Botos-esculturas – Obras de Arte Pública Portadoras de Prazer

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    Botos-esculturasobras de arte pblica portadoras de prazer,tenso e conflito na celebrao dos 450 anos da cidade do Rio de Janeiro

    Mariana Martins (1), Aldones Nino (2), Aldemar Norek (3), Rubens Andrade (4)

    (1)Graduanda em Histria da ArteEBA/UFRJ. Email: [email protected](2)Bacharel em Filosofia e Graduando em Histria da Arte EBA/UFRJ. Email: [email protected](3)Arquiteto Urbanista, Doutorando do Programa de Ps-Graduao em ArquiteturaPROARQ/UFRJ.

    Email: [email protected]

    (4) Paisagista Professor Adjunto da Escola de Belas ArtesEBA/UFRJ.Email: [email protected]

    Resumo:Este trabalho pretende refletir sobre a exposio de arte pblica Memrias do Botorealizada na

    cidade universitria da Ilha do Fundo, na cidade do Rio de Janeiro. Neste movimento, surgiram questesvoltadas diretamente s interaes que a exposio em si gerou com o pblico, como tambm outras

    questes que alaram relevo no plano poltico que, por sua vez, merecem uma leitura sociopoltica mais

    profunda, notadamente no contexto da arte pblica e da paisagem. A exposio fez parte do calendriooficial de comemorao dos 450 anos da cidade e, em funo disso, acredita-se que a mesma incitou aes ereaes de significativa relevncia para entender no apenas a dimenso que possui uma interveno de arte

    pblica, mas em particular a amplitude e profundidade das interaes arte/pblico a partir do momento que

    foram geradas questes significativas a serem pensadas sob o plano artstico-poltico. Tais questes,detalhadas no texto, so um legado que necessita reflexo, seja nas questes relativas arte, seja nas

    relativas poltica e aos usos do espao pblico, onde as duas vertentes se encontram de modo maisexpressivo.

    Palavras-chave:Arte pblica, Paisagem, Memrias do boto, Poltica, Espaos livres

    Abstract: This paper aims to reflect about the public art exhibition Memrias do Botoheld at the UniversityCity at Ilha do Fundo, in the city of Rio de Janeiro. In this activity, issues arose directly about the

    interactions generated by the exhibition with its public, as well as other politically relevant issues that merita deeper sociopolitical reading, notably in the context of public art and landscape. The exhibition was part of

    the official schedule of the citys 450thbirthday, on that basis, it is believed that it urged actions and various

    reactions, significantly relevant to the understanding, not only of the dimension of a public art intervention,but also the extent and the depth of the public-art relations, once important issues on the artistic and political

    sphere emerged. These issues, detailed in the text, are a legacy that requires debate, whether in matters

    relating to art, whether in regard to politics and to the uses of the public space, where both strands meet in a

    more meaningful way.

    Key-words:Public art, Landscape, Memrias do boto, Politics, Open spaces

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    1. CIDADE, BOTO, OBRA DE ARTE: POSSIBILIDADES DISCURSIVAS E O IMAGINRIO DEUMA CIDADE A PARTIR DE SEUS 450 ANOS DE HISTRIA

    Assim vamos aprendendo, progressivamente, que a paisagem no apenasuma representao mental ou uma obra cultural. Possui uma realidade, que

    pode ser objeto das investigaes cientficas(BESSE, 2014, p. 45)

    A cidade no mais o cenrio de uma infinidade de cenas incongruentes,ele oferece sua prpria existncia morfolgica na banalidade tornada

    singular das cenas cotidianas, que no reteriam a ateno se fosse pontosde interesses do olhar do flanur(JEUDY, 2005, p. 91)

