184
Brasil: o que resta fazer?

Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Brasil: o que resta fazer?

Page 2: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Cad

erno

sAde

naue

r

Page 3: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Brasil: o que resta fazer?

3

Page 4: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Todos os direitos desta edição reservados à

FUNDAÇÃO KONRAD ADENAUERCentro de Estudos: Praça Floriano, – ° andar - – Rio de Janeiro, RJ – BrasilTel.: --- · Telefax: ---

Impresso no Brasil

Coordenação editorialCristiane Duarte Daltro Santos

RevisãoCristiane Duarte Daltro SantosReinaldo Themoteo

Capa, projeto gráfico e diagramaçãoCacau Mendes

Impressão Zit Gráfica e Editora

Editor responsávelWilhelm Hofmeister

Conselho editorialAntônio Octávio CintraFernando LimongiFernando Luiz AbrucioJosé Mário Brasiliense CarneiroLúcia AvelarMarcus André MeloMaria Clara Lucchetti BingemerMaria Tereza Aina SadekPatrícia Luiza KegelPaulo Gilberto F. VizentiniRicardo Manuel dos Santos HenriquesRoberto Fendt Jr.Rubens Figueiredo

ISSN 1519-0951Cadernos Adenauer VII (2006), nº 3

Brasil: o que resta fazer?Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, setembro 2006.

ISBN: 85-7504-110-X

Page 5: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Sumário

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

ARTIGOS

Fragmentos de um discurso do que resta a fazer . . . . . . . . . ANNA AZEVEDO

Brasil: o que resta a fazer? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . HELIO JAGUARIBE

Reforma Política, realismo e normas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . FÁBIO WANDERLEY REIS

O que ainda falta ser feito na educação básica no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

JOÃO ROBERTO MOREIRA ALVES

O futuro da educação e a Reforma Universitária . . . . . . . . ESTEVÃO DE REZENDE MARTINS

Preservar e mudar: os desafios para a Política Econômica . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

MARIA CLARA R. M. DO PRADO

Page 6: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Conflitos federativos e Reforma Tributária . . . . . . . . . . . . . . FERNANDO REZENDE

Política Agrária: modernização sem exclusão . . . . . . . . . . . . GERVÁSIO CASTRO DE REZENDE E PAULO TAFNER

“A Polícia que queremos”: desafios para a reforma da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro . . . . . . . . . .

HAYDÉE CARUSO, LUCIANE PATRÍCIO E ELIZABETE R. ALBERNAZ

A lição da crise paulista da segurança . . . . . . . . . . . . . . . . . . JOSÉ VICENTE DA SILVA FILHO

Judiciário: mudanças nem sempre à vista . . . . . . . . . . . . . . . MARIA TERESA AINA SADEK

Desafio da inserção internacional do Brasil: próximos passos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

EMBAIXADOR JOSÉ BOTAFOGO GONÇALVES

Ética pública e Estado de Direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ALBERTO OLIVA E MARIO GUERREIRO

Page 7: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Apresentação

C ampanhas eleitorais são lutas pelo poder. Ao mesmo tempo, devem sermomentos de apresentação e discussão de novas propostas e de programas

políticos para a construção da comunidade e para resolver os problemas queainda dificultam uma convivência mais solidária, mais próspera, mais segurapara todos. Sem considerar este aspecto programático, as campanhas eleito-rais ficam vazias, não têm sentido. São meramente uma luta pelo poder semperspectiva de construção.

A apresentação de idéias e propostas não é um privilégio da classe políti-ca. Na democracia, todos os cidadãos são chamados a contribuir com as suasidéias e os seus comentários, a promover ou corrigir as propostas e programasdiscutidos na arena política. Por isso, durante as campanhas eleitorais, oscidadãos e eleitores devem procurar o contato com os candidatos e indagar-lhes sobre suas propostas. Ao mesmo tempo, cada um deve apresentar as suaspróprias idéias, proposições e queixas.

Com o propósito de contribuir ao debate programático na época da cam-panha eleitoral, convidamos um grupo de autores a escrever suas consideraçõese propostas. A pergunta geral que lhes colocamos foi: “o que resta fazer?”.Recebemos respostas sobre diversas áreas. Mesmo assim, sabemos que os temasabortados não abrangem todos os setores da política ou da gestão pública. Noentanto, esperamos que as colocações que aqui publicamos enriqueçam odebate sobre diversos temas e reformas de políticas públicas nos próximos anose provoquem mais discussões e reflexões sobre o que resta fazer no Brasil.

Page 8: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo
Page 9: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Fragmentos de um discurso do que resta a fazer1

AN N A AZ E V E D O

N ão, nada de pessimismo. Mas o quadro não ajuda muito: vésperas deeleição sem alternativa qualitativa ao atual governo de desencantos.

Tímidas possibilidades de limpeza ética do Congresso. Sem contar com o fatode termos sido barrados das finais da Copa do Mundo por incompetênciaatlética – logo nós, “os melhores do mundo”. Perguntar o que resta a fazerparece tripúdio sobre a necessidade do brasileiro de ter, sempre, que zerar ascontas e começar de novo. Com a velha esperança do “agora, vai!”.

Observo, leio nas entrelinhas, desconfio de histórias aparentementebanais. Quase sempre, camuflam fragmentos de sonhos. E o Brasil transbor-da em sonhos escandalosamente frustrados por uma seqüência infinda demalversação da atividade política.

Na dinâmica do fazer documental, cruzo com retalhos de discursos sobreum Brasil que rouba de gerações contíguas o direito de dar o passo seguinteao sonhar. Ou seja: o realizar. E o incômodo bate forte quando captamos otom de desânimo e descrédito marcando uma geração que prefere hibernar ater que viver sob o pesadelo dos desejos não correspondidos. Estão, perigosa-mente, jogando a toalha cedo demais.

Mas até mesmo os discursos desiludidos são carnavalizados2 nesta nação.Esse atavismo talvez seja a nossa sorte. Teimamos em um dia ser, de fato, a

1. Citação ao título do livro Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes. Todosos entretítulos seguem como citação dos capítulos desta obra.

2. Citação da Teoria da Carnavalização da Literatura, desenvolvida por Mikhail Bakhtin.

Page 10: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

terra afortunada vislumbrada na nossa certidão de nascimento, a Carta deCaminha: “(...) E de tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo”.3

Parece que naquela sexta-feira, 1º de maio de 1500, em Porto Seguro, oescriba Pero Vaz teve, ainda, uma clarividência aplicável à Ilha de Vera Cruzdo século 21: “Porém, o melhor fruto que dela se pode tirar me parece queserá salvar esta gente”.4

Talvez esta seja a primeira das providências incluídas no rol do que restaa fazer, respondendo a provocação inicial desta publicação. Sem o messianis-mo presente na pena do “documentarista” da frota de Cabral, é preciso salvar,sim, o brasileiro da descrença de que o país não tem mais jeito. E, para isso,faz-se mister desinsetizar a Terra Brasilis de duas pragas que corroem as insti-tuições e dilaceram os sonhos de justiça social: a ignorância e a corrupção.Durante séculos, estas se reproduziram estrategicamente, em retroalimen-tação. Basta!

Algumas narrativas serão mais eficientes para falar do futuro do que mi-nhas vãs conjecturas. Trago, então, alguns discursos de brasileiros, cenas queclamam por “salvação” ou aderem ao salve-se quem puder / faça você mesmo.Porque não há mais tempo a perder. Pois se a educação, base das sociedadesque reivindicam o posto de justas e desenvolvidas, é, no caso brasileiro, umadebilitada camada vítrea, o que resta a fazer para cimentar o porvir é pratica-mente tudo.

1. DA ESPERANÇA

I

Numa ladeira da Vila da Penha, bairro pobre do Rio de Janeiro, uma casachama atenção por abrigar livros, muitos livros na garagem. São 50 mil volu-mes que avançam pela casa adentro, tomando de assalto sala, quartos, cozi-nha; esparramam-se pelas camas e sofás; escondem portas, armários, estantes.Eis a Biblioteca Popular Tobias Barreto. Basta entrar e levar um ou mais livrospra casa, sem burocracia de empréstimo, nem data para entrega; sem ficha decatalogação nem prateleiras temáticas. Uma perfeita desordem livresca, como

3. Carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal. Brasil, 1500.

4. Idem.

Page 11: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

define o guardião destas preciosidades de papel, o pedreiro aposentadoEvando dos Santos, 46, um bibliófilo que até bem pouco tempo achava queclássico era a marca do cigarro que fumava no canteiro de obras do conjuntohabitacional Vila do João, no Complexo de Favelas da Maré (RJ). Lá, nointervalo do almoço, um dos peões saboreava livros clássicos e oferecia aoscolegas fatias de Machado de Assis, Dostoievski, Kant... Desta forma, Evandodescobriu o poder transformador da cultura. “Ela iguala as pessoas. Sobre lite-ratura, eu, um simples pedreiro, falo de igual para igual com um engenheiro”.

O aposentado e seus delírios quixotescos provocam uma revolução cul-tural silenciosa na Vila da Penha. “Quero resgatar a cidadania perdida da zonanorte”. Convenceu Oscar Niemeyer a desenhar o projeto da sede da bibliote-ca para onde os 50 mil livros sufocados em sua casa serão removidos. Será aprimeira obra do arquiteto em uma região pobre do Rio de Janeiro. Ficarápronta no fim de 2006.

II

Freqüentadores assíduos da casa-biblioteca são os alunos da EscolaMunicipal Grécia. Entre os estudantes está Suze Ariane, 14. Sempre com deli-neador realçando os olhos brilhantes, Suze é uma típica adolescente de classemédia baixa brasileira. Com um porém que a diferencia dos de sua geração econdição social: o hábito da leitura. Já devorou obras de formação como DomQuixote, de Miguel de Cervantes, e Os Miseráveis, de Victor Hugo. Com oQuixote diz que brotou a certeza de que os sonhos devem ser perseguidoscuste o que custar. Revezes há sempre pelo caminho.

III

Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletáriabrasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo para umpaís que precisa dar o pulo do gato e alcançar a justiça social.

Ao mesmo tempo, são exemplos de gerações distintas com potencialida-des perdidas ou em risco: o pedreiro, que gostaria de ter estudado para serprofessor, só se alfabetizou quando adulto e o contato com a literatura acon-teceu ainda mais tarde, graças a um golpe de sorte do destino que o colocouno mesmo canteiro de obras do operário que lhe deu a dica: clássico não é sómarca de cigarro, não, seu Evando! E, aos 14 anos, Suze precisa encontrar aolongo de seu caminho escolas públicas e mestres com capacidade para lapidar

frag

men

tos

de u

m d

iscur

so d

o qu

e re

sta

a fa

zer

Page 12: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

e nutrir a sua sede de saber. Caso contrário, não germinará. O que, infeliz-mente, se depender da qualidade do ensino público fundamental do Brasil,corre o risco de acontecer. Parafraseando o escriba da frota que chegou aoBrasil, em 1500, é preciso salvar esta geração.

2. DA DECEPÇÃO

C ena 1: Frankfurt, Alemanha, 1º. de julho de 2006. A seleção brasileira defutebol entra em campo para enfrentar a França nas quartas-de-final da

Copa do Mundo. Os azuis abatem os canarinhos e seguem em frente. O Brasilencerra, vergonhosamente, a sua participação na Copa da Alemanha. Corta.

Cena 2: Horas depois, bar no Leblon (RJ). Numa mesa, profissionaisliberais bebem para esquecer a derrota, discutem o amor, o futebol e a políti-ca. Até que uma moça do grupo, triplamente decepcionada – com o amor(recém separada), com a seleção brasileira (que fizera feio) e com a iminênciada reeleição do presidente Lula, declara: “Parei tudo. Agora só em 2010”.

O inverno do desencanto será longo...Assim como os ursos, uma parcela mais que aceitável da população pare-

ce hibernar, orgulhosamente, no intervalo das eleições, repetindo fenômenoque acomete o futebol com sua torcida quadrienal. Afinal, pra que vigiar senão há punição?5

Teremos quatro próximos anos delicados, do ponto de vista político. Overão da esperança durou pouco. A lua-de-mel do brasileiro com a política foicurta, poucos são os políticos que encerrarão seus mandatos sem manchas.Como no futebol, cujas núpcias com a torcida findaram duas estações antesde Berlim.

Chegaremos, pois, em 2007, no mínimo com as barbas de molho. Nosúltimos anos, a sucessão de escândalos sem punição mordendo nossos calcanha-res foram tantos, e vindas de todas as direções – incluindo das quatro linhas– que, em algum momento, acabamos tendo vontade de esticar o antebraçoe implorar ao médico um sonífero na veia.

Vigiar, no caso brasileiro, não é seguido do punir. Então, pra que vigiar?Preferem, alguns, hibernar como os ursos, consumindo cotas mínimas deenergia, apenas o suficiente para garantir sobrevida. É exatamente isso, e portudo isto, que a moça da mesa do bar triplamente desiludida declarou estardescendo do trem, prometendo a si mesma que só voltará ao vagão em 2010.

5. Citação ao título do livro Vigiar e Punir, de Michel Foucault.

Page 13: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Atitude civil irresponsável? Talvez sim. Compreendo que o picadeiropolítico brasileiro cansa! Mas é preciso estar atento até o fim porque, na His-tória da Humanidade, todo cochilo do povo resultou em ações desastradas degovernantes. Basta lembrar a Segunda Guerra. E o inverno dos eleitores quehibernam é o verão de caça dos que saqueiam o Brasil.

E depois do banho de água fria que foi o ano de 2005, a temporada 2007promete ser boa para os piratas da política. Encontrarão um terreno estéril delutas e guerreiros exaustos. Todo cuidado é pouco!

Argumenta-se que os 20 anos de regime militar, de povo banido dasdecisões político-administrativas do país, funcionaram como eletrochoque,deixando-nos lentos, desprovidos de reação imediata proporcional à gravida-de da ação. Mas outros 20 anos já se passaram desde a redemocratização doBrasil. É certo que a reconstrução é sempre muito mais lenta que a destruição.Matematicamente, qual será a proporção, então? Será que teremos que aguar-dar por mais uma geração?

frag

men

tos

de u

m d

iscur

so d

o qu

e re

sta

a fa

zer

ANNA AZEVEDO é jornalista e cineasta. Dirigiu os documentários Rio de Jano(2003), Batuque na Cozinha (2004), Títere (2005) e BerlinBall (2006).

Page 14: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo
Page 15: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Brasil: o que resta a fazer?

HE L I O JAG UA R I B E

INTRODUÇÃO

Em boa hora a Fundação Konrad Adenauer pôs em discussão o tema “Brasil:o que resta a fazer?” O que é extraordinário, com relação a esse tema, é

o fato de que sua relevância e atualidade contrastam com a circunstância deque, desde pelo menos meados do século transacto, se tem pleno conheci-mento, no fundamental, da conveniente resposta. Há no Brasil o mais amploconsenso a respeito de que o que falta ao país é ultimar os esforços paraalcançar, estavelmente, um nível satisfatório de desenvolvimento econômicoe sócio-cultural.

Importantes tentativas foram empreendidas nesse sentido pelo segundogoverno Vargas (1951-1954) e por Juscelino Kubisteck (1956-1961) sem,entretanto, conveniente continuação. O Brasil está paralisado há 25 anos ecorre o risco de assim continuar no próximo quadriênio presidencial (2007-2010). Por quê?

1. CAUSAS IMEDIATAS

N o plano dos fatores mais imediatos é de se reconhecer que duas tendên-cias ideológicas de sinal contrário, populismo e neoliberalismo, carregam

grande responsabilidade pela estagnação brasileira. O populismo (JoãoGoulart), malbaratando recursos escassos e favorecendo a indisciplina fiscal esocial, impede o crescimento econômico. O neoliberalismo, erigindo os equi-

Page 16: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

líbrios monetário, fiscal e cambial em meta absoluta, esteriliza os recursospúblicos e inviabiliza investimentos por sua política de juros astronômicos,assim impedindo o crescimento econômico. Em vez de taxas de crescimentoeconômico superiores a 6% a/a, como ocorreu da década de 1950 à de 1970,condena-se a economia a pífias taxas, da ordem de 2% a 3% e decorrenteestagnação do país.

Os desmandos populistas são fáceis de compreender num país subdesen-volvido. A miséria generalizada da população conduz à falácia de que, distri-buindo-se recursos e favores, se atenua essa miséria. Acrescenta-se a isto oimenso atrativo eleitoral (Brizola) do populismo.

Mais complexa é a questão do neoliberalismo. Procedente dos paísesanglo-saxões, reveste-se de respeitabilidade e de aparente consistência. É ine-gável que nenhuma política séria pode ser realizada sem equilíbrios monetá-rio, fiscal e cambial. Juros muito elevados, por outro lado, parecem a contra-medida necessária para evitar o recorrente fantasma da inflação, que por longotempo assolou o país. Assim, também, para atrair capitais estrangeiros, cujaimportância relativa tende a ser extremamente exagerada.

Não obstante esses aspectos razoáveis, permanece sem resposta o fato deque o neoliberalismo monetário, a despeito de seus inequívocos efeitos para-lizadores do crescimento econômico, se tenha mantido no Brasil por esselongo período que vem desde o primeiro mandato de Fernando HenriqueCardoso. Como e por que um homem da mais alta qualificação comoFernando Henrique Cardoso, declaradamente social-democrata, e umhomem da inteligência de Luiz Inácio Lula da Silva, socialista democrático deesquerda, se mantiveram estritamente dentro do figurino monetário do neo-liberalismo?

2. CAUSAS PROFUNDAS

C omo se depreende das considerações precedentes é preciso buscar numnível mais profundo as causas do neoliberalismo no Brasil e, em nível

ainda mais profundo, as razões pelas quais, havendo amplo consenso nacio-nal a respeito da premente necessidade de desenvolvimento, não se logroupromovê-lo, nos últimos 25 anos.

A primeira questão, de caráter mais específico, encontra uma parcialexplicação no fato de que, nos últimos trinta anos, os bons economistas bra-sileiros obtiveram sua formação em universidades americanas. Nestas, con-juntamente com um bom ensino de economics, se apresenta o neoliberalismo

Page 17: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

não como a ideologia conservadora que efetivamente é e sim como condiçãonecessária para o êxito de uma boa política econômica. Os economistas comessa formação têm integrado todas as equipes econômicas de nossos governos.Daí a conformidade de nossas políticas econômicas com o “Consenso deWashington”.

Ademais do doutrinamento neoliberal recebido por nossos economistasé preciso levar em conta um evento fundamental: a irrestrita e incondicionalinserção do Brasil, pelo presidente Collor, e desde então, no mercado finan-ceiro internacional. O país ficou incondicionalmente vinculado às vicissitudesdesse mercado, como as exprime a Bolsa de Nova York e como a sinalizam asagências americanas formuladoras do “risco Brasil”. Uma vez incondicional-mente inserido no mercado financeiro internacional, o país ficou compelido,sob pena de sofrer graves sanções, a seguir os ditames desse mercado, pauta-dos pelo mais estrito neoliberalismo monetário. Essa é a razão pela qual umpresidente social-democrata, brilhante e super qualificado sociólogo, comoFernando Henrique e outro, líder sindical de esquerda, extremamente inteli-gente, como Lula, foram compelidos a seguir o mais estrito monetarismo neo-liberal.

O até agora exposto explica, em considerável medida, por que o neoli-beralismo monetário manteve o Brasil estagnado no curso dos últimos anos.Nossa incapacidade para superar o renitente subdesenvolvimento brasileiro,apesar do consenso quanto à necessidade de se o fazer, requer, entretanto, umaexplicação ainda mais profunda. Essa explicação se encontra, principalmente,no fato de o Brasil se ter convertido em uma democracia de massa antes dehaver formado uma cidadania de massas.

O problema fundamental do Brasil é a ignorância. O país é mais igno-rante do que pobre e é pobre por ignorância. Um terço da população brasi-leira é totalmente destituída de educação e se encontra, assim, em condiçõessemelhantes, aos miseráveis de Calcutá. Um outro terço tem um padrão edu-cacional extremamente modesto, inapto para atividades que requeiram esco-laridade de nível médio, não dispondo, assim, de condições para se dar contados problemas com que se defronta o país. Fica o Brasil, assim, integralmen-te dependente do outro terço de sua população, desfrutando de níveis de edu-cação e de vida comparáveis aos dos povos do sul da Europa. Este terço “oci-dental”, graça à amplitude da população brasileira, é constituído por mais decinqüenta milhões de pessoas. É porque esse terço superior do Brasil temmassa crítica, com uma população superior à dos demais países da Américado Sul, que o Brasil se sustenta e logrou uma apreciável base industrial e tec-

bras

il: o

que

rest

a a

faze

r?

Page 18: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

nológica. Esse mesmo terço da população, todavia, embora economicamentesuficiente, não o é politicamente. A extrema ignorância da grande maioria deeleitorado conduz à formação de uma das piores classes políticas do mundo.

O Brasil apresenta, assim, a triste contradição de dispor do melhor siste-ma de votação do mundo, com urnas eletrônicas insusceptíveis de fraude easseguradoras da imediata computação dos resultados (lembremo-nos do con-traste com as eleições norte-americanos ou mexicanas), sistema esse, entre-tanto, a serviço, como já mencionado, de uma das piores classes políticas domundo.

O que então ocorre? Ocorre que os regimes eleitoral e partidário brasilei-ro são completamente inadequados para um eleitorado primitivo, em que doisterços não completaram a educação do primeiro grau e votam sem nenhumaconsciência das necessidades do país. A resultante classe política incompeten-te, ostentando alarmante margem de corrupção, não dispõe nem da vontadenem das condições de entendimento necessário para dar execução ao que éconsensualmente reconhecido, ou seja, levar o país, estavelmente, a um satis-fatório nível de desenvolvimento econômico-tecnológico e sócio-cultural.

3. REFORMA POLÍTICA

E nquanto não se realizar uma grande revolução educacional, as inúmerasmedidas de que o Brasil necessita para alcançar, estavelmente, um satis-

fatório nível de desenvolvimento, somente poderão vir a ser adotadas se, pre-viamente, se proceder a uma ampla reforma política.

Os atuais regimes eleitoral e partidário conduzem, necessariamente, nãoa uma democracia representativa e sim a uma democracia de clientela, geran-do, com as exceções de estilo, uma classe política que, ademais de incompe-tente, só se serve do Estado para seus fins particulares, em vez de servir oEstado e a Nação.

Existe amplo consenso, entre os estudiosos da matéria, no sentido daindispensabilidade de se adotar o chamado regime distrital misto, combina-damente com medidas, em parte já introduzidas, que eliminem os “partidosde aluguel”. Esse novo regime eleitoral corrigirá, ainda que muito parcial-mente, os desequilíbrios educacionais do país. Em profundidade, como járeferido, somente uma revolução educacional poderá instituir no Brasil umacompetente democracia de massas, como na Europa ocidental. Isto requer,além de outras coisas, um largo espaço de tempo. Enquanto não se logre umsatisfatório nível educacional para o Brasil, somente a reforma política prece-

Page 19: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

dentemente referida proporcionará ao país um nível mínimo de capacitaçãopolítica.

O problema da reforma política, entretanto, se defronta, no Brasil, como fato de que um Congresso Nacional eleito clientelisticamente não se dispo-rá a adotar uma reforma política que inviabilizaria a eleição de maior partedos atuais parlamentares. Nessas condições, somente por via plebiscitária sepoderá empreender a necessária reforma política. Isto significa, na prática,que a possibilidade de tal reforma dependerá de que venha a ser eleito umcandidato à Presidência da República cujo programa contenha a reforma polí-tica em questão e que efetivamente se disponha a implementá-la. Ainda esta-mos longe dessa possibilidade. Poderemos esperar por seu advento sem incor-rer em deficiências dificilmente corrigíveis? Na verdade, se não se formar,prontamente, um grande movimento de opinião pública que pressione efi-cazmente a favor da reforma política, o Brasil corre o grande risco de perdero trem da história.

bras

il: o

que

rest

a a

faze

r?

HELIO JAGUARIBE é decano emérito do Instituto de Estudos Políticos e Sociais– IEPES. Diplomado em Direito pela PUC/RJ, recebeu doutorados honoris causadas Universidades de Mainz, RFA, de Buenos Aires e Federal da Paraíba, por suacontribuição às Ciências Sociais. Foi professor visitante das Universidades deHarvard, Stanford e do M.I.T. Autor de ampla obra, publicada em diversas lín-guas, destacam-se, entre seus últimos livros, Brasil, homem e mundo – reflexão navirada do século (Rio de Janeiro: Topbooks, 2000), Um estudo crítico da História(São Paulo: Paz e Terra, 2001, 2 vls.) e Brasil: alternativas e saída (Paz e Terra,2002). Eleito para a Academia Brasileira de Letras em março de 2005.

Page 20: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo
Page 21: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Reforma Política, realismo e normas

FÁ B I O WA N D E R L E Y RE I S

1

O s problemas relacionados à reforma política no Brasil se enfrentam comdilemas quanto a dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, quanto

aos objetivos que cabe perseguir, é preciso que as instituições a serem cons-truídas ou reformadas se mostrem capazes de conciliar o desiderato de repre-sentatividade democrática com o de eficiência. Enquanto a eficiência supõe finsdados para que se possam dispor de modo adequado os meios a serem empre-gados, a democracia supõe justamente fins múltiplos de diferentes atores e deconciliação problemática. É claro que a democracia é uma consideração cru-cial, em especial diante das muitas turbulências da história política brasileirade várias décadas recentes, culminando na penosa experiência da ditadura de1964. É indispensável, porém, que o empenho de assegurar instituições capa-zes de operar de maneira plenamente democrática se mostre compatível,sobretudo nas condições da nova dinâmica econômica mundial e das impo-sições da “austeridade permanente”,1 não só com o estímulo à eficiência dosagentes privados e dispersos na busca dos legítimos objetivos próprios quepossam ter em diferentes áreas, mas também com a agilidade e a eficiência daaparelhagem estatal ao perseguir os fins comuns da coletividade.

1. Veja-se Paul Pierson, “Coping with Permanent Austerity: Welfare State Restructuring inAffluent Societies”, em Paul Pierson (ed.), The New Politics of the Welfare State, Oxford,Oxford University Press, 2001.

Page 22: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Mas há um segundo dilema correlato. Ele aponta para o fato de que, alémda necessidade de que as instituições como tal sejam eficientes, a própriaimplantação de instituições democráticas envolve considerações de eficiência.Surge, assim, a indagação sobre como agir para tornar efetiva a reforma, e vê-se que a dificuldade diz respeito, na verdade, à natureza mesma das instituiçõespolíticas. Será suficiente o esforço de “engenharia política” que busque alteraros dispositivos legais relevantes – vale dizer, as instituições se reduzirão a taisdispositivos? Ou esse “artificialismo” legal se verá fadado a esbarrar na viscosi-dade de um contexto ou mesmo uma cultura resistente, que talvez impregne odia-a-dia e impeça a “decantação” em que as leis “pegam” e se tornam parte realdo contexto relevante? As instituições verdadeiras não dependerão justamentede que os dispositivos legais se enraízem no substrato social e cultural?

2

A s questões doutrinárias e analíticas envolvidas em tais dilemas se ramificampor diferentes dimensões dos temas que se acham em discussão a propósi-

to da reforma política. Comecemos com o plano mais amplo em que se tratado próprio processo geral de institucionalização e consolidação da democracia.

Conduzido de modo apropriado, esse processo requer um equilíbrio emque o Estado venha a ser, ao mesmo tempo, suficientemente aberto e sensíveldiante da multiplicidade de interesses que se dão na sociedade e suficiente-mente autônomo para evitar tornar-se o prisioneiro ou o “comitê executivo”de algum ou alguns desses interesses, ou um agente propenso a privilegiá-los.Temos aqui muitas confusões, envolvendo sobretudo a questão da autonomiado Estado e sua relação com a autonomia dos próprios cidadãos. Delas nas-cem demandas contraditórias: por uma parte, atentando para o ideal de sobe-rania popular, pretende-se que o Estado não seja autônomo, como condiçãode que seja democrático; por outra parte, tendo em vista as desigualdades exis-tentes na sociedade, pretende-se também que o Estado seja autônomo, deforma a ter condições de perseguir o interesse público com independênciaperante os grupos ou categorias de maior poder privado.

Uma faceta algo distinta do mesmo problema é a de até que ponto serianecessário contar com cidadãos capazes de se afirmarem por si mesmos ou, aocontrário, em que medida seria adequado contar com o paternalismo estatal.A indagação ganha relevo mais intenso com a globalização e a nova dinâmicaeconômica da atualidade. O compromisso socialdemocrático e o estado debem-estar, vistos há pouco como cruciais para a estabilidade democrática que

Page 23: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

se seguiu à Segunda Guerra Mundial, especialmente na Europa, e em que osdireitos do cidadão se expandiram dos planos civil e político para o planosocial, são agora postos em xeque na reafirmação do liberalismo, que remete osdireitos sociais às asperezas do mercado. Mas há, de um lado, o fato puro e sim-ples de que continuamos a ter o apego difundido das populações ao estado debem-estar, descrito como immovable object na literatura pertinente.2 De outrolado, doutrinariamente não há substituto real para a socialdemocracia e o equi-líbrio que ela permite, ainda que sob formas institucionais variadas, entre odesiderato de autonomia dos cidadãos (que supõe a possibilidade de decisõesindependentes na decisiva esfera econômica e, portanto, o mercado) e o desolidariedade (que supõe o Estado de algum modo ativo e interventor). A idea-lização da “sociedade civil” e do “terceiro setor”, com a dispersão e os objetivosmuitas vezes antagônicos que caracterizam os atores que os integram, analoga-mente ao que ocorre no mercado, não é resposta para os problemas. E a opo-sição ao paternalismo estatal não tem como deixar de reconhecer que o Estadodemocrático não pode ser aquele que se acomode, sem mais, à capacidade dife-rencial de pressão dos diversos focos privados de interesses.

Assim, no plano mais geral, o problema das reformas institucionais se vêdiante de desafios complicados, que estão longe de ser adequadamente tidosem conta na afirmatividade de certos simplismos ideológicos antigos ounovos. Esses desafios se traduzem, em particular, em como produzir a apare-lhagem institucional capaz de responder à perplexidade que cerca as relaçõesentre a política econômica realista e eficaz que as condições mundiais exigem,de um lado, e, de outro, a política social ambiciosa e efetivamente incorpora-dora de que o país necessita.

3

U m aspecto saliente disso diz respeito à dinâmica político-partidária.Naturalmente, muitas das dificuldades e turbulências que há tempos

envolvem a história política brasileira giram em torno das posições sobre asmesmas velhas questões de política econômica e social (nas quais se centra ocrucial problema “constitucional” da apropriada incorporação popular), nãoobstante a perplexidade especialmente aguda que essas questões agora susci-tam. Seja como for, parte decisiva do desafio político-institucional do país

refo

rma

polít

ica,

rea

lism

o e

norm

as

2. Cf. Pierson, “Coping with Permanent Austerity”.

Page 24: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

tem a ver com a eventual construção de partidos que viessem a atuar nãocomo meros instrumentos “fisiológicos” dos interesses restritos de grupos eclientelas, mas como agentes portadores de respostas universalistas e consis-tentes àquelas questões – desafio agudamente agravado, em nosso caso, pelaherança de desigualdade e sua contribuição negativa para os recursos educa-cionais e intelectuais de amplas parcelas do eleitorado popular e as deficiên-cias resultantes nas relações com a política.3 No quadro da Guerra Fria e doenfrentamento internacional entre capitalismo e socialismo, as dificuldadestendiam a resumir-se em que as respostas universalistas eram percebidas comoenvolvendo a ameaça de “subversão” da ordem capitalista e justificandoreações conservadoras e antidemocráticas.

A derrocada do socialismo, como parte das transformações recentes dacena mundial, altera de modo importante esse quadro. A trajetória político-eleitoral do PT, herdeiro das suspeitas do establishment quanto à ameaça sub-versiva da “esquerda”, expressa com clareza as alterações ocorridas. Tendo seuacesso à Presidência da República como objeto de um veto latente (e às vezesexplícito) de setores conservadores, acaba reproduzindo no plano domésticoo aprendizado de realismo e moderação realizado por vários partidos e líderesoriginários da esquerda pelo mundo afora, empenhando-se com êxito naaproximação com o empresariado na campanha eleitoral de 2002 e executan-do no governo a política econômica necessária para neutralizar os sinais decrise possivelmente catastrófica e possibilitar que o país se inserisse de manei-ra favorável, em boa medida, na nova dinâmica econômica internacional. Éigualmente relevante no processo geral o fato de que tenhamos tido, nomomento anterior, a afirmação eleitoral do PSDB. Sob a liderança destacadade Fernando Henrique Cardoso, ele próprio também marcado por longaligação com idéias e movimentos de esquerda, a consistência exibida peloPSDB, que mobilizou muitos dos melhores quadros intelectuais e adminis-trativos do país, certamente permite distingui-lo, junto com o PT, no quadrogeral dos partidos políticos brasileiros. E seria com certeza desejável, do pontode vista do anseio por entidades partidárias capazes de canalizar a participação

3. Cabe reconhecer, a propósito, o fato de que, como consequências de políticas educacio-nais relativamente bem-sucedidas que se executam há algum tempo, o eleitorado popu-lar brasileiro tem exibido melhoras quanto ao acesso à educação. Não obstante, como osestudos do Latinobarômetro, em particular, deixam claro, ao permitir a comparação comos demais países da América Latina, os dados do Brasil a respeito continuam a ser peno-samente negativos em suas consequências para o processo político-eleitoral.

Page 25: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

popular de maneira a combinar sensibilidade social e consistência com pers-pectivas de estabilidade institucional e administração eficiente que, em vez doenfrentamento a que os dois partidos se viram levados e que marcou a políti-ca brasileira no período recente, a aproximação ou mesmo a eventual fusãoentre PSDB e PT permitisse superar os muitos aspectos negativos do “presi-dencialismo de coalizão” (Sérgio Abranches) e das permanentes barganhasdestinadas a assegurar apoio governamental no Congresso.

Sem dúvida, cumpre destacar, no contexto definido pelas característicasdo eleitorado popular brasileiro, a singularidade – e o caráter positivo – daexperiência que o PT representa pela combinação de dois traços: de um lado,o esforço, peculiar na história dos partidos brasileiros, de construção institu-cional conduzida em termos que, não obstante a importância especial da figu-ra de Lula, não se reduziam ao personalismo, mas mobilizavam importantecapital simbólico ligado a princípios ideológicos e éticos e incentivavam a par-ticipação e a militância juntamente com a disciplina; de outro lado, a viabili-dade eleitoral trazida pelo simbolismo popular difuso associado a Lula, pormeio da qual o partido pôde capitalizar os mesmos fatores que tradicional-mente favoreceram o populismo no país.4 Essa combinação permitia esperarque o PT, além de representar um instrumento de canalização partidária emais sadia das identificações e da participação político-eleitoral da massapopular majoritária, sem embargo das “deficiências” dela, viesse também areproduzir, em alguma medida, a trajetória dos partidos socialdemocrataseuropeus, em que a “eleitoralização” e o abandono ou a “milenarização” dasmetas socialistas ou revolucionárias se fizeram sem que se inviabilizasse oequilíbrio antes mencionado, isto é, sem que a preservação do mercado e dovalor da autonomia tornasse inócuos a adesão ao valor da solidariedade e ocompromisso social.

Naturalmente, as mudanças trazidas pela crise recente solapam essaexpectativa. Se o realismo nos planos eleitoral e administrativo já tendia a pro-duzir dificuldades junto aos setores mais ideológicos – ou propriamente sec-

refo

rma

polít

ica,

rea

lism

o e

norm

as

4. Um par de observações relativas ao “troca-troca” de parlamentares entre os partidos indi-ca a importância dos dois aspectos para a consistência partidária. Em primeiro lugar, ofato de que o PT é o partido menos exposto ao fenômeno no período recente. Em segun-do lugar, o fato de que, no período 1945-1964, com a penetração popular da figura deGetúlio Vargas e sua projeção sobre o enfrentamento entre os partidos, produzindo iden-tificações partidárias intensas entre os eleitores, a possibilidade da punição eleitoral invia-bilizava que o fenômeno ocorresse em proporções sequer remotamente parecidas com asque temos tido agora.

Page 26: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

tários – do partido, as revelações de 2005 exibem o destempero do realismo.Este não só intensifica as tensões e divisões internas, mas também, corroendoa imagem singular do PT até mesmo no plano ético (em que não há lugarpara perplexidades “técnicas” como as envolvidas na administração econômi-co-social), indispõe o partido com a “opinião pública” e vastos setores de clas-se média e compromete a penetração e o apoio político-eleitoral que Lula che-gara a obter também aí.

Mas a imagem popular de Lula, combinada ao impacto do assistencialis-mo social de seu governo (como quer que se queira avaliar tecnicamente asmedidas correspondentes), continua a fazer dele uma liderança político-elei-toral importante e, como indicam até aqui as pesquisas, o candidato maisforte na eleição presidencial de 2006. Ora, isso se dá em circunstâncias emque se tornaram no mínimo incertas as perspectivas do PT como partido eproblemáticas as suas relações com Lula. Se somamos a aparente debilidadeda atual candidatura do PSDB e as prováveis tensões dentro dele em torno dadisputa presidencial de 2010, coloca-se como questão central na conjunturaa de em que medida as circunstâncias virão a comprometer ou a permitir quesubsista, de algum modo, o que pode ser visto como sadio e promissor tantono peculiar papel que vinha sendo cumprido pelo PT quanto no prolongadopredomínio conjunto de PT e PSDB nas disputas eleitorais do país. Do pontode vista da indagação de “que fazer”, ou pelo menos daquilo por que caberiaansiar, poder-se-ia ponderar algo que tem sido objeto de certas especulações.Refiro-me à idéia de uma eventual reformulação partidária em torno da can-didatura presidencial de Aécio Neves em 2010, com base em sua singularforça eleitoral em Minas e na disposição que tem revelado ao diálogo trans-partidário, reformulação esta que viesse a contar com o apoio de Lula e dafração do PT que se mantivesse fiel a ele: se o lulismo sem a promessa insti-tucional do PT é insatisfatório, que tal um PSDB acoplado a certo lulismodiluído? Claro, há também a possibilidade de que Geraldo Alckmin acabe porganhar a eleição;5 essa hipótese, contudo, parece tornar mais remotas as chan-ces de um rearranjo partidário que preservasse a contribuição positiva repre-sentada pela penetração do PT junto ao eleitorado popular. Seja como for,além das dificuldades envolvidas no jogo político-estratégico que viabilizaria

5. Deixo de lado Heloísa Helena e seu PSOL, cujo relevo na campanha eleitoral em mea-dos de 2006 parece claramente circunstancial e sem perspectivas político-eleitorais reais(a menos, quem sabe, que venham a passar no futuro, em algum grau, por um processode “petização”).

Page 27: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

a composição do PSDB com o lulismo em torno de Aécio, é sem dúvida pre-cária a aposta de que se pudesse ter, mesmo com ela, a retomada mais oumenos segura da implantação de um sistema partidário capaz de reclamar res-paldo popular continuado e de canalizar a participação político-eleitoral dapopulação em termos partidariamente consistentes que servissem de obstácu-lo às formas tradicionais de populismo.

4

S e, à parte o que possa parecer desejável, o componente estratégico e adependência em relação aos interesses e às manobras dos atores políticos

são evidentes no que se refere às perspectivas que a eleição presidencial abrepara a possível evolução do sistema político-partidário, esse componente sur-ge também, naturalmente, como condicionante das chances de mudançasreais quanto aos diversos itens que se têm tratado na discussão da reformapolítica. Prescindindo dos meandros que as questões estratégicas introduzem,retomemos, a propósito de como tornar efetivas as reformas necessárias, atensão de que se falou acima, tanto entre “engenharia” institucional e cultura,ou entre artificialismo legal e “decantação” contextual, quanto entre demo-cracia e eficiência.

Certos traços da crise recente, em sua ligação com o problema dacorrupção, deixaram patente seu caráter de nova manifestação de uma autên-tica cultura politicamente negativa.6 Esse caráter se evidenciou sobretudo na“candura” com que diversas lideranças importantes, no governo ou na opo-sição (presidente da República, vice-presidente, ex-presidente, candidato àPresidência, líderes partidários – sem falar dos parlamentares acusados nasCPIs, ou de comentaristas na imprensa), aderiram de público, de uma formaou de outra, à visão segundo a qual o crime eleitoral (o “caixa 2”) na verdadenão importa: tentou-se reiteradamente separar o “trigo”, que vem a ser o“meu” crime, “meramente” eleitoral e portanto sem importância, do “joio”, ocrime dos outros, este sim, crime autêntico e grave.

Na óptica orientada pelo empenho de reforma, a ligeireza dessa dispo-sição de estabelecer gradações e ver com naturalidade ações contrárias à lei, e

refo

rma

polít

ica,

rea

lism

o e

norm

as

6. Utilizo a seguir, com reformulações, algumas passagens de Fábio W. Reis, “O Joio e oJoio: Democracia, Corrupção e Reformas”, trabalho apresentado ao Fórum Especial“Reproclamação da República e Reforma das Instituições do Estado Brasileiro”, sob acoordenação de João Paulo dos Reis Velloso, Brasília, 1º de setembro de 2005.

Page 28: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

portanto criminosas, é inaceitável. Ela é afim ao ânimo leve – ou mesmo osentimento positivo de se estar agindo de forma apropriadamente “esperta” –com que meios empresariais, de profissionais de classe média em diferentessetores, funcionários públicos, professores universitários ou os cidadãos emgeral se dispõem a sonegar impostos, cobrar diárias indevidas, transferir paraa “viúva” pequenas despesas (ou nem tão pequenas) sempre que possível,gozar na praia as férias que se “vendem” e pelas quais se recebe o pagamentointegral, ou simplesmente ignorar as regras de trânsito sempre que as con-dições permitam safar-se sem observá-las. É difícil avaliar com segurança atéque ponto será peculiarmente brasileiro o caráter banal dessa difusa desa-tenção para com as normas. Mas com certeza não é irrelevante lembrar, a res-peito, constatações reiteradas de pesquisas como as do World Values Surveys,executadas em escala mundial e incluindo dezenas de países de graus diversosde desenvolvimento econômico e tradições culturais e religiosas diferenciadas,em que o Brasil aparece como nada menos que o de pior posição entre todosno que se refere à proporção da população que revela acreditar que se pode,em geral, confiar nas pessoas: não ultrapassam 3 por cento os brasileiros querespondem afirmativamente!7

Essa aparente cultura anômica e corrupta se mostra relevante em diver-sos níveis. É evidente que ela se liga às grandes “maracutaias” a que a classemédia reage (curiosamente, já que sem dúvida compartilha a cultura da“esperteza”) com indignação. Além disso, ela tem provavelmente algo a ver atécom a violência nos meios populares e nas populações periféricas que aexplosão urbana, agora ajudada pelo narcotráfico, multiplica em condições degrandes carências. Mas ela é também relevante quanto à instabilidade noplano das próprias instituições políticas, ou quanto ao fato de se terem mos-trado por tanto tempo precárias entre nós as normas que deveriam enquadrarinstitucionalmente os decisivos conflitos de interesses envolvidos no desafiode incorporação social – vale dizer, a solução efetiva e estável do problema“constitucional” de que se falou antes. A indagação que parece justificar-se éa que se refere à complexidade das relações causais envolvidas no problema:por um lado, cabe presumir que dificilmente criaremos uma sociedade genui-namente democrática, cívica e infensa à corrupção sem lidar, no nível “estru-tural” e profundo, com os fatores que preservam o legado de desigualdade e

7. Veja-se, por exemplo, Ronald Inglehart e Wayne Baker, Modernization, CulturalChange, and the Persistence of Traditional Values, American Sociological Review, vol. 65,no. 1, fevereiro de 2000, p. 36, figura 4.

Page 29: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

elitismo; por outro lado, será razoável esperar que possamos superar esse lega-do sem agir com determinação no sentido de criar “artificialmente” os meca-nismos legais e institucionais que possam pretender eficácia em ajudar aimplantar uma cultura nova e politicamente mais propícia?

Seria certamente uma ilusão contar com que a manipulação de mecanis-mos como os envolvidos nas regras que se têm discutido entre nós a propósitoda reforma política permitisse, por si só, a solução cabal dos nossos problemas.Mas é impossível pretender retirar do reconhecimento disso a razão para abdi-car do esforço de construção institucional, que fatalmente envolve certo artifi-cialismo legislativo posto em prática nas constrições da conjuntura, ainda quereferido ao futuro e visando à impregnação do próprio contexto mais dura-douro que enquadra e condiciona as ações do dia-a-dia. Se tomamos, porexemplo, algo que surgiu como possibilidade relevante na conjuntura atual, oimpedimento do presidente, e examinamos os dispositivos legais pertinentesem sua relação com a estabilidade do processo político como desiderato, é pos-sível confrontar a respeito as normas parlamentaristas, que possibilitam o pro-cessamento institucionalmente sereno da substituição da chefia do governo emdiferentes circunstâncias, com a “cintura dura” que alguns apontam no presi-dencialismo, no qual, fora dos momentos eleitorais prefixados, só se removeum chefe de governo mediante traumático processo criminal. Como quer quese avaliem os méritos gerais de um e outro sistema de diversos pontos de vista,isso obviamente fornece argumentos, por um aspecto importante, para oesforço de reforma que vise à implantação do parlamentarismo.

Mas outros temas em debate quanto à reforma política também sugeremfortemente a direção em que cabe agir. Assim, se se retoma a questão da con-sistência dos partidos e do sistema partidário, é patente a contribuição corrup-tora trazida por um sistema político-partidário e eleitoral que leva a extremosa fluidez dos vínculos entre os partidos e seus membros. Essa fluidez incenti-va a prevalência, a cada momento, do cálculo orientado por estreitos interes-ses individuais sobre considerações referidas ao partido ou a razões de lealda-de partidária, em que os interesses supostamente se agregam e estruturam demaneira favorável ao bom andamento do processo político. Um princípio rea-lista, como o que leva a atentar para as deficiências do eleitorado popular ouo que reconhece o espaço legítimo dos interesses na política, em contrastecom “valores” supostamente mais “altos”, não torna aceitável que o necessárioequilíbrio se rompa e a presença dos interesses se destempere na simples com-pra e venda de “passes” e apoios, quer esse destempero se acople ou não comformas mais deslavadas de populismo. Sem dúvida, o fundamento decisivo da

refo

rma

polít

ica,

rea

lism

o e

norm

as

Page 30: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

consistência dos partidos deveria vir, em última análise, de eleitores que se tor-nassem capazes de envolvimento sofisticado e atento com o processo políticoe das identificações partidárias que nascessem daí – ideal que estamos longede alcançar. Mas não há razão para que não se adote, com respeito aos dife-rentes itens que têm sido objeto de discussão, uma disposição experimental:por que renunciar a experimentar com legislação favorável à fidelidade parti-dária, ou com cláusulas de barreira, regras sobre coligações, adequada combi-nação de princípios majoritários e proporcionais, listas partidárias fechadas ou“flexíveis”? E entra aqui com destaque especial, a meu ver, a necessidade deexperimentação com formas apropriadas de financiamento público da ativi-dade política, seja qual for a dificuldade de encontrá-las e colocá-las em prá-tica. Além do aspecto normativo de que, ao contrário do direito de voto, odireito de ser votado está longe de ser assegurado igualitariamente dada aenorme desigualdade no controle de recursos privados, é bem claro que osrecursos para o financiamento da atividade político-partidária, em geral, e dascampanhas eleitorais, em particular, são o ponto crucial do jogo de compra evenda e da articulação escusa entre o público e o privado.

A crise de 2005 traz estímulos talvez inéditos a que se aja no sentido demudar o próprio substrato cultural da política brasileira. Se não se abre mãode postulados realistas, não cabe esperar que a eficácia da ação orientada poresse objetivo seja o resultado de esforços edificantes e da aposta numa espéciede “conversão” dos agentes da política, aposta que tem estado subjacente àdifundida adesão a um modelo idealizado de “política ideológica” e à pereneexortação a que nossa vida política adquira conteúdo ideológico. Diferente-mente, a eficácia virá de que as alterações nos mecanismos institucional-legaissejam feitas de modo a mudar a percepção pelos agentes dos incentivos – edesestímulos – oferecidos aos seus interesses pelo contexto em que atuam. Seas percepções e expectativas – isto é, os componentes cognitivos ou intelec-tuais das atitudes, ou das disposições a agir desta ou daquela forma – se modi-ficam, então se poderá esperar que se cumpra o preceito sociológico segundoo qual expectativas que se reiteram tendem a transformar-se em prescrições,com a eventual mudança real dos próprios componentes normativos e, assim,da cultura que os contém.8

8. Dados brasileiros de pesquisa executada por equipe do Departamento de Ciência Políticada UFMG, sob a coordenação do autor, mostram a importância dramática que podemassumir as relações entre normas e expectativas no condicionamento do comportamentoreferido à política. Eles indicam com grande clareza, por exemplo, que, no caso (continua)

Page 31: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Mas não é caso de ignorar ou minimizar, nessa perspectiva, o papelpotencial da liderança e do equilíbrio em seu recurso ao realismo. Seria degrande ajuda, presumivelmente, poder contar com o efeito sobre as expecta-tivas, em algum momento, do caráter exemplar de líderes dotados de realgrandeza moral, em contraste com certos abusos que se valem das confusõesenvolvidas na distinção de Max Weber entre a “ética das convicções” e a “éticada responsabilidade”.9 À parte a idéia de que a liderança inspire por si mesmao comportamento “virtuoso”, é preciso atentar para a possibilidade de que aliderança exemplar produza, mais realisticamente, mudanças no plano daspercepções, ensejando a convergência de expectativas institucionalmente pro-pícias. No caso brasileiro, poderíamos ter aí, quem sabe, algo favorável à supe-ração da condição em que cada qual, frustrado mesmo por líderes de portesupostamente especial que acabam por apequenar-se nas apostas de um rea-lismo míope, se percebe como “bancando o otário” se não jogar, como “todomundo”, o jogo das espertezas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

INGLEHART, Ronald, BAKER, Waine. Modernization, cultural change, and thepersistence of traditional values. American Sociological Review, vol. 65, n. 1, feve-reiro de 2000.

