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NÙMERO: 253/2011 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS BRUNA MENDES DE VASCONCELLOS Gênero, tecnologia e Economia Solidária: reflexões a partir da experiência de uma associação de mulheres rurais Dissertação apresentada ao Instituto de Geociências como parte dos requisitos para obtenção do Título de Mestre em Política Científica e Tecnológica. Orientadora: Prof ª Dr ª Lea Maria Leme Strini Velho CAMPINAS - 2011 i

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NÙMERO: 253/2011

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

BRUNA MENDES DE VASCONCELLOS

Gênero, tecnologia e Economia Solidária: reflexões a partir da experiência de uma associação de mulheres rurais

Dissertação apresentada ao Instituto de Geociências

como parte dos requisitos para obtenção do Título de

Mestre em Política Científica e Tecnológica.

Orientadora: Prof ª Dr ª Lea Maria Leme Strini Velho

CAMPINAS - 2011

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© by Bruna Mendes de Vasconcellos, 2011

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PORCÁSSIA RAQUEL DA SILVA – CRB8/5752 – BIBLIOTECA “CONRADO PASCHOALE” DO

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIASUNICAMP

Informações para a Biblioteca DigitalTítulo em ingles: Gender, technology and solidarity economy : reflections through theexperience of an association of rural womenPalavras-chaves em ingles:GenderTechnologySolidarity economyÁrea de concentração: PC&T – Política Científica e TecnológicaTitulação: Mestre em Política Científica e Tecnológica.Banca examinadora:Lea Maria Strini Velho (Presidente)Maria José Teixeira CarneiroMaria Margaret LopesData da defesa: 25-08-2011Programa de Pós-graduação em Política Científica e Tecnológica

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Vasconcellos, Bruna Mendes de, 1982-

V441g Gênero, tecnologia e economia solidária : reflexões a partir da experiência de uma associação de mulheres rurais / Bruna Mendes de Vasconcellos-- Campinas,SP.: [s.n.], 2011.

Orientador: Lea Maria Strini Velho. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geociências.

1. Gênero. 2. Tecnologia. 3. Economia solidária. I. Velho, Lea, 1952- II. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geociências. III. Título.

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SUMÁRIOLISTA DE TABELAS..................................................................................................................................................viiLISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS....................................................................................................................ixRESUMO........................................................................................................................................................................xiABSTRACT.................................................................................................................................................................xiiiRESUMÉN....................................................................................................................................................................xv

INTRODUÇÃO...............................................................................................................................................................1CAPÍTULO 1 – GÊNERO E TECNOLOGIA................................................................................................................7

1.1. Alguns antecedentes dos estudos feministas em ciência e tecnologia..............................................................91.1.1. Sobre a participação das mulheres na ciência e tecnologia......................................................................91.1.2. Feminismos radicais e Ecofeminismos...................................................................................................121.1.3. Feministas Socialistas..............................................................................................................................18

1.2. Contribuições das feministas em ESCT: a construção social das relações de gênero e tecnologia...............211.2.1. Tecnologias domésticas e mulheres rurais..............................................................................................26

1.3. Considerações finais.........................................................................................................................................32CAPÍTULO 2 – MULHERES RURAIS: CONTEXTO E ORGANIZAÇÃO.............................................................35

2.1. Agricultura familiar .........................................................................................................................................372.2. Assentamentos Rurais e luta pela terra............................................................................................................402.3. Relações de gênero no campo..........................................................................................................................44

2.3.1. Titularidade da terra, herança e acesso aos meios de produção.............................................................482.3.2. Organização coletiva das mulheres rurais...............................................................................................51

2.4. Economia Solidária..........................................................................................................................................532.4.1. Aproximações à Economia Feminista.....................................................................................................562.4.2. Empreendimentos solidários de mulheres rurais.....................................................................................62

2.5. Considerações finais.........................................................................................................................................66CAPÍTULO 3 - Relações de Gênero e Tecnologia na AMA.......................................................................................69

3.1. Procedimentos metodológicos..........................................................................................................................693.2. História do Assentamento Horto-Vergel..........................................................................................................753.3. História da Associação de Mulheres Agroecológicas (AMA).........................................................................773.4. A construção social de tecnologias no Horto-Vergel......................................................................................81

3.4.1. Fogões da cozinha comunitária...............................................................................................................823.4.2. A produção da farinha de mandioca........................................................................................................853.4.3. Os problemas com a farinheira................................................................................................................893.4.4. Outro modelo de farinheira......................................................................................................................933.4.5. Os “Professores Pardais” da Agricultura Familiar..................................................................................95

3.5. As cestas agroecológicas e a divisão sexual do trabalho.................................................................................983.6. Processamento de alimentos: a apropriação da tecnologia doméstica .........................................................1073.7. Disputas ao redor de um projeto de cozinha..................................................................................................1113.8. Cozinha: lugar de mulher?.............................................................................................................................116

CONCLUSÕES...........................................................................................................................................................119REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................................................................125

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LISTA DE FIGURASFigura 2. 1: Participação de Mulheres e Homens segundo o porte do EES................................................................57Figura 3.2: Metodologia ITCP/UNICAMP...................................................................................................................71Figura 3.3: Histórico AMA...........................................................................................................................................77Figura 3.4: Exemplo de fogão de cupinzeiro................................................................................................................83Figura 3.5: Exemplo 2 de fogão de cupinzeiro.............................................................................................................83Figura 3.6: Etapas do processamento de farinha de mandioca e equipamentos..........................................................87Figura 3.7: Prensa feita com tronco de eucalipto.........................................................................................................90Figura 3.8: Picotadeira fechada.....................................................................................................................................94Figura 3.9: Picotadeira Aberta......................................................................................................................................95Figura 3.10: Sistematização oficina ITCP/UNICAMP..............................................................................................101Figura 3.11: Sistematização 2 oficina ITCP/UNICAMP...........................................................................................103Figura 3.12: Mandioca chips e biscoitos feito pela AMA..........................................................................................109Figura 3.13: Barracão AMA, frente............................................................................................................................110Figura 3.14: Barracão AMA, lateral...........................................................................................................................110Figura 3.15: Barracão AMA, detalhe teto..................................................................................................................110Figura 3.16: Barracão AMA, detalhe piso..................................................................................................................110

LISTA DE TABELASTabela 3.1: Equipamentos Projeto ITCP/SPM...........................................................................................................114Tabela 3.2: Itens de instalação e utensílios Projeto ITCP/SPM.................................................................................114

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

AMA Associação de Mulheres Agroecológicas

ANA Articulação Nacional de Agroecologia

ANT Actor-Network Theory

APPR Associação dos Pequenos Produtores Rurais 12 de outubro

AST Adequação Sócio-Técnica

ECOSOL Economia Solidária

EES Empreendimentos Econômicos Solidários

ESCT Estudo Sociais em Ciência e Tecnologia

FBES Fórum Brasileiro de Economia Solidária

FINEP Financiadora de Estudos e Projetos

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

ITCP Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares

ITESP Instituto de Terras do Estado de São Paulo

MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário

MTE Ministério do Trabalho e Emprego

SCOT Social Construction of Technology

SENAES Secretaria Nacional de Economia Solidária

SIES Sistema de Informação da SENAES

SPM Secretaria de Políticas para as Mulheres

UNICAMP Universidade Estadual de Campinas

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

Gênero, tecnologia e Economia Solidária: reflexões a partir da experiência de

uma associação de mulheres rurais

RESUMODissertação de Mestrado

Bruna Mendes de Vasconcellos

Os estudos feministas da tecnologia têm argumentado, de maneira geral, que a tecnologia tem implicações nas relações de gênero. Mais especificamente, os estudos nesta tradição apontam que a construção histórica da tecnologia enquanto território próprio da masculinidade (e do capitalismo) afeta diretamente a vida das mulheres; mais recentemente, argumentam ainda que a tecnologia não apenas define as relações de gênero, mas que é também moldada por esta. Partindo desta perspectiva, que compreende a tecnologia, assim como o gênero, enquanto construção social, este estudo buscou identificar e analisar as relações entre gênero e tecnologia no contexto das recentes experiências da Economia Solidária, a partir do estudo de caso de uma associação de mulheres rurais. Realiza-se para tanto uma revisão da literatura feminista no âmbito dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT) e tendo em vista o estudo de caso selecionado, contextualiza-se a agricultura familiar no Brasil, ressaltando as relações de gênero nesse cenário, assim como as características próprias dos empreendimentos de economia solidária organizados pelas mulheres no campo. O trabalho de campo foi desenvolvido de forma paralela ao processo de incubação realizado pela Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP/UNICAMP) com uma associação de mulheres em assentamento rural. Além de entrevistas semi-estruturadas com as integrantes da associação, a pesquisa baseou-se em observação participante dos espaços de formação da incubadora, assim como em materiais e registros produzidos por diferentes meios e agentes. A partir de um resgate e análise das distintas experiências da associação com processos de construção e adaptação tecnológicas e produtivas, a pesquisa ilustra empiricamente as inter-relações existentes entre gênero e tecnologia no contexto desse empreendimento de mulheres rurais. Os resultados revelam as competências e capacidades dos agricultores familiares para desenvolver e adaptar tecnologia. Revelam também que os homens protagonizam as etapas mais relacionadas à montagem e construção dos equipamentos, mas destacam o papel das mulheres enquanto que, coletivamente, demandam, articulam e utilizam as tais tecnologias. Adicionalmente, evidencia-se que no cenário das cozinhas as mulheres são protagonistas nos processos de adaptação e definição tecnológica, e que se apropriam das mesmas para impulsionar seu processo de autonomização a partir do trabalho associado. Finalmente, destacam-se as dificuldades e contradições próprias da organização de empreendimentos solidários como via para a valorização dos trabalhos tradicionalmente femininos e para busca de autonomia para as mulheres.

Palavras-Chave: Gênero, Tecnologia, Economia Solidária, Mulheres rurais.

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

Gender, Technology and Solidarity Economy: reflections through the experience of an

association of rural women

ABSTRACTMaster Dissertation

Bruna Mendes de Vasconcellos

Feminists studies of technology have argued, in general, that technology has implications on gender relations. More specifically, studies in this tradition suggest that the historical construction of technology as a masculine (and capitalist) territory affects women’s lives directly; more recently, they also argue that technology not only defines gender relations, but is also shaped by it. Adopting this perspective, that understands technology, as well as gender, as a social construction, this study sought to identify and analyze gender and technology relations in the context of the recent experiences in Solidarity Economy, through the study of an agroecological association created by rural women in Brazil. Therefore, a previous review of the feminist literature in the context of Social Studies of Science and Technology (SSST) is done, and considering the selected case of study, a contextualization of family agriculture in Brazil is also developed analyzing the gender relations in this scenario, as well as the characteristics of the solidarity enterprises organized by rural women. The field work was developed in parallel to the incubation process conducted by the Technological Incubator of People's Cooperatives (ITCP/UNICAMP) with a women's association in a rural settlement. Besides semi-structured interviews with members of the association, the research was also based on a participant observation of the activities done by the incubator, as well as materials and records produced by various means and agents.Through the recovery and analysis of the different experiences the association had with processes of construction and adaptation of technology and production, empirical research illustrates the interrelationships between gender and technology in the context of this enterprise of rural women. The results reveal the skills and capacities of family farmers to develop and adapt technology. They also reveal that men are the protagonists in steps related to the assembly and construction of equipments, but highlight the role of women as they collectively demand, articulate and use such technologies. Additionally, it is clear that related to the setting of kitchens, women are protagonists in the process of adapting and defining technology, and appropriate the same to boost their empowerment process through the associated work. Finally, the difficulties and contradictions in the organization of solidarity enterprises as a way to give value to traditional female jobs and search for women's autonomy are underlined.

Key-Words: Gender, Technology, Solidarity Economy, Rural Women.

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INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

Género, Tecnología y Economía Solidaria: reflexiones desde la experiencia de una

asociación de mujeres rurales

RESUMÉNDisertación de Maestría

Bruna Mendes de Vasconcellos

Los estudios feministas de la tecnología han argumentado, en general, que la tecnología tiene implicaciones en las relaciones de género. Más específicamente, los estudios en esta tradición plantean que la construcción histórica de la tecnología como territorio propio de la masculinidad (y del capitalismo) afecta directamente la vida de las mujeres; más recientemente, se argumenta que la tecnología no solo define las relaciones de género, si no que también las relaciones de género moldean la tecnología. Desde esta perspectiva, que comprende la tecnología y el género como una construcción social, este estudio trata de identificar y analizar las relaciones entre género y tecnología en el contexto de las recientes experiencias de la Economía Solidaria, a partir del estudio de caso de una asociación de mujeres rurales. Para esto se hace una revisión de la literatura feminista en el contexto de los Estudios Sociales en Ciencia y Tecnología (ESCT) y teniendo en cuenta el estudio de caso seleccionado, se contextualiza la agricultura familiar en Brasil, destacando las relaciones de género en este escenario, así como las características propias de las empresas solidarias organizadas por mujeres rurales. El trabajo de campo se desarrolló en paralelo al proceso de incubación realizado por la Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP/UNICAMP) con una asociación de mujeres de un asentamiento rural. Además de entrevistas semi-estructuradas con miembros de la asociación, la investigación se basó en la observación participante de los espacios de formación con la incubadora, así como en materiales y registros producidos por diversos medios y agentes.Desde la recuperación y análisis de las diferentes experiencias de la asociación con procesos de construcción y adaptación tecnológicas y productivas, la investigación empírica muestra la interrelación existente entre género y tecnología en el contexto de esta empresa solidaria de mujeres rurales. Los resultados revelan las competencias y capacidades de los agricultores familiares en desarrollar y adaptar tecnologías. Revelan también que los hombres protagonizan las etapas más relacionadas al montaje y construcción de los equipos, sin embargo, los resultados también destacan el papel de las mujeres que, desde su organización colectiva, demandan, articulan y utilizan tales tecnologías. Además, se evidencia que en el escenario de las cocinas las mujeres son protagonistas en los procesos de adaptación y definición tecnológica, y que se apropian de las mismas, para impulsar su proceso de empoderamiento desde el trabajo asociado. Finalmente, se señalan las dificultades y contradicciones propias de la organización de las empresas solidarias como una forma de valorar los trabajos tradicionalmente femeninos y contribuir en la búsqueda de autonomía de las mujeres.

Palabras-Clave: Género, Tecnología, Economía Solidaria, Mujeres rurales.

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INTRODUÇÃO

Especialmente a partir dos anos 1970, a tecnologia tem sido objeto de estudos e

frequentes debates entre as feministas. A identificação inicial de um monopólio masculino da

tecnologia, que representava para os homens uma fonte de poder ao mesmo tempo em que gerava

dependência das mulheres, motivou uma série de estudos e campanhas feministas na tentativa de

romper com esse cenário desigual (WAJCMAN, 1991). A partir daí, as linhas teóricas e

enfoques práticos e metodológicos que se desenvolveram são muitas e diversas entre as correntes

feministas.

As abordagens, que em certos momentos se aproximam dos estudos feministas da ciência

e que emergem em distintas áreas de conhecimento, contribuem para desmistificar uma suposta

incapacidade feminina em desenvolver atividades científicas e tecnológicas e para reivindicar o

lugar das mulheres nesses espaços (SCHIENBINGER, 2001; KELLER, 1983), para evidenciar as

distintas consequências sobre os corpos das mulheres do uso das novas tecnologias reprodutivas

(FIRESTONE, 1976; FIRRANGE, s/d), assim como para revelar os efeitos específicos sobre a

vida das mulheres do processo de mecanização da agricultura (SHIVA e MIES, 1993). Além

disso, feministas socialistas desmascaram o processo de constituição da tecnologia capitalista

enquanto território próprio dos homens, que a partir da divisão sexual do trabalho no período da

revolução industrial afasta as mulheres das profissões e atividades ligadas às áreas tecnológicas

(COCKBURN, 1992; WAJCMAN, 1998).

Dentre estas e outras contribuições do campo à vida das mulheres e aos estudos

acadêmicos, são especialmente relevantes para os objetivos deste trabalho os estudos que

evidenciam o caráter intrinsecamente político da tecnologia e a definição do gênero e da

tecnologia enquanto construções sociais, passíveis, portanto, de transformação.

Nesse sentido, a partir dos anos 1970, com o surgimento e consolidação do campo dos

Estudos Sociais em Ciência e Tecnologia (ESCT), algumas feministas engajadas com o tema da

tecnologia começaram a traçar aproximações entre essas duas áreas de estudo. O objetivo

principal era incorporar as novas abordagens construtivistas da tecnologia aos estudos feministas,

até então marcados por uma visão determinista da tecnologia, e questionar, ao mesmo tempo, a

falta das análises de gênero no contexto dos ESCT (WAJCMAN, 1991; FAULKNER, 2000).

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Dentre as distintas possibilidades de análise das relações de gênero e tecnologia que

abrem essa nova abordagem, escolheu-se nessa pesquisa analisar essas relações no contexto das

novas experiências de organização da Economia Solidária no meio rural. A evidente pouca

visibilidade das mulheres rurais nos principais estudos feministas de gênero e tecnologia dentro

da abordagem dos ESCT, assim como a falta de estudos sobre gênero e tecnologia na Economia

Solidária, indicam a pertinência deste trabalho.

No contexto dos assentamentos rurais no Brasil, os estudos feministas revelam como na

organização da agricultura familiar permanecem estruturas hierárquicas relacionadas ao gênero

(PAULILO, 2010). Mantêm-se representações que responsabilizam o homem pelo trabalho

produtivo, agrícola ou 'da roça' neste caso, e das mulheres como encarregadas do trabalho

doméstico e de cuidados, assim como uma valorização diferenciada desses trabalhos, que confere

pouca visibilidade ao trabalho feminino, e poder aos homens para decidir sobre a produção e os

recursos gerados a partir do trabalho familiar. Ao mesmo tempo, os estudos indicam também que

as mulheres no campo têm um histórico de auto-organização coletiva e que através de suas

mobilizações políticas (DEERE, 2004), e algumas vezes para atividades de produção e

comercialização (SILIPRANDI, 2009), conquistaram direitos e avançaram em seu processo de

autonomização.

Por outro lado, começam a re-surgir a partir dos anos 1990, como consequência de um

cenário de precarização do mundo do trabalho, experiências de organização associativa do

trabalho. Surgem como iniciativa dos trabalhadores, mas também como resultado de políticas

públicas de geração de trabalho e renda (BARBOSA, 2005). A esse conjunto de experiências se

convencionou chamar Economia Solidária (SINGER, 2002) e dentro dos empreendimentos

organizados nesse guarda-chuvas, encontram-se também associações de mulheres rurais.

A Economia Solidária, segundo dados da Secretaria Nacional de Economia Solidária

(SENAES) abarca experiências de empreendimentos mistos, exclusivamente masculinos e

femininos, rurais e urbanos, que se dedicam a diferentes atividades produtivas, e se espalham por

todo país. Segundo dados de 2007 (SIES, 2007) são 21.859 mil empreendimentos, com mais de

1.250.000 trabalhadores e trabalhadoras, dos quais 37% são mulheres. Do total de

empreendimentos 48% são rurais, e dentre estes existem 774 grupos exclusivamente femininos,

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dedicados principalmente aos segmentos de “beneficiamento de alimentos” e “artesanato”

(FARIA, 2011)1.

As recentes aproximações feministas à estas experiências, criticam por uma lado a falta

de uma perspectiva analítica de gênero nos estudos sobre o tema, e por outro apontam como

persistem nos empreendimentos solidários desigualdades de gênero e traços da divisão sexual do

trabalho vivida no mercado formal (GUERIN, 2005; BONET, 2005). Apesar disso, a partir da

adoção da abordagem da economia feminista, essas teóricas argumentam que as experiências da

Economia Solidária têm potencial de valorizar trabalhos tradicionalmente femininos e garantir

acesso à direitos legais pelas mulheres (GUERIN, 2005; DANTAS, 2008), assim como de

aumentar a autoestima e autonomia das mulheres e desestabilizar padrões desiguais nas relações

de gênero (FARIA, 2011).

Aproximando essas perspectivas, dos estudos de gênero e tecnologia, e da Economia

Solidária, o objetivo central dessa pesquisa consistiu-se em analisar quais são as especificidades

da construção das relações de gênero e tecnologia no contexto dos empreendimentos de mulheres

rurais. As seguintes questões nortearam este estudo: Como as relações de gênero definem a

tecnologia e como esta (re)define as relações de gênero nesse contexto? Em que medida a

organização do empreendimento solidário afeta as mais tradicionais relações de gênero, e quais

os papéis da tecnologia nesse processo? Quais são as possibilidades abertas pela organização

coletiva das mulheres rurais no caminho para transformar as relações de gênero? E como a

tecnologia se relaciona com esse processo de permanências e mudanças?

Para realizar esta análise foi escolhido como estudo de caso uma associação de mulheres

rurais, a saber: a “Associação de Mulheres Agroecológicas do Horto-Vergel (AMA)”. A

associação, que conta atualmente com a participação de 7 mulheres, está localizada no

assentamento rural do Horto-Vergel em Mogi-Mirim e se dedica especialmente a atividades de

beneficiamento de alimentos e comercialização de produtos agrícolas agroecológicos.

Uma das motivações para a escolha deste estudo de caso foi o contato prévio da

pesquisadora com a associação através da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da

1 Os dados aqui apresentados são do Atlas Nacional de Economia Solidária, publicado pelo Sistema de Informação em Economia Solidária (SIES) relativos à pesquisas do ano de 2005 e 2007. No entanto, a base disponibilizada ao público pela internet não permite fazer recortes de gênero, apenas para saber o total de trabalhadores homens e mulheres dos empreendimentos. Portanto, foi necessário recorrer também à trabalhos publicados que tiveram acesso à base de dados do SIES em seu formato mais amplo, não acessível ao público em geral.

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UNICAMP (ITCP/UNICAMP). A incubadora, desde os princípios da autogestão e da Educação

Popular, trabalha com a formação de empreendimentos autogestionários, dando assessoria

jurídica, contábil, produtiva, educativa, abordando também temas como gênero através da

organização de atividades de formação semanal com os empreendimentos. Dentro desses espaços

de formação com a AMA, era evidente como a manutenção de relações desiguais de gênero nos

espaços públicos e privados do assentamento se relacionavam com a organização da associação e

também com as tecnologias. A percepção desses conflitos, que emergem repetidas vezes no

processo de incubação, despertaram o interesse em aprofundar na relação dos temas de gênero,

tecnologia e Economia Solidária.

A pesquisadora acompanhou a associação durante o ano de 2006, realizando um estágio

como engenheira de alimentos por três meses para construção de um projeto de cozinha

industrial, e logo como formadora da incubadora acompanhando a AMA semanalmente durante o

ano de 2008.

A ITCP/UNICAMP, que iniciou o acompanhamento do grupo em 2006, continua até os

dias de hoje com a associação, sendo assim, a pesquisa foi desenvolvida de forma paralela ao

processo de incubação. Além de entrevistas semi-estruturadas realizadas com as integrantes da

associação, o trabalho de campo consistiu na observação participante das atividades de formação

da ITCP/UNICAMP, assim como das reuniões da equipe responsável por acompanhar o grupo.

Foi também utilizado como material complementar os relatos e relatórios de incubação da

associação, assim como artigos escritos pela incubadora sobre a experiência.

Para desenvolver as análises aqui propostas a dissertação está divida em três capítulos. Os

dois primeiros contendo o referencial teórico e o terceiro dedicado à apresentação e análise de

resultados do estudo de caso.

No primeiro capítulo é feita uma revisão do campo de estudos em gênero e tecnologia.

Para tanto, se retoma inicialmente o histórico dos estudos feministas da tecnologia até chegar às

mais recentes aproximações ao campo dos ESCT, e à construção de uma abordagem que

compreende tanto o gênero como a tecnologia enquanto construtos sociais. Por fim, é feita uma

revisão daqueles estudos que desde esta perspectiva analisam a realidade do meio rural,

infelizmente encontrados apenas para analisar experiências nos EUA, mas que contribuem em

alguma medida pra a compreensão do estudo de caso proposto.

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No capítulo 2 procura-se contextualizar o estudo de caso. Para tanto, inicialmente

abordam-se as definições da agricultura familiar e assentamentos rurais, e se exploram as

referências teóricas sobre as relações de gênero no campo. Na segunda parte do capítulo

apresenta-se a Economia Solidária como uma das formas de organização das mulheres rurais,

assim como as aproximações feministas que existem ao tema. Estas últimas mostram que, se por

um lado, existem permanências, a organização social da Economia Solidária também abre

possibilidades de mudanças nos padrões mais tradicionais das relações de gênero.

No capítulo 3 são apresentados os principais resultados e análises do estudo de caso.

Primeiro são feitas algumas considerações metodológicas e apresentados os históricos do

assentamento, e da associação, e em seguida são destacados os principais resultados e análises

vistos desde a perspectiva da construção social das relações de gênero e tecnologia.

Este estudo demonstra de maneira empírica as inter-relações entre gênero, tecnologia e

Economia Solidária. Indica não apenas a capacidade de desenvolvimento e adaptação de

tecnologias pelas experiências de agricultura familiar, mas revela também o protagonismo dos

homens nas etapas mais relacionadas à montagem e construção dos equipamentos. Entretanto,

ressalta também como as mulheres, enquanto sujeitos de uma organização coletiva, são aquelas

que demandam, articulam e utilizam as tecnologias. Ao mesmo tempo, ao ampliar nosso olhar

para as tecnologias domésticas, percebe-se também que as mulheres são protagonistas nos

processos de adaptação e definição tecnológica, e se apropriam das mesmas para impulsionar seu

processo de autonomização a partir do trabalho associado.

