c) método empobrecido de interrogar, mal sabendo o que per-guntar, interrompendo a todo mo-mento o raciocínio do indiciado ou réu e truncando a inteligência da sua exposição, d) falta de profissionalis-mo para inquirir, assumindo pos-tura agressiva, fazendo promessas indevidas e sugestionando o inter-rogado (Reflections on current Police practice, p. 110-111, in Morgan, Suspi-cion & silence) (grifei).

Com efeito, prescreve o artigo 65, inciso III, alínea “d”, do Código Penal que a confissão espontânea da autoria do crime, peran-te autoridade, é circunstância que sempre atenua a pena. Destarte, entende-se como sendo espontânea a vontade livre de qual-quer coação e sem qualquer motivação.

Inexiste, aliás, no sistema jurídico brasilei-ro o instituto da barganha, como se dá no direito norte-americano, em que se negocia a confissão em troca de pena menor. Con-forme consignado acima, houve uma “pro-messa”, indevida, de certeza de redução da pena se houvesse eventual confissão.

Com efeito, não há falar em diminuição da pena no interrogatório, tendo em vista que esta fase processual é o momento em que

o réu exerce a sua defesa pessoal e dá a sua versão direta do fato, depois de produzida toda a prova apresentada pela acusação.

Contudo, há situações em que não há pos-sibilidade de redução de pena, na hipótese, por exemplo, de a pena-base ser fixada no mínimo legal, como ocorreu no caso dos autos (fl. 404). Como, então, reduzir a pena mínima, mesmo havendo eventual confis-são, nessas condições, diante da vedação da Súmula nº 231 do Superior Tribunal de Justiça. A propósito dessa impossibilidade há decisão de repercussão geral no Supre-mo Tribunal Federal.

Então, numa circunstância como essa, como pode o magistrado dizer, no inter-rogatório, que haverá certeza de redução de pena, quando, na verdade, não poderá haver nenhuma redução de pena?

E esse é precisamente o caso dos autos.

Não, há, portanto, como sustentar a con-denação do réu com base na prova colhida nestes termos, cumprindo declarar a nuli-dade da instrução.

Diante do exposto, anulo, de ofício, a au-diência de instrução, prejudicada a análi-se de mérito do recurso. Considerando a nulidade declarada, expeçam-se alvarás de soltura na origem, se por outro motivo não estiverem presos.

Page 19: Boletim Informativo IBRASPP - Ano 04, nº 06 - ISSN 2237-2520

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