PIERSON, Paul. Coping with permanent austerity: Welfare State restructuring inaffluent societies. In: PIERSON, Paul. (Ed.). The new politics of the Welfare State.Oxford: Oxford University Press, 2001.

refo

rma

polít

ica,

rea

lism

o e

norm

as

(continuação) de expectativas desfavoráveis resultantes da percepção do provável com-portamento dos demais (justamente o que se destaca nas mencionadas verificações nega-tivas do World Values Surveys sobre o Brasil), mesmo as normas a que efetivamenteseadere se tornam irrelevantes para as decisões sobre como agir. Veja-se Fábio W. Reis eMônica M. M. Castro, “Democracia, Civismo e Cinismo: Um Estudo Empírico sobreNormas e Racionalidade”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 16, no. 45, feverei-ro de 2001.

9. Veja-se a discussão das confusões conceituais de Weber a respeito em Fábio W. Reis,“Weber e a Política”, Teoria & Sociedade, no. 12.2, julho-dezembro de 2004.

Page 32: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

REIS, Fábio W. O joio e o joio: democracia, corrupção e reformas. In: FÓRUM

ESPECIAL “REPROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA E REFORMA DASINSTITUIÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO”, sob a coordenação de JoãoPaulo dos Reis Velloso, Brasília, 1o. de setembro de 2005.

__________. Weber e a Política. Teoria & Sociedade, n. 12.2, jul./dez. 2004.

REIS, Fábio W., CASTRO, Mônica M. M. Democracia, civismo e cinismo: um estu-do empírico sobre normas e racionalidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais,vol. 16, n. 45, fev. 2001.

FÁBIO WANDERLEY REIS é cientista político, professor emérito da Univer-sidade Federal de Minas Gerais e autor, no período recente, de Mercado e uto-pia: teoria política e sociedade brasileira (Edusp) e Tempo presente: do MDB aFHC (Editora UFMG).

Page 33: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

O que ainda falta ser feito na educação básica no Brasil

JO Ã O RO B E RTO MO R E I R A ALV E S

1. O CENÁRIO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

O Brasil possui um extraordinário potencial, e estudos feitos por diversasorganizações mostram as tendências positivas nos próximos anos. Ocupa-

mos a 13ª colocação dentre as economias do mundo, e podemos subir sensi-velmente nesse ranking nas próximas décadas. Nossa população, hoje de maisde 186 milhões de pessoas, deve chegar, em 2050, a 260 milhões. Possuímos126 milhões de eleitores, o que demonstra uma significativa taxa de partici-pação no processo democrático.

No campo da educação, dispomos de uma rede composta por 212 milestabelecimentos de ensino, atendendo aos 56 milhões de alunos, que sãoatendidos por 2,5 milhões de docentes. Todos os 5.561 municípios possuemescolas de educação básica.

A legislação civil não inclui a educação como bem público, embora afir-me que é um direito de todos.

As escolas particulares podem funcionar, desde que autorizadas peloPoder Público. Existem cerca de 35 mil colégios funcionando com cursos deeducação básica e 2 mil atuando no nível superior.

A legislação educacional assegura que as escolas podem definir seus pro-jetos pedagógicos com liberdade, e é prevista uma responsabilidade compar-tilhada no processo educativo entre o Estado e a família.

Page 34: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

O Sistema Educacional é estruturado através de três níveis: o SistemaFederal de Ensino, que congrega as unidades de ensino mantidas pela Uniãoe as instituições de ensino superior vinculadas a mantenedoras particulares, osSistemas Estaduais (onde se inclui o do Distrito Federal) e os SistemasMunicipais, aos quais se subordinam as demais casas de ensino.

Há norma constitucional que assegura que o ensino público, em todosos níveis e modalidades, é gratuito.

As universidades e os centros universitários, estatais ou privados, gozamde autonomia administrativa, didática e financeira. Já as faculdades não pos-suem essa prerrogativa e seus atos são mais dependentes do Poder Público.

Ao lado das escolas oficiais, existe uma significativa rede de cursos livrese centros de formação ou aperfeiçoamento profissional, chamados mais recen-temente de universidades corporativas. Têm liberdade plena de funciona-mento, pois independem de autorização ou credenciamento, não lhes sendopermitida a expedição de diplomas para exercício profissional.

Existem importantes Centros de Pesquisas, onde se vê uma considerávelprodução científica.

A educação é dividida em dois grandes grupos: básica (congregando aeducação infantil, o ensino fundamental e o médio) e o superior (com cursosde graduação, extensão e pós-graduação, que se subdivide em especialização,mestrado e doutorado).

São previstas as possibilidades de educação à distância, muito embora agrande predominância seja do sistema presencial.

A matrícula, obrigatória no ensino fundamental, cuja duração é de noveanos, deve ser feita aos seis anos de idade. A educação infantil, feita em cre-ches e pré-escolas, tem liberdade quanto aos dias letivos. O ensino médio esuperior têm duração variável, conforme o tipo de curso.

São exigidos pelo menos 200 dias letivos (exceto no segmento infantil).Há programas voltados para a educação de jovens e adultos que não con-

seguem completar seus estudos dentro das faixas etárias recomendadas. Sãonotadas algumas iniciativas para a alfabetização de adultos.

Dentro desse cenário funciona a educação em nosso país.

2. ASPECTOS HISTÓRICOS

A educação foi iniciada no Brasil após meio século do descobrimento. Aprimeira escola foi criada em 1549 pelos Jesuítas, que administraram o

sistema educacional, com exclusividade, por 210 anos. Somente em 1759 é

Page 35: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

que o Estado intervém no processo, chamando a si a responsabilidade pelaadministração das unidades de ensino. Durante quatro séculos somente exis-tiam escolas básicas. O ensino superior iniciou-se, de forma tênue, com a che-gada da Família Real, em 1808, e a primeira universidade somente foi criadana década de 1920.

Quando éramos Brasil Colônia todas as regras vinham de Portugal. Coma independência, as normas passaram a ser nacionais, reforçando-se esse prin-cípio com a proclamação da República.

As reformas da educação se sucederam, assim como os avanços e retro-cessos. É incontável o número de propostas modificativas dos sistemas, e pou-cas são as análises de resultados.

Vale um registro das mudanças sucessivas dos responsáveis maiores pelaeducação brasileira. Em nossos 184 anos de independência estamos em nosso174º ministro encarregado pela pasta, o que representa uma média assusta-dora de 1,5 ministro/ano.

Em termos de leis somos pródigos, e hoje contamos com mais de 100textos vigentes no âmbito nacional, sem contar com as leis estaduais e muni-cipais. Não dispomos de uma Consolidação da Legislação do setor, o que difi-culta saber o que é permitido e o que é proibido.

3. AS DEFICIÊNCIAS DO SISTEMA EDUCACIONAL BRASILEIRO

A pesar da pujança do Brasil, investimos pouco na educação. Dados daOCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento) mostram

que a média internacional é de 4,9% do Produto Interno Bruto. O governoaplica apenas 4,3%, o que nos coloca em posição de inferioridade, se compa-rada com outras nações.

Além de aplicarmos pouco o fazemos mal. O custo médio anual do alunono ensino fundamental é de R$ 905,00; no ensino médio, R$ 950,00 e nosuperior, R$ 11.480,00.

A distorção entre a educação básica e superior gera múltiplas conseqüên-cias, como veremos a seguir.

As estatísticas mostram que temos 40 milhões de jovens fora da escola e16 milhões de analfabetos plenos.

Os erros do passado fizeram com que o nosso universo eleitoral, com-posto por pessoas acima de 16 anos, seja constituído por 8.276.338 (6,57%)analfabetos, 21.301.780 (16,92%) que só sabem ler e escrever, 43.786.924(34,77%) que não completaram o ensino fundamental e 9.915.887 (7,88%)

o qu

e ai

nda

falta

ser

feito

na

educ

ação

bás

ica

no B

rasil

Page 36: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

que possuem apenas essa fase da educação. Os pouco aquinhoados pela edu-cação somam 83.280.929 eleitores, correspondendo a 66,14%. Os graduadosem nível superior chegam somente a 4.190.267 (3,33%) e o restante (apenascom o ensino médio ou superior não concluído) completa o quadro de125.915.479 aptos a eleger nossos legisladores e governantes.

Temos 34,6 mil escolas sem luz, e 50,9 mil estabelecimentos de ensinopossuem apenas uma sala de aula.

Apenas 20 mil unidades educacionais possuem laboratórios de informá-tica, e tão somente 22,6 mil têm acesso à internet. Quarenta e três por centodas cidades não estão contectadas à rede mundial de computadores por bandalarga, dependendo dos altíssimos custos de acesso discado. Muitos municípiostêm que fazer ligações interurbanas para alcançarem as comunicações virtuais.

Ao lado dessa penúria de infra-estrutura, temos aproximadamente R$ 4bilhões decorrentes do FUST – Fundo de Universalização dos Serviços deTelecomunicações contingenciados pelo governo federal, ajudando a termosum vultoso superavit primário.

O atual Executivo federal gastou nos últimos três anos (2004 a 2006) R$985 milhões em verbas de publicidade para mostrar os seus feitos, inclusivena educação.

Podemos afirmar que há uma universalização de acesso ao ensino básicomas, quanto ao superior, apenas 9% dos jovens de 18 a 24 anos conseguemchegar à universidade. No Chile essa taxa é de 21% e na Argentina, 39%.

O ponto crucial da educação brasileira, especialmente a básica, é a baixaqualidade, que provoca repetência e evasão considerável. Os desperdícios sãoimensos e as conseqüências, irreversíveis. Falta uma política para a educação.O país não tem um Plano Nacional de Educação viável. O aprovado há al-guns anos pelo Congresso Nacional foi abortado pelo Executivo que vetoudiversos dispositivos que poderiam ter auxiliado na diminuição das desigual-dades sociais.

Há programas nacionais, normalmente de curto ou médio prazos, obje-tivando atender a interesses muito mais políticos do que técnicos. A cadatroca de ministro, normalmente os projetos são abandonados e iniciam-seoutros novos.

Em matéria de educação, somos o país do “já teve”. Ao procurarmos osresultados de boas iniciativas, quando encontramos na esfera governamentalalguém que ainda se lembra, há a assertiva de que o mesmo não mais existeou está sendo reformulado.

Essa regra acontece no governo federal e em muitos estaduais.

Page 37: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Já nos municípios vê-se um processo mais sólido de continuidade pois,apesar das trocas de chefias, as equipes são quase sempre mantidas, atémesmo por falta de opção. Os contingentes de servidores são menores e maiscomprometidos com a população. Ademais, é mais fácil o povo localizar edialogar com o prefeito ou com o secretário municipal do que com o gover-nador do Estado ou o presidente da República, tornando a cobrança maisfácil de ser feita.

4. O QUE AINDA FALTA SER FEITO NA EDUCAÇÃO BÁSICA

E ntramos agora na parte principal de nosso estudo: o que ainda falta serfeito para democratizarmos a educação de qualidade. Listamos alguns as-

pectos, não por ordem de importância ou prioridade dado que as mesmasdivergem de região para região.

Um dos primeiros pontos é a melhoria da formação dos docentes e dosadministradores educacionais. Em nenhum segmento se atinge resultado sa-tisfatório, se a equipe não for capacitada corretamente. Dois focos precisamser observados: o primeiro, na formação das novas pessoas que atuarão nasescolas, e o segundo, na requalificação dos atuais profissionais.

Existem no Brasil cerca de 2.300 instituições de ensino superior. Se-gundo os dados oficiais do Ministério da Educação, há em funcionamento1.754 cursos de pedagogia e 1.028 cursos normais superiores. Os docentessão graduados por ambos, adicionando-se os que vêm das licenciaturas. Éimportante frisar que não se deve adicionar os quantitativos uma vez quenormalmente as universidades, centros universitários, faculdades ou institu-tos superiores de educação que possuem um curso têm também o outro.

Partindo de um universo de aproximadamente 1.900 instituições, pode-se concluir que não é impossível um programa de modernização desses cen-tros de formação.

O Conselho Nacional de Educação recentemente baixou novas diretrizespara a pedagogia e deu os primeiros passos, mas ainda há muito a ser percor-rido nessa empreitada.

Não se deve deixar de lado também as escolas normais que, como uni-dades de educação básica, podem graduar professores para as primeiras sériesdo ensino fundamental e para atuar nas escolas de educação infantil.

Modernizar os currículos, dando-lhes subsídios para aprimorar os mé-todos, fará com que os que ingressarem no mercado o façam com mais com-petência.

o qu

e ai

nda

falta

ser

feito

na

educ

ação

bás

ica

no B

rasil

Page 38: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Precisamos “consertar as máquinas que fazem produtos defeituosos” eacompanhar a qualidade das mesmas para evitar futuras distorções.

O segundo ponto vincula-se a criar um sistema capaz de “consertar osprodutos que foram fabricados com falhas”. Fazer o recall já é uma praxe nomundo industrial e precisa ser adotado no educacional. Esse processo de me-lhorar os produtos que já estão no mercado deve ser realizado pelas insti-tuições que os formaram e não através de programas emergenciais feitos pelopróprio governo.

Muito tem sido feito de positivo mas não deve caber ao Ministério daEducação esse papel. Aliás, ele não tem essa atribuição. As universidades edemais instituições de ensino podem realizar de forma correta essa empreita-da, desde que lhes sejam dados os recursos necessários.

A educação continuada é fundamental no mundo moderno. É preciso,portanto, que se faça, como elemento basilar, uma ampla reforma dos siste-mas de formação e requalificação dos docentes.

Impõe-se também que sistema semelhante seja feito com os administra-dores educacionais, responsáveis pela eficiência das atividades-meio.Nenhuma professor consegue ministrar uma boa aula se a estrutura for ruim.Superada essa premissa temos que investir em tecnologia educacional. Asescolas e, em especial, os professores e gestores não podem ficar desconecta-dos do mundo. Não bastam computadores, televisões e outros equipamentos.É imprescindível um sistema operacional que funcione bem como, progra-mas, profissionais de várias áreas e uma rede integrada com custos baixos.Aplicando-se uma parcela considerável das verbas existentes através de umprograma emergencial, isso é possível.

A questão de remuneração dos professores, pessoal técnico e administra-tivo é importante mas é sabido que, com uma boa administração pública, osrecursos surgem. Valorizar o magistério é remunerar condignamente e darimportância ao professor é fundamental.

Um outro ponto vincula-se à existência de escolas fisicamente bem ins-taladas e conservadas. Quando os espaços físicos são bons e existem equipa-mentos, biblioteca e outros insumos, a motivação para atingir os resultadosaumenta sensivelmente.

Vale registro que falta também um amplo processo de mudança no rela-cionamento com as famílias e com os alunos.

Normalmente os pais são ausentes no processo de educação dos filhos, equando intervêm exigem dos professores sistemas rígidos de trabalhos domi-ciliares. Há um mito de que “escola que não dá dever de casa é ruim”, e isso

Page 39: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

cria um círculo vicioso. Os docentes, normalmente criados dentro desse sis-tema, vingam seus sofrimentos do passado com o uso das mesmas práticas deanos atrás.

Ao exigirem que alunos estudem inutilidades, fazem com que milhõesodeiem a escola, e o que deveria ser bom passa a ser horrendo. Daí a evasão ea repetência, ambos gerados pela falta de motivação.

O sistema de avaliação, quase sempre calcado em provas, onde pouco seexige do raciocínio e muito se quer da “decoreba”, reprova bons alunos e pro-move medíocres.

Os conteúdos constantes de muitos livros didáticos mostram que há pá-ginas demais para assuntos de menos. O Programa Nacional do Livro Didá-tico, que funciona operacionalmente bem, peca por fazer com que as editoraspadronizem conteúdos ensinados de norte a sul, de leste a oeste, num paíscom dimensões continentais, e isso obviamente não dá certo.

Falta, portanto, uma revisão dos conteúdos e um forte ajuste à realidaderegional e local. Ensinar meio ambiente ou programas de saúde, por exemplo,de maneira igual em todo o Brasil é uma aberração.

Pior ainda é fazer-se uma sistema nacional de avaliação aplicando amesma “prova Brasil” em todas as partes. Querem que os desiguais sejamiguais.

É preciso também fomentar novas lideranças. A escola tem um papelfundamental de formar cidadãos comprometidos com os valores morais ecom o seu país. O regime autoritário pelo qual o Brasil passou eliminou osgrêmios e diretórios estudantis que eram espaços naturais para o surgimentode líderes.

As escolas não incentivam, talvez por receio de questionamentos quantoàs suas práticas, os movimentos dos estudantes. Os estabelecimentos de ensi-no não perderão, se houver uma reversão nesse modo de agir.

Faltam noções de patriotismo nas escolas. O Brasil não é um “time espor-tivo” que disputa uma competição temporária. Passando a época da Copa doMundo quase não se vê bandeiras nacionais tremulando nas vias públicas. Ossímbolos são esquecidos, e sem o exemplo da escola não se criam bons gover-nantes e eleitores conscientes.

Carece também o nosso país de um amplo processo de difusão dos direi-tos e deveres na educação. Não há um serviço público que assegure responsa-bilidades de alunos, educadores, governo e sociedade.

Muitos outros pontos poderiam ser evidenciados mas gostaríamos detraçar alguns aspectos finais.

o qu

e ai

nda

falta

ser

feito

na

educ

ação

bás

ica

no B

rasil

Page 40: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Todas essas considerações, fruto de uma vivência de mais de três décadasno campo da educação e estudo sobre a educação nos 500 anos de Brasil, sãofeitas dentro de um espírito colaborativo.

Reconhecemos que milhares de pessoas bem intencionadas trabalham emprol de uma educação de qualidade no Brasil e conseguem muitos avanços,mas falta-nos uma política educacional ampla e compromissada com o futuro.

A questão educacional não é um assunto de governo. É de estado.Somente com um novo Plano Nacional de Educação, de longo prazo e

ajustado aos interesses da sociedade, se atingirão resultados. É imprescindívelque existam os desdobramentos através dos Planos Estaduais e Municipais,adequando as metas globais a cada região.

Mais ainda que um Plano, é preciso que exista a vontade de fazer.Dizem os estudiosos que existem dois futuros: um é o chamado futuro

do destino, onde as coisas acontecem dentro de um processo natural; outro éo futuro do desejo, decorrente das ações efetivas que exercemos.

Que possamos ser parte integrante desse último que faz acontecerem astransformações!

JOÃO ROBERTO MOREIRA ALVES é presidente do Instituto de PesquisasAvançadas em Educação e da Associação Brasileira de Tecnologia Educacional.

Page 41: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

O futuro da educação e a reforma universitária

ES T E V Ã O D E RE Z E N D E MA RT I N S

O homem só se torna homem pela educação.Immanuel Kant1

B rasil 2006. O que resta fazer na educação? Para quê uma nova reformauniversitária? Resta muito na prática, menos na teoria. Na teoria restaria

menos, se forem levados em conta o efeito virtual da arquitetura normativareguladora e as concepções que circulam no meio acadêmico e profissional.Há belas teorias, há pletora de leis para tudo, a começar pelos princípios ins-critos na Constituição Federal. Muito a fazer na prática, pois as distorções eas omissões nas ações dos movimentos sociais e nas do Estado acumulam-sehá décadas e freqüentemente, se considerado o afã de retomar a partir da esta-ca zero, a cada mandato político, muitas iniciativas, como se o país estivesseapenas nascendo – ou como se o que houvesse sido feito por outros estivessenecessariamente estigmatizado pelo erro.

O frenesi da inovação pela inovação costuma não produzir bons efeitos– em especial no campo da escolarização. As reformas do ensino fundamen-tal e médio em 1971 e em 1996, pelas leis de diretrizes e bases da educaçãonacional, são vistas com razoável ceticismo, pelo efeito diminuidor da quali-dade do aprendizado, constatado na prática escolar a mais corriqueira.

1. “Der Mensch kann nur Mensch warden durch Erziehung”. Über Pädagogik [ed. Fr. Rink,1803]. Kants Werke. Akademie Textausgabe [1902]. Berlim: Walter de Gruyter, 1968,vol. IX, p. 443, 19.

Page 42: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Inúmeras modificações genéricas da concepção do sistema acabam por não serseguidas de medidas práticas de investimento e de capacitação. O mesmo sepode dizer do sistema universitário, no qual é honrosa exceção a qualidade dapesquisa e da pós-graduação alcançada desde os planos nacionais, postos emprática desde 1975, malgrado as dificuldades crescentes no plano do finan-ciamento. A crise da descontinuidade parece ser, por seguinte, um problemacrônico da gestão política dos processos educacionais e instrucionais na socie-dade brasileira contemporânea.

O enunciado da questão refere-se a um tema da atualidade política esocial brasileira em 2006. Mas não só. Esse tema é recorrente no espaço públi-co brasileiro e internacional há décadas. Pode-se mesmo dizer que é regular econstante nas preocupações com a formação do cidadão na sociedade desde operíodo clássico. Nesse sentido, parece mais adequado pensar em formulá-loem outros termos, vale dizer: a educação é essencial para o futuro da socieda-de. E para o futuro de qualquer sociedade, em quaisquer circunstâncias.Requer-se, por conseguinte, delimitar qual o significado que se atribui à edu-cação como categoria abrangente de análise social e que relevância ela possuino âmbito de uma sociedade.

1. PRELIMINARES

E ducação consiste, para os efeitos da reflexão aqui proposta, em um pro-cesso de formação da racionalidade humana e de enquadramento do uso

dessa racionalidade no espaço cultural da sociedade. Esse processo é amplo,incluindo assim dimensões de socialização e de instrução. Habitualmenteessas duas dimensões são levadas em conta pelos analistas.2 O aspecto rele-vante na atualidade emerge do que se pode considerar como um reducionis-mo metódico da educação à prática instrucional no sistema escolar. A relevân-cia desse aspecto reside na circunstância de que, na sociedade contemporânea(em seu formato consagrado desde o final do século 18), o Estado desem-penha um papel preponderante na organização das relações sociais e no modopelo qual os padrões de relacionamento na comunidade são instaurados ereforçados. A esse mecanismo de prevalência estatal a escola e sua paraferná-lia instrucional servem de instrumento. Essa prevalência é, obviamente, dis-cutível. Do ponto de vista histórico, contudo, o processo de organização da

2. Carlos Roberto J. Cury. Educação e Contradição: elementos teórico-metodológico para umateoria crítica do fenômeno educativo. 6. ed. São Paulo: Cortez e Associados, 1989.

Page 43: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

sociedade no período referido dá à escola uma posição de destaque no siste-ma social de manutenção e expansão dos padrões comportamentais e aosparadigmas de aprendizado cognitivo.

A reflexão aqui apresentada tem por intenção afirmar duas teses decunho histórico e político que são incontornáveis no âmbito das iniciativasgovernamentais referentes às estruturas escolares tuteladas pelo Estado:

a) de uma parte, processos educacionais são interações sociais e culturaismais abrangentes do que a formalização instrucional – essa tese é genéri-ca e independe da especificidade empírica de um país concreto, como oBrasil, por exemplo, conquanto se aplique também à sociedade brasileira;

b) de outra parte, as políticas públicas para a educação, na realidade, são emgeral proposições gerenciais de oportunidade política para administrar ouinstrumentalizar as instâncias da escola (de todos os níveis) em função deum projeto de gestão de curto prazo, o que se vem reproduzindo noBrasil, concretamente, ao menos desde a década de 1950.

2. EDUCAÇÃO COMO PROCESSO SOCIAL E HISTÓRICOCONTÍNUO E O LUGAR DA UNIVERSIDADE

C omecemos por colocar os parâmetros gerais que apontam para a primeiratese. Essa tese se enraíza na tradição iluminista, na segunda metade do

século 18, e adota a razoabilidade do projeto coletivo (equânime e igualitário)de construção de um espaço de sociabilidade contratual. Esse projeto reveste-se da forma da democracia liberal representativa, que prevalece na institucio-nalização política das sociedades ocidentais. Cabe a pergunta sobre se seusdesdobramentos, na institucionalização do estado-nação e na organização dauniversidade, desde o início do século 19, não passaram de um belo sonho ouse ainda têm relevância e sentido para a contemporaneidade.

O mundo do início do século 19, em que atuaram os irmãos Wilhelm eAlexander von Humboldt, viveu transformações excepcionais, nos planospolítico, econômico, social e cultural. O ambiente intelectual na ‘nova’Europa – semelhantemente ao início do século 21, no qual o espaço públicoparece ansiar pela novidade frenética e, com isso, contaminar as elites diri-gentes – era de todo favorável também a que se repensasse o projeto de for-mação do cidadão em um mundo transformado. Assim, refletir sobre quem é– ou deve ser – o ator da realização do homem, da sociedade, do Estado, domundo enfim, estava, por assim dizer, na ordem do dia. Tais esforços já não

o fu

turo

da

educ

ação

e a

ref

orm

a un

iver

sitár

ia

Page 44: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

são assim tão recentes, à época dos Humboldts, pois a segunda metade doséculo 18 fora pródiga em re-engenharias. Assim, uma das questões que sepõem aos (re)organizadores do Estado no início de século 19 é: que homem,que cidadão deve ser? Essa questão deveria ser a primeira a ser posta, no pano-rama político brasileiro e latino-americano de hoje. As incessantes reformasorganizacionais das estruturas legalmente definidas de intervenção do Estadona vida social e econômica têm sentido se e somente se estiverem subordina-das a tal horizonte de referência.

A questão da macro-orientação da educação na sociedade pode ser trata-da de diversas maneiras. Aqui são abordadas apenas três indicações de comoela se põe e de que maneira se pode dar uma possível resposta ao desafio cons-tante que ela representa. A primeira dessas indicações é a idéia central que ani-mou o pensamento e a proposta de Humboldt: educar para a humanidade. Asegunda apresenta alguns elementos das ambigüidades que envolvem o termo‘universidade’ – mesmo depois do projeto humboldtiano, ou quem sabe prin-cipalmente depois dele – e as crises que parecem ser a regra do existir das ins-tituições que foram fundadas, legítima ou apenas alegadamente, em seunome. A terceira e última indicação remete ao papel da razão esclarecida noprograma da consciência histórica, para além do momento específico dacriação da primeira universidade dita humboldtiana, em 1810.

2.1 Educar para a humanidade

Humanidade, aqui, é tomada em seus dois sentidos: o que representa ocoletivo dos homens, a totalidade dos seres humanos concreta e empirica-mente existentes, como aquele que quer exprimir a quinta essência do serhumano, sua substância, sua diferença específica. Entendida em ambos aspec-tos, humanidade é um conceito que passou a ser articulado de forma irrever-sível, na formação perfeita, multi-abrangente e harmônica para constituir aunidade pessoal dos indivíduos e seu conjunto em sociedade é o ideal dahumanidade.3 A relação harmoniosa da unidade pessoal do homem é defini-

3. F. Niethammer. Der Streit des Philanthropinismus und Humanismus in der Theorie desErziehungsunterrrichts unserer Zeit. Jena, 1808, p. 190. Niethammer, como já antesoutros, utiliza dois termos para referir-se a humanidade. Um é a palavra Menschheit,outro é Humanität. Tradicionalmente, a primeira denota a totalidade da humanidadeenquanto coletivo dos homens. A segunda, o caráter distintivo, natural, essencial, que fazde determinado ente ser homem. Em português não se dispõe de dois termos para desig-nar os dois sentidos, que o alemão faz ao recorrer ao neologismo “Humanität”. (continua)

Page 45: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

da como da ação educativa e da autoformação. A educação/formação4 é assimconsiderada como um processo infinito de desenvolvimento das próprias pos-sibilidades do homem que se enraíza na capacidade humana de aperfeiçoar-see se desdobra gradativamente ao longo do tempo. Vista assim, a educação seenuncia como o fim mesmo da existência humana; o homem que se educa éfim de si mesmo – a auto-educação é a meta máxima a que pode aspirar.5

Para Wilhelm von Humboldt, formar-se (no sentido de educar-se) em simesmo é a finalidade do homem enquanto tal.6 A idéia da auto-realização dohomem pela formação, na qual o elemento religioso pode ser inteiramentedeixado de lado, encerra a tentativa de desvelar o homem como totalidade.Não apenas na integralidade dos aspectos que conformam sua existência,mas também no caráter de autonomia, de autosuficiência na efetivação desuas capacidades, fins e meios – processo no qual a tutela e a interferência doEstado podem ter conseqüências benéficas como perniciosas. A afirmação, apreservação da razão como afirmação da humanidade é a tarefa maior da

o fu

turo

da

educ

ação

e a

ref

orm

a un

iver

sitár

ia

(continuação) Eventualmente encontra-se na literatura filosófica o termo “hominidade”,importado da palavra latina hominitas, neologismo também desde a alta Idade Média, ereferindo o elemento essencial do ente determinado “homem”. Evitar-se-á aqui utilizar oneologismo. O termo “humanidade”, conforme a pragmática lingüística, poderá dizerrespeito ao coletivo dos homens como à sua (suposta) substância.

4. O vocabulário alemão a que me refiro aqui utiliza duas expressões consagradas: Bildunge Erziehung. A primeira será empregada na tradução “formação”, que encerra tambémparcialmente os sentidos de auto-educação, de acervo adquirido (na acepção de “pessoade boa [ou má] formação”) e ainda de cultura em sentido amplo – sempre referida aosujeito em si mesmo. A segunda aparece sempre como “educação”, em termos clássicos,ou seja: o processo de educar, ensinar, formar tendo o homem como “objeto”. Não rarosos autores mesclam, no entanto, os dois sentidos. Assim, o mesmo sujeito pode ser con-siderado como o agente de seu processo formativo e como seu próprio educador, comose outrem fosse.

5. O ambiente intelectual da Prússia da virada do século 18 para o século 19 é amplamen-te dominado pela influência do Meisterdenker (mestre pensador) Kant. O opúsculo deKant sobre pedagogia, editado em 1803 por Friedrich Rink (Über Pädagogik. Berlim:Akademie-Ausgabe, vol. IX, 1923, p. 437-499), começa com uma afirmação que dá vozclara e nítida ao que pensam seus discípulos e contemporâneos, entre os quais os irmãosHumboldt: “Der Mensch ist das einzige Geschöpf, das erzogen werden muss. ..... DieMenschengattung soll die ganze Naturanlage der Menschheit durch ihre eigneBemühung nach und nach von selbst herausbringen.” (IX, 441.1; 24-25): “O homem éa única criatura que tem de ser educada. ... A espécie humana deve desenvolver toda anatureza da humanidade por esforço e por conta própria.”.

6. “Sich in sich zu bilden, [ist] der Zweck des Menschen im Menschen”. Ideen zu einemVersuch, die Gränzen der Wirksamkeit des Staates zu bestimmen.(1792), AA vol. 1(1903) pp. 56 e 76.

Page 46: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

educação, sobre a qual repousa todo o sentido da formação universal, emfunção da qual se pode falar em ‘formação do homem ou da humanidade’,pois se constitui em direito originário do homem e há de ser reconhecidocomo tal.

O princípio da formação para a humanidade exige o desenvolvimentodas aptidões humanas mediante as quais o homem enquanto tal – não comoprofessor universitário, nem como estadista ou homem de negócios, nemainda como comerciante ou artista, nem tampouco como cidadão ou solda-do – se torna o que deve ser, conforme sua especificidade como homem.7

Essa concepção do processo de transformação do homem em homem articu-la com clareza as três dimensões da questão. A primeira é a formação, dis-tinta do processo escolar de ensino. A segunda é a humanidade enquantocoletivo de sujeitos individuais concretos, historicamente determinados, quetêm de encontrar, nos caminhos do processo formativo, o rumo da sua natu-reza. A terceira é a humanidade neste último sentido: o caráter humano domodo de ser, em si (real ou suposto) dos homens, singular e coletivamente.Tal requisito pressupõe a liberdade pessoal como patrimônio substantivo doser humano, cuja plenitude somente se daria no âmbito do processo educa-cional assim entendido.

No entanto, há discrepância entre esse ideal de formação e o processoeducativo social para produzir membros de grupos ou classes sociais ou aindaartesãos e profissionais de tal ou qual ofício, de que a pedagogia estatal utili-tarista da forma atual de neodespotismo esclarecido lança mão. É, pois, umadiscrepância que em nada perdeu sua atualidade. É a que subsiste entre “for-mação humana” e “formação profissional”, entre “perfeição” e “utilidade” eque assinala com seu estigma a tutela estatal sobre os modos sociais de ins-trução e treinamento a que foram reduzidas muitas escolas e universidades.

Essa contraposição, que se tornou atual na transição do século 18 para oséculo 19, e que foi cunhada no embate entre a consolidação do poder esta-tal e o pragmatismo produtivo da revolução industrial em marcha, veio a serformulada em termos duros por Ernst Evers. Evers fala em combate entre a‘humanidade’ e a ‘bestialidade’. A bestialidade é vista por ele no contexto ins-trumental do entendimento ativo, da dependência dos instintos e da sensibi-lidade, na correria pela rentabilidade, no pensar utilitário. Inversamente, ahumanidade estaria no âmbito teleológico – e, obviamente, valorativamentepreferido – da razão, da dignidade humana, da busca da verdade, da liberda-

7. Die Schule der Humanität. Eine gekrönte Preisschrift (Stettin, Leipzig, 1811), p. 3.

Page 47: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

de e da perfeição. Para Evers, a orientação para o incremento do bem-estar, aotimização dos meios produtivos, a aplicação laboral, a engenhosidade e arentabilidade não passam de formação profissional, de treinamento para abestialidade, de renúncia à autodeterminação e ao homem como fim em simesmo, como abandono do que é propriamente humano.8

É de se reconhecer claramente, por trás dessa crítica, a condenação – bemanterior a Marx – da pedagogia utilitarista, que instrumentaliza os indivíduos,ao submetê-los a constelações sócio-políticas e econômicas dadas, reduzindo-os a meros meios a serviço do grupo. Essa pedagogia está marcada pelo ime-diatismo e pela miopia típica do utilitarismo político de curto prazo.Inversamente, a pedagogia humanista é a única que tornaria possível aohomem ir além de sua determinação social histórica. Se o conceito de for-mação deve estar subsumido aos fins últimos da humanidade, as acepções de“formação humana” e de “formação profissional” devem ser claramente dis-tinguidas. E distinguidas de modo que a formação profissional seja sempresubordinada à formação humana, função dela, a ela subseqüente – e jamais ocontrário. As sucessivas “reformas” da educação na segunda metade do século20 (pelo menos três leis de “diretrizes e bases da educação nacional”9 e umamiríade de textos normativos sobre universidades, formando um cipoal deconfusões quanto aos objetivos e aos meios da atuação formativa do Estado ede seus agentes).

Johann-Heinrich Pestalozzi (1746-1827) já defendia claramente a hie-rarquização da formação profissional e de classe sob a finalidade última da for-mação humana.10 Da subordinação da formação do cidadão à formação dohomem decorre o programa da educação: “O ginásio [ou seja: a escola] deveformar primeiro o homem, depois o cidadão”. Para a pedagogia humanista doinício do século 19 estabelece-se, pois, um contraste nítido entre “formação”e “educação”, do qual decorre que só pode haver dois tipos de escola: as esco-

o fu

turo

da

educ

ação

e a

ref

orm

a un

iver

sitár

ia

8. Über die Schulbildung zur Bestialität (Aarau 1807), p. 50ss., 60.

9. A lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Estabelece as diretrizes e bases da educaçãonacional) é a mais recente. Foi precedida pelas leis nº 4.024, de 20/12/1961 (cujos arti-gos 6°, 7°, 8° e 9°continuam em vigor sob a LDN de 1996), nº 5.540, de 28/11/1968,e nº 5.692, de 11/08/1971. Essas três “leis gerais” – carregadas de pormenores típicos daadministração direta – foram muitas vezes alteradas ao longo de seus prazos de vigência:7, 3 e 25 anos. A lei atual já sofreu pelo menos três reformas maiores e diversas outras,pontuais.

10. Die Abendstunde eines Einsiedlers (1779/80), em Sämtliche Werke (Berlim: de Gruyter,1927ss.; Zurique: Orell Füssli, 1956ss.) vol. 1, p. 270.

Page 48: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

las de formação e as escolas profissionais. A característica marcante das pri-meiras é que se ocupam exclusivamente da formação humana.11

Decerto não há espaço, em uma concepção desse tipo, para a multiplici-dade cultural e para a diversidade de opiniões divergentes. Ambas estariam noplano da realidade histórica, aquém do projeto da humanidade em si. A ser-viço deste projeto, contudo, de um – poderíamos dizer assim – “homemideal”, de um “homem segundo um figurino substantivo”, estaria a escola“universal” do homem plenamente efetivado. A dignidade máxima dohomem está não em ser um homem “útil”, mas em ser um homem “forma-do” (pleno). “Formação” não quer dizer aqui um mero produto do “isola-mento” ou da “liberdade” de uma individualidade privilegiada, mas constitui-se, enquanto todo maximamente harmonioso e mais bem proporcionado detodas as faculdades humanas, no projeto da sociabilidade histórica.“Formação”, como unidade originária na compreensão de si próprio e domundo se contrapõe ao sintoma da “unidimensionalidade” do homem na cul-tura moderna – diagnosticado como ameaçador; contrapõe-se igualmente aqualquer forma de dominação do homem, a qualquer forma de heteronomia.

Com efeito, em sociedades em que a experiência autoritária de governoestigmatizou direitos dos mais elementares, como o de exercer a cidadaniapolítica no Estado, “educar para a cidadania” tornou-se uma bandeira deredenção. “Cidadão”, contudo, designa o papel político do homem na socie-dade organizada sob a forma de Estado – e não de qualquer Estado, mas doEstado que tem desenho e desígnios certos. Façamos abstração da maneiraatual, catártica, de usar o termo “cidadão” ou “cidadania”, e tenhamos pre-sente que convém utilizar com prudência a expressão “educar para a cidada-nia” – pois ela pode representar a colocação das pessoas a serviço do Estado.E o Estado tem, digamos assim, “donos do poder”. Não resta dúvida de que,então como hoje, certo grau de desconfiança com os “donos do poder” é sem-pre bem-vinda. O Estado mínimo e a liberdade máxima para a formação epara a ação do homem em seu são entendimento resumem o essencial dessaconcepção generosa de educação.

Somente o homem de formação plenamente livre, crítica, autônoma,independente – poder-se-ia dizer com Humboldt, e não só com ele: tambémcom Voltaire, Rousseau, Kant, Goethe e tantos outros – pode decidir se‘ingressa’ ou não no Estado, julgando a constituição deste por comparação asi. Há certa dose de abstração nessa visão das coisas, na medida em que, empi-

11. Niethammer, op. cit., p. 189.

Page 49: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

ricamente, todos nascemos em um mundo carregado de história. E a históriaconcreta das sociedades, pelo menos desde a idade moderna, inclui o Estado.Mas é justamente aqui que se toca no ponto nodal da questão. A reforma daeducação, a formação de agentes racionais humanos senhores de si é que per-mitem criar a distância crítica para que o “homem bem formado” ajuíze sobreseu mundo, sua sociedade, seu estado.

No conceito de formação assim entendido está um desafio à realidadesocial e estatal tanto quanto um alto grau de consciência dos ‘formados’ comrelação a sua função social. Com mais perspicácia do que seus contemporâ-neos, Niethammer reconstrói o contexto histórico-social de “humanidade” e“formados”. Para preservar a formação racional requer-se uma classe de indi-víduos privilegiada pelo destino, livre de pressões instintivas, dotada de forçae de acuidade de espírito. A classe dos formados, que emerge pela formaçãocrítica integralmente livre, está vocacionada a fomentar o ideal da formaçãohumana, independentemente de estarem no serviço público, na ciência, naarte, ou em que profissão for, ou ainda – se assim permitirem seus meios –não precisarem de trabalho assalariado. A educação livre faz deles uma clas-se igualitária, que atravessa todas as demais, ordenadas que sejam por nasci-mento ou capacidade econômica. A ação dessa classe de pessoas é o penhorde vida intelectual da nação, cujo desaparecimento ou omissão representariasua dissolução.12

3. AMBIGÜIDADES E CRISES

D uas características da universidade, ao menos, parecem ter-se consolida-do. Uma refere-se ao fato de que a instituição acadêmica afinal deve dis-

tinguir-se pela excelência da pesquisa. Dessa decorre a possibilidade do ensi-no e a difusão do saber. A autoridade do conhecimento é assim o fundamentodo poder do homem culto e cultivado. Outra é a progressiva e expansivatendência de as instituições de ensino superior serem cada vez mais de ensinoe cada vez mais escolares. Nessa segunda característica aparece o pragmatismoimediatista das iniciativas governamentais dos últimos decênios.

O modelo da liberdade de ensino e pesquisa se contrapõe historicamen-te ao progresso da estatização do sistema social de formação. Acelerou-se oprocesso de organização da escolaridade em função da preparação do cidadão,ou seja, do homem enquanto membro do Estado. Essa contraposição repre-

o fu

turo

da

educ

ação

e a

ref

orm

a un

iver

sitár

ia

12. Niethammer, op. cit., p. 193s.

Page 50: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

senta, assim, a primeira grande ambigüidade social e institucional da univer-sidade e da escola em geral. Essa ambigüidade, que se soma, por exemplo, àambigüidade da universidade mantida pelo Estado e a mantida pela iniciati-va privada – que opõe praticamente a versão européia à norte-americana deuniversidade – forma um ambiente inapelavelmente favorável às crises.

A primeira dentre as crises é a que contrapõe universidade e Estado. Épossível dizer, sem risco de exagero, que já de início a universidade foi sem-pre um instrumento do Estado (ou por este instrumentalizada) – malgrado oque possa ter pensado Humboldt. O processo de instituição e de manutençãodas universidades, e especificamente das públicas, foi sempre uma ação deEstado. Importa ao Estado dispor, no sistema escolar, de um mecanismo deinteriorização de valores, fidelidades e dependências que transforma oscidadãos – originalmente concebidos como titulares da autonomia de ação talcomo imaginada por Rousseau e enunciada por Kant13 – em súditos.14 Umtal deslocamento do topos ideal do homem para sua localização social numaperspectiva estritamente pragmática, desde o ponto de vista do interesse doEstado – já não mais estritamente da razão – acarreta um desvio reprovável.

A instrumentalização do sistema escolar permanece. Dois fenômenosmerecem ser lembrados, para permitir uma contextualização pertinente dasquestões que afloram, no início do século 21, em contraste com as con-cepções enunciadas no início do século 19. O primeiro desses fenômenos éo progresso constante da escolarização, especialmente na Europa e nos Esta-dos Unidos. O aumento do público letrado e a crescente participação demais e mais grupos sociais dos movimentos políticos é um dado importante,que não escapa à observação dos governantes.15 Se as igrejas (Católica prin-

13. Cf. E. de Rezende Martins: Studien zu Kants Freiheitsauffassung in der vorkritischenPeriode (1747-1777). Augusbrg/München: Blasaditsch, 1976, esp. cap. III, p. 238-284.Cf. também meus “Autonomia e liberdade. A influência de Rousseau sobre a ética pré-crítica de Kant”, in: Revista Latinoamericana de Filosofia, IV (1978) 99-117; “Natureza,sentimento e liberdade. Elementos da ética pré-crítica de Kant”, in: Kant (Cadernos daUnB), Brasília: EDU, 1981, 23-37; e “A Enciclopédia de 1775 e o surgimento da Críticada Razão Pura”, in: Reflexão 57 (set.-dez. 1993), 172-180.

14. A esse propósito, vale recordar a obra – entrementes clássica – de Pierre Bourdieu sobrea estrutura reprodutiva do sistema escolar: Escritos de Educação (Petrópolis: Vozes, 2005,7ª ed.) e A economia das trocas simbólicas (São Paulo: Perspectiva, 2005., 6ª ed.).

15. A república das letras, o mundo do conhecimento plural – em particular da segundametade do século 18 –, tal como o descreve e analisa Daniel Roche (Les Républicains deslettres. Paris: Fayard, 1988), se exprime crescentemente ao longo do século 19. As revo-luções ditas liberais (entre 1810 e 1848) e os movimentos reivindicatórios de (continua)

Page 51: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

cipalmente, mas também as demais confissões) já há muito haviam percebi-do a importância do controle sobre o sistema escolar e de seu efeito sobre oideário e os ideais dos homens, o Estado dá-se conta disso no século 19. Tem-se aqui o segundo fenômeno: a transferência da escolaridade do campo con-fessional teológico para o campo confessional republicano, leigo.

Estão assim reunidos os ingredientes das ambigüidades que permeiam oespaço social das universidades. O programa da independência crítica absolu-ta, do poder analítico da razão, da compulsão criativa da descoberta domundo, do desvelamento das regularidades e das leis da natureza, apanágio dosacro pagode da pesquisa universitária, está também ele exposto ao contradi-tório das estruturas de poder, das rivalidades sociais, das vaidades pessoais, dosinteresses do Estado. O Estado, instituidor e mantenedor da universidade,firma sua posição de manter um olhar de avaliação e controle da atividadeuniversitária. Na universidade, haveria funcionários públicos tal como emqualquer outra repartição. A expansão da universidade de iniciativa particu-lar, nos moldes de empresa privada, representa uma cunha debilitadora docontrole estatal. O espaço público passa a ver a presença do Estado mais comomecenato do que como protagonismo.

Na distinção entre público e estatal aparece uma ambigüidade mais.Regra geral, o espaço público universitário considera-se intérprete e porta-vozda expectativa – quando não das exigências – da “sociedade” como um todo.Não raro o integrante da estrutura universitária contrapõe-se ao Estado emnome dessa representação. E freqüentemente com ótimas razões. Mas a con-traposição crítica não elide a ambigüidade e a crise de relacionamento quedela decorrem. O Estado, seja diretamente por suas próprias instituições, sejaindiretamente pela autoridade de regulação e de controle da iniciativa priva-da, opõe norma e padrão à autonomia e à criatividade.

Os integrantes do sistema universitário, semelhantemente ao que ocorrecom os integrantes do Poder Legislativo, amiúde se acham dispensados deobedecer à norma social vigente. No caso dos legisladores, a investidura nomandato popular para produzir normas produz o surpreendente efeito deuma percepção de alforria legal. Nos estabelecimentos de ensino e pesquisasuperiores, a consciência do trabalho científico crítico extravasa para a crítica

o fu

turo

da

educ

ação

e a

ref

orm

a un

iver

sitár

ia

(continuação) resgate da condição operária (notadamente o Manifestado Comunista de1848) são suas expressões marcantes. A constitucionalização dos regimes políticos é outraforma destacada de progresso da concepção igualitária da cidadania, mesmo se lacunar,para além dos feitos da Revolução Francesa.

Page 52: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

social, política e econômica no contexto social amplo. O caldo de culturacorresponde a uma expectativa semelhante à que existiu na Idade Média euro-péia ocidental: a de que certos espaços eram protegidos de qualquer inter-venção externa. Se num caso tratava-se sobretudo de igrejas e conventos, nestecaso parece ser (ou se pretende que o seja) a universidade.16

A questão gira, afinal, em torno do corpo de pesquisa e ensino, comu-mente chamado de ‘docente’. A proposta de liberdade de cátedra, de conexãoentre pesquisa e ensino, surgiu no contexto de um mundo que emergia vaga-rosamente da pesada tradição de tutela do Antigo Regime e do duplo venda-val revolucionário e napoleônico. Rapidamente o espaço acadêmico tornou-se sinônimo de uma dupla imunidade: a do pensamento independente e a doterritório livre. Ao menos no imaginário de seus habitantes. Se a primeiraimunidade é de cunho virtual, sem deixar de ser desbravadora e, por vezes –alguns diriam: principalmente – incômoda, a segunda é problemática para oEstado. Não resta dúvida de que nos deparamos aqui com mais uma dasincontáveis ambigüidades que se instalaram no mundo universitário ao longode dois séculos. Até que ponto se poderia praticar a autonomia crítica da cida-dania virtual do conhecimento científico quando, institucionalmente, oEstado é o principal sustentáculo do sistema acadêmico? Ainda mais: a auto-nomia parece ainda mais ameaçada quando é a livre iniciativa econômica domercado que promove a fundação de estabelecimentos de pesquisa e ensino.

Com efeito, o sistema produtivo da economia põe os cidadãos diante deuma ambigüidade adicional. A realidade concreta das oportunidades de tra-balho e de renda depende da capacidade instalada de produção e comerciali-zação de bens e serviços, sobre cujo ritmo ou direcionamento o impacto dadescoberta científica ou da formação de profissionais ‘diplomados’ é lento egradual. As instituições universitárias vêem-se destarte contrapostas a um cha-mamento dúbio – formar para o mercado ou formar para a sociedade. Essadubiedade parece ser uma constante dos últimos cento e cinqüenta anos,acentuada em períodos de escassez ou de crise econômico-financeira. Além

16. Estar-se-ia aqui diante de uma concepção ampliada da noção clássica de asilo e do direi-to em que se exprimiu. A extensão da sacralidade territorial usual desde o século 4º noOcidente clássico à concepção virtual da imunidade pessoal desenvolveu-se e consagrou-se no plano jurídico. Após o processo de secularização iniciado no Renascimento e con-sagrado no modelo “ilustrado” de ciência, pode-se dizer que a competência científica ins-tituiu um espaço de imunidade fundado na crítica e no argumento. Cf. François-OlivierTouati (org.): Vocabulaire historique du Moyen Âge. Paris: Éd. La Boutique de l’Histoire,1995, p.28.

Page 53: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

disso, o mercado tem interesse em pesquisa na medida em que a inovação tec-nológica e o domínio da produção de conhecimento, tanto quanto o contro-le do fluxo de informação, habilitam o concorrente econômico a vender maiseficazmente seu produto ou serviço. Por via de conseqüência, o sistema de for-mação superior fica facilmente exposto à instrumentalização econômica, tan-to como à política.