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CAPÍTULO 1 – GÊNERO E TECNOLOGIA

Desde a década de 1970 o tema ‘ciência e tecnologia’ tem sido amplamente debatido

pelas feministas. Dentro de distintas áreas das ciências humanas e também desde os movimentos

sociais organizados, os feminismos desenvolvem e adotam diferentes perspectivas acerca das

relações entre gênero e/ou mulheres, ciência e tecnologia2. Entender porque a quantidade de

mulheres envolvidas nessas instituições eram tão poucas, questionar o caráter patriarcal da

tecnologia e a marca do androcentrismo nas ciências naturais e humanas, evidenciar a divisão

sexual do trabalho como elemento central nas relações entre ciência, tecnologia e gênero, foram

algumas das preocupações feministas dentro do espectro desses estudos.

Assim, o objetivo deste capítulo é fazer uma revisão da literatura relativa aos estudos

feministas da tecnologia, partindo da visão das feministas que desenvolvem o tema tendo como

referência os Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT). A escolha do referencial dos

ESCT deve-se, principalmente, à convicção de que as contribuições dessas feministas, que

incorporam em suas análises uma visão da tecnologia enquanto construto social, contribuem de

forma significativa aos avanços dos estudos feministas da tecnologia.

É importante adicionar que para desenvolver essa revisão não é possível restringir-se aos

marcos teóricos dos estudos feministas acerca da tecnologia. Esse campo de estudos tem diálogo

muito próximo com aquele dos estudos feministas sobre as ciências, com o qual compartilha,

historicamente, bases conceituais e influências mútuas. Mesmo que não caminhem lado a lado

cronologicamente, os estudos feministas da tecnologia seguiram muitos dos passos traçados pelos

estudos da ciência (SEDEÑO, 1999; WAJCMAN, 1991). Visto que uma revisão completa dos

estudos feministas da ciência ultrapassaria o marco deste trabalho, e fugiria aos seus objetivos

centrais, buscou-se aqui elaborar uma revisão norteada pelos estudos da tecnologia, traçando

paralelos pontuais com os estudos da ciência nos momentos em que isso contribui para uma

melhor compreensão dos argumentos.

2 Os termos utilizados para definir estes estudos são muitos: 'mulheres e tecnologia', 'mulheres e ciência', 'gênero e ciência', 'gênero e tecnologia' e são motivos de freqüentes debates entre as feministas. Como termo geral para tentar englobar as diversas correntes utilizaremos 'estudos feministas da ciência ou da tecnologia' e ao longo do capítulo detalharemos melhor as diferenças mais significativas, para este estudo, entre as correntes.

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Para realizar esta revisão seguiu-se a ordem histórica traçada por autoras revisoras desse

campo, tais como Faulkner (2000), Wajcman (2001; 2010) e Sedeño (1999), segundo as quais os

estudos feministas da tecnologia passam por três momentos marcantes. O primeiro seria o dos

estudos que denominaram de 'mulheres na tecnologia', e que estão mais centrados no tema da

(falta de) participação feminina nas atividades relacionadas à tecnologia. O segundo momento,

chamado de estudos de 'mulheres e tecnologia' caracteriza-se pela contribuição conceitual e

analítica das feministas radicais e ecofeministas que definem a própria tecnologia como

capitalista e patriarcal. O terceiro momento, no qual as autoras se inserem, é o que elas se

referem como o campo de estudos de 'gênero e tecnologia' e que, segundo elas, se caracteriza por

uma visão mais crítica da relação entre tecnologia e gênero, ambos considerados como construtos

sociais que se definem mutuamente.

Vale ressaltar que a história dos estudos feministas da tecnologia, obviamente, não segue

uma lógica linear evolutiva, como pode parecer desde essa categorização histórica, que é útil para

estruturar os argumentos. Nessa breve retomada busca-se abarcar a complexidade desta trajetória,

explorando as distintas correntes através de suas principais contribuições e também suas

respectivas críticas, para que seja possível visualizar a diversidade de pensamentos acerca das

relações entre gênero e tecnologia.

Destaca-se, neste relato, como o desenvolvimento do conceito de gênero e do campo de

estudos sociais de ciência e tecnologia nos anos 70 contribui para a construção de uma

abordagem feminista desde os ESCT, importante para compreender as relações entre gênero e

tecnologia. E por fim, analisa-se de que maneira as contribuições deste campo na área de estudos

sobre as tecnologias domésticas e as mulheres rurais ajudam a entender as relações de gênero e

tecnologia no contexto dos assentamentos rurais no Brasil.

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1.1. Alguns antecedentes dos estudos feministas em ciência e tecnologia

1.1.1. Sobre a participação das mulheres na ciência e tecnologia

Em meio à proliferação de criticas à ciência e tecnologia moderna no período pós-guerra,

quando começam a ter eco as vozes que já não compartilham mais de uma fé cega no

desenvolvimento científico e tecnológico, as feministas em atividade nos movimentos sociais e

na academia começaram a sistematizar também suas críticas à ciência e às tecnologias modernas.

A partir da constatação inicial da ausência das mulheres nas ciências e nas profissões

ligadas às áreas tecnológicas, os primeiros estudos feministas das ciências, e logo da tecnologia,

buscavam entender as causas de tal ausência, respondendo à pergunta básica: 'Por que tão

poucas?' (FAULKNER, 2000; LOPES, 1998). Neste momento inicial os esforços se

concentravam nas explicações de porque essas instituições haviam se tornado territórios

exclusivamente masculinos, e em enfatizar o potencial das mulheres para ocupar esses espaços.

Neste contexto, muitas historiadoras feministas iniciaram um trabalho de resgate da

história de cientistas mulheres, com o intuito de desmistificar uma suposta incapacidade feminina

para desenvolver atividades científicas. Para surpresa de alguns e algumas, tais estudiosas se

depararam com a realidade de que estas cientistas não eram tão poucas, e nem incapazes de

produzir ciência de qualidade. A biografia de Barbara McClintock, escrita por Evelyn Fox Keller

(KELLER, 1983) é um marco importante desse tipo de pesquisa. Assim, ao recontar a história

das ciências as feministas lograram reinserir as mulheres enquanto atoras nos processos de

produção de conhecimento científico e desmistificar a suposta ausência ou incapacidade delas

para tais atividades, que eram os dois desafios a serem superados, como indica Schienbinger:

O primeiro era a necessidade de encontrar mulheres que haviam de fato criado ciência para se opor à noção de que as mulheres simplesmente não podem fazer ciência, que algo na constituição do seus cérebros ou corpos impede o progresso neste campo. O segundo era o desejo de criar modelos de papéis para mulheres jovens ingressando na ciência - “Einsteins femininos” - para contrabalançar estereótipos masculinos. (SCHIENBINGER, 2001, p.54)

Essas contribuições foram extremamente importantes para evidenciar como as mulheres

contribuíram de maneira significativa para o desenvolvimento das ciências. Esse processo de

recuperação histórica da participação feminina tornou-se parte integral das práticas de teóricas

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feministas que, com o tempo, foram ampliando a gama de estudos que realizavam, deixando o

terreno mais óbvio das realizações das cientistas excepcionais para examinar os padrões de

participação das mulheres ‘comuns’ nas ciências (LOPES, 1998; WAJCMAN, 1991).

Seguindo esses passos, as feministas no campo da tecnologia se empenharam em resgatar

o papel das mulheres no desenvolvimento de tecnologias para a sociedade. Enquanto algumas se

engajaram na análise das relações entre as mulheres e as tecnologias no período pré-revolução

industrial, outras se interessaram em ressaltar as contribuições das mulheres na construção de

tecnologias importantes no período da Revolução Industrial e para as indústrias modernas.

No período de pré-revolução industrial os resultados dos estudos apontam o importante

papel das mulheres no desenvolvimento de tecnologias ligadas à produção agrícola e à produção

de alimentos – atividades que desde este momento histórico já eram designadas a elas - como é o

caso do desenvolvimento de ferramental para as atividades de coletar, processar e armazenar

alimentos (STANLEY, 1998). Segundo a autora, logo no período de constituição da indústria

moderna, as mulheres tiveram papel importante na construção de máquinas de costura, motor

elétrico, máquinas impressoras e colheitadeiras.

Também se atribui às mulheres o descobrimento da fabricação de pão, o tingimento de lã,

a elaboração de tapeçaria, o desenho e elaboração de jardins e o cultivo de grãos. Além disso

reconhecem-se as contribuições das mulheres na área de saúde, como é o exemplo das parteiras

que historicamente cumpriam a função de cuidados da reprodução feminina (SCHIENBINGER,

2001). Vale adicionar também estudos mais recentes, que tratam o período do século XX, e que

resgatam a importância da participação feminina no desenvolvimento da programação

computacional3.

No entanto, um problema metodológico enfrentado pelas autoras que buscavam resgatar o

papel feminino no desenvolvimento tecnológico, especialmente no período da revolução

industrial, está relacionado às fontes de registro. Muitos desses trabalhos de resgate se baseavam

em buscas nos sistemas existentes de patentes, ainda que se saiba que as mulheres no período da

revolução industrial não tinham direito à propriedade intelectual. Sendo assim, muitas delas

tiveram suas invenções registradas no nome de seus maridos e algumas inclusive no nome dos

bancos que faziam os financiamentos. Este fato, aliado à falta de acesso das mulheres à educação

3 Wajcman (1991) cita os trabalhos de Kraft (1979) e Giordano (1988) como aqueles que documentam a participação nesse âmbito do desenvolvimento tecnológico.

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formal na época - o que não lhes permitia, por exemplo, adquirir habilidades em matemática,

física e outras áreas relevantes - certamente dificultava a inserção das mulheres nos processos de

desenvolvimento tecnológico (WAJCMAN, 1991).

Nesse sentido, Schienbinger (2001) resgata a difícil história de inserção das mulheres na

Universidade, apontando as diferentes formas de exclusão a que estavam sujeitas, algumas vezes

de maneira mais explícita e outras, como reflexo de processos sociais sutis que desestimulavam o

acesso feminino à educação. De maneira semelhante isso acontecia com relação ao acesso das

mulheres aos postos de desenvolvimento tecnológico nas indústrias, como se argumenta mais

adiante no capítulo.

Como era de se esperar da prática feminista, que normalmente tem suas críticas teóricas

vinculadas a ações práticas do movimento, essas evidências da baixa participação feminina no

cenário científico e tecnológico levaram à construção de propostas para incrementar o número de

mulheres nas atividades tecnocientíficas. O objetivo era que cada vez mais mulheres estudassem

ciência e tecnologia e fizessem parte de suas instituições, e estratégias para mudar a forma e

conteúdo dos currículos escolares em matérias científicas também foram traçadas (SEDEÑO,

1999).

No entanto, com o passar do tempo constatou-se que muitas dessas experiências

sugeridas não tiveram o resultado esperado. Por exemplo, programas de incentivo para que as

mulheres se formassem como engenheiras tiveram, internacionalmente, muito pouco efeito. Esta

frustração das expectativas levou as estudiosas feministas a traçar questionamentos mais

profundos acerca da estrutura e constituição da ciência e da própria definição da tecnologia como

masculina (FAULKNER, 2000). Nesta nova concepção argumenta-se que as dificuldades das

mulheres na sua interação com as atividades tecnológicas são geradas pelos estereótipos da

tecnologia como atividade apropriada aos homens, assim como pela linguagem masculina típica

da tecnologia (WAJCMAN, 1991).

Esses esforços por ampliar a participação de mulheres nas ciências, e especialmente nas

áreas de ciências mais 'duras' e tecnológicas, onde ainda prevalece de forma gritante a

participação de homens, são presentes até os dias de hoje nas reivindicações feministas. Estudos

mais recentes evidenciam não apenas a ausência das mulheres, mas também novas formas de

exclusão nos espaços onde elas estão presentes, formas estas representadas nas exigências de

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produtividade (maiores que para os homens) e nas dificuldades que enfrentam em aceder aos

postos de poder, o chamado 'teto de vidro' (VELHO e LEON, 1998).

Essas primeiras correntes do desenvolvimento dos estudos feministas foram

significativamente importantes não apenas no processo de resgatar a participação feminina na

ciência e tecnologia, até então não registrada na história, mas também por abrir as portas e

possibilidades a todo um novo campo de ação e investigação feminista. Essas correntes seguem

existindo até os dias de hoje e, ainda que no início, como indicam Faulkner (2000) e Lopes

(1998), utilizassem definições difusas enquanto 'estudos sexuados' da ciência e tecnologia,

passaram a incorporar definições mais atuais de gênero e abandonaram também as visões muitas

vezes deterministas com relação à ciência e à tecnologia.

1.1.2. Feminismos radicais e Ecofeminismos

Os estudos feministas da ciência e da tecnologia não tinham o olhar focado apenas no

tema da participação de mulheres no âmbito científico e tecnológico; o tema dos impactos

gerados pelas tecnologias era alvo constante também de suas reflexões. As chamadas feministas

radicais, que surgiram dos movimentos pacifistas, ecologistas e pela saúde da mulher da década

de 1970, foram importantes nesse sentido (WAJCMAN, 2004; SEDEÑO, 1999; COCKBURN e

ORMROD, 1993). Particular com relação às feministas radiciais era uma compreensão da

tecnologia como intrinsecamente capitalista e patriarcal, e a mudança de foco da produção social

daquilo tido como feminino e o florescimento da diferença sexual impossível de se eliminar. Para

essas feministas o potencial das mulheres reside justamente no potencial dessa diferença

(WAJCMAN, 1991). Quanto ao impacto que se poderia esperar das tecnologias na sociedade,

estas feministas se dividiam entre as mais otimistas e as pessimistas com relação à apropriação

pelas mulheres das tecnologias patriarcais.

O conhecido trabalho de Shulamith Firestone “A dialética dos sexos” (1970), de

influências freudianas e marxistas, é o exemplo mais significativo no marco das visões otimistas.

Essa autora defendia o uso das tecnologias anticonceptivas e reprodutivas pelas mulheres como a

principal ferramenta para o processo de liberação das mesmas da “tirania da reprodução”.

Argumentava que a maternidade biológica representava o eixo central através do qual se

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reproduziam as desigualdades entre os sexos; assim, eximir as mulheres dessa função

possibilitaria eliminar o vínculo entre reprodução e sexualidade, e desta forma as desigualdades

entre os sexos. As tecnologias de reprodução artificial representavam a forma de liberação das

mulheres e a superação das relações patriarcais de poder. Como é possível imaginar, esse

otimismo manifestado por Firestone não foi compartilhado por muitas de suas contemporâneas, e

seu trabalho recebeu críticas desde diferentes perspectivas feministas.

Especialmente contundentes foram as críticas recebidas pelas estudiosas feministas de

correntes mais pessimistas, que viam as tecnologias reprodutivas como nada mais que uma

ferramenta para o controle patriarcal do corpo das mulheres. Segundo Wajcman (2004) o grupo

chamado de FINRRAGE (Feminist International Network of Resistance to Reproductive and

Genetic Engineering4) é um dos principais representantes dentro desta corrente. Como o próprio

nome indica é uma organização internacional preocupada com os desenvolvimentos tecnológicos

reprodutivos e genéticos e seus efeitos nas mulheres, e mais que tudo resistentes a estes

desenvolvimentos5. Contam com a participação de mulheres de países de todo o mundo, estando

muito presentes no discurso os problemas específicos das mulheres em lugares como Ásia, África

e América Latina.

Estas feministas veem as novas tecnologias de reprodução e controle reprodutivo - doação

de ovos, fertilização in-vitro ou predeterminação de característica dos bebês (ex: sexo) - como

um meio de controle patriarcal sobre os corpos das mulheres, traçando paralelos com os meios já

mais desenvolvidos de controle genético de animais e da agricultura. Argumentam que o controle

da fertilidade feminina é a última fronteira a ser superada pelos homens em seu projeto de

dominação da natureza, e por isso criticam as medida de controle de natalidade (através das

chamadas vacinas de infertilidade usadas em grande medida nos países periféricos), a pouca

preocupação do desenvolvimento dessas tecnologias com o corpo das mulheres (como é o caso

da doação de óvulos), o caráter mercadológico das tecnologias e, mais que tudo, negam o

discurso de que essas tecnologias são de alguma forma benéficas às mulheres. Descartam por

completo qualquer possibilidade de reapropriação dessas tecnologias por parte das mulheres.

As feministas pessimistas não trabalhavam apenas no âmbito das tecnologias

reprodutivas. A partir do anos 1980 tomou forma o chamado ecofeminismo, como consequência

4 Rede Feminista Internacional de Resistência a Engenharia Genética e Reprodutiva.5 Informação da página web do grupo: http://www.finrrage.org

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do encontro entre os movimentos pacifista, ecologista e feminista e que, ao tratar destes temas

faziam críticas aos processos e resultados do desenvolvimento tecnológico. As análises e estudos

no âmbito de tais movimentos faziam a conexão entre o militarismo, a degradação ambiental e o

sexismo, todos estes vistos como consequências de uma mesma lógica criada a partir das relações

capitalistas e patriarcais que prevalecem na sociedade. Capitalismo e patriarcado representavam

para estas correntes as estruturas responsáveis pelo processo de dominação da natureza, das

mulheres e também da construção da virilidade masculina que, por sua vez, era tida como

diretamente relacionada à organização das sociedades a partir do militarismo (PULEO, 2005).

Estas correntes, então, tratavam a tecnologia como produto de uma cultura patriarcal e

violenta, como mais um instrumento de dominação dos homens sobre a natureza e sobre as

mulheres, e que portanto não poderia beneficiar as mulheres. Defendiam a necessidade de criação

de novas tecnologias, baseadas nos valores femininos mais sensíveis e harmoniosos com relação

à natureza (WAJCMAN, 2004). Assim, o movimento ecofeminista encontrou nesse argumento

elementos para motivar a participação feminina nas lutas contra a degradação ambiental e a

guerra como se por características naturais as mulheres fossem mais capazes ou mais interessadas

na proteção do meio ambiente e da paz (SHIVA, 1991).

Algumas feministas que estudam a tecnologia, no entanto, fazem críticas ao caráter

essencialista dessas teóricas, ou seja, discordam da ideia presente no argumento ecofeminista de

que exista um 'princípio feminino' mais conectado à natureza, que determinadas características e

sentimentos possam ser considerados como algo inerente às mulheres, como valores 'designados'

a elas pela própria natureza e, portanto, imutáveis. (WAJCMAN, 2004, 1991; SEDEÑO, 1999;

FAULKNER, 2000). Defendem que essa linha de argumento não deixa espaço para entender e

explorar como, historicamente, as relações políticas, econômicas e sociais definiram o papel da

mulher nas sociedades, e também não leva em conta o caráter de construto social da própria

'natureza', ou seja, de como se passa, coletivamente, a definir algo como 'natural'.

Mesmo que esta dissertação reconheça e se identifique com essas críticas, é necessário

destacar algumas pontes entre a visão e conceitos desta corrente feminista e os estudos

ambientalistas, principalmente aqueles que têm como objeto as agriculturas alternativas no

Brasil, de especial interesse para este trabalho.

O ecofeminismo, que surge inicialmente, ou que ganha notoriedade primeiro, nos países

do norte, motivados por preocupações como as ameaças da tecnologia à saúde, a militância

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pacifista, os medos de um conflito nuclear e pelos movimentos de proteção aos animais, ganhou

forma também nos países chamados na época de terceiro mundo (PULEO, 2005). Constituiu-se,

assim, uma corrente chamada Ecofeminismo Terceiro-Mundista cujas preocupações estavam

mais voltadas aos problemas ambientais e sociais gerados pelas mudanças radicais na estrutura de

produção agrária (SHIVAS e MIE, 1993).

Vandana Shiva, física de formação, é uma das mais conhecidas representantes desta

corrente, sendo também uma das principais autoras e líder do movimento. Em seus trabalhos

busca problematizar especialmente como as mudanças estruturais do sistema capitalista a nível

mundial geram problemas e dificuldades em escala local, com repercussões específicas na vida

das mulheres, a partir de análises da população agrícola da Índia, que é também seu país de

origem (SHIVAS e MIE, 1993).

Enquanto no âmbito dos feminismos as posições desta corrente são alvo de críticas e

geram muitas controvérsias6, no espaços dos debates ambientalistas as críticas às estratégias de

dominação da natureza – e não aquelas de cunho mais feminista - são tomadas com entusiasmo.

Siliprandi (2009), pesquisadora brasileira que desenvolveu sua tese de doutorado no tema de

mulheres e agroecologia, indica que V. Shiva é uma das poucas referências feministas

encontradas nos textos sobre a agroecologia7. As apropriações dos argumentos de V. Shiva são

feitas principalmente no que se refere às críticas que desenvolve sobre como as grandes

corporações internacionais estão destruindo os sistemas camponeses de produção de alimentos,

como o modelo da revolução verde8 gerou danos ao modo de vida da população agrícola, como

a opinião pública é manipulada através de empresários e cientistas, e como a população

camponesa que manisfesta sua indignação é marginalizada e reprimida.

V. Shiva tem como foco de seu trabalho o tema das mulheres e as consequências geradas

em suas vidas a partir dos problemas sócio-econômicos-ambientais e da mercantilização do

6 O Ecofeminismo está inserido no histórico debate feminista entre os feminismos da igualdade e da diferença; não é objetivo deste trabalho aprofundar nessas críticas, para mais detalhes consultar SILIPRANDI (2000).

7 “Agroecologia poderia definir-se como aquele enfoque teórico e metodológico que, utilizando várias disciplinas científicas, pretende estudar a atividade agrária desde uma perspectiva ecológica. Sua vocação é a análise de todo tipo de processos agrários em seu sentido amplo, onde os ciclos minerais, as transformações de energia, os processos biológicos e as relações sócio-econômicas são pesquisadas e analisadas como um todo.” (GUZMAN CASADO et al, 2000, p. 85, tradução livre do espanhol)

8 Novo modelo de produção agrícola que se espalha pela mundo a partir dos anos 1960 e 1970 e envolvia o uso de um pacote tecnológico completo aplicado à produção rural, com sementes melhoradas, insumos industriais (como agrotóxicos e fertilizantes), mecanização e diminuição do custo de produção, assim como o uso de tecnologias para irrigação, plantio e colheita levando, assim, ao fortalecimento e ampliação das empresas rurais capitalistas (SILVA, 1982). Será melhor explicado e comentado no Capítulo 2.

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processo de produção de alimentos, que destroem um modo de economia e todo um sistema de

conhecimento desenvolvido pelas mulheres, e a importância das mesmas no cenário de

participação nas lutas políticas de suas comunidades. Silimprandi (2009) critica o fato de que

essas contribuições específicas sobre as mulheres ainda não tenham sido incorporadas aos estudos

mainstream da agroecologia.

Aproximações mais recentes ecofeministas, buscam abordar o tema das mulheres rurais

desde uma perspectiva mais construtivistas. Autoras como Bina Agarwal (1998), por exemplo,

insistem na construção social da relação entre os problemas ambientais e as mulheres. Argumenta

que as mulheres sentem mais rápido os problemas ambientais que os homens, porque

historicamente lhes foi designado o papel de cuidar das crianças, da lenha, dos pastos e da água,

dependente sobretudo dos recursos comunitários ou públicos para cumprir essa tarefa, e não

porque tenham algum tipo de conexão mais forte ou 'natural' com a natureza, insiste no caráter

material dessa relação, e nega qualquer dimensão natural dela.

Autoras brasileiras como Pacheco (2005) e Siliprandi (2009)9, por exemplo, se

aproximam dessas correntes mais recentes do ecofeminismo para traçar paralelos com a

agroecologia, e disputar pela importância da incorporação de uma perspectiva de gênero dentro

dessa corrente de estudos.

Desta forma é importante destacar o papel das ecofeministas no âmbito dos estudos da

tecnologia, ao colocar como objeto de estudo a vida das mulheres agricultoras, a problemática

das desigualdades de gênero no meio rural e como a tecnologia influi nesse cenário. As mulheres

do campo são muitas vezes “invisíveis” para os estudos que se preocupam com o “rural” e o tema

não é tratado em detalhe por nenhuma outra corrente dos estudos feministas da tecnologia, mais

focados normalmente nos temas relacionados às tecnologias reprodutivas, domésticas no

contexto urbano ou nas tecnologias industriais.

Além disso, ainda que as premissas essencialistas do ecofeminismo sejam indiscutíveis e

limitadas no que diz respeito à compreensão das relações entre gênero e tecnologia, a visão

crítica à ciência e à tecnologia modernas adotada por essa corrente é importante por concentrar-se

nas características inerentemente políticas da tecnologia (WAJCMAN, 2004). As ecofeministas

mudam o foco dos problemas individuais acerca dos 'usos' da tecnologia para centrar-se em como

9 Exitem outras referências construtivistas do ecofeminismo, Siliprandi (2009), por exemplo, se apoia nas contribuições da autora espanhola Alicia Puleo (2000).

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as relações de poder estão fortemente enraizadas nas estruturais sociais que constituem a ciência

e a tecnologia.