    Tomemos uma poro de terra em frente ao mar: no uma poro qualquer, pois nela, continente

    adentro, abre-se uma baa que, tendo barra to estreita, foi confundida pelos primeiros europeus que a

    avistaram com a foz de um rio. Os calendrios marcavam certo janeiro perdido agora na nvoa dos alvores do

    sculo XVI, 450 anos janeiros depois. Tomemosportugueses que se lanaram ao mar na busca pelo

    desconhecido, e tambm por fama e riqueza, e ali toparam com montanhas e serras muy altase disseram que

    as melhores guas h neste rio que podem ser1. Disseram ainda que dentro da barra tem uma baa que bem

    parece que a pintou o supremo pintor arquiteto do mundo, Deus Nosso Senhor2. E toparam com um povo

    muito diferente que ali vivia e chamava a enseada de Igua-Mbara(igua, enseada do rio, e mbar, mar), ou

    entoguana, que quer dizer seio, e bara, ou mar, o mar do seio, em referncia a seu formato arredondado que

    prov uma fartura de pesca, alimento para os filhos que o navegavam.

    Tomemos um visitante registrando em seu dirio que quando mar se agitava, s vsperas de

    tempestades, os golfinhos surgiam repentinamente tona dgua, mesmo noite, e assim tornariam o oceano

    quase verde, e que mesmo quando o mar estava calmo, reuniam-se no raro em to grande nmero em torno

    de ns e at onde alcanava a vista que parecia o mar coalhado de golfinhos.3No entorno da baa a natureza

    disps manguezais, restingas, praias de mar abeto, tudo emoldurado pelo relevo de uma grande serra e

    diversos macios costeiros. Adotemos a forma desta baa que fez dela um porto de abrigo natural, propcio

    atividade econmica, e assim foram ali erguidos fortes militares, igrejas, povoamentos, foram aterrados

    pntanos, construdas pontes, paos imperiais, bibliotecas, casas dos contos, ordens terceiras, praas e largos,

    pavimentadas ruas e abertos tneis, e para l afluram pessoas das mais diversas origens, alm dos que ali j

    estavam indgenas, europeus, africanos e toda a miscigenao que nasceu destes encontros, nem sempre

    pacficos, nem sempre violentos.

    1Pero Lopes de Sousa. Dirio de Navegao. 1531.2Padre Ferno Cardim, fins do sculo XVI.

    3Jean de Lery, sculo XVI.

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    Imaginemosum grupo de artistas que, atravessando o mar-oceano h 200 anos, nesta poro de terra

    que j se tornara uma cidade ao longo deste arco de tempo, fundaram a Academia Imperial de Belas Artes,

    hoje Escola de Belas Artes, lugar onde coraes e mentes exploram o poder criativo, questionador, crtico,potico e transformador potencializado pela criao de cada obra de arte. Assim, uma cidade que se estendeu,

    complexa, densa, lanando avenidas e estradas para bem alm de seu centro s margens da baa, e geraes

    que se sucedem impelidas pelo vento do progresso que tambm faz voar o anjo da Histria 4 que olha os

    escombros da cidade que se demole e se reconstri, incessantemente, se divide e se rene, rasgando novas

    avenidas por onde seus filhos desfilam, s vezes entoando sambas, s vezes em passeata, s vezes no labor

    dirio que sustenta todas as pequenas vidas que nesta poro de terra em frente ao mar tecem seus destinos.

    Desse modo, os 450 anos do Rio de Janeiro tm suscitado a construo de mltiplos olhares para

    celebrar as histrias de uma cidade que, por sua tradio, destaca-se no cenrio cultural e artstico do pas. Naode ao Rio despontam movimentos interessados em descrever trajetrias geogrficas, sociais, antropolgicas

    e culturais que inscrevem variadas dimenses desta metrpole. A partir das substncias que constituram e

    constituem hoje a sua paisagem, todavia, dentre as propostas surgidas para essa celebrao, uma delas possui

    um cartersui generiscuja forma e contedo associaram diferentes ordens de mundo, consubstanciando-as: a

    ExposioMemrias do Boto.