Ao final do século 20, a multiplicidade dos estabelecimentos de pesqui-sa e ensino deixa patente não a riqueza da criatividade cognitiva ou epistêmi-ca, mas sobretudo a concorrência por produtividade econômica (não raro,aliás, uma disputa por freguês pagante) que torna praticamente inócua a altis-sonante discussão pública sobre os excelsos objetivos da universidade liberta-dora e crítica. Uma desenfreada instrumentalização mercadológica acarretaum crescente uso em vão do nome da universidade. A crise se expressa, pois,na instabilidade do sistema e na insegurança de seus membros. A ambigüida-de se estende, agora, à intrumentalização do sistema acadêmico por parte defrações não negligenciáveis de seus próprios integrantes. Suas instituições sãoutilizadas como meios de capacitação pessoal e de catapulta profissional nomercado, com perda ainda mais acentuada da perspectiva humana e com aconsagração do modo privatista de relacionar-se com a instituição pública (eestatal, pelo menos em bom número de casos).

Se crises e ambigüidades dão a impressão de conduzir a universidade aum inevitável gueto de alienação social, talvez fosse o caso de recordar que épossível construir uma concepção da missão da universidade que reúna (ouconcilie) ambos aspectos. Assim, a concepção humboldtiana de universidadeassumiria a posição de idéia regulativa, de horizonte de referência, de tipo-ideal, na tradição do pensamento de inspiração kantiana e em sua versãoweberiana.17 Como lembra Kant, o fato de uma república perfeita regidapelas regras da justiça não existir em sua plenitude não impõe a conclusão desua impossibilidade nem o álibi do abandono de sua busca. O mesmo valepara a universidade, república das letras em escala menor e análoga.

Ao se contemplar a paisagem universitária contemporânea, deve-se dis-tinguir o plano ideal da concepção do nível comezinho de sua realização, pre-

o fu

turo

da

educ

ação

e a

ref

orm

a un

iver

sitár

ia

17. Cf., por exemplo, Über Pädagogik (ver nota 4), 444.32-33: “Eine Idee ist nichts anderes,als der Begriff von einer Vollkommenheit, die sich in der Erfahrung noch nicht vorfin-det.” (Uma idéia nada mais é do que o conceito de uma perfeição que ainda não se deuna experiência). Ver também Max Weber. Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre(Tübingen, 1951, 2a ed.).

Page 54: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

dominantemente parcial. O itinerário da pesquisa e do ensino institucionali-zados percorreu vias diversas em ritmos variados, segundo a região. Criaçãode conhecimento, aliada a formação instrutiva a serviço da sociedade institu-cionalizada sob a forma de estado-nação de corte moderno, parece ser o hori-zonte de referência.

A expectativa social contemporânea com respeito à universidade, parti-cularmente no Brasil, parece sofrer da síndrome da ambigüidade e da crisecujas características se esboçou aqui. O afastamento prático não parece seruma novidade – o ideal teórico da educação para a humanidade aparente-mente foi subordinado ao ideal prático da educação para uma sociedadedomesticada, mesmo se não necessariamente tutelada, manipulada ou aliena-da. A hipoteca da autonomia intelectual a um projeto político monocórdio épor certo a pior forma de afastar-se da universalitas que a universitas deveriarepresentar e proclamar.

O percurso da criação dos cursos superiores no Brasil destinou-se a for-mar profissionais necessários à constituição do Estado independente. Aquitampouco nos detemos, pois o aspecto empírico é mais apropriadamenteestudado por especialistas dessa área. Entretanto, a expansão do parque decursos superiores nos últimos trinta anos e a acentuada redução do fluxofinanceiro do Estado para a sua manutenção (direta ou indireta)18 acarreta-ram uma crise de identidade, tarefa e missão que não passa despercebida. Oobjetivo transcendental de uma formação autônoma – habitualmente man-tido no discurso dos que se debruçam sobre o problema19 – é posto em riscoou sofre a concorrência do imediatismo pragmatista. Essa concorrência,dependendo da região do país e da estratificação socioeconômica, dá-se em

18. A título de exemplo, a supressão do estatuto de entidade filantrópica para os estabeleci-mentos privados de ensino superior, em 1997 (depois corrigida parcialmente), gerouforte abalo do sistema de financiamento do ensino escolar de tipo (efetivo ou pretendi-do) de origem confessional.

19. A questão suscita – e não é de hoje – abundância de manifestações. Alguns autores, comverve lírica, mantêm o encanto do objetivo transcendental da universidade como agentetransformador das relações sociais mediante aliança entre competência científica e enga-jamento político (ver, por exemplo, Cristovam Buarque: A aventura da universidade. Rio:Paz e Terra, 1997). Outros, como Hélgio Trindade, analisam e criticam a cumplicidadeperversa da politização com a deficiência das políticas públicas e com a mediocridadecientífica prevalente (Universidade em ruínas. Petrópolis: Vozes, 2000). Pode-se aindalembrar, dentre os mais recentes: Francisco A . Doria/Antonio P. de Carvalho. A crise dauniversidade. Rio: Revan, 1998 ou Sílvia T. Penteado. Identidade e poder na universidade.S.Paulo: Cortez, 1998.

Page 55: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

bases culturais e escolares extremamente desiguais, desembocam em dese-quilíbrios, quando não em certo grau de deslealdade social. Isso se dá tantopor pressão da rentabilidade empresarial, representada pelos que fundamestabelecimentos de ensino, quanto do mercado profissional dependente dodesempenho da economia e da administração pública (no caso do funciona-lismo de Estado).

Não é espantoso, por conseguinte, que a primeira pergunta que se põe,hoje como ontem, é a de saber que universidade é desejável. E para quem. Oideal de um nirvana metodológico em que impera a liberdade criativa pareceter recebido antolhos restritivos da formação profissional e da vinculação aoaparelho produtivo. Cada vez mais pessoas pensam que a obtenção de umachancela universitária equivale a dispor de um trampolim de ascensão social.As ambigüidades e as crises se somam para reduzir a questão a um problemade política pública, de ação governamental, de gestão estatal. A estratificaçãosocioeconômica acentua, ao menos historicamente, as divisões no seio da so-ciedade. A instituição universitária não parece coincidir necessariamente coma fábrica de diplomas que a expectativa social de progressão veria nela.20 Senão de forma total, ao menos em número suficientemente grande para que aproliferação de estabelecimentos de ensino ‘apenas expedidores de diplomas’seja maior do que a taxa de crescimento dos núcleos de excelência em pes-quisa. Essa é mais uma vulnerabilidade do sistema escolar institucionalizadosob controle direto do Estado ou sob sua regulação. O imperativo da quanti-dade acaba por minar de vez o imperativo da qualidade.

Assim, para o observador e analista – no caso de todos os que estamosengajados na vida universitária: observadores e analistas interessados direta-mente na questão – a pauta de reflexão se articula, quase que exclusivamente,em torno do papel e dos deveres do Estado, na medida em que sobre os requi-sitos de o que seja ciência e sua produção constaria uma forte dose de con-vergência. Pelo menos, espera-se. Em tese, pode-se também aceitar que a criseé provavelmente o melhor ‘meio ambiente’ para a inovação e para a reformu-lação. A observação lúcida e pertinente de Pedro Demo ilustra o caráterantinômico da crise de identidade da universidade como templo do conheci-mento: “... a organização curricular acadêmica hoje vigente ... [revela] umadas ironias mais sarcásticas do mundo da ciência: enquanto é responsável por

o fu

turo

da

educ

ação

e a

ref

orm

a un

iver

sitár

ia

20. A esse respeito pode-se ler com proveito Stanley Aronowitz. The Knowledge Factory:Dismantling the Corporate University and Creating True Higher Learning. Nova Iorque:Beacon Press, 2000.

Page 56: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

inovações estrondosas e cumulativas sem parar, cristaliza-se em instituiçõestendencialmente rígidas, deixando aparecer contradição performativa angus-tiante: pretende inovar sem inovar-se”.21 Esse sinal de crise pode e deve ser oindício de uma reflexão crítica comparativa entre a situação presente e o pro-jeto idealizado de universidade.

4. A AMBIGÜIDADE E A CRISE NO PROJETODE REFORMA UNIVERSITÁRIA DE 2006

A linguagem da moda administrativa no mundo contemporâneo encaste-lou as iniciativas do Estado no campo dos assim chamados “marcos regu-

latórios”. Uma vez mais essa referência é utilizada, na exposição de motivosque encaminhou o projeto de lei n° 7.200, à Câmara dos Deputados, em 12de junho de 2006. Tem-se aqui uma expressão adicional da ambigüidade emque se transita com relação à educação. O Estado oscila entre a intervenção ea omissão. Não parece razoável nem um nem outro, embora a dimensão regu-latória seja adequada, desde que integrada no sistema normativo maior.

Por que razoável e integrada? Porque a razão de a educação como bemcoletivo da sociedade e o ensino universitário como parte do conjunto sistê-mico dos processos educacionais serem de responsabilidade do Estado está nofato de que a instituição estatal deve ser a viabilizadora da realização do bemcoletivo. Dessa forma, o bem a que a sociedade tem direito, vê sua efetivaçãoalcançável pela ação do Estado, de forma impessoal e universal. A adminis-tração pontual do Estado por governos de determinadas maiorias (ou mesmode governos minoritários, como é o caso do Brasil), em tese nada deveriainterferir nessa questão. O viés político de um programa de governo no máxi-mo permitiria modificações de ênfases, mas não interferências tuteladoras oumanipuladoras do processo educacional, no qual se insere a produção e adifusão do conhecimento.

Nesse sentido, a universidade mais merece atenção quanto à sua autono-mia completa, no caso das instituições do sistema público, e quanto à regu-lação qualitativa para todos os casos, públicos ou privados. A concepção dopapel do Estado que está por trás dessa tese implica o respeito à sociedadecomo um todo antes de qualquer vinculação de projetos e iniciativas a pre-ferências políticas particulares. É certo que preferências podem ser efetivas, na

21. Pedro Demo. Metodologia do Conhecimento Científico. São Paulo: Atlas, 2000, p. 73.

Page 57: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

medida em que a ação governativa estabelece prioridades pontuais e – possi-velmente – efêmeras. Mas o plano básico comum tem que ser equânime econtemplar todos os níveis de instrução, dentro do processo global de edu-cação. Planos nacionais de educação, carregados de retórica idealizada, mal-grado o revestimento formal de norma legal, somente podem tornar-se reali-dade se houver uma disposição social ampla de compromisso transversal e delongo prazo com sua efetivação.

É exigência da política como estrutura de relação social que tais proje-tos de longo prazo recebam a adesão majoritária da sociedade e que a conti-nuidade de sua realização não seja comprometida com acidentes constantesde percurso.

A democratização da formação universitária passa forçosamente pela qua-lidade do ensino fundamental e médio. Para isso, o papel regulatório do Estadonão pode permanecer refém da balbúrdia que reina na aparente estrutura fede-rativa do Brasil, em que a partilha dos encargos entre municípios, Estados e aUnião encontra-se distorcida, em particular por causa do centralismo fiscal efinanceiro do Governo federal, prevalecente há mais de 60 anos. A proliferaçãode universidades federais pode contribuir para o incremento estatístico donúmero de matriculados, mas não pode restringir-se a isso. O sistema federalde ensino superior padece de desequilíbrios graves de financiamento e degestão. Aumentar o número de unidades aparece como uma temeridade.

É responsabilidade do Estado garantir que o fornecimento de diplomasnão se dê numa tardia linha de montagem quase fordista, mas em um am-biente de cultura de pesquisa e de desenvolvimento qualitativo sustentável.Setorialmente isso já é realidade, no sistema de ciência e tecnologia do país.O frágil equilíbrio desse sistema não pode ser prejudicado pelo crescimentoquantitativo do aspecto formal (instituições e cursos) desacompanhado dainfra-estrutura de pesquisa adequada e dos profissionais qualitativamente for-mados. A proposta que se encontra sobre a mesa, em 2006, proclama seremseus objetivos: (a) constituir um sólido marco regulatório para a educaçãosuperior no país; (b) assegurar a autonomia universitária prevista no art. 207da Constituição, tanto para o setor privado quanto para o setor público, pre-conizando um sistema de financiamento consistente e responsável para o par-que universitário federal; e (c) consolidar a responsabilidade social da edu-cação superior, mediante princípios normativos e assistência estudantil.

Malgrado a afirmação de que essa proposta tenha sido encaminhada apósamplo debate na sociedade, deixando entrever que tal representaria igual-mente apoio social a ela, o contexto dos inflamados debates que a envolve

o fu

turo

da

educ

ação

e a

ref

orm

a un

iver

sitár

ia

Page 58: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

aponta para outra direção. Temos assim um exemplo da preferência governa-mental, em função de prioridades políticas datadas, que contrasta com a ine-vitável tensão social em que estão inseridos os atores do sistema universitário,público e privado. Estruturalmente, fica-se onde sempre se esteve – um mistode boas intenções e de assistencialismo.

Essa tensão naturalmente transparece na desproporção entre os critériosreguladores de atividades típicas de Estado, como o de assegurar a educação (ea instrução escolar) a todos os cidadãos, e a realidade histórica concreta de quemuito dessa atividade é exercida, por delegação de fato ou de direito, por pro-tagonistas sociais privados. Uma reforma que mescle critérios de gestão de agen-tes públicos com critérios de regulação do sistema educacional (escolar e ins-trucional) dificilmente contribuirá para o êxito que se propõe. Nesse sentido,importa tratar a questão por três caminhos distintos: (a) diretrizes e bases daeducação nacional, com características de sustentabilidade e durabilidade, aoexplicitar o direito individual e coletivo de cada pessoa a todos os componentesda educação e ao estipular as regras gerais a que se submete a prestação desse ser-viço essencial ao indivíduo à comunidade, típica de Estado – incluindo a pes-quisa científica e a aplicação tecnológica; (b) regulação administrativa das atri-buições do Estado enquanto provedor direto do serviço social da educação emtodos os seus aspectos, respeitada a especificidade do sistema educacional; (c)regulação qualitativa da prestação de serviços educacionais por particulares.

O primeiro dos caminhos define-se pelo longo prazo e pela qualidadeuniversal de seus critérios. O segundo e o terceiro derivam do primeiro, masrecorrem à distinção adequada à tipicidade administrativa própria da nature-za dos agentes no processo: uns são diretamente vinculados à administraçãopública e os outros são empregados do setor privado, prestando serviço denatureza pública. Em termos de qualidade e avaliação, valem para ambos ossetores os mesmos critérios. Em termos de gestão, diferem os modos, de acor-do com quadro normativo vigente e os princípios constitucionais que assegu-ram a liberdade de iniciativa. A confusão ou mescla dessas vias não trouxebons resultados até o presente.

5. PERSPECTIVAS – HÁ UMA LUZ NO FIM DO TÚNEL?

C ertamente. No Brasil, desde que se restaurou plenamente a prática demo-crática no jogo político e institucional, a partir notadamente da promul-

gação da Constituição federal de 1988, tem-se quase duas décadas de melho-rias crescentes no campo da educação. A continuidade deve ser preservada,

Page 59: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

nesse plano, para que a descontinuidade na educação deixe de ser a regra. Osprojetos políticos de gestão governamental pela duração de uma ou mais legis-laturas, como é costumeiro e normal no sistema democrático de legitimaçãopor eleição, devem dedicar-se no Brasil, enfim, à universalização efetiva daeducação básica, e à integração socioeconômica de grandes contingentespopulacionais ainda sem acesso à escolarização profissionalizante e à educaçãosuperior, de modo que se tenha, no médio prazo, o resgate de uma dívidasocial coletiva remanescente, oriunda dos desequilíbrios mais econômicos doque culturais, que alijaram tantos do sistema instrucional. Importa ademaisque certas prioridades (como o combate à inflação ou o controle da dívidapública) deixem de ser hipotecas que pendam irremediavelmente sobre ummoto contínuo de opções excludentes de obrigações do Estado. Há nisso tal-vez uma boa dose de otimismo. Mas é somente com a pertinácia do esforçopela defesa do interesse coletivo da sociedade no processo educacional que sepode superar sua instrumentalização política de curto prazo – uma tentaçãoconstante. Assim, o horizonte mais verossímil é o da distinção entre o inte-resse global da educação como processo coletivo, no longo prazo, e os aspec-tos formais da gestão governamental de curto prazo. O processo é um objeti-vo social em que todos os segmentos e movimentos sociais devam estarengajados, independentemente da natureza jurídica de sua definição no planoinstitucional. Em outras palavras: a educação é um bem que se situa acima ealém de interesses particulares, políticos, econômicos ou partidários. Tudo omais deve ser função disto. Pode-se concluir com as palavras de Rui Barbosana campanha civilista de 1910, que continuam pertinentes: “O ensino, comoa justiça, como a administração, prospera e vive muito mais realmente da ver-dade e moralidade, com que se pratica, do que das grandes inovações e belasreformas que se lhe consagram”.22

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARONOWITZ, Stanley. The knowledge factory: dismantling the corporate Universityand creating true higher learning. Nova Iorque: Beacon Press, 2000.

BARBOSA, Rui. Escritos e discursos seletos. Seleção e organização de Virgínia Cortesde Lacerda. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.

BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

o fu

turo

da

educ

ação

e a

ref

orm

a un

iver

sitár

ia

22. Rui Barbosa. Escritos e discursos seletos. Seleção e organização de Virgínia Cortes deLacerda. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 359.

Page 60: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

ESTEVÃO C. DE REZENDE MARTINS é professor de História Contemporâ-nea e de Teoria da História na Universidade de Brasília, desde 1977, é autor deRelações Internacionais: Cultura e Poder, dentre outros livros e artigos científicos.Foi Consultor Legislativo do Senado Federal (1985-1998) e Secretário de Estadono Ministério da Justiça (1990-1992).

__________. A economia das trocas simbólicas. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.

BUARQUE, Cristovam. A aventura da universidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

CURY, Carlos Roberto J. Educação e contradição: elementos teórico-metodológicopara uma teoria crítica do fenômeno educativo. 6. ed. São Paulo: Cortez e Asso-ciados, 1989.

DEMO, Pedro. Metodologia do Conhecimento Científico. São Paulo: Atlas, 2000.

DORIA, Francisco A., CARVALHO, Antonio P. de. A crise da universidade. Rio deJaneiro: Revan, 1998.

HUMBOLDT, Wilhelm von. Ideen zu einem Versuch, die Gränzen der Wirksamkeitdes Staates zu bestimmen. AA vol. 1, p. 56 e 76, 1903.

KANT, Immanuel. Über Pädagogik. Berlim: Akademie-Ausgabe, vol. IX, editado porFriedrich Rink em 1803.

__________. Werke. Akademie Textausgabe. Berlim: Walter de Gruyter, vol. IX, p.443, 19, 1968.

NIETHAMMER, F. Der Streit des Philanthropinismus und Humanismus in derTheorie des Erziehungsunterrrichts unserer Zeit. Jena, 1808, p. 190.

PENTEADO, Sílvia T. Identidade e poder na universidade. São Paulo: Cortez, 1998.

PESTALOZZI, Johann-Heinrich. Die Abendstunde eines Einsiedlers (1779/80).Sämtliche Werke. Berlim: de Gruyter, 1927ss.; Zurique: Orell Füssli, 1956ss. vol. 1.

REZENDE MARTINS, E. de. A Enciclopédia de 1775 e o surgimento da Crítica daRazão Pura. Reflexão 57 p. 172-180, set./dez. 1993.

__________. Natureza, sentimento e liberdade. Elementos da ética pré-crítica deKant. Kant (Cadernos da UnB). Brasília: EDU, p. 23-37, 1981.

__________. Autonomia e liberdade. A influência de Rousseau sobre a ética pré-crí-tica de Kant. Revista Latinoamericana de Filosofia, IV, p. 99-117, 1978.

__________. Studien zu Kants Freiheitsauffassung in der vorkritischen Periode (1747-1777). Augusbrg/München: Blasaditsch, 1976.

ROCHE, Daniel. Les Républicains des lettres. Paris: Fayard, 1988.

TOUATI, François-Olivier (Org.). Vocabulaire historique du Moyen Âge. Paris: Éd. LaBoutique de l’Histoire, 1995.

TRINDADE, Hélgio. Universidade em ruínas. Petrópolis: Vozes, 2000.

WEBER, Max. Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre. 2. ed. Tübingen, 1951.

Page 61: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Preservar e mudar: os desafios para a política econômica

MA R I A CL A R A R. M. D O PR A D O

M algrado o que dão a entender os céticos, o arcabouço econômico do paísavançou muito desde a década passada. A sustentação da estabilidade nos

últimos doze anos, depois de várias tentativas fracassadas, é sem dúvida amaior conquista de todas e deixa a economia em zona de absoluto conforto.Afinal, a perspectiva de que a inflação este ano (medida pelo IPCA- índice depreços ao consumidor amplo) fique bem próxima do núcleo da meta, emtorno de 4,5%, é algo que seria absolutamente impensável na década de 1980.

Com a estabilidade veio a privatização de uma série de atividades econô-micas até então desempenhadas por verdadeiros elefantes brancos da admi-nistração pública indireta. Começou com a venda das estatais do aço, passoupela telefonia, pelas concessões de serviços rodoviários e ferroviários, e, prin-cipalmente, pela venda dos bancos estaduais.

Quem não se lembra dos estragos causados pelo antigo Banerj – o ban-co do Estado do Rio de Janeiro – nas eleições para governador em 1982? E,para ficar mais próximo, dos “buracos” do então Banespa – banco do Estadode São Paulo – nas eleições gerais de 1994, para não citar outras instituiçõesestaduais?

Atuavam como verdadeiros sócios do Banco Central na “função” deemissores de moeda na medida em que suas dívidas nas reservas bancárias daautoridade monetária se ampliavam sem qualquer constrangimento. A inter-ferência dos governadores e de seus aliados na política monetária, por viasindiretas, manteve por muitos anos o Banco Central do Brasil refém do podere dos interesses dos políticos, independente do partido que representassem.

Page 62: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

O desaparecimento dos bancos estaduais trouxe grande alívio para o BCe viabilizou o gerenciamento da política monetária em linha com o padrãotradicional. Nenhum plano de estabilização poderia ter dado certo se os ban-cos estaduais continuassem a existir.

Na área externa, os ganhos conquistados a duras penas começam agoraa gerar frutos positivos. Isto depois de transcorridos quase vinte e cincoanos da decretação da primeira moratória, em 1982, seguida como se sabede outras que tão elevados custos causaram ao país durante um longotempo. O risco Brasil finalmente caiu para níveis decentes, em linha comas taxas de risco dos demais países chamados de “emergentes”. Gira emtorno de 250 pontos acima dos juros dos bônus do Treasury norte-ameri-cano e, melhor, em um ambiente de disputa eleitoral que se revela muitodiferente da crise de confiança que afetou a imagem do país e o câmbio naseleições de 2002.

A dívida externa brasileira deixou de ser um problema dos governos. Oestoque do endividamento público externo está hoje abaixo dos US$ 100bilhões. As reservas internacionais, em torno dos US$ 60 bilhões, são sólidas.Sua composição na quase totalidade envolve aplicações de médio e de longoprazos. Os superávits da balança comercial, em níveis nunca antes vistos, têmfuncionado como importante âncora para o acúmulo de reservas, comple-mentando os fluxos de capital de investimento.

A imagem desenhada até aqui poderia suscitar uma expressão de júbilodo tipo “o país amadureceu!” Isto é bem verdade nos vários fatos menciona-dos acima. A eles deve se juntar a decisão do governo de adotar, em junho de1999, o regime de meta de inflação que veio reforçar o câmbio flutuante.

Todas são iniciativas que ajudaram a economia brasileira a estar hoje bemmelhor do que estava há quinze ou vinte anos. Devem, sem dúvida, ser pre-servadas, mas não são, infelizmente, suficientes para garantir o crescimentosustentado do Brasil com eqüidade e eficiência.

Ao contrário do que aconteceu na década de 1980, quando o país pade-ceu com a falta de divisas para fazer frente aos compromissos externos do setorpúblico, o nó hoje amarra o lado interno da economia. A causa fundamentaldo problema, tanto lá como agora, é a mesma: o largo endividamento do setorpúblico brasileiro que naquela época se alimentava da poupança externa paragarantir as obras públicas e a expansão das estatais que fariam a propagandado “milagre brasileiro”.

Diferentemente do passado recente, o endividamento do governo crescehoje em reais e não em dólares, às custas não mais do risco cambial mas das

Page 63: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

altas taxas de juros oferecidas pelo governo federal, através das relações umbi-licais que amarram o Banco Central ao Tesouro Nacional.

Não é à toa, portanto, que o Real pague os mais altos juros entre os paí-ses de similar categoria. A dívida pública mobiliária, em torno de R$ umtrilhão, aumenta não apenas com a incidência dos juros da rolagem mas tam-bém pela necessidade das captações novas adicionais, necessárias para enfren-tar os gastos do governo seja na forma dos próprios juros da dívida ou deoutras despesas que ajudam a pressionar as contas do governo federal. E isso,reforce-se, em uma situação em que a arrecadação fiscal na forma de taxas,impostos, contribuições e outras modalidades, também se expande. Chegou,somando tudo, a 39% do PIB em fins de 2005.

Significa dizer que quase 40% do PIB tem sido produzido pelo setor pri-vado – já que praticamente não existe investimento da parte do setor públiconas três esferas de administração – para que os governos possam manter amáquina em funcionamento. Isso envolve não apenas os chamados gastos decusteio e o pagamento dos juros da dívida, como uma outra fonte de gastosrepresentada pelo desequilíbrio entre os benefícios pagos e as contribuiçõesrecebidas do sistema de seguridade social.

O quadro, pintado assim em ligeiras pinceladas, parece fácil de ser equi-librado. Alguns se arriscariam em dizer que basta cortar gastos, reestruturara previdência, reduzir os juros, e pronto, uma mágica acontecerá e tudo seresolverá. As propostas técnicas para esses problemas são inúmeras, a maiorparte delas elaborada por especialistas de renome nos assuntos fiscais brasi-leiros, mas os projetos até aqui apresentados ao Congresso Nacional nãosaem do papel. Quando saem, acabam virando um remendo daquilo que sepretendia implementar.

O Brasil padece de vários males, mas todos têm no fundo a mesma raize ela é de caráter político, essencialmente. Tudo esbarra nas dificuldades devencer as resistências dos grupos que se sentam sobre os próprios privilégios eos protegem com unhas e dentes, reforçando o princípio do corporativismoque impede as mudanças.

Senão vejamos, por partes.A quem interessa reduzir a dívida pública interna? Ao Tesouro Nacional,

certamente. Aos contribuintes de renda média e renda baixa que não conse-guem usufruir as altas remunerações pagas pela União. Mas não interessa àsinstituições financeiras, altamente beneficiadas pelos juros altos com riscozero, que ainda lhes garante uma boa fatia dos lucros. Também não interessaa redução dos juros ao grupo de renda mais alta, pessoas físicas e jurídicas (e

pres

erva

r e

mud

ar: o

s de

safio

s pa

ra a

pol

ítica

eco

nôm

ica

Page 64: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

aqui incluem-se os exportadores) que ainda se beneficiam com a remuneraçãogarantida nas aplicações financeiras em papéis de renda fixa, ou seja, papéisdo governo.

A garantia certa e segura de uma remuneração que está muitos pontosacima da inflação – a taxa de juro real – gera o chamado “efeito riqueza”, tor-nando ainda mais ricos em patrimônio aqueles que já são ricos. Isso ajuda aexplicar por que, a despeito da estabilidade, a economia brasileira continua pra-ticamente toda voltada para o curto prazo, como se ainda vivesse em plena hipe-rinflação. O crédito de longo prazo no país para a atividade produtiva ainda éalgo muito restrito. Não fosse o BNDES, seria praticamente inexistente.

O governo gasta cerca de 7% do PIB com os juros da dívida mobiliáriainterna. Para se ter uma idéia de comparação, os gastos com educação, con-forme contabilizados no papel, envolvem cerca de 4,4% do PIB mas sabe-seque uma parte disso nem chega ao destino. Portanto, custa mais aos brasilei-ros manter a alta remuneração da dívida do governo do que os investimentosdestinados à educação.

No campo da previdência, as resistências à reestruturação são mais difu-sas. Vão desde o cidadão de baixa renda, acostumado com a renda de um salá-rio mínimo mensal que lhe paga a aposentadoria, até os de renda mais altas,temerosos de que uma reforma implique para eles mais despesas com o au-mento da contribuição. Isto só na previdência do setor privado, abrigada nasregras do INSS que beneficia 23 milhões de aposentados e pensionistas nopaís, pagando em média cerca de R$ 5.800,00 por ano, ou algo em torno deR$ 480,00 por mês, segundo dados de 2004.

Uma reestruturação na previdência do setor público é ainda mais com-plicada pois, aqui, as resistências às mudanças nascem e se desenvolvem noseio mesmo dos poderes da República que precisam acolher e aprovar umareforma no próprio bolso. A falta de interesse envolve, neste caso, os servido-res dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário além é claro, dos deputa-dos, senadores, procuradores, membros dos tribunais, enfim...

Só para se ter uma idéia dos privilégios garantidos aos barnabés, leaisrepresentantes da tradição corporativa sedimentada nos poderes constituídosdesde o reinado de Dom João VI, basta lembrar que o agrupamento de fun-cionários inativos e pensionistas soma pouco mais de três milhões de pessoasmas recebem, por ano, cada um, em média, a cifra expressiva de cerca de R$25.300,00, ou seja, algo em torno de R$ 2.110,00 por mês, em média.

Do total de gastos da previdência social, cerca de 37% representam as des-pesas com aposentadorias e pensões pagas aos 3 milhões de funcionários públicos.

Page 65: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

O desequilíbrio do sistema previdenciário como um todo, no Brasil, temse ampliado a galope de corcel. Em 2005, o déficit do setor no âmbito da pre-vidência privada do sistema do INSS atingiu cerca de R$ 37,5 bilhões. A esti-mativa para este ano é de que o déficit atinja, em dezembro, algo em torno deR$ 45 bilhões. Até 1995, o chamado “rombo” desse sistema ainda estava nacasa dos milhões de reais.

Na previdência do setor público, se somadas as três esferas de adminis-tração e os três poderes da República, o déficit ficou em torno dos R$ 58bilhões em 2005 e com certeza passará da marca dos R$ 60 bilhões este ano.

Juros da dívida pública de um lado e o desequilíbrio crescente das contasda previdência, de outro, são hoje as duas principais rubricas que, individual-mente, chamam atenção de quem queira se aprofundar nos números fiscais.

Mas o problema não se esgota ali.O descompasso fiscal está presente naquilo que se pode chamar do dia-

a-dia da administração pública. De um lado, os gastos correntes. De outro, areceita tributária. Entre um e outro, um mar de complexidades se espalha evai consolidando uma obscura forma de administrar o bem público no Brasil.

Cerca de 55% dos gastos públicos, nas três esferas administrativas, desti-nam-se às chamadas despesas de custeio. Isto quer dizer basicamente salário evantagens salariais dos servidores públicos, e mais outros gastos de manu-tenção da atividade governamental como energia, telefone, viagens, além doscustos da burocracia, mas também estão ali incluídas as despesas dos governosno atendimento às demandas da sociedade.

Sabe-se que os salários do funcionalismo público ocupam boa partedaquela fatia. As despesas correntes da União, descontadas as transferênciasconstitucionais para estados e municípios – representavam 19,7% do PIB em2002 mas já em 2005 passaram a equivaler a 26,8% do PIB. Esse crescimen-to acabou reduzindo o já pequeno espaço para investimento do setor público,que não chega hoje a 1% do PIB no orçamento da União.

Computados os gastos nas três esferas de governo, as despesas com custeiorepresentam cerca de 21% do PIB, enquanto que os investimentos públicosnos municípios, estados e União não passam de 2% do PIB. Nesta fatia decerca de 23% do PIB brigam por dinheiro os salários dos servidores e outrasdespesas correntes com os gastos em educação, em saúde, em segurança, emtransporte, com a Justiça, além dos investimentos em infra-estrutura.

Não há praticamente espaço vago, pois a maior parte dele já está lotea-da, seja pelos compromissos com o pagamento de salários, seja pelas rubricasque vinculam a receita à despesa.

pres

erva

r e

mud

ar: o

s de

safio

s pa

ra a

pol

ítica

eco

nôm

ica

Page 66: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Do lado da arrecadação, a situação consegue ser ainda mais confusa. Ummonte de taxas, impostos e contribuições que se acumulam em uma estrutu-ra caótica. Predomina hoje largamente o imposto indireto – PIS, Cofins, IPI,ICMS – sobre a prestação de serviços e mercadorias em geral em um sistemanitidamente regressivo que acaba, proporcionalmente, taxando os mais pobresem benefício dos mais ricos que pagam menos imposto.

A carga tributária bruta global mais do que dobrou em treze anos –pulou de 25% do PIB em 1992 para 39% do PIB em 2005 – e é alta por qual-quer parâmetro que se use. Um deles, salta aos olhos, quando se percebe queo tamanho da tributação praticada na economia brasileira está em total dis-sonância com a renda per capita do país. Para ficar compatível com econo-mias de padrão semelhante, a carga tributária brasileira teria de recuar pelomenos dez pontos do PIB, caindo para algo em torno de 28% a 29% do PIB.

O Estado brasileiro nitidamente optou pelo caminho mais fácil para“ajustar” suas contas públicas: puxou a arrecadação até onde pôde, até olimite da tolerância da sociedade, e enquanto fazia isso não se intimidouem ampliar os gastos correntes, criando assim uma verdadeira bomba deefeito retardado.

Cada pedaço a mais de gasto ampliado no setor público representa umreforço adicional ao poder das corporações beneficiadas pelas novas benesses.Assim, os servidores públicos ficam mais fortalecidos como grupo de repre-sentação quando seus salários aumentam, com uma peculiaridade: os seg-mentos das várias atividades governamentais tendem a ganhar poderes dife-renciados uma vez que cada órgão da administração pública tem seusinteresses próprios e briga, de forma coesa, em sua defesa.

Um exemplo muito claro disso está nos nichos de poder burocrático emque se transformaram as agências reguladoras. Surgidas com a privatizaçãocom o objetivo de zelarem pelos interesses do público consumidor, através deregras que viabilizassem maior eficiência e maior competição nos serviçosprestados pelas empresas agora pautadas pelo mercado, aquelas agências rapi-damente se transformaram em cabides de emprego. São ineficientes na funçãoque deveriam desempenhar.

E, assim, em meio ao corporativismo que fatiou o setor público e suasrelações com o setor privado em vários “territórios entrincheirados” , segue opaís, sem conseguir avançar nas reformas estruturais efetivamente indispensá-veis para “limpar” de vez o emaranhado de vícios e regalias que se acumula-ram ao longo dos anos para benefício de uns poucos em detrimento da socie-dade como um todo.

Page 67: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Desatar os nós não é tarefa fácil. Mas por algum lado é preciso começar.Uma possibilidade é aproveitar o consenso que parece ir se firmando no sen-tido de que a reforma da previdência não pode esperar muito mais tempo, sobpena de todo o sistema implodir. Uma constatação descompassada ajuda a fir-mar a percepção de que o caso, aqui, é urgente: o país gasta hoje cerca de 13%do PIB com aposentadorias e pensões, com esse peso chegando a 16% do PIBsomarmos os gastos com atividades assistenciais, em um quadro demográficoque ainda revela uma população relativamente jovem.

Portanto, por qualquer que seja o parâmetro de análise, percebe-se clara-mente que o problema existente hoje no setor da previdência tende a se agra-var aceleradamente. Não é difícil imaginar o tamanho da complicação dentrode poucos anos, quando a população tiver alcançado níveis de expectativa devida próximos aos dos países desenvolvidos. Não dá, com certeza, para man-ter por muito mais tempo o critério da aposentadoria por idade. Esse é umdos pontos sensíveis da questão, mas precisa ser enfrentado.

O ideal é que uma reforma da previdência venha acompanhada pelareforma trabalhista. Esta última interessa primordialmente aos empresários dosetor privado que enfrentam altos custos com o carregamento da folha de salá-rios. Sabe-se que o mercado informal de trabalho cresceu à sombra da lista deobrigações cobradas pelo emprego formal. Do total de 80 milhões de traba-lhadores brasileiros existentes atualmente, calcula-se que menos da metadetenha carteira de trabalho. A maioria, portanto, é informal.

A realidade aponta para a necessidade de simplificação das regras traba-lhistas e redução dos custos hoje vigentes. De todas as reformas vislumbradas,aquela parece ser a menos complicada em termos de resistência. Afinal, a car-teira de trabalho já não tem o mesmo prestígio de antes.

Uma boa oportunidade pode surgir dali desde que os futuros policymakers percebam que existe um ponto de confluência entre a reformas da pre-vidência e a reforma trabalhista a ser seriamente considerado. A vinculaçãodas duas poderia ser garantida a partir da introdução de uma nova forma decontrato de trabalho que além de direitos e obrigações do empregado e doempregador também contemplasse a obrigatoriedade do trabalhador contri-buir para o INSS, através de um número de cadastro que lhe acompanhariapor toda a vida. Essa proposta tem sido defendida pelo economista José Pas-tore e faz todo o sentido.

Afinal, o mercado de trabalho é um só. Sua subdivisão entre formal einformal apenas ocorre no mundo das regras e das relações contratuais. Desdeque estas se tornem mais flexíveis e menos custosas será possível atrair mais

pres

erva

r e

mud

ar: o

s de

safio

s pa

ra a

pol

ítica

eco

nôm

ica

Page 68: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

gente para os empregos formalmente contratados. O pulo do gato está emvestir o trabalhador da roupagem de contribuinte do INSS. Em muitos paí-ses, os contratos de trabalho não passam de simples formulários com ummínimo de dados a serem preenchidos, mas todos os trabalhadores têm o seunúmero do INSS estando ou não empregados.

Aquela vinculação abrandaria as dificuldades de financiamento da pre-vidência privada, na medida em que a informalidade tenderia a diminuir demodo significativo, ampliando assim a base de contribuintes para o sistemado INSS.

Restaria, no rol das grandes reformas a reestruturação do sistema tribu-tário brasileiro que hoje funciona como se fosse uma verdadeira colcha deretalhos. Ninguém sabe onde paga imposto e quanto paga, a menos por aque-les mais visíveis como IPVA e o IPTU.

Muito já se falou sobre a multiplicidade de impostos e contribuições e decomo sua incidência onera o sistema produtivo do país. Há o caso dos impos-tos indiretos que impõe sobre as classes de renda mais baixa uma tremendaregressividade, pois acaba pagando mais, proporcionalmente, quem ganhamenos, sem falar na danosa guerra fiscal que coloca uns estados contra osoutros na briga por investimentos.

Tudo isto é conhecido e há até quem diga que no campo tributário nadase resolverá sem que antes seja enfrentada a questão federativa. Afinal, os esta-dos e municípios têm poder para alterar as alíquotas dos impostos que estãosob a sua influência e têm a obrigatoriedade de dar atendimento à populaçãonos setores que mais interessam à sociedade como educação, saúde, água,esgoto, transporte e iluminação pública, além de segurança, mas em muitoscasos essa presença é totalmente falha ou deixa muito a desejar: o padrão e aeficácia dos serviços públicos não correspondem ao tamanho da carga tribu-tária imposta aos contribuintes brasileiros.

A deterioração dos serviços públicos acaba redundando em bate-bocaentre os entes federativos, uns acusando os outros por não terem recebido averba prevista ou por não terem aplicado bem o dinheiro recebido, disputaque deixa o contribuinte perplexo, sem saber em quem acreditar. Os governosnunca se preocuparam em esclarecer onde começa a onde termina a respon-sabilidade das diferentes esferas de governo com o dinheiro público.

Muito menos lhe perguntaram, ao contribuinte, se está de acordo com asvantagens que alguns segmentos continuam desfrutando, como é o caso porexemplo da educação gratuita a nível universitário enquanto que os ensinosfundamental e secundário padecem com os parcos investimentos na qualifi-

Page 69: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

cação de professores, em melhores condições materiais e técnicas de aprendi-zado, além de escolas decentes.

Como se vê, por onde se olha, a falta de coerência no setor público bra-sileiro é total. Não há fiscalização e não há transparência por parte dos gover-nos, que agem como se o dinheiro que arrecadam dos contribuintes perten-cesse aos cofres públicos e não à sociedade.

É justamente na reorganização do setor público que está o grande desa-fio das futuras administrações.

Mas fica faltando a reforma política, considerada por muitos como aprincipal de todas as reformas pois dela depende o rearranjo institucional dospartidos e da prática política que obrigará a deputados e senadores a efetiva-mente atuarem de olho no compromisso que devem ter com seus eleitores e,conseqüentemente, com a Nação, tornando viável a aprovação das demaisreformas que vão ajudar a administração do setor público em várias frentes.

Os céticos tendem a argumentar que a reforma política é a mais difícil detodas pois depende da concordância justamente daqueles que mais serão afe-tados por ela, os deputados e senadores. Há, no entanto, aqui uma visão equi-vocada da questão, pois o momento para uma reforma política não poderia tal-vez ser melhor do que este em que vive a desacreditada classe política do país.

Com o Congresso Nacional no chão fica mais fácil fazer a transfor-mação necessária no rumo do amadurecimento do processo de democrati-zação brasileiro.

O Plano Real muito possivelmente não teria sido implementado em suatotalidade e sem resistências se os políticos não se encontrassem sob o impac-to do trauma do impeachment do ex-presidente Collor e o CongressoNacional não tivesse sofrido o vexame das denúncias que envolveram a cha-mada CPI dos anões do orçamento, quando verbas foram desviadas para aten-der a interesses pessoais de um grupo de congressistas.

Os momentos de trauma e de descrença política são penosos e sempreenvolvem um alto custo para o país, mas deles pode surgir uma grandemudança. É nisso que se deve apostar.

pres

erva

r e

mud

ar: o

s de

safio

s pa

ra a

pol

ítica

eco

nôm

ica

MARIA CLARA R. M. DO PRADO é jornalista, colunista do jornal Valor Eco-nômico, autora do livro A real História do Real (Ed. Record) e sócia-diretora daCin – Comunicação Inteligente.

Page 70: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo
Page 71: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Conflitos federativos e reforma tributária

FE R N A N D O RE Z E N D E

INTRODUÇÃO

D uas forças importantes moldaram os trabalhos da Assembléia NacionalConstituinte e tiveram influência marcante em decisões relevantes para o

sistema tributário e a federação. De um lado, a demanda de estados e muni-cípios por autonomia financeira, indispensável para sancionar a autonomiapolítica readquirida nas últimas etapas da transição do regime militar para ademocracia, com as eleições diretas para governadores em 1982. De outro, apressão dos movimentos sociais por universalização dos direitos da cidadania,vista por muitos como condição necessária para reverter a trajetória de umcrescimento socialmente excludente verificado nos ciclos anteriores deexpansão da economia brasileira.

As demandas por autonomia financeira foram atendidas medianteampliação das bases tributárias de estados e municípios e forte ampliação dasporcentagens da receita dos principais impostos federais repartidas com esta-dos e municípios mediante fundos constitucionais. A primeira, promovidapor meio da incorporação ao antigo imposto estadual – o ICM – de bases tri-butárias até então exclusivamente tributadas pelo governo federal, como oscombustíveis, a energia elétrica e as telecomunicações, além da ampliação dalista dos serviços tributados pelos municípios, atendia aos estados mais desen-

Page 72: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

volvidos e aos municípios de maior porte. A segunda, garantia aportes signi-ficativos de receita tributária aos estados de menor desenvolvimento e aosmunicípios de pequeno porte.

No campo dos direitos sociais, a palavra de ordem era diversificar as fon-tes de financiamento, para evitar a dependência de contribuições sobre a folhade salários, mais sensível aos ciclos da economia, e blindar os recursos da segu-ridade social, que universalizava o acesso à previdência, saúde e assistência daconhecida interferência do Tesouro Nacional. Presente nesta preocupaçãoestavam as repetidas reclamações de antigos representantes da previdência arespeito de desvio de contribuições previdenciárias para financiar outros gas-tos, como, por exemplo, a construção de Brasília e a hidroelétrica de Itaipu.Em decorrência, o artigo 195 da Constituição Federal criou novas fontes definanciamento e instituiu a figura do Orçamento da Seguridade Social.

Instaurava-se, portanto, a dualidade tributária que deu à luz irmãos sia-meses. O sistema tributário e o regime de financiamento da seguridadesocial, embora concebidos para serem entidades independentes, acabaramnascendo unidos pelo abdômen. Desde então, o crescimento da seguridadeprovocou a atrofia da federação. Com o crescimento das contribuições paraa seguridade, a qualidade da tributação foi se deteriorando, ao mesmo tempoem que os objetivos de reforçar a federação, conforme a intenção dos cons-tituintes, foram sendo progressivamente abandonados. Na ausência de von-tade, ou de entendimento sobre a necessidade de separar cirurgicamente osirmãos siameses, os desequilíbrios e as distorções foram se acumulandogerando múltiplos conflitos que têm impedido o avanço de reformas tribu-tárias indispensáveis para dotar o país de um regime de impostos que sejacompatível com os desafios que a economia global impõem à competitivida-de da produção nacional.

O objetivo deste artigo é, portanto, explorar os problemas gerados peladualidade tributária instituída em 1988 e enfatizar a necessidade de substituiro limitado foco que tem sido adotado nas recentes propostas de reforma tri-butária por uma visão abrangente que tenha como referência a necessidade deeliminar a mencionada dualidade e de remover os antagonismos que amea-çam o equilíbrio e a coesão da federação.

1. OS PRIMÓRDIOS DA CRISE

O s problemas gerados pela dualidade fiscal começaram a se manifestardesde o início. Com as receitas federais reduzidas pela descentralização

Page 73: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

promovida no capítulo tributário da Constituição, o crescimento dos com-promissos financeiros decorrentes da ampliação dos direitos sociais levou àimediata instituição pelo governo federal das novas contribuições previstasno capítulo 195 da Constituição, passando o novo orçamento da segurida-de social a ser constituído pelas antigas contribuições previdenciárias inci-dentes sobre os salários e as novas contribuições sobre o faturamento e olucro das empresas.1

Com a regulamentação dos novos dispositivos constitucionais, os gastosprevidenciários, aí incluídos os pagamentos da aposentadoria rural e da rendamínima garantida a idosos e pessoas portadoras de deficiências, passaram apressionar os recursos da seguridade, ocasionando duras reações dos movi-mentos ligados à saúde com respeito ao não cumprimento de um acordo taci-tamente estabelecido, mediante o qual 30% dos recursos da seguridade deve-riam ser aplicados no desenvolvimento e na melhoria do Sistema Único deSaúde recém implantado.

O conflito entre a previdência e a saúde expunha uma deficiência bási-ca da proposta do orçamento da seguridade social enquanto mecanismo degarantia financeira das ações por ele compreendidas: a reunião de direitosde natureza distinta sob uma mesma forma de garantia. Como é impossí-vel delimitar o tamanho da conta a ser paga em decorrência do crescimen-to de benefícios por lei concedidos a aposentados e pensionistas, quantomaior for o tamanho dessa conta menor será a quantidade de recursos dis-poníveis para financiar os compromissos assumidos com a saúde pública ea assistência social. Em outras palavras, direitos individuais se sobrepõema direitos coletivos quando ambos estão acomodados em um mesmo regi-me de financiamento.

Num contexto em que as contribuições sobre os salários não eram sufi-cientes para bancar os compromissos com o pagamento dos benefícios pre-videnciários, faltavam recursos para financiar as demais ações da segurida-de. A conseqüência óbvia foi o aumento das demais contribuições paraatender às pressões oriundas desses setores, principalmente a saúde, cujacapacidade de mobilização política é conhecida. Em 1993, a receita das

conf

litos

fede

rativ

os e

ref

orm

a tr

ibut

ária

1. A rigor a proposta da seguridade social previa que estados e municípios também contri-buíssem para o financiamento da universalização dos direitos sociais por meio de aportesfinanceiros ao Orçamento da Seguridade Social, mas a inviabilidade dessa proposta con-jugada com a crise econômica que se estabeleceu logo em seguida à promulgação daConstituição fizeram com que essa intenção nunca se concretizasse.

Page 74: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

contribuições vinculadas à seguridade social,2 exceto a contribuição previ-denciária, já correspondia à quase a metade da arrecadação dos impostosfederais e, comparada aos valores de 1988, apresentava um crescimento trêsvezes maior do que o registrado pelas receitas próprias de estados e municí-pios no mesmo período.

Nos primeiros anos do Plano Real, as distorções geradas pela dualidadefiscal continuaram a se acumular, embora a um ritmo que ainda não era capazde revelar com clareza suas conseqüências. Com a vitória sobre a inflação, oajuste fiscal passava a depender de providências mais efetivas para eliminar osdesequilíbrios orçamentários, já que a corrosão inflacionária das despesas dei-xava de exercer este papel. Não obstante, a sustentação de um câmbio sobre-valorizado para segurar a inflação adiou a necessidade de adoção de medidasmais duras no campo fiscal. Assim, e apesar de novos aumentos nas contri-buições para reforçar o caixa da União, juntamente com a desvinculação devinte por cento de todas as receitas federais para reduzir os desequilíbrios, adívida pública explodiu alimentada por juros elevados e por uma maior libe-ralidade na administração dos gastos.

Juntamente com a deterioração da qualidade da tributação, que acom-panhava o crescimento de tributos cumulativos, perniciosos à eficiência daeconomia, os desequilíbrios federativos iam se acumulando, mas a um ritmoque ainda não era suficiente para deixar a descoberto o tamanho do proble-ma que estava sendo criado. Com o abandono da âncora cambial como basede sustentação da estabilidade monetária e a adoção do regime de metas deinflação apoiado em aperto fiscal e metas duras de geração de superávits pri-mários, a situação se agravou, como veremos em seguida.