Nesse sentido, no âmbito dos estudos de gênero e ciências, as autoras avançavam na

identificação das estruturais sociais de gênero que definiam a construção da ciência. O trabalho

de Fox Keller titulado “Gender and Science” (1978), por exemplo, apontado por Lopes (1998)

como o primeiro no campo de 'Gênero e Ciência', faz uma revisão através do ferramental

psicoanalítico para mostrar como a objetividade e a masculinidade estão historicamente presentes

na construção das ciências modernas.

Outro exemplo é o texto clássico de Emily Martin “The egg and the sperm: how science

constructed a romance based on stereotypical male-female roles”10, publicado pela Signs em

1991, no qual descreve como as explicações biológicas mais tradicionais acerca do processo

reprodutivo estão carregadas de imaginários dos papéis de gênero na sociedade. A descrição de

um esperma ativo que luta para chegar até o óvulo e penetrá-lo é colocada como elemento central

frente ao óvulo que é retratado como uma célula passiva à espera do esperma que seria

responsável por ativar o processo, formando assim o que a autora chama de um conto de fadas

científico:

É chamativo como se comporta o ovo 'femininamente' e como se comporta o esperma 'masculinamente' . O óvulo, em geral, se percebe como amplo e passivo. Não viaja nem se move, ao contrário, é 'passivamente transportado' ou 'levado sem rumo' ao longo da tuba uterina. Em um contraste chamativo, o esperma é pequeno, alinhado e invariavelmente ativo. Eles compartilham seus genes com o óvulo, 'ativam o programa de desenvolvimento do ovo' e tem uma 'velocidade' que com frequência é destacada” (MARTIN, 1991, p.491, tradução própria)

Mais que isso a autora destaca como em todo o processo descritivo da biologia sobre o

ciclo feminino de menstruação e produção de óvulos é negada às mulheres qualquer visão

positiva acerca desse processo, utilizando frequentemente imagens negativas, diferentemente do

tratamento que se dá aos casos da reprodução masculina, sempre retratada com base em aspectos

muito positivos. Assim, mesmo nas descobertas científicas mais recentes, onde já se evidencia

que o óvulo ao final não é tão passivo como parece, a autora mostra como outros estereótipos de

gênero surgem. Descrições de um óvulo 'fame fatale' e que é agressivo e perigoso passam a estar

presentes, ao passo que, como aponta a autora, visões mais igualitárias do processo enquanto uma

troca entre óvulo e esperma nunca são relatadas.

10 “O ovo e o esperma, como a ciência construiu um romance baseado em esteriótipos de papéis masculino-feminino”

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1.1.3. Feministas Socialistas

Enquanto as feministas radicais estavam centradas nas relações da tecnologia com a

sexualidade e o corpo das mulheres, ou com as temáticas ambientais, as feministas socialistas

centravam seus esforços nas relações entre tecnologia e o trabalho das mulheres – remunerado e

não remunerado. Sob a perspectiva de um aumento da força de trabalho feminina, que permitia

às mulheres uma independência econômica sem precedentes na história, esses estudos analisavam

as consequências de adoção de tecnologias informacionais e outras no ambiente de trabalho,

assim como a exploração de mão de obra feminina pelas indústrias de computadores no âmbito

dos países periféricos (WAJCMAN, 2004).

Essas autoras lançam seu olhar sob o processo mesmo de constituição da tecnologia

moderna, e sua relação com a masculinidade, para encontrar como a divisão sexual do trabalho

foi elemento chave nesse percurso (COCKBURN e ORMROD, 1993).

Nesse sentido, Cockburn (1992) retoma o processo histórico de construção da tecnologia

capitalista e desvela como foi se estabelecendo uma relação estreita entre os homens e as

tecnologias. Argumenta que esta associação tecnologia-masculinidade nem sempre existiu. A

divisão do trabalho na época das cavernas não necessariamente concedia o monopólio da

tecnologia para um dos sexos; a divisão entre trabalho masculino e feminino não se via de forma

tão marcada. Segundo a autora, o papel de homens e mulheres começou a se alterar entre a era

neolítica e a era do bronze, quando se definiram sociedades mais centradas na dominação

masculina, mais centralizadas e com classes, baseadas na agricultura, guerras e escravidão,

associadas já com o patriarcado. Tal movimento levou a um aumento na divisão do trabalho entre

sexos com a consequente subordinação das mulheres.

O trato dos metais tinha importância fundamental nesse período, e da mesma maneira que

os homens dominavam a organização política, também dominavam a produção da tecnologia,

sem dúvida, central para a manutenção de seu poder. Conforme o uso do ferro se espalhou e

ganhou importância nessas sociedades, os homens se tornavam os responsáveis pelas tarefas

associadas a este, visto sua importância e poder atrelados à produção do ferro neste período; as

mulheres, por sua vez, passavam a assumir cada vez mais a responsabilidade pelas atividades

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domésticas e de consumo. Sendo assim, conforme as cidades cresciam, os homens se afirmavam

no espaço público e seguiam fazendo as tarefas relacionadas às tecnologias e as mulheres

ocupavam os cargos ligados às tarefas de alimentação, limpeza, serviços, roupas e consumo

doméstico, geralmente no espaço privado, a “portas fechadas”. Assim explica a autora:

Traçando a mudança tecnológica, portanto, o foco precisa estar 'não nos indivíduos heroicos, mas sobre o processo social, coletivo, no qual os ambientes institucionais e econômicos desempenham papéis centrais' (Rosenberg, 1982, p.35). O processo social de desenvolvimento tecnológico tem sido predominantemente masculino. É a falta de poder econômico e social das mulheres que as detêm ao papel de produtoras de bens para consumo imediato. Desde a Idade do Bronze, as mulheres têm trabalhado para os homens, não importando se o homem era um chefe de família, proprietário de escravos ou senhor feudal. [..]Elas eram sujeitos daquela forma particular de controle de material que vem do homem como sexo tendo se apropriado do papel de fabricante de ferramentas para o mundo. (COCKBURN, 1992, p. 201, tradução livre do inglês)

A era da revolução industrial seguiu esta lógica, demarcando ainda mais a separação dos

ambientes público/político e privado/doméstico como sendo, respectivamente, o ambiente

masculino e o feminino. A separação das casas e das indústrias (trabalho assalariado) e a

mudança para um sistema de desenvolvimento tecnológico concentrado nestas últimas

conduziram, assim, ao monopólio masculino dessas tecnologias. As mulheres, cada vez mais

confinadas ao ambiente doméstico, ficaram excluídas desse processo, enquanto os homens se

responsabilizavam pela construção tecnológica, vale destacar, tendo eles mesmos como

referência nesse processo. Ou seja, as tecnologias eram desenvolvidas pelos homens, com

homens em mente (COCKBURN, 1992).

Wajcman (1998) argumenta também que na época da revolução industrial a exclusão das

mulheres do universo das tecnologias foi uma consequência da dominação masculina nas

profissões relacionadas às habilidades tecnológicas. Como em outras áreas da produção

industrial, a organização sindical dos trabalhadores encarregados da função de desenvolvimento

tecnológico resistia à entrada das mulheres para proteger os interesses dos próprios homens,

melhor dizendo, para garantir os empregos deles. Assim a conformação da profissão de

engenharia e a proteção das mesmas pelos homens foi uma das medidas que manteve as mulheres

fora de tais espaços de atividade. Nas palavras da autora:

De fato, foi apenas com a formação da engenharia como uma profissão de brancos, homens de classe média que 'máquinas masculinas ao invés de tecidos femininos' se tornaram as marcas modernas da tecnologia. Durante o final do século XIX, a engenharia civil e mecânica crescentemente definiram o que é tecnologia, diminuindo

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o significado dos artefatos e formas de conhecimento associados com as mulheres. Foi durante e através desse processo que o termo 'tecnologia' ganhou o seu significado moderno. (WAJCMAN, 2004, p.16, tradução livre do inglês)

A Universidade como conhecemos hoje, enquanto local de formação de tecnólogos e

cientistas foi historicamente marcada pelas relações de gênero. Schienbinger (2001) ao retomar a

história da participação feminina nas ciências, destaca como as mudanças ocorridas nas

Universidades a partir da conformação das sociedades modernas industriais representaram um

retrocesso em termos de participação feminina nas ciências. Assim como Wajcman (1998) e

Cockburn (1992), concorda que a divisão entre os âmbitos público e privado foi, e segue sendo, o

maior obstáculo ao ingresso das mulheres nas profissões acadêmicas.

Outro elemento analisado pelas feministas socialistas foi a chegada das tecnologias de

informática e microeletrônica nos escritórios. Wajcman (1998), criticando análises deterministas

da tecnologia que apontavam esta como benéfica, por facilitar o trabalho, ou maléfica, por

reproduzir as lógicas de aumento de mais valia capitalista, argumenta que as relações desiguais

de classe e gênero são nada mais que reproduzidas nas novas tecnologias instaladas. Na visão da

autora as tecnologias de informação e comunicação não representam nenhuma modificação

significativa nas relações entre homens e mulheres no trabalho, apenas reforçava os padrões já

existentes. Ou seja, as mulheres seguiam encarregadas dos trabalhos mais mecânicos, menos

valorizados e, em consequência, sem acesso aos cargos de decisão ou de poder dentro das

empresas.

Cockburn (1998), ao analisar o caso dos impressores na indústria jornaleira na Inglaterra,

relata como o processo de mecanização dessas atividades, que passava a permitir o emprego

também de mulheres em uma tarefa antes exclusivamente masculina, faz saltar à luz os traços das

desigualdades de gênero, na resistência da própria classe trabalhadora em incorporar as mulheres

a essa categoria de trabalho.

Esses estudos parecem marcar um momento de transição e aproximação das feministas a

uma visão menos determinista com relação à tecnologia. Através de suas críticas mais estruturais

a como as relações de gênero influem na constituição da tecnologia, e da superação de visões

deterministas da tecnologia, as correntes feministas aqui apresentadas abriram espaço para que as

criticas feministas à tecnologia pudessem avançar. Estas autoras e outras começaram a traçar os

primeiros laços entre as teorias críticas feministas e as críticas do construtivismo social da

tecnologia e dar nova forma e possibilidades ao campo, como se verá em seguida.

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1.2. Contribuições das feministas em ESCT: a construção social das relações

de gênero e tecnologia

O Campo de ESCT que surge na década de 1970 tem em seu eixo central a crítica à

suposta neutralidade histórica e social da ciência e da tecnologia. Em linhas gerais, argumentam

que a sociedade e suas construções culturais têm papel ativo na definição de tudo relacionado à

ciência e à tecnologia, incluindo sua estrutura, forma, problemas e soluções apresentadas. Assim,

questionam o determinismo tecnológico, defendendo que a tecnologia é socialmente construída e

definida pelos interesses dos grupos sociais e culturais envolvidos. Esses estudos criticam a ideia

do determinismo tecnológico, que concebe a tecnologia como histórica e socialmente neutra, e

passam a analisar a tecnologia como moldada a partir das relações sociais.

Essa nova concepção de tecnologia e de sua relação com a sociedade abre possibilidades

aos estudos feministas da tecnologia. Através da ruptura com uma visão determinista da

tecnologia, compartilhada pelos pessimistas e otimistas com relação aos impactos da tecnologia,

a nova concepção muda o foco dos estudos até então preocupados principalmente com as

consequências do uso da tecnologia para ocupar-se com o campo mais amplo de engendramento

da tecnologia (BERG e LIE, 1995; WAJCMAN, 2000). Além disso, a discussão dessas

feministas muda de um foco na 'mulher' para apropriar-se do 'gênero' como categoria de análise

de seus trabalhos.

Desta forma o campo dos ESCT, que cresceu bastante nas décadas de 1980 e 199011,

contribuiu de maneira significativa para os estudos feministas. Segundo Wajcman (2000), dois

enfoques em especial influenciaram bastante os estudos de gênero e C&T: o chamado Social

Construction of Technology (SCOT)12 e aquele conhecido como Actor-Network Theory

(ANT)13.

O enfoque da Construção Social da Tecnologia (SCOT) enfatiza que artefatos

tecnológicos estão abertos a análises sociológicas não apenas em seu uso, mas também em seu

design e produção. Argumentam que o sucesso ou fracasso de uma tecnologia são explicados não

porque ela funciona ou não, mas sim porque foi aceita por um grupo social relevante. De acordo

11 Para uma visão mais ampla do campo e todas as suas correntes ver VESSURI, Hebe (1990).12 Construção Social da Tecnologia, cujo principais autores são Pinch e Bijker.13 Teoria Ator-Rede, cujos principais autores são Latour, Callon e Law.

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com Wajcman (2000), a maior contribuição dessa teoria para os estudos feministas foi a ideia de

“flexibilidade interpretativa”, ou seja, a forma como grupos diferentes envolvidos na produção de

uma tecnologia podem ter compreensões diferentes sobre a mesma, inclusive relacionadas às suas

características técnicas. E uma tecnologia é definida a partir do momento que um grupo social

relevante (definido como atores que participam dos processos de negociação) passa a

compartilhar um mesmo entendimento acerca da tecnologia.

Além disso, a flexibilidade interpretativa permite entender que a inovação tecnológica

não seja dada como terminada até o momento em que seja utilizada, já que até este momento o

artefato pode sofrer uma série de alterações não previstas no momento do design. Este

argumento é de especial interesse das autoras feministas, já que permite dar visibilidade às

mulheres, como usuárias finais de tecnologias (ALEMANY, 1991). No clássico estudo sobre a

construção social da bicicleta desenvolvido por Bijker (1995), por exemplo, o autor relata como

o conforto e possibilidade de uso das bicicletas pelas mulheres que utilizavam saias foi elemento

considerado pelos designers do artefato.

Bijker e Bijsterveld (2000), ao descrever a experiência de um comitê de mulheres que

participaram diretamente da definição de plantas para a construção de casas na Holanda no

período pós-guerra, fazem uma análise de como as relações de poder ligadas ao gênero tiveram

influência na definição das novas casas e também na vida das mulheres. Relatam, por exemplo,

como esse grupo de mulheres contribuem na definição das plantas sobretudo a partir de sua

experiência como mães e cuidadoras, e que ao mesmo tempo seu envolvimento no trabalho faz

com que se fortaleçam politicamente, ganhando mais espaço e poder no âmbito público.

Por outro lado, a Teoria Ator-Rede (TAR) rompe com a ideia de que a tecnologia e a

sociedade são duas esferas distintas se influenciando, e afirma que estas são mutuamente

definidas. Utiliza a metáfora da 'rede heterogênea', que conecta atores humanos e não humanos,

constituindo mutuamente a tecnologia e a sociedade. Através de uma descrição detalhada dessas

redes, mostra como alguns atores ganham importância e também como os elementos não-

humanos têm 'agência' no processo, contribuindo para elucidar como a tecnologia define a vida

social. Em suas descrições de rede avaliam como os usuários em potencial influenciam na

definição da tecnologia desde os processos mais iniciais e detalham também o potencial dos

usuários finais para modificarem e renegociarem o uso inicial da tecnologia. Esse avanço da

TAR no sentido de colocar os usuários finais como parte do processo contribuiu muito para os

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estudos feministas das tecnologias reprodutivas e domésticas, das quais as mulheres são as

principais consumidoras (WAJCMAN, 2000).

No âmbito dos estudos feministas, colocar apenas as etapas de design e produção de

tecnologias como foco de análise tornava difícil perceber novos elementos relacionados ao

gênero; assim, esse giro de uma visão linear da produção tecnológica, para uma compreensão da

rede complexa que a define, incluindo os consumidores como ativos no processo de definição

tecnológica foi muito relevante (BERG e LIE, 1995).

Essas teorias dos ESCT, ainda que contribuíssem muito aos estudos feministas da

tecnologia eram, e ainda são, bastante criticadas pelas feministas do campo ESCT por suas

características analíticas consideradas essencialmente 'gender-blind'. Ainda que seus autores

tivessem claro que as relações sociais definem a tecnologia e são definidas por ela, as feministas

argumentam que eles não 'percebiam' ou não se preocupavam em analisar como, dentro do

espectro das relações sociais, se encontravam as desigualdades de gênero e como estas influem na

constituição da tecnologia. Essas críticas estão presentes até hoje e diversas autoras do campo

afirmam que, da mesma maneira que na década anterior, cabe às feministas fazer esse trabalho de

analisar as interações entre gênero e tecnologia (SEDEÑO, 1991; WAJCMAN, 2000;

FAULKNER, 2001; LOPES, 1998).

Wajcman (2000) credita a vários fatores a falta da preocupação com questões relativas a

gênero nos enfoques teóricos dos ESCT. O primeiro seria um problema geral na metodologia, ou

seja, o conceito de poder das teorias e as preocupações das mesmas estavam centradas nos grupos

que participavam ativamente do processo de construção tecnológica, no qual as mulheres eram

ausentes. O foco dos estudos estava apenas nos conflitos observáveis, levando a uma visão

comum de que não existiam conflitos de gênero. As análises se restringiam às dimensões

observáveis do poder e negligenciavam uma dimensão estrutural.

A partir dessas críticas as feministas fazem questão de enfatizar que a ausência das

mulheres nos espaços de influência no desenvolvimento tecnológico é um fator chave para as

relações de poder de gênero. Como antes mencionado, a divisão sexual do trabalho exclui as

mulheres da ciência, engenharia e administração e fazem com que elas sejam pouco

representativas nesses espaços.

Outra razão atribuída à ausência do enfoque de gênero é o foco dos estudos na etapa de

desenvolvimento tecnológico. Estes estudos de inovação estariam limitando aquilo que é a rede

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de atores influenciando o sucesso inovativo. Ao focar suas análises nos estudos de big science e

nos grandes projetos da ciência, perdem de vista os lugares ocupados pelas mulheres

(WAJCMAN, 2000).

Por fim a autora aponta que a ausência da perspectiva de gênero nos ESCT deve-se ao

fato de que os construtivistas diziam não encontrar elementos de análise em espaços

exclusivamente masculinos, e só consideravam as relações de gênero a partir do momento em

que as mulheres estavam na cena. Portanto, uma saída foi realizar estudos nos locais onde as

mulheres participavam, o que a sua vez reforça a ideia de que as diferenças de gênero só existem

onde estão as mulheres, como se a ausência delas já não tivesse, em si, um significado.

Outra crítica feita especialmente aos estudos da teoria ator-rede é sua concentração em

elementos organizativos dos conflitos sociais que permeiam a definição da tecnologia, dando

pouca atenção aos elementos de poder ou de dominação. Ao centrar seu olhar nos atores

diretamente envolvidos com o evento analisado, os estudos desta corrente são criticados por não

considerar em profundidade a estrutura econômica ou os interesses de gênero. Assim, a ausência

das mulheres não é elemento analisável, já que não faz parte do conjunto de atores (ALEMANY,

1991).

A partir dessas preocupações por fazer ESCT que incorporassem análises críticas sobre as

relações de poder e de gênero, as feministas avançaram em pesquisas empíricas sobre gênero e

tecnologia, principalmente com foco no desenvolvimento e difusão, na tentativa de romper com a

separação entre os produtores da tecnologia e os usuários. Neste processo, passaram a imprimir

em seus estudos um olhar que sai dos portões da fábrica e voltaram sua atenção também para as

tecnologias de reprodução, de consumo e domésticas, ou seja, as da produção não remunerada

(WAJCMAN, 2000). Segundo Silva (2000) a literatura desenvolvida pelos estudos feministas da

tecnologia desta época se preocupava com três aspectos centrais: 1) gênero e tecnologia são

processos, 2) estes são moldados a partir de uma interação, 3) ambos (gênero e tecnologia) são

categorias históricas e culturais.

Outro elemento importante trazido por esses estudos foi mudar o próprio conceito daquilo

que se entende por tecnologia. Como indicam Berg e Lie (1995), é verdade que se pensamos as

tecnologias em termos de carros, computadores e maquinários industriais a prevalência da

presença masculina é evidente. Mas o que defendem essas autoras é que é necessário ampliar essa

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visão daquilo que se entende por tecnologia, incluir aquelas tecnologias relacionadas ao seu

ambiente como é o caso das tecnologias domésticas, reprodutivas ou as de escritório.

No curso da história da sociedade ocidental as mulheres aparecem marginalizadas do

processo de desenvolvimento tecnológico industrial e mesmo do uso de tais tecnologias e das

tarefas e trabalhos ligados a estas. Além disso, aquelas tecnologias ligadas ao universo

socialmente construído como feminino não constam nesse trajeto, ou quando aparecem são de

alguma maneira menos valorizadas, tidas como mais simples ou como tecnologicamente menos

elaboradas (STANLEY, 1998).

Assim, constitui-se na sociedade ocidental capitalista uma definição de tecnologia

definida em termos das atividades masculinas (WAJCMAN, 1991; COCKBURN&ORMOND,

1993; STANLEY, 1998). Entendendo que a própria tecnologia tem conceitos e significados

diferentes nas diversas culturas e sociedades, sendo também sujeito da ação histórica, Wajcman

(1991) aponta que ao analisarmos as tecnologias a partir de um olhar das atividades femininas,

emergem muitas tecnologias por elas desenvolvidas, mas que atualmente não ganham o mesmo

status das tecnologias relacionadas aos homens:

Já argumentei que a concepção tradicional da tecnologia é fortemente pesada contra as mulheres. Tendemos a pensar a tecnologia em termos de maquinário industrial e carros, por exemplo, ignorando outras tecnologias que afetam a maioria dos aspectos do dia a dia. A própria definição de tecnologia, em outras palavras, tem um viés masculino. A ênfase nas tecnologias dominadas pelos homens conspira para diminuir a importância de tecnologias de mulheres, tais como a horticultura, cozinhar e cuidados com as crianças, e assim reproduz um estereótipo das mulheres como tecnologicamente ignorantes ou incapazes. A força duradoura de identificação entre tecnologia e masculinidade, portanto, não é inerente a uma diferença do sexo biológico. Ao invés disso é resultado da construção histórica e cultural do gênero. (WAJCMAN, 1991, p. 137, tradução livre do inglês)

Cowan (1976), no mesmo sentido, mostra como a história da tecnologia não contém

referência às tecnologias socialmente relevantes como, por exemplo, a mamadeira, que apesar de

ter significado uma revolução na vida da humanidade, não encontrou espaço na história da

tecnologia. Dessa forma, argumenta que o caminho importante de se traçar é retomar o processo

de desenvolvimento das tecnologias que estavam dentro da esfera das mulheres, mais do que

simplesmente resgatar a participação das mulheres em patentes e na construção das tecnologias

capitalistas.

A partir desses argumentos são desenvolvidos uma série de estudos que buscam abarcar

em suas análises essa visão mais crítica, antiessencialista, ou antideterminista, do gênero e da

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tecnologia. Nas principais publicações da área14 são encontrados artigos sobre gênero e

tecnologia, que envolvem principalmente estudos sobre as tecnologias domésticas (COWAN,

1976; BOSE et al, 1984; PARR, 2002), sobre as profissões tecnológicas como a engenharia

(FAULKNER, 2000a; SORENSE&LEVOLD, 1992), alguns trabalhos sobre as tecnologias de

comunicação e informação (LIGHT, 1999; OUDSHOORN et al,2004), tecnologias reprodutivas

(BLOMMFIELD&VULDUBAKIS, 1995), artigos sobre masculinidades e tecnologias

(MELLSTROM, 2002; FAULKNER&KLINE, 2003), assim como publicações de revisão do

campo (WAJCMAN, 2000; BERG&LIE, 1995).

Dentre estas distintas aproximações exploram-se em seguida os principais argumentos

desenvolvidos ao redor do tema das tecnologias domésticas, buscando relacioná-los aos estudos

que tratem mais especificamente sobre as mulheres rurais, porque, em que pesem as diferenças,

estes estudos sobre tecnologias domésticas são aqueles que podem contribuir de alguma maneira

para a análise do objeto deste trabalho.

1.2.1. Tecnologias domésticas e mulheres rurais

O primeiro elemento acerca da tecnologia doméstica é entender que, historicamente, esta

foi comercializada e utilizada quase exclusivamente pelas mulheres na sociedade. Apesar de

mudanças mais contemporâneas nos padrões dos papéis de gênero, entre outros elementos, pela

entrada das mulheres de classes mais altas no mercado de trabalho, a responsabilização das

mulheres pelas tarefas domésticas parece se manter em muitos contextos. Assim, as tecnologias

domésticas chegam para 'ajudar' as mulheres em suas tarefas dentro das casas.

Um dos trabalhos clássicos acerca das tecnologias domésticas é o livro de Ruth Cowan,

historiadora estadunidense, chamado “More Work for Mother: The Ironies of Household

Technology from the Open Hearth to the Microwave” de 1983. A autora analisa a 'ironia das

tecnologias domésticas', ao mostrar que apesar da ideia que se tentava vender de que a chegada

dessas tecnologias nas casas representava uma 'ajuda' ou diminuição do trabalho das mulheres

(laboursaving), em realidade não modificava o total de tempo gasto por elas em tarefas

domésticas.

14 Considera-se aqui três publicações: Social Studies of Science, Technology and Culture e Science, Technology and Human Values.

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O argumento da autora é que a chegada das novas tecnologias representava em realidade

'more work for the mother', porque diminuíam a ajuda dos outros membros da família ao mesmo

tempo em que aumentavam os padrões de exigência com relação ao seu trabalho. Como seu

estudo é desenvolvido com mulheres de classes médias e altas, destaca como as tarefas antes

desenvolvidas pela mulher e mais outras tantas serventes, passou a ser realizado só pela mulher.