    2. A POTNCIA DA ARTE URBANA: LEITURAS DA PAISAGEM CULTURAL CARIOCA

    A exposioMemrias do Boto surgiu de uma parceria entre o Plo Tecnolgico da Ilha do Fundo,

    a Escola de Belas Artes (EBA-UFRJ) e a Reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O projeto

    ganhou forma e ampliou-se com a participao de professores, estudantes e artistas convidados, cada um

    contribuindo com sua proposta esttica para cada um dos quarenta e cinco botos executados em fibra de vidro

    a partir de prottipo previamente selecionado por concurso. Os botos foram distribudos pela cidade

    Universitria da Ilha do Fundo. Ocuparam rotatrias, canteiros centrais, acessos de unidades acadmicas,

    institutos e faculdades. Ou seja, os quarenta e cinco botos redesenharam, ainda que de modo efmero, a

    paisagem da Cidade Universitria, e ofereceram ao flanur contemporneo uma constelao de imagens,

    como nos lembra Henri-Pierre Jeudy, em seu livroEspelho das Cidades (2005)5, sobretudo, quando retoma a

    ideia dos vrios cenrios que habitam o espao urbano. No caso da Cidade Universitria, cada boto-escultura

    abria, a partir de sua proposta, frestas para a concepo pessoal de cada observador para os mltiplos cenrios

    que, pelo espao-tempo da exposio: aqueles que percorreram a Ilha do Fundo durante a exposio tiveram

    4Aluso ao texto de Walter Benjamin em sua nona tese no ensaio Teses Sobre o Conceito de Histria.

    5JEUDY, Henri-Pierre. Espelhos das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. p. 85 e ss.

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    a oportunidade de vivenciar as mltiplas possibilidades para (re)pensar o mundo por meio da arte urbana,

    como se cada escultura abrisse uma fresta na espessura do tempo, ressituando seu observador a partir do fato

    de instituir-se em discurso, em crnica composta de fragmentos de relatos, em alguns casos, ou em afirmaode uma idia acerca do passado ou do presente como resultado das aes e interaes do passado.

    Para estimular a abertura destas fendas na espessura do tempo da cidade que cada obra propiciava, o

    projeto contou com uma equipe educativa formada por seis estudantes do Bacharelado em Histria da Arte da

    Escola de Belas Artes, equipe que realizouvisitas guiadas em trechos da exposio, apresentando os boto-

    esculturase propondo reflexes aos visitantes. Alm dessa forma de interao com o pblico de uma forma

    ampla, foi includa na proposta do projeto a visitao de grupos delimitados e organizados, como alunos do

    EEI-UFRJ (Escola de Educao Infantil da UFRJ) e de grupos formados por moradores das comunidades do

    entorno. Neste trabalho tomamos como exemplo alguns casos de visitantes que, estimulados pela equipe doeducativo, fizeram uma releitura e recriaram a obra a partir de um trabalho conjunto de elaborao de

    discurso crtico, e analisaremos estas intervenes baseados nos vetores relacionados arte pblica (a

    exposio Memrias do Boto)e aofluxo de relaes (obra de arte e sociedade). Ficar demonstrado, assim, o

    objetivo deste trabalho: interpretar as interaes e as leituras sociopolticas que floresceram a partir dessa

    manifestao artstica e cultural aqui enfocada.

    O mencionado discurso crtico s se torna possvel ao no se perder de vista que a arte, quando ocupa

    o espao pblico, resultado de complexas relaes socioculturais, polticas e artsticas - os botos-escultura

    so mais um exemplo deste fenmeno. Essas intervenes criam reverberaes e se desdobram em processos

    que causam, entre outras coisas, o prazer, o conflito, ateno, a dvida, o pensamento, ou seja, a arte urbana

    nos prope questesque so, alis, elementos essenciais obra de arte.