2. O AJUSTE FISCAL E A FEDERAÇÃO

2.1 Dualidade fiscal e rigidez orçamentária

O abandono da ancora cambial, em 1999, forçou a adoção de uma polí-tica fiscal mais rigorosa no segundo mandato do presidente Fernando

2. Tais contribuições – chamadas de gerais – incluem a arrecadação do PIS-Pasep, Cofins,CSLL e CPMF. As contribuições sociais gerais não estão inseridas no capítulo tributárioda Constituição, mas não podem ser classificadas como parafiscais (como é o caso dascontribuições previdenciárias e do FGTS). Trata-se, na verdade, de tributos semelhantesaos impostos indiretos, com ampla incidência, deles só se distinguindo pela vinculaçãoao financiamento da seguridade social.

Page 75: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Henrique Cardoso. Entretanto, a dificuldade em promover a contenção dosgastos jogou toda a responsabilidade pela geração de superávits fiscais nas cos-tas dos responsáveis pela arrecadação. Fortes aumentos nos tributos, promo-vidos mediante revisão das bases de incidência das contribuições, aumento dealíquotas e sucessivas prorrogações de medidas supostamente transitórias(como a CPMF e a DRU) foram promovidos, acentuando o desequilíbrioentre o crescimento das contribuições e o comportamento dos impostos decompetência do governo federal. Em conseqüência, a carga tributária saltoupara cerca de 39% do PIB em 2005 – mais de nove pontos de porcentagemacima do índice de 1998.

Conforme mencionado, a contribuição mais importante para o aumen-to recente da carga tributária adveio das contribuições sociais. Em conse-qüência, o crescimento da carga foi acompanhado de mudanças importantesna sua composição. Atualmente, a arrecadação das contribuições sociais jáultrapassa o montante coletado com os impostos de competência federal etambém a receita do ICMS obtida pelo conjunto dos estados.

O recurso às contribuições sociais para sustentar o ajuste fiscal foi incen-tivado por três razões principais. Uma, de cunho federativo – a descentrali-zação do poder de instituir e administrar os impostos e o aumento da parce-la da arrecadação dos impostos federais transferida a estados e municípios,conforme o disposto na Constituição de 1988 não deixava outra alternativa.Outra, de natureza legal – as regras aplicadas às contribuições são muito maisfrouxas do que as aplicadas aos impostos tradicionais. A terceira razão é decunho administrativo – as contribuições são tributos bem mais fáceis deadministrar e de arrecadar.

A cumulatividade das contribuições sociais (parcialmente amenizadacom as mudanças recentes na respectiva legislação) aumentou a ineficiênciaeconômica dos tributos, já agravada pela fragmentação das bases tributárias,pelas distorções acumuladas no ICMS e pela tributação dos serviços pelosmunicípios. Alguns avanços no campo da desoneração das exportações e dosinvestimentos foram conseguidos a duras penas e alguns deles (como a LeiKandir) são fonte renovada de conflitos na federação.

De outra parte, a expansão das contribuições sociais teve por conseqüên-cia a rigidez dos orçamentos, dada a vinculação constitucional de suas recei-tas a gastos com a seguridade social. Na esfera federal, o conjunto das despe-sas obrigatórias, que inclui aquelas protegidas pela Constituição ou porlegislação infra-constitucional, as transferências a estados e municípios, afolha de pagamentos com o funcionalismo e os compromissos com a dívida

conf

litos

fede

rativ

os e

ref

orm

a tr

ibut

ária

Page 76: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

pública, já equivale a 90% do total das despesas não financeiras do orçamen-to federal e tende a crescer em decorrência de dispositivos que reajustam auto-maticamente o valor de alguns dos benefícios que o Estado mantém. Tendoem conta que da parcela restante ainda devem ser deduzidos os gastos rela-cionados com o dia-a-dia da operação dos vários órgãos públicos, a principalconseqüência deste fato é o virtual esgotamento da capacidade de investi-mento do governo federal, com as conhecidas seqüelas que acarreta para ainfra-estrutura, especialmente no campo dos transportes.

A velocidade com que o orçamento federal foi se tornando mais rígido serevela mediante os números apresentados a seguir. Em 1987, as despesas obri-gatórias absorviam 47% da despesa não financeira, ou 7,6% do PIB. Quinzeanos depois elas já haviam mais do que dobrado em porcentagem do PIB(15,3%), subindo novamente para 15,7% em 2004 e ultrapassando o pata-mar já mencionado de 90% das despesas não financeiras (91%).3 Mantidas asregras vigentes as despesas obrigatórias continuarão sua trajetória ascendente,tornando o Estado incapaz de exercer suas funções e deflagrando uma crisefiscal sem precedentes na história nacional.

A rigidez orçamentária cresceu apesar da adoção de medidas para des-vincular parte dos recursos arrecadados com o aumento das contribuiçõessociais. Com a adoção do FSE e sua posterior transformação na DRU, 20%das receitas arrecadadas com as contribuições sociais passaram a ficar dispo-níveis para financiar outros gastos e sustentar as metas estabelecidas para ageração de superavits primários nas contas da União. Assim, à medida quecrescia a necessidade de gerar superávits mais elevados para evitar o cresci-mento desordenado da dívida pública, aumentava a arrecadação das contri-buições, o que, por seu turno, abria espaços para o crescimento dos gastosamparados pela seguridade (a cada rodada de aumento das contribuiçõessociais, 80% dos recursos ficavam disponíveis para financiar o aumento des-ses gastos). Em conseqüência a expansão das contribuições fez com que oorçamento federal se tornasse mais rígido e a descentralização tributária per-seguida em 1988 fosse revertida, principalmente no que concerne à partici-pação dos estados no bolo tributário nacional.

Para conciliar a centralização das receitas com a descentralização do gasto– a maior parte da responsabilidade pela provisão dos serviços de saúde eassistência social cabe a estados e municípios –, a saída foi expandir as trans-

3. Os dados acima são extraídos do trabalho de Raul Velloso apresentado no FórumNacional, ver Velloso (2005).

Page 77: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

ferências não-constitucionais, o que acentuou os desequilíbrios federativos ereduziu a liberdade de estados e municípios em matéria de alocação dos recur-sos orçamentários em virtude de essas transferências serem direcionadas a pro-gramas específicos. A rigidez orçamentária estendeu-se também a estados,principalmente, e a municípios, afetando fortemente os seus investimentos.

A rigidez dos orçamentos estaduais e municipais vem se acentuando nosúltimos anos à medida que o espírito de ampla liberdade para a aplicação dosrecursos transferidos que presidiu a elaboração da Constituição de 1988 foisendo abandonado. Na versão original, o texto constitucional vedava a vin-culação de tributos a órgão, fundo ou despesa, exceto os 25% da receita deimpostos e transferências destinados à manutenção e desenvolvimento doensino. No entanto, emendas ao texto constitucional introduziram novasregras que limitaram a liberdade no uso dos recursos estaduais e municipais,como a vinculação dessas receitas para oferecer garantias referentes a dívidascom a União e para financiar as ações de saúde. No caso do Fundef, a sub-vinculação de recursos ao ensino fundamental também acarretou uma novaingerência nos orçamentos sub-nacionais. Não se trata, aqui, de discutir omérito dessas vinculações, mas sim de ressaltar o seu efeito sobre a gestão dosrecursos públicos.

Juntamente com as novas obrigações inseridas na Constituição Federal,que, além das receitas orçamentárias de estados e municípios vinculadas a gas-tos em educação, determinam a aplicação de no mínimo 12% e 15%, res-pectivamente, a gastos em saúde, as transferências recebidas à conta do SUS,os compromissos com a renegociação das dívidas com a União, as parcelasapropriadas pelos Poderes Legislativo e Judiciário e os encargos com o fun-cionalismo ativo e inativo (no caso dos municípios ampliados com o aumen-to do salário-mínimo) também contribuem para reduzir a muito pouco ograu de liberdade de governadores e prefeitos com respeito à livre disposiçãode seus recursos orçamentários.

A estabilização da moeda também agravou a rigidez dos orçamentos.Num contexto de inflação elevada, como o que predominou por um longotempo no passado recente, o raio de manobra para a aplicação de recursos eraampliado pela corrosão dos valores referentes a gastos com o funcionalismo ecom o custeio da máquina governamental. Com o fim da inflação, qualquerajuste nos valores relativos a estas despesas passou a depender da existência deespaço para cortes e de decisões politicamente sensíveis.

A crescente dependência de estados e municípios de transferências fede-rais para exercer as responsabilidades que lhes são atribuídas pela Constituição

conf

litos

fede

rativ

os e

ref

orm

a tr

ibut

ária

Page 78: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Federal no campo das políticas públicas contraria o princípio de que a des-centralização fiscal é um caminho saudável para aumentar a eficiência e a efi-cácia do gasto, bem como para a co-responsabilidade de contribuintes egovernantes (accountability). A descentralização fiscal é saudável quando osgovernos sub-nacionais são responsáveis por financiar, com recursos próprios,uma parte significativa dos seus gastos, e quando aquelas unidades federativascujas economias não geram bases tributárias significativas financiam seus gas-tos mediante transferências compensatórias que obedecem a princípios deequalização fiscal e a regras transparentes de repasse.

Não foi essa a trajetória do federalismo fiscal brasileiro no período pos-terior à Constituição de 1988. No curto espaço de doze anos – entre 1997e 2005 –, a contribuição das receitas próprias para o financiamento dosgovernos sub-nacionais caiu de três quartos para dois terços, em decorrên-cia do rápido incremento das transferências de recursos federais. Vale a penadestacar que esse crescimento das transferências federais deve-se exclusiva-mente à explosão dos repasses vinculados a gastos sociais (saúde, principal-mente) e a um variado conjunto de outras transferências (royalties, trans-ferências voluntárias, transferências de capital e outros repasses de recursosde menor importância – ITR, IOF-Ouro, CIDE). Tais fatos merecem serdestacados quando um dos itens importantes da agenda dos debates sobre aquestão fiscal no Brasil é a necessidade de imprimir eficiência e eficácia àgestão pública.

2.2 Desequilíbrios federativos e má qualidade da tributação

Paralelamente à centralização das receitas tributárias e ao engessamentodos orçamentos, a natureza do ajuste fiscal promovido nos últimos anos acen-tuou os desequilíbrios federativos. Em 2005, a participação das transferênciasfederais no financiamento dos gastos não-financeiros dos estados brasileiroshavia subido para cerca de 24% – um aumento de mais de quatro pontos per-centuais em relação ao nível de dez anos atrás. No caso dos municípios adependência de transferências federais, além de ser bem maior, cresceu de30% para cerca de 34% em apenas seis anos (entre 1998 e 2004), a despeitodo uso que os municípios economicamente mais importantes fizeram de suasbases tributárias próprias. O aumento das transferências diretas de recursosfederais para municípios é um traço marcante do federalismo fiscal brasileiroe concorre para a redução da capacidade dos governos estaduais coordenarema gestão de políticas públicas em seu território.

Page 79: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Mais importante ainda do que a ampliação dos desequilíbrios na repar-tição de recursos entre o conjunto dos entes federados – o desequilíbrio ver-tical – são os desequilíbrios que se acumularam com respeito à capacidadefinanceira dos estados e dos municípios – os desequilíbrios horizontais. Dadosos impactos diferenciados das diferentes regras que conformam o rateio dosfundos constitucionais e a repartição das demais transferências de recursosarrecadados pela União sobre o tamanho dos orçamentos estaduais e munici-pais, as divergências entre a disponibilidade de recursos e a natureza das res-ponsabilidades que deveriam ser por eles exercidas foram se ampliando nosúltimos anos, e variam em razão do tamanho da população, do grau de desen-volvimento, da região e da condição socioeconômica de suas populações.Além dos conflitos que gera, tal situação produz efeitos negativos à luz dasdemandas por eficiência na gestão das políticas públicas.

As evidencias desses desequilíbrios foram apresentadas em estudos recen-tes (PRADO, QUADROS e CAVALCANTI, 2003) e se manifestam porenormes e inexplicáveis assimetrias encontradas nos valores dos orçamentosestaduais e municipais em relação ao tamanho das respectivas populações.Grandes diferenças na capacidade de financiamento de estados de umamesma região – o orçamento per capita do Maranhão sendo pouco mais dametade do de Sergipe e o do Pará menos de um quarto do de Roraima – e demunicípios de diferentes portes (com municípios muito pequenos dispondode uma capacidade financeira maior do que as grandes metrópoles) – refletema maneira desordenada como os conflitos federativos foram sendo tratadosnos últimos anos e as dificuldades que tal situação acarreta para coordenar aatuação do setor público em áreas que são fundamentais para o processo dedesenvolvimento, como a educação, a saúde, a segurança pública, a infra-estrutura urbana e o meio-ambiente.

De outra parte, o recurso às contribuições sociais para bancar o ajuste fis-cal aboliu as fronteiras que definiam os espaços tributários entregues à com-petência exclusiva de cada ente federado. Com a expansão do Pis/Cofins e acriação da CPMF, o governo federal passou a tributar a produção e circulaçãode mercadorias e serviços de forma ampla, invadindo os campos tributários deestados e municípios. Em decorrência, as mesmas bases tributárias passarama ser exploradas de múltiplas formas, obedecendo a legislações distintas e naausência de integração administrativa. O aumento da carga tributária e adiversidade do ônus fiscal suportado pelos contribuintes aumentaram a com-plexidade do sistema tributário e trouxeram um enorme retrocesso com res-peito à qualidade da tributação nacional.

conf

litos

fede

rativ

os e

ref

orm

a tr

ibut

ária

Page 80: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

A fragmentação das normas tributárias e dos procedimentos aplicadosnão permite que o Brasil avance no sentido da harmonização da tributaçãoaplicada a bens e serviços em todo o território brasileiro, o que reduz a com-petitividade dos produtos nacionais nos mercados mundiais, a sustentaçãodos produtores brasileiros no mercado doméstico, e o processo de inte-gração econômica regional. Com a superposição de poderes tributários ogoverno federal e os estados competem na tributação de mercadorias emgeral, nos combustíveis, nos transportes, nas comunicações e na energia elé-trica, ao passo que União e municípios disputam a tributação dos serviços.Tal competição se dá em prejuízo dos contribuintes e é também fonte deconflitos na federação.

As distorções do sistema tributário brasileiro geram dois efeitos perver-sos. Elas retiram poder de competição ao mesmo tempo em que incentivama escolha de soluções economicamente menos eficientes com respeito à com-petitividade global das cadeias produtivas. Quanto maior for a demora emcorrigi-las, maior será a dificuldade para ajustar o padrão produtivo brasileiroàs exigências da economia global.

3. AJUSTE FISCAL, CONFLITOS FEDERATIVOS ERESISTÊNCIA A MUDANÇAS

Arigidez dos orçamentos e os antagonismos na federação explicam aenorme resistência imposta nos últimos anos a mudanças. O receio de

que reformas estruturais no sistema tributário afetem a arrecadação e com-prometam as metas fiscais põe o governo federal na defensiva. De outraparte, os estados, engajados em uma ferrenha competição e pressionados areformar o caótico regime que governa a cobrança do ICMS, só se unempara demandar maiores compensações do governo federal para cobrir bura-cos em seus orçamentos. Pouco envolvidos no debate das reformas, osmunicípios confiam na sua capacidade de bloquear no Congresso Nacionalmudanças que firam os seus interesses. Sintomático da crença na capacida-de de resistência dos municípios é a não inclusão da agenda das propostasde reforma apresentadas na última década da polêmica proposta de elimi-nar a anacrônica separação entre serviços e mercadorias instituída em 1967e mantida desde então.

Não obstante, a consciência de que a natureza do ajuste fiscal praticadonos últimos anos, baseado num vertiginoso incremento da arrecadação deimpostos, chegou ao limite faz com que uma mudança de atitude se torne

Page 81: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

imperiosa. Premido pela forte reação da sociedade a novos aumentos deimpostos, o governo se vê na necessidade de adotar medidas para conter ocrescimento dos gastos e reduzir a rigidez do orçamento. Dado que as despe-sas com os benefícios previdenciários, impulsionadas por aumentos reais dosalário mínimo e pela ampliação do número de benefícios (com destaque parao auxílio-doença), respondem pela maior pressão sobre os gastos públicos, elaé o alvo principal das propostas de reforma. Ainda que menos expressivo, ocrescimento dos gastos em saúde, alicerçado em novas garantias constitucio-nais também preocupa. Juntos, previdência e saúde respondem pela maiorparte do crescimento dos gastos de custeio no passado recente.

Cabe ressaltar que a melhoria da qualidade tributária e a recomposiçãodo equilíbrio federativo passam, portanto, pela mesma questão que afeta oajuste fiscal: a seguridade social. É possível contornar os impactos fiscais daseguridade social no campo macroeconômico com medidas pontuais de efei-tos transitórios, mas essa estratégia, além de não ser isenta de riscos, adia porum prazo que pode ser demasiadamente longo as mudanças tributárias reque-ridas pela micro-economia e as alterações no federalismo fiscal demandadaspela federação.

Mudanças que impliquem separar da previdência o chamado “compo-nente assistencial”, isto é, os benefícios que não têm uma relação direta coma contribuição, entram em choque, portanto, com um dos princípios maisfestejados da Constituição de 1988, o da solidariedade no financiamento daseguridade social. Da mesma forma, a redução das garantias constitucionaisao financiamento da saúde e a eliminação do piso previdenciário contrariama determinação de tornar efetivo o princípio de universalização do acesso àsaúde e de preservação do valor dos benefícios. Assim, ainda que limitada, areforma da previdência implica rever a proposta da seguridade social de uni-versalização dos direitos de cidadania.

Além disso, a proposição de atender primeiro às preocupações com amacroeconomia significa postergar por um prazo que parece demasiadamen-te longo as necessidades da micro-economia e da federação. Dado que oimpacto de mudanças pontuais sobre o gasto público – desvinculação dosbenefícios previdenciários (principalmente os chamados assistenciais) do salá-rio-mínimo, imposição de limites aos gastos de custeio (o que implica rever aEC da saúde) e promoção de uma nova rodada de reformas da previdência,para eliminar privilégios (vantagens para as mulheres, limites de idade...) ereduzir o déficit atuarial – é diluído no tempo, mesmo com a ampliação daDRU e a prorrogação da CPMF, os resultados esperados em termos de reto-

conf

litos

fede

rativ

os e

ref

orm

a tr

ibut

ária

Page 82: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

mada dos investimentos e queda da relação entre a dívida pública e o PIB sóse fariam sentir na sua plenitude em um prazo não inferior a dez anos.4

Em decorrência, a reforma tributária e a eficiência da gestão pública con-tinuariam aprisionadas em espaços estreitos. Com a necessidade de ampliarinvestimentos, a impossibilidade de reduzir a carga tributária de modo signi-ficativo levaria à continuidade dos ajustes pontuais nos impostos para ir remo-vendo, gradualmente, as distorções mais relevantes. No tocante à gestãopública, os problemas causados pela distância entre o financiamento (recursoscentralizados) e a gestão das políticas sociais (descentralizada) continuariamimpondo dificuldades à eficiência e à eficácia do gasto.

O foco exclusivo nos gastos busca adiar o enfrentamento das reformasnecessárias para recompor o equilíbrio federativo, ao passo que a sustentaçãoartificial da proposta da seguridade social dificulta a promoção de um ajusteestrutural das contas públicas. Nesse contexto, a prorrogação de medidas pro-visórias torna-se uma rotina e a modernização tributária assim como a efi-ciência da gestão pública ficam comprometidas. A alternativa é enfrentar areforma do federalismo fiscal.

4. CONCLUSÃO: REFORMA TRIBUTÁRIA OUNOVO MODELO DE FEDERALISMO FISCAL?

Adespeito dos inúmeros sinais de esgotamento da opção até agora adota-da para conduzir o processo de reforma tributária e de ajuste das contas

públicas, é impossível ignorar os desafios que a globalização da economia edas finanças, juntamente com a formação de blocos econômicos regionais,impõem às federações. Estas são duplamente afetadas pela imposição de cres-centes limites à autonomia dos Estados nacionais. De um lado, a harmoni-zação das políticas econômicas, principalmente a tributária, exige uma maioruniformização dos impostos cobrados em todo o país, abalando um dos pila-res tradicionais da autonomia federativa. De outro, a necessidade de susten-tação do equilíbrio fiscal conduz à imposição de crescentes limites ao gastopúblico e ao endividamento de estados e municípios, à medida que uma

4. De acordo com a simulação apresentada em texto de Antonio Delfim Neto e FábioGiambiagi (2005), as alterações mencionadas fariam com que o gasto corrente do gover-no federal em 2016 caísse para 16,5% do PIB – um ponto percentual inferior aos níveisatuais –, o que mantida a carga tributária federal em 19,30% do PIB permitiria que osinvestimentos públicos subissem gradualmente até atingirem 2,12% do PIB em 2016.

Page 83: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

rigorosa disciplina fiscal é fundamental para o sucesso da integração na eco-nomia mundial.

Em paralelo, a abertura e a globalização criam focos de tensão que ten-dem a acirrar os antagonismos. Esses focos se manifestam: a) na tentativa, porparte da União, em impor controles mais rigorosos sobre a gestão adminis-trativa e financeira de estados e municípios e nas reações que ambos oferecemao cerceamento de suas autonomias; b) na demanda de estados e municípiospor compensações de perdas sofridas em decorrência de decisões adotadaspelo governo federal; c) no enfraquecimento dos laços de solidariedade nacio-nal provocado pelas novas oportunidades de comércio com países vizinhos; ed) na eclosão e escalada da guerra fiscal.

Em federações marcadas por elevadas desigualdades regionais e sociais,como a brasileira, a cooperação intergovernamental no atendimento das res-ponsabilidades do Estado requer um ajuste periódico nos mecanismos detransferência de recursos financeiros que conformam o modelo de federalis-mo fiscal, de forma a ajustá-los à dinâmica espacial do país. Essa não tem sido,todavia, a prática brasileira. A despeito das evidências, todas as propostas dereforma tributária que foram elaboradas nos últimos quinze anos evitaramabordar as mudanças necessárias no federalismo fiscal, sob a justificativa deque o tema é politicamente explosivo. Todavia, a experiência está demons-trando que essa estratégia, além de limitada, contribui para acumular dis-torções e dificultar as próprias mudanças.

A abordagem limitada que tem presidido os recentes debates sobre areforma tributária ignora que a revisão do sistema de impostos, que envolve aquestão da atribuição de competências para instituir e administrar tributos nafederação, determina, juntamente com o sistema de partilhas e transferências,o perfil da repartição de receitas na federação. Assim, a alteração isolada deuma das faces desse perfil não é capaz de corrigir as distorções atuais, poden-do, ao contrário torná-las ainda mais graves. Além disso, ela limita as possi-bilidades de promover uma reformulação mais abrangente do próprio sistematributário, uma vez que fica mais difícil conciliar os interesses envolvidos eencontrar um novo ponto de equilíbrio entre competências e transferências.O Brasil não precisa apenas de uma reforma tributária. Precisa de uma pro-funda reforma do federalismo fiscal.

conf

litos

fede

rativ

os e

ref

orm

a tr

ibut

ária

Page 84: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GIAMBIAGI. A política fiscal do governo Lula em perspectiva histórica: qual é olimite para o aumento do gasto público? Texto para Discussão nº 1169, IPEA,2006.

NETO, Delfim, GIAMBIAGI, Fábio. O Brasil precisa de uma agenda de consenso.Boletim de Conjuntura, IPEA, dez. 2005.

PRADO, QUADROS, CAVALCANTI. Partilha de recursos na Federação Brasileira.FUNDAP/IPEA, 2003.

VELLOSO. Rigidez orçamentária, difíceis escolhas. Fórum Nacional, Estudos ePesquisas n. 93, 2005.

__________. Por um gatilho fiscal temporário. Fórum Nacional, Estudos e Pesquisas,n. 98, 2005.

FERNANDO REZENDE é economista, professor na Escola Brasileira de Admi-nistração Pública e de Empresas – EBAPE – Fundação Getulio Vargas.

Page 85: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Política Agrária: modernização sem exclusão

GE RV Á S I O C A S T RO D E RE Z E N D E

PAU LO TA F N E R

INTRODUÇÃO

O setor agrícola tem assumido papel estratégico na economia brasileira, emfunção de sua capacidade de garantir adequada oferta de alimentos e

matérias-primas agrícolas e do bom desempenho em termos de exportações.Além disso, a produção agrícola tem-se caracterizado pela adoção de tecnolo-gia intensiva em capital e em mão-de-obra qualificada, e escala de produçãocrescente na maioria dos setores.

Em face da magnitude do problema atual de pobreza e desigualdade noBrasil e considerando-se que o padrão tecnológico agrícola predominante temlevado à absorção de volume expressivo de mão-de-obra qualificada, que éescassa no Brasil, mas não de mão-de-obra não qualificada, que é abundante,seria o caso de se considerar a possibilidade de adoção de um padrão de cres-cimento agrícola mais condizente com a redução da pobreza e da desigualda-de no Brasil. Isso requereria uma mudança tecnológica visando absorver maisintensamente mão-de-obra pouco qualificada, mas que poderia adquirir, comcusto relativamente pequeno, a qualificação requerida para esse novo padrãode tecnologia agrícola. A mudança tecnológica proposta neste trabalho visariaaumentar a absorção de mão-de-obra não qualificada, com conseqüentes efei-tos positivos na redução da pobreza e da desigualdade.

Page 86: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Essa nova contribuição da agricultura parece viável, dada a diversidade depadrões tecnológicos, o que permite flexibilidade na escolha de tecnologia nosetor agrícola. A diversidade mundial de padrões tecnológicos na agriculturaensejou, aliás, a proposição do “modelo de inovação tecnológica induzida” deHayami e Ruttan (1985), segundo o qual a tecnologia agrícola adotada nosdiferentes países é muito variada porque são variados os preços relativos deseus fatores de produção.

Por outro lado, a qualificação requerida para essa agricultura mais tra-balho-intensiva – que chamaremos aqui de qualificação específica agrícola – émais simples, capaz de ser formada a um custo muito mais baixo do que aqualificação exigida atualmente no setor industrial e, também, no própriosetor agrícola moderno.1 Além do mais, como um eventual crescimento doemprego agrícola iria favorecer o crescimento das zonas rurais e das cidadespequenas e médias, isso contribuiria para um desafogo dos problemas dasatuais regiões metropolitanas, que são, hoje, o principal destino dos trabalha-dores que migram do setor agrícola.

Note-se que essa mão-de-obra que se transfere do setor agrícola para osdemais setores da economia acaba perdendo sua condição de mão-de-obraqualificada (no sentido restrito aqui adotado), tornando-se mão-de-obra nãoqualificada, sendo muito provável que isso contribua para o crescimento dapobreza no Brasil. Por outro lado, como essa mão-de-obra se transfere para omeio urbano, esse mecanismo de concentração na agricultura não dá lugar àpobreza rural propriamente dita, um fenômeno que, atualmente, só é encon-trado em algumas regiões de recursos naturais precários (com destaque para oclima), como o Nordeste ou o Vale do Jequitinhonha.

Caberia, portanto, entender melhor as razões que têm levado o setor agrí-cola no Brasil a adotar o atual padrão tecnológico. Esse conhecimento é cru-cial para que se possa propor medidas que permitam o crescimento commaior capacidade de absorção de mão-de-obra, especialmente aquela abun-dante no Brasil, que é a mão-de-obra de baixa qualificação.

A este respeito, cabe notar que existe uma intensa controvérsia em tornodos fatores que respondem por esse padrão distributivo do crescimento agrí-cola. Uma corrente de pensamento atribui a responsabilidade à nossa for-

1. Por qualificação específica agrícola pretende-se designar capacitações como o conheci-mento do calendário agrícola, a capacidade física e os conhecimentos necessários ao cortemanual da cana, a “apanha” do café, o manejo da enxada e da foice, o manejo dos ani-mais etc.

Page 87: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

mação histórica, e em particular à concentração da propriedade da terra, cujopapel determinante teria sido reforçado pela política de crédito agrícola sub-sidiado, criada no final da década de 1960.

Uma segunda corrente vê esse padrão de desenvolvimento agrícolacomo decorrência de um imperativo tecnológico, já que a produção empequena escala não seria viável na agricultura, e nem existiria tecnologiaagrícola absorvedora de mão-de-obra. Assim, esse padrão tecnológico e opredomínio da produção em grande escala na agricultura seriam “naturais”,e qualquer tentativa de interferir nisso implicaria um custo de eficiênciapara a economia.

Pretende-se aqui propor uma explicação alternativa. E, como conse-qüência dessa nova interpretação, sugerir mudanças nas atuais políticas públi-cas, de maneira a substituir o atual padrão concentrador do nosso desenvol-vimento agrícola por um processo de modernização sem exclusão.

Vamos argumentar que a situação atual foi fruto de um processo detransformação que se iniciou na década de 1960, e que foi muito condicio-nado pelas políticas trabalhista, fundiária e de crédito agrícola, todas elas ins-tituídas naquela década. A crítica ao determinismo tecnológico vai se basearna própria teoria econômica que, segundo nosso entendimento, serve equi-vocadamente de base para sua argumentação. Argumentaremos, com base nomodelo de Hayami e Ruttan (1985), que o padrão tecnológico hoje prevale-cente na agricultura brasileira foi resultado de escolhas que tiveram por basepreços relativos dos fatores distorcidos, pois ao invés de refletirem a dotação“natural” dos fatores, esses preços foram severamente afetados pelas políticaspúblicas mencionadas anteriormente.

Ao se aceitar que o padrão tecnológico atual resulta de uma escolha téc-nica condicionada pelos preços relativos dos fatores, infere-se, então, que umaeventual mudança desses preços relativos poderá dar lugar a um novo padrãode desenvolvimento agrícola, com o uso de tecnologia menos intensiva emcapital e mais intensiva em mão-de-obra mais barata, dotada (ou passível deser dotada) da qualificação específica agrícola. O setor agrícola adicionaria àssuas qualidades uma outra, talvez mais importante ainda, que é a geração deempregos para os segmentos mais pobres da população.

Este artigo inclui, além desta introdução, quatro seções. A primeira mos-tra de que maneira a atual política trabalhista não apenas reduz as oportuni-dades de emprego da mão-de-obra assalariada pobre – com conseqüentequeda do salário –, como também aumenta as barreiras ao crescimento daprópria agricultura familiar.

polít

ica

agrá

ria: m

oder

niza

ção

sem

exc

lusã

o

Page 88: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

A segunda seção resume os principais traços da atual política fundiária –incluindo o atual modelo de “assentamentos” de reforma agrária –, e mostracomo essa política, ao invés de beneficiar, acaba dificultando o desenvolvi-mento da agricultura familiar no Brasil.

A Seção 3 propõe que a política de crédito agrícola, instituída em 1965,foi uma reação às políticas fundiária e trabalhista, instituídas em 1963 e 1964.Essa política, assim como seu reforço a partir da década de 1990,2 barateou ocusto do capital e permitiu que a agricultura reagisse, via mecanização, à ele-vação do custo decorrente das políticas trabalhista e fundiária, instituídas nadécada de 1960.

Finalmente, a Seção 4 apresenta um sumário e as principais conclusõesdo trabalho.

1. SAZONALIDADE AGRÍCOLA, LEGISLAÇÃO TRABALHISTAE OS ATUAIS PROBLEMAS DO MERCADO DE TRABALHONA AGRICULTURA

É fato reconhecido que a atividade agrícola apresenta forte sazonalidade.Isso, entre vários outros aspectos, ensejou princípio tributário que data

do Império Romano: o da anualidade na cobrança de impostos. Todas asconstituições brasileiras, por exemplo, abraçaram esse princípio, reconhecen-do como origem do direito a sazonalidade da atividade econômica e, particu-larmente, a sazonalidade na agricultura. Curioso é, no entanto, que o mesmonão ocorre em nossa legislação trabalhista. De fato, a CLT não leva em con-sideração a sazonalidade agrícola e, por não considerá-la, produz efeito parti-cularmente danoso sobre a pobreza no Brasil.

Com efeito, a sazonalidade agrícola faz com que a contratação de mão-de-obra por curtos períodos seja muito comum na agricultura, dando origemaos seguintes problemas: a) desestímulo à qualificação da mão-de-obra, já quenão há incentivo nem para o empregador, nem para o empregado, em inves-tir nessa qualificação, devido à alta rotatividade; e b) incerteza quanto à ofer-ta de mão-de-obra – o que inclui a ignorância, por parte do empregador, daqualidade (inclusive moral), dessa mão-de-obra. Essa incerteza é agravadapelo fato de esses trabalhadores temporários terem passado a residir emregiões distantes em relação às áreas demandantes dessa mão-de-obra.

2. Esse reforço se deveu à extensão à agricultura dos financiamentos de investimento à contado FAT e dos Fundos Regionais, todos criados pela Constituição de 1988.

Page 89: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Note-se que esse problema foi resolvido, no passado, através de sistemasde emprego da mão-de-obra como o “colonato” no café, no qual o colonorecebia um “lote” de terra dentro da fazenda, onde desenvolvia uma produçãoprópria e, em troca, tinha de trabalhar na atividade principal da fazenda (ocafé), recebendo uma remuneração em dinheiro. Com a extensão da CLT aocampo, em 1963, contudo, sistemas de emprego como esses foram inviabili-zados, tornando-se obrigatório para o fazendeiro pagar salário ao empregadodurante todo o ano e não apenas durante o período em que trabalhava na ati-vidade principal da fazenda. Além disso, como será visto na próxima seção,com o Estatuto da Terra, instituído em 1964, o fazendeiro passou a correr orisco de perder o direito de propriedade sobre a terra cedida ao empregado.Esses dois institutos (a CLT e o Estatuto da Terra), segundo nosso entendi-mento, vêm impedindo, desde a década de 1960, que sejam adotados na agri-cultura brasileira sistemas de emprego da mão-de-obra capazes de minorar osefeitos da sazonalidade agrícola.

É interessante notar, também, que antes desses dois Estatutos o proble-ma de incerteza quanto à oferta de mão-de-obra agrícola era muito menor,pois era muito mais comum, na época, a figura do “empreiteiro”, que, comsua própria “turma”, contratava com os agricultores a realização de váriostipos de tarefas (como roçar um pasto ou fazer a colheita de um produto). Umexemplo do papel positivo que esse empreiteiro desempenhava no passadopode ainda ser percebido na região de cana-de-açúcar do Estado de São Paulo,onde ainda existe esse intermediário, que normalmente é outro agricultor, eque não apenas dispõe de uma “turma” (usualmente utilizada para a colheitade sua própria plantação de cana), mas também de maquinário próprio que éalugado para a colheita e o transporte da cana até a usina.3 A vantagem dessaterceirização completa é que, além de viabilizar o mercado de trabalho tem-porário, torna mais viável a propriedade pequena ou média na agricultura.

Note-se que o mercado de trabalho assalariado agrícola temporário, emtodo o mundo, também apresenta problemas, embora não tão sérios como oBrasil. Por isso surgiu uma literatura internacional que explica a superiorida-de competitiva da agricultura familiar, nos países desenvolvidos, ao fato deque esta consegue ser menos dependente do mercado de trabalho agrícola, jáque conta com mão-de-obra própria. Além disso, a limitada dotação de mão-de-obra própria não impede que essa forma de produção atinja a escala ótima

polít

ica

agrá

ria: m

oder

niza

ção

sem

exc

lusã

o

3. Terci et alii (2005) apresentam uma análise detalhada desse sistema de “empreitada” naregião de cana de açúcar de São Paulo.

Page 90: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

de produção, dado o acesso facilitado ao crédito, o que permite a mecanizaçãoagrícola, sobretudo para as atividades de plantio e colheita. A agriculturafamiliar é também, em geral, mais capaz de diversificar suas atividades – dimi-nuindo os picos sazonais de necessidade de mão-de-obra –, sem falar no fatode ter menor custo de supervisão, um problema reconhecidamente maisimportante na agricultura do que na indústria.

No Brasil, entretanto, a agricultura familiar acabou sendo adversamenteafetada pelas peculiaridades do mercado de trabalho assalariado agrícola. Issose deve, em parte ao elevado custo da mão-de-obra contratada no Brasil –conseqüência da legislação trabalhista – e, principalmente, ao fato de que aagricultura familiar no Brasil não tem acesso ao mercado de crédito e, assim,à mecanização.

Para entender por que o custo da mão-de-obra assalariada temporária émaior para a agricultura familiar, basta considerar que o cumprimento dalegislação trabalhista impõe custos fixos relevantes ao empregador, como, porexemplo: a) manter-se informado sobre a legislação, ou então contratar umcontador para isso; b) ter de ir ao banco para abrir contas individuais deFundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e regularizar a situação deseus empregados junto ao Instituto Nacional de Seguro Social (INSS); c)manter atualizado o registro para cada empregado, mesmo que cada um tenhatrabalhado somente uns poucos dias; d) levar o empregado à cidade paraencontrar um médico credenciado para fazer o exame médico “admissional”e, depois, o “demissional”.

São esses custos administrativos, em grande parte invariantes com otamanho da força de trabalho, que acabam por fazer com que o custo uni-tário da mão-de-obra seja muito alto e, no caso do trabalhador temporá-rio, muito maior. Isso é particularmente grave para o grupo de pequenosempregadores.4

Embora arcando com um custo maior da mão-de-obra contratada fora,a agricultura familiar no Brasil, ao contrário do que aconteceu na maioria dospaíses capitalistas, não pode adotar a mecanização agrícola, devido à restriçãode acesso ao crédito rural. Note-se que essa restrição é maior exatamente no

4. Em artigo intitulado “A CLT no Meio Rural”, publicado no jornal O Estado de SãoPaulo de 25/7/06, o professor José Pastore lembra, ainda, o “inferno astral” a que os pro-dutores rurais estão sujeitos, para cumprirem as exigências de segurança no trabalho, quefazem parte das “Normas Regulamentadoras”. Essas exigências são também objeto de dis-cussão em Teixeira et alii (1997).

Page 91: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

caso do crédito de investimento, que é necessário para a aquisição de máqui-nas e equipamentos agrícolas. A conseqüência é que a agricultura familiar, noBrasil, perde competitividade vis-à-vis a agricultura capitalista. Primeiro, porter de enfrentar um custo mais alto da mão-de-obra assalariada; e segundo,por não poder se mecanizar e, com isso, fazer face às restrições e à incertezado trabalho agrícola temporário.

Por outro lado, a dificuldade de comunicação entre os dois lados dessemercado de trabalho temporário torna lucrativa a atuação de um intermediá-rio, que no Brasil tem o nome de “turmeiro”, “gato” ou “empreiteiro”. Esseintermediário detém a informação sobre os dois lados e atua viabilizando ocontato entre eles, inclusive através de uma terceirização muito mais ampla doque meramente intermediação de mão-de-obra. A Justiça do Trabalho, entre-tanto, vem impedindo que esse intermediário assine a carteira do trabalhador,o que dificulta o desenvolvimento desse mercado de trabalho e, mais geral-mente, da terceirização agrícola.

Segundo o Enunciado nº 331, do Tribunal Superior do Trabalho, “Acontratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se ovínculo diretamente com o tomador de serviços, salvo no caso de trabalhotemporário (Lei nº 6.019, de 02-01-74)”. Embora o trabalho sazonal agríco-la seja também “temporário”, a exceção prevista nesse Enunciado não o atin-ge, aparentemente por duas razões: 1) a legislação restringe a contratação de“trabalho temporário” ao meio urbano; e 2) considera-se que a atividade da“empresa interposta” não pode incluir atividades-fins, como o corte de cana,por exemplo. Não bastassem esses motivos, o capital inicial exigido para aabertura de uma “empresa de trabalho temporário” é de no mínimo R$100.000,00, o que é incompatível com a realidade agrícola.

A interpretação da Justiça do Trabalho reflete uma visão muito difundi-da no Brasil de que esse empreiteiro seria, na realidade, um mero “preposto”do fazendeiro, um artifício que este último teria inventado para fugir da con-tratação direta do trabalhador. Mesmo na hipótese de que essa transação selimitasse a uma mera intermediação de mão-de-obra – o que nunca acontecede fato, já que pelo menos o transporte do trabalhador é fornecido pelo inter-mediário –, ainda assim não se justifica o atual impedimento legal a que esseintermediário seja o contratante dessa mão-de-obra. A realidade é que essemercado, devido a sua própria natureza, pressupõe um mecanismo qualquerde transmissão de informação entre os dois lados, ou seja, o do agricultor e odo trabalhador. Considerar que o “gato” é um mero artifício que o agricultorusa para descumprir a lei é admitir que o agricultor possa de fato dispensar

polít

ica

agrá

ria: m

oder

niza

ção

sem

exc

lusã

o

Page 92: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

esse intermediário, contratando diretamente a mão-de-obra de que ele neces-sita. Isso é simplesmente uma inverdade.

Note-se que essa legislação que torna ilegal a contratação direta do tra-balhador pelo empreiteiro deve afetar muito menos o grande empregador, jáque só ele consegue arcar com os custos de: (1) divulgar suas necessidades demão-de-obra; (2) identificar, selecionar e contratar os interessados; (3) provi-denciar o transporte de vinda desses trabalhadores de suas regiões de origem(incluindo, em alguns casos, adiantamento para o trabalhador e sua família)e depois de retorno; e (4) prover as condições de alojamento, de alimentaçãoe de atendimento médico desses trabalhadores. A realidade mostra, contudo,que mesmo o grande produtor se vale do intermediário para a obtenção damão-de-obra de que ele necessita.5

Uma decorrência dessa política trabalhista agrícola é a criação de umagrave distorção no mercado de trabalho na agricultura, com a mão-de-obratornando-se muito cara e mesmo inadequada para o empregador, embora osalário recebido pelo trabalhador seja muito baixo e as condições de trabalho,alimentação e de moradia oferecidas ao trabalhador sejam muito precárias.

Essa cunha entre o custo da mão-de-obra para o empregador e o salário(direto e indireto) recebido pelo empregado tem vários componentes.Ademais dos encargos trabalhistas, existe o custo administrativo em que oempregador incorre para cumprir todas as exigências da CLT, como mencio-nado antes. Esse custo administrativo, por trabalhador, é tão maior quantomenor for o tamanho da força de trabalho requerida e, por isso, atinge maiso pequeno e o médio empregador, comparativamente ao grande empregador.

Por outro lado, a ilegalidade do empreiteiro torna muito arriscada a ativi-dade de intermediação, o que aumenta a taxa de retorno requerida nessa ativi-dade. Isso, por si só, deve explicar o fornecimento de condições muito precáriasde alojamento, transporte e alimentação do trabalhador; o próprio trabalhadordeve preferir essas condições, na medida em que uma eventual melhoria dessascondições teria como contrapartida uma redução do salário direto.

A própria ilegalidade desse intermediário, por sua vez, impede que con-tratos sejam assinados entre todas as partes envolvidas – ou seja, entre os inter-

5. Com efeito, conforme matéria publicada no jornal Cidade Notícias, de Piracicaba, do dia6/7/06, a usina São José estava sendo acionada na Justiça para que acabe com a terceiri-zação do trabalho no corte de cana. Segundo esse jornal, “a usina terá de contratar ime-diatamente os cerca de 600 cortadores que atuam nas lavouras por intermédio de 16empreiteiros, os chamados gatos”.

Page 93: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

mediários, os trabalhadores e os agricultores –, fazendo aumentar, assim, os“custos de transação” no mercado de trabalho agrícola.6 Além do mais, umavez que o agricultor é que acaba arcando com todos os custos decorrentes deuma eventual ação fiscalizatória,7 os intermediários não têm por que se preo-cupar com o cumprimento das mais elementares normas legais. Na realidade,pode-se supor que ocorra uma espécie de “seleção adversa” desses intermediá-rios, com a predominância de indivíduos propensos ao uso da violência,inclusive porque não há outro meio de reaverem os adiantamentos feitos aostrabalhadores para cobrir gastos com transporte até o local de trabalho emanutenção de suas famílias nas regiões de origem. Em face da precariedaderesultante das condições de trabalho, pode-se também supor que devem pre-dominar, nesse mercado, os trabalhadores provenientes das regiões maispobres do Brasil e que, por isso mesmo, têm de aceitar qualquer trabalho, nãoimporta a sua precariedade.

Todos esses custos que incidem sobre o setor produtivo – incluindo a ati-vidade do intermediário –, mas que não são apropriáveis pela mão-de-obra,acabam operando como se fossem taxações sobre a mesma mão-de-obra, massem gerar receita para o governo.8 O resultado desse imposto sobre a mão-de-obra é a redução do número de horas trabalhadas, diminuição do salário líqui-do do trabalhador e elevação do custo da mão-de-obra para o empregador. Éisso que também explica a informalidade muito maior na agricultura se com-parada às atividades econômicas urbanas.

polít

ica

agrá

ria: m

oder

niza

ção

sem

exc

lusã

o6. A importância dos “custos de transação” para a viabilização dos mercados agrícolas – de

fatores e de produtos – tem sido amplamente reconhecida na literatura recente; sobreisso, ver Zylberstajn (2005) e Allen e Lueck (2002).

7. Tem sido muito freqüente acusar os agricultores de prática de “trabalho escravo”, comampla cobertura pela imprensa; sobre isso, ver Barretto (2004), que mostra que o uso daexpressão “trabalho escravo” é completamente indevido, pois as situações não se devem à“escravidão por dívida”, mas tão-somente ao descumprimento de exigências comuns dalegislação trabalhista. Além de sofrer multa, que algumas vezes é completamente arbitrá-ria, o agricultor acusado da prática de “trabalho escravo” tem seu nome incluído numa“lista suja” pública (está no site do Ministério do Trabalho), e o governo vem conseguin-do que os bancos, inclusive o Banco do Brasil, não liberem crédito para quem nela figu-ra. Recentemente, até um “estudo” de um pecuarista inglês acusou a pecuária brasileirade trabalho escravo; sobre isso, ver a matéria “Denúncias de trabalho escravo provocamceleuma”, no jornal Valor Econômico, 6-07/01/2006, p. B10, e a matéria “Brasil vê inte-resse comercial em desqualificar país”, do jornal Folha de São Paulo, 06/01/2006, p. B8.

8. E também sem gerar proteção social ao trabalhador, dado que é posto à margem da redede proteção.

Page 94: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

2. A POLÍTICA FUNDIÁRIA E SEUS EFEITOS ADVERSOSSOBRE A AGRICULTURA FAMILIAR NO BRASIL

A legislação trabalhista não é, contudo, a única responsável pela inviabili-zação do mercado de trabalho temporário agrícola e pelo desestímulo à

agricultura familiar no Brasil. Atua também, nesse sentido, a nossa políticafundiária, inaugurada com o Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 30/11/1964) ereforçada pela Constituição de 1988.

Essa política fundiária de baseia em dois princípios básicos: a) necessida-de de estrita regulamentação do mercado de aluguel de terra, já que, devido aum suposto alto grau de concentração da terra, seria necessário proteger par-ceiros e arrendatários da “exploração” por parte dos proprietários de terra; eb) fomento da agricultura familiar através da redistribuição de terra, via desa-propriação das propriedades improdutivas e sua distribuição na forma depequenos lotes, agrupados em “assentamentos”.

A adoção desses princípios visou, na realidade, ao desestímulo dos mer-cados de aluguel de terra, como apontado por Romeiro e Reydon (1994:106).No mesmo diapasão, Silva (2005:199) aponta que o Estatuto da Terra prevêo “uso direto” da terra, “que evitaria a ausência de proprietários e as más for-mas de contrato agrícola, arrendamento e parceria”.

Outra crença dessa política fundiária é que o investimento em terra comoaplicação financeira seria muito generalizado no Brasil, do que decorreria ele-vada ociosidade desse recurso, o que, por sua vez, justificaria sua desapro-priação. Reydon (2000:176), por exemplo, afirma que “As características dealta ociosidade da terra associada ao elevado grau de concentração da pro-priedade da terra são, no caso brasileiro, fatos unânimes, que não precisam serdiscutidos (...)”.

Esse foi o diagnóstico do Estatuto da Terra, em 1964, e levou à criaçãodo Imposto Territorial Rural (ITR), que teria por objetivo desestimular aretenção “especulativa” e fazer cair o preço da terra, facilitando-se, assim, arealização da reforma agrária.

Entretanto, como Rezende (2003a:236-240) mostrou, tomando comobase o ocorrido nas décadas de 1970, 1980 e 1990, não é verdade que o valorda terra sempre se tenha “valorizado” no Brasil; na realidade, o preço da terra,nesse amplo período, apresentou alta volatilidade, comportando-se sempreem contraponto com os demais retornos do mercado financeiro, o que reve-la que a terra é um ativo adequado do ponto de vista da diversificação da car-teira de ativos, mas não como investimento em si, considerado isoladamente.

Page 95: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Por outro lado, como apontou Sayad (1982), a retenção de terra comoativo financeiro não necessariamente deveria implicar sua ociosidade. Comefeito, segundo Sayad, não faz sentido o especulador manter a terra ociosa,deixando de apropriar um retorno extra, dado pela renda da terra. Mesmo oinvestidor inapto para o exercício da atividade agrícola poderia auferir esseretorno extra, via aluguel da terra. Assim, se supusermos que, entre esses“especuladores”, predominem os indivíduos sem capacitação para o exercícioda atividade agrícola – até porque são “especuladores” –, então pode-se con-cluir que a especulação com terras deveria levar a um aumento da oferta deterra nos mercados de aluguel no Brasil, beneficiando, em particular, ospequenos agricultores. Nesse sentido, a especulação não faria a terra deixar decumprir sua função social, bem ao contrário.

A conclusão de Sayad seria correta, não fosse a política fundiária existen-te no Brasil que desestimula o aluguel de terras agrícolas envolvendo peque-nos agricultores, de um lado, e grandes proprietários, de outro.