Agora bem, se pergunta se este padrão de uso das tecnologias domésticas é seguido de

maneira semelhante pelas mulheres que vivem no campo a pergunta é um pouco mais difícil de

ser respondida. Quando se buscam, nas bases ESCT mencionadas anteriormente, trabalhos que

tratem temas relacionados às mulheres rurais/agricultoras, a invisibilidade delas é evidente. As

respostas a termos de busca como 'gender and rural', ou 'gender and agriculture', ou 'women and

rural', ou 'women and agriculture', trazem pouquíssimos trabalhos que abordam o tema das

mulheres no campo.

Robert Kline e Pamela Riney-Kehberg, ambos americanos e do campo de História,

desenvolveram os poucos estudos encontrados que relacionam agricultura, tecnologia e gênero.

Essas pesquisas, feitas na década de 1990 também nos EUA, entre outras análises, abordam as

especificidades da chegada das tecnologias domésticas no meio rural.

Riney-Keyhberg (1997), por sua vez, faz uma revisão dos estudos desenvolvidos sobre

mulheres, tecnologias e vida rural. Através de um resgate histórico de diferentes autores que

abordaram o tema, a autora desenha o caminho da invisibilidade das mulheres nos estudos sobre

a tecnologia no meio rural, ocultadas por uma história da agricultura que sempre privilegiou os

homens e suas ferramentas, até as datas mais recentes em que as mulheres passaram a ser,

finalmente, objeto de interesse. O trabalho cobre um período longo, desde os princípios do

século XX, mas de maneira geral, e destaca entre todos os elementos analisados como o processo

de industrialização e de mecanização do campo foram marcantes para a vida das mulheres rurais

estadunidenses no século anterior.

A autora indica que no princípio do século as funções da mulher na família agricultora

incluíam não apenas as tarefas domésticas, mas também trabalhos realizados no campo e a

produção de alimentos, como manteiga, ovos e derivados de leite para comercialização. Assim,

por um lado a chegada das indústrias produtoras de alimentos representou o fim, ou pelo menos

uma diminuição, das atividades que possibilitavam a estas mulheres gerar ingressos econômicos.

Além disso, a autora argumenta que a chegada da mecanização com seus tratores e suplementos

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agrícolas é um momento de distanciamento das mulheres dessas tarefas. Enquanto antes da

mecanização a produção agrícola demandava uma participação de toda a família para manter a

fazenda, com a chegada dos tratores são os homens que passam a controlá-los, desvalorizando o

trabalho feminino, reforçando a divisão sexual do trabalho e, em muitos casos, o papel

secundário das mulheres na família. Ainda que os tratores pudessem representar um potencial

para maior participação feminina nas atividades agrícolas, na prática sua utilização reforçava essa

tarefa como masculina.

A dificuldade de participação das mulheres nos processos de decisão sobre quais

tecnologias seriam adquiridas, e sobre outros assuntos da produção familiar também é destacada.

Os homens aparecem como aqueles que tinham o poder de decidir quais tecnologias seriam

compradas e em que momento, podendo escolher comprar o trator antes de comprar aparatos que

pudessem facilitar o trabalho doméstico das mulheres, por exemplo. Assim, quando se trata de

estudar as mulheres do campo não são só as tecnologias domésticas que se mostram relevantes,

mas também aquelas adotadas para a produção agrícola e outras que se desenvolvem fora das

fazendas como é o caso da indústria de alimentos. Ou seja, não é possível nesse contexto analisar

apenas um tipo de tecnologia já que as mulheres estão envolvidas numa rede ampla de interações.

Desta forma, assim como já argumentado para o âmbito urbano, os tecnologias, ao invés

de representarem um potencial de mudança nas relações de gênero, reproduzem seus padrões e

reforçam desigualdades. Sendo assim, dentro deste contexto estadunidense as mulheres seguem

tendo um papel secundário nas famílias rurais, pouco envolvidas na produção agrícola, enquanto

os homens tomam a maior parte das decisões relacionadas à produção e ao uso de seu respectivo

maquinário. Deve-se destacar que o resgate histórico feito pela autora deixa a desejar no que diz

respeito a uma visão mais crítica sobre o determinismo tecnológico. Ainda que aborde estudos

que podem complexificar as muitas dimensões sociais relacionadas às inovações, em sua maior

parte os estudos estão centrados sumamente sobre as consequências do uso dessas tecnologias e

não em como estas são moldadas.

Neste sentido, mais contribuições podem ser encontradas no trabalho de Robert Kline,

que em diálogo explícito com a perspectiva SCOT, desenvolve análises mais profundas com

relação à definição tecnológica a partir dos grupos sociais relevantes. Em texto publicado em

1996, escrito com Trevor Pinch, chamado “Users as Agents of Technological Change: The

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Social Construction of the Automobile in the Rural United States”15, os autores fazem um resgate

da história do automóvel nos EUA e como a população rural estadunidense esteve diretamente

implicada nesse processo.

Problematizando o fato de que a historia dos automóveis normalmente está localizada no

meio urbano, o estudo analisa como os usuários das tecnologias, especialmente do âmbito rural,

foram atores importantes na definição de seu formato final. Passado um estágio inicial, no

começo do século XX, em que a população rural manifestou sua rejeição aos automóveis e fez

fortes campanhas contra sua utilização, chegou-se aos anos 1930 com boa parte dos produtores

rurais possuidores de automóveis. As razões para tanto seriam, por um lado, um esgotamento do

mercado urbano que mobilizou campanhas publicitárias e adaptação dos veículos ao meio rural e,

por outro lado, as habilidades técnicas dos produtores agrícolas que, já acostumados a manusear

motores de vapor e a gasolina, tinham capacidade para realizar as manutenções necessárias em

caso de problemas mecânicos com os veículos.

O estudo destaca três grupos sociais importantes para a definição da tecnologia.

Enquanto, por um lado, os produtores dos carros tinham, sem sombra de dúvida, maior poder de

influência sobre o design das tecnologias, os agricultores e agricultoras como usuários finais

mudavam de maneira significativa os usos e propósitos do artefato final. Uma vez nas mãos dos

produtores rurais os carros eram usados mais que tudo como uma fonte de poder ou energia.

Assim, os motores dos carros e suas rodas eram usados em forma estática para moedores de

grãos, máquinas de fardo, serragem de madeiras, bombas de água ou para fazer funcionar uma

máquina de lavar roupa. No entanto, os autores destacam que ainda que em algum momento

fossem utilizados para realizar 'trabalhos de mulher', como é o caso da lavadora, na maior parte

do tempo eram os homens que os utilizavam para ajudar na produção agrícola, nas 'atividades

dos homens'.

Os autores destacam que as relações de gênero nas famílias rurais americanas nos

princípios do século XX mantinham muitos traços da tradicional divisão sexual do trabalho. Os

homens, incluindo maridos, filhos e contratados, eram responsáveis por tudo relacionado às

atividades produtivas que geravam renda no campo e celeiro, assim como aquisição de

maquinários. As mulheres – esposa, filhas, e contratadas – realizavam as atividades de 'apoio',

como interpretadas por homens e mulheres, na casa, jardim e galinheiro. Ainda que as mulheres

15 “Usuários e agentes de mudanças tecnológicas: A construção social do automóvel nos EUA rural”

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realizassem trabalhos no campo nas épocas de colheita e outros momentos da safra, esta função

econômica, assim como a comercialização de vegetais, ovos e produtos alimentícios eram vistas

apenas como ajuda e complemento da renda familiar gerada no campo pelo marido.

Outro elemento importante das identidades de gênero no campo era a formação da

identidade masculina através de sua competência técnica. “Muitos homens do campo,

especialmente os de Midwest, se viam como mecânicos competentes que podiam operar, manter,

consertar e redesenhar a maior parte das máquinas na fazenda, desde os motores a vapor e

debulhadores no campo a bombas de água na cozinha” (KLINE and PINCH, 1996, p. 778,

tradução livre do inglês). Assim, como já destacado anteriormente, a competência em operar e

consertar máquinas era um elemento definitivo da identidade masculina. Ainda que as mulheres

pudessem usar certos tipos de tecnologia, a função de consertá-las era sempre cumprida pelos

homens.

Estes estudos aqui apresentados consideram apenas de uma camada social, das mulheres

de classe média e alta e mulheres rurais das mesmas classes que aceitaram e incorporaram o ideal

de domesticidade urbana. Apesar disso, algumas semelhanças se mantém no que diz respeito as

relações de gênero e tecnologia quando analisa-se o contexto dos assentamentos rurais no Brasil,

em especial a estreita relação da tecnologia com a masculinidade, e a pouca visibilidade do

trabalho feminino, como explora-se nos capítulos que seguem.

Para fechar essa parte do capítulo retoma-se aqui alguns argumentos de uma autora

brasileira, Elisabeth Silva, que trabalhou no tema de gênero e tecnologia doméstica. Em um

artigo publicado em 1998, chamado “ Tecnologia e vida doméstica nos lares” a autora faz um

resgate do histórico de inserção das tecnologias domésticas no Brasil. Semelhantemente aos

estudos feitos no norte, destaca como esses artefatos estavam direcionados para uso das

mulheres, reproduzindo a divisão sexual do trabalho já existente, com propagandas que

constantemente apelavam à domesticidade feminina.

Enquanto as mulheres ricas do norte enfrentavam o problema de que as tecnologias não

reduziam sua carga de trabalho no âmbito doméstico, as mulheres de classe alta brasileira se

deparavam com os problemas das tarefas domésticas e suas tecnologias de outra maneira. No

Brasil, a recorrente prática de contratação de empregadas domésticas para realizar os trabalhos de

limpeza, alimentação e cuidado, faz configurar um cenário diferente com relação ao uso da

tecnologia. As mulheres que contratam as empregadas não confiam nestas para usarem as

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tecnologias; assim, esses artefatos passam a ser usados simplesmente aos finais de semana,

quando são as próprias donas das casas que tem que executar tais tarefas.

As empregadas domésticas e outras mulheres de classes mais baixas, por outro lado, além

de não poderem contratar mão de obra para realizarem as atividades domésticas, têm também

uma dificuldade de acesso econômico às tecnologias chamadas de linha branca. Seu baixo poder

aquisitivo, somado aos altos preços das tecnologias dificultam as possibilidades dessas mulheres

de terem acesso (SILVA, 1998).

Vale destacar que, por mais evidente que seja essa relação dos eletrodomésticos com as

mulheres, algumas tecnologias como o microondas são analisadas como um reflexo de mudanças

nos padrões das relações de gênero. A entrada das mulheres de classes médias e altas no mercado

de trabalho teria obrigado filhos e maridos a realizar algumas tarefas no âmbito doméstico, tais

como esquentar sua própria comida no momento de ausência das mulheres. Ainda assim, as

tarefas mais complicadas parecem seguir sob responsabilidade das mulheres:

A necessidade de suprir a família nuclear (casal e filhos) nesse espaço levou à produção de comida, limpeza, etc, em espaços privados de domicílios. As máquinas foram assim sendo desenhadas para suprir domicílios privados com características determinadas e necessidades particulares de trabalho doméstico. O fato de que o trabalho doméstico tem cabido sobretudo a mulheres também tem implicações fundamentais sobre as características, preços, desempenho e mesmo sobre a aplicação de descobertas científicas às inovações para tecnologias do lar. (SILVA, 1998, p. 51)

Estes estudos acerca da tecnologia doméstica mostram como a tecnologia é nada mais que

um meio que reproduz as lógicas prévias de divisão sexual do trabalho, e de divisão de classes

sociais, responsabilizando as mulheres pelas tarefas domésticas e não representando

necessariamente uma superação dos padrões de gênero a partir da suposta maior facilidade em

executar as tarefas.

Por outro lado, quando se realizam buscas em publicações brasileiras por estudos que

vinculem gênero e tecnologia com mulheres rurais, encontram-se dificuldades semelhantes. Nas

publicações mais conhecidas da área de gênero como Cadernos Pagu e Revista de Estudos

Feministas as publicações sobre gênero e tecnologia não chegam a abordar o tema de mulheres

rurais. Nos Cadernos Gênero e Tecnologia da UFTPR repete-se essa mesma invisibilidade.

É evidente que não se está dizendo que no Brasil, ou no mundo, não sejam desenvolvidos

estudos sobre as mulheres no campo. Estes estudos existem e serão melhor explorados no

segundo capítulo dessa dissertação. Trata-se aqui de destacar que para as feministas dos ESCT as

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mulheres rurais ainda não ganharam espaço nas análises; o tipo de tecnologia que usam, ou não

usam, como se dão essas relações, em que medida são parecidas ou distintas dos padrões

encontrados no meio urbano, são perguntas ainda sem respostas deste campo de estudos. A

mudança na visão daquilo que se entende como tecnologia logrou visualizar as tecnologias

ligadas ao universo tradicionalmente construído como feminino, mas com um feminino urbano e

marcado também por estereótipos de classe social.

Em resumo, as feministas dos estudos sociais de ciência e tecnologia oferecem

contribuições valiosas no sentido de entender tanto o gênero como a tecnologia como construtos

socais, mas, ao mesmo tempo, tais contribuições originam-se da realidade dos países do norte e

do espaço urbano, o que limita seu uso como ferramenta de análise a ser aplicada de maneira

acrítica em outros contextos. É necessário, então, um respaldo bibliográfico que ajude a entender

com mais profundidade o contexto a ser analisado, tais como os assentamentos rurais no Brasil,

as relações de gênero nesse cenário, assim como as formas de organização coletiva das mulheres

do campo.

1.3. Considerações finais

Este capítulo apresentou um breve histórico dos estudos acerca da tecnologia

desenvolvidos pelas feministas a partir da década de 1970, para chegar até as aproximações mais

recentes que incorporam ao campo as contribuições dos construtivistas sociais da tecnologia dos

ESCT. Dentro dessa concepção adotada, aproxima-se à realidade do meio rural, explorando

algumas referências que abordam dimensões próprias das relações de gênero e tecnologia nas

famílias agrícolas.

Os antecedentes históricos dos estudos feministas da tecnologia ajudam a compreender a

complexa teia das relações entre gênero e tecnologia, assim como quais são as distintas

abordagens e maneiras de se acercar ao tema. Desde as perspectivas iniciais que tratavam o tema

da (não)participação feminina nas ciências, passando pelos feminismos radicais e ecofeminismos,

até as feministas socialistas, percebe-se que os discursos são diferentes, mas seguem no caminho

de evidenciar o carácter intrinsecamente político da tecnologia.

Os estudos chamados de 'Gênero e Tecnologia', influenciados por esse amplo campo

feminista de estudos da tecnologia, e a partir das contribuições dos ESCT, especialmente das

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correntes SCOT e TAR, conformam um campo de estudos no qual não apenas o gênero é visto

como um construto social, mas também a tecnologia é entendida como um processo, definida por

e definidora dessas relações. Estas são as definições de tecnologia e gênero adotadas para o

desenvolvimento deste trabalho.

As contribuições desse campo são importantes porque ainda que alguns estudos

feministas da tecnologia tenham avançado em compreender como as relações e os papéis de

gênero são definidos pela sociedade, suas aproximações à tecnologia não chegavam ao mesmo

ponto. Divididas entre otimistas e pessimistas, as análises estavam em sua maior parte centradas

no uso das tecnologias e suas consequências para a vida das mulheres, mais que em como essa

era constituída a partir das relações sociais já existentes. Este campo de estudos permite

complexificar as análises da tecnologia e compreender sua construção como um processo onde os

mais diversos grupos sociais e as relações de poder definem e são definidos.

Os estudos sobre as mulheres rurais realizados nos EUA remetem a esta complexidade

das relações entre gênero e tecnologia. Enquanto os estudos sobre as tecnologias domésticas

apontam a exclusividade do uso destas pelas mulheres - que parecem sobrecarregar-se e não

poupar tempo como propagandeado - os estudos sobre o meio rural escancaram a relação do

homem com as tecnologias de produção agrícola. Estabelece-se uma identidade masculina

definida a partir de suas habilidades técnicas de arrumar, consertar e mudar as tecnologias, sejam

elas do campo ou da casa. E essas habilidades são também o que permite que esses produtores

redefinam as tecnologias a partir de seu uso.

Os estudos feministas em ESCT contribuem assim para um compreensão mais complexa

das relações que se estabelecem entre gênero e tecnologia, no entanto, existem pontos de

distância quando são utilizados para analisar uma realidade como a dos assentamentos rurais.

Essas teorias estão marcadas por um recorte de país, de classe, de origem rural ou urbana, de um

olhar individual, limitando suas possibilidades de aplicação direta e demandando uma

compreensão profunda do contexto onde as análises serão realizadas.

Portanto, no segundo capítulo exploram-se outros referenciais para suprir as carências

aqui deixadas. Abordando o tema das relações de gênero nos assentamentos rurais, e as formas de

organizações coletivas das mulheres camponesas, busca-se contextualizar com mais profundidade

o estudo de caso e abrir caminhos que permitam traçar novos paralelos com o campo de gênero e

tecnologia.

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CAPÍTULO 2 – MULHERES RURAIS: CONTEXTO E ORGANIZAÇÃO

Este capítulo pretende fazer uma análise das relações de gênero no campo, chegando até

as formas de organização coletiva das mulheres agricultoras com o objetivo de identificar em que

medida essa organização coletiva, inclusive aquelas da Economia Solidária, contribui para mudar

as relações de gênero. Para tanto, inicia-se com uma apresentação da agricultura familiar e sua

consolidação no Brasil através, em grande medida, dos assentamentos rurais de reforma agrária,

para então entrar nas especificidades das relações de gênero e da divisão sexual do trabalho no

caso do meio rural, e por fim abordar o tema da Economia Solidária e as especificidades dos

empreendimentos de mulheres rurais.

A agricultura familiar hoje é foco da atenção de muitos movimentos sociais, governo,

organizações internacionais, pesquisadores, por representar uma possibilidade de

desenvolvimento alternativo às pessoas do campo. Como se verá a partir das referências

apresentadas neste capítulo, o modo de organização familiar, atrelado à disputa pela terra, tem

demonstrado seu potencial para reduzir a pobreza, diminuir diferenças sociais e trabalhar de

forma mutuamente benéfica com o meio ambiente.

No entanto, segundo as críticas feministas, muito do debate sobre a organização familiar

da produção agrícola ainda gira em torno de entendê-la melhor, delimitá-la melhor com o

objetivo de torná-la mais eficiente frente a um mercado cada vez mais concentrado e

competitivo, dando pouca atenção às relações em que estão envolvidas as famílias da agricultura

familiar (NOBRE, 2005). Quando se falar de agricultura familiar, a família é, geralmente,

considerada como um todo coeso, sem problemas ou conflitos internos, como se dentro da

própria estrutura familiar não existissem disputas de poder e interesses:

Pressupõe-se que o que é bom para o conjunto dos membros da família é necessariamente bom para a mulher. Isso se reforça pelo fato de que o conceito de agricultura familiar, que desde o início dos anos 90 tem ampla aceitação tanto no meio acadêmico, como entre os técnicos e os próprios produtores, implica em uma visão, senão totalmente harmônica da família rural, pelo menos baseada na ideia de que os conflitos entre os cônjuges, e entre estes e seus filhos, podem ser resolvidos sem extrapolar a esfera doméstica. (PAULILO, 2003, p.5)

As feministas que se debruçaram sobre o tema, no entanto, evidenciam como as relações

de gênero no campo mantém um estrutura hierárquica dentro das famílias, com os homens

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ocupando um papel de donos dos lotes e chefes de família (PAULILO, 2003 e 2004; RUA e

ABRAMOVAY, 2000; NOBRE, 2005). Prevalece no campo uma representação da divisão

sexual do trabalho que imputa aos homens a responsabilidade pelo trabalho produtivo, da roça, e

às mulheres toda a carga de trabalho doméstico e de cuidado. Ainda que as mulheres circulem

como executoras de distintos trabalhos, inclusive na roça, esse trabalho é invisibilizado e os

homens seguem sendo aqueles que detêm a palavra final sobre o uso dos recursos familiares, por

exemplo (FARIA, 2009; PAULILO, 2004). Esta condição é agravada pela dificuldade das

mulheres, ainda hoje, de possuírem titularidade dos lotes ou terem acesso aos meios de produção

(GONÇALVES, 2006; DEERE, 2004).

Estas barreiras não são enfrentadas de maneira passiva pelas mulheres do campo que,

desde princípio dos anos 1980, se organizam para lutar não apenas pela redemocratização e pela

reforma agrária do país, mas também pelos direitos específicos das mulheres, tentando mudar o

panorama destas relações desiguais (LISBOA e LUSA, 2010; PAULILO, 2003). Inicialmente as

preocupações giravam especialmente em torno a garantir direitos legais às mulheres, como o

reconhecimento delas como trabalhadoras rurais - o que lhes garantia uma série de direitos como

aposentadoria, licenças, possibilidade de sindicalizar-se - o acesso à titularidade da terra, a

participação feminina nos espaços de decisão e, mais recentemente, somam-se também as lutas

ambientais e agroecológicas (LISBOA, 2010; PAULILO, 2010)

Por outro lado, começam a (re)surgir nos anos 1990 experiências de trabalho associado

como consequência do processo de precarização do trabalho, por um lado por iniciativa dos

trabalhadores e trabalhadoras, e por outro pelos incentivos governamentais, que começam a criar

políticas para geração de trabalho e renda (SINGER, 2002). A essas iniciativas se convencionou

chamar de Economia Solidária, e como se argumenta neste capítulo, as mulheres, inclusive as

rurais, têm protagonizado algumas dessas organizações e desestabilizado a partir delas certos

traços enraizados das relações de gênero.

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2.1. Agricultura familiar

A partir das décadas de 1950 e 1960, sob a justificativa de buscar solução ao problema da

fome no país e impulsionados pela necessidade de competir no mercado externo, inicia-se um

processo de modernização da economia brasileira, e, como parte dela, da agricultura. Esse novo

modelo de produção agrícola ficou conhecido como “Revolução Verde” e envolvia o uso de um

pacote tecnológico completo aplicado à produção rural, com sementes melhoradas, insumos

industriais (como agrotóxicos e fertilizantes), mecanização e diminuição do custo de produção,

assim como o uso de tecnologias para irrigação, plantio e colheita, levando assim ao

fortalecimento e ampliação das empresas rurais capitalistas (SILVA, 1982).

Segundo Silva (1982), a aplicação desse pacote tecnológico, no entanto, com o tempo

passou a gerar problemas sociais e ambientais. O mais visível deles foi o aumento significativo

do êxodo rural. Os trabalhadores rurais, já sem forças para competir com as grandes empresas do

agronegócio e endividados, são expulsos do campo e levados a tentar a vida nas cidades. Além

disso, o modelo de produção agrícola desta forma começou a atingir limites tecnológicos,

refletidos no meio ambiente a partir do esgotamento dos solos, da diminuição da produtividade

da terra, perda de biodiversidade e poluição causada por fertilizantes e pesticidas.

Nesse contexto de exclusão, os trabalhadores do campo começaram a se organizar e

manifestar sua indignação com o modelo de desenvolvimento vigente, que apenas beneficiava os

grandes empresários agrícolas, ou produtores minimamente capitalizados e inseridos no mercado,

e passaram a brigar por um novo modelo de produção e organização do campo. A agricultura

familiar - aquela em que a família é detentora de seus meios de produção e também é a força de

trabalho que mantém a terra – que tinha neste momento um papel secundário no cenário

nacional, passou a ser então proposta pelos movimentos sociais e alvo de políticas públicas,

como uma forma promissora para resolver o problema do esgotamento do agronegócio

(MAZALLA, 2009).

A ideia de agricultura familiar, no entanto, não é nova e nem se restringe ao contexto

brasileiro. Com efeito, Alexender Chayanov, russo que viveu no começo do século XX na época

da Revolução Russa de 1917, foi um dos primeiros a escrever uma proposta teórica original que

buscava compreender o modo de produção e organização das unidades familiares de agricultura.

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E, ainda que a contribuição de Chayanov refira-se a uma outra época e contexto histórico, ele é

ainda hoje citado como uma das principais referências da agricultura familiar, porque seu

trabalho, sob vários aspectos, se mostra surpreendentemente atual (WANDERLEY, 1998).

Segundo Wanderley (1998), o eixo central na teoria de Chayanov está na afirmação de

que a produção familiar agrícola é regida por princípios gerais de funcionamento interno

diferentes daqueles da produção capitalista. Tais princípios derivam principalmente do fato de

que a produção não está focalizada na extração e apropriação do trabalho alheio, como na

empresa capitalista; pelo contrário, o trabalho envolvido no processo é do próprio proprietário

dos meios de produção. Quem trabalha é o agricultor e sua família, e a propriedade é familiar.

Mais adiante, nesse mesmo capítulo, argumenta-se que nessa afirmação fica evidente a falta de

um olhar para as relações de poder presentes dentro dessa 'propriedade familiar'.

Sendo assim, o agricultor familiar não trabalha por um salário conseguido através da

realização de uma tarefa, o que lhe permite autodeterminar a intensidade e tempo de trabalho.

Esse trabalhador não opta por exacerbar a exploração da força de trabalho para gerar mais lucro,

ele possui autonomia para decidir sobre o tempo e intensidade de trabalho de acordo com os

rendimentos que precisa ter para sobreviver (WANDERLEY, 1998).