    No caso da exposioMemrias do Boto, dentre as questes acima mencionadas, emerge a que nos

    parece a mais relevante: quantas narrativas podem surgir a partir da intercesso do elemento-smbolo boto, da

    idia de cidade e dos conceitos de arte para a cidade e aqueles que encontram com esses objetos em seu

    trajeto? Dito de outro modo: cada escultura-boto se ergue como fenmeno que provoca um tipo de interao

    crtica, na medida em que se afirma como discurso do artista que provoca, no contato, a necessidade de

    elaborao de um discurso de recepo, discurso este que se constitui como poltico, na medida em que o que

    se apresenta nas esculturas-boto sempre uma leitura ou releitura de algum aspecto da histria ou do espao

    da Cidade Maravilhosa.

    Isto nos leva a outra questo: qual o potencial inscrito nesta conjugao artstica, em suas

    singularidades, e quais as suas possveis projees no mundo? Quais os redimensionamentos conceituais que

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    tal interlocuo suscita no observador, e, ainda, em que medida o olhar deste ltimo se movimenta diante do

    conjunto de estmulos sensoriais e intelectuais construdos pela proposio boto + cidade + arte pblica?

    Baseado nos vetores relacionados arte pblica, exposio Memrias do Boto e ao fluxo derelaes obra de arte e sociedade, consideramos que interpretar as interaes entre observador e obra, bem

    como as leituras sociopolticas que surgiram a partir da visitao exposio, conjugam divergentes

    perspectivas dimenso do cotidiano de uma paisagem cultural permeada de processos sociais de

    significativo teor poltico. O cenrio desenhado pela exposio revela muito mais que uma comemorao:

    esse cenrio sublinha questes complexas que merecem serem vistas e analisadas por uma lente mais potente,

    pela lente dos estudos das paisagens culturais.

    .

    3.

    MEMRIAS DO BOTO: A POIESIS DE UMA NARRATIVA HISTRICO-ARTSTICO-POTICA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO.

    Reconectando as trajetrias histricas, culturais, religiosas, geogrficas, paisagsticas por meio da

    proposio boto + cidade + arte pblica, o projeto Memrias do Boto fez surgir ao longo da exposio, a

    possibilidade de que fossem construdas mltiplas narrativas urbanas. Diante disso, e para dimensionar tal

    processo, nos parece til analisaralgumas questes apresentadas por Jean-Marc Besse na sua obra O gosto

    do mundo: exerccios sobre a paisagem6. Besse nos oferece ideias que se aproximam de alguns processos

    institudos pela exposioMemrias do Boto. Nas suas reflexes, a paisagem o meio ambiente material e

    vivo das sociedades humanas, e por esse vis o autor observa que a paisagem7

    deve ser entendida como oponto de encontro entre decises humanas e o conjunto das condies materiais (naturais, sociais,

    histricas, espaciais, tec.) nas quais o humano surge e tentar reformular-se. [...] Nessa perspectiva, a

    paisagem pode ser definida como uma realidade material, espaotemporal, organizada em certo sentido,

    com o qual os seres humanos vo ter de se explicar 8. Ou seja, estamos no terreno da produo de sentido,

    que tambm atravessado pela elaborao dos discursos da arte e da recepo crtica da arte.

    As observaes de Besse ajudam a perceber que a exposio ocupa um espao que j conta com

    diversas e complexas relaes culturais, sociais, polticas e artsticas. Portanto, entendemos que os botos-

    esculturas jamais ficariam imunes reverberao de tais relaes. Cada uma delas, de uma forma ou deoutra, ativariam a construo das narrativas dos diversos sujeitos afetados pelas visualidades, pela

    materialidade e pelo simbolismo dos bot., qualquer um dos quarenta e cinco espraiados pela Cidade

    Universitria. Mediante a interao potencializada por cada obra ou pelo conjunto delas, aqui entendidas

    6BESSE, Jean-Marc. O gosto do mundo. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2014.7Aqui, fazemos uma leitura da exposio Memrias do Boto como uma ao inscrita no contexto paisagem.

    8BESSE, Jean-Marc. O gosto do mundo. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2014. pg. 45.