Rezende (2006) apontou que, além da legislação que desestimula a cessãoda terra em arrendamento ou parceria para pequenos agricultores, o Judiciáriotambém atua no sentido de desestimular os proprietários de terra a cederemsua terra em arrendamento ou parceria no Brasil, já que, a título de fazer “jus-tiça social”, sempre decide em favor dos pequenos arrendatários e parceiros,mesmo que isso signifique a quebra de contratos.

Essa impossibilidade de acesso ao mercado de aluguel de terra por partedos pequenos produtores tem que ver, também, com a dificuldade de acessoao mercado de crédito por parte desses produtores (REZENDE, 2006), umarestrição que incide em menor grau sobre os agricultores médios e grandes.9

Essa restrição de crédito atinge inclusive agricultores com pequena dotação deterra, os quais, caso pudessem usar sua pequena propriedade como colateralno mercado financeiro, seriam capazes de arrendar terra adicional e, assim,atingir uma escala de produção mais adequada.

polít

ica

agrá

ria: m

oder

niza

ção

sem

exc

lusã

o

9. Uma exceção parece ser a agricultura familiar do Sul do país. Lá, a agricultura familiarconseguiu adotar a mecanização – escapando, assim, dos problemas do nosso mercado detrabalho agrícola. É possível que esse acesso ao crédito se deva à melhor definição dosdireitos de propriedade das terras nessas antigas “colônias” de imigrantes europeus; masé possível, também, que isso se deva à presença de outras instituições nessas regiões deforte influência italiana e alemã, caracterizadas por padrão diferente de intervenção doEstado, incluindo, aqui, a própria ação do Judiciário. Esse é, sem dúvida, um tema inte-ressante para pesquisa futura.

Page 96: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Essa ausência de acesso ao crédito por parte da agricultura familiar noBrasil deve-se não apenas aos reconhecidos problemas relacionados à pro-priedade da terra no Brasil, mas também à restrição que a própriaConstituição impõe ao uso dos bens desses agricultores como garantias deempréstimos no mercado financeiro. Por outro lado, os problemas decorren-tes da titulação precária de terra no Brasil atingem inclusive aqueles agricul-tores que, supostamente, já teriam resolvido esse problema, ou seja, os bene-ficiários da reforma agrária, os quais, como se sabe, permanecem,indefinidamente, de posse de um mero título de domínio ou concessão deuso, inegociável. De qualquer maneira, como mesmo um título de proprie-dade plena seria de pouca ajuda a esses agricultores – em face da limitaçãoconstitucional do uso dessa terra como garantia de empréstimos bancários –,esses beneficiários da reforma agrária acabam não se interessando realmentepela aquisição do título de propriedade, ainda mais quando se leva em contaa infindável disposição do governo de fornecer crédito e outras benesses aesses assentados da reforma agrária.

Podem-se apontar razões adicionais para atribuir à nossa política fundiá-ria a responsabilidade pelo fraco acesso ao crédito por parte de pequenosarrendatários e parceiros. Com efeito, o Estatuto da Terra impõe várias res-trições ao estabelecimento de relações comerciais entre os arrendatários ouparceiros, de um lado, e o proprietário de terra, de outro. Essas relaçõescomerciais eram muito freqüentes no Brasil, antes desse Estatuto (em muitoscasos, o proprietário cedia a terra e financiava o arrendatário, ou então avali-zava o empréstimo concedido por um banco). Este dava como garantia o pro-duto colhido, que ficava, assim, penhorado – o que, aliás, existe hoje, for-malmente, na figura do “penhor mercantil”, pelo qual o agricultor endividadonão pode vender seu produto sem a anuência do credor.

A inviabilização da parceria e do pequeno arrendamento de terra noBrasil em decorrência do Estatuto da Terra e da interpretação equivocada daJustiça tem tido uma conseqüência muito danosa do ponto de vista distri-butivo. Em primeiro lugar, porque, devido ao custo de supervisão do traba-lho agrícola (de novo, uma peculiaridade da agricultura), a parceria poderiase tornar, em várias situações, mais atraente do que o assalariamento, tantodo ponto de vista do empregador quanto do empregado. Já no caso dopequeno arrendatário, o desestímulo à sua atividade é também muito dano-so, pois, como apontaram De Janvry e Sadoulet (2002), o arrendamento daterra pelo agricultor pobre costuma servir de “escada” para a sua ascensãoeconômica e social.

Page 97: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

3. POLÍTICA DE CRÉDITO AGRÍCOLA, MECANIZAÇÃO E PRODUÇÃO EM LARGA ESCALANA AGRICULTURA BRASILEIRA

A política de crédito agrícola subsidiado foi instituída pela Lei nº 4.829,de 5.11.1965, e resultou de um longo processo de idas e vindas entre o

Congresso e o Executivo, como mostrado em detalhe em Nóbrega (1985) ediscutido em Rezende (2006). Não há dúvida de que essa política cumpriuum papel decisivo para que o setor agrícola pudesse se adaptar às novas con-dições institucionais surgidas em 1963 e 1964, com os Estatutos doTrabalhador Rural e da Terra, sem que ingressasse em uma profunda crise.

Com efeito, antes de tudo, essa nova política de crédito permitiu umamudança não traumática no sentido de formação de um novo mercado de tra-balho, agora plenamente monetizado. Em segundo lugar, essa nova política decrédito agrícola permitiu que vários setores latifundiários abandonassem aparceria e o arrendamento como formas de utilização da terra, passando aadotar a exploração direta, através da contratação de mão-de-obra assalariada.Isso permitiu que o setor agrícola se adaptasse à nova política fundiária, que,como se viu, discriminava contra a parceria e o arrendamento e ameaçava apropriedade da terra.

Finalmente, essa política permitiu a mecanização agrícola, que foi umaresposta à elevação do custo de mão-de-obra que resultou das políticas tra-balhista e fundiária. Com efeito, a combinação das políticas trabalhista e fun-diária de um lado e, de crédito agrícola subsidiado, de outro, acabou produ-zindo uma divergência não só entre os custos sociais e privados damão-de-obra, mas também entre os custos sociais e privados do capital. Emoutras palavras, embora o Brasil seja uma economia com abundância de mão-de-obra não qualificada e escassez de capital – o que significa que, em termossociais, a mão-de-obra não qualificada é barata e o capital, caro –, em termosprivados, devido à atuação dessas políticas públicas, os custos desses fatorestornaram-se “distorcidos” na agricultura, tornando-se o fator trabalho (mão-de-obra não qualificada do ponto de vista do conjunto da economia) caro e ocapital, barato.10

polít

ica

agrá

ria: m

oder

niza

ção

sem

exc

lusã

o

10. Observe que essa “subversão” de custos é amplificada pelos riscos implícitos de cada fator.Em outras palavras, queremos dizer que o aparato institucional que atua sobre a ativida-de agrícola não apenas torna a mão-de-obra relativamente cara vis-à-vis o capital, comoeleva sobremaneira os riscos associados a esse fator.

Page 98: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Como são os custos privados que governam a tomada de decisão priva-da, a conseqüência dessa distorção nos preços dos fatores acabou sendo umarápida mudança na tecnologia agrícola no sentido da mecanização poupado-ra de mão-de-obra de qualificação específica agrícola, relativamente abun-dante, e do uso intensivo de capital, o fator escasso na economia.11

Por outro lado, pode-se supor que essa mudança de preços relativos dosfatores tenha também induzido a geração de novas tecnologias com as mesmascaracterísticas, ou seja, poupadoras de mão-de-obra de qualificação específicaagrícola e intensivas em capital. Esse teria sido o caso, principalmente, dascolheitadeiras de cana-de-açúcar e café, por exemplo, que foram frutos da pes-quisa e dos investimentos feitos no Brasil, já que essa tecnologia não existiano exterior.

Note-se que a política de crédito subsidiado também foi acompanhadapor uma política industrial que subsidiou a implantação, no Brasil, daindústria de tratores e máquinas agrícolas, o que facilitou sua aquisiçãopelos agricultores.

Essas considerações permitem explicar por que passou a ser adotada, naagricultura brasileira, uma tecnologia baseada na mecanização, que é poupa-dora de mão-de-obra não qualificada e intensiva em capital e em mão-de-obraqualificada. Com efeito, a mecanização elimina ou reduz muito a demanda demão-de-obra de qualificação específica agrícola, em favor da mão-de-obraqualificada, além de usar mais intensivamente o fator relativamente maisbarato – o capital. A adoção dessa tecnologia foi facilitada, inicialmente, pela

11. É interessante notar que o saudoso Ignácio Rangel adotou essa mesma perspectiva de aná-lise – incluindo a mesma terminologia do mainstream – para analisar o padrão tecnoló-gico de nossa agricultura. Segundo Rangel (2000:151), “... tudo se passou no Brasil comose a mão-de-obra fosse escassa e o capital abundante e barato. E isto, não pelo simples esuperficial gosto pela imitação e sim porque, do ponto de vista do empresário, assim erae é. O caso é que nosso processo de industrialização se fez nos quadros de instituições que,de certo modo, corrigem os preços relativos dos fatores, engendrando condições propíciaspara funções de produção progressivas, isto é, voltadas para a tecnologia mais avançadaque seja possível conseguir em cada momento e situação concretos, não por acidente,essas funções de produção como regra geral, tendem a ser capital intensive e laboursaving”. Segundo ainda Rangel, “embora o poder aquisitivo e o nível de vida das massastrabalhadoras (...) permanecem baixos (...) isso não basta para fazer do trabalho um fatorbarato para o empresário, o qual tem de pagar ao trabalhador um salário nominalmenteelevado, visto como lhe chega sobrecarga de pseudocustos, ao passo que o capital (...) lhechega a custos descontados”. Note-se que Rangel também deu muita importância aosproblemas que a sazonalidade agrícola cria para o mercado de trabalho, chegando a suge-rir medidas destinadas a minorar esses problemas; sobre isso, ver Rezende (2006:17-18).

Page 99: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

sua disponibilidade no plano internacional (colheitadeiras de grãos, porexemplo) e, posteriormente, pela criação de máquinas especificamente dese-nhadas para a agricultura brasileira, como as colheitadeiras de cana-de-açúcar,café e laranja, entre outras. Tratou-se, então, tanto da “adoção” de tecnologiasjá existentes, com base na microeconomia convencional, como da “indução”de novas técnicas, à la Hicks e como elaborado por Hayami e Ruttan (1985).

Note-se que a atratividade da mecanização, em certas situações, tornou-se mesmo imperativa, em função das greves dos trabalhadores, que passarama eclodir especialmente na época da colheita.12 Entretanto, no caso de outrasculturas, como o algodão em São Paulo e no Paraná, muito dependente demão-de-obra para a colheita e que não pode contar com inovação que permi-tisse a mecanização da atividade, a solução foi simplesmente o seu abandono.

É curioso que tem sido comum culpar a mecanização pelo aumento daimportância relativa da produção em grande escala na agricultura brasileira.Essa associação simplista negligencia o fato de que mecanização e escala sãodois fenômenos teoricamente distintos e dissociados. Com efeito, mecani-zação, em si mesma, significa simplesmente a adoção de técnicas mais inten-sivas em capital, ou seja, técnicas em que o coeficiente serviços de capital/ser-viços de trabalho aumenta. A presença ou não de economias de escala, por suavez, refere-se à existência ou não de proporcionalidade entre as taxas devariação da produção e das quantidades utilizadas dos fatores (essas quantida-des definidas, sempre, em termos de serviços dos fatores).

A ocorrência de simultaneidade empírica desses dois eventos – mecani-zação e aumento da escala de produção – observada no Brasil, não decorre derelação causal ou mesmo de requisito de existência. A hipótese que aqui sub-metemos a escrutínio é que isso se deve ao fato de a mecanização não vir seestendendo aos pequenos agricultores, pelos seguintes motivos: a) falta deacesso ao crédito e, portanto, impossibilidade de demandar máquinas adap-tadas a esses produtores; e b) conseqüente inviabilização da oferta de máqui-nas adaptadas à agricultura em pequena escala.

Nesse contexto, a indústria brasileira passou a fabricar apenas máquinasapropriadas à produção em grande escala, de onde surgiu o fenômeno de“indivisibilidade” das máquinas, ou seja, ausência de máquinas adequadas aopequeno produtor. Isso, juntamente com as dificuldades de operação do mer-cado de aluguel de tratores e máquinas agrícolas – o que forçou a aquisição

polít

ica

agrá

ria: m

oder

niza

ção

sem

exc

lusã

o

12. Sobre isso, ver Ricci et alii (1994).

Page 100: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

dos tratores e máquinas agrícolas pelo próprio agricultor –, fez com que ocusto unitário de produção se reduzisse com o aumento da escala de produção(devido à queda do custo fixo unitário), tornando, assim, em nossa agricultu-ra, a produção em grande escala mais rentável. A predominância da produçãoem grande escala na agricultura brasileira não deve, portanto, ser tomadacomo evidência da presença de economias de escala na agricultura, como secostuma pensar.13

Na medida em que a pequena agricultura não pode adotar a mecani-zação, nem se valer, nos “picos” da demanda, da contratação de mão-de-obraassalariada, o resultado é que sua escala de produção acaba ficando limitada,nos períodos de “picos”, ao tamanho da família, com a geração de subempre-go nos períodos de “vales” da atividade agrícola.

A dissociação teórica entre decisões concernentes à mecanização e aque-las concernentes à escala permitiria que uma região como a Centro-Oeste,onde a mecanização é uma técnica altamente recomendável, continuasse uti-lizando a máquina, mas reduzindo, drasticamente, a escala de produção. Paraisso ocorrer, entretanto, seria preciso viabilizar o acesso da agricultura familiarao mercado financeiro, pois com a existência de uma demanda regular eexpressiva por parte deste tipo de agricultura poderia haver oferta das máqui-nas apropriadas. Esse maior acesso da agricultura familiar à mecanizaçãopoderia ser facilitado, também, pela criação de um mercado de aluguel demáquinas. A esse respeito, é interessante notar que Sanders e Bein (1976)registraram o uso regular de máquinas, via aluguel, por parte de agricultoresfamiliares em Terenos (uma região de cerrado). Isso confirma nossa hipótesede que não é a mecanização em si mesma, mas o contexto institucional que,ao restringir o acesso ao crédito por parte da agricultura familiar e desestimu-lar a criação de um mercado de aluguel de máquinas, tem levado ao predo-mínio da produção em grande escala na agricultura brasileira.

Destaque-se que o atual padrão tecnológico agrícola tem levado o setor aoperar com excessiva dependência de capital de empréstimo. Além disso, oelevado custo fixo na composição do custo unitário total faz aumentar as difi-culdades do setor agrícola em conjunturas adversas, decorrentes de compor-tamento desfavorável de preços internacionais, da taxa de câmbio ou doclima. Como a ocorrência de conjuntura adversa é evento muito freqüente no

13. Note-se que Rezende (2003b) desenvolveu esse argumento para explicar o predomínio daprodução em grande escala no cerrado.

Page 101: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

setor agrícola, cabe indagar, conforme fizeram Ferreira Filho, Alves e Gameiro(2004:27), se “esse modelo pode ser considerado ótimo”.

Brandão, Rezende e Marques (2006) sugeriram que a maior disponibili-dade recente de crédito para a aquisição de máquinas e implementos agríco-las teria viabilizado o grande aumento de área cultivada que ocorreu entre osanos agrícolas 2000/2001 e 2003/2004, e que rompeu com o padrão de cres-cimento anterior, em que a área permanecia constante e se adotavam tecno-logias que visavam o aumento da produtividade da terra. Segundo FerreiraFilho e Costa (1999), a restrição à mecanização, que vigorava nesse períododevido à falta de crédito de investimento, pode até mesmo ter contribuídopara a rápida adoção do plantio direto na agricultura brasileira, já que essa téc-nica reduz a necessidade tanto de uso de tratores como de mão-de-obra, con-tornando, assim, o problema da restrição de capital que vigorou nesse perío-do. Na realidade, o que aconteceu é que a técnica do plantio direto nãosomente reduziu, na margem, a necessidade de novos tratores, como, ao seestender a áreas agrícolas pré-existentes, tornou o estoque existente de trato-res compatível com a nova demanda, relaxando uma restrição que, com todaa certeza, limitaria a agricultura brasileira.

4. SUMÁRIO E CONCLUSÕES

E ste trabalho procurou mostrar que as políticas trabalhista, fundiária e decrédito agrícola têm sido responsáveis pelo atual predomínio, no setor

agrícola brasileiro, de um padrão concentrador, caracterizado pela produçãoem grande escala e pela mecanização.

Argumentou-se que seria de se esperar que a agricultura familiar tivessese desenvolvido muito mais no Brasil, com base nas próprias forças do mer-cado livre. Isso se deveria às características peculiares do mercado de trabalhoagrícola, que cria dificuldades para o desenvolvimento da agricultura capita-lista. A inexistência de economias de escala na agricultura reforçaria essatendência de predomínio da agricultura familiar. Entretanto, conforme vistoaqui, esse potencial de crescimento da agricultura familiar não se concretizou,pelas seguintes razões:

a) falta de acesso ao crédito vis-à-vis o agricultor médio ou grande, que cos-tuma ser atribuída à precariedade de acesso à terra por parte desse peque-no agricultor, mas que, como se viu, é mais provável que se deva à pró-pria ação do Estado em sua pretensão de proteger o pequeno agricultor,

polít

ica

agrá

ria: m

oder

niza

ção

sem

exc

lusã

o

Page 102: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

seja instituindo barreiras à penhora da terra desse agricultor – atravésinclusive de dispositivos constitucionais –, seja através da ação doJudiciário em seu afã de “justiça social”;

b) custos muito altos do trabalho assalariado temporário, especialmentepara os pequenos agricultores, o que acaba por limitar o potencial de pro-dução da agricultura familiar à disponibilidade de mão-de-obra própria;e, finalmente;

c) supressão do mercado de aluguel de terras envolvendo pequenos agri-cultores, eliminando essa via de criação de oportunidades de ascensãosocial e econômica por parte dos trabalhadores assalariados e pequenosagricultores.

É interessante ressaltar essa hipótese de que o fraco acesso ao créditoprivado por parte do agricultor familiar, no Brasil, decorre menos da pre-cariedade de seu acesso à terra e mais da excessiva proteção que o Estadopretende conceder a esse agricultor, em sua relação com o sistema finan-ceiro. Com efeito, se confirmada essa hipótese, então se segue que esseagricultor não deve valorizar a própria formalização do seu título de pro-priedade. A política correta seria, então, “desproteger” esse pequeno agricul-tor, eliminando o dispositivo constitucional e a suposta proteção doJudiciário. Note-se que, aqui, é total a analogia com a política de supostaproteção do pequeno produtor contra a “exploração” nos mercados dearrendamento e parceria.

Quanto à mão-de-obra assalariada, concluiu-se que a qualificada acabouse beneficiando das políticas públicas adotadas, já que a demanda por elaaumentou, em função da adoção da técnica mecanizada e da produção emgrande escala. O impacto da CLT sobre essa mão-de-obra, em termos de ele-vação de custo, é muito menor quando comparado ao impacto sobre a mão-de-obra agrícola temporária. Se não fosse a ação da política trabalhista, teriahavido menor absorção da mão-de-obra qualificada, mas, em compensação,teria havido muito maior uso de mão-de-obra temporária, especialmente dotipo migrante sazonal, o que iria beneficiar, além dessa própria mão-de-obra,as regiões de origem dessa força de trabalho.

A conclusão principal deste trabalho é de que a mudança do padrãoatual de desenvolvimento agrícola requer a desregulamentação dos mercadosde trabalho e de aluguel de terra no Brasil, assim como maior viabilização doacesso ao crédito por parte dos pequenos agricultores e redução do subsídioao crédito rural. Com maior acesso ao crédito privado por parte dos peque-

Page 103: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

nos agricultores, esses deixariam de ficar à mercê do crédito oficial, comoocorre atualmente.

É interessante notar que o problema de acesso ao crédito por parte dopequeno agricultor tornou-se grave, em parte, pelo maior imperativo daadoção de tecnologia poupadora de mão-de-obra, devido à política trabalhis-ta. Não fora essa política trabalhista agrícola, o acesso ao crédito não se tor-naria tão fundamental na agricultura, já que esse setor não seria forçado a ado-tar tecnologia intensiva em capital e poupadora de mão-de-obra dequalificação específica agrícola. Assim, teria havido maior desenvolvimentoda agricultura familiar, paralelamente à maior absorção de mão-de-obra assa-lariada, tanto a temporária quanto a fixa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALLEN, D. W., LUECK, D. The nature of the farm: contracts, risk, and organizationof agriculture. Boston, Mass.: MIT Press, 2002.

BARRETTO, N. R. Trabalho Escravo – Nova arma contra a propriedade privada. SãoPaulo: Artpress Indústria Gráfica e Editora Ltda., 2004.

BRANDÃO, A. S. P., REZENDE, G. C., MARQUES, R. W. C. M. Crescimento agrí-cola no período 1999-2004: a explosão da soja e da pecuária bovina e seu impactosobre o meio ambiente. Economia Aplicada, v. 10, n. 2, p. 249-266, abr./jun. 2006.

DE JANVRY, A., SADOULET, E. Access to land for the rural poor: how to keep it openand effective for poverty reduction? Econômica, v. 4, n. 2, p. 253-277, dec. 2002.

FERREIRA FILHO, J. B. S., COSTA, A C. F. A. O crescimento da agricultura e oconsumo de máquinas agrícolas no Brasil. In: CONGRESSO DA SOBER, Fozde Iguaçu, 1º a 5 agosto de 1999.

FERREIRA FILHO, J. B. S., ALVES, L. R. A., GAMEIRO, A. H. Algodão: alta com-petitividade no Brasil central. Agroanalysis, vol. 24, n. 3, p. 24-27, mar. 2004.

HAYAMI, Y., RUTTAN, V. W. Agricultural development: an international perspecti-ve. Baltimore: The John Hopkins University Press, 1985.

NÓBREGA, M. F. Desafios da política agrícola. São Paulo: Gazeta Mercantil S.A., emco-edição com o CNPq, 1985.

RANGEL, I. Questão agrária, industrialização e crise urbana no Brasil. Porto Alegre:Editora da UFRGS, 2000.

REZENDE, G. C. Estado, macroeconomia e agricultura no Brasil. Porto Alegre:Editora da UFRGS / Rio de Janeiro: IPEA, 2003a.

__________. Ocupação agrícola, estrutura agrária e mercado de trabalho rural nocerrado: o papel do preço da terra, dos recursos naturais e das políticas públicas.In: HELFAND, S., REZENDE, G. C. Região e espaço no desenvolvimento agrí-cola brasileiro. Rio de Janeiro: IPEA, 2003b. p. 173-212.

polít

ica

agrá

ria: m

oder

niza

ção

sem

exc

lusã

o

Page 104: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

__________. Políticas Trabalhista, Fundiária e de Crédito Agrícola e seus efeitos adver-

sos sobre a pobreza no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA, Texto para Discussão nº 1180,abr. 2006.

REYDON, B. P. Intervenções nos mercados de terras: uma proposta para a reduçãodo uso especulativo da terra. In: MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTOAGRÁRIO. Reforma Agrária e desenvolvimento sustentável. Brasília: Ministériodo Desenvolvimento Agrário, 2000. p. 175-186.

RICCI, R., ALVES, F. J. da C., NOVAES, J. R. P. Mercado de trabalho do setor sucro-alcooleiro no Brasil. Brasília: IPEA, Estudos de Política Agrícola, 1994(Documentos de Trabalho, 15).

ROMEIRO, A., REYDON, B. P. (Coords.). O mercado de terras. Brasília: IPEA,Estudos de Política Agrícola, 1994 (Documentos de Trabalho, 13).

SANDERS, J.H. e BEIN, F. L. Agricultural Development on the Brazilian Frontier:Southern Mato Grosso. Economic Development and Cultural Change, vol. 24, n.3, p. 593-610, 1976. Uma versão em português desse artigo foi publicada emEstudos Econômicos, v. 6, n. 2, p. 85-112, maio/ago. 1976.

SAYAD, J. Especulação com terras rurais, efeitos sobre a produção agrícola e o novoITR. Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 12, n. 1, p. 87-108, abr. 1982.

SILVA, C. F. Estatuto da terra. In: MOTTA, M. (Org.). Dicionário da terra. Rio deJaneiro: Editora Civilização Brasileira, 2005. p. 198-200.

TEIXEIRA, E. C., BARLETTA, J. R., LEMES, V. A. Sugestões de reforma das NormasRegulamentadoras Rurais e Normas Regulamentadoras Urbanas n. 07 e 09 aplica-das ao meio rural. Relatório do Seminário sobre Agricultura de Montanha eLegislação Trabalhista Rural. Viçosa: UFV, mar. 1997.

TERCI, E. T., PERES, A. M. P., PERES, M. T. M., GUEDES, S. N. R. O trabalhoagrícola temporário assalariado na agroindústria canavieira: o caso do corte decana na região de Piracicaba. Trabalho apresentado em painel sobre Mercado deTrabalho Agrícola. In: XLIII CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRADE ECONOMIA E SOCIOLOGIA RURAL, Ribeirão Preto (SP), 24 a 27 dejulho de 2005.

ZYLBERSTAJN, D. Papel dos contratos na coordenação agro-industrial: um olharalém dos mercados. Revista de Economia e Sociologia Rural, v. 43, n. 1, p. 386-420, jul./set. 2005.

GERVÁSIO CASTRO DE REZENDE é pesquisador associado do IPEA e pro-fessor visitante da UERJ. O autor tem recebido apoio de pesquisa do CNPq edo projeto BASIS/CRSP/Universidade de Wisconsin/Universidade de Califór-nia-Riverside. Este último projeto é apoiado pela USAID e coordenado porSteven Helfand.

PAULO TAFNER é pesquisador do IPEA e professor da Universidade CândidoMendes.

Page 105: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

“A Polícia que queremos”: desafios para a reforma da Polícia Militar

do Estado do Rio de Janeiro.

HAY D É E C A R U S O

LU C I A N E PAT R Í C I O

EL I Z A B E T E R . AL B E R N A Z

APRESENTAÇÃO

A derrocada dos regimes autoritários na América Latina, instaurados emum contexto de polarização continental suscitado pela Guerra Fria, deu

início a uma longa e complicada jornada de transição democrática. As orga-nizações policiais, enquanto instrumentos historicamente privilegiados deenraizamento do princípio da autoridade e de consolidação dos chamadosestados modernos (MUNIZ, 2002), receberam especial atenção nos diversosprocessos de institucionalização desta nova ordem política.

Voltadas para a proteção dos interesses do Estado, operando lógicas alta-mente militaristas, de ênfase repressiva e autoritária, estas agências policiaisvêm-se então progressivamente expostas a demandas e problemas oriundos deuma nova e complexa configuração social. Devido ao seu papel central naação política, as polícias são organismos públicos altamente sensíveis a estestipos de dinâmicas de mudanças histórico-sociais e rearranjos estatais(MUNIZ, 2002). O contato diário destas agências com os anseios e expecta-tivas da população tende a acentuar o processo, evidenciando os contrastesentre o aparato de controle social totalitário e a busca pela universalização dosdireitos individuais e coletivos (MUNIZ, 2001).

Page 106: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Longe de estarem consolidados, porém em diferentes estágios de matu-ração, os diversos processos de transição democrática das polícias latino-ame-ricanas são fortemente marcados por algumas características comuns.Partindo de um nível seguro de generalização, as demandas em torno da pro-fissionalização dos agentes, da redução dos níveis de violência na ação poli-cial, de uma maior participação da comunidade, do incremento da eficiênciaem lidar com as dinâmicas criminais e a busca de modelos flexíveis e descen-tralizados de gestão podem ser identificadas como as grandes linhas de trans-formação regional (FRUHLING, 2003).

No Brasil, a abertura política e a promulgação da Constituição de 1988inauguram uma mudança de paradigmas no que se refere ao provimentopúblico de segurança. Historicamente vinculadas aos segmentos militares,atuando como forças auxiliares ao exército, as polícias brasileiras tiveramum papel central no suporte a atividades de inteligência, na repressão a dis-túrbios civis e na segurança de pontos estratégicos, sob a perspectiva da cha-mada “doutrina de segurança nacional”. Visando a manutenção da sobera-nia do Estado brasileiro frente à “ameaça comunista” e a “subversão”, asagências policiais encontravam-se, em muitos sentidos, afastadas da popu-lação, cuja relação era fortemente marcada pela violência e desconfiança sis-temática (MUNIZ, 2001).

A carta constitucional de 1988, como marco do processo de transiçãodemocrática brasileira, transportou o eixo de atuação das polícias da manu-tenção da chamada segurança interna, pautada em um modelo de ordempública harmônico, cujo foco era a supressão dos conflitos e a formação deconsensos, para o provimento de segurança pública. Pressupondo um novoarranjo social, onde os conflitos e jogos de interesses constituem a dinâmicapor excelência de uma ordem social democrática, o foco na segurança públi-ca implica o incremento de meios comedidos de força para a negociação dasocialidade nos espaços públicos, o reforço de canais de participação comuni-tária enquanto instrumentos de planejamento, controle social e legitimidadedas ações policiais (Kant de Lima, 1995)

Frente às pressões, internas e externas, para a reestruturação de seusmodelos de atuação, diversas agências policiais por todo o país iniciaramprocessos de reformulação estrutural nas últimas décadas. Partindo dediferentes focos como a qualificação dos agentes, estratégias de planeja-mento e avaliação do policiamento, valorização profissional e criação decanais de interlocução comunitária, as polícias brasileiras vêm progressi-vamente buscando se ajustar às demandas democráticas por ampliação da

Page 107: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

cidadania1. O ritmo da mudança é marcado por avanços e retrocessos. Osjogos e disputas de poder entre segmentos internos às agências policiais,bem como os reveses da política nacional, ora constituem grandes obstá-culos, ora forças catalisadoras deste processo.

Guardadas as devidas especificidades históricas de cada país, esta con-dição compartilhada de transição política, institucional e cultural caracterizao contexto em que germinaram diversas iniciativas e modalidades de reformasconduzidas na América Latina. As disputas em torno da multiplicidade de sig-nificados envolvidos na experiência democrática, onde, dentre elas, figura ossentidos de atuação das agências policiais, impulsionaram e continuam aimpulsionar o acúmulo de reflexões teóricas sobre esta temática.

Com o objetivo de somar em termos de elementos empíricos para asdiscussões sobre a reestruturação organizacional das polícias no Brasil e naAmérica Latina, o relato que segue se propõe iluminar preliminarmente osobstáculos e lições vivenciadas na co-produção de um processo de reforma.A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) e o Viva Rio,ONG carioca dedicada à pesquisa e intervenção na área de segurançapública, tornaram-se parceiros nesta iniciativa, cujos desdobramentosainda estão sendo explorados.

Baseado na perspectiva de participação do Viva Rio no projeto “Desen-volvimento Institucional da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro” 2, o pre-sente artigo propõe algumas linhas de atuação para os processos de reformade instituições policiais, partindo de três princípios estruturantes: 1) a con-dução do processo precisa ser incorporada, enquanto responsabilidade e valor,pelos gestores e demais membros da corporação policial, representando osanseios e expectativas dos segmentos internos; 2) qualquer plano de reformaprecisa encontrar pontos focais sobre os quais articulem-se diversas proble-máticas diagnosticadas, desencadeando desdobramentos indiretos sobre todo

a po

lícia

que

que

rem

os

1. Vide exemplos: Projeto “Integração e Gestão da Segurança Pública” (IGESP), desenvol-vido pelo Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública (CRISP-UFMG);Formação Integrada de Policiais Militares e Policiais Civis da Polícia Militar do Estado dePernambuco (PMPE), da Polícia Militar do Estado do Paraná (PMPR) e da PolíciaMilitar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), através do Curso de Políticas Públicas emJustiça Criminal e Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF); inicia-tivas de interlocução comunitária como os Grupamentos de Policiamento em ÁreasEspeciais (GPAE-PMERJ), os Grupo Especializado de Atuação em Áreas de Risco(GPAR-PMMG); iniciativas de valorização policial como o “Premio Policia Cidadã”, rea-lizado pelo Instituto Sou da Paz.

2. Projeto financiado pela Fundação Konrad Adenauer no período de 2005/2006.

Page 108: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

o sistema policial; 3) a ampla participação da sociedade civil é crucial para darlegitimidade ao processo, influindo em sua condução e participando ativa-mente na definição das propostas.

Para uma melhor leitura desta experiência, com o intuito de apresentaras principais lições e obstáculos vivenciados, a primeira parte deste artigo pre-tende situar o público em relação ao histórico e a metodologia empregadapara a realização do diagnóstico institucional da PMERJ. Em seguida, par-tindo dos desdobramentos do “Seminário A Polícia que Queremos”, serãoapresentadas as principais propostas de reforma para a corporação, onde sebusca estabelecer alguns paralelos entre estes resultados e as grandes linhas dapolítica nacional, previstas no Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP).

RELATOS DE UMA EXPERIÊNCIA: CONSTRUINDO O DIAGNÓSTICO INSTITUCIONAL DA PMERJ

E m meados de 2004, o Conselho Diretor do Viva Rio3 propôs que a equi-pe de pesquisadores da instituição elaborasse um estudo sobre a situação

da segurança pública no Estado do Rio de Janeiro, onde deveriam constarpropostas que pudessem servir de subsídios para o debate eleitoral ao Governodo Estado em 2006.

O principal desafio estava em escolher por onde começar, tendo em vistaa impossibilidade de estudar, em tão curto espaço de tempo, todas as insti-tuições que compõem o sistema de segurança pública e justiça criminal.

A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) apareceu comoa melhor opção para dar o primeiro passo; principalmente pelo fato de ser ainstituição pública de maior capilaridade no Estado, visualmente identifica-da, porém pouco estudada e compreendida4. Outro fator relevante foi a pró-pria experiência pregressa de cooperação entre o Viva Rio e a PM, através dosdiversos trabalhos desenvolvidos em parceria ao longo dos últimos anos, faci-litando o diálogo necessário para realização deste tipo de empreendimento.

Inicialmente, foram organizadas reuniões de trabalho onde técnicos doViva Rio, representantes de seu Conselho Diretor e policiais militares deba-tiam os problemas enfrentados pela PMERJ, sempre partindo de uma agen-

3. O Conselho Diretor é constituído por integrantes de diversos segmentos representativosda sociedade fluminense, tais como: empresários, acadêmicos, jornalistas, liderançascomunitárias, esportistas, artistas entre outros.

4. A PMERJ possui 37502 policiais na ativa e 23 mil inativos. Fonte: PMERJ/PM1-2006

Page 109: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

da de temas definida pelos próprios policiais e equipe Viva Rio5. Em parale-lo, o Comando da Corporação também estava organizando um grupo de tra-balho, que tinha por objetivo apresentar insumos para a constituição de umnovo Plano Diretor, estruturado em propostas de curto, médio e longo prazo.

O desafio estava em unir esforços em prol de um grupo misto de traba-lho, visando assim, otimizar tempo e recursos. Esta proposta foi levada aocomando da corporação e prontamente aceita6, fazendo com que as reuniõesfossem unificadas e transferidas para o Quartel General da PMERJ.

Assim, o primeiro grande obstáculo ao processo havia sido superado. Erapreciso discutir a realidade da PMERJ com os seus próprios integrantes, nointerior de sua instituição. Romper com os pré-conceitos de ambos os lados econstruir um ambiente que propiciasse uma escuta ativa, capaz de permitiraos PMs falar abertamente de seus dilemas, resistências e desafios e, em con-trapartida, admitir que a equipe do Viva Rio fizesse ponderações sem medode sofrer constrangimentos, mostrou-se crucial.

Como documentos referenciais para o início do processo, optou-se porrecuperar o que a PM já havia produzido em prol de uma agenda demudanças institucionais. A surpresa foi constatar que, ao longo de sua histó-ria, o único Plano Diretor encontrado datava de 1984. Foi produzido sob aorientação e comando do Coronel Carlos Magno Nazaré Cerqueira, cujo con-teúdo, entretanto, nunca foi implementado.

Impressionou a todos os envolvidos no processo, policiais ou civis, a quali-dade do documento e a atualidade de suas propostas. Entretanto, ficava tambémpatente um grande desconhecimento da própria corporação em relação ao PlanoDiretor de 84. Somente um pequeno grupo de oficiais conhecia-o em profundi-dade, tendo em vista ter, de alguma maneira, participado de sua construção.

Aqueles que, sob Comando do Coronel Cerqueira, eram tenentes ecapitães hoje estão nos postos mais altos da carreira policial militar e, como sequisessem retomar o tempo perdido, propuseram ao Viva Rio a atualização doPlano Diretor da PMERJ. Todavia, passados tantos anos da primeira edição,verificou-se a concreta necessidade de primeiro elaborar um profundo diag-nóstico, que permitisse sustentar qualquer proposta de mudança.

a po

lícia

que

que

rem

os

5. As reuniões ocorreram na Assessoria de Planejamento, Organização e Modernização –APOM sob a coordenação logística do chefe deste setor e coordenação operacional doCEL PM Ubiratan Ângelo, atual Diretor de Ensino e Instrução da corporação.

6. Foi publicada a criação do Grupo de Trabalho em Boletim Interno da PMERJ, principalinstrumento de comunicação da Instituição.

Page 110: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

É importante relembrar quem foi Carlos Magno Nazaré Cerqueira: oprimeiro comandante de carreira policial militar a comandar a instituição,rompendo com 175 anos de história onde Generais e Coronéis do Exércitoexerciam o alto comando da Corporação. Cerqueira foi também o primeiropolicial negro a assumir tal posto. Sua trajetória profissional chama atençãopor seu amplo interesse em dialogar com o mundo acadêmico e com a socie-dade civil organizada, rompendo barreiras e propondo um diálogo entre uni-versos tradicionalmente distantes e antagônicos.

Em sua gestão, a Polícia Militar publicou seus principais documentos dereferência, utilizados até os dias atuais, mesmo datados de antes da promul-gação da Constituição de 1988. Como exemplo, destaca-se o Manual Básicodo Policial Militar, publicado em 1987 e até a presente data sem atualização.Sua preocupação em elaborar estudos que gerassem publicações extrapolou oambiente intramuros dos quartéis e ganhou o mundo acadêmico com aColeção Polícia Amanhã, elaborada pelo Instituto Carioca de Criminologiacom apoio da Fundação Ford7.

Diante do objetivo preliminar de elaborar um amplo diagnóstico institu-cional da PMERJ foi definida a metodologia de trabalho, que previu encon-tros semanais com os responsáveis pelas políticas setoriais da corporação. Emcada encontro o roteiro proposto focava: a) apresentação do cenário atual, b)problemas enfrentados e c) propostas de melhoria para o seu setor.

Ao longo do processo de consulta mostrou-se necessário ampliar o focoda pesquisa, partindo para a realização de entrevistas em profundidade comatores-chave dentro e fora da corporação e grupos focais, a fim de contemplartambém a perspectiva das praças8 e dos profissionais de saúde9.

Os dados produzidos pelo diagnóstico foram analisados pela equipe téc-nica do Viva Rio à luz de um amplo levantamento bibliográfico sobre o quehoje existe em termos de estudos, nacionais e internacionais, de reformas ins-titucionais de polícia. Foram consultados também os documentos oficiais daPMERJ e demais Polícias Militares do país.

7. Destaca-se nesta coleção o último volume, publicado após a morte do Cel Cerqueira, eintitulado: “O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia”. Esta obra encerra pre-maturamente a carreira de um dos mais respeitáveis oficiais de Polícia Militar no Brasil.

8. As praças da PMERJ (soldados, cabos e sargentos) correspondem a 93% do efetivo dacorporação. Fonte: PM1/PMERJ-2005.

9. Foram consultados policiais médicos e também profissionais civis que atuam na área desaúde.

Page 111: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Todo este material foi consolidado no documento “DiagnósticoInstitucional da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro”, estruturado emtrês grandes eixos temáticos: 1) A PMERJ e o Estado 2) A PMERJ e aCorporação; 3) A PMERJ e a Sociedade. Este documento foi entregue aoComando Geral da corporação em dezembro de 2005.

A partir da consolidação destas informações, o grande desafio estava emconstruir propostas que dialogassem com a realidade institucional delineadapelo diagnóstico. Na perspectiva de quem atuou na sistematização das infor-mações, este seria o principal desafio que a PMERJ iria enfrentar. Isto porque,ao longo de todo o processo de consulta, os atores acionados apresentavamcom clareza os problemas enfrentados, todavia, no momento da proposiçãode alternativas para solucionar tais problemas, havia enorme dificuldade emconstruir concretamente uma ação. Tal fato foi constatado tanto no círculo deoficiais quanto no círculo das praças.

Outras resistências foram constatadas e devem aqui ser pontuadas. Emmuitos momentos a alta rotatividade dos cargos de chefia atrapalhou a con-dução das atividades. A principal razão, dada a grande movimentação depoliciais entre as diretorias e setores da corporação, era a lacuna de conheci-mento mais aprofundado sobre a área investigada, prejudicando o mapea-mento setorial.

A realização de um diagnóstico desta magnitude, numa instituição delarga escala como a PMERJ, pressupõe a adesão de seus atores, fato que, poralgumas vezes, não ocorreu, exigindo esforços redobrados de convencimentosobre a relevância do processo.

Outro aspecto que por vezes dificultou o trabalho refere-se à falta deinformações sistematizadas e centralizadas. Cada setor produz diversos tiposde dados não sistematizados e, portanto, incapazes de gerar informações úteispara tomada de decisão. Esta dificuldade foi sentida com maior força quandoo Viva Rio propôs um estudo complementar ao diagnóstico institucional quefocasse a saúde do policial militar, em especial, as causas geradoras de altosíndices de policiais militares mortos e feridos em folga ou em serviço. Nestecaso, parte das informações necessárias estava armazenada no setor de pesso-al, outra parte no setor de saúde e ambos não dialogavam em prol da siste-matização de tais informações.

A atuação de uma organização não governamental como facilitadora doprocesso de coleta de informações também não foi algo trivial. Muitasresistências e desconfianças surgiram, traduzindo-se em dificuldades em con-versar com determinados setores, ou melhor, com determinados atores que

a po

lícia

que

que

rem

os

Page 112: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

relutavam em “expor a corporação” para uma entidade que, aos olhos dealguns, defendia exclusivamente os “direitos humanos dos bandidos” ou quena arena pública “só se colocava contra a PMERJ, fazendo críticas ecobranças”.

Obviamente, a construção da legitimidade do Viva Rio na facilitaçãodeste processo ocorreu de modo gradual, mas não consensual. Todavia,importantes passos foram dados, resultando no diálogo com setores até entãodistantes. A opção institucional do Viva Rio foi contribuir com a sistemati-zação e redação do documento, a partir do que os integrantes da corporaçãoidentificavam como relevante. Tal escolha visava construir consenso sobre oque seria escrito e garantir que todos os consultados se sentissem co-produ-tores deste investimento. Logo, a definição deste lugar para o Viva Rio emmuito facilitou a aceitação deste trabalho, fazendo com que todos assumis-sem o diagnóstico como produto da PMERJ e não de uma organização defora da corporação.

O diagnóstico institucional foi entregue oficialmente em dezembro de2005 e, passados alguns meses sem maiores desdobramentos desta ação, eisque a PMERJ traz à tona a discussão em torno das mudanças institucionais,propondo que fosse criada uma comissão interna intitulada “A Polícia quequeremos”. Esta comissão seria responsável por conduzir consultas junto aopúblico interno e externo para coletar propostas de mudança com base nodiagnóstico previamente realizado. Posteriormente, como desdobramento dasatividades desta comissão, foi realizado um seminário, onde as propostas apre-sentadas foram discutidas e sistematizadas.

Eis o passo desafiador dado pela PMERJ, fato sem precedente na histó-ria das polícias brasileiras e que será objeto de nosso próximo assunto.

O SEMINÁRIO “A POLÍCIA QUE QUEREMOS” E POSSÍVEIS CAMINHOS NA ÁREA DE SEGURANÇA PÚBLICA.

O evento

Como foi visto anteriormente, ainda que a proposta inicial do ProjetoDesenvolvimento Institucional da PMERJ enfocasse a elaboração de um PlanoDiretor para a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, documento esteque serviria como base para pensar e projetar a instituição num espaço deaproximadamente 10 anos, o que será possível perceber é que esta experiên-cia trouxe outros desdobramentos.

Page 113: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Assim, diante dos resultados dos grupos de trabalho que foram consti-tuídos no seminário “A Polícia que Queremos”, é possível perceber analogiase traçar paralelos entre o que os policiais militares e a população carioca estãovislumbrando para a modernização de sua polícia e o que tem sido discutidoem âmbito federal nesta matéria. Além de pensar cada setor estratégico dapolícia militar, a partir do debate em torno dos 10 eixos apresentados10, ametodologia proposta no evento pôde evidenciar que, para desencadear umprocesso de modernização é preciso levar em consideração, não apenas aspec-tos estritamente comuns ao universo policial, mas sua relação com as demaisáreas e órgãos diretamente interessados na promoção da segurança pública.

O Seminário “A Polícia que Queremos! Compartilhando a Visão eConstruindo o Futuro!” foi realizado pela Polícia Militar nos dias 18, 19 e 20de julho de 2006. A metodologia foi dividida em três momentos: o primeirocontou com a participação de todos os círculos hierárquicos da PMERJ, atra-vés da coleta de dados (sugestões) em todas as unidades da Polícia Militar. Osegundo, realizado paralelamente, contou com a participação da sociedadecivil, tanto através da realização de reuniões com grupos representativos,como da coleta de sugestões através de um formulário eletrônico11, ondequalquer pessoa pôde enviar sugestões dentre os 10 eixos apresentados. E,finalmente, o terceiro momento, construído no seminário, onde os grupostemáticos (formados tanto por integrantes da PMERJ como por representan-tes da sociedade civil) tinham como objetivo discutir os temas em torno daspropostas previamente levantadas no público interno e externo.

O documento organizado como produto do seminário reúne cerca de 300propostas. Ao final do evento, a Polícia Militar fez a entrega de seu RelatórioFinal aos candidatos ao executivo estadual do Rio de Janeiro, de modo quepudessem ter conhecimento dos anseios da instituição e da sociedade civil eplanejassem suas propostas de governo à luz dos resultados do seminário.

a po

lícia

que

que

rem

os

10. Eixo 01: Pessoal; Eixo 02: Ensino e Instrução; Eixo 03: Inteligência; Eixo 04: Operacio-nal; Eixo 05: Comunicação Social; Eixo 06: Apoio Logístico; Eixo 07: Orçamento e Fi-nanças; Eixo 08: Saúde; Eixo 09: Controle Interno; Eixo 10: Modernização Administra-tiva e Tecnológica e Eixo 11: Visão do Cliente. Vale destacar que sobre o eixo 11, aproposta era levantar junto a sociedade civil sugestões acerca de todos os eixos previamen-te elencados.

11. O endereço eletrônico para acessar o formulário é www.apoliciaquequeremos.com.br. Adivulgação do mesmo foi realizada através da confecção de spots de serviço com duraçãode 30 segundos, veiculado pela TV Globo e algumas emissoras de TV. Foram recolhidascerca de 5.000 propostas pela internet.

Page 114: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Construindo uma agenda de segurança pública para o Rio de Janeiro

O Plano Nacional de Segurança Pública do Governo Federal (PNSP),documento lançado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP)do Ministério da Justiça, dedica, dentre os pontos apresentados em seu con-teúdo, boa parte ao universo policial e especialmente à Polícia Militar.

Segundo o PNSP, um dos requisitos fundamentais para a implantaçãode um processo de cultura de paz, é a modernização das instituições policiais,cuja transformação necessariamente passa pela revisão de seus valores, de suaidentidade institucional, de sua cultura profissional e de seus padrões decomportamento.

Dentre os pontos levantados pelo Plano, direcionados especialmente aPolícia Militar, é possível destacar:

1. Qualificação do Policiamento Ostensivo;2. Reformulação dos regulamentos disciplinares;3. Diminuição dos graus hierárquicos;4. Controle rigoroso do uso da força letal (arma de fogo);5. Redução do efetivo nas funções administrativas.

Traçando um paralelo entre o PNSP, ou seja, a política propostanacionalmente no que tange a segurança pública e as propostas apresentadasno seminário, é possível perceber, em primeiro lugar, que muitas das reivin-dicações e necessidades apontadas no interior da PMERJ, de alguma formajá tinham sido indicadas no documento da SENASP. No conjunto das pro-postas que dialogam diretamente com os pontos acima apresentados, pode-se destacar:

a) Criação de equivalência dos Cursos de Formação de Praças (Soldados,Cabos e Sargentos) e dos Cursos de Formação de Oficiais a CursosTécnicos (no caso de praças) e a Curso Superior, no caso dos oficiais;

b) Imposição de rígido cumprimento de cargas horárias de cursos de for-mação, de modo a acabar com uso operacional de pessoal em formação,salvo em situações excepcionais ou em funções de estágio;

c) Criação de Núcleo de Instrução em Defesa Pessoal e Uso Comedido daForça;

d) Criação de Corpo (fixo) de Instrutores Civis e Militares, remuneradosatravés de encargos especiais;

Page 115: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

e) Valorização da filosofia e expansão do programa de policiamentocomunitário;

f ) Priorização da revisão e reformulação da legislação referente aos pro-cessos administrativos disciplinares e ao Regulamento Disciplinar daPMERJ, promovendo a compatibilização com a ordem constitucional(garantias individuais) e com os anseios sociais (pronta resposta insti-tucional);

g) Inclusão formal das entidades de classe para a discussão, na assembléialegislativa, do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar;

h) Criação de instrumentos institucionais de controle efetivo da letalidadepolicial em ocorrências que resultem em confrontos armados, sejamaqueles envolvendo a letalidade de civis ou de policiais. Para tanto, seriafundamental a criação de um banco de dados com informações precisassobre este tipo de ocorrências;

i) Necessidade de acompanhamento psicológico ex officio do PM envolvi-do em ocorrências de confronto armado com mortos e/ou feridos;

j) Criação de mecanismos de administração e controle no uso de munições,armamento e viaturas.