A partir de tal pressuposto surge um dos conceitos centrais da agricultura familiar que é o

balanço entre consumo e trabalho, o que significa dizer que as famílias têm autonomia para

definir o esforço que será empreendido no trabalho a partir do grau de satisfação das

necessidades da família. Assim, a avaliação dos próprios membros da família é, segundo

Chayanov, que define seu grau de autoexploração. Nas palavras do autor: “O único critério

econômico da unidade de produção camponesa consiste na correlação entre o grau de satisfação

das necessidades da família e a penosidade do trabalho efetuado” (CHAYANOV 1913/1988, p.

73 apud ABRAMOVAY, 1992).

Outro conceito central para o trabalho de Chayanov é o do rendimento indivisível.

Criticando a maneira de analisar a produção familiar sob a ótica da produção capitalista, aponta

que nessa forma de organização é impossível separar o que foi gerado pelo trabalho, pelo

investimento ou como renda da terra. É desse mesmo recurso que o produtor manterá as

necessidades de consumo da família e, ao mesmo tempo, a empresa familiar (WANDERLEY,

1998).

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Vale ressaltar, no entanto, que ao dizer que a agricultura familiar tem uma lógica de

funcionamento interna, não implica que ela esteja isolada da lógica capitalista do mercado e do

progresso técnico; estes elementos também fazem parte das escolhas que a família realiza sobre

venda de safra e compra de insumos industriais, por exemplo (ABRAMOVAY, 1992). Para

Wanderley (1998) a agricultura familiar, então, está inserida no movimento geral de acumulação

do capital e, assim, é afetada por essa lógica, mas não determinada por ela.

Outro elemento importante da obra de Chayanov é que sua visão se conformava em

oposição ao pensamento recorrente da época defendido por teóricos como Lênin de que o

pequeno produtor está condenado ao desaparecimento, ao se incorporar à estrutura capitalista na

figura de um burguês ou proletário. Através de seus estudos realizados na época, mostrava que,

na verdade, essa forma de produção familiar tendia a sobreviver e se expandir, por áreas onde o

capitalismo não dominaria (ABRAMOVAY, 1992):

O campesinato não é simplesmente uma forma ocasional, transitória, fadada ao desaparecimento, mas, ao contrário, mais que um setor social, trata-se de um sistema econômico, sobre cuja existência é possível encontrar as leis da reprodução e do desenvolvimento (ABRAMOVAY, 1992, p. 59).

Assim, apesar das descrenças teóricas e políticas sobre a agricultura familiar, como algo

economicamente inviável ou como algo que seria engolido pela forte competição do agronegócio

capitalista, esta organização da produção tem se mantido viva e é hoje uma forma de

sobrevivência de milhões de pessoas no Brasil (WANDERLEY, 1998).

Segundo análises de França et al (2009) acerca da agricultura familiar no Brasil, os dados

da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE) indicam que, recentemente, a

população residente em áreas rurais não sofreu grandes variações em termos absolutos, passando

de 31,6 milhões em 1996 para 31,3 milhões em 2006. No entanto, considerando que no mesmo

período houve aumento da população total brasileira, isso em termos relativos significa que

sofreu uma diminuição mudando de 20,5% do total nacional em 1996 para 16,7% em 2006.

Apesar dos dados indicarem uma diminuição relativa da população do campo no Brasil,

provavelmente explicada ainda pelas dificuldades vividas pela população rural em consequência

do processo de mecanização do campo, percebe-se que mesmo com os êxodos muitos

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permanecem no campo. Nesse sentido, os autores indicam que a maior parte da população rural

está em estabelecimentos16 de produção familiar.

O Censo Agropecuário de 2006 identificou 4.367.902 de estabelecimentos de agricultores

familiares, o que representa 84,4% do total de estabelecimentos agropecuários do Brasil. Isso

significa um aumento percentual do número de estabelecimentos familiares em quase todas as

regiões do país, exceto a Sul, em comparação com dados de 1996. No Sudeste a mudança é de

75% em 1996 para 77% em 2006 a participação de agricultores familiares no total de

estabelecimentos agrícolas (FRANÇA et al, 2009).

No entanto, apesar de serem maior parte dos estabelecimentos, quando os números são

vistos de acordo com área ocupada a situação é diferente. Enquanto os estabelecimentos

familiares correspondem a 24,3% do total da área ocupada por estabelecimentos agropecuários,

os 15,6% de estabelecimentos não familiares ocupam os 75,7% da área total.

Estes dados refletem a concentrada estrutura agrária em nosso país ainda nos dias de hoje.

Nesse sentido, na próxima parte deste capítulo faz-se um breve relato do histórico da luta pela

terra e de construção da reforma agrária no país, como possibilidade de distribuição mais

equitativa das terras entre todas as camadas da população, e seus assentamentos rurais como uma

importante forma de organização da agricultura familiar hoje no Brasil.

2.2. Assentamentos Rurais e luta pela terra

A concentração fundiária evidenciada pelos dados do Censo Agropecuário de 2006 não é

recente no Brasil, país que tem um histórico desde a época da colonização de alta concentração

de propriedades da terra e de conflitos por posse da terra (MELO e DI SABBATO, 2008;

OLIVEIRA, 2009). Esses conflitos, que não deixam de existir, explodiram com maior força a

partir de 1954 quando surgiram as primeiras 'ligas camponesas' como forma de organização dos

16 Definição de estabelecimento: O Censo Agropecuário de 2006 considerou como estabelecimento agropecuário “toda unidade de produção dedicada, total ou parcialmente, a atividades agropecuárias, florestais e agrícolas, subordinada a uma única administração: a do produtor ou a do administrador. Independente de seu tamanho, de sua forma jurídica ou de sua localização em área urbana ou rural, tendo como objetivo a produção para subsistência e/ou para venda, constituindo-se assim numa unidade recenseável”. As áreas não-contínuas, exploradas por um mesmo produtor, foram consideradas como um único estabelecimento, desde que estivessem situadas no mesmo setor censitário, utilizassem os mesmos recursos técnicos (máquinas, implementos e instrumentos agrários, animais de trabalho, etc.) e os mesmos recursos humanos (o mesmo pessoal), e, também, desde que estivessem subordinadas a uma única administração: a do produtor ou a do administrador (FRANÇA et al, 2009)

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movimentos no campo que reivindicavam especialmente melhoras nos direitos trabalhistas e a

resistência de posseiros e arrendatários contra a expropriação das terras que vinham ocupando

(MELO e DI SABBATO, 2008; MOREIRA, 1999).

A partir de sua vinculação com os movimentos urbanos e partidos políticos, esse

movimento cresceu e ganhou força no cenário nacional. Por volta dos anos 1960 em alguns

Estados do país essa pressão popular fez surgir alguns assentamentos rurais, ainda que de forma

pontual e limitada (BERGAMASCO&NORDER, 1996).

Os assentamentos rurais surgiram, assim, como resultado desses conflitos pela terra,

como uma das formas de organização da agricultura familiar, visando gerar emprego e novas

formas de organização social no campo em alternativa também ao inchaço dos centros urbanos,

altas taxas de desemprego e grande exclusão social. Tais assentamentos têm sido assim definidos:

De uma forma genérica, os assentamentos rurais podem ser definidos como a criação de novas formas de produção agrícola, por meio de políticas governamentais visando o reordenamento do uso da terra, em benefício de trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra. Como o seu significado remete à fixação do trabalhador na agricultura, envolve também disponibilidade de condições adequadas para o uso da terra e o incentivo à organização social e à vida comunitária. (BERGAMASCO&NORDER, 1996, p. 7)

Segundo esses autores, os governos estaduais e nacional começaram, a partir dos anos

1960, a criar propostas políticas de reforma agrária17 numa tentativa de conter a agitação dos

movimentos populares organizados. Apontam-se aqui, sem o objetivo de ser exaustivo e muito

menos de aprofundar a análise, alguns avanços nessas políticas em cada governo desde esta

época.

Os governos de Jânio Quadros e João Goulart foram os primeiros a fazer promessas de

criar políticas para facilitar o acesso à terra; queriam eliminar o latifúndio e colocar a terra à

disposição do interesse social. No entanto, suas metas não foram cumpridas, uma vez que duas

semanas após Goulart realizar sua primeira desapropriação ocorreu, em 1964, o Golpe Militar no

Brasil ((BERGAMASCO&NORDER, 1996).

17 Não é objetivo desde trabalho entrar nas polêmicas e debates acerca da definição de reforma agrária; assim, para os fins dessa análise utiliza-se o conceito proposto por Rua e Abramovay (2000) ao termo: Conjunto de políticas governamentais que abrange (1) a demarcação e alocação de parcelas de terra – independentemente do processo que originou sua arrecadação – a trabalhadores sem terra, com ou sem título de propriedade; (2) a oferta de crédito em condições favoráveis para a instalação das famílias, construção de habitações, plantio e custeio agrícola; (3) a oferta de assistência técnica e capacitação para a atividade produtiva.

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Com a instalação do Governo Militar ocorreu forte repressão dos movimentos sociais, e

por outro lado criou-se o chamado 'Estatuto da Terra' (lei n. 4.504 de 1964). Este estatuto fixava

diretrizes para a implementação de projetos de colonização em áreas de fronteira agrícola, sob

responsabilidade do Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrícola (INDA), e para a aplicação

da reforma agrária, que ficaria a cargo do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA),

organismos que, mais adiante, se fundiram no Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária (INCRA).

Segundo Bergamasco et al (1997), o período do governo militar foi caracterizado pela

distribuição de muitas colônias na região da Amazônia, principalmente a grandes proprietários de

terra, na tentativa de desviar o fluxo e a atenção pelas demandas de terra em outras regiões do

país e, na opinião dos autores, como uma forma de desmobilizar os movimentos sociais do

campo. A alta taxa de modernização agrícola, por um lado, e o pouco incentivo e assistência aos

pequenos produtores, por outro, foram características marcantes da época:

Com isso os governos militares acabaram por impedir uma efetiva distribuição de terras até mesmo na Amazônia, uma vez que grandes empresas, agropecuárias ou não, acabavam por receber áreas de vastas extensões. A concessão de títulos individuais de propriedades e as dificuldades econômicas e sociais enfrentadas pelos colonos induziram ao abandono do projeto, à venda dos lotes e à concentração da propriedade. Dadas essas características e resultados, Octávio Ianni sugere que “...a contrapartida do apoio dado pela burguesia rural ao Golpe de Estado de 1964 foi a contrareforma agrária, apresentada como colonização dirigida.”(BERGAMASCO&NORDER, 1996, p.20)

O fim do regime militar trouxe nova esperança à proposta da reforma agrária, com

projetos políticos que previam a alocação de grandes áreas para assentamentos rurais através de

desapropriação por interesse social. No entanto, na concretização das políticas poucas famílias

foram alocadas e estas ficaram concentradas principalmente na região norte do país.

No governo Sarney (1985-1989) existia uma proposta de reforma agrária de interesse dos

trabalhadores rurais, mas que ao final não se concretizou. Durante seu governo apenas 5% da

meta de assentamentos foi atingida: das 1,4 milhões de famílias previstas apenas 90 mil foram

assentadas. No mandato de Collor (1990-1992), os planos de reforma agrária ficaram

imobilizados, não havendo nenhuma desapropriação por interesse social. Com a chegada de

Itamar Franco ao poder em 1992 são retomadas os planos, estabelecem-se metas para assentar 80

mil famílias, mas ao final apenas 12.600 foram beneficiadas (DAVID et al, 1998).

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Durante os dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995 - 2002), que

reconhecia a importância da instalação da reforma agrária, foram assentadas 540 mil famílias

(OLIVEIRA, 2009). Segundo Oliveira (2009), apesar dos avanços com relação aos governos

anteriores, o PSDB também ficou aquém das metas estipuladas e a falta de recursos para

infraestrutura e assistência é evidente quando se compara àqueles destinados ao agronegócio,

priorizado como política deste governo.

A chegada do governo Lula em 2003 foi vista com esperança pelos movimentos sociais

do campo, que foram entusiastas de suas campanhas ao longo dos anos. Já no final de seu

primeiro ano de mandato, como resultado da pressão destes movimentos, foi lançado o II Plano

Nacional de Reforma Agrária - II PNRA (INCRA, 2005), que continha metas importantes para

alavancar o processo de reforma agrária no país. Segundo Souza (2006), os dados deste plano

representavam o maior plano de reforma agrária já realizado no país com previsão para assentar

400.000 famílias até o final do ano de 2006, e regularizar a situação de mais 100.000

propriedades.

Segundo dados divulgados pelo INCRA em 2004 (NEAD/MDA, 2005) até esta data o

governo tinha cumprido 81% das metas do II PNRA, assentando 117.555 famílias entre os anos

de 2003 e 2004, superando neste último ano a média anual que era de 65,5 mil entre 1995 e

2002. Já os dados lançados em 2010 (INCRA, 2010) dizem que, nos oito anos de governo Lula,

foram 614 mil famílias assentadas e que, atualmente, o Brasil conta com 85,8 milhões de

hectares incorporados à reforma agrária, 8.763 assentamentos atendidos pelo Incra, onde vivem

924.263 famílias.

Apesar das propagandas positivas do INCRA acerca dos avanços da reforma agrária no

Brasil durante os anos do governo do Partido dos Trabalhadores (PT), Oliveira (2009) avalia que

esses dados estão mascarados. Segundo suas análises, nos números apresentados estão incluídas

não apenas as famílias assentadas, mas também aquelas cuja regularização aconteceu durante

esse período, ou que foram reassentadas em outro local. Sendo assim, para o autor, os dados reais

giram em torno de 183 mil famílias até 2008 (e não as 519 mil anunciadas), e o governo do PT

não teria feito avanços significativos em comparação com os anteriores. Além disso, a ausência

de um novo PNRA no segundo mandato seria marca da pouca prioridade dada a esta política pelo

governo.

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Sendo assim, apesar dos governos já terem assumido a reforma agrária como uma de suas

frentes de atuação e política, as dificuldades para sua concretização ainda são muitas. Os

movimentos do campo, que se mantém organizados, seguem disputando pela terra, mas são

fortemente reprimidos; segundo dados de Oliveira (2009) mais de dois mil camponeses já foram

assassinados desde 1964 até 2009 no contexto dessas lutas. E as dificuldades permanecem não

apenas no que diz respeito à conquista da terra; mesmo a população assentada ainda enfrenta

diversos problemas, tais como a improdutividade de muitas das terras, a falta de acesso à

assistência técnica, luz, transporte, educação (RUA e ABRAMOVAY, 2000).

Apesar disso, a despeito das dificuldades que têm que enfrentar, os assentados, através de

seu próprio trabalho e organização, seguem sua mobilização e sua luta para se manterem na terra

e não terem que regressar para as condições ainda mais precárias da periferia das grandes

cidades. Dados de 2009 indicam que existiam 100 mil famílias acampadas, e mais de 800 mil

inscritas no programa de reforma agrária, e isso faz com que esta entre definitivamente na agenda

política do país (OLIVEIRA, 2009).

Ao longo dessa história de luta, muitas mulheres estiveram engajadas lado a lado com

seus companheiros nas disputas por condições melhores de vida para a população do campo

(MELO e DI SABBATO, 2008; PAULILO, 2003). No entanto, seu papel nem sempre foi

percebido, visível ou valorizado da mesma maneira. A agricultura familiar, apesar de incluir

propostas pela construção de uma sociedade mais justa, convive com relações de gênero

bastantes desiguais nas famílias, mas que nem sempre são criticadas pelos estudiosos ou pelos

movimentos sociais, como se discutirá na próxima parte desse capítulo.

2.3. Relações de gênero no campo

Nesse cenário amplo que representa a agricultura familiar e as lutas pela reforma agrária

no Brasil, as mulheres foram sempre sujeitos ativos, seja lutando lado a lado com seus

companheiros pela terra, garantindo a reprodução de seus familiares, cozinhando, plantando,

colhendo, vendendo ou articulando (PAULILO, 2010). No entanto, o papel dessas mulheres tem

ficado sistematicamente invisível ou tem sido subvalorizado por suas famílias, comunidades e até

mesmo pelos estudos e políticas direcionados à reforma agrária.

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Ainda hoje as mulheres do campo têm que enfrentar não apenas a dificuldade de acesso à

terra e aos meios de produção e capacitação, mas também a constante invisibilidade de seu

trabalho, seja ele produtivo ou reprodutivo, e a impossibilidade de acessar os recursos financeiros

gerados pelo trabalho familiar (DEERE, 2004).

Sendo assim, o foco de muitas análises acerca das relações de gênero na agricultura

familiar está na permanência da divisão sexual do trabalho no âmbito das famílias e do lugar que

ocupam as mulheres nessa relação (FARIA, 2011).

Segundo as definições da escola francesa da sociologia do trabalho, a divisão sexual do

trabalho é regida por dois princípios: a separação – existem trabalhos que são de homens e

trabalhos que são de mulheres; e a hierarquização – os trabalhos feitos pelos homens são mais

valorizados (HIRATA e KERGOAT, 2003). Essas autoras argumentam que a divisão sexual do

trabalho está no cerne das relações de gênero, no âmago do poder que homens exercem sobre as

mulheres, e se mantém a partir de uma visão “naturalizada” dos papéis, enraizada em explicações

biológicas ou religiosas que imputam a homens e mulheres funções distintas na sociedade.

Seguindo esta lógica, no campo se mantém uma representação com relação às tarefas

masculinas e femininas, e que são distintamente valorizadas. Supõe-se que o trabalho produtivo,

neste caso o trabalho agrícola, é responsabilidade masculina, enquanto que o trabalho

reprodutivo, doméstico e de cuidados, seja desenvolvido pelas mulheres, sendo o trabalho dos

homens mais valorizado (NOBRE, 2005)18.

No entanto, ainda que as mulheres e os(as) filhos(as) trabalhem também no campo, ou

que as mulheres enquanto desenvolvem suas atividades no âmbito da casa e na horta também

gerem recursos, esse trabalho não é valorizado, nem visto como 'produtivo'. É um trabalho visto

como 'ajuda', já que os verdadeiros responsáveis por gerar recursos nas famílias seriam os

homens. Essa distinta valorização dos trabalhos tem implicações nas relações de poder entre

membros da família, sendo que os homens, enquanto supostos responsáveis, são os que decidem

acerca da produção e de todos os recursos gerados a partir do trabalho familiar, dificultando a

participação de mulheres, filhos e filhas nos processos de tomada de decisões (PAULILO, 2004;

FARIA, 2009; NOBRE, 2005).

18 Toma-se também de Hirata e Kergoat (2003) a definição de trabalho produtivo e reprodutivo: trabalho reprodutivo sendo aqueles domésticos e de cuidado, socialmente vistos como feminino, e produtivo o trabalho de produção de mercadorias, visto socialmente como masculino.

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Rua e Abramovay (2000), trabalhando com assentamentos de diferentes regiões do país,

problematizam essa invisibilidade do trabalho feminino. Segundo as autoras, as mulheres

pesquisadas apesar de atuarem em todas as atividades do campo ainda são colocadas, tanto no

discurso feminino como masculino, como aquelas que 'ajudam', uma vez que não têm a

responsabilidade pelas decisões acerca da produção. Nas palavras das autoras:

A falácia da “naturalidade” da divisão sexual do trabalho fica evidenciada nessa pesquisa, constatando-se um grande número de mulheres que se declaram trabalhadoras sem remuneração em atividades produtivas, e que estão também em atividades ditas não produtivas, no mundo doméstico, ou seja, não divididas, mas acumulando diversos tipos de tarefas e compromissos. (RUA e ABRAMOVAY, 2000, p. 284)

Assim, para Paulilo (2004) isso indica que no campo, onde os espaços produtivo e

reprodutivo são um só, não é o valor econômico gerado pela atividade que define se ela é

produtiva ou reprodutiva, mas bem é o gênero de quem realiza que irá defini-la como tal ou qual.

Para a autora as atividades sob responsabilidade dos homens são tidas como produtivas e aquelas

desenvolvidas pelas mulheres na casa são vistas como domésticas, sendo que as vendas geradas a

partir do trabalho das mulheres na horta, com animais ou de produtos alimentícios é menos

valorizado, tido como uma renda menos importante ou secundária.

Outra marca da pouca visibilidade do trabalho feminino é encontrada na maior parte das

estatísticas sobre o trabalho no campo, onde os homens são colocados como “trabalhador

remunerado”, enquanto mulheres, filhos e filhas são os “membros não remunerados da família”

(CARNEIRO, 1994; MELO e DI SABATTO, 2009). Para Paulilo (2004) isso representa um

reconhecimento implícito de que o homem tem maior poder de decisão sobre a renda familiar,

tendo em vista que, em teoria, ele também não é remunerado na agricultura familiar.

Melo e Di Sabbato (2009) resgatam como uma das primeiras reivindicações das

organizações das mulheres no campo, ainda nos anos 1980, era a mudança nas estatísticas para

contemplar a imensa carga de trabalho realizado também pelas mulheres rurais. No entanto, os

autores criticam que permanecem atuais as dificuldades em encontrar pesquisas e informações

sobre os trabalhos domésticos, assim como a subestimação atual das estatísticas oficiais da

participação das mulheres na agricultura, bem como de suas contribuições para a subsistência.

E se por um lado é verdade que esses dados invisibilizam a pesada carga de trabalho feita

pelas mulheres no campo, é também certo que as mulheres ainda hoje têm menos acesso aos

recursos gerados pela família. Ainda está muito presente na família da agricultura familiar as

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dificuldades em se igualar a gestão dos recursos familiares e consequência disso é a falta de

poder de decisão e acesso aos recursos por jovens e mulheres (PAULILO, 2004). Os jovens

muitas vezes desmotivados pela falta de autonomia, que pode durar até quando o pai deixe de se

responsabilizar pela terra, migram para as cidades (RUA e ABRAMOVAY, 2000). As mulheres,

por sua vez, se encontram também sem autonomia e sem acesso aos recursos, o que as coloca em

situação de maior vulnerabilidade na relação, e sujeita a mais riscos de violência doméstica, por

exemplo (PAULILO, 2004). A autora argumenta que se é certo que a violência contra as

mulheres ultrapassa região e classe social, é também certo que ela aumenta se a mulher tem

menos opções para sustentar-se longe do marido.

Exemplos de variações nos padrões mais tradicionais das relações de gênero vêm

demonstrar a complexidade de elementos presentes nessa mudança. Nobre (2005) aponta, por

exemplo, que é possível ver em algumas famílias, por necessidade ou emergência, alguma forma

de divisão de tarefas diferente da divisão sexual do trabalho mais convencional, com o homem

fazendo as tarefas domésticas porque a mulher está doente, ou a mulher assumindo a produção na

terra porque o homem foi trabalhar fora. Mas essas mudanças momentâneas na divisão não

querem dizer que exista um questionamento da divisão em si, ou das relações de poder, mas

apenas um estado provisório, estando ainda claro para as duas partes que tarefa cabe a quem em

tempos de estabilidade.

Carneiro (1994) analisa que, no período dos anos 1980, quando as mulheres se

incorporaram de forma expressiva ao mercado de trabalho agrícola, em geral como eventuais nas

lavouras de exportação como consequência do processo anteriormente descrito de mecanização

da agricultura, a situação de subordinação das mulheres nas famílias não se altera. Ou seja, a

autora aponta que esse processo de assalariamento das mulheres não foi seguido de mudanças nas

hierarquias familiares. Indica que a identidade social da mulher ainda assim permanecia centrada

nos papéis de mãe e esposa, e que desejavam, por exemplo, a volta de um cenário onde os

homens se encarregassem do sustento das famílias.

Nesse sentido, Faria (2011) argumenta que a inserção econômica das mulheres não altera

sua responsabilidade quase exclusiva pelo trabalho doméstico e de cuidados. Para a autora a

construção ideológica marcada pela exigência de que as mulheres sejam boas cuidadoras, está

profundamente introjetada nas mulheres e contribui para que elas sigam aceitando a execução do

trabalho reprodutivo como algo inerente ao ser mulher. Paulilo (2004) argumenta que a questão

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da autonomia financeira pelas mulheres do campo é um elemento importante a ser debatido, mas

com poucas soluções até o momento definidas pelo movimento: os temas de distribuição de terra

e de renda parecem ser ainda tabus a serem enfrentados mesmo nos movimentos de mulheres

rurais.

2.3.1. Titularidade da terra, herança e acesso aos meios de produção

As relações de poder presentes nas famílias no meio rural refletem não apenas a exclusão

das mulheres ao acesso aos recursos gerados pela família, mas também seus limites em ter acesso

à propriedade da terra, aos meios de produção e às capacitações técnicas. Reivindicação histórica

do movimento de mulheres do campo, a dificuldade de acesso a terra pelas mulheres é um

problema recorrente em todo o mundo (LISBOA e LUSA, 2010; DEERE, 2004).

Assim, no Brasil, apesar dos movimentos já terem chegado à conquista de direitos

formais de acesso à terra, a mudança real parece ser um pouco mais difícil. Segundo Gonçalves

(2006), desde o ano de 1988 foram realizadas mudanças na constituição brasileira, resultado das

mobilizações especialmente de mulheres assentadas, tendo sido conquistado o direito à posse

conjunta da terra. Assim, as mulheres casadas já poderiam ser titulares das terras juntamente com

seus maridos, ou de forma independente, no caso de mulheres solteiras, separadas ou viúvas.