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    como elementos inscritos na paisagem, estas efemeramente, desenharam um universo caleidoscpico que

    permitiu ao passante ver, leresentiro mundo que pela Ilha do Fundose movimenta, permitindo ainda que

    cada pessoa se apropriasse de conjuntos de fragmentos de paisagem compostos pelos botos-escultura. Noesqueamos que as interpretaes e interaes so experimentadas a partir de uma tica positiva ou negativa

    e, isso nos levar para outras questes que sero abordadas frente.

    Deve-se ter em mente que construmos diferentes paisagens a cada dia e, assim, a cada nova visita

    estas podiam ser reinventadas. Por conta dessa constncia criativa do olhar de diferentes observadores e dos

    mais particulares enquadramentos que seus olhos exercitaram, seria oportuno mencionarmos a filsofa e

    ensasta Anne Cauquelin, e suas ideias apresentadas na obra A inveno da paisagem. Nesta obra, a autora

    tenta entender o olhar do observador para a paisagem, apreenso que pode ser aplicada para o boto, uma vez

    que escultura e arte pblica, mas tambm paisagem, constitu a paisagem. A autora, no exerccio decompreender o olhar do observador que emoldura a obra ou a paisagem vivencia uma curiosa tentativa de

    entender aquilo que est para ser visto. Cauquelin afirma que o enquadre exige o recuo, a distncia certa.

    Tudo ver, claro, mas apenas aquilo que est no campo, E, ainda o enquadramento inspira a ordem, d a

    regra dos primeiros planos e dos planos do fundo, porque suas bordas so orientadas de baixo para cima e

    da direita para a esquerda. Ela continua a anlise e vai alm: embaixo, o mais prximo; no alto, o mais

    distante. Entre as duas bordas verticais, uma superposio de planos. Horizontalmente, o capo apenas

    bordejado, sem outras regras alm das regras de abarcar um conjunto infinito 9

    Foi dentro do exerccio do olhar e dos enquadramentos sugeridos por Anne Cauquelin que os

    estudantes do educativoMemrias do Boto foram, ao longo de suas visitas no campo, coletar experincias

    diretamente da relao entre a obra e o espectador ou fruidor incidental ou guiado, na inteno de

    dimensionar o modo pelo qual a Exposio afetava a tantos diferentes olhares, com o objetivo de estabelecer

    distines que permitissem organizar tal experincia e transform-la em teoria. A experincia da resultante

    ofereceu a todos o combustvel necessrio para antever outras questes que, necessariamente, no se

    limitavam celebrao das obras de arte pblica. A partir dessas anlises buscamos compreender qual a

    extenso do anverso desta leitura, que desmistifica o boto-escultura como obra de arte a ser reverenciada,

    no tocada.

    Na exposioMemrias do Botoduas obras foram eleitas organicamente para ocuparem ostatus quo

    de boto-escultura a serem resinificadas pelo pblico. Desse modo, regulados por discursos que

    dilapidavam no apenas os significados originais, mas a prpria integridade fsica do objeto artstico, as

    relaes entre o observador e a obra de arte ganhavam variados nveis de interpretao. Os citados exemplos

    9CAUQUELIN, Anne. A inveno da paisagem. trad.: Marcos Marcionilo. So Paulo: Martins, 2007, p. 137

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    de tal movimento foram os dois botos-esculturas que sofreram intervenes no planejadas previamente a

    partir da remoo ou da retirada de elementos que faziam parte da sua composio original: as obras

    Praianas eEu no sou um golfinho.Antes de analisarmos estes dois exemplos, revisitemos algumas ideias que Nelson Brissac Peixoto

    nos oferece na obra Intervenes urbanas: arte e cidade10, visto que as ideias deste autor condizem com a

    perspectiva que queremos explorar atravs da anlise da exposio em tela. Em momentos distintos, Brissac