É interessante destacar também que muitas foram as propostas que ti-nham como objetivo criar instrumentos institucionais internos que qualifi-cassem o serviço policial. Neste aspecto, destacam-se os seguintes:

a) Criação de uma Escola de Inteligência, que assumiria toda parte educa-cional do Sistema de Inteligência da PMERJ, vinculada a Diretoria deEnsino e Instrução;

b) Descentralização das Áreas Integradas de Segurança Pública (AISPs), tor-nando-as menores, mais homogêneas, em maior número. A cada AISPdeve corresponder a área de ação de uma Companhia da PM e a cir-cunscrição de uma Delegacia de Polícia;

c) Utilização do geoprocessamento nas áreas integradas de segurança pública;d) Utilização de indicadores de avaliação quantitativos e qualitativos, que

não se restrinjam a apreensão de armas, drogas e prisões efetuadas, bus-cando incorporar outros indicadores que contemplem outras dimensõesda ação policial;

e) Integração no mesmo ambiente físico dos mecanismos de atendimentoda Polícia Militar, Civil, Rodoviária Federal, Corpo de Bombeiros Mili-tar, entre outros;

a po

lícia

que

que

rem

os

Page 116: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

f ) Criação, na PMERJ, dos Serviços de Saúde Ocupacional, Promoção daSaúde e de Epidemiologia e Estatística;

g) Criar Programa de Vigilância de Riscos, para prevenir e reduzir vitimi-zação de policiais (por causas externas – ferimentos e mortes, em serviçoou folga, intencional ou acidental e por causas internas – problemas desaúde, física ou psicológica);

h) Criação de um sistema de dados com as informações de todos os policiaisde forma acessível para todas as Unidades, visando integrar as infor-mações de diversos órgãos, hoje descentralizadas;

i) Valorização e disseminação de modalidades alternativas de resolução deconflitos, que não estejam pautadas no enfrentamento pontual e repres-sivo;

j) Lavratura de Termos Circunstanciados pela Polícia Militar, conformedetermina a Lei nº 9099/95.

Por outro lado, é importante ressaltar que muitos foram os pontos apre-sentados que evidenciam a necessidade da aproximação entre a polícia e asociedade, seja com a população no dia a dia, seja através de convênios eparcerias com centros de produção de conhecimento, como universidades einstitutos de pesquisa. Neste sentido, observa-se a:

a) Criação de uma linha de estudo na área de Inteligência, de modo afomentar uma discussão sobre Inteligência, fórum no qual participarão opúblico interno e externo;

b) Dinamização do telefone 190 e realização de campanhas educativas parao cidadão quanto ao bom uso do sistema;

c) Estabelecimento de parceria com a imprensa, de modo pró ativo;d) Reunião sistemática de especialistas e pesquisadores policiais e não poli-

ciais para elaborar indicadores de avaliação do trabalho policial;e) Realização de pesquisas de vitimização a fim de identificar a sensação de

segurança das pessoas e sua relação com a imagem da polícia;f ) Inclusão nos critérios de ascensão profissional, pontuações que valorizem

ações policiais voltadas para a promoção da cidadania e a garantia dosdireitos constitucionais;

g) Criação de uma política de segurança cidadã que deve reconhecer e res-peitar o cidadão como sujeito de direitos;

h) Fortalecer os canais de cooperação entre a polícia e a sociedade, tais comoConselhos Comunitários de Segurança;

Page 117: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

i) Inserção na prática policial a mediação de conflitos e o diálogo com acomunidade, viabilizando a sua co-participação nas políticas de segu-rança;

j) Criação de estratégias regulares de prestação de contas à sociedade;k) Envolvimento das Universidades e Centros de Pesquisa no processo de

melhoria da polícia.

E finalmente, em que pese o esforço de construir um conjunto sugestõespara a modernização policial militar, muitas foram as propostas relacionadasa questões mais amplas na agenda de segurança pública, cujo foco principalnão seria a PM, mas o sistema de uma maneira geral, evidenciando que o pro-cesso de modernização de uma instituição policial necessariamente apontarápara questões mais estruturais nesta área. São elas:

a) Criação de uma regulamentação que proíba o secretário de segurança dese candidatar a cargos políticos imediatamente após a sua saída dogoverno;

b) Realização efetiva de um trabalho integrado entre estados e municípios,de modo a investir nos problemas de ordenamento público;

c) Integração entre a Polícia Militar e a Polícia Civil.

Vale lembrar que um passo fundamental para iniciar qualquer processode mudança é a elaboração de um diagnóstico que subsidie a construção deuma política pública. Um diagnóstico que contemple informações qualifi-cadas e consistentes, que reúna dados quantitativos e qualitativos. Um bomdiagnóstico, com dados confiáveis e elaborado com rigor científico é oprimeiro passo para a concepção de uma política e, com esta, o planejamen-to das ações e a definição de metas claras e de indicadores de avaliação.

Seguindo o mesmo raciocínio e reconhecendo a importância da qualifi-cação e elaboração de uma pesquisa que indique pontos nevrálgicos na insti-tuição policial militar carioca, dentre o conjunto de propostas incluídas nodocumento final do seminário, foi definida uma Ação Preliminar, a ser exe-cutada de forma anterior a todas as demais ações, qual seja, a elaboração deum censo da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Esta iniciativa ser-virá como fonte de informação não apenas para a construção de uma novapolítica de pessoal, como também para inaugurar uma cultura de valorizaçãoe qualificação de dados, reunidos num banco de dados que reflita o universoda Polícia Militar, facilitando assim, o planejamento de suas ações.

a po

lícia

que

que

rem

os

Page 118: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FRÜHLING, Hugo. 2003. “Policía Comunitaria y Reforma Policial en AméricaLatina. ¿Cuál es el impacto?”. Serie Documentos del Centro de Estudios enSeguridad Ciudadana, Instituto de Asuntos Públicos de la Universidad de Chile.

KANT DE LIMA, Roberto. 1995. A polícia na cidade do Rio de Janeiro. Ed.Forense.

MUNIZ, Jacqueline. 2001. “A Crise de Identidade das Polícias Militares Brasileiras:dilemas e paradoxos da formação educacional”. Security and Defense StudiesReview. Vol. 1. Washington, DC.

MUNIZ, Jacqueline. 2002. “Recomendações para a Reforma Policial na AméricaLatina”.

Centro de Estudos de Segurança Cidadã – CESC, Santiago, Chile.

Diagnóstico Institucional da PMERJ. Viva Rio, 2005. (no prelo)

Plano Nacional de Segurança Pública. Secretaria Nacional de SegurançaPública/Ministério da Justiça, 2003.

Seminário “A Polícia que queremos! Compartilhando a visão e construindo o futuro”.Relatório final consolidado. PMERJ, 2006

HAYDÉE CARUSO – Doutoranda – Programa de Pós Graduação em Antropolo-gia (PPGA/UFF). Coordenadora de Projetos em Segurança Pública do Viva Rio.

LUCIANE PATRÍCIO – Doutoranda – Programa de Pós Graduação em Antropolo-gia (PPGA/UFF). Coordenadora de Projetos em Segurança Pública do Viva Rio.

ELIZABETE R. ALBERNAZ – Mestranda – Programa de Pós-Graduação em Antro-pologia Social (PPGAS-UFRJ). Pesquisadora da Área de Segurança Pública doViva Rio.

Page 119: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

A lição da crise paulista da segurança

JO S É V I C E N T E DA S I LVA F I L H O

N a manhã do dia 12 de agosto de 2006 um repórter e um auxiliar técni-co da Rede Globo de Televisão foram seqüestrados. Após a soltura de um

dos seqüestrados a emissora veiculou um vídeo gravado por criminosos comocondição para libertação do outro repórter seqüestrado. A imagem com umdiscurso de pouco mais de três minutos, lido por um mascarado, foi veicula-da após consultas da rede de televisão com organismos internacionais decomunicação e empresas de gerenciamento de risco e a despeito de orien-tações contrárias da polícia paulista que insistia na adoção de procedimentospreliminares de negociação, como a prova de vida.

Mas essa foi apenas a mais recente de outras importantes manifestaçõesda mais conhecida organização criminosa paulista, o Primeiro Comando daCapital, popularmente denominado PCC. Em maio, após remoção de 765presos selecionados entre os principais suspeitos de envolvimento em gruposcriminosos, para o presídio de segurança máxima existente na cidade dePresidente Bernardes, distante 620 quilômetros da Capital, as lideranças doPCC decidiram fazer uma demonstração de força para as autoridades tão logochegaram à nova unidade, fazendo uma grande mobilização para provocarrebeliões no maior número possível de presídios e acionar criminosos fora dasprisões para atacar policiais.

Page 120: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

A reação inesperada dos criminosos presos surpreendeu as autoridades eos policiais, pela envergadura, pela violência e pela capacidade de mobilizaçãodas ações de rua a partir das prisões. Apenas dois dias depois da transferência,no sábado, teve início um conjunto de ações criminosas sem precedentes:policiais de serviço e outros agentes públicos vinculados à segurança pública– agentes penitenciários e guardas municipais – passaram a ser atacados a tirospor criminosos, inclusive alguns em horário de folga. Dezenas de casas depoliciais também foram alvos dos ataques. Em um dia foram realizados 63atentados em 23 cidades paulistas. Na mesma ocasião as unidades prisionaisforam se rebelando uma após outra, chegando a 74 os presídios submetidospelos presos da rede estadual de 144 unidades. Em três dias foram assassina-dos 23 policiais militares e 8 policiais civis, superando os 28 que morreramem todo o ano de 2005. Foram mortos também 6 agentes penitenciários e 3guardas municipais. Alguns criminosos foram acompanhados por vândalosligados a transportes alternativos, conforme a polícia apurou, incendiandodezenas de ônibus na Capital e em algumas grandes cidades do interior,embora sem vítimas.

A intensa cobertura da imprensa, especialmente as imagens da televisão,muitas explorando um sensacionalismo inconseqüente, estimulou intensaboataria que gerou pânico coletivo na região metropolitana de quase 20milhões de habitantes. Shoppings centers, lojas, empresas, fóruns, repartiçõespúblicas, universidades e escolas começaram a fechar no final da tarde dasegunda-feira, terceiro dia dos conflitos, gerando congestionamentos inusita-dos entre as 17 e 19 horas. Às 17h30 o congestionamento em São Paulo che-gou a quase 200 quilômetros, quatro vezes maior que o normal para essehorário. Às 21 horas a emblemática e movimentadíssima esquina das aveni-das Ipiranga e São João, no centro de São Paulo, foi fotografada com umaimagem insólita: estava vazia.

A reação da polícia, após os primeiros momentos de surpresa, foi dura.Em menos de uma semana mais de 150 suspeitos foram presos e 122 forammortos pela polícia, 91 dos quais teriam ligações com os atentados dos crimi-nosos aos policiais, segundo contabilidade da Secretaria da Segurança Pública.Nas rebeliões 23 presos foram mortos pelos próprios colegas, embora nenhumpreso tenha fugido e nenhum refém sofrido lesões de gravidade. Em menosde uma semana os ataques cessaram e os presídios voltaram à relativa norma-lidade, apesar dos grandes prejuízos causados em muitas instalações.

No início de julho nova onda de ataques voltou a surpreender os poli-ciais paulistas com registro de 68 ônibus incendiados, 16 agências bancárias

Page 121: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

atacadas além de seis agentes de segurança e um civil mortos pelos bandidos.No dia sete de agosto outra onda de ataques, desta vez longe de alvos policiais,atingiu quase duas centenas de outros alvos, entre ônibus, bancos, lojas, veí-culos e a sede do Ministério Público paulista, seguindo-se a prisão de 28 sus-peitos de ligação com os ataques, além de cinco mortes em confronto.

O governo do Estado foi criticado por políticos e por amplos setores damídia por não ter aceitado a oferta do Governo Federal de recursos de inte-ligência da Polícia Federal, da Força Nacional de Segurança ou do próprioExército. As insistentes ofertas do Governo Federal insinuavam claramenteque a situação de São Paulo estaria fora de controle. Mas havia motivos paranão aceitar: a forte reação do aparato policial estadual prendeu mais de 500suspeitos de participação nos ataques, matou quase cem em confrontos e emtodas as três ondas de ataque tinha retomado o controle da situação no máxi-mo em três dias. O Governo Federal se deu conta de que quatro mil efetivosda Força Nacional, a serem arrebanhados dos estados, demorariam pelomenos 10 dias para serem organizados e apresentados em São Paulo (seriamnecessários pelos menos 30 vôos, 40 hotéis e 80 ônibus para viabilizar essaapresentação) e acabou aceitando as ponderações do Exército de que a parti-cipação dos militares federais só teria cabimento se houvesse um grau maiorde comprometimento da ordem pública, como, por exemplo, a impossibili-dade de normalizar o transporte público e a disseminação, em larga escala, deataques a alvos civis e a instituições públicas (escolas, fóruns etc).

Não se sabem as possíveis evoluções dessas manifestações criminosas. Ascoincidências das características das ações com táticas terroristas – ações sema habitual finalidade lucrativa de bandidos comuns, a constatação de quealguns setores funcionam como células estanques, os sucessivos ataques desurpresa gerando alto impacto na opinião pública, a tentativa de desmorali-zação das autoridades e agora o manifesto argumentando a justiça da moti-vação de suas ações – suscitam as mais variadas interpretações, inclusive a deque São Paulo perdeu o controle das ruas e sobre o crime organizado. É maisprovável que as facções criminosas de São Paulo não sejam tão poderosascomo muitos imaginam e que devam muito de sua força à deficiência dos sis-temas de inteligência e de investigação que não conseguiram achar os pontoscríticos para neutralizá-las. É provável também que estejam testando as possi-bilidades de incomodar as autoridades seguindo roteiro básico das cartilhasterrorismo e guerrilha urbana, utilizando a farta mão-de-obra de delinqüen-tes à solta que têm débitos a serem saldados com esses grupos criminosos. Nãose descarta também um irracional e vaidoso uso de poder por parte de lide-

a liç

ão d

a cr

ise p

aulis

ta d

a se

gura

nça

Page 122: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

ranças criminosas, sujeitando seus comparsas a riscos e mesmo comprome-tendo a continuidade de seus negócios criminosos. O fato é que essas açõesinéditas do banditismo urbano causaram forte impacto na opinião pública etrouxeram à tona a gravidade da situação da segurança pública em todo o país,impondo mudanças nos discursos políticos da campanha eleitoral.

Na verdade os seguidos e assustadores eventos de São Paulo colocaram àtona um pouco de todo o conjunto combinado de problemas da segurançapública do país, decorrente de mazelas, incompetências e omissões ao longodo tempo. A magnitude dos problemas de São Paulo e do Rio de Janeiro deveser compreendida por serem áreas de grande concentração populacional, porconstituírem os principais mercados para as várias modalidades de crime orga-nizado, pela alta concentração de presos e pela quantidade e variedade de cri-mes sofridos pela população. A crise de segurança pública, ressalvada a parti-cularidade dos ataques em São Paulo e a proporção dos fatos, é a mesma nosdemais estados, como se podem constatar nos problemas freqüentes em loca-lidades tão diferentes como Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, Pernambucoe até no Acre, com população pouco superior a meio milhão de habitantes.

1. O PARADOXO PAULISTA

Q uando se analisa superficialmente a crise de segurança ocorrida em SãoPaulo pode se ter uma impressão equivocada de que o aparato policial

perdeu o controle sobre os criminosos e a população ficou entregue às mãosdos bandidos numa espiral generalizada e crescente de violência.

Nada mais equivocado. O Estado de São Paulo está se tornando referência internacional de

sucesso na redução da violência pela significativa redução dos homicídios emquase todas as cidades. Isso não é natural num país violento como o Brasil enem seria de se esperar numa cidade gigantesca como São Paulo ou sua regiãometropolitana, uma das mais complexas do planeta. Neste momento, porexemplo, os analistas do FBI, a polícia federal americana, estão tentando com-preender os motivos para o aumento da violência nos Estados Unidos em2005, com preocupante crescimento dos homicídios em cidades importantescomo Cleveland (aumento de 38%) e Milwaukee (aumento de 40%). A cida-de de São Paulo hoje tem menos homicídios do que há vinte anos atrás ape-sar de ter crescido em quase dois milhões de habitantes: em 1986 foram regis-trados 2.864 homicídios dolosos, o total registrado em 2005 foi de 2.576 e aqueda continuou no primeiro semestre de 2006, apesar dos ataques ocorridos.

Page 123: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Desde o ano 2000 vem ocorrendo no Estado de São Paulo um período dereversão da mortalidade com taxas declinantes e contínuas, inclusive nagigantesca e problemática cidade de São Paulo, onde o índice de 31,5 mortospor cem mil habitantes de 1986 para caiu para 23,9 em 2005.

No ano de 2005 constatou-se a impressionante redução de 2.842 mor-tos em comparação com os registros de 1999 em todo o Estado de São Paulo,verificando-se queda de 48% apurada sobre os índices por 100 mil habitan-tes. Os registros de homicídios no primeiro trimestre de 2006 ainda mostramforte recuo em relação a igual período do ano passado: de 27,08% em todo oEstado e de 27,92% na complexa cidade de São Paulo.

Para ilustrar a dimensão desses números fazemos a comparação com oEstado do Rio de Janeiro, pela magnitude populacional de ambos estados esuas capitais e pela similaridade de seus problemas de segurança.

Tabela 1. Evolução de homicídios dolosos em São Paulo e Rio de Janeiro

Localidade 2004 2005 Diferença

Rio de Janeiro Estado 6.438 6.620 + 2,82 %

São Paulo Estado 8.934 7.276 - 18,55 %

Rio de Janeiro Capital 2.653 2.406 - 9,31 %

São Paulo Capital 3.404 2.576 - 24,32 %

Fontes: Secretarias de Segurança Pública dos Estados de SP e RJ

Tabela 2. Índices de mortos por 100 mil habitantes em São Paulo e Rio de Janeiro em 2005

Estado Capital

São Paulo 18,21 24,32

Rio de Janeiro 43,12 38,98

Diferença 136,79 % 60,27 %

Fontes: Secretarias de Segurança Pública dos Estados de SP e RJ

A comparação entre os dois maiores centros urbanos do Brasil mostra agrande diferença entre os resultados alcançados em São Paulo e a persistênciados altos níveis da violência no Rio de Janeiro. Observe-se que o coeficiente

a liç

ão d

a cr

ise p

aulis

ta d

a se

gura

nça

Page 124: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

por grupo de 100 mil pessoas ao ano é 136,79% maior no Estado do Rio deJaneiro e que a cidade do Rio de Janeiro teve apenas 170 mortos menos quea cidade de São Paulo, apesar de a capital paulista ter cinco milhões de habi-tantes a mais. Nos três primeiros meses de 2006 o Estado do Rio de Janeiro(população de 16 milhões) registrou 1.608 homicídios superando os 1.551 doEstado de São Paulo (população de 40 milhões).

Como foi possível a extraordinária queda dos homicídios e, ao mesmotempo, algumas das maiores manifestações de violência em São Paulo?

Examinemos esse paradoxo que é da maior relevância.

1.1 Os três segmentos do crime

De maneira simplificada pode se considerar a existência de três grandessegmentos de atividade criminosa que demandam estruturas e estratégiasdiferenciadas por parte das polícias, ainda que haja permeabilidade entreesses segmentos.

O primeiro segmento é o das agressões interpessoais, geralmente decor-rentes de carências e conflitos nas áreas mais pobres das grandes cidades. Asagressões e os homicídios são crimes típicos deste segmento. Geralmente sãodelitos praticados sem nenhuma finalidade de obtenção de ganhos, além devingança pessoal. Seus autores costumam praticar esses delitos sob influênciade frustrações contínuas e de ambientes onde a provocação costuma sercomum, como nos bares de periferia. A desordem reinante nessas áreas aban-donadas pelo poder público induz a uma estimulante sensação de impunida-de reforçada pela costumeira ineficiência da investigação policial em esclare-cer os crimes e prender os autores. A bem sucedida receita paulista para esseproblema mostrou que a eficácia da ação policial depende de algumas pro-vidências críticas como reestruturar os efetivos do policiamento ostensivo nasáreas de maior incidência e dar alta capacidade de resposta nas unidades deinvestigação da Polícia Civil. Por este aspecto a estratégia do Departamentode Homicídios é um modelo de sucesso recomendado para outros estados,com sua coordenação para todas as cidades, com o trabalho descentralizadooperando junto das delegacias de áreas críticas e com a utilização de um sis-tema básico de inteligência com informações e fotos de suspeitos e homicidas.O aumento em oito vezes na taxa de esclarecimento e prisões, no prazo decinco anos, reverteu a situação de impunidade reinante, passando a tornar-seuma preocupação entre os brigões da periferia. Este é o segmento que mais sebeneficia do complemento de medidas sociais de prevenção, como a restau-

Page 125: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

ração urbana de áreas degradadas (inclusive iluminação), controle sobre baresirregulares ou restrições sobre vendas de bebidas alcoólicas, programas decomplementação escolar e de lazer e principalmente programas qualificadospara atendimento de jovens.

Nesse segmento os investimentos, programas e ações da segurança públi-ca paulista foram extraordinariamente bem sucedidos. As evidências mostramque não foram ações pontuais de fechamento de bares em uma dúzia e meiade municípios, nem programas de inclusão social e mobilizações comunitáriaspresentes em muitas localidades brasileiras que estão longe de reverter seusíndices de violência. Nem poderia se atribuir esse resultado à edição doEstatuto do Desarmamento em dezembro de 2003 e à grande adesão da popu-lação na campanha de entrega de armas, o que também beneficiaria o Rio deJaneiro e os demais estados. O cruzamento de cálculos feito pela Coordenado-ria de Análise e Planejamento da Secretaria da Segurança estima que o impac-to do desarmamento não supere os 5 % no coeficiente de redução.

A redução generalizada da violência no Estado de São Paulo, principal-mente no crime mais grave de perda da vida, na verdade aponta para umadireção comum, o crescimento no investimento do aparato de segurançapública e o direcionamento eficiente dos recursos. Em estudo da Unescosobre a queda da violência em São Paulo observa-se a evolução significativados recursos orçamentários das Secretarias da Segurança Pública e da Admi-nistração Penitenciária:

Tabela 3. Orçamento com a segurança pública em São Paulo: 1998-2004 (Reais)

Ano Sec. Seg. Pública Sec. Adm. Penitenciária Total

1998 2.209.301.451,00 456.318.681,46 2.665.620.132,46

2001 4.148.987.391,00 731.578.828,43 4.880.566.219,43

2004 5.556.169.590,00 816.220.391,88 6.372.389.982,88

Fonte: Relatório da Unesco (2005) na publicação Mapa da Violência de São Paulo

O investimento não se limitou ao aumento orçamentário que no ano de2006 chegou próximo dos oito bilhões de reais. Com os recursos financeiroso Estado de São Paulo direcionou medidas racionais para dar mais capacida-de de resposta tanto ao seu aparato policial como abrigar o crescente númerode presos. Dentre essas medidas destacamos as mais críticas:

a liç

ão d

a cr

ise p

aulis

ta d

a se

gura

nça

Page 126: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

1. Nos últimos cinco anos a atividade operacional das polícias resultouem 467.106 prisões e na apreensão de 184.220 armas com esses presos.O crescimento de presos no sistema penitenciário foi de 139% entre1995 e 2004. Além disso, a polícia restringiu fortemente o registro denovas armas, caindo de 31 mil em 1995 para seis mil em 2003, umaredução de 80%.

2. Aumento dos efetivos policiais: a PM chegou em 2005 a 90.751 poli-ciais militares e a Polícia Civil a 32.869 policiais. Os efetivos policiaisforam ainda beneficiados com a criação de uma guarda penitenciáriaque liberou mais de quatro mil policiais militares que faziam o serviçode segurança nas unidades prisionais, além da liberação de policiais emserviços burocráticos com a criação de soldados temporários para ser-viços internos.1

3. Aumento do período de formação policial: um soldado da PM passa porum período de 12 meses de academia, um dos mais longos do mundo.

4. Ao longo dos últimos quatro anos os efetivos policiais foram reajustadospara adequação às áreas mais problemáticas, consertando-se irracionali-dades da distribuição anterior.

5. O sistema penitenciário implantou, entre 1995 e 2005, quase quatrovezes mais vagas que as criadas nos últimos 50 anos (68.860), além deprisões de segurança máxima para presos perigosos e líderes de gruposcriminosos. Apesar de abrigar mais de 130.000 presos – quase a metadeda população carcerária do país – a eficiente gestão do sistema é consi-derada de melhor qualidade que as dos estados com menor número depresos e só no último ano passou a ter problemas de motins com o pro-gressivo aumento de presos e das atividades das lideranças criminosasdentro do sistema.

6. O disque-denúncia, órgão de parceria de empresários e governo, tevedesenvolvimento maior que o esperado e chega a atender quase duas milligações por dia, dentre as quais são registradas cerca de 400 denúncias.Em decorrência dessas denúncias foram registradas entre os anos de 2000e 2004 a prisão de 2.236 criminosos procurados pela Justiça e a reali-zação de 9.420 prisões em flagrante.

1. Não se afirma aqui que a quantidade de policiais possa ser fundamental. As polícias doDistrito Federal são proporcionalmente três vezes maiores que as de São Paulo e noentanto os resultados criminais são tão desfavoráveis que o governo tornou secreta a esta-tística de crimes.

Page 127: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

7. A partir de 2001 o Departamento de Homicídios foi reestruturado commais de 700 policiais, desenvolveu uma estrutura descentralizada paraatender áreas críticas em cooperação com as delegacias locais e criou umsistema próprio de inteligência com mais de 20 mil fotos de homicidas esuspeitos de homicídio para facilitar a identificação e prisão de homici-das, principalmente dos matadores de periferia que foram sendo presoscom prioridade. As chacinas tão comuns nas periferias há cinco anos(foram 53 casos no ano 2000) caíram drasticamente (22 casos em 2004)pela eficiência da investigação que chegou a taxas de 82% de esclareci-mento desses casos. O resultado foi o aumento de 770% no número dehomicidas presos entre 2000 e 2001, resultando em 13.000 pessoas cum-prindo pena por homicídio. As estratégias bem sucedidas doDepartamento de Homicídios foram disseminadas para toda a regiãometropolitana e para as principais cidades do interior, ajudando signifi-cativamente a redução da sensação de impunidade, com sensíveis efeitospreventivos.

Esse conjunto de ações teve forte impacto preventivo e mostrou efeitomais acentuado nos municípios que adotaram programas sociais de prevençãoe colaboraram mais estreitamente com a segurança local. O exemplo paulistamostrou a possibilidade de redução significativa dos homicídios com a com-binação de presença acentuada do policiamento ostensivo nas áreas críticas deincidência desse crime com estrutura competente de repressão aos homicidaspela investigação da Polícia Civil e, num plano secundário, a colaboração dasautoridades municipais e organizações comunitárias.

O segundo segmento abrange a criminalidade esparsa que se distribuipelas ruas das grandes cidades. Constitui a grande preocupação da sociedadecom a questão da violência, pela alta incidência e pela proximidade que temcom as pessoas. Enquanto numa grande cidade como São Paulo ocorrem emmédia 6 homicídios por dia, a quantidade de roubos é estimada em 800 a1.000 casos diários (aproximadamente duas a três vezes a quantidade de regis-tros, uma vez que apenas parte dos casos costuma ser registrada na polícia).Esses roubos somados aos casos de furtos são os principais fatores na formaçãoda sensação de insegurança da população, ao lado da exploração sensaciona-lista de fatos isolados de grande violência. São praticados geralmente por indi-víduos ou pequenos grupos que costumam entrar precocemente para a ativi-dade criminosa e se aproveitam das oportunidades existentes nas grandescidades para atacar os alvos – pessoas ou objetos – disponíveis. Essa categoria

a liç

ão d

a cr

ise p

aulis

ta d

a se

gura

nça

Page 128: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

de criminosos oportunistas é porta de entrada do crime para a maioria dosinfratores da lei – inclusive crianças e adolescentes – onde exercitam a ousa-dia e aprendem técnicas essenciais da prática criminosa, podendo daí ser sele-cionados para estruturas de crime organizado. Esse é o segmento dos crimi-nosos repetitivos quanto às maneiras e locais de ação, o que os tornarelativamente previsíveis através de mapas de incidência criminal e de proce-dimentos elementares de inteligência.

A prevenção e programas de redução desses crimes dependem sobre-maneira da chamada polícia territorial sediada em delegacias e destacamen-tos da polícia militar. Os instrumentos básicos desse controle criminal são autilização cotidiana de bancos de dados para identificar os perfis dos prin-cipais tipos de crime, quanto ao local, dias e horário de incidência, e o pla-nejamento constante e direcionado das ações da polícia para os focos deproblemas. É o segmento que mais ressente o obsoletismo do modelo bra-sileiro de organização policial, por depender de refinada sintonia entre opoliciamento ostensivo e as unidades de investigação, o que é praticamenteimpossível quando essas atividades pertencem a organizações policiais tãodistintas. As dificuldades do aparato policial paulista são similares às dosdemais estados, apesar de significativos avanços na organização territorialcompartilhada e na tecnologia de informação aplicada ao dia-a-dia das ope-rações policiais. Em nenhum estado, nem mesmo no Distrito Federal comuma das maiores polícias do mundo (um policial para cada 100 habitantes,para uma média nacional de um para 320), o controle da criminalidade dasruas chega a ser satisfatório devido a esse problema estrutural que poucodepende de decisão ou gestão das unidades federativas. Claro que não esta-mos falando da maioria das pequenas cidades, onde o controle das infraçõessociais e criminais é mais exercido por fatores sociais, o que favorece a açãodas polícias. É praticamente impossível ganhos significativos do controledos crimes desse segmento com a estrutura de duas polícias, sendo necessá-ria a mudança do modelo atual para uma polícia única, o que depende dealteração constitucional.

No caso de São Paulo foram adotadas três importantes iniciativas paramelhorar a gestão da polícia territorial:

1. As regiões do Estado e as grandes cidades, começando pela Capital,foram divididas em áreas compartilhadas por unidades correspondentesda PM e da Polícia Civil, com a definição de responsabilidades conjun-tas para cada divisão territorial.

Page 129: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

2. Cada área com seus dois chefes, um da PM e um da Polícia Civil, passoua constituir um foco de cobrança de resultados que resultou em signifi-cativa melhoria de desempenho.

3. Foi implantado um sistema inteligente e compartilhado de banco dedados policiais atualizado a cada registro nas delegacias, denominadoInfocrim, que permite aos policiais o ajuste instantâneo de estratégias deprevenção graças à facilidade de identificação das áreas críticas deincidência de comportamentos criminosos específicos.

Os resultados nesse segmento de atividade criminal foram positivos napolícia paulista, mas longe do desempenho na redução dos homicídios. Osfurtos e roubos de veículos caíram 23% de 1999 a 2005 e os roubos em geralforam reduzidos em modestos 5%.

Esta é a área cujos resultados dependem sobremaneira da integração daspolícias civil e militar, um delírio dos planejadores que prometem sempreuma integração que nunca ocorre. No modelo brasileiro será sempre um desa-fio por requerer de duas corporações extremamente diferenciadas – até emsalários, na maioria dos estados – uma afinação cotidiana no diagnóstico,implantação e comando das ações, além de correções de estratégias, semprefeitas com bases nas críticas de planejamento e procedimentos..

Pode-se continuar tentando, mas serão sempre frustrados os esforços e oscustos para uma competente integração das polícias civil e militar na funda-mental gestão de controle territorial da segurança pública.

O terceiro segmento abrange as variadas modalidades do crime organi-zado que sofrem impacto ocasional do policiamento preventivo ou reativo.Se no segmento anterior a redução das oportunidades pelo direcionamentointeligente e oportuno das ações policiais pode afetar significativamente osíndices criminais, nas ações criminosas de grupos organizados as oportuni-dades são construídas pelos delinqüentes e o controle depende prioritaria-mente das atividades de investigação – para esclarecer os crimes ocorridos– e inteligência – para identificar pessoas relevantes, bem como as estrutu-ras, logística e planos das organizações criminosas. Infelizmente os sistemasde inteligência criminal são incipientes no Brasil e costumam ter sua eficá-cia comprometida pela falta ou deficiência em vários fatores: na mentali-dade de inteligência e de modelos de organização, nos investimentos emestruturas e sistemas (inclusive em softwares específicos e sistemas moder-nos de escuta telefônica), na cooperação entre as várias agências que lidamcom o problema (por exemplo, entre as várias delegacias especializadas, en-

a liç

ão d

a cr

ise p

aulis

ta d

a se

gura

nça

Page 130: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

tre os órgãos de inteligência da PM e da Polícia Civil, falta de cooperaçãocom os órgãos especializados da Polícia Federal e do Ministério Público),na integração dos diversos bancos de dados, nos instrumentos avançadosde perícia e, principalmente, no pessoal com treinamento avançado paraanálise de inteligência. Outro problema crítico que afeta a ação sobre ocrime organizado é a corrupção policial, uma vez que o crime organizadolida com valores elevados de ganho criminoso e tem na cooptação de agen-tes públicos importante instrumento para a proteção e continuidade desuas atividades. Outra questão que ficou evidente com a crise paulista foia subestimação da Polícia Civil em relação à importância das lideranças degrupos criminosos, mesmo presos, em função de facilidades de comuni-cação com seus comparsas dentro e fora dos presídios. As delegacias espe-cializadas das polícias estaduais e mesmo da Polícia Federal não estão con-seguindo ganhos significativos na redução e no controle das principaismanifestações do crime organizado (tráfico de entorpecentes, contrabando,pirataria, roubos de cargas, roubos e furtos de veículos, roubos de carros-fortes etc) porque sua capacitação em investigação é precária e não desen-volveram instrumentos e capacidade para lidar com sistemas criminososmais complexos, limitando suas atividades de inteligência a manifestaçõespontuais de quadrilhas criminosas.

O crime organizado, como prática planejada e coordenada de um grupode pessoas associadas para a realização de crime – sejam fraudes na adminis-tração pública ou tráfico de entorpecentes – tem recebido pouco mais queações pontuais das agências policiais. A Polícia Federal tem priorizado arepressão de crimes contra a administração pública e pouco esforço é dire-cionado às modalidades que envolvem crimes com prática de violência. Asexuberantes ações das facções criminosas do Rio de Janeiro, com interminá-veis e violentos confrontos entre facções adversárias ou entre elas e a polícia,evidencia uma das tantas e clamorosas deficiências dos sistemas de inteligên-cia das forças de segurança. Ali ainda falta o direcionamento de ações daPolícia Federal para golpear a logística do tráfico de entorpecentes e do con-trabando de armas de guerra que municiam fortemente os criminosos e pos-sibilitam que dominem vastos territórios, onde o Estado só entra atirando oupedindo permissão. Embora tenha uma sub-secretaria de inteligência, o tra-balho é fortemente burocratizado e não consegue – como não conseguemtodas as demais polícias – articular os vários bancos de dados criminais daspolícias civil e militar e complementar informações através de eficientes bus-cas de campo.

Page 131: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

No caso de São Paulo ocorreram diferenças significativas na estruturaçãodas ações criminosas. É notória a existência de diferentes grupos de criminososorganizados para a prática relativamente especializada de alguns crimes comotráfico de entorpecentes, roubos e furtos de veículos, roubos de cargas, contra-bando, produtos falsificados ou produzidos sem licença (pirataria), jogos ile-gais, prostituição etc. Muitos desses grupos disputam o mesmo segmento eocorrem conflitos. Entretanto, no âmbito paulista ocorreu um fenômeno inu-sitado: participantes dos mais diferentes grupos foram se associando, desde1993, numa organização comum, à maneira de um sindicato do crime, aondesão carreadas contribuições mensais para um fundo que custeia proteção nospresídios, pagamento de advogados, eventuais socorros financeiros a familiarese investimentos (dinheiro, armas, “mão-de-obra”) em ações criminosas, princi-palmente no tráfico de entorpecentes que chega a render cerca de dois milhõesde reais por mês, segundo uma das principais lideranças dessa cooperativa.Parte dos primeiros líderes que impunha a organização pela força foi sendo eli-minada ou afastada e a racionalidade organizacional mais discreta foi ganhan-do adeptos, chegando a estimados seis mil os membros ativos da “entidade”criminosa, embora algumas autoridades da polícia paulista admitam o absur-do de que essa organização criminosa teria controle sobre mais de 100 mil pre-sos (ressalte-se que durante a mega rebelião 70 unidades prisionais não aderi-ram ao motim). É cada vez mais evidente que a extensão dos motins nospresídios e que os mais de 300 ataques desferidos tiveram muita adesãoespontânea de criminosos, fora de um suposto poder de coordenação.

O crescimento e fortalecimento dessa organização criminosa foram favo-recidos por um conjunto de fatores:

• a polícia subestimou o agrupamento de criminosos e chegou a anunciarpublicamente que esse grupo, já conhecido como PCC, estava falido eneutralizado. Ou seja, descartou a necessidade de monitorar sua atuação,dando espaço livre para seu fortalecimento.

• a polícia paulista, principalmente o setor de inteligência do Departamen-to Estadual de Investigações sobre o Crime Organizado, deixou de in-cluir em suas atividades de coleta e análise de dados criminais os crimino-sos já presos, como se, na condição de presos, não demandassem maispreocupações da polícia. Sabe-se que a maioria das lideranças nos presí-dios brasileiros tem muita facilidade de comunicação com o mundo exte-rior, seja por telefones celulares, seja por visitantes e advogados e, porisso, devem continuar a receber atenção da polícia.

a liç

ão d

a cr

ise p

aulis

ta d

a se

gura

nça

Page 132: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

• embora a Secretaria de Administração Penitenciária tenha estruturadoum setor de inteligência prisional, faltou a seu pessoal a necessária capa-citação e, principalmente, poder de polícia para exercer efetivamente essaatividade; a deficiente sintonia entre as Secretarias da Segurança Públicae da Administração Penitenciária prejudicou o necessário monitoramen-to das lideranças presas pela polícia.

• a multiplicidade de órgãos de inteligência não cooperavam e não se inte-gravam para produzir um quadro coerente da situação do crime organi-zado: os vários bancos de dados de diversos setores da Polícia Civil, osetor de inteligência da PM, o precário sistema de inteligência prisionalda administração penitenciária e o setor de acompanhamento do crimeorganizado do Ministério Público, além do setor correspondente dasuperintendência estadual da Polícia Federal. Se uma das principais fina-lidades de um serviço de inteligência é a competência em antecipar fatosadversos, a própria surpresa e a violência dos ataques aos próprios poli-ciais acabou demonstrando a falta de colaboração e a incompetência dosistema até então existente.

• não existe no Brasil um sistema de inteligência prisional que integre osvários bancos de dados sobre os presos e que seja atualizado permanen-temente com observações sobre os presos e suas visitas, as escalas de ser-viço dos funcionários do sistema, as mudanças dos companheiros de cela,as saídas para audiências e consultas médicas, os colegas nos momentosde banho de sol e lazer etc. Além disso seriam necessários softwares espe-cíficos e analistas treinados para produzir conhecimento sobre a combi-nação de informações e gerar instruções úteis para a administração dospresídios e da polícia.

• a precariedade do sistema de inteligência da segurança de São Paulo nãodifere muito do que ocorre nos demais estados e na própria PolíciaFederal. Apesar de São Paulo ser pioneiro na implantação de um sistemacapaz de rastrear informações em qualquer banco de dados de diferentesplataformas, ainda está longe de se integrar às agências estaduais, deempregar softwares apropriados e, principalmente, selecionar e capacitaranalistas para extrair conhecimentos capazes de identificar os pontos crí-ticos das organizações criminosas, antecipar suas ações e promover açõesdevastadoras em suas estruturas. Um problema, evidentemente, é queum bom sistema de inteligência fatalmente vai detectar incompetênciasgritantes, negócios escusos com empresas e agentes públicos envolvidosnas variadas manifestações do crime organizado, o que constitui o gran-

Page 133: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

de fator de resistência em muitos órgãos policiais para ceder acesso a seusbancos de dados.

Ressalve-se que as ações do crime organizado não perturbam corriquei-ramente a população mais que a massa de crimes de rua do cotidiano dasgrandes cidades. O problema é que essa modalidade de crime mostrou queconstitui verdadeira ameaça institucional pela corrupção sistemática de agen-tes públicos e pelo potencial de desafiar autoridades, comprometer serviçospúblicos essenciais e a continuidade das atividades cotidianas da população. Acrise de São Paulo expôs as agudas deficiências dos sistemas de inteligênciaque deveriam ter antecipado as ações dos criminosos, neutralizado sua estru-tura e acionado as medidas de prevenção ou minimização de seus efeitos.Reorganizar esses sistemas, tanto no âmbito dos estados, como no âmbitofederal, é uma das grandes urgências da segurança pública no país.

1.2 O falido sistema prisional

Outra particularidade da crise paulista a ser enfatizada foi a incrívelinfluência de lideranças criminosas de dentro dos presídios para acionar seuscomparsas, tanto na prática habitual de crimes, como nas ações de verdadei-ro terrorismo. São Paulo é vítima do desequilíbrio do sistema, pois a dinâmi-ca policial acrescentou 294,6% de presos ao longo de 11 anos, demandandoa entrega de mais de um presídio por mês nos últimos cinco anos, gerandouma massa carcerária de cerca de 130 mil presos, quase a metade do conjun-to prisional brasileiro. Com um déficit nacional de cerca de 100 mil vagasquase todos os presídios brasileiros estão em crise, com superlotação acima de50% na maioria dos estados, como foi constatado por levantamento daComissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, realizado no primeirosemestre de 2006.2 Esta situação agravada por dificuldades de toda ordem nagestão dos estabelecimentos prisionais, tornou a população prisional mais sus-cetível da manipulação e opressão de lideranças dentro do sistema.

De maneira geral a questão prisional tem sido tratada com verdadeirairresponsabilidade na precariedade dos investimentos – entre 2003 e 2005 o

a liç

ão d

a cr

ise p

aulis

ta d

a se

gura

nça

2. A situação está menos pior em São Paulo, onde o déficit é da ordem de 20% e no Riode Janeiro onde há sobra de vagas. No Rio de Janeiro há algo a ser explicado: deveriaexistir pelo menos o dobro dos presos existentes em função de sua população e seusníveis de criminalidade.

Page 134: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Governo Federal aplicou apenas 61% das já insuficientes verbas do FundoPenitenciário Nacional – deixando os governos de investir tanto na criação devagas penitenciárias como na implantação de programas de aplicação de penasalternativas que aliviariam a pressão da população prisional submetida a cár-ceres medievais.

No quadro abaixo pode se observar a gravidade da situação dos estados,proporcionalmente mais grave do que a situação de São Paulo, onde o déficitde vagas está na ordem de 20% da massa prisional, principalmente a Bahiaonde a quantidade de presos é três superior às vagas existentes:

Tabela 4. Situação de vagas prisionais em alguns estados

Estado Vagas existentes Nº de presos

Acre 1.349 2.363

Bahia 6.024 19.202

Ceará 6.785 10.890

Minas Gerais 8.300 18.800

Mato Grosso 4.661 7.150

Mato Grosso do Sul 4.187 8.340

Paraná 10.000 17.000

Rio Grande do Norte 1.962 3.571

Rio Grande do Sul 16.037 23.667

Rio de Janeiro 23.458 22.155

Mas o problema é que as autoridades do Ministério da Justiça, parti-cularmente do Departamento Penitenciário Nacional, não se dedicaram àexecução de programas que poderiam ter melhorado as condições do siste-ma prisional brasileiro. A leitura dos relatórios de gestão publicados napágina do Ministério da Justiça na internet dá conta de surpreendenteincompetência na gestão da área, como se pode observar a partir de algunsdados alarmantes:

• Criação de vagas prisionais – nos anos 2003 a 2005 foram criadas ape-nas 9.907 vagas para um déficit estimado em torno de 100 mil vagas; das

Page 135: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

10.739 vagas planejadas foram realizadas apenas 3.478. (só no últimoano do governo anterior foram criadas 9.157 vagas).

• O programa de “assistência ao preso, vítimas e egressos” que, entreoutras medidas, visa a assistência jurídica a presos para revisão de seusprocessos, planejava atender 60.000 pessoas em 2005, mas só conseguiuatender 708 (ínfimos 1,18%), cifra que chegou a 111.404 atendimen-tos em 2001.

• A capacitação profissional de presidiários programada para atender10.800 presos em 2005, atendeu apenas 340 (3,14%).

• O serviço de atendimento a condenados a penas alternativas, um itemenfático nos discursos do próprio Ministro da Justiça como fator deredução do déficit prisional, teve programado 3,1 milhões de reais em2005, mas só conseguiu aplicar 1,4 milhão.

• O programa de reforma de instalações, necessário na melhoria das vagase condições carcerárias, previu atender 20 unidades penitenciárias em2005, mas só atendeu duas.

A par da dramática crise de vagas observa-se uma política orientada parabeneficiar o preso com omissões e medidas que subtraem instrumentos decontrole do ambiente prisional, principalmente sobre presos perigosos e vin-culados a facções do crime organizado, tais como:

• A redução para 360 dias do período máximo de contenção do preso emregime de segurança máxima. Nos Estados Unidos um preso que seenvolva em motins, mate um policial ou pratique crimes especialmentegraves pode cumprir toda sua pena nesse regime; não é por acaso que sãoraros os motins nas prisões americanas onde existem mais de doismilhões de presidiários.

• A remoção de preso indisciplinado ou perigoso para regime de segurançamáxima não é mais encargo da administração penitenciária, dependendode decisão judiciária para essa remoção, conforme a lei federal 10.792 de2003 que prevê necessidade de ouvir a defesa e o Ministério Público; oprincipal líder do PCC, estrutura do crime organizado paulista, teve suaremoção solicitada à Justiça em janeiro de 2006 e até a eclosão da criseem maio ainda não tinha sido decidido o pedido.

• A mesma lei 10.792/2003 aboliu a obrigatoriedade de exame criminoló-gico para a progressão de pena e outras decisões judiciais em relação àconcessão de benefícios a presos, como as saídas provisórias de presidiá-

a liç

ão d

a cr

ise p

aulis

ta d

a se

gura

nça

Page 136: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

rios. Dessa forma vale apenas o critério matemático de cumprimento deum sexto da pena, estando o preso no “bom comportamento” o que écomum acontecer pela desordem geral no sistema prisional. A penamáxima no Brasil, portanto, na prática é de 5 anos para quem cometerum conjunto bizarro de crimes violentos. Na segunda semana de agostode 2006, por ocasião da polêmica saída de 13.085 presos para o Dia dosPais, seis dos liberados já tinham sido presos por prática de crimes e umfoi morto a tiros.

• Na prática, por falta de proibições claras, nada acontece ao preso queparticipar de motins, possuir celular ou fugir do estabelecimento; nosEstados Unidos a participação em motim pode obrigar o preso a pas-sar o resto de sua sentença em regime de segurança máxima e no esta-do do Texas a posse de um celular pode aumentar em até dez anos apena do sentenciado.

• Há evidências gritantes de que advogados funcionam como “pomboscorreio” em levar mensagens entre os presos, sem que nenhuma medidaesteja sendo tomada a respeito.

• Desde setembro de 2001 está para ser votado o projeto de lei número5075/2001 elaborado por um grupo de criminalistas que introduz umconjunto harmônico de 155 artigos na atual Lei de Execução Penal. Poresse projeto a condição para progressão da pena passaria do mínimoatual de um sexto de cumprimento para um terço; o direito à pro-gressão seria suspenso em caso de cometimento de faltas graves estabe-lecidas no artigo 55, tais como participar de motins, ser surpreendidona posse de arma, com telefone celular ou com outro instrumento decomunicação.

A crise paulista, portanto, poderia ocorrer em qualquer estado e, prova-velmente, com maior gravidade, pois nas demais unidades federativas a polí-cia não tem demonstrado o mesmo desempenho operacional na redução daviolência. É perceptível que os diferentes segmentos do comportamentocriminoso não são afetados por uma única solução – como o habitual aumen-to de efetivos, viaturas e armamentos –, exigindo estruturas e estratégias decontrole diferenciadas. A questão paulista deixa evidenciado também que osistema prisional não pode ser apartado das estratégias de segurança, devendoreceber investimentos para garantir acomodação adequada dos presos einstrumentos de gestão e disciplina capazes de garantir o isolamento efetivodos presos e a ordem interna nas unidades do sistema.

Page 137: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

E um alerta: sem investimentos adequados os sistemas de segurançapública dos estados tenderão ao agravamento, com os perigosos antecedentesinaugurados em São Paulo, um dos poucos estados que ainda tem condiçõesde reverter esse tipo de crise.

a liç

ão d

a cr

ise p

aulis

ta d

a se

gura

nça

JOSÉ VICENTE DA SILVA FILHO é coronel da reserva da PM paulista, ex-secretário nacional de Segurança Pública (2002), foi consultor do Banco Mundial.

Page 138: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo
Page 139: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Judiciário: mudanças nem sempre à vista

MA R I A TE R E Z A AI N A SA D E K

O ito de dezembro de 2004 tornou-se uma data emblemática para todos osque acompanham os debates sobre a crise da justiça no Brasil. Naquele dia,

o Congresso Nacional promulgou a Reforma Constitucional do Poder Judi-ciário, após sucessivos ziguezagues, que pareciam intermináveis. Certamente, aaprovação de uma emenda não significa a resolução imediata de uma situaçãoproblemática. Mas, não haveria como negar seu simbolismo e sua potenciali-dade de provocar efeitos tanto a curto, como a médio e a longo prazos.

O principal argumento deste artigo é que o sistema de justiça brasileiro,a despeito de suas inegáveis e gravíssimas deficiências, tem passado pormudanças de grande magnitude, muitas vezes despercebidas devido à gran-diosidade do problema. Muitas destas alterações tiveram início, inclusive,antes mesmo da reforma constitucional.