No entanto, ter direito à terra e acesso a ela são coisas muito distintas; mesmo com as

vitórias alcançadas no âmbito constitucional, na prática, a realidade impunha outras dificuldades,

e as mulheres ainda encontravam muitas barreiras para exercer esse direito (DEERE, 2004).

Segundo indicam estudos (GONÇALVES, 2006; RUA e ABRAMOVAY, 2000) o próprio

sistema de reforma agrária como um todo - seus agentes, suas políticas, seus técnicos, e claro, os

próprios agricultores - está impregnado de estereótipos de gênero, culturalmente e socialmente

definidos, que por muitas vezes reproduzem uma lógica de desigualdade. E assim, mesmo depois

dessas mudanças legislativas, os homens continuaram tendo prioridade sobre a titularidade.

Os dados de finais da década de 1990 refletem esta discrepância e indicam que apenas

12,6% dos beneficiários da reforma agrária eram mulheres (MELO e DI SABBATO, 2008).

Dados do INCRA de 1999 indicam que no Estado de São Paulo cerca de 80% dos títulos em

assentamento estão em nome de homens, e em entrevistas apontam que a titularidade é colocada

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no nome da mulher em casos bastante específicos, como o de mulheres solteiras ou viúvas,

quando o homem não possui algum documento regularizado ou no caso deste ter problemas de

saúde ou alcoolismo (RUA e ABRAMOVAY, 2000).

Em pesquisa realizada com assentamentos de diferentes regiões do país, Rua e

Abramovay (2000) mostram que, segundo os assentados, os técnicos do INCRA dão prioridade

ao cadastramento no nome do homem, provavelmente pelo fato, apontado acima, de que as

mulheres no campo não são vistas como produtoras, mas sim como responsáveis pelas atividades

domésticas e de reprodução. Além disso, indicam que a falta de documentação necessária é

atribuída como uma das principais restrições para as mulheres não se cadastrarem como

proprietárias. Criticando a postura dos órgãos governamentais responsáveis pelo registro, como o

INCRA, as autoras mostram que apesar de muitas mulheres do campo não terem documentação

(40%)19, mesmo nos assentamentos onde a maioria das mulheres possui documentos os registros

ainda são feitos no nome dos homens.

Segundo Deere (2004), até finais do ano de 2000 não haviam diretivas gerais dentro do

INCRA com relação à titularidade conjunta para casais. A autora aponta que os técnicos se

mostravam bastante resistentes a incluir o nome da mulher como cotitular, argumentando que os

cadastros da reforma agrária não tinham lugar para dois nomes, mas apenas para um e, em todo

caso, o do homem. Entendiam que o objetivo da reforma agrária era beneficiar às famílias, e ao

dar titularidade a um dos membros já estaria cumprindo com esses objetivos. Tais posturas foram

alvo permanente de críticas dos movimentos.

A titularidade da terra no nome do homem tem uma série de implicações para as

mulheres. Uma delas é a exclusão quase total das mulheres do acesso aos meios de produção.

Segundo Rua e Abramovay (2000) técnicos do INCRA apontam que todos os benefícios

associados à política de reforma agrária são relacionados à titularidade da terra; para efeitos

legais o INCRA apenas se relaciona com o titular da parcela, impossibilitando muitas vezes o

acesso das mulheres aos créditos e outros benefícios. Assim, junto com a titularidade vem

também o acesso à assistência técnica, projetos produtivos e as mais diversas fontes de créditos e

programas governamentais. Essa lógica de cadastro no nome dos homens acaba por caracterizar a

terra como um espaço masculino, dificultando assim o acesso das mulheres (ARAUJO, 2003).

19 Essa é outro fator de forte mobilização das mulheres do campo, que fazem muitas campanhas para garantir a correta documentação das mulheres agricultoras (PAULILO, 2003; NALU, 2009).

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Um avanço mais recente nas disputas dos movimentos de mulheres no campo foi a

garantia da obrigatoriedade de titularidade conjunta da terra no caso das mulheres casadas, em

2003 (PAULILO, 2004). Apesar de não ter sido possível encontrar dados mais recentes

recortados por sexo quanto à propriedade da terra, os textos atuais acerca do tema destacam que,

apesar dos avanços com relação às políticas do Estado, a realidade parece não ter se modificado

muito (PAULILO, 2004; MELO e DI SABBATO, 2009; FARIA, 2009), especialmente quanto

ao acesso à terra através da herança.

Autoras como Paulilo (2003), Woortmann (1995) e Carneiro (2001) realizaram estudos

no Brasil e apontam que existe um padrão na forma de sucessão rural que privilegia os homens,

sendo principalmente os filhos que herdam as terras, enquanto as mulheres se tornam agricultoras

pelo casamento. Apesar de já ser legalmente regulamentada a igualdade no momento de divisão

dos bens, ainda é comum que os homens herdem a terra dos pais e as mulheres se casem e vão

morar no lote de seus maridos (PAULILO, 2003).

Para Paulilo (2003) as opções para a mulher do campo são bastante restritas. Dentro de

sua própria família não tem direito à hereditariedade da terra, não pela lei formal brasileira, mas

pela norma cultural que entende a mulher como ajudante no trabalho produtivo, inviabilizando o

direito dela à terra. A opção passa, então, a ser o casamento, onde estará subjugada aos desejos

de seu marido e sua nova família, perdendo assim mais uma vez o direito à terra. Por fim, resta à

mulher a possibilidade de ir para a cidade em busca de trabalho e, provavelmente, não retornar

mais ao campo. Ou seja, para ficar no meio rural a única opção da mulher ainda é o casamento,

já que manter-se com sua família original, sem se casar, significa uma vida sexual e social

bastante limitada.

Carneiro (2001), estudando comunidades rurais no Sul do Brasil mostrou que é

socialmente esperado no meio rural que as mulheres 'abram mão', em cartório, de sua parte da

herança, para que futuramente os irmãos não venham a ter problemas com disputas. Acontece

também das irmãs venderem seus lotes de terra ao irmão, mas estudos mostram que nos casos em

que isso acontece a venda pode ser simplesmente simbólica, já que a irmã vai mesmo morar no

lote do marido, ou quando a parte delas na herança é, de fato, vendida com valor monetário, o

preço é geralmente mais baixo do que o cotado no mercado.

A lógica que rege essa forma de divisão dos bens é a do merecimento pelo trabalho. Os

homens como desde jovens trabalham na terra junto com os pais passam a 'merecer' a terra na

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qual trabalharam. Por outro lado, considera-se que as mulheres, que durante toda a vida tiveram

seu trabalho invisibilizado, não trabalharam para ganhar a terra, mas, ao contrário, foram

'sustentadas' pelo pai e quando se casam passam a depender do marido. “A virilocalidade20 resulta

ali da posição específica da mulher face à produção e à propriedade da terra (a mulher não

trabalha a terra, portanto não será cabeça de um empreendimento agrícola). E sem isto não se

justifica que seja proprietária de uma parcela.” (MOURA, 1978, p.54 apud CARNEIRO, 2001,

p. 35)

Ao se casarem, as mulheres muitas vezes recebem, como forma de recompensa por terem

aberto mão de sua parcela de terra, um dote, tal como utensílios para a casa, enxoval, animais ou

até algum dinheiro, mas sob a justificativa de que agora seriam protegidas pelo marido que as

iriam sustentar. Entretanto, o valor do dote é, como regra, mais baixo que o valor das terras, e o

dote é rapidamente incorporado à nova casa, sob administração do marido (CARNEIRO, 2001).

Paulilo (2003) chama atenção para a maneira como essa prática está naturalizada no

campo, sendo difícil mesmo em entrevistas com mulheres que elas coloquem problemas ou

questionamentos com relação à dificuldade delas de acesso à terra. Essa postura naturalizada, e

por isso aceitável, é algumas vezes, em momentos mais descontraídos, diz a autora, apontada

pelas mulheres com revolta. Nestas ocasiões, as mulheres dizem ter trabalhado na terra tanto

quanto seus irmãos e consideram que a falta de acesso à terra significa o não reconhecimento do

trabalho que executaram. Como mencionado anteriormente, o tema da terra e as dificuldades

ainda enfrentadas pelas mulheres em acedê-la seguem sendo um tabu no campo.

2.3.2. Organização coletiva das mulheres rurais

Desde o surgimento das ligas camponesas no começo dos anos 1960, as mulheres estão

envolvidas na luta pela reforma agrária, ainda que sua participação não seja sempre reconhecida,

no entanto, é a partir dos anos 1980 que um movimento específico de mulheres do campo

começa a ganhar força (CARNEIRO, 1994; MELO e DI SABBATO, 2009; LISBOA e LUSA,

2010; PAULILO, 2004; GOLÇALVES, 2006; DEERE, 2004).

20 Termo usado para designar esse deslocamento da mulher de acordo com os homens, seu pai e depois seu marido.

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Segundo Deere (2004) o que favorece o surgimento desse movimento específico de

mulheres rurais é, além do período de abertura democrática que vivia o país, a organização das

mesmas promovida por setores da igreja, assim como a consolidação do movimento feminista e

de mulheres no Brasil. A autora indica que a Comunidade Eclesiástica de Base e os grupos de

mulheres organizados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) foram importante espaço formativo

para as mulheres que passam a questionar as injustiças sociais, especialmente em temas

relacionados à saúde e à educação21. Mas é também nesse período, com forte presença dos

sindicatos no campo, que as mulheres começaram a reivindicar sua participação nos sindicatos e

a ampliação dos seus benefícios sociais, como licença maternidade e aposentadoria para as

mulheres trabalhadoras rurais.

A partir de sua mobilização, as mulheres rurais ganharam algumas vitórias políticas,

como, por exemplo, a consolidação da categoria de trabalhadoras rurais, acesso aos sindicatos,

aos cargos de representação nos distintos movimentos sociais do campo, direito formal à

titularidade da terra e, mais recentemente, políticas públicas específicas com enfoque de gênero e

para empoderamento das mulheres rurais (DEERE, 2004; PAULILO, 2003; SILIPRANDI,

2009).

Atualmente as autoras listam diferentes tipos de organização das mulheres no campo: as

mulheres organizadas nos sindicatos; mulheres participantes no Movimento dos Trabalhadores

Rurais sem Terra (MST); o movimento autônomo de mulheres do campo – especialmente

representado pelo Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) que aglomera distintas

organizações independentes. Além disso citam outros movimentos mais específicos, como os das

Quilombolas, das Indígenas ou das Quebradeiras de Coco na Amazônia (PAULILO, 2003;

SILIPRANDI, 2009)22.

Autoras como Paulilo (2003, 2010) e Nobre (2005) ressaltam a importância dessas

mobilizações de mulheres para gerar mudanças e desestabilizar os padrões mais tradicionais das

relações de gênero no campo. Apontam que a participação das mulheres em movimentos ou

ações comunitárias permite a inserção das mesmas na rede de poderes da comunidade e entorno,

provocando efeitos transformadores nas mulheres e na família. Nessa mesma linha, Rua e

21 Paulilo (2010) comenta que ainda hoje pode-se observar nas posturas assumidas pelo movimento essa influência religiosa, muito presente nas mulheres rurais.

22 Consultar essas referências citadas para uma análise mais profunda sobre as características e diferenças entre cada um dos movimentos.

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Abramovay (2000) argumentam que os assentamentos de reforma agrária e a crescente

participação política e organizativa das mulheres rurais representam um potencial para

desestabilizar antigos paradigmas relacionais.

Há um longo percurso de lutas a serem enfrentadas, no entanto, pelo movimento das

mulheres rurais, como citado anteriormente, existem permanências na divisão sexual do trabalho

e dificuldade de acesso pelas mulheres aos recursos e decisões familiares, que representam ainda

um grande desafio para o movimento. Nesse sentido, um dos elementos importantes de serem

analisados e debatidos é a conquista da autonomia econômica pelas mulheres rurais. Portanto,

dedica-se na próxima parte do capítulo a aprofundar em uma das recentes formas de organização

das mulheres rurais no caminho por sua autonomização econômica, a saber: a organização de

empreendimentos da Economia Solidária.

2.4. Economia Solidária

Nos anos 1990, que foram caracterizados como auge de um processo de reestruturação

capitalista iniciado nos anos 1970, com o fortalecimento do capital financeiro e das empresas-

monopólio, o mundo do trabalho passou por transformações significativas. Essas mudanças

foram marcadas não apenas pelo aumento das taxas de desemprego, mas também pela

precarização do trabalho, em comparação com o período anterior, com aumento do trabalho

informal, dos contratos temporários, e das terceirizações (SINGER, 2002; BARBOSA, 2005).

Resultado desse processo ressurgem no Brasil, e outros países da América Latina, as

experiências de trabalho associado. Por um lado, como resposta dos trabalhadores a esse cenário

de precarização e desemprego, que começam a se auto-organizar em cooperativas, associações e

empreendimentos solidários, e por outro, como proposta de política pública.

Esse conjunto de experiências associativas que surgem no campo e na cidade, não apenas

propõem a propriedade coletiva dos meios de produção, mas também a organização do trabalho

de forma autogestionária, solidária e cooperativa, com divisão dos recursos definida pelos

próprios trabalhadores, e passam a ser chamados de Economia Solidária (SINGER, 2002).

Assim, no Brasil, a Economia Solidária se constituiu a partir dessa mescla entre as

iniciativas populares de trabalho associado e das políticas públicas dirigidas a combater o

desemprego (BARBOSA, 2005). Tais políticas ganharam mais força quando em 2003 foi criada

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a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) dentro do Ministério do Trabalho e

Emprego (MTE), e se organizou o Fórum de Economia Solidária (FBES) constituído pelos

gestores, trabalhadores e as chamadas instituições de fomento (como Universidades, ONGs e

grupos de Igrejas).

Nesse processo de construção do movimento por uma Economia Solidária, coexistem

diferentes visões acerca de suas raízes históricas, dos potenciais e das perspectivas dessas

experiências. Como coloca Tiriba (2008), existe um campo em disputa onde se confrontam

diferentes projetos societários.

Destaca-se nesse cenário a visão de Paul Singer (2002; 2005) que relata o histórico da

Economia Solidária a partir das experiências das cooperativas de trabalhadores que surgem na

Inglaterra na época da Revolução Industrial, em resistência ao novo modelo que se instalava.

Além disso, Singer (2002) visualiza a possibilidade de convivência (ou coexistência) das

experiências de Economia Solidária como pequenas ilhas dentro do capitalismo, até que de forma

gradual ganhem força e potencial para ser o modo de organização hegemônico, superando assim

as relações baseadas na lógica do capital. Ainda que sua visão seja a mais recorrente dentro do

movimento, e muito significativa na medida em que se enfoca no potencial das novas relações

de trabalho, também é criticada por não considerar a forma como o capitalismo, enquanto

sistema dominante, influencia e define as experiências de trabalho coexistentes (LIMA, 2007).

Para Laville (2004) a Economia Solidária se coloca como uma forma complementar à

organização capitalista, dentro do espectro daquilo que compreende por economia plural, ou seja,

a coexistência de distintas formas de economia. Especialmente importantes nos momentos de

crise, para o autor estas experiências não se apresentam como forma de combater o capitalismo, e

no caso específico do Brasil, surgem para combater a pobreza e garantir alguns direitos sociais

aos trabalhadores (FRANÇA-FILHO e LAVILLE, 2004).

Por fim, existe um grupo de autores (SARDA, 2008; DAL RI, 2008; NOVAES, 2007;

TIRIBA, 2008), que insiste na autogestão como elemento central e ao mesmo tempo potencial

dessas novas experiências do trabalho associado. Remontam à história da autogestão nas

experiências passadas de lutas dos trabalhadores que se organizavam de forma autogestionária,

como é o exemplo da Guerra Civil Espanhola, da Comuna de Paris e da Revolução dos Cravos

em Portugal, entre outros. Para esses autores as experiências autogestionárias vivem em

permanente conflito e tensão com a lógica capitalista e podem contribuir como espaço de

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experimentação da classe trabalhadora em seu processo de enfrentamento ao capital. Dentro desta

perspectiva, a organização dos empreendimentos autogestionários não seria suficiente para gerar

uma mudança estrutural na sociedade, mas são importantes enquanto espaço de formação e

experimentação para potencializar a luta dos movimentos sociais.

Uma visão rasa da autogestão poderia apenas ver as experiências como úteis ao

capitalismo, dentro desse momento de precarização do trabalho, mas se são vistas desde uma

perspectiva da luta histórica da classe trabalhadora, podem contribuir para a formação da mesma

em um processo de transformação mais amplo, como expressa um de tais autores:

Entendemos que as experiências de trabalho associado podem se constituir como uma ‘escola’ de produção de uma cultura do trabalho que, inspirada nos princípios da autogestão, contrapõe-se à lógica do sistema capital. Também é uma ‘escola’ na qual aprendemos que, no interior do capitalismo, a produção associada é, em si, deveras limitada. E que, se temos como horizonte a ‘sociedade dos produtores livres associados’ (Marx), é preciso construir processos educativos coadunados com um projeto maior de transformação social. (TIRIBA, 2008, p.19)

Além disso, dentro dessa perspectiva, Novaes (2007) desenvolve um exaustivo estudo da

compreensão que os diferentes autores da Economia Solidária têm da tecnologia, de como

compreendem seu papel na construção dessas experiências autogestionárias. Critica

principalmente como entre os teóricos prevalece uma ideologia no progresso técnico, desde uma

visão neutra e determinista da tecnologia. Resgatando principalmente a experiência de Fábricas

Recuperadas23, Novaes (2007) procura destacar como a permanência de tecnologias e formas de

organização da produção das fábricas capitalistas fazem com que sejam reproduzidas lógicas

próprias das relações capitalistas de trabalho, hierarquizadas e mercantilizadas, dificultando a

construção da autogestão.

Compreendendo que apenas a posse coletiva dos meios de produção não são suficientes

para a construção da autogestão, autores como Dagnino (2009) e Novaes (2007) propõem a

Adequação Sócio-Técnica (AST)24 como processo de adequação pelo qual os empreendimentos

autogestionários têm que passar em sua busca por uma tecnologia de fato compatível com seus

interesses. A essa tecnologia o autor dá o nome de Tecnologia Social (TS) e a define como:

23 São unidades produtivas autogestionárias surgidas de fábricas que foram abandonadas pelos antigos donos, ocupadas, tomadas ou arrendadas pelos trabalhadores (NOVAES, 2007).

24 “AST teria então por objetivo adequar a tecnologia convencional da empresa capitalista (e, inclusive, conceber alternativas) aplicando critérios suplementares aos técnico-econômicos usuais a processos de produção e circulação de bens e serviços em circuitos não formais, situados em áreas rurais e urbanas visando a otimizar suas implicações.” (DAGNINO, 2008, p.18)

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Resultado da ação de um coletivo de produtores sobre um processo de trabalho que, em função de um contexto socioeconômico (que engendra a propriedade coletiva dos meios de produção) e de um acordo social (que legitima o associativismo), os quais ensejam, no ambiente produtivo, um controle (autogestionário) e uma cooperação (de tipo voluntário e participativo), permite uma modificação no produto gerado passível de ser apropriada segundo a decisão do coletivo (DAGNINO, 2009, pg.37).

Essas contribuições, que são muito importantes ao problematizar o determinismo

tecnológico no campo dos estudos da Economia Solidária, e propor novas formas de

desenvolvimento tecnológicos mais condizentes com a autogestão, sofrem, no entanto, de uma

ausência de análises de gênero em seu marco teórico. Assim como apontado por Wajcman (2000)

no caso das teorias SCOT e TAR, ainda que seja assumida a dimensão social da construção

tecnológica, não são analisadas as relações de gêneros como constituintes desse universo social.

De maneira geral, a Economia Solidária ainda conta com poucos autores que incorporem

às suas análises contribuições sobre as relações de gênero e não apenas em sua interface com a

tecnologia. Sendo assim, na seção seguinte são revisados os poucos trabalhos e dados

encontrados sobre gênero e Economia Solidária.

2.4.1. Aproximações à Economia Feminista

A partir da criação de um Sistema de Informação da Economia Solidária (SIES) pela

SENAES, foram realizados até o momento dois mapeamentos da Economia Solidária no Brasil,

em 2005-2007 e 2009. Infelizmente os resultados do último deles ainda não foram divulgados

pelo sistema25, assim, os dados mais atuais encontrados foram os de 2007.

Segundo o Atlas de 2007 a Economia Solidária contava com 21.859 mil

Empreendimentos Econômicos Solidários (EES)26 em 2.274 municípios do Brasil (o que

corresponde a 41% dos municípios brasileiros), dos quais 48% eram rurais. Estariam envolvidos

mais de 1 milhão e 250 mil trabalhadores e trabalhadoras, com uma proporção de 37% de

mulheres.

No entanto, quando se examina a composição do quadro social dos empreendimentos,

verifica-se que, quanto menor o seu tamanho, maior é a participação relativa das mulheres. As

25 O último mapeamento conta também com um apêndice que pretende abordar mais temas com relação ao gênero.

26 Nome utilizada pelo SIES para os empreendimentos que fazem parte da Economia Solidária.

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mulheres predominam nos empreendimentos com menos de 10 sócios (63%) e os homens nos

EES que possuem mais de 20 sócios (60% nos EES de 21 a 50 sócios e 66% nos EES com mais

de 50 sócios), como mostra o Gráfico 1 abaixo:

Figura 2. 1: Participação de Mulheres e Homens segundo o porte do EES.Fonte: SIES, 2007.

Este gráfico mostra que, assim como no mercado formal de trabalho, as mulheres estão

concentradas nos postos de maior precarização das cadeias, ao passo que os homens estão

concentrados nos EES maiores que lhes garante maior estabilidade. Estando nos menores EES as

mulheres tem menores rendas e estão vulneráveis a uma instabilidade muito maior do que as

encontradas nos EES de maior porte. Esta mesma realidade pode ser encontrada também no

mercado formal de trabalho, como já foi apontado por muitas autoras que estudam a divisão

sexual do trabalho (HIRATA e KERGOAT, 2003).

Outros dados ainda indicam que a maior parte dos empreendimentos são mistos (73%),

compostos por homens e mulheres, 18% são exclusivamente femininos, e uma minoria são

compostos apenas por homens (9%).

Quando as mulheres presentes na Economia Solidária são agregadas pelo segmento

econômico a que se dedicam, encontra-se que 36,1% do total das mulheres estão no setor de

“agricultura, pecuária e serviços relacionados”, seguidas de 19,6% na “fabricação de produtos

têxteis” e 7,3% na “fabricação de produtos alimentícios e bebidas” (WIRTH, 2010). Sendo

57

Participação de mulheres e homens segundo porte do empreendimento (%)

66%

53%

42%35%34%

47%

58%65%

até 10 11 a 20 21 a 50 acima de 50

Mulheres

Homens

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assim, além destes dados demonstrarem a significativa participação das mulheres nos

empreendimentos rurais, indicam também como estão concentradas em setores tradicionalmente

feminilizados do mercado formal, como são as fábricas têxteis e a produção de alimentos.

Nesse sentido, Maria Ribas Bonet (2005), economista espanhola, foi uma das primeiras

autoras a realizar uma análise comparativa do mercado formal de trabalho com a Economia

Social27 desde uma perspectiva de gênero. Neste exercício, encontrou que a Economia Social na

Espanha reproduz em suas experiências os mesmos traços da divisão sexual do trabalho do

mercado formal, quais sejam, concentração de mulheres nos mesmos setores tradicionalmente

feminilizados, dificuldade das mulheres em aceder aos postos diretivos e maior concentração

delas nos grupos menores.

Ainda no cenário internacional, desde uma perspectiva distinta, a economista francesa

Isabelle Guerin, em seu livro “As mulheres e a Economia Solidária” (2005) faz um estudo

comparativo de experiências de grupos de mulheres na periferia da França e no Senegal.

Compreendendo a Economia Solidária como uma forma para fazer a rearticulação entre Estado,

mercado e sociedade civil, percebe nessas experiências um potencial para modificar as

desigualdades de gênero e gerar mudanças mais estruturais. Seu ponto de partida é aquilo que a

autora define como a construção social do 'altruísmo feminino', e de que maneira ao longo da

história se atribui às mulheres as responsabilidades pelo cuidado na sociedade, atravessando as

barreiras do doméstico e ocupando as tarefas de educação, saúde e de caridade.

Nesse sentido, Nobre (2003) resgata o processo de participação das mulheres nas

cooperativas de consumo organizadas em finais do século XIX na Inglaterra e na França.

Segundo a autora, essas mulheres, tentando dar respostas práticas às necessidades dos mais

pobres, como a fome, doenças e condições insalubres de moradia, organizavam cooperativas de

consumo que buscavam suprir essas carências. Problematiza assim os resgates históricos do

cooperativismo que apontam apenas as experiências masculinas como características desta época,

e cita, por exemplo, a criação da “Women's Cooperative Guild” na Inglaterra em 1983, que

chegou a contar com a participação de 67 mil mulheres.

27 Esta autora tem uma visão bastante ampla do que chama de Economia Social, pra ela esta compreende não apenas os setores envolvidos em atividades econômicas, mas também aquelas de políticas (como partidos e associações) e de entretenimento (como clubes esportivos). Apesar disso, suas análises comparativas se restringem aos grupos de trabalho e sociedades laborais, o que permite fazer aproximações com a realidade brasileira.