    Peixoto observa que a escultura moderna passoude uma lgica do lugar histrico, o monumento ou esttua,

    para a da forma autnomao objeto sem lugar11 e atualmente, afirmamos que, tal ideia possui ecos na

    exposio em questo afinal, o espectador passa de uma contemplao deambulatria de objetos

    autnomos, apresentados num contexto neutro, para viver uma experincia esttica proporcionada pelo

    lugar investido artisticamente

    12

    . Num segundo momento, Brissac pe em relevo o fato que as relaescom o lugar tornam-se um componente indissocivel da obra de arte. Essa nova experincia esttica

    substitui a contemplao de objetos autnomos descolados do contexto por uma colocao em situao.13

    Praianas eEu no sou um golfinho so exemplos de obras que oferecem a real dimenso de

    como a arte pblica se distingue no universo da arte contempornea e como, efetivamente, por no estarem

    protegidas pela guarda das instituies de arte, galerias ou exposies em ambientes monitorados, o olhar

    apura os processos de inteno pblica e de percepo at onde eles podem ser estendidos pela interveno

    dos (antes) observadores.

    A obraPraianas (Fig. 1),de autoria de Alexandre Roque de Carvalho, foi o centro de um instigante

    caso que ocorreu durante a exposio. A interveno artstica fazia referncia aos chinelos e pautava-se na

    relao do carioca com a praia a partir dos chinelos tipo havaianas, que se supe ser conhecida mundialmente

    e que, por sua vez, ganha enorme visibilidade por sua utilizao democrtica nos mais diversos pontos da

    cidade. A base que servia de suporte ao boto, originalmente, era recoberta por vrios chinelos coloridos. Com

    o passar das semanas de exposio, alguns chinelos sumiram da base da escultura. Este fato causou

    questionamentos. Surgiram hipteses para o ocorrido, uma delas foi a de que crianas de comunidades

    prximas teriam retirado da escultura os chinelos para utilizao prpria, mesmo sendo elas de tamanhos e

    cores diferentes. Diante disso, haveria aqui um sintoma da conhecida situao de extremo contraste social e

    econmico da cidade? Ou seria essa mais uma especulao, ou uma criao de factides que ganham as ruas

    e inventam as lendas urbanas? Afinal, sob que registro interpretar tal ocorrncia? Fatos como esse no so

    10PEIXOTO, Nelson Brissac. Intervenes urbanas: arte/cidade. So Paulo: SESC-SENAC, 2002.11Idem.Ibidem. p. 18.12Idem.Ibidem. p. 18.13

    Idem.Ibidem. p. 18.

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    inusitados e nem poderiam ser lidos isoladamente afinal, a escultura de Carlos Drummond de Andrade, na

    praia de Copacabana, uma prova cabal de que objetos, sejam eles mobilirios urbanos ou obras de arte,

    esto expostos a vrios tipos de prtica, incluindo mera depredao. De todo modo, tais acontecimentos eideias a eles conexas que vieram tona nos levaram a dimensionar a dinmica do acontecimento gerado a

    partir do contexto das obras de arte pblicas. Todas as aes diante ao fato, geraram um ponto de

    interrogao sobre o motivo que teria desencadeado tal comportamento. No houve uma apurao concreta

    dos fatos, porque isso envolveria um complexo aporte de atores, incluindo a segurana da Universidade14

    .

    A obraEu no sou um golfinho (Fig. 2), do artista Rafael Amorim ficou exposta no alojamento. Um

    grande fluxo de pessoas que passavam pelo local conviviam com aquele ser inanimado, mas no particular,

    ele se tornou o centro das atenes de um dos funcionrios da limpeza do prdio. O dia a dia daquele

    funcionrio era dedicado a regar plantas, minimizar a presena de capim alto e extinguir ervas daninhas. Apartir do incio da exposio, seu o cotidiano ganhou outra modulao pois, o jardim, a partir do momento

    que se tornou a morada temporria daquele ser boto, motivou aquele homem a uma atitude excntrica em

    meio a uma paisagem j tantas vezes vivenciada e, por isso mesmo, com to poucos atrativos. Suas