Para a exposição desta tese, serão acentuadas as principais inovaçõesdecorrentes da Emenda Constitucional n.45/2004 e em seguida serão desta-cadas importantes conquistas relacionadas à democratização no acesso àJustiça: os Juizados Especiais.

I. A REFORMA CONSTITUCIONAL DO PODER JUDICIÁRIO

A pós uma longa tramitação, marcada por idas e vindas, muitos debates,desentendimentos, interesses contrariados, relatórios conflitantes, a

Page 140: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Emenda Constitucional n.45, aprovada no final de 2004, possui um inequí-voco valor simbólico. De um lado, alça o sistema de justiça para uma posiçãode área prioritária; por outro, enfrenta problemas em instituições normal-mente vistas como refratárias a qualquer alteração.

O conjunto de modificações aprovado desenha um novo quadro institu-cional, não só para o Poder Judiciário, mas para as demais instituições quecompõem o sistema de justiça. É possível classificar essas modificações emdois grandes grupos. Em primeiro lugar, as voltadas para as instituições pro-priamente ditas. O segundo grupo é composto por alterações na prestaçãojurisdicional.

Incluem-se no rol de medidas voltadas para as instituições do sistema dejustiça, a criação do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional doMinistério Público. Estes órgãos, popularizados como de controle externo,possuem três ordens de atribuições: a) organização e planejamento de políti-cas institucionais; b) fiscalização dos atos administrativos; c) acompanhamen-to do cumprimento das regras disciplinares.

O texto constitucional deixa absolutamente claro que o ConselhoNacional de Justiça, embora integre o Poder Judiciário, não tem competênciapara interferir nas atividades típicas deste poder, ou seja, em suas funções judi-ciantes, de resolução formal e pública de conflitos. Trata-se de um órgão como papel de coordenar e fiscalizar as atribuições administrativas, de desenvol-ver políticas nacionais de integração e planejamento.1

Além destes organismos de controle, também foram instituídas medidasque prevêem que as decisões administrativas dos tribunais serão públicas, con-sentindo o acompanhamento das deliberações por parte de qualquer cidadão.

Agregue-se ainda a disposição relativa à democratização interna dos tri-bunais, a partir de alteração no procedimento de escolha dos membros dosórgãos especiais: metade pelos desembargadores mais antigos e metade pordesembargadores eleitos por seus pares. Estes órgãos eram anteriormentecompostos exclusivamente pelos desembargadores mais antigos do tribunal.

Visando o fortalecimento das carreiras da magistratura e do MinistérioPúblico, foram implantadas inovações relativas à exigência de que os candi-datos a estes postos tivessem um mínimo de três anos de atividades jurídicas

1. Para ilustrar o significado desta inovação caberia lembrar que não se dispõe nem mesmode um sistema de coleta de dados nacional. Tal limitação impede a elaboração de diag-nósticos precisos que permitam apontar os principais entraves para um melhor desem-penho do Poder Judiciário.

Page 141: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

prévias. Por outro lado, impôs-se a quarentena para os integrantes dessas ins-tituições após o seu afastamento das funções, seja por aposentadoria ou poroutro tipo de desligamento. Assim, aquele que deixa a instituição não poderáadvogar no tribunal em que atuou pelo período de três anos.

A Emenda Constitucional 45 também dispôs sobre o sistema de pro-moções dos magistrados, adotando critérios objetivos para substituir os denatureza subjetiva, e veda a promoção de juiz que, injustificadamente, retiverautos em seu poder além do prazo legal.

Na relação de alterações classificadas no primeiro grupo, caberia aindaincluir: a extinção dos Tribunais de Alçada, a ampliação das competências daJustiça do Trabalho e a exigência de distribuição imediata dos processos.

No que diz respeito ao segundo conjunto de alterações, isto é, aquelasenquadradas no objetivo de aperfeiçoar a prestação jurisdicional, devem serdestacadas as seguintes medidas:

a) A inclusão, como direito fundamental dos cidadãos, da celeridade pro-cessual, dispondo o art. 5º, LXXVIII, que a todos, no âmbito judicial eadministrativo, são assegurados a razoável duração do processo e osmeios que garantam a celeridade de sua tramitação.Este princípio encontra-se operacionalizado na instituição da súmulavinculante e da repercussão geral do recurso extraordinário. A súmulavinculante refere-se à possibilidade de o Supremo Tribunal Federal,mediante decisão de dois terços de seus membros, depois de reiteradasdecisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que terá efeito vin-culante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à adminis-tração pública. Houve, por conseguinte, a expansão dos efeitos vincu-lantes das decisões do STF que, antes, vigoravam apenas paras assentenças em ações diretas de inconstitucionalidade ou declaratórias deconstitucionalidade. Quanto à repercussão geral do recurso extraordiná-rio, foram impostas barreiras à utilização exagerada do recurso extraordi-nário perante o STF.

b) Previsão de autonomia das Defensorias Públicas. Foi conferida a esta ins-tituição a capacidade para elaborar sua própria proposta orçamentária, apossibilidade de estabelecer diretrizes de atuação mais condizentes com oatendimento da demanda social, sem a interferência dos demais órgãosda Administração Pública.

c) Federalização dos crimes contra os direitos humanos. Tal inovação retirada justiça dos estados esta competência, calcada no suposto de que, no

judi

ciár

io:

mud

ança

s ne

m s

empr

e à

vist

a

Page 142: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

âmbito internacional, a União responde pelas violações contra dos direi-tos humanos.

II. DEMOCRATIZAÇÃO NO ACESSO À JUSTIÇA

C omo salientado, muitas das mudanças vividas pelo sistema de justiça tive-ram início antes mesmo da aprovação da Emenda Constitucional n. 45,

sendo anteriores, inclusive, à Constituição de 1988.Com efeito, os anos 1980 foram palcos de uma extraordinária transfor-

mação na prestação jurisdicional. No transcorrer da década foram plantadassementes capazes de provocar mudanças de grande magnitude tanto no perfildas instituições como de seus operadores e também no domínio dos procedi-mentos. A germinação destas sementes, porém, não encontrou sempre umsolo favorável. Independentemente das condições, contudo, o potencial trans-formador foi cravado. De certo modo, é possível sustentar, que foi desenca-deado um processo inexorável de mudanças. Neste sentido, trata-se de discu-tir a sua velocidade ou, caso se prefira, a força dos incentivos ou dos entravespara a concretização destas potencialidades.

Dentre estas inovações, destacam-se, no âmbito das instituições osJuizados de Pequenas Causas, posteriormente denominados JuizadosEspeciais, como uma nova arena para a mediação de conflitos. No que se refe-re ao sistema processual, despontam a série de alterações relacionadas à tute-la de direitos coletivos e difusos, a criação da ação popular e da ação civilpública.

A busca de respostas às inquietudes provocadas por um sistema de justiçafechado e de difícil acesso orientou o conjunto de inovações que viriam a pro-vocar transformações no sistema jurídico e nas instituições encarregadas degarantirem direitos e solucionar conflitos. Esta preocupação, que teve sua ori-gem no universo europeu e norte-americano, ecoou no Brasil, trazendo parao seio do debate nacional a consideração de características típicas da commonlaw, como as class actions, que se impuseram nos Estados Unidos da América,desde os anos 1970, representando um importante instrumento de defesa dosinteresses difusos. O sistema de juizados, por sua vez, teve seu ponto de par-tida assentado em experiência desenvolvida na cidade de Nova York para aten-der e solucionar conflitos de menor valor econômico, que não encontravamrecepção no Judiciário.

O surgimento dos Juizados poderia ser enquadrado no movimento inter-nacional de acesso à justiça, ou o mergulho nas “ondas” a que se refere Mauro

Page 143: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Cappelletti (1988). Certamente, o caso brasileiro não obedeceu à mesma se-qüência da observada no mundo europeu (VIANNA, 1999). Ademais, entrenós, esta iniciativa foi liderada pelo Poder Executivo, ou mais especificamen-te pelo Ministério da Desburocratização.

Apesar da inspiração calcada no modelo nova-iorquino, no Brasil, osargumentos, particularmente por parte do governo, realçavam a necessidadede redução de formalismos, da urgência de se quebrar o excesso de exigênciasburocráticas, simplificando as relações do cidadão com a máquina adminis-trativa. Esta política governamental encontrou receptividade no meio jurídi-co e em um grupo de magistrados, acentuando-se a importância da democra-tização do acesso à justiça.

A Lei de 1984 (lei n. 7.244/84) criou os Juizados de Pequenas Causas,expressando sua finalidade primordial: facilitar o ingresso na justiça docidadão comum, especialmente aquele da camada mais humilde da popu-lação. As principais características desses Juizados deveriam ser: a oralidade, asimplicidade, a informalidade, a celeridade e a busca insistente da soluçãoconciliada e amigável dos conflitos.

Sublinhe-se que os objetivos básicos nada tinham a ver com a crise dojuízo comum. Ou seja, estes juizados não foram criados para solucionar ouamenizar os problemas que marcam a justiça tradicional. Sua razão de ser é ainstituição de uma forma especial e nova de garantia de direitos e de soluçãode conflitos, que possibilitasse a democratização no acesso à justiça. Tratava-se, mais propriamente, da criação de um micro-sistema judicial, estruturadoe constituído a partir de princípios e lógicas distintos daqueles que regem ajustiça tradicional. Neste micro-sistema, as regras e os requisitos não são aque-les característicos do sistema de civil law, que orientam o ordenamento jurí-dico brasileiro desde a sua implantação no país. Sua matriz para a solução deconflitos é a conciliação e não a sentença; é a composição e não a estruturaadversarial; é um jogo de soma variável e não um jogo de soma zero, no qualuma parte ganha e a outra perde.

Trata-se, com efeito, de um micro-sistema judicial completo, possuindo,inclusive, instância recursal própria. Os recursos são examinados por umaturma recursal composta por juízes de primeiro grau. Além disso, não seadmite, por exemplo, ação rescisória, embargos infringentes e recurso especialpara o Superior Tribunal de Justiça.

Quanto à sua competência, no início, quando de sua criação, limitava-seapenas ao processo de conhecimento e às causas cíveis de valor até 20 saláriosmínimos. O acesso era restrito às pessoas físicas, não se permitindo sua utili-

judi

ciár

io:

mud

ança

s ne

m s

empr

e à

vist

a

Page 144: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

zação nem mesmo por pessoas físicas que fossem cessionárias de crédito depessoas jurídicas.2 A presença de advogados era facultativa.

A Constituição de 1988 tornou a criação desses juizados obrigatória emtodas as unidades da federação e alterou a sua denominação para JuizadosEspeciais Cíveis. Posteriormente, a Lei n. 9.099, editada em 1995, aumentoua competência para apreciar causas de valor até 40 salários mínimos, atribuiucompetência para executar suas próprias sentenças e também para promoverexecução de títulos extrajudiciais, para processar e julgar ações de despejo parauso próprio e, em data recente, foi possibilitado o acesso de microempresas.Por outro lado, tornou obrigatória a presença de advogado em causas cujovalor ultrapassasse 20 salários mínimos.

O princípio da oralidade foi concebido para orientar as duas audiências:a de conciliação e a de instrução e julgamento. Ressalte-se que na primeiraaudiência, a presença do juiz não é obrigatória, uma vez que ela pode ser con-duzida por um conciliador.

Em face deste conjunto de características, tornaram-se imprescindíveismudanças tanto do cenário como dos personagens. O palco não obedece àdisposição que traduz a superioridade do árbitro e a contraposição entre aspartes, imprimindo o caráter de uma disputa, cujo resultado final é a vitóriade uma e a derrota da outra.

E, no que se refere aos atores, a mudança é igualmente radical. O juiztorna-se uma figura mais atuante, dotada de mais poder, na medida em quepreside acordos, atuando principalmente como um apaziguador, estimulandoo contato entre e com as partes. Sua margem de liberdade é ampliada, umavez que sua decisão não precisa ficar restrita aos parâmetros legais. O artigo6° é explícito na direção de um estímulo a uma atuação mais livre, prescre-vendo que o magistrado pode adotar “em cada caso a decisão que julgar maisjusta e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum”.

O advogado também foi concebido como um ator em busca do acordo,da conciliação e não da litigância, da disputa ferrenha. Observe-se que a suapresença, representando a parte, não é obrigatória em causas de valor até 20salários mínimos, a não ser que a parte contrária esteja representada, ou aindapara recorrer da decisão do juiz.

A figura do conciliador foi trazida para o centro, dotando-o de umafunção de primeira grandeza. Cabe a ele aproximar as partes, buscar acordos,

2. Buscava-se, assim, evitar que os Juizados se transformassem em órgãos de cobrança deempresas comerciais contra cidadãos.

Page 145: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

pacificar. A rigor, como a missão do Juizado é a conciliação, o conciliador épersonagem de destaque.

O principal personagem neste cenário, contudo, é o cidadão. Para ele foimontado o palco e em seu favor agem os demais personagens. Seus direitosdevem ser reconhecidos, suas demandas atendidas, em um espaço de temporazoável (a legislação previa que os casos deveriam ser resolvidos em um prazomáximo de trinta dias), em uma situação marcada pela oralidade, pelaredução dos formalismos, pela simplicidade.

Podem ingressar nos JECs, como autores, pessoas físicas. As micro-empresas, como acentuamos, obtiveram permissão depois de modificação nalei. Por outro lado, não é permitido figurar como réu, o incapaz, o preso, aspessoas jurídicas de direito público, as empresas públicas da União, a massafalida e o insolvente civil.

Tendo como parâmetros estas inovações, cabe a análise da experiênciaconcreta. O exame da realidade reflete a enorme variação e os acentuados con-trastes que marcam o país. Como não poderia deixar de ser, essa heterogenei-dade transparece claramente no perfil e no desempenho dos JuizadosEspeciais. A implantação dos Juizados Especiais Cíveis foi lenta e, até hoje,são inexistentes na maioria dos municípios do país. Segundo dados doInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2004, os municípiosbrasileiros que contam com Juizados Especiais Cíveis são ainda em númeromuito reduzido. A pesquisa Perfil dos Municípios Brasileiros revela que dos5.560 municípios existentes em 2004, apenas 1.732 possuíam JuizadosEspeciais Cíveis (31,1%) e somente 1.475 contavam com Juizados EspeciaisCriminais (26,5%).

Observando-se a distribuição de JECs de acordo com as regiões geográ-ficas, é possível constatar a diversidade nacional: a melhor região é a centro-oeste, com 42,5% de seus municípios contando com JECs; em seguida, vema região sudeste, com 38,3%; posteriormente a região sul, com 35,9%; depoisa norte, com 25,8%; e, em última posição, a região nordeste, com apenas18,5%. No que se refere à sua distribuição pelas unidades da federação, o Riode Janeiro é o Estado com o maior número de municípios com JECs: 82,6%— uma proporção bastante superior à média nacional. No extremo oposto,aparece o Piauí, como o Estado com o menor percentual — apenas 6,8% deseus municípios abrigam JECs.

Estas informações podem ser mais bem apreciadas e contextualizadas apartir de uma comparação com o juízo comum, como faz a Tabela 1, comdados referentes a 2003. Nela, encontra-se o número de juízes, o volume de

judi

ciár

io:

mud

ança

s ne

m s

empr

e à

vist

a

Page 146: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

processos entrados por 100.000 habitantes, a relação de entrados por magis-trado e o índice de congestionamento nas duas justiças.

Nota-se, imediatamente, que o número de juízes alocados nos JuizadosEspeciais é extremamente baixo. Há apenas 751 magistrados desempenhandosuas atribuições exclusivamente nos Juizados Especiais, enquanto o JuízoComum conta com 7.609. Para que houvesse a mesma proporção de magis-trados por processo entrado nas duas justiças, deveria haver 3.244 magistra-dos nos Juizados Especiais.

Ainda que se relativize os dados, uma vez que as informações estãoincompletas, o total de entrados por 100 mil habitantes no juízo comum(4.676,72) é 2,34 vezes maior que o de entrados nos JEC (1.993,86), enquan-to o número de magistrados alocados nos JECs é 10 vezes menor. Assim, adespeito da visível deficiência nos dados, uma conclusão se impõe: o númerode juízes exclusivos nos JECs é muito insuficiente e não guarda proporciona-lidade com o de juízes responsáveis pelo juízo comum.

Ademais, deve-se notar que há estados em que o volume de entrados nosJECs já é maior do que o do juízo comum: Acre e Amapá. Como decorrên-cia do baixo número de magistrados, em todas as unidades da federação arelação entrados por magistrado é sempre mais alta nos JECs.

Acrescente-se a estes traços, que o índice de congestionamento é signifi-cativo, apesar de apresentar uma grande variação entre as unidades da fede-ração. A média nacional é de 48,84%, mas ultrapassa a casa dos 80%, noCeará e no Pará, enquanto é de apenas 2,3% no Mato Grosso do Sul e de14%, em Pernambuco. Por outro lado, o grau de congestionamento não pos-sui relação com o número de entrados.

Tabela 1. Juízo comum 1º grau e juizados especiais

Estado Magis- Magis- Entr/hab Entr/hab Entr/hab Entr/hab Congestio- Congestio-trados trados J.Comum JEC J.Comum JEC namento namento

J.Comum JEC JC (%) JEC (%)

AC 35 7 3.045,65 4.533,67 522,63 3.889,86 68,47 58,84

AL 121 0 2.373,20 667,25 572,25 0,0 S/Inf S/Inf

AP 24 32 2.798,43 5.226,85 623,63 873,59 46,02 27,76

AM 102 20 1.881,88 532,42 559,23 806,90 96,25 59,01

BA 528 48 2.487,89 635,58 633,07 1.779,04 85,55 54,34

continua

Page 147: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

continuação

Estado Magis- Magis- Entr/hab Entr/hab Entr/hab Entr/hab Congestio- Congestio-trados trados J.Comum JEC J.Comum JEC namento namento

J.Comum JEC JC (%) JEC (%)

CE 292 40 2.452,70 734,88 651,68 1.425,38 98,52 92,84

DF 168 43 11.039,05 3.998,83 1.438,88 2.036,42 67,27 26,42

ES 238 35 2.618,81 1327,85 357,63 1.233,09 68,16 48,50

GO 217 43 4.794,12 1997,26 1.172,34 2.464,74 83,40 51,55

MA 190 21 1.377,39 714,33 425,81 1.997,95 80,89 55,47

MT 166 13 8.109,50 2.288,96 1.295,24 4.668,31 60,10 44,98

MS 136 13 7.214,03 2.595,81 1.150,90 4.332,38 68,35 2,33

MG 550 115 4.541,12 2.770,41 1.531,87 4.469,58 58,74 36,90

PA 249 0 1.839,29 518,48 485,67 0,0 92,02 81,66

PB 201 21 3.573,70 1.301,34 625,59 2.180,43 63,89 30,44

PR 470 165 4.081,02 1.989,97 860,21 1.194,81 77,66 S/Inf.

PE 411 0 2.844,71 1.244,90 564,92 0,0 90,12 14,27

PI 126 18 2.148,29 786,94 498,49 1.278,22 76,85 63,47

RJ 586 60 3.121,23 3.061,83 792,51 7.592,88 91,15 62,56

RN 161 0 S/Inf. S/Inf. S/Inf. S/Inf. S/Inf S/Inf

RS 561 16 9.107,81 4.177,81 1.706,45 27.445,56 71,99 38,35

RO 83 5 5.105,27 2.229,61 895,52 6.492,20 70,36 35,85

RR 27 3 3.417,00 1.846,62 452,19 2.199,33 78,49 63,05

SC 298 0 11.900,34 790,03 2.139,19 0,0 78,74 60,79

SP 1.515 S/Inf. 10.614,29 3.122,84 2.712,03 S/Inf. 98,08 65,05

SE 92 13 6.088,88 1.483,72 1.240,68 2.139,54 56,50 40,87

TO 62 20 3.019,23 1.262,17 599,06 776,35 58,54 56,81

Brasil 7.609 751 4.676,72 1.993,86 946,45 2.242,96 75,45 48,84

Fonte: STF, 2003

judi

ciár

io:

mud

ança

s ne

m s

empr

e à

vist

a

Page 148: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Esses dados apontam na direção de que os JECs, apesar de representaremuma ampliação no acesso à justiça, não desfrutam de uma situação minima-mente adequada para o desenvolvimento de suas potencialidades.

Esta descrição genérica, sem dúvida insuficiente para a elaboração de umdiagnóstico mais consistente, pode ser completada com dados provenientes depesquisa recente, de âmbito nacional, realizada pelo Centro Brasileiro deEstudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ).4 Alguns dos principais achados des-tas investigações serão sumariados a seguir.

O usuário, por excelência, dos Juizados Especiais é pessoa física. Emseguida, mas em proporção bastante reduzida, aparece a pessoa jurídica, sendoinsignificante a presença de uma combinação de pessoa física e de pessoa jurí-dica. As pessoas físicas correspondem a 93,7% dos reclamantes e as pessoasjurídicas a apenas 6,2%.

Do ponto de vista da qualificação do reclamante, a pesquisa detectou quenão há distinções significativas entre os JECs das diferentes capitais incluídasna amostra. Apenas no Amapá os reclamantes pessoas jurídicas atingem umpercentual expressivo: 22,2%. Neste estado, foi instituído um procedimentoespecial para microempresa, resultante de um acordo com o Sebrae. Nosdemais estados, a proporção de pessoas jurídicas é muito mais reduzida. Assimse distribui esta proporção nos JECs pesquisados, em ordem decrescente degrandeza: 8,9% em Belo Horizonte; 6,% em Porto Alegre; 5,7% em Goiânia;5,1% em Salvador; 2,2% em Fortaleza; 1,9% no Rio de Janeiro; 1,5% em SãoPaulo; e 1,3% em Belém.

Na quase totalidade dos casos (97,6%), os processos têm como autorapenas uma pessoa. Quanto a este aspecto não se singularizam os nove gru-pos de JECs pesquisados.

4. A pesquisa foi feita para a Secretaria de Reforma do Judiciário entre dezembro de 2004e fevereiro de 2006, buscando examinar quem eram os usuários, quem eram os reclama-dos, a natureza da reclamação, a presença de advogados, o percentual de acordos e otempo para a conclusão da demanda. Reconhecendo a heterogeneidade das realidadesregionais, tanto do ponto de vista econômico, social e cultural como de acesso à justiçaforam construídas amostras representando essa diversidade. Nove unidades da federaçãocom diferentes características socioeconômicas foram selecionadas e, nestas unidades,fixou-se nas capitais e nas capitais foram escolhidos alguns juizados, de acordo com asparticularidades locais. As informações foram recolhidas nos processos, por meio defichas. As capitais incluídas na amostra foram: Belém, Belo Horizonte, Fortaleza, Goiâ-nia, Macapá, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.

Page 149: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Os condomínios aparecem como reclamante em Salvador, em Fortaleza,em Goiânia, em Belém e em Porto Alegre. No total da amostra somam ape-nas 138 casos, isto é, 2,3%. Sua presença mais acentuada foi constatada emSalvador e em Fortaleza. No Rio de Janeiro, contudo, há jurisprudência paraque não se aceite microempresa no polo ativo dos JECs.

No que se refere ao reclamado, há quase que uma divisão ao meio entrereclamados pessoa física e reclamados pessoa jurídica. No total da amostra aspessoas físicas representam 49,5% e as pessoas jurídicas, 48,9%. A presençade ambas é insignificante: 1,6%.

Na maioria dos casos em que o reclamado é pessoa física, há apenas umapessoa: 88,8%. Aparecem duas pessoas em 9,4% dos processos e três ou maispessoas físicas em apenas 1,8%. Nota-se, entretanto, diferenças entre os gru-pos de JECs. Assim, discrepam destas médias os JECs das seguintes capitais:Salvador, com uma pessoa em 77,2% dos processos, com duas pessoas físicasem 21,3%; Goiânia com uma pessoa em 82,4% e com duas em 15,2%; eMacapá com uma pessoa física em 97,6% dos casos.

Já quando o reclamado é pessoa jurídica, tem-se apenas uma pessoa em92,3% dos processos. Só em Porto Alegre registrou-se uma diferença signi-ficativa: ali uma pessoa jurídica participa em 88% dos processos e duas pes-soas jurídicas atingem 12%.

A principal reclamação levada aos juizados refere-se à relação de consumo.Enquadram-se neste tipo de matéria 37,2% dos processos analisados. Em segui-da, mas com quase a metade dessas reclamações aparece acidente de trânsito –17,5%. A execução de título extrajudicial responde por 9,8%. Saliente-se aexistência de alto percentual relacionado à execução de sentença judicial e àcobrança. Esta proporção é muito expressiva em quase todas as capitais, sendoespecialmente alta nos JECs de Porto Alegre, atingindo 45,6% das reclamações.

Matérias afeitas à relação de consumo não têm igual peso em todos osgrupos de juizados. Vale a pena observar estas proporções em cada uma dascapitais, como mostra a Tabela 2 a seguir:

Tabela 2. Relação de Consumo, especif icações, em %

Macapá 10,2

Salvador 33,4

Fortaleza 7,7

continua

judi

ciár

io:

mud

ança

s ne

m s

empr

e à

vist

a

Page 150: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

continuação

Goiânia 31,3

Belo Horizonte 55,3

Belém 33,8

Rio de Janeiro 79,0

Porto Alegre 32,1

São Paulo 50,8

TOTAL 37,2

Fonte: CEBEPEJ, 2006

As maiores diferenças estão em Fortaleza e Macapá de um lado e noRio de Janeiro de outro. Como se observa, nas duas primeiras capitaisestes percentuais estão muito abaixo da média, enquanto no Rio deJaneiro fica muito acima. No caso de Fortaleza, a explicação está noextraordinário movimento do Juizado encarregado de resolver questões detrânsito. Processos relacionados a acidentes de trânsito representam alimais da metade (60,4%) de todos os processos. Já em Macapá, respondempor um alto percentual – 38,4% – matérias de cobrança, não compatíveiscom nenhuma das categorias escolhidas como classificatórias da naturezada reclamação.

A principal reclamação enquadrada na categoria consumo diz respeito aserviços de telecomunicações. Em todas as capitais pesquisadas esta demandasempre ultrapassa 10% dos processos, atingindo mais do que 40% em Maca-pá e em Fortaleza.

Logo após as reclamações relativas aos serviços de telecomunicações apa-recem as reclamações envolvendo transações comerciais, com 19,3%. Umavez mais, há expressivas variações entre as capitais. Este tipo de demanda variade um mínimo de 9,3% nos JECs de Goiânia até um máximo de 25,1% nosde São Paulo. Os serviços bancários, por sua vez, representam 11,8% dasreclamações incluídas como de relação de consumo. Esta proporção só émuito baixa nos juizados de Fortaleza. Nas demais capitais a proporção estábastante próxima da média geral.

Constatou-se pedido de indenização por dano moral em 20% dos pro-cessos analisados. No Rio de Janeiro esta proporção chega a 50,4%, mais do

Page 151: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

que o dobro da média geral. Em contraste, em Macapá e em Fortaleza, essespercentuais são significativamente inferiores aos das demais capitais.

A expressiva maioria (60,2%) dos reclamantes comparece sem a assistên-cia de um advogado (ver Tabela 3). Em todas as capitais este percentual é sig-nificativo. O Rio de Janeiro se constitui na única exceção. Ali, a maioria dosreclamantes – 51,9% – compareceu com advogado. No extremo oposto, apa-rece Fortaleza, com apenas 15,3% dos reclamantes acompanhados de advo-gados. Neste caso, a explicação está no alto volume de reclamações relativas aacidentes de trânsito.

Tabela 3. Presença de advogado, junto ao reclamante, em %

Sim Não Ausência da parte Sem Inform.

Macapá 22,1 59,7 18,1 0,2

Salvador 25,6 63,1 11,3

Fortaleza 15,3 80,9 3,9

Goiânia 31,6 55,4 13,0

Belo Horizonte 22,9 69,0 7,9 0,2

Belém 26,8 53,9 17,7 1,6

Rio de Janeiro 51,9 40,9 7,2

Porto Alegre 35,9 53,6 10,1 0,4

São Paulo 26,0 62,2 11,8

TOTAL 28,6 60,2 11,0 0,3

Fonte: CEBEPEJ, 2006

No que diz respeito à presença de advogado junto ao reclamado, as pro-porções são diferentes das observadas junto aos reclamantes, ainda que, tam-bém neste caso, a maioria tenha comparecido aos JECs sem advogado.Advogados acompanharam o reclamado em 34,7% dos casos. Apresentamproporções significativamente inferiores à média geral os reclamados emFortaleza e em Macapá; e proporções significativamente superiores os recla-mados em São Paulo e no Rio de Janeiro.

judi

ciár

io:

mud

ança

s ne

m s

empr

e à

vist

a

Page 152: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Tabela 4. Presença de advogado, junto ao reclamado, em %

Sim Não Ausência da parte Sem Inform.

Macapá 20,4 44,2 34,9 0,6

Salvador 33,6 50,3 16,0

Fortaleza 12,4 74,7 12,9

Goiânia 37,1 38,8 24,0

Belo Horizonte 38,3 43,2 18,4 0,2

Belém 33,5 40,9 23,5 2,2

Rio de Janeiro 60,8 32,8 6,2 0,2

Porto Alegre 33,5 44,8 18,9 2,7

São Paulo 41,3 38,3 20,4

TOTAL 34,7 45,8 18,9 0,6

Fonte: CEBEPEJ, 2006

Comparando-se a presença de advogados junto a reclamantes e a recla-mados observa-se que os nove conjuntos de JECs não apresentam um padrãoúnico. Em Macapá, em Fortaleza e em Porto Alegre, é maior a proporção dereclamantes do que de reclamados acompanhados de advogados. Nas demaiscapitais verifica-se o inverso: é maior o percentual de reclamados assistidospor advogados do que de reclamantes. Nesta última situação, chama especial-mente a atenção o caso de São Paulo, onde 41,3% dos reclamados compare-ceram com advogados versus apenas 26% dos reclamantes.

Acordos constituem a essência da filosofia que inspirou a criação dosJECs. Deste ponto de vista, é possível dizer que quanto maior o índice deacordos, mais bem sucedido é um determinado juizado ou mais próximo elese encontra de seu paradigma.

O percentual de acordo na audiência de conciliação é de apenas 34,5%no total da amostra. Em Fortaleza encontra-se a proporção mais alta, devidoàs peculiaridades do juizado voltado para questões relativas a acidentes detrânsito (69%). Nos JECs de Porto Alegre, São Paulo, Belém e do Rio deJaneiro somente um em cada 4 reclamantes chega a acordo nesta fase, encer-rando, consequentemente, a disputa.

Page 153: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Os dados indicam que a presença do juiz não tem se caracterizado comoum fator decisivo para a celebração de acordos. Na audiência de instrução ejulgamento, o índice de acordos é de 20,9% – muito abaixo do que fariasupor a filosofia que rege os Juizados Especiais. Constate-se, contudo, asvariações entre os JECs das diferentes capitais. A proporção de acordos é com-parativamente mais alta em Macapá (27,8%), em Belo Horizonte (27,4%) eem Belém (25,7%) do que nas demais capitais. Por outro lado, devem sernotados os baixos índices em Goiânia (14,7%), em São Paulo (16,9%) e emSalvador (16,5%).

Verificou-se que houve sentença em 29,5% dos casos. A maior proporçãodiz respeito à homologação de acordo, com 39,3%, sendo significativo o per-centual de extinção por desinteresse do autor – 24,4%.

A ocorrência de recurso foi notada em 31,2% dos processos analisados.As variações entre os nove grupos são expressivas, indo de um mínimo de9,2% de recursos em Macapá até um máximo de 42,1% no Rio de Janeiro.

Destaque-se que o julgamento dos recursos manteve a sentença na maio-ria dos casos – 65,8%. A sentença foi reformada em 12,4%; reformada par-cialmente em 16%. Uma vez mais, é heterogênea a situação dos diferentesgrupos. O índice de manutenção variou de um máximo de 86,5% em BeloHorizonte até um mínimo de 50% em Porto Alegre.

A análise dos tempos mostrou que os processos de conhecimento, quepercorreram todas as etapas, isto é, distribuição, audiência de instrução, pro-ferimento de sentença de mérito e interposição e julgamento de recurso, dura-ram, em média, 346 dias. Quando houve execução de sentença (15,3% doscasos), a média de duração desta fase foi de 300 dias. Somando-se as duasfases, conhecimento e execução, a duração média do processo sobe para 649dias. Sem dúvida alguma, um tempo muito superior do que prevê a lei e doque seria razoável em termos de garantia de direitos e pacificação social.

Acrescente-se a estas informações que, quanto à instalação física, namaior parte do país, os JECs são meras extensões de Varas ou se localizam nomesmo prédio no qual funciona o juízo comum.

Esse conjunto de dados permite concluir que, na prática, os JuizadosEspeciais não têm conseguido desenvolver plenamente suas potencialidades.Deparam-se com entraves, que vão da precariedade das instalações físicas, àfalta de treinamento de conciliadores, ao número reduzido de juízes exclusi-vos até a lentidão para a solução dos conflitos.

Apesar, contudo, das inúmeras deficiências, que chegam, inclusive, acomprometer suas características mais importantes, como a celeridade, a

judi

ciár

io:

mud

ança

s ne

m s

empr

e à

vist

a

Page 154: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

informalidade, a simplicidade e a busca permanente da solução conciliada dosconflitos, os Juizados Especiais Cíveis representam o canal mais importantepara o acesso à Justiça pelos cidadãos comuns.

III. POTENCIALIDADES

São reiteradas as críticas ao Judiciário. Sua lentidão tem sido proclamada aosquatro ventos. A indiscutível crise na prestação jurisdicional dificilmente

será superada apenas com mais reformas constitucionais ou alterações na legis-lação. Há um amplo espaço para mudanças que dependem de iniciativas notrato com os litígios, na gestão e na administração de varas e tribunais. Essasiniciativas têm condições de provocar mudanças positivas tanto na imagem doJudiciário como em seu desempenho, a curto, a médio e a longo prazos.

No que diz respeito às questões constitucionais, as mudanças até agorarealizadas trazem consigo um alto potencial transformador na direção de umamaior transparência, de acréscimos nos graus democratização interna e deampliação do acesso da população. Por outro lado, já vêm estimulando a pro-dução de dados e informações, indispensáveis não apenas para o conheci-mento das instituições que compõem o sistema de justiça, mas, especialmen-te, para a construção de diagnósticos e propositura de soluções.

Quanto às preocupações com a ampliação no acesso à justiça e à efeti-vação na realização de direitos, atenção prioritária deveria ser dada aosJuizados Especiais. Estas instituições representam uma inovação no sistemajurídico brasileiro, com alta capacidade de liderar e acelerar mudanças. Estasmudanças se expressam tanto na sua filosofia, como na mentalidade de seusoperadores, com reflexos na percepção sobre a justiça por parte de seus desti-natários, a população.

Os problemas do Judiciário são de tal magnitude que acabam por sus-tentar a impressão geral de que os tempos mudam, mas que na justiça nadase altera ou que tudo só piora. A extensão das deficiências certamente dificultao reconhecimento de iniciativas com enorme potencial transformador.

Não há como desqualificar a crítica que aponta a morosidade da pres-tação jurisdicional. Justiça que tarda é justiça que falha, é uma justiça atuan-do a favor dos que não querem justiça, dos que tiram vantagens de sua len-tidão. Apesar das deficiências ou devido a elas, o número de processos que dãoingresso no Judiciário apresenta um crescimento extraordinário (muitas vezesacima do aumento populacional), havendo, inclusive, quem receie que aestrutura física dos prédios rapidamente não agüente o peso dos volumes.

Page 155: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

No meio deste caos, entretanto, insistimos, há iniciativas, há mudançasem andamento. Uma série de temas saiu do interdito, como por exemplo, ocombate ao nepotismo, a fixação de teto salarial, férias judiciais, democrati-zação de tribunais, quarentena, modernização administrativa, dentre outros.Várias iniciativas de natureza administrativa têm racionalizado o trabalho devaras e tribunais, diminuindo o tempo entre a entrada e a decisão de umademanda judicial. Diagnósticos têm amparado propostas de modificaçõeslegislativas, tanto na área civil, como na criminal e na processual. Há espaçopara que Juizados Especiais possam atuar de forma a reformular o sistema dejustiça, tornando-o mais acessível à população.

Os entraves ao desenvolvimento pleno das potencialidades das mudançassão consideráveis, indo da mentalidade dos operadores do Direito aos cons-trangimentos externos. Isto não significa, porém, que não venham ocorrendotransformações e menos ainda que o desafio de construir uma justiça orien-tada pelos valores da igualdade deva ser abandonado. Significa, isto sim, queo reconhecimento dos passos já dados poderá levar a outros na direção de umJudiciário de fato garantidor de direitos e pacificador.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. PortoAlegre: Fabris, 1988.

VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política e das relações sociais noBrasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

judi

ciár

io:

mud

ança

s ne

m s

empr

e à

vist

a

MARIA TEREZA AINA SADEK é professora do Departamento de Ciência Po-lítica da Universidade de São Paulo e pesquisadora sênior do Centro Brasileirode Estudos e Pesquisas Judiciais.

Page 156: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo
Page 157: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Desafio da inserção internacional do Brasil – próximos passos

EM B A I X A D O R JO S É BOTA F O G O GO N Ç A LV E S

O s defensores do isolamento comercial e econômico do país são cada vezmenos numerosos e vêm perdendo representatividade e importância polí-

tica de modo constante e gradativo.O melhor exemplo desta afirmação encontra-se na publicação, em 2002,

por parte do então candidato à Presidência da República, Luis Inácio Lula daSilva, da “Carta ao Povo Brasileiro”, onde inúmeras teses radicais defendidaspelo Partido dos Trabalhadores, sobretudo no campo das relações econômicase políticas externas, foram abandonadas, em nome da prioridade a ser dada aum processo estável e continuado de transição democrática e consolidação dodesenvolvimento da cidadania.

A despeito dos inegáveis sucessos alcançados pelos dois últimos gover-nantes no combate à inflação e na tessitura de redes de proteção à populaçõesmais pobres do país, com evidentes e positivos reflexos nos índices de bemestar social, publicados regularmente pelo IBGE (Instituto Brasileiro deGeografia e Estatística), o Brasil vem sofrendo, há mais de duas décadas, umprocesso de baixo crescimento de seu Produto Interno Bruto (PIB), poucoacima de seu crescimento populacional. Os investimentos públicos caíramdrasticamente, a poupança interna ficou abaixo dos índices históricos e as des-pesas públicas cresceram vertiginosamente – em boa parte, financiados pelacrescente carga fiscal que pesa sobre o país, hoje da ordem de 37,5% do PIB.

Page 158: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

A despeito de um vigoroso processo de privatização em setores-chave daeconomia, como energia, siderurgia e telecomunicações, o setor privado decapital nacional ficou comprimido entres duas alternativas excludentes, asaber: aceitar a falência da empresa ou desnacionalizá-la e passar o controle aocapital estrangeiro.

Mesmo assim, o setor privado brasileiro é hoje mais eficiente e competi-tivo e tem sabido aproveitar as condições favoráveis do crescimento do comér-cio mundial para aumentar significativamente exportações e elevar o grau deabertura da economia brasileira.

Nessas circunstâncias, todo brasileiro hoje faz a si mesmo a seguinte per-gunta: “O que fazer para que o Brasil volte a crescer a taxas anuais superioresa 5% ao ano?”.

No presente texto, vou formular uma segunda pergunta, derivada da pri-meira: “Qual o efeito do comércio internacional do Brasil na busca de taxasanuais de crescimento do PIB superiores à atual?”.

Lamentavelmente, a sociedade brasileira ainda não encontrou respostaadequada a nenhuma das duas perguntas. Vão procurar entender por que.

Dos anos 60 aos anos 80, o Brasil praticou uma política muita bemsucedida de substituição de importações e de controle estatal do comér-cio exterior, que transformou a economia do país de base rural para baseindustrial, em paralelo a um vertiginoso processo de urbanização dapopulação brasileira em escala não comparável a qualquer país do mundoocidental.

Essa política, também chamada “nacional-desenvolvimentista”, vemsendo gradualmente desmantelada, não tanto em virtude de decisões estra-tégicas adotadas pela sociedade brasileira, mas sobretudo por força dassucessivas crises do balanço de pagamentos que atingiram o Brasil e outrospaíses em desenvolvimento ao longo dos anos 80 e 90.

O resultado desse processo crítico foi que as políticas brasileiras,tanto no nível macro como no nível micro, têm sido mais reativas do quepropositivas, do que resulta uma perda significativa de consistência daspolíticas comerciais, financeiras e regulatórias no campo das relaçõesinternacionais.

Algumas ambigüidades e ambivalências persistem no imaginário popu-lar, no Congresso Nacional, nos partidos políticos e no seio dos órgãos repre-sentativos do empresariado privado nacional, a respeito do papel que o Brasildeve exercer no cenário internacional.

Enumerarei algumas dessas ambigüidades:

Page 159: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

a) A abertura econômica e comercial é intrinsecamente ruim, na melhor dashipóteses é um mal necessário;

b) Quando ela for inevitável, o Brasil, como país em desenvolvimento, devesolicitar tratamento diferenciado, ou seja, não recíproco;

c) A proteção tarifária é um bem a ser preservado pelo Brasil e um malquando é praticado por nossos países concorrentes no mercado interna-cional;

d) Os diversos códigos de conduta consagrados pela Rodada Uruguai sãoinstrumentos de valor desigual, beneficiando mais as economias ricas doque as economias médias e pobres e devem ter sua aplicação flexibilizadano que tange ao Brasil;

e) Os principais obstáculos às exportações brasileiras encontram-se nasbarreiras tarifárias. Daí resulta que a ênfase nas negociações comerciasrecaiu nos temas de acesso a mercado e não nas disciplinas regulatórias;

f ) O trade-off das negociações deve ser o de acesso contra acesso e mesmoassim não recíproco;

g) A negociação de disciplinas internacionais que reduzam a liberdade demanobra das autoridades públicas brasileiras na formulação de políti-cas industriais, científicas e tecnológicas de âmbito nacional tende aser negativa e, conforme o caso, pode vir a atentar contra a soberanianacional.

Como o leitor pode observar, intitulei a lista acima de ambigüidades eambivalências. A razão é simples. Todos os itens enumerados contêm um graude verdade e um grau de inverdade. Tudo dependerá da visão ideológica doformulador da questão. Quanto mais próximo ele estiver da velha políticanacional-desenvolvimentista, mais restritivo ele será em relação ao processo deabertura da economia. Em caso contrário, ele será mais aberturista.

O muro de Berlim foi fisicamente desmantelado em menos de 24 horas,obrigando as autoridades da Alemanha Ocidental a reagirem com urgência ànova situação criada e a optarem por uma radical incorporação da AlemanhaOriental, particularmente no campo da moeda, aceitando que o gigantescocusto dessa incorporação seria pago de imediato por razões políticas e aolongo prazo por razões econômicas.

O caso do Brasil é muito diferente. O muro da proteção tarifária e nãotarifária, levantado pela política nacional-desenvolvimentista, vem-se des-mantelando pouco a pouco. Em alguns lugares, as brechas são grandes. Emoutros, o muro está quase intacto.

desa

fio d

a in

serç

ão in

tern

acio

nal d

o Br

asil

Page 160: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

O que cabe ao Brasil fazer agora é dar consistência e maior velocidadeao desmantelamento do muro ainda em pé. Para tanto é necessária a adoçãode uma nova estratégia desenvolvimentista, com características que a seguirindicarei.

A partir dos anos 90, a economia brasileira tem sido alvo de sucessivoschoques ou ondas reformadoras de caráter exógeno ou endógeno que, traba-lhando inicialmente como variáveis independentes, vêm, pouco a pouco, con-vergindo para um objetivo comum de modernização do aparelho produtivonacional, embora não necessariamente de forma articulada e harmônica.

Entre os fatores de caráter endógeno, merece atenção o fim do regimemilitar e a restauração da normalidade democrática através do respeito aosinstrumentos básicos da democracia representativa, quais sejam eleições li-vres, fim da censura à imprensa, votação de nova Constituição, restauraçãodo poder legiferante do Congresso Nacional e pleno respeito às decisões doSupremo Tribunal Federal e das outras instâncias jurídicas. No plano econô-mico, a grande vitória da sociedade brasileira se deu no maciço apoio doseleitores ao Plano Real, que com grande criatividade e competência técnicapôs fim ao regime de altas taxas de inflação. A descoberta dos valores intrín-secos da estabilidade monetária reverteu a tendência secular de concentraçãode renda e de agravamento da pobreza pelo simples efeito de preservação notempo do valor do salário pago à massa trabalhadora. A despeito do ceticis-mo inicial, hoje se pode dizer que todos os partidos políticos, da esquerda,do centro ou da direita, com pequenas exceções, reconhecem a importânciaeleitoral da estabilidade monetária. Qualquer governo que, no futuro, corrao risco de ceder à tentação inflacionária terá, em curto prazo, sua governabi-lidade ameaçada.

Como conseqüência, vem a sociedade brasileira se acostumando com oprincípio de que as despesas públicas têm que ser financiadas com recursosreais capturados da atividade produtiva e não mais através de truques “extra-orçamentários”, como eram os créditos ilimitados concedidos pela rede debancos estaduais e mesmo federais ou pelo sistema mais primitivo deimpressão de papel moeda.

Diante da pressão crescente que a sociedade brasileira exerce sobre oEstado para aumentar os gastos de custeio e os gastos sociais, os governos deFernando Henrique Cardoso e Lula da Silva optaram por financiá-los atravésdo aumento da carga tributária e/ou do endividamento público, para o quefoi necessário oferecer papéis públicos com juros muito elevados – a fim detorná-los atrativos a seus compradores. No campo da administração pública,

Page 161: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

a lei de responsabilidade fiscal, aprovada no governo de FHC, estabeleceu,pela primeira vez no Brasil, sanções penais aos gestores que desrespeitassem oslimites de gastos autorizados pela lei. Progressos importantes, embora insufi-cientes, foram alcançados nos planos da educação e da saúde.

Por outro lado, a sociedade brasileira não aceita mais prosseguir na fór-mula de aumento da carga fiscal para atender aos gastos crescentes. A novaagenda de reformas, que deverá ser implementada pelo novo governo, a par-tir de 2007, qualquer que seja o candidato eleito, deverá contemplar umanova equação que de um lado congele ou idealmente reduza a carga tributá-ria e de outro lado aumente os investimentos públicos em infra-estrutura(energia, logística, comunicações, saneamento etc.) e a eficiência dos progra-mas sociais de redução da pobreza.

As ondas reformadoras de caráter exógeno foram as resultantes da velo-cidade crescente do processo de globalização da economia mundial e do longoperíodo de crescimento do comércio mundial decorrente desse processo.

O setor agrícola brasileiro foi o que melhor soube aproveitar da favo-rável conjuntura internacional utilizando as vantagens comparativas deterritório, água, clima e de uma crescente eficiência tecnológica na expansãoda agricultura tropical, particularmente na exportação de proteínas vegetaise animais.

O mesmo não pode ser dito a respeito do setor industrial. Não há dúvi-da de que a indústria brasileira é muito mais competitiva do que era há 15anos atrás, embora para tanto tenha tido de pagar um preço elevadíssimo queainda se faz sentir em setores de bens de consumo não duráveis, como tecidose calçados; e duráveis, como autopeças e eletrodomésticos.

Será realístico supor que tais fatores exógenos ainda vão atuar a favor doBrasil a partir de 2007? Ainda que não haja uma resposta clara a esta pergun-ta, não é prudente projetar o crescimento do Brasil com base exclusivamentedo crescimento das economias americana, européia, chinesa ou indiana. Onovo governo não poderá se furtar a prosseguir e acelerar os processos dereformas internas, tanto no campo político como no econômico, para conso-lidar em bases mais sólidas o processo de crescimento do Produto InternoBruto com mais justiça social.

O novo governo e a nova legislatura, a partir de 2007, terão diante delesa agenda da reforma político-partidária, da reforma tributária, da redução dodéficit fiscal e da reforma trabalhista.

No campo do comércio internacional, a agenda reformadora passarápelas seguintes novas definições.

desa

fio d

a in

serç

ão in

tern

acio

nal d

o Br

asil

Page 162: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

a) reconhecer que uma atitude prioritariamente defensiva e protecionistanão é instrumento bastante para aumentar a competitividade da indús-tria brasileira;

b) reconhecer que o mercado interno, mesmo com razoável expansão decor-rentes das melhorias sociais e do controle da inflação, não será suficientepara manter a economia brasileira em um ritmo de crescimento susten-tável superior a 5 % ao ano;

c) analisar pragmaticamente os níveis atuais de proteção tarifária e decidirum programa de redução gradual, dividindo a tarifa externa do Mercosulem três categorias, a saber:1) itens que devem sofrer redução ou eliminação imediata dos gravamesaduaneiros, a fim de estimular os investimentos produtivos, sobretudoem áreas de mais valor agregado. Tais reduções e/ou eliminações seriamunilaterais e negociadas apenas entre os sócios do mercosul;2) itens que devem ser negociados dentro dos acordos multilaterais, re-gionais ou bilaterais em curso;3) itens que, por sua alta sensibilidade política, ficam fora do programade redução tarifária.

d) aceitar incluir nas pautas negociadoras aquelas disciplinas internacionaisque facilitem e assegurem um clima favorável aos investimentos produti-vos, tanto estrangeiros como nacionais;

e) reconhecer que tão cedo nem o Estados nem os privados nacionais dis-porão de recursos suficientes de poupança para elevar significativa-mente as taxas de investimento na economia brasileira. A insegurançajurídica, o baixo grau de implementação da legislação vigente (lawenforcement) e as constantes mudanças nas regras do jogo, tanto nonível macro como no micro, são fatores desestimulantes na captação derecursos para investimentos. Diferentemente do passado recente, quan-do o mercado potencial era fator determinante do destino dos investi-mentos, hoje, com a globalização e o encurtamento econômico dasdistâncias geográficas, os investimentos produtivos vão para onde sãomelhor recebidos;

f ) em conseqüência, abandonar a idéia de que a redução da liberdade demanobra das autoridades na formulação de políticas setoriais seja, neces-sariamente, ruim. O Estado não pode abrir mão de ser o formulador depolíticas setoriais que devem ser definidas à luz dos interesses estratégicosdo país. Porém, uma vez adotadas, não devem ficar sujeitas às variaçõesconjunturais ou aos humores mercuriais do governo de plantão;

Page 163: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

g) desviar a ênfase nas negociações comerciais das questões tarifárias paraas questões não tarifárias. Estas últimas são o hardcore de acesso a mer-cado e de aumento da competitividade da economia nacional. As tarifasaduaneiras tendem hoje a ser mais simplesmente um mero custo adicio-nal de transações;

Para levar adiante esse conjunto de medidas reformadoras é precisodesenvolver estudos, fazer pesquisas, realizar seminários entre os privados, edesses com o setor público, no sentido de atualizar o conhecimento dasociedade brasileira sobre as importantes transformações por que já passa anossa economia, dentro e fora do Brasil.