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Outra preocupação central para Guerin (2005) é o tema do acesso aos direitos. A autora

argumenta que muitas dessas ações altruístas desenvolvidas pelas mulheres de forma coletiva

representam espaços intermediários - entre o público e o privado, monetário-não monetário, entre

Estado e sociedade civil - e por isso cumprem o papel de garantir o acesso a direitos formais de

maneira real, elemento ao qual atribui o nome de 'justiça de proximidade'.

Os estudos de caso relatados por Guerin (2005) exemplificam este argumento. Na França,

a autora estuda principalmente as chamadas 'Escolas de consumidores' compostas

majoritariamente por imigrantes mulheres (90%) entre 35-50 anos, enquanto que no Senegal são

estudados grupos informais de mulheres, principalmente aqueles vinculados às políticas de

microcrédito. Estas experiências, além de favorecerem a autoestima, autonomia e capacidade

organizativa das mulheres, têm como uma de suas importantes repercussões a possibilidade de

acesso das mesmas aos direitos formais, antes não acessíveis.

Mesmo que insista ainda no potencial dessas ações, a autora não deixa de abordar também

os problemas da estreita relação entre a organização desses grupos e um processo constante de

desresponsabilização do Estado frente à sociedade civil. Aponta o exemplo do microcrédito

muitas vezes como uma 'encenação' que esconde um recuo do Estado, e argumenta que essas

iniciativas isoladas, ainda que sejam importantes no processo de construção da autonomia das

mulheres, precisam estar politicamente ancoradas. Ressalta a importância de que essas

organizações locais, preocupadas em atender demandas pontuais e problemas concretos das

mulheres, estejam articuladas com ações políticas dos movimentos em defesa dos direitos das

mulheres.

Além disso, problematiza o papel das mulheres nesse contexto de crise e ausência do

Estado. Observou que enquanto encarregadas do trabalho reprodutivo, ao mesmo tempo em que

se comprometem com as associações, as mulheres seguem acumulando as tarefas domésticas,

ganhando jornadas de trabalho e encontrando formas de fazer a família sobreviver com os poucos

recursos gerados. E se pergunta em que medida esses encontros de mulheres não apenas reforçam

suas obrigações e responsabilidades familiares? Em que medida sua participação chega a

modificar as relações no âmbito privado? Cita, por exemplo, a dificuldade que têm algumas

senegalesas em controlar o crédito que recebem já que, uma vez que os recursos chegam às casas,

o homem passa a tomar as decisões sobre como eles vão ser gastos.

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Nesse sentido, critica as visões econômicas clássicas que, segundo ela, priorizam a

avaliação estritamente mercantil da sociedade e não interferem nas realidades intrafamiliares,

contribuindo em grande medida para reforçar as desigualdades entre os sexos. Aproxima-se da

economia feminista e partilha com as estudiosas desta corrente a necessidade de repensar a

economia androcêntrica tradicional. No lugar desta última, sugere uma abordagem sexuada da

economia, que dê conta das desigualdades dentro das famílias, da divisão sexual do trabalho,

incluindo o microeconômico. Traça essa possibilidade se contrapondo à economia liberal que,

através da distinção entre público e privado, e em nome de uma liberdade, recusa-se a intervir na

vida familiar, pressupondo a existência de uma vida familiar a priori. Para Guerin (2005) é

justamente a família que representa o primeiro foco de desigualdade. Com efeito, a economia

feminista é justamente o ponto de convergência entre Guerin (2005) e algumas autoras brasileiras

trabalhando sobre a Economia Solidária.

Esta teoria em linhas gerais critica o viés androcêntrico no pensamento econômico

clássico e marxista, que marca a divisão entre trabalho produtivo e reprodutivo, sendo apenas o

primeiro contabilizado em suas análises, desconsiderando as contribuições econômicas do

trabalho doméstico e, consequentemente, das mulheres. Argumentam que o trabalho doméstico

dá sustentação ao trabalho mercantil. Para as teóricas da economia feminista é necessária uma

ressignificação daquilo que se entende por trabalho, que seja visto de maneira mais ampla,

considerando não apenas o trabalho assalariado, mas também aquele informal, o doméstico, a

divisão sexual do trabalho nas famílias. (NOBRE, 2002; CARRASCO, 2006).

Desta forma, as experiências de Economia Solidária, ao abrirem a possibilidade de

ressignificar a economia desde princípios mais cooperativos, solidários e contra-hegemônicos

necessitariam também incorporar as críticas da economia feminista. Apenas através desta

articulação as experiências de trabalho associado poderiam ressignificar também as relações de

gênero, segundo defendem suas recentes articuladoras (NOBRE, 2003; FARIA, 2011; SANTOS,

200-; DANTAS, 2005 e 2008)28.

Um dos poucos estudos de caso encontrados no Brasil que faz esse cruzamento de gênero,

economia feminista e Economia Solidária é o de Wirth (2010). A pesquisa analisa em que

medida as experiências do trabalho associado modificam as relações de gênero, através de estudo

28 A produção bibliográfica na área ainda é recente. Esses trabalhos são em sua maioria artigos, dispersos em distintas publicações, e por esse mesmo motivo muitas vezes difíceis de mapear. Trazemos aqui as contribuições dos trabalhos que encontramos até a presente data.

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de caso em duas cooperativas de triagem de material reciclável da cidade de Campinas - também

incubadas pela Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP/UNICAMP). Os

resultados mais uma vez evidenciam uma clara reprodução da divisão sexual do trabalho dentro

das cooperativas – que são mistas, mas com maioria de mulheres. Enquanto os homens fazem os

trabalhos considerados pesados, ou que envolvem uso de maquinário (especialmente nas etapas

de carregar fardos, distribuir, prensar e armazenar material), as mulheres ocupam as atividades

que demandam mais atenção e habilidades manuais (como a triagem). Além disso, descreve

como os sistemas de retiradas dentro de uma das cooperativas eram fortemente marcados por

essa divisão, onde mulheres recebiam por produtividade, enquanto os homens eram pagos por

horas, e como a autogestão permitiu o questionamento e posterior mudança do sistema.

Além disso, Wirth (2010) aponta que o trabalho associado representa para muitas das

mulheres a possibilidade de conciliação entre tarefas produtivas e reprodutivas. Muitas

encontram nas cooperativas um local para reinserir-se no mercado de trabalho depois de um

período afastadas para cumprir com suas responsabilidades domésticas. E na maioria dos casos

escolhem a cooperativa dada a possibilidade de flexibilidade (para sair mais cedo, faltar, se

ausentar) oferecida pelo empreendimento. Assim, a autora conclui que a maior presença feminina

no setor, a divisão sexual do trabalho interna às cooperativas e essa possibilidade de conciliação

são as três dimensões de gênero que operam nesse cenário e criam a condição específica de

exploração dessas mulheres.

Essa inconstância da vida cotidiana, determinada pela gravidade dos problemas que se antepõem à responsabilidade do trabalho produtivo, se combina com os imperativos da acumulação flexível. A ausência das mulheres é compreendida, mas não é amparada financeiramente pela cooperativa. Elas podem faltar, mas receberão menos ou terão que repor a produção. Nesse caso, flexibilidade é menos sinônimo de mobilidade ou liberdade, e mais de precariedade, instabilidade e conciliação entre o enfrentamento dos problemas familiares e a possibilidade de alguma sustentação financeira. Assim, tanto a flexibilidade das relações de trabalho quanto a responsabilidade pelo enfrentamento dos problemas sociais em nível micro recaem mais fortemente sobre as mulheres, confirmando a perspectiva postulada pela economia feminista, discutida no Capítulo 2, de que as mulheres possuem um importante papel na gestão invisível das crises econômicas e sociais. (WIRTH, 2010, p. 206)

Por fim, Wirth (2010), que utiliza a AST como uma de suas categorias de análise, aponta

que apesar do processo de triagem não ser muito mecanizado, uma das únicas etapas que se

utilizam máquinas (a prensagem) é feita quase exclusivamente por homens, mantendo os padrões

masculinos de controle da tecnologia. No entanto, enquanto isso parece se manter, destaca que

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em uma das cooperativas, a partir da aquisição de novos maquinários, entre estes uma

empilhadeira29, uma das cooperadas assumiu a tarefa de motivar o uso do equipamento pelas

mulheres. E segundo conta, suas propostas tiveram sucesso e duas cooperadas, além dela,

manejavam a empilhadeira, assumindo uma tarefa tradicionalmente feita pelos homens.

2.4.2. Empreendimentos solidários de mulheres rurais

Se os dados e análises sobre gênero e Economia Solidária são poucos, ainda mais difícil é

encontrar referências que abordem especificamente o tema das mulheres rurais. Sendo assim,

dedica-se aqui a explorar brevemente os trabalhos encontrados que fazem essa ponte: uma análise

dos dados do SIES feita por Faria (2011), um estudo de caso realizado em um assentamento rural

(CHERFEM, 2009) e alguns diálogos que começam a ser traçados entre Economia Solidária e

Agroecologia (DANTAS, 2005).

Em análise dos dados do mapeamento da Economia Solidária com relação à realidade das

mulheres rurais, Faria (2011) aponta que existem 774 grupos rurais exclusivamente de mulheres

em um total de 9402 com pelo menos uma sócia mulher.

Olhando especificamente as características dos empreendimentos exclusivamente

femininos no meio rural a autora aponta que a maior parte tem entre 6 e 15 sócias (43,4%),

seguidos daqueles com 16-30 sócias (25,3%) e uma minoria que tem entre 1-5 sócias (16,5%).

São caracterizados como pequenos e recentes, ainda em processo de estruturação quando a

pesquisa foi realizada em 2007, sendo que 39% deles surgiram no período de 2002-2004. Além

disso, sua gestão é normalmente pouco institucionalizada, assentada em relações de proximidade,

e a gestão é coletiva, característica dos grupos informais e pequenos.

Nesta fase de estruturação o acesso ao crédito foi um dos grandes problemas enfrentados

por esses grupos femininos, apenas 11% tiveram acesso e em valores pequenos, enquanto 50%

dizem ter buscado e não ter conseguido e 75% terem afirmado que necessitavam crédito. Para a

maior parte desses empreendimentos falta também uma sede para desenvolver suas atividades,

sendo que mais que no caso dos grupos mistos, realizam os trabalhos em espaços emprestados ou

cedidos. Para isso contam com redes de apoio de instituições que muitas vezes fazem as doações

29 Equipamento utilizado nas cooperativas para deslocar os pesados fardos de material reciclável.

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que permitem ao grupo iniciar suas atividades. Estes dados indicam a dificuldade das mulheres

em terem recursos próprios, mas também a capacidade de organização e articulação das mesmas.

No que diz respeito à produção, apenas 26% dos empreendimentos de mulheres rurais

têm como produto principal a produção agropecuária, extrativismo ou pesca. A maior parte dos

grupos está concentrada nas atividades de artesanato e industrialização (beneficiamento) de

alimentos, provavelmente combinadas com atividades de produção agrícola. A comercialização é

normalmente realizada nas proximidades das casas, em nível local e comunitário, diretamente ao

consumidor. E as principais dificuldades enfrentadas pelos grupos para comercializar são: escassa

rede de compradores, falta de capital de giro para vendas a prazo e falta de meios de transporte

para escoar a produção (FARIA, 2011).

Por fim Faria (2011), analisando os dados e debates feitos em espaços de ações

educativas realizados com essas mulheres, aponta quais são as principais dificuldades ainda

enfrentadas pelos grupos exclusivamente femininos no meio rural:

• Falta de formação e informação para garantir maior acesso às políticas públicas;

• Interferência do trabalho doméstico e de cuidado das crianças na disponibilidade das

mulheres para o trabalho produtivo e para a participação política;

• Legados dos processos de socialização do gênero como baixa autoestima, insegurança e

medo quando se refere às atividades na esfera pública;

• Acesso ao crédito e às atividades de comercialização, gestão, controle financeiro e

administrativo ainda são muito identificados como parte do mundo masculino, e são

percebidos pelas mulheres como algo que elas não conseguirão manejar;

• O fato das mulheres combinarem a produção no quintal com a participação nos grupos de

produção torna esse trabalho e seu aporte econômico pouco visíveis.

Sendo assim, suas análises coincidem com os trabalhos anteriores ao indicar que as

experiências não resultam em uma automática superação da divisão sexual do trabalho. E que

portanto ainda é importante a articulação com a economia feminista e uma maior valorização do

trabalho feminino.

Realizando estudo de caso sobre um empreendimento rural exclusivamente feminino,

Chefrem (2009), ainda que parta de outro referencial teórico - da aprendizagem e feminismo

dialógico - encontra muitos dos elementos trazidos por essa análise mais geral de Faria (2011).

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Cherfem (2009) busca compreender as possibilidades de transformação social a partir da

participação das mulheres no movimento de Economia Solidária. Realiza o estudo de caso com

uma marcenaria, a Madeirarte, composta por 4 mulheres assentadas - agricultoras e trabalhadoras

domésticas - que nasce em um projeto de parceria entre a Incubadora Regional de Cooperativas

Populares da Universidade Federal de São Carlos (Incoop/UFSCar) e o Grupo de Pesquisa em

Habitação e Sustentabilidade da Escola de Engenharia de São Carlos EESC-USP (Habis).

Analisando os aspectos positivos dessa experiência para as mulheres, Cherfem (2009)

aponta especialmente como a ocupação pelas mulheres de uma atividade tradicionalmente tida

como masculina foi significativa para elas. Apesar das resistências e, mais que tudo, das

descrenças iniciais acerca do trabalho desenvolvido pelas mulheres, a progressiva valorização da

atividade veio na medida em que o trabalho do grupo se fazia mais conhecido e era mais

apreciado pelos assentados, aumentando a autoestima e o aprendizado das mulheres. Além disso,

segundo a autora, o projeto representou uma das primeiras possibilidades de trabalho no

assentamento, e algumas das mulheres puderam pela primeira vez ter e controlar a própria renda.

As marceneiras, por outro lado, enfrentaram dificuldades que parecem ser próprias dessa

categoria de organização da Economia Solidária, como a resistência inicial dos maridos à sua

participação, a instabilidade e poucos rendimentos gerados pelo empreendimento, a falta de uma

estrutura própria (espaço e equipamentos usados eram emprestados) e a insegurança para assumir

tarefas como as relacionadas à contabilidade e calibração de equipamentos. Além disso, o

empreendimento é também colocado pelas mulheres como uma possibilidade de conciliação do

trabalho reprodutivo e produtivo, tendo liberdade para faltas e atrasos no caso de terem que

resolver problemas ou tarefas domésticas, assim como sugere o estudo de Wirth (2010).

Já em um contexto bastante distante, Dantas (2005) faz uma análise inicial da Rede

Xique-Xique de Comercialização Solidária do RN30, e aponta esta como um dos exemplos de

articulação explícita entre a Economia Solidária, o feminismo e a agroecologia. Segundo a

autora, a rede que se inicia a partir de um grupo de mulheres de um assentamento rural, sempre

teve presente a preocupação por garantir direitos às mulheres. À medida em que a rede se

ampliou e ganhou instâncias deliberativas, as mulheres conseguiram garantir a participação

30 “A rede é fruto de um amplo processo de construção coletiva dos grupos produtivos, com as contribuições de um conjunto de organizações da sociedade civil que, atuando em diferentes áreas, lutam pela autonomia e melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade. A Rede comercializa e produz dentro dos princípios da agroecologia e da economia solidária” (DANTAS, 2005, p.1).

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feminina nessas instâncias, e hoje a maior parte dos grupos presentes são exclusivamente

femininos (35 dos 50 participantes), e também problematizam a divisão do trabalho no âmbito

doméstico. Segundo diz a carta de princípios desta rede:

(…) garantir a valorização do trabalho das mulheres e jovens, reforçando sua participação, através de uma política de ação afirmativa em todas as etapas do processo (buscando instrumentos que viabilizem a socialização do trabalho doméstico), respeitando suas diferenças sem gerar desigualdades de gênero e geração (DANTAS, 2005, p.2)31

Sendo assim, dentro do cenário da Economia Solidária, a rede é vista como um

significativo exemplo de articulações feministas com a Economia Solidária – e também com a

agroecologia. Apesar dos avanços, no entanto, Dantas (2005) aponta que ainda existem desafios

tradicionais e problemas a serem superados, tais como: o trabalho das mulheres ainda é, muitas

vezes, tido como 'ajuda', mesmo que seja a maior parte da renda ingressante nas famílias; os

limites impostos por maridos para participação das mulheres em eventos na região; a participação

ainda desigual em espaços mistos; além das dificuldades físicas para comercialização e atividades

políticas.

Essa articulação dos empreendimentos de mulheres rurais entre Economia Solidária e

Agroecologia não é exclusivo da Rede Xique-Xique, no primeiro seminário realizado pelo

Grupo de Trabalho de Gênero do FBES em Recife, e organizado pela Rede de Mulheres

Produtoras do Nordeste32, o tema do mesmo era “Economia Solidária, Agroecologia e

Feminismo: encontros e confluências”33, e como demonstra o nome tinha como objetivo traçar

aproximações teóricos e práticas entre os temas.

O objeto de estudo desta dissertação, a Associação de Mulheres Agroecológicas do

Horto-Vergel (AMA), é outro exemplo de empreendimento rural de mulheres que também vivem

a experiência da Economia Solidária articulada com a agroecologia. Durante os anos de 2004 a

31 A rede participa ativamente do movimento feminista, estando envolvida com a Marcha Mundial das Mulheres e a Coordenação Oeste das Mulheres.

32 Para mais informações: http://www.casadamulherdonordeste.org.br33 O Conjunto de atores envolvidos na promoção do evento, evidencia ainda mais essa articulação: Articulação

Nacional de Agroecologia (ANA); Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia); Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES); Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA); Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN); Grupo de Trabalho de Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO); Rede Alerta contra o Deserto Verde (RADV); Marcha Mundial das Mulheres (MMM); Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB). Fonte: http://www.fbes.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=5518&Itemid=62.

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2006 a associação passou por um processo de transição agroecológica que foi estudado por

Siqueira (2008).

Analisando o processo de transição agroecológica vivido pela AMA desde uma

perspectiva de gênero, Siqueira (2008) avalia o impacto sobre as relações de gênero na forma

sobretudo de ganho pessoal para as mulheres, incluindo aumento da autoestima e aquisição de

capacidades produtivas e intelectuais. Segundo a autora, a organização coletiva em forma de

associação permitiu ao grupo ganhar força e reconhecimento dentro e fora do assentamento, mas

ainda assim aponta que seus alcances foram limitados no que diz respeito à mudanças dos

padrões de gênero no espaço privado e público. De maneira semelhante aos estudos

anteriormente apresentados, as mulheres teriam dificuldades em conseguir apoio da comunidade

e do Estado para garantir a organização de um grupo feminino, tendo ainda pouca autonomia nos

lotes e pouco acesso aos recursos para projetos e capacitações, assim como um acúmulo de

jornadas, devido a não divisão das tarefas na casa34.

2.5. Considerações finais

Este capítulo procurou traçar os contornos do contexto em que está inserida a AMA. Por

um lado, foram tratados os temas da agricultura familiar e dos assentamentos rurais como as

estruturas de organização familiar e social na qual vivem e se articulam as mulheres do grupo,

assim como os traços mais característicos das relações de gênero nesse cenário. Por outro lado,

buscou-se analisar a experiência da organização coletiva das mulheres rurais, desde as

perspectivas da Economia Solidária e suas recentes articulações com a economia feminista e a

agroecologia.

Para tanto, ao princípio aborda-se o tema da invisibilidade do trabalho feminino no

campo, as dificuldades das mulheres em aceder aos recursos, terras e meios de produção, assim

como a permanência de uma representação social da divisão sexual do trabalho que imputa

distintos trabalhos a homens e mulheres, e os valoriza de forma desigual (PAULILO, 2003;

MELO e DI SABBATO, 2008). E aponta-se como a naturalização do papel das mulheres como

34 Apesar da agroecologia ser um elemento presente na realidade da AMA, neste trabalho não se aprofunda no tema, tendo em vista que fugiria de seu foco e considerando também que essa análise já está bem elaborada no trabalho de Siqueira (2008) citado.

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cuidadoras e responsáveis pelo trabalho doméstico, assim como dos homens em seu lugar de

provedor, tem uma série de implicações para a agricultura familiar.

Analisa-se então a Economia Solidária, como uma das alternativas encontradas pelas

mulheres rurais na busca de sua autonomia financeira e condições para permanecer na terra. Os

empreendimentos solidários que começam a surgir a partir dos anos 1990, tidos como fruto do

processo de mudança estrutural do capitalismo (SINGER, 2002; BARBOSA, 2005), são uma das

saídas encontradas pelos trabalhadores e trabalhadoras rurais e urbanos para superar o processo

de mudanças econômicas.

As perspectivas analíticas de gênero destas experiências, a sua vez, apontam por um lado

as possibilidades trazidas pelas mesmas para valorizar trabalhos tradicionalmente femininos,

garantir acesso aos direitos pelas mulheres (GUERIN, 2005), gerar mudanças na divisão sexual

do trabalho no âmbito dos empreendimentos (WIRTH, 2010; CHERFEM, 2009), assim como

uma forma de ganho de autoestima e autonomia para as mulheres, e seu empoderamento em

espaços mistos (FARIA, 2011; DANTAS, 2005). No entanto, por outro lado, o feminismo critica

a falta de uma perspectiva de gênero nas análises do campo, e aponta como persistem nessas

experiências desigualdades de gênero.

A partir de uma aproximação às teorias da economia feminista, que indicam sobretudo

que apesar de terem potencial para transformar as relações de gênero, as experiências da

Economia Solidária, para fazê-lo teriam que incorporar às suas práticas e discursos

questionamentos mais estruturais acerca do androcentrismo no pensamento econômico (NOBRE,

2003; DANTAS, 2008). As propostas de organização solidária e autogestionárias da Economia

Solidária não asseguram uma transversalidade automática de gênero em suas ações, e para que

isso seja visibilizado e modificado, as autoras indicam a importância da incorporação das pautas

da economia feministas a partir da articulação com os movimentos feministas e de mulheres

(NOBRE, 2003; FARIA, 2011; GUERIN, 2005; WIRTH, 2010).

Os estudos acerca da situação dos empreendimentos das mulheres rurais indicam

elementos muito semelhantes. Apontam por um lado a possibilidade das organizações

exclusivamente femininas de aumentar sua autoestima, gerar renda para as mulheres, e abrir

possibilidades de autonomia. Ao mesmo tempo em que se encerram nas contradições próprias da

permanência da divisão sexual do trabalho no âmbito doméstico, o que faz não só com que as

mulheres acumulem tarefas, mas também tenham dificuldades como as restrições em participar

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das atividades e a dificuldade de acesso aos recursos familiares (FARIA, 2011; SIQUEIRA,

2008; DANTAS, 2005).

As permanências e rupturas dessas experiências podem ser observadas também nas

interações entre gênero e tecnologia. Os estudos de Wirth (2010) e Chefrem (2009) demonstram

que enquanto por um lado é inegável a prevalência, historicamente construída, da estreita relação

entre tecnologia e masculinidade, tornam-se visíveis os passos dados pelas mulheres para ocupar

este lugar. A organização autogestionária parece abrir espaço para que as mulheres tenham novas

experiências profissionais em territórios tradicionalmente masculinos, como é o caso das

marceneiras (CHEFREN, 2009) ou para apropriar-se de tecnologias, como as mulheres que se

mobilizam para usar a empilhadeira (WIRTH, 2010) e, consequentemente, para relações

inovadoras entre gênero e tecnologia.

Como coloca Tiriba (2008), a autogestão pode ser uma escola para uma nova cultura do

trabalho, desde que, como propalado pela AST (DAGNINO, 2008), se adote uma outra visão

sobre a tecnologia, que compreenda esta como um processo social e político. Essas experiências

apresentadas indicam a importância de compreender que esse processo social e político em que se

insere a Economia Solidária e a tecnologia, está marcado por relações de gênero. Assim, o

entendimento de que gênero, tecnologia e Economia Solidária estão inter-relacionados pode

contribuir para os avanços nesses estudos, envolvendo cada vez mais elementos nessa complexa

teia de relações em que as experiências autogestionárias estão envolvidas.

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CAPÍTULO 3 - Relações de Gênero e Tecnologia na AMA

Neste capítulo apresentam-se a metodologia, os resultados e a análise do estudo de caso

realizado na Associação de Mulheres Agroecológicas do Horto-Vergel (AMA). Inicialmente são

explorados os procedimentos metodológicos, assim como um detalhamento das atividades feitas

em campo, seguido de uma apresentação histórica do assentamento Horto-Vergel e da AMA, e

por fim, são destacados os principais resultados encontrados e a análise dos mesmo.

3.1. Procedimentos metodológicos

Para estudar nosso objeto de pesquisa, a saber, a Associação de Mulheres Agroecológicas

do Vergel (AMA), esta pesquisa realizou extensivo estudo de campo, utilizando os métodos de

observação participante e entrevistas semiestruturadas. Além disso, esta pesquisa se desenvolveu

no âmbito de um programa de extensão universitária, em que a associação é acompanhada pela

Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Unicamp (ITCP/UNICAMP), e portanto

seguiu também os espaços de formação entre incubadora e associação

A AMA, que nasceu no ano de 1997, está sendo incubada pela ITCP/UNICAMP desde

2006 até a presente data. É no contexto deste processo de incubação que a pesquisadora entrou

em contato com a associação, estabeleceu vínculos com suas integrantes, e é também onde

surgiram as perguntas de pesquisa aqui colocadas, como resultado de questões levantadas durante

as atividades de incubação.