    preocupaes a partir de ento se ampliaram: com frequncia, ele utilizava a gua que regava folhas e galhos

    e umedecia as razes das plantas para alcanar a pele daquele cetceo ciborgue. A gua lanada na

    escultura fazia com que refletissem, luz do dia, as frases tatuadas em diferentes idiomas por toda a extenso

    corpo do boto.Ou seja, o boto inanimado no necessitava das guas do mar nem para nadar, nem para se

    refrescar. O seu movimento era outro. O banhar-se do eu no sou um golfinho, em alguma dimenso,

    captava para si outros movimentos, o movimento de corpos e de olhares animados que tentavam achar uma

    explicao pondervel para a sua auto-negao.Com um gesto simples aquela obra comprovava que so

    possveis analogias e metforas atravs de uma obra que motiva e anima tantos olhares e atitudes.

    4. CONSIDERAES FINAIS

    As histrias testemunhadas pelos educadores foram as mais diversas, sempre relacionadas com

    alguma histria da Ilha do Fundo ou da cidade do Rio de Janeiro. Histrias de vida, amores, decepes e

    superao eram relembradas. Alm de novas relaes estabelecidas com aqueles objetos, e observaes de

    como eles faziam parte de seus cotidianos, simbolicamente. Muitos visitantes, assim que desciam do nibus,

    questionavam sobre qual seria a proposta do artista, porm, bastava alguns passos em direo obra que o

    14Como testemunhas oculares da historia consideramos que, uma vez que a obra estava exposta em um local de grandecirculao, ela estava desprotegida, ou talvez, inscrita em um contexto urbano14que propiciava aes dessa ordem,

    pois trata-se de um local que recebe um expressivo nmero de transeuntes que chegam Ilha do Fundo ou se dirigem a

    diferentes bairros da zona metropolitana do Grande Rio.

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    espectador conseguia identificar os smbolos ali impregnados. Diante disso, parecia ento que se iniciava,

    junto visita guiada, uma espcie de jogo: desvendar o boto-escultura era, ao mesmo tempo, desvendar a

    cidade e relacionar-se pessoalmente com as lembranas a partir de um espao geogrfico vivenciado nopresente ou no passado de cada um. Frases como eu trabalhava ali,eu morei aqui, minha filha estuda

    leram recorrentes e imbudas de fortes simbolismos. Essas e muitas outras frases eram citadas enquanto

    toda a exposio na Cidade Universitria era percorrida.

    Cada um visitante vivenciava as trajetrias histricas cariocas em um dos circuitos pr-formatados

    para visita aos quarenta e cinco botos. Ou seja, os fragmentos histricos, culturais, artsticos de cada boto

    formavam uma pulseira de contas coloridas que ativava a cada momento, em cada visitante guiado (ao nosso

    ver de um modo incidental), um refazimento do palimpsesto de memrias afetivas que cada um deles carrega

    consigo, sejam memrias prprias ou importadas das vivncias de seus pais, avs e tios, das suas famlias. Asnarrativas de muitos visitantes velejavam pelo hiperespao atravs de correios eletrnicos, redes sociais e

    telefonemas, entre outros meios. Amizades foram feitas, pontes estabelecidas. Assim as memrias do boto

    entrecruzaram-se e se instalavam nas memrias coletivas dos visitantes. Durante semanas, muitas relaes

    foram estabelecidas e lembranas revividas.