Hoje, o Brasil deixou de ser um clássico país em desenvolvimento pro-dutor de commodities de baixo valor agregado. Nossas exportações indus-triais superam, em valor, as agrícolas. Estas, por sua vez, estão cada vez maisincorporando tecnologia e valor agregado. Exemplos típicos são o metanole o biodiesel. As empresas brasileiras, públicas e privadas, estão se interna-cionalizando. Petrobrás, Vale do Rio Doce, Gerdau, Oderbrecht, CamargoCorrea, Andrade Gutierrez, Marco Pólo, Rondon, Ambev, só para citaralgumas, faturam crescentemente no exterior, inclusive através de unidadesprodutivas locais.

O Brasil legitimamente busca promover a integração da América do Sul.Isto implica negociar e investir em treze países vizinhos, dos quais onze fazemfronteira com o Brasil. A planificação dos investimentos, a rede viária, a pro-dução e comercialização da energia deixam de ser de caráter nacional para tercaráter ter regional. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico eSocial (BNDES), progressivamente, se envolve em operações de crédito além-fronteira. Os bancos brasileiros abrem agência em um número crescente depaíses. O Brasil, paulatinamente, está se tornando um exportador de capitaise tecnologia. Não obstante, o nosso ordenamento jurídico, as práticas admi-nistrativas, a elaboração anual do orçamento pelo Congresso, as posiçõesdefendidas pelos órgãos representativos do setor privado, os funcionários dosMinistérios, com a honrosa exceção do Itamaraty, não levam na devida contaa crescente interdependência entre os interesses permanentes do Brasil e osinteresses de seus parceiros comerciais, próximos como distantes.

Em outras palavras, o Brasil arma-se mais para defender do que para ata-car na presunção, cada vez menos verdadeira, que essa é a melhor política paraum país fraco e subdesenvolvido.

Reiteremos a nossa pergunta inicial:

desa

fio d

a in

serç

ão in

tern

acio

nal d

o Br

asil

Page 164: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

O que fazer para crescer mais rápido? Qual o papel do comércio inter-nacional nesse processo?

Olhando a experiência recente de países que, com sucesso, estão rom-pendo ou já romperam a barreira do subdesenvolvimento, verificamos quealguns deles, especialmente os asiáticos, tomaram decisões estratégicas a par-tir de uma elite política dominante (China) ou agiram sobre uma populaçãocrescentemente educada (Coréia) ou se beneficiaram de abundantes recursosfinanceiros da União Européia (Irlanda, Espanha, Portugal).

No Brasil, feliz ou infelizmente, as condições objetivas em que vive anossa sociedade não favorecem a tomada de decisões radicais de cima prabaixo, mesmo admitindo sua bondade. O país é complexo, as decisões porconsenso não se alcançam e o grau de instrução da população é muito infe-rior ao desejável. Como romper o impasse?

É preciso ativar um processo catalítico que acelere as reações químicasnecessárias à transformação do quadro produtivo brasileiro. Este elementocatalisador são as negociações comerciais internacionais. Em vez de aguardarmelhores momentos para acelerá-las, o governo brasileiro deve retomá-las deimediato – digamos janeiro de 2007 – na presunção de que elas serão indu-toras das reformas legais e administrativas que hoje se encontram mais oumenos paralisadas no Congresso Nacional.

Tendo em vista que as nuvens negras que se acumulavam sobre a RodadaDoha ainda não se desfizeram, a saída pragmática é retomar rapidamente anegociação Mercosul-União Européia, acelerar o processo de acordos de livrecomércio “pra valer” na América do Sul, onde o Brasil, na média, é mais efi-ciente do que os seus vizinhos, e retomar o diálogo negociador com os trêspaíses do NAFTA e não apenas com os EUA.

Não importa que o NAFTA, ao contrário do Mercosul, não negocie emconjunto. Importa sim, que as posições negociadoras brasileiras sejam defini-das à luz das realidades comerciais, mercadológicas, tecnológicas e financeirasdos três países do hemisfério norte, México, Canadá e EUA.

Em resumo, o momento justifica a opção pelos esquemas negociadoresmodelados pelo regionalismo aberto tendo o Mercosul como eixo pivotante.

JOSÉ BOTAFOGO GONÇALVES é presidente do Centro Brasileiro de Rela-ções Internacionais.

Page 165: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Ética pública e estado de direito

AL B E RTO OL I VA E MA R I O GU E R R E I RO

O grande desfecho civilizatório, num futuro não mais distante,

será o triunfo da moral e da ética sobre o poder e a política.

(Fernand Braudel)

A o se refletir sobre um conceito é sempre importante não perder de vistaa que se contrapõe. É seu oposto que lhe dá sua razão de ser. Quando se

qualifica de ‘pública’ a ética, inevitavelmente se subentende a existência deuma ética ‘privada’ ou ‘pessoal’. E imediatamente desponta a indagação: casose suponha cabível fazer a distinção – entre ética pública e privada – como sepoderá justificá-la? Certamente, não se trata de dicotomia do mesmo tipo daque é expressa em pares de conceitos como, por exemplo, empresapública/empresa privada, direito público/direito privado. Sendo assim, cum-pre procurar saber que sentido especial podem os dois adjetivos adquirirquando acrescentados ao substantivo ‘ética’.

Temos razões para pensar que aqui estão em jogo as duas esferas dopúblico e do privado. Supondo que assim seja, somos então levados a fazeroutra indagação. Admitindo-se que existam duas éticas, cada uma portadorade autonomia relativa, quer isso dizer que os indivíduos devem se comportarde diferentes maneiras quer se encontrem aquém ou além do marco divisóriodas duas esferas? Supondo ser isso que está realmente em questão, não temoscomo deixar de reconhecer que o fator diferencial não é nenhuma disposiçãointerna dos homens, e sim o espaço em que se movimentam. Ocupando, por

Page 166: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

exemplo, cargos públicos uma pessoa será tentada a cometer ilícitos específi-cos, a ter desvios de conduta associados à posição privilegiada que ostenta.Mas isso não significa que foi o cargo o causador de sua falta de ética. O queela fez foi exibir no espaço da vida pública sua fraqueza moral.

Reconhecer que instituições só podem ser situadas na esfera pública nãojustifica pensar que o que nelas ocorre seja totalmente independente das escol-has, decisões e ações dos indivíduos. Se os costumes e as instituições moldam oshomens, os homens criam e recriam os costumes e as instituições. E é ociosoindagar o que veio primeiro, a que conceder prioridade ontológica. Na realida-de, trata-se de um processo extremamente complexo no qual o construtor (oagente social) é também construído pelo contexto social no qual atua. Daí sersempre difícil determinar o que é causa e o que é efeito. Por esposarmos a visãode que a causação ocorre de modo recíproco, afastamo-nos da visão de que ofato social coage de fora o indivíduo levando-o a agir de determinados modos.A consciência não é um repositório do que a vida social lhe inculca. Não são osindivíduos receptáculos passivos nos quais a sociedade vai imprimindo seusconteúdos e suas normas. Isso, no entanto, não significa que perfilhamos a teseda completa autonomia das ações dos indivíduos. A ação humana não temcomo se desenrolar à margem de constrangimentos contextuais e de marcos ins-titucionais rigidamente demarcados. O individualismo (Cf. OLIVA, 1999) quenão leva em conta a existência de propriedades emergentes – oriundas dos pro-cessos macroscópicos e das relações interpessoais – não contribui para o enten-dimento das relações entre ator, papel e ambiente social.

A pergunta crucial que ora se impõe é a de se deve ser aceita – com todasas conseqüências daí derivadas – a tese de que as regras de conduta da éticapública são e devem ser diferentes das da ética privada ou, melhor dizendo,da ética pessoal. Prima facie, parece que essa é uma pseudodicotomia, uma vezque ao menos as regras básicas de conduta devem ser acatadas pelo agente –que pretende ser ético – independentemente do espaço no interior do qual seexecutam suas ações. O que muda de substancial no plano da ética quandoalguém, por exemplo, sai de casa, quando deixa a esfera de convivência comparentes e amigos, e vai para a rua? Ocorrem alterações radicais no seu qua-dro de valores e nas normas morais que acata quando se vê obrigado a intera-gir com pessoas com as quais não tem intimidade?

Não se deve descartar açodadamente a hipótese de que existem regras deconduta que se mostram adequadas quando o indivíduo se movimenta naesfera privada e inadequadas quando atua na esfera pública. E vice-versa.Imagine-se, à guisa de exemplificação, que um indivíduo tenha o hábito de

Page 167: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

andar completamente desnudo dentro de casa que, por ser indevassável, nãoo expõe ao olhar curioso dos vizinhos. Não se poderia dizer que tal indivíduo,quiçá seguidor do naturismo, viola uma regra da moral e dos bons costumes.E caso alguém o acuse de conduta anti-social, pode alegar em sua defesa, ecom toda a razão, que “dentro da minha casa faço o que bem entendo”. Defato, pode fazer o que quiser, contanto que não transponha os limites da esfe-ra privada de sua existência gerando transtornos, mal-estar ou prejuízo aoutrem. Suponha-se agora que esse mesmo indivíduo, no aconchego do lar,decida ouvir von Karajan regendo a Nona Sinfonia de Beethoven. O que seriaapenas sinal inequívoco de bom gosto deixa de sê-lo quando a grandiosidadesonora de Beethoven é apreciada às 2h da madrugada e num volume muitoalto. Ao objetivamente perturbar o sono dos vizinhos deixa de fazer algo con-finado a seu espaço próprio. Nesse caso, não só está sendo infringida umaregra de convivência como também uma norma jurídica, uma vez que estásendo desrespeitada a lei de silêncio, que passa a ser aplicada após 10h da noite.

Talvez seja escusado acrescentar que, embora tal lei faça parte da legis-lação brasileira, parece condenada a ser mais uma das “leis que não pegam”.É fato que as leis precisam da chancela dos costumes para efetivamente entra-rem em vigência e serem cumpridas. Não sendo a referida lei uma daquelasque se chocam frontalmente com os costumes, é difícil entender a resistênciadas pessoas em respeitá-la. O pouco apreço que em algumas sociedades se tempelo outro, pelo que é comum, pelo bem público pode ser explicado pelodéficit de ética dos indivíduos e pela incapacidade de as instituições reagirema seu achincalhamento moral. No plano público fica magnificado o que écomum, e se difunde de modo atomizado, no plano privado.

Suponha-se agora que um indivíduo resolva fazer um churrasco dentro doseu apartamento. Nesse caso, estaria justificada a alegação de que “dentro daminha casa faço o que quero”? Não, pois assim como o som, o odor goza dapropriedade de se irradiar de sua fonte, de atravessar o espaço e chegar a luga-res afastados daquele em que foi gerado. Em outras palavras, assim como o somdemasiadamente alto, após as 10h da noite, pode agredir os delicados ouvidosde hipotéticos vizinhos, o odor da fumaça desprendida do churrasco, antes ouapós 10h da noite, pode agredir as narinas sensíveis de possíveis vizinhos.

É importante não perder de vista que nos dois últimos exemplos foi apre-sentada uma séria objeção à visão, bastante disseminada na sociedade con-temporânea, que tende a encarar as esferas pública e privada como departa-mentos estanques. Só que na realidade são dois espaços dotados de fronteirasde difícil demarcação e que se mantêm em diuturnos e complexos processos

étic

a pú

blic

a e

esta

do d

e di

reito

Page 168: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

de interação. Nos dois últimos exemplos, descrevemos ações praticadas nosestritos limites da esfera privada cujos efeitos os ultrapassam. E não se podedizer que atinjam a esfera pública. Mas incontestavelmente mostram o quesignifica “penetrar abusivamente na esfera privada alheia”.

É possível encontrar exemplos de condutas eticamente aceitáveis oureprováveis, que tendo sido assim consideradas na esfera pública, não possamsê-lo na esfera privada? A dificuldade em encontrar um exemplo nos faz levan-tar a hipótese de que, em termos comportamentais, a esfera pública não repre-senta uma descontinuidade em relação à esfera privada. A diferença crucial éque na vida pública as pessoas têm com maior freqüência sua “qualidademoral” testada. Sendo assim, as diferenças importantes que a esfera públicaguarda com a privada não devem ser caracterizadas por oposição e sim porexpansão de funções e atribuições. Não são diferenças de espécie, apenas degrau, em virtude de a sustância ética ser a mesma nas duas esferas.

Fatos graves da vida moral nacional, como o “mensalão”, deixam claroque parte significativa dos membros dos poderes da república adota práticasque exigem punição exemplar. Não faz sentido pensar que os envolvidos nessegrande esquema de corrupção perderam a “consciência ética” quando ingres-saram na vida pública. A visão que perfilhamos se aproxima bastante da aris-totélica: o domínio da política é um prolongamento do da vida pessoal.Portanto, não subsiste descontinuidade entre ética e política. Tal perspectivase choca com a concepção de Maquiavel que sustenta que, ao se ingressar nodomínio da política (por definição um domínio público), devem ser abando-nadas quase todas as virtudes da ética (privada ou pessoal), já que podem seconstituir em entrave aos objetivos políticos perseguidos.

Caso se leve em consideração única e exclusivamente a eficácia da açãopolítica, sem qualquer preocupação de natureza ética com os meios emprega-dos, e se se entende que isso não só é como deve ser assim, fica muito difícil,se não impossível, discordar de Maquiavel. Mas se for levada em conta nãosomente a eficácia, mas também o valor moral dos meios empregados, aí ficamuito difícil, se não impossível, concordar com ele. Em outras palavras, querse esteja no domínio da esfera privada quer no da pública, é inaceitável amáxima de que os fins justificam os meios, pois não apenas os objetivos têm deser bons, mas também os meios.

A negação do preceito maquiavélico nos leva a defender a máxima kan-tiana de que indivíduos devem ser sempre tratados como fins em si mesmos,jamais como meios. É importante ter presente que esse tipo de imperativo(categórico) se aplica tanto na esfera privada como na pública. Mesmo por-

Page 169: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

que em ambas é violado toda vez que um indivíduo manipula seus seme-lhantes tomando-os como meros degraus para atingir determinada finalidade.Tanto nos relacionamentos interpessoais da esfera privada como nos impes-soais da esfera pública, podem ser encontrados indivíduos que, ao executaremdeterminada ação ou ao desempenharem certa função, jamais fazem a si pró-prios uma crucial indagação: “gostaria de ser tratado do mesmo modo quetrato meu semelhante?” Essa preocupação em se colocar no lugar do outroantes de fazer qualquer coisa que o afete é indispensável para que a supra-mencionada máxima kantiana seja efetivamente posta em prática.

Geralmente, quando se pensa em esfera privada se pensa somente noambiente restrito do lar – lugar de expressão e manifestação da privacidade. Equando se pensa em esfera pública pensa-se no domínio das relações de Poder.Em nossa opinião, ambas têm de ser ampliadas. A primeira cobrindo os rela-cionamentos íntimos entre familiares e entre amigos, a segunda abrangendoos relacionamentos não-íntimos (formais) entre os socii. Os relacionamentospolíticos de representantes com representados é apenas uma dimensão da esfe-ra pública. Pense-se, por exemplo, nas diversas formas de interação que ocor-rem no interior de uma empresa privada. Não cabe dizer que estejam situadasna esfera privada pelo simples fato de uma empresa ser qualificada de parti-cular. E só cabe dizer que pertencem à esfera pública caso se pressuponha queos conceitos de “público” e “privado” apresentam, quando aplicados a organi-zações, sentidos especiais, de tal forma que (1) “privado” passa a ser “parti-cular”, “relativo à iniciativa privada” e (2) “público” passa a ser governamen-tal – relativo a tudo que diz respeito ao governo.

Sabendo-se que as coisas nem sempre foram assim, seria interessante per-guntar em que momento da história foi gerada a dicotomia público/privado?Há razões para pensar que, se se entende que está em jogo (1) a oposiçãoórgão governamental/empresa privada e/ou (2) a oposição relacionamentosíntimos/relacionamentos formais, é certo que a primeira não pode ser encon-trada em culturas pré-letradas a respeito das quais é problemático se falar emEstado. Embora seja menos controverso falar em Estado na Antiguidade,época na qual se pode verificar a passagem da pré-história à história, o Estado,com a forma que hoje o caracteriza, só passou a existir no final da IdadeMédia e inícios da Idade Moderna (século XV). Quanto a (2) queremos crerque, a partir do momento em que as culturas existentes deixam de ser con-glomerados de pequenos grupos semelhantes a “famílias”, inevitavelmente osrelacionamentos íntimos passam a coexistir com os formais; abre-se espaçopara o surgimento dos relacionamentos contratuais e impessoais (típicos da

étic

a pú

blic

a e

esta

do d

e di

reito

Page 170: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Gessellschaft por oposição aos típicos da Gemeinschaft). Cabe então dizer queé justamente nesse momento que desponta a dicotomia público (formal)/pri-vado (íntimo, informal).

Disso se infere que, se há uma ética pública, não pode ser concebidacomo anterior ao nascimento do Estado moderno. Ou melhor, só pode serpensada como algo que emerge contemporaneamente ao Estado. Mas isso nãoquer dizer que sua jurisdição se circunscreva ao domínio político stricto sensucaracterizado pelas formas de poder, pelos relacionamentos do Estado com oscidadãos etc. Com isso, estamos ampliando a jurisdição de uma possível éticapública, de modo a abarcar os relacionamentos interpessoais de caráter formalque ocorrem no interior da “sociedade dos indivíduos”, para usar a felizexpressão de Elias (1994).

Mas que possíveis diferenças experimenta um indivíduo ao passar dodomínio da esfera pública para o da esfera privada? Não há razão para se pen-sar que nenhuma diferença vivencie; sua identidade pessoal não sofre umamodificação substancial. Só que se verá obrigado a desempenhar outrospapéis. Na esfera privada, pode ter papéis como o de pai, esposo, amigo etc.e manter relacionamentos interpessoais informais; porém, na esfera pública,terá de desempenhar papéis como o de colega de trabalho, empregado de umaempresa privada, funcionário público, vereador, prefeito, contribuinte, pro-dutor, consumidor etc.

É evidente que tais papéis encontram-se superpostos em ambas as esfe-ras, já que possuem existência apenas potencial, quando meras possibilidadesde desempenho, e existência atual quando são de fato desempenhados. Écabível imaginar que os papéis exercidos na esfera privada possam também sê-lo na esfera pública. Há, por exemplo, a situação em que um indivíduo é leva-do a ponderar: “não estou lhe dizendo isto como chefe, mas como amigo”. Amesma pessoa pode se comportar ora como chefe ora como amigo e não hácontradição em afirmar que pode ser, ao mesmo tempo, um excelente chefe eum péssimo amigo.

Temos, no entanto, razões para crer que os papéis exercidos na esferapública só raramente podem sê-lo na esfera privada. Imagine-se, por exem-plo, um indivíduo que, investido do papel de general, procura exercê-lo nãosó no âmbito de sua instituição militar, em suas funções de ofício, mas tam-bém em outros domínios da vida pública. Não há razão para que atue comogeneral nos relacionamentos com sua esposa e filhos ou quando, em buscade lazer, está de sunga na praia. Na praia todos são banhistas; ninguém éautoridade na areia ou na água, a não ser o policial devidamente uniformi-

Page 171: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

zado que tenha sido designado para lá atuar com o objetivo, por exemplo, decoibir eventuais furtos.

Indivíduo e papel são conceitos muito importantes para a construção deuma teoria da ética pública em virtude de os diversos papéis que um indiví-duo pode exercer estarem estreitamente relacionados com seus desempenhose estes, por seu turno, intimamente ligados a padrões de conduta passíveis deavaliação ética. Para se ter uma idéia de como isso se dá vale a pena examinar,ainda que perfunctoriamente, a conduta reprovável, muito freqüente em paí-ses como o Brasil, da carteirada. Invocar a condição de autoridade só deveriaser feito por quem está no efetivo exercício da função de autoridade. Fora doexpediente e do serviço, a autoridade perde seu poder de autoridade. Não é ostatus que torna alguém autoridade em exercício e sim o contexto de atuaçãoem que assim é reconhecida.

A carteirada se parece com a situação em que o ator certo entra na cenaerrada. Quando a situação requer que uma autoridade se apresente como tal,a expectativa é a de que se desincumba a contento – com eficiência e probi-dade – de sua missão. A omissão da autoridade é tão nefasta quanto a atitudeque a leva a se apresentar como autoridade em contextos nos quais não temessa função. Diante da cena de um homem surrando uma indefesa criança –ainda que seja seu pai ou responsável – espera-se a pronta intervenção do poli-cial que a ela assiste. Mutatis mutandis, é inadmissível que um policial que setenha envolvido em um acidente de trânsito, independentemente de se cul-pado ou vítima, puxe sua carteira funcional com o fito de intimidar ou resol-ver as coisas a seu favor. A carteirada é uma variante social da conhecida falá-cia do argumentum ad baculum (em que há uma ameaça explícita ou tácita)ou do argumentum ad auctoritatem (quem o emprega em vez de se comportarcomo autoridade, comporta-se como autoritário).

É ilustrativo do desrespeito do espaço público de exercício do poder ocaso da representante do povo que em uma sessão do Congresso Nacional –na qual se decide pela absolvição de seu colega de partido – começa a bailarefusivamente como se estivesse em um salão de dança ou em sua casa. Lugarescomo o Congresso não se prestam a bailados catárticos que comemoram apreservação de mandatos de suspeitos de terem ferido o decoro parlamentar.Tal caso exemplifica bem um tipo de conduta que, caso ocorra num ambien-te informal como o de um clube ou de uma gafieira, se caracteriza como amo-ral. No caso de ser o comportamento de alguém investido de autoridade, noespaço de um dos três poderes da república, não há como deixar de caracteri-zá-lo como indecoroso e, por conseguinte, como imoral.

étic

a pú

blic

a e

esta

do d

e di

reito

Page 172: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Os conceitos de papel e contexto de desempenho são cruciais para a ade-quada qualificação das condutas como moralmente aceitáveis ou censurá-veis. Trata-se fundamentalmente de adequação ou inadequação ao papel eao contexto de desempenho. No que diz respeito especificamente à éticapública, o bom relacionamento dos indivíduos entre si e o comportamentodos indivíduos à luz dos costumes e instituições devem obedecer a padrõescujas feições devem ser estabelecidas de acordo com a natureza dos papéis edos costumes/instituições. Pensamos ser esta a tarefa da ética. Podemosapresentar uma concepção de ética válida tanto para o domínio privado(pessoal) como para o público. Como contribuição à elaboração dessa ética,proporemos abaixo princípios acompanhados de uma justificativa para cadaum deles. Pretendemos mostrar que todos os princípios podem, em últimaanálise, ser deduzidos do Princípio 1, que desempenha o papel de RegraFundamental. Perfilhamos a tese de que tais princípios devem ser obedeci-dos em todos os domínios da atuação humana, já que a violação de qual-quer um deles atinge negativamente não só os indivíduos como o funcio-namento das instituições.

Nosso procedimento consistirá em partir de um Princípio, axiomatica-mente tomado como Regra Fundamental, para dele derivar um pequeno con-junto de subprincípios (GUERREIRO, 2002:177-187):

(1) PRINCÍPIO DE RECIPROCIDADE NEGATIVA:

Ninguém tem o direito de fazer ao outro aquilo que não gostaria que o outrolhe fizesse.

Entre as diversas coisas que um indivíduo não gostaria que o outro lhefizesse está certamente o ato do outro de lhe tirar a vida. Logo, pode-sededuzir de (1) que nenhum homem tem o direito de tirar a vida do outro, anão ser em legítima defesa, que pode ser justificada pelo instinto de preser-vação do indivíduo. Entre as outras coisas que um indivíduo também nãogostaria que o outro lhe fizesse está a de ser coagido injustificadamente a fazeralgo. E isto remete a:

(2) PRINCÍPIO DA LIBERDADE (NEGATIVA):

Nenhum indivíduo tem o direito de coagir injustificadamente o outro a fazerqualquer coisa.

Page 173: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Ninguém gosta evidentemente que o outro lhe cerceie a liberdade. Aliberdade em suas diversas formas de manifestação: liberdade de ir e vir, liber-dade de expressão, liberdade de ação e empreendimento etc. Só que, se osindivíduos gozassem de liberdade irrestrita, a liberdade de uns destruiria a dosoutros ou até a de todos. Justificam-se, portanto, restrições à liberdade, massomente para as ações que constituem risco de dano material ou moral a ou-trem. A liberdade de expressão não inclui o direito de injuriar, caluniar oudifamar o outro. A liberdade de se movimentar não inclui, por exemplo, odireito de invadir propriedade alheia. A liberdade empresarial não confere odireito de formar monopólios e cartéis; e nem a de usar outros expedientesque visam a manipular a competição numa economia de livre mercado. Emsíntese, o único critério razoável para a coerção é o condensado pela fórmulade Mill (1968:12): No harm to others (Nenhum dano a outrem):

O único propósito para o qual o poder pode ser legalmente exercido, contra avontade de qualquer membro de uma comunidade civilizada, é para preve-nir danos aos outros. O próprio bem, físico ou moral, do cidadão não égarantia suficiente de que esteja sendo legalmente exercido.

Há quem entenda que, a despeito de parecer simples e razoável, o princí-pio de Mill está sujeito a questionamentos. Em primeiro lugar: que devemosentender por “dano” (harm)? Em segundo, quem são “os outros”? Em terceirolugar, “dado que Mill diz que a prevenção do dano aos outros pode constituirrazão para coerções, presumivelmente pensa que há ainda a questão de se sedeve exercer coerção sobre condutas, mesmo quando causam danos aos ou-tros (...) Mill não diz que o poder tem de ser usado (must be used) para pre-venir danos a outros”.

Essas três objeções nos parecem questionáveis. Comecemos pela que des-ponta como mais problemática. Como alegar que Mill não diz que o podertem de ser usado para prevenir danos aos outros? Ao dizer “o único propósi-to para o qual o poder pode ser legalmente exercido” (power can be rightfullyexercised), deixou bastante claro que não se trata de uma questão de facto e simde jure. Como Mill não era um legalista, para ele o poder legalmente con-quistado tinha de ser legitimamente exercido para que pudesse encontrar umajustificação. Quem são os outros? Ora, outros indivíduos, nossos semelhan-tes. Que devemos entender por “dano”? É muito mais fácil chegar a um vere-dicto consensual sobre se um indivíduo praticou efetivamente um mal contraum outro do que chegar a um consenso em torno do que diferentes indiví-

étic

a pú

blic

a e

esta

do d

e di

reito

Page 174: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

duos reputam um bem. Mesmo porque cada um busca à sua maneira a felici-dade ou a auto-realização. A diversidade das formas de busca da felicidade ouauto-realização gera uma variedade de valores positivos. O que é um bem,algo positivo, para um surfista não o é para um monge, a não ser que sejamtomados como básicos valores como o caráter sagrado da vida e o pleno usu-fruto da liberdade. Mas mesmo nesse caso surgem diferenças relativas ao quecada um pretende fazer com sua vida e sua liberdade. O que Mill proclama éque, desde que não as usem para produzir dano a outrem, todos têm o direi-to de fazer o que bem entenderem e não têm obrigação de dar satisfação aquem quer que seja.

(3) PRINCÍPIO DA NÃO-MANIPULAÇÃO HUMANA:

Ninguém deve jamais tratar o outro como um meio e sim como um fim emsi mesmo.

Pode-se deduzi-lo sem dificuldade de (1) e a dedução se justifica por umarazão bastante simples: o indivíduo que trata o outro como um meio com vis-tas a atingir um fim, qualquer que seja, não gostaria que o outro o tratasse domesmo modo. Algumas pessoas gostam de manipular os outros, mas ninguémaprecia ser manipulado. Portanto, aquele que viola (3), viola necessariamente(1) e em determinados casos viola também (2).

Supondo que (1), (2) e (3) fossem sempre estritamente observados portodos os indivíduos, a história não registraria situações em que milhões deindivíduos foram tratados como meios, como massa sem vida própria, emnome da construção de uma sociedade perfeita ou da manutenção de umaordem política autoritária ou totalitária. O Terceiro Reich e o socialismo realexemplificam de modo trágico a redução política do ser humano à massa poli-ticamente manobrada e controlada. A redenção prometida pelos regimes cole-tivistas se transformou no pesadelo dos campos de concentração e nos de ree-ducação ideológica. O “processo dialético da história” não levou à superaçãodas injustiças – só fez agravá-las e suprimir a liberdade. Apesar de ainda hojeterem inúmeros admiradores no mundo do pensamento político-social, a his-tória jamais absolverá Robespierre, Napoleão, Hitler, Mussolini, Lenin,Stalin, Mao-Tsê-Tung, Pol Pot, Fidel Castro e tutti quanti pelos crimes come-tidos. Quando há indivíduos que sofrem as conseqüências pelos meios empre-gados com vistas à consecução de determinados fins, com base em (3) cum-pre defender

Page 175: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

(4) PRINCÍPIO ANTIMAQUIAVÉLICO:

Os objetivos – por mais excelsos – jamais justificam os meios.

Por mais nobres e supostamente benéficos que sejam os fins almejados,deve-se sempre avaliar com rigor ético os meios empregados para alcançá-los.Não basta que os fins sejam bons, é preciso que os meios também o sejam.Desse modo, aqueles que consideram justo e legítimo tirar de quem temmais para dar a quem tem menos, seja por meio de crua expropriação sejapor meio de refinadas formas de “redistribuição de renda”, deixam de con-siderar o fator ético aí envolvido. O que importa não é de quem x é tirado epara quem x é dado e nem tampouco o valor monetário de x e sim o ato deos poderes constituídos se apoderarem de coisas que pertencem a determi-nados cidadãos para dar a outros. Não é difícil perceber como a violação de(4) incorre na violação de (1). Os que consideram válido se apropriar de pro-priedade alheia, de modo a satisfazer um fim que julgam nobre, não gostamnem um pouco quando alguém se apodera de sua propriedade sob idênticaalegação, o que mostra que se trata de posicionamento hipócrita. De (4),pode-se derivar:

(5) PRINCÍPIO DA INVIOLABILIDADE DA PROPRIEDADE:

Nenhum indivíduo deve se apoderar de propriedade alheia (pública ou pri-vada) sob a pífia alegação de ser essa uma forma de se perseguir a grandemeta da “justiça social”.

Não é difícil mostrar que o descumprimento de (5) viola (1) porquedesrespeita princípio de reciprocidade negativa. Até porque aquele que gostade se apoderar do que é do outro não gosta quando ocorre o inverso. Viola(3) por tratar o outro, e aquilo que pertence ao outro, como meio para a con-secução de seus fins e viola (4) por considerar que seus meios justificam seusfins. A apropriação indébita do que é público se mostra ainda mais difundi-da no Estado de tipo patrimonialista como o brasileiro. A pior versão do pa-trimonialismo é aquela em que o bem público, por não ser de ninguém, nãopassa automaticamente a ser de todos, mas sim daqueles que chegam primeiroe põem as mãos nele. Esta nos parece ser, infelizmente, a conclusão a quemuitos homens públicos têm chegado no Brasil. Daí o bem público seramiúde privatizado e as funções próprias da iniciativa privada estatizadas.

étic

a pú

blic

a e

esta

do d

e di

reito

Page 176: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

(6) PRINCÍPIO DE NÃO-CERCEAMENTO DOS DIFERENTES

Modos de Auto-Realização: “Nenhum indivíduo deve cercear o modo de realização pessoal escolhido poroutro. Se o modo adotado não produz dano nem risco de dano (físico oumoral) a ninguém não deve ser desrespeitado por ninguém, por mais indese-jável e inaceitável que alguém o considere”.

Esta formulação procura incluir uma série de princípios relacionadoscom o respeito pela diversidade. Com destaque para o respeito à diversidade– de religiões, visões de mundo e opiniões – tal como defendida pela tradiçãoliberal desde a publicação de Areopagitica ou Discurso sobre a liberdade deimprimir sem autorização nem censura (1644) de John Milton, das Cartas sobrea tolerância (1689) de John Locke e do verbete “Tolerância” (1764) doDicionário Filosófico de Voltaire. A isso se deve acrescentar a diversidade departidos políticos, organizações sindicais profissionais e patronais, organiza-ções não-governamentais, associações civis de qualquer natureza (desde queseus estatutos não contrariem leis vigentes) e, é importante não esquecer, adiversidade irrestrita dos modos de realização pessoal.

Outra máxima kantiana merece também ganhar destaque: “ninguém háde me obrigar a ser feliz à sua maneira”. Como a moral kantiana defende aestrita observância do Princípio de Reciprocidade Negativa, pode-se inferir:não hei de obrigar ninguém a ser feliz da maneira que reputo certa ou ideal. Ea partir daí se pode universalizar: “Ninguém há de obrigar ninguém a ser felizà sua maneira”. No que diz respeito especificamente à liberdade de expressão,o preceito de Voltaire continua tendo validade: “Não concordo com uma sópalavra do que dizes, mas defenderei até a morte teu direito de dizê-lo”.

A aceitação da diversidade de opiniões e de modos de vida implica quenão se deve cercear a ação e a expressão alheias. Mas não acarreta nenhumaobrigação de fornecimento de meios para a realização de determinados fins(subsídios a atividades consideradas de “utilidade pública”, à expressão artísti-ca ou cultural etc.). Tampouco implica necessidade de buscar concordânciacom opiniões alheias. Como torna manifesto a máxima voltairiana, cumpredefender não só o direito de liberdade de expressão como também a pre-valência do debate racional – por meio do qual todos participam defendendoaquilo em que acreditam – para que a vitória final seja a do melhor argu-mento. Só assim triunfa a razão sobre crenças que, a despeito de sedutoras,carecem de sustentação lógico-empírica.

Page 177: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Não é difícil mostrar que os princípios até aqui propostos estão afinadoscom a concepção de Estado – para alguns, mínimo – enxuto e eficiente e nãocom o intervencionismo e o dirigismo. Assim caracterizado, o Estado temcomo missão crucial proteger o que precisa e merece ser protegido: os direitosà vida, à liberdade, à propriedade, o respeito aos contratos juridicamente per-feitos e, para não esquecer Thomas Jefferson, o direito à busca da felicidade. OEstado Grande pelos tantos negócios – ou negociatas! – que faz com agentesprivados ávidos por saqueá-lo em conluio com os políticos é uma grande amea-ça à autêntica democracia. As complexas e espalhadas teias de corrupção quetal Estado cria vão aos poucos minando o senso moral da sociedade, uma vezque passa a prevalecer a sensação difusa de que está “tudo podre”. Isso acarre-ta a descrença nas instituições e constitui, em última análise, uma séria fontede desestabilização, e até de destruição, do Estado de Direito.

Nozick (1974), filósofo contemporâneo discípulo de Locke e Jefferson,desenvolveu uma das mais consistentes argumentações a favor do EstadoMínimo. De saída, formulou a seguinte hipótese: o que aconteceria, caso oanarquismo se tornasse triunfante e se chegasse à supressão do Estado? Oresultado previsível seria a emergência do estado natural hobbesiano em quevicejam a anomia e a barbárie – a “guerra de todos contra todos” (bellumomnium contra omnes) em que “o homem é lobo para o homem” (homo homi-ni lupus). Se o Estado emerge como algo necessário para evitar a beligerânciaendêmica entre os homens e para “conter nossos vícios” (Thomas Paine), écabível dizer que se não existisse, teria de ser inventado; e se fosse suprimido,teria de ser refeito.

Proclamando que o Estado emergiu como uma instituição imprescindí-vel à coesão social e à segurança dos membros da sociedade – e não como umaparato destinado a defender os interesses da classe dominante como pro-punham Marx e Engels – Nozick indaga que funções o Estado deve assumirde modo a cumprir estritamente o papel que lhe foi destinado quando de suacriação. E sua resposta não difere basicamente da resposta liberal clássica: asque não têm como ser abraçadas pela iniciativa privada – o fornecimento desegurança nacional (forças armadas) e segurança pública (polícia) e a aplicaçãoda lei (magistratura, ministério público, defensoria pública) – porque, caso ofossem, produziriam graves distorções e até desagregação social. Como pregaBenjamin Constant, o Estado é insubstituível no tocante às funções que só elepode desempenhar a contento e perfeitamente substituível em funções quepodem ficar a cargo da iniciativa privada e, acrescente-se, com muito mais efi-ciência e melhores resultados:

étic

a pú

blic

a e

esta

do d

e di

reito

Page 178: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Se a finalidade da sociedade é a conservação e a tranqüilidade de seus mem-bros, tudo que é necessário para que a conservação seja garantida e a tran-qüilidade não seja perturbada é a competência da legislação, pois a legis-lação não é outra coisa senão o esforço da sociedade para satisfazer àscondições de sua existência. Mas tudo aquilo que não é necessário à garan-tia da conservação e à manutenção da tranqüilidade está fora da esferasocial e legislativa.

(CONSTANT, 1986:104).

A expressão “a finalidade da sociedade” é elíptica. Entenda-se por ela “afinalidade dos que se associaram para formar a sociedade”, pois, como se sabe,Constant não atribuía finalidades próprias a classes sociais e à sociedade comoum todo. Trata-se da mentalidade antropomórfica tão fortemente arraigadano ser humano em geral – como assinala Hayek (1973, vol. 1, p. 37) – e emparticular nas doutrinas coletivistas tão apreciadas no Brasil (OLIVA, 1999).Em outra passagem, explicita claramente os fatores que ameaçam a conser-vação da sociedade e perturbam sua tranqüilidade. Sem, além do mais, deixarde rejeitar uma das características mais marcantes do Estado do Bem-Estar:seu pretenso papel de “redistribuidor” de renda:

(...) os atentados à vida, à propriedade, à segurança, são crimes e devem serpunidos. Todo o resto deve permanecer livre. Daí que quando uma nação estána infância seus legisladores também estão na infância. O título de legisla-dor não confere de nenhum modo um privilégio intelectual. A legislação nãodeve de modo algum procurar fixar as riquezas no Estado e distribuí-las comeqüidade. As riquezas se fixam em um Estado quando há liberdade e segu-rança e para que estas existam basta a repressão dos crimes. As riquezas se dis-tribuem e se repartem por si mesmas quando há um perfeito equilíbrio,quando a divisão de propriedades não é perturbada e a atividade da indús-tria não encontra entraves. Ora, o que pode ser mais favorável a uma e aoutra é justamente a neutralidade, o silêncio da lei.

(CONSTANT, 1986:100-1).

Evidentemente, não basta liberdade e segurança para que se gere pros-peridade pessoal e coletiva. Tais condições são necessárias, mas não sufi-cientes. Ao dizer que “as riquezas se distribuem e se repartem por si mesmas”,Constant pretende acentuar que devem ser vistas como conseqüência pre-visível do trabalho, da competência, da perseverança dos indivíduos e de

Page 179: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

fatores externos, favoráveis, alheios às ações dos agentes. E não como algofornecido por uma agência de distribuição como, por exemplo, o Estado-Papai Noel. Mesmo porque, como já se disse com admirável perspicácia, ogoverno não dá um centavo para ninguém que não seja tirado de alguém.

É penetrante a observação de Constant de que países que estão na infân-cia têm legisladores nesta mesma condição e que o título de legislador nãoconfere privilégio intelectual a ninguém. Ambas as asserções se aplicam admi-ravelmente bem a países como o Brasil em que os representantes políticosestão realmente à altura dos seus representados, e pela qualidade da legislaçãopode-se avaliar a qualidade dos legisladores, bem como a dos que os elegemcomo seus legítimos representantes.

Rigorosamente avaliado, o Estado brasileiro é justamente o contrário doEstado pensado por Constant e por outros grandes pensadores políticos; his-toricamente o Estado brasileiro se dedicou a fazer – e de modo inepto – o quedeveria ter ficado totalmente a cargo da iniciativa privada (atividades econô-micas) e deixou de desempenhar a contento o que compõe sua missão inde-legável (segurança pública e Justiça). O resultado é que todos pagam para terpolícia eficiente e ninguém tem; quem pode arcar com os custos vê-se força-do a contratar segurança particular, pagando duas vezes para ter o serviçoassim como paga duas vezes para receber atendimento médico.

O argumento a favor do Estado Mínimo pode ser formulado assim: se oEstado emergiu de um “contrato social” em que os governados concederampoder aos governantes para gozar dos benefícios de um estado de direito, e sefoi a ele atribuída a função precípua de fornecer coesão e segurança social, porque razão precisa ele desempenhar outras funções, além daquelas estritamen-te necessárias para o cumprimento de seu papel? Enganam-se os anarquistasquando consideram o Estado um mal desnecessário; equivocam-se os socialis-tas quando o vêem, depois de o terem execrado no passado, como um bemfundamental, pois, na realidade, o Estado é apenas um mal necessário. E umavez que se tem de aceitar a existência do Leviatã, devem os democratas since-ros lutar para limitar seu enorme poder sobre a sociedade civil, a única legíti-ma detentora de uma soberania delegável.

Poderás tu fisgar o Leviatã com um anzol, e amarrar a sua língua com umacorda? Serás capaz de passar um junco em suas ventas ou de furar sua man-díbula com um gancho? Ele te fará muitos rogos e te dirigirá palavras ternas?Concluirá ele um pacto contigo, a fim de que faças dele sempre teu servo?(Livro de Jó, 40, 20-23).

étic

a pú

blic

a e

esta

do d

e di

reito

Page 180: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

CA

DE

RN

OS

AD

EN

AU

ER

VII

(20

06

) N

º3

Se fosse possível, o ideal seria a humanidade estabelecer padrões de inte-ração livres de qualquer controle e regulação do Leviatã. Mesmo porque suaexistência paira sobre as cabeças dos homens como uma constante ameaça dediminuição ou cerceamento da liberdade. O cão-de-guarda que pode ser con-vocado para impedir que predomine a lei da selva, o império do mais forte,costuma frequentemente dirigir sua ferocidade contra aqueles a que deveriaproteger. E o pior é que gera dois filhotes igualmente ameaçadores: a classe deburocratas que, convocada para nos servir, tem se servido da sociedade e umaclasse de políticos que em vez de nos representar tem pensado apenas em seusinteresses menores, quando não inconfessáveis. A política, minada pela cor-rupção, tem se transformado em um palco ora dramático ora cômico. A farsaatinge o ápice quando os políticos pedem dinheiro dos ricos e votos dospobres prometendo proteger uns dos outros. Ora, para que a Ética Mínimase encontre com o Estado Mínimo é preciso derivar dos Princípios já enuncia-dos o seguinte:

(7) PRINCÍPIO DO ANTI-INTERVENCIONISMO:

Os agentes do Estado não devem intervir nas relações entre os socii a não serpara fiscalizar o cumprimento das regras – justas – do jogo econômico-social.

Surpreendemos ainda hoje uma grande confusão conceitual, geradatanto por má fé como por ignorância, em torno das propostas de correçãodas chamadas falhas de mercado. É evidente que, em uma economia total-mente desregulamentada, os agentes podem se sentir tentados a adotar con-dutas capazes de prejudicar o bom funcionamento do mercado. Justifica-se,portanto, a criação de uma legislação preocupada em fazer com que a ofer-ta e a demanda oscilem naturalmente, com que os direitos autorais sejamrespeitados, com que haja segurança jurídica baseada no estrito cumpri-mento dos contratos; e, last, but not least, que se mostre capaz de impedir aformação de cartéis e monopólios (de caráter público ou privado). Mas nãose justificam intervenções destinadas a congelar ou controlar preços, criarreservas de mercado, substituir importações por similares nacionais, prote-ger a indústria nacional sob a alegação de preservação dos empregos,fornecer subsídios e incentivos etc. Estas e outras medidas de natureza simi-lar prejudicam gravemente a prosperidade econômica, assim como intoxi-cam a moralidade do trabalho honesto e sua recompensa monetária, poistanto a prosperidade como a moralidade só costumam crescer vigorosa-

Page 181: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

mente em condições em que há competição leal dentro de regras por todosencaradas como justas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONSTANT, B. De la liberté des anciens comparée à celle des Modernes. In:MANENT, P. (Org.). Les Liberaux. Vol. 2 Paris: Hachette, 1986.

ELIAS, N. A Sociedade dos Indivíduos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor, 1994.

HAYEK, F. A. von. Law, Legislation and Liberty. Vol.1: Rules and Order. Londres:Routledge and Kegan Paul, 1973.

GUERREIRO, M. A. L. Liberdade ou Igualdade? Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.

MILTON, J. Aeropagitica and other political writings of John Milton. Indianapolis:Liberty Fund, 1999.

NOZICK, R. Anarchy, State and Utopia. Nova Iorque: Basic Books, 1974.

OLIVA, A. Conhecimento e Liberdade. Individualismo X Coletivismo. 2. ed. revista eampliada. Porto Alegre. EDIPUCRS, 1999.

STUART MILL, J. On Liberty. Harmondsworth: Penguin Books, 1968.

VOLTAIRE. Dictionnaire Philosophique. Paris: Flammarion, 1946.

étic

a pú

blic

a e

esta

do d

e di

reito

ALBERTO OLIVA é filósofo, escritor e professor da UFRJ. Mestre em Comuni-cação e doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor-palestrante da EGN (Escolade Guerra Naval) e da ECEME (Escola de Comando e Estado-maior). É arti-culista do Jornal de Tarde desde 1993. Possui significativas publicações como“Liberdade e Conhecimento”, “Ciência e Sociedade. Do Consenso à Revolução”, “ASolidão da Cidadania”, “Entre o Dogmatismo Arrogante e o Desespero Cético” e“Ciência e Ideologia”.

MARIO GUERREIRO é doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor adjunto IV doDepartamento de Filosofia da UFRJ. Membro fundador da Sociedade Brasileirade Análise Filosófica. Membro fundador da Sociedade de Economia Personalis-ta. Membro do Instituto Liberal do Rio de Janeiro e da Sociedade de EstudosFilosóficos e Interdisciplinares da UniverCidade. Autor de obras como Proble-mas de Filosofia da Linguagem (Nierói: EDUFF, 1985); O dizível e o indizível (Cam-pinas: Papirus, 1989); Ética mínima para homens práticos (Rio de Janeiro: InstitutoLiberal, 1995). O problema da ficção na filosofia analítica (Editora UEL, Londrina,1999). Ceticismo ou senso comum? (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999). Deus exis-te? Uma investigação filosófica. (Londrina: Editora UEL, 2000). Liberdade ou Igual-dade (Porto Alegre: EDIOUCRS, 2002).

Page 182: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo
Page 183: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

Educação e pobreza na América Latina (n.2, 2006)

China por toda parte (n.1, 2006)

Energia: da crise aos conflitos? (n.4, 2005)

Desarmamento, segurança pública e cultura da paz (n. 03, 2005)

Reforma política: agora vai? (n. 02, 2005)

Reformas na Onu (n. 01, 2005)

Liberdade Religiosa em questão (n. 04, 2004)

Revolução no Campo (n. 03, 2004)

Neopopulismo na América Latina (n. 02, 2004)

Avanços nas Prefeituras: novos caminhos da democracia (n. 01, 2004)

Mundo virtual (n. 06, 2003)

Os intelectuais e a política na América Latina (n. 05, 2003)

Experiências asiáticas: modelo para o Brasil? (n. 04, 2003)

Segurança cidadã e polícia na democracia (n. 03, 2003)

Reformas das políticas econômicas: experiências e alternativas (n. 02, 2003)

Eleições e partidos (n. 01, 2003)

Publicações anteriores dos Cadernos Adenauer

Page 184: Brasil: o que resta fazer? - kas.de · Evando e Suze são exceções que se destacam da imensa massa proletária brasileira, um exército com nível de instrução perigosamente baixo

O Terceiro Poder em crise: impasses e saídas (n. 06, 2002)

O Nordeste à procura da sustentabilidade (n. 05, 2002)

Dilemas da Dívida (n. 04, 2002)

Ano eleitoral: tempo para balanço (n. 03, 2002)

Sindicalismo e relações trabalhistas (n. 02, 2002)

Bioética (n. 01, 2002)

As caras da juventude (n. 06, 2001)

Segurança e soberania (n. 05, 2001)

Amazônia: avança o Brasil? (n. 04, 2001)

Burocracia e Reforma do Estado (n. 03, 2001)

União Européia: transtornos e alcance da integração regional (n. 02, 2001)

A violência do cotidiano (n. 01, 2001)

Os custos da corrupção (n. 10, 2000)

Fé, vida e participação (n. 09, 2000)

Biotecnologia em discussão (n. 08, 2000)

Política externa na América do Sul (n. 07, 2000)

Universidade: panorama e perspectivas (n. 06, 2000)

A Rússia no início da era Putin (n. 05, 2000)

Os municípios e as eleições de 2000 (n. 04, 2000)

Acesso à justica e cidadania (n. 03, 2000)

O Brasil no cenário internacional (n. 02, 2000)

Pobreza e política social (n. 01, 2000)

Para assinar ou adquirir os Cadernos Adenauer, acesse:

www.adenauer.org.br