    Para alm da legitimidade ou no de aes como a retirada dos chinelos do boto Praianas ou o

    sumio do guarda-sol do Aquaboto (Fig. 3), questes nos foram propostas. A arte urbana problematizou o

    urbano em seus aspectos simblicos, as narrativas vo para alm dos circuitos, alm dos observadores, alm

    da UFRJ e alcanam outras dimenses. Longe de oferecer respostas a exposio nos trouxe questes, e essas

    questes podem e devem ser interpretadas e aprofundadas. O Rio de Janeiro completa seus 450 anos sendo

    uma cidade que revela uma histria nica, que acompanhou e influenciou o desenvolvimento de todo o pas e,

    ao mesmo tempo, crivado por contradies que seus governos vem sucessivamente imprimindo ao tecido da

    cidade. Ao olhar para os botos podemos vislumbrar tal percurso, caminhos traados e rotas cruzadas. Porm,

    para alm do testemunho do passado, os 45 botos podem revelar algumas questes que podem nortear o que

    vem a partir do presente. Os 450 anos do Rio devem ser observados com orgulho, mas tal histria pode (e

    deve) se confundir com o presente e guiar as nossas diretrizes para se pensar em um novo futuro.

    As narrativas testemunhadas, seja por alunos, professores ou visitantes, formam a base para uma

    nova teia de acontecimentos que guiaro o caminho para um Rio cada vez mais inclusivo e plural. Seja qual

    for a obra, um mundo se desdobra em direo ao espectador. Memrias do Botono uma simples exposio

    de propostas estticas vinculadas a memrias do Rio de Janeiro: seus desdobramentos vo muito alm do

    passado, nos situando no presente e podendo gerar um quantum de pensamento crtico que possa iluminar o

    caminho em direo ao futuro.

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    Um exemplo de apropriao crtica a partir dos signos referenciados nas obras foi o questionamento

    estabelecido pelo Coletivo Nebulosa Culturalformado, majoritariamente, por estudantes moradores da Ilha

    do Fundo , que pensou a interao entre obra de arte e realidade social, resultando na apropriao daexposio como instrumento para refletir sobre a realidade atual da cidade. A ao consistiu na colagem de

    diversas fotografias nas quais retratado o contraste das relaes sociais no tecido urbano, ressaltando, por

    este procedimento, a violncia e os conflitos existentes entre as foras atuantes na cidade.

    Dessa forma, o Coletivo fez uso da visibilidade das obras que problematizavam o presente a partir

    de aspectos rememorativos da histria cultural do Rio de Janeiro para incitar uma posio critica na

    formulao de diretrizes polticas para o futuro. Os botos-esculturas se tornam se tornam ndices de uma

    dialtica do presente, dialtica a partir da qual as reverberaes se expandem para alm do espao geogrfico

    da Ilha do Fundo em direo cidade do Rio de Janeiro. A ao buscou estabelecer uma relao critica comos usos presentes do espao pblico.

    Sendo o Rio de Janeiro a matriz que indicou o movimento que cada artista fez a partir do suporte

    material da forma boto, faz-se importante destacar que o movimento cotidiano que d forma e inscreve a

    paisagem carioca nas narrativas que nos chegam atravs de relatos de viagem e publicaes antecedentes, nas

    que so escritas diariamente em jornais, revistas e redes sociais, nas que surgiro atravs da interao com os

    botos e com a Ilha, entre muitas outras, e interpret-las.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICASBESSE, Jean-Marc. O gosto do mundo. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2014.

    CAUQUELIN, Anne. A inveno da paisagem. trad.: Marcos Marcionilo. So Paulo: Martins, 2007.

    COLLOT, Michel.A potica e a filosofia da paisagem. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2012.

    ELIAS, Norbert.Escritos e ensaio: estado, processos, opinio pblica. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

    GOTTDIERNER, Mark.A produo social do espao urbano.So Paulo: Edusp, 2010.

    JEUDY, Henri-Pierre. Espelhos das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.

    PEIXOTO, Nelson Brissac. Intervenes urbanas: arte/cidade. So Paulo: Sesc Senac, 2002.

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    A- ANEXO: AS BOTOS-ESCULTURAS

    Figura 1Boto Praianas. Acervo dos AutoresFotografia: Rubens Andrade

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    Figura 2Boto Eu no sou umm golfinho. Acervo dos AutoresFotografia: Barbara Martins

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    Figura 3Aquaboto. Acervo dos AutoresFotografia: Barbara Martins