Portanto, a pesquisa busca sistematizar e aprofundar em temas complexos que aparecem

de forma repetida ao longo do processo de incubação deste empreendimento autogestionário, tais

como as relações de gênero e suas interfaces com a tecnologia.

Respeitando essa relação já construída entre o objeto de pesquisa e incubadora, assim

como seus pressupostos, a pesquisa se desenvolveu através da observação participante das

incubações, dos processos de trabalho da associação e foi completada com entrevistas

semestruturadas feitas às suas integrantes. Um caderno de campo também foi utilizado como

ferramenta, assim como a consulta a relatos, artigos e registros de incubação de períodos prévios

ao início da pesquisa.

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A fim de entender o âmbito onde se desenvolve essa pesquisa e os métodos utilizados,

apresentam-se em seguida a estrutura e principais pressupostos da ITCP/UNICAMP, os caminhos

percorridos pela pesquisa(dora) para chegar até suas análises finais, assim como um

detalhamento das atividades realizadas em campo.

3.1.1. ITCP/UNICAMP

A ITCP/UNICAMP é um programa multidisciplinar de extensão universitária,

formalmente reconhecido pela Reitoria da Unicamp em agosto de 2001. Trabalha, sobretudo,

com a formação de empreendimentos autogestionários e é regido pelos princípios da autogestão,

extensão universitária, dialogicidade e solidariedade e baseado nas práticas da Educação e

Comunicação Popular e da Tecnologia Social (ITCP/UNICAMP, 2009).

O processo de incubação, que é constituído pelas etapas de pré-incubação/incubação/pós-

incubação, consiste no acompanhamento de grupos autogestionários que querem tornar-se

cooperativas, empreendimentos, associações, por uma equipe de incubação. Na primeira etapa,

acontecem os diagnósticos dos empreendimentos relativos às diferentes áreas de conhecimento da

Incubadora, e a partir deste é elaborado, em conjunto com os trabalhadores, um plano de

incubação. A segunda etapa consiste na execução desse plano, através da realização de oficinas

de formação semanais com os grupos. Tais oficinas são preparadas pelas equipes através de um

constante diálogo entre a realidade dos empreendimentos e estudos feitos pela incubadora. A

última etapa é a finalização da incubação, que deve culminar na autonomia dos

empreendimentos.

As equipes de incubação que acompanham os grupos são compostas de forma

multidisciplinar e atuam por segmentos produtivos. Atualmente a incubadora trabalha com três

segmentos: resíduos sólidos, agricultura familiar e construção civil, conformadas por sete

diferentes áreas do conhecimento. Os membros das diferentes equipes, mas de uma mesma área

disciplinar, se reúnem nos chamados Grupos de Estudo e Pesquisa em Economia Solidária. O

esquema abaixo ilustra esta estrutura organizacional:

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Os formadores da ITCP/UNICAMP buscam aplicar os princípios de seu projeto político

pedagógico internamente, e não apenas nas relações com os EES e, para tanto, organizam-se

também de forma autogestionária. Além dos espaços que aparecem na figura acima, todos os

formadores se reúnem quinzenalmente no 'coletivo', que é a instância máxima deliberativa e

decisória da incubadora. Além disso, realizam-se, também quinzenalmente e alternando com a

reunião anterior, encontros da 'coordenação geral', que congrega um representante de cada

equipe, para organizar o coletivo, socializar e analisar problemas específicos das equipes.

Outro aspecto importante do trabalho da ITCP/UNICAMP é que, apesar de contar com

uma estrutura física e um secretário disponibilizados pela Universidade, a atuação e manutenção

dos formadores depende de recursos externos, mais especificamente de editais públicos. A maior

parte dos recursos vem especialmente de articulações feitas pela Secretaria Nacional de

Economia Solidária (SENAES) e pela Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP). Os projetos

normalmente têm caráter temporário (entre 2-3 anos) e os recursos são majoritariamente para

manutenção de pessoal, compra de equipamentos e material de escritório para as incubadoras35.

35 Para histórico completo dos financiamentos já feitos à ITCP/UNICAMP ver: http://www.itcp.unicamp.br/drupal/?q=node/228

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Figura 3.2: Metodologia ITCP/UNICAMPFonte: ITCP/UNICAMP, 2009.

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Tendo em vista os objetivos desta pesquisa, foram acompanhadas mais de perto as

atividades da Equipe de incubação do segmento de agricultura familiar, observando reuniões

sobre a AMA e as atividades de incubação realizadas pelos formadores na associação. Por outro

lado, a pesquisadora estava presente no grupo de estudos em 'Relações de Gênero' que, não

apenas abordava teoricamente a temática de gênero e agricultura familiar, como também debatia

a situação da AMA, sob o enfoque de gênero, e quando necessário, discutiam-se as oficinas a

serem realizadas sobre o tema.

As oficinas realizadas pela equipe de incubação são um espaço muito fértil de troca de

conhecimentos entre associadas e estudantes, e os temas abordados durante o processo de

observação participante - tais como contabilidade, divisão sexual do trabalho, agroecologia,

organização produtiva, entre outros - contribuíram muito fornecendo material de análise nesta

pesquisa. Além disso, a participação no grupo de estudos foi importante para aprofundar

dificuldades e dilemas relativos às relações de gênero que surgem durante o processo de

incubação, traçar paralelos e confluências com os estudos teóricos que existem sobre o tema,

contribuindo, assim, para o amadurecimento das análises.

3.1.2. Caminhos da pesquisa(dora)

O contato com o objeto de estudo, a AMA, iniciou-se em um período anterior às

atividades de mestrado da pesquisadora.

No final do ano de 2005, fui contratada pela ITCP/UNICAMP para fazer um estágio

desenvolvendo um projeto de cozinha semi-industrial para a cooperativa do assentamento do

Horto-Vergel. Durante 3 meses trabalhei construindo de forma participativa o projeto com os

integrantes da cooperativa. No entanto, as disputas que surgiram nesse cenário a partir da

incorporação de um grupo de mulheres às reuniões, foram as motivadoras das questões iniciais

acerca das relações entre o gênero e a tecnologia.

Sendo assim, essas inquietudes iniciais fizeram surgir o interesse por aprofundar os

estudos nas relações de gênero e ao mesmo tempo na compreensão dos processos sociais em que

estavam imersos a construção/definição tecnológica.

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Enquanto seguia estudando e aprofundando esses temas, entrei como formadora da

ITCP/UNICAMP em princípios de 2007, não acompanhando a AMA diretamente, mas

trabalhando com as cooperativas de triagem de resíduos sólidos. Já no ano de 2008 eu me

integrei à equipe agricultura, participando semanalmente de oficinas de formação com as

mulheres no assentamento.

Foi nesta última etapa que aquelas inquietudes iniciais começaram a ganhar mais forma e

eu elaborei o projeto de pesquisa que deu origem a essa dissertação. No inicio de 2009 eu fui

aceita para o programa de mestrado do DPCT/UNICAMP e deixei meu vínculo formal com a

incubadora e com a associação.

A partir de julho de 2009, quando comecei a organizar o trabalho de campo, tive uma

conversa inicial com a equipe de incubação explicando o projeto e solicitando a concordância

para acompanhar as reuniões de equipe e das oficinas com a associação e usar as informações

para este estudo. Ao mesmo tempo foi feito contato com a AMA, e organizou-se uma reunião

onde foi feita uma apresentação formal da pesquisa, explicando minha proposta de acompanhar

também as atividades de incubação. Nesta ocasião foi colocada explicitamente a mudança do

meu papel de formadora para o de pesquisadora nesse novo momento e o que esta mudança

implicava em termos de uso das informações coletadas e observações realizadas.

Sendo aceita a proposta pela AMA e pela incubadora realizou-se a primeira etapa do

trabalho de campo no segundo semestre de 2009, e a finalizou-se o processo no segundo semestre

de 2010 à luz das contribuições realizadas durante o exame de qualificação da dissertação.

3.1.3. Atividades realizadas em campo

Durante o desenvolvimento da primeira etapa do trabalho de campo realizou-se a

observação participante das reuniões da equipe de incubação e das oficinas realizadas, e foram

feitas anotações em um caderno de campo. Em paralelo foi feito um levantamento dos

documentos, relatos e registros de incubação dos períodos anteriores, assim como uma revisão

bibliográfica das dissertações e teses encontradas acerca do assentamento do Horto-Vergel.

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O objetivo desta etapa inicial era retomar o contato e vínculo com as mulheres da

associação, familiarizar-me com a nova equipe de incubação, assim como coletar informações

iniciais que pudessem contribuir para a elaboração das entrevistas.

A partir dessa coleta de dados, que durou três meses, foi elaborado um roteiro de

entrevista semi-estruturada dividido em três grupos de questões. Em um primeiro momento a

entrevista estava focada na participação das mulheres na associação, resgatando as motivações

iniciais que levaram à integração delas e as mudanças geradas a partir dessa experiência. O

segundo bloco era composto de perguntas mais específicas acerca das tecnologias

utilizadas/desenvolvidas nas distintas etapas organizativas. Finalmente, a terceira parte da

entrevista abordava o tema da divisão sexual do trabalho.

As entrevistas foram feitas com 3 mulheres do grupo em novembro de 2009, e com as 4

demais integrantes em outubro de 2010. No total foram 7 entrevistas, englobando todas as

participantes da associação no momento de finalização do trabalho de campo. Os relatos orais das

entrevistas foram gravados com prévio consentimento das entrevistadas, logo transcritos e o

processo de análise foi concluído em junho de 2011. Os nomes utilizados durante as análises

apresentadas são todos fictícios.

As sete mulheres entrevistadas tinham entre 31 e 77 anos, a maior parte sendo casadas,

com exceção de uma solteira e uma viúva. Quase todas têm baixa escolaridade e se consideram

morenas ou negras. Ainda que neste momento vivam majoritariamente do trabalho na terra,

muitas já trabalharam fora do assentamento em algum momento, como domésticas, em empresas

ou nas fazendas vizinhas. Atualmente apenas uma destas mulheres está empregada em uma

empresa e outra disse contar com a aposentadoria para sobreviver. Com exceção da entrevistada

viúva, as demais não têm seu nome como titulares ou co-titulares das terras.

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3.2. História do Assentamento Horto-Vergel

O Assentamento “12 de outubro”, ou Assentamento Vergel como é chamado pelos

assentados, está localizado em Mogi-Mirim, estado de São Paulo, na estrada Itapira – Mogi-

Mirim. Está situado numa área em que antes estava o Horto Florestal Vergel da FEPASA,

destinado à plantação de eucaliptos que eram utilizados como combustível e dormentes para a

ferrovia, contando também com uma estação no local. O Assentamento tem uma área de 1216

hectares, dos quais 360 ha são Área de Preservação Permanente, 20 ha compõem uma área

comunitária e o restante está divido em 90 lotes de 8,6 ha cada.

Os hortos-florestais foram implantados no Estado de São Paulo no começo do século

passado devido à preocupação recorrente com o esgotamento da madeira. Com os intensos

desmatamentos provocados pela construção das ferrovias e as grandes plantações de café, temia-

se que faltasse madeira. O eucalipto foi escolhido para ser cultivado em diferentes áreas do

Estado por fornecer matéria prima de melhor qualidade para lenha e dormentes e por ser uma

planta de alto vigor e crescimento rápido (SIQUEIRA, 2008).

O Horto Vergel foi ocupado no dia 12 de outubro de 1997, época em que os hortos no

estado de São Paulo ainda pertenciam à Ferrovia Paulista S/A (FEPASA). Com o anúncio da

federalização da FEPASA e a manifestação de interesse do INCRA em adquirir esses hortos para

reforma agrária em 1996, trabalhadores de sindicatos rurais e movimentos sociais de sem-terra

foram se instalando em acampamentos e ocupações pela região, na intenção de conquistar um

lote de terra.

No caso do Vergel a organização da ocupação foi feita através de uma articulação entre o

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Sumaré, com a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e

o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Esses movimentos estavam

organizando reuniões com trabalhadores desempregados de várias regiões urbanas e rurais desde

Mogi-Mirim até Mogi- Guaçu, Campinas, Estiva Gerbi, Conchal, Santa Bárbara D´Oeste, e

Sumaré. Sendo assim, no dia 12 de outubro de 1997 realizaram a ocupação com as terras ainda

em posse do governo (MIRANDA, 2008).

Siqueira (2008) aponta ainda que os sem-terra ficaram dois anos acampados até que em

1998 o governador Geraldo Alckmin autorizou a implantação de assentamentos em onze

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fazendas de horto, incluindo o Vergel. Assim, o Vergel passou a ser um assentamento

regularizado, ficando então sob responsabilidade do Instituto de Terras do Estado de São Paulo

(ITESP). O instituto começou em 1999 a dar assessoria ao acampamento e a cadastrar as

famílias, mas a distribuição de lotes ocorreu apenas em 2000, ocasião em que também foi criada

a “Associação do Assentamento 12 de outubro”.

Na época da regularização viviam no assentamento 82 famílias, somando uma população

de 346 pessoas, das quais 56% eram mulheres e 44% eram homens. A maior parte da população

era jovem, tinha menos de 22 anos (55%), 36% tinham entre 22 e 50 anos e os 9% restantes eram

maiores de 50 anos (SIQUEIRA, 2008).

Passado o momento da ocupação dos lotes, as famílias seguiam tendo problemas para se

instalar, especialmente porque o Estado não havia retirado toda a madeira que ficava no Horto

(principalmente os tocos pequenos – processo que se chama destoca), o que foi motivo de

conflito entre assentados, associação dos mesmos e ITESP. Por um lado as lideranças exigiam

que o dinheiro obtido com a venda da madeira fosse revertido em benefícios para o

assentamento, proposta com a qual o ITESP concordou, definindo que a maior parte do recurso

seria investido em fazer a destoca e garantir infraestrutura para o assentamento.

Alguns outros assentados, no entanto, defendiam que a madeira deveria ser vendida pelos

próprios assentados e, com a demora para vender a madeira e fazer a destoca, começaram a

surgir conflitos no assentamento. Assim, alguns começaram a vender a madeira, outros fizeram

fornos para fazer carvão, alguns por desespero, outros por oportunismo, o fato é que isso

complicou bastante a relação com o Estado. Por fim, depois de um tempo de muita confusão o

ITESP tomou medidas para inibir a venda da madeira e a produção do carvão, medidas essas que,

além de terem causado muitos problemas aos assentados, abalaram profundamente a relação e

laços de confiança com o ITESP, que segue acompanhando o assentamento até os dias de hoje

(SIQUEIRA, 2008).

Os dados mais recentes coletados pela própria autora em 2007 indicam que o

assentamento hoje tem cerca de 145 famílias, com uma população total de 519 habitantes, dos

quais 287 homens (55%) e 232 mulheres (45%). Com relação à titularidade da terra, os dados

revelam que em um total de 90 lotes, 68 dos proprietários são homens e apenas 22 são mulheres.

Siqueira (2008) chama ainda a atenção para o fato de que as mulheres titulares geralmente estão

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associadas a alguma situação de impedimento legal, ou por terem maridos estrangeiros ou no

caso de viuvez da mulher.

3.3. História da Associação de Mulheres Agroecológicas (AMA)

Mapear a história da Associação de Mulheres Agroecológicas do Horto Vergel não é

simples. A associação que se consolidou com o atual nome em junho de 2005, foi formalmente

legalizada apenas no ano de 2010 e, no entanto, sua história é narrada por suas integrantes como

uma continuidade da articulação de um grupo de mulheres que se iniciou no momento mesmo da

ocupação do assentamento em 1997.

Ao longo dos mais de 10 anos de história desse grupo de mulheres, os momentos foram

muitos, a participação das integrantes variou e se renovou diversas vezes e as atividades às quais

se dedicaram são incontáveis. Capturar todos os seus detalhes e ter precisão de datas é uma tarefa

muito difícil, tendo em vista que a informalidade de sua organização não contou, pela maior

parte desse tempo, com registros escritos ou formais dos eventos.

No entanto, fazendo uma “colcha de retalhos” entre os relatos pessoais dados nas

entrevistas, as informações de outros trabalhos acadêmicos do assentamento, as oficinas

realizadas pela incubadora sobre o histórico da AMA e um relato escrito pela associação em

parceria com a ITCP/UNICAMP sobre sua história para concorrer ao prêmio Margarida Alves, é

possível estabelecer uma cronologia dos eventos que foram mais significativos nesta trajetória.

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Figura 3.3: Histórico AMAFonte: Elaboração própria a partir do material de pesquisa.

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Durante a ocupação, as mulheres contam que fizeram de tudo; lado a lado com homens,

jovens, crianças e idosos enfrentaram tropas de choque, ajudaram a montar barracas e lonas,

foram às cidades em busca de apoio como doação de comida e roupa para os sem-terra, além de

se envolverem politicamente nas articulações do assentamento e na relação com o poder público.

No entanto, a tarefa principal das mulheres nesta época, e que deu origem ao grupo das

mulheres, foi a organização de uma cozinha comunitária (1997 - 1999), inicialmente pensada

para as crianças, mas que acabou funcionando tão bem que foi coletivizada para todos os

acampados. Para lá era enviada toda a comida recebida e preparada para as mais de 400 pessoas

acampadas da época, segundo diz uma das entrevistadas:

O grupo de mulheres começou desde o momento que a gente desceu do ônibus de madrugada [falando do dia da ocupação]. A gente sentiu a necessidade de proteger as crianças. Era escuro, nós chegamos aqui as 5:40 da manhã, então nossa necessidade, nós mulheres, era de proteger as crianças. [para isso montaram uma cozinha para alimentá-las] …ali começou uma cozinha coletiva, nosso intuito era só proteger as crianças, mas como ficou limpinho, certinho virou a cozinha coletiva. (Carmen, 54 anos, viúva)

Essa preocupação com as crianças foi norteadora para a organização dessa cozinha que

logo se tornou comunitária; sendo assim, o espaço inicialmente funcionava também como uma

creche. As mulheres se revezavam entre as tarefas de cozinhar e cuidar das crianças. Com o

tempo, determinadas a ter um espaço onde pudessem cuidar das crianças, entraram com pedido

ao Estado para liberar a sede do antigo horto, onde vivia ainda um administrador. O pedido foi

concedido e ali as mulheres organizaram uma escolinha (1999). Pouco depois conseguiram apoio

de um grupo de estudantes do curso de Pedagogia da Unicamp, que as ajudaram a tocar o projeto

e assim a creche durou até 2001, quando já faltavam recursos para mantê-la e o grupo da

Unicamp se afastou pelo fim do projeto (LUCA, 2005).

Nessa época, as famílias já estavam se instalando em seus lotes. Isso gerou uma série de

mudanças no assentamento e também na vida das mulheres, como será analisado mais adiante.

Mesmo com as novas dificuldades, ou com as novas distâncias, as mulheres já haviam “tomado

gosto”, como dizem elas, por sua organização coletiva e quiseram continuar trabalhando juntas.

Nesse mesmo período o assentamento começou a sobreviver, em grande medida, da

venda de madeira. As madeiras e tocos que restavam da antiga plantação de Eucalipto estavam

sendo retirados e vendidos por madeireiras contratadas pelo Estado, como explicado no princípio

deste capítulo. Sendo assim, o assentamento era bastante movimentado pelos trabalhadores e

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compradores da madeira e as mulheres, buscando dar continuidade às suas atividades,

aproveitaram a ocasião para abrir um restaurante e vender marmita a essas pessoas que

frequentavam o assentamento36.

O restaurante durou até 2003, quando o assentamento teve as disputas com o ITESP por

conta da venda das madeiras, e em consequência disso os funcionários das madeireiras e os

compradores deixaram de frequentar o assentamento, e as mulheres perderam seus principais

clientes, para os quais organizaram até mesmo uma pousada em algum momento desse período.

Assim, o restaurante, que chegou a contar com a participação de 20 mulheres, foi aos poucos se

desfazendo, o número de participantes foi diminuindo até que o grupo decidiu fechar.

Os anos que se seguiram (2003-2004) foram anos difíceis no assentamento, que perdeu a

madeira como fonte de renda. As mulheres nesse período também enfrentavam dificuldades e

estavam desarticuladas, mas seguiam com vontade de retomar as atividades. Nessa época,

iniciaram a busca por projetos que financiassem a construção de uma cozinha no assentamento,

onde as mulheres pudessem trabalhar processando os produtos agrícolas dos assentados e vender

a produção para fora. Em parceria com o ITESP começaram a correr atrás das possibilidades e,

ao longo de quase dois anos, construíram junto com o instituto um projeto de um centro

comercial na beira da estrada, que incluiria espaço para a comercialização de produtos agrícolas,

uma cozinha e creche para as crianças.

O projeto foi concluído e se iniciaram as obras no terreno que fica justamente na beira da

estrada, mas depois que fizeram a terraplanagem, as obras pararam por falta de verba pública e

até hoje não foram retomadas.

Já em finais de 2004, a Fundação Mokiti-Okada fez contato com o grupo e propôs que

participassem de um processo de transição agroecológica. Inicia-se, assim, uma época de muitas

atividades do grupo, que rearticulou 11 mulheres e começou a trabalhar nos lotes das famílias

com a produção agroecológica, participando de feiras, jornadas, e atividades de capacitação em

processamento de alimentos.

Foi no âmbito deste projeto, em 2005, que buscando um nome para participar de uma das

feiras, o grupo criou o nome da Associação de Mulheres Agroecológicas do Horto-Vergel

(AMA). Nessa época, uma das principais fontes de renda do grupo era a venda de seus produtos

36 Algumas mulheres inclusive trabalharam com as madeiras, mas encontraram dificuldades porque o esforço físico era muito e isso acabou gerando problemas de saúde em algumas delas.

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em uma feira livre de Mogi-Mirim, onde fizeram muitos clientes e conseguiam garantir

escoamento para a produção agroecológica.

Foi na época em que esse projeto estava finalizando, em julho de 2006, que a AMA

também começou a ser incubada pela ITCP/UNICAMP; sendo assim, durante o segundo

semestre deste ano, os projetos são desenvolvidos concomitantemente. As mulheres decidiram

nesta ocasião se organizar em 5 sub-grupos: padaria, farinheira (produção de farinha de

mandioca), artesanato, plantas medicinais e banco de sementes. Foi essa a maneira que

encontraram de seguir desenvolvendo as distintas atividades, de acordo com as afinidades das

diferentes mulheres participantes.

Com a ITCP/UNICAMP as mulheres retomaram a proposta de construção da cozinha

industrial no assentamento, e enviaram projetos à Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM)

e para a SENAES. Entretanto, projetos após projetos, apesar de terem sido aprovados, não têm

suas verbas liberadas. Em outubro deste mesmo ano escreveram um relato sobre a história do

grupo, chamado “Mulheres Guerreiras do Vergel”, para o prêmio Margarida Alves, mas não

foram escolhidas para premiação.

O ano de 2007 marcou um período difícil para a associação, devido a fatores como o fim

do projeto de transição agroecológica, a redução da presença da incubadora, que teve que

diminuir o número de visitas por dificuldades de financiamento, e a morte de uma das integrantes

do grupo e do marido de uma de suas principais lideranças. Ao final destes episódios, as

mulheres se encontravam em outro momento de desarticulação.

Não está clara a ordem dos fatores nesse período, mas em algum momento deste ano, as

mulheres deixaram de frequentar a feira em Mogi-Mirim, segundo alegaram nas entrevistas, por

não conseguirem abastecer mais a barraca com os produtos, seja porque não estavam produzindo

o suficiente para tanto ou porque tinham dificuldades com transporte, ou ambos. Deixaram

também de produzir a farinha de mandioca, e citaram como razões a falta de produção de

mandioca dos lotes, a pequena renda gerada, a inadequação dos equipamentos e uma visita da

vigilância sanitária que alegou que as instalações do barracão e equipamentos não eram

adequados para o processamento de alimentos. Nesse período, assim como em outros de

instabilidade, algumas das mulheres foram trabalhar nas cidades, ou na colheita das fazendas de

café e laranja perto do assentamento.

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Apesar disso, nesse mesmo ano, continuaram, junto com a ITCP/UNICAMP, a buscar

financiamento para os projetos, enviando cartas à SPM e SENEAS. Enviaram ao CNPq um

projeto solicitando equipamentos para uma nova cozinha e negociaram com o INCRA a reforma

do barracão onde antes ficava o restaurante, mas o projeto não foi aprovado e o INCRA nunca

realizou a obra. Submeteram também um pequeno projeto em resposta ao edital “Ângela Borba”

para a aquisição de uma Kombi que permitiria o transporte de seus produtos para as feiras, mas

novamente a resposta foi negativa.

No segundo semestre de 2008, com a saída de um novo edital da SENAES para

financiamento das incubadoras, a ITCP/UNICAMP retomou um acompanhamento mais

sistemático do grupo, que rearticulou as mulheres. Com a falta de estrutura e equipamentos para

produzir, já em 2009, a associação optou por trabalhar com a comercialização de “cestas

agroecológicas” composta de produtos agrícolas dos lotes familiares e alguns processados que as

mulheres faziam de forma individual em suas casas. Os pedidos de cesta eram feitos por

consumidores de Campinas, diretamente à incubadora e trazidos semanalmente pelo transporte da

ITCP/UNICAMP, já que a AMA não contava com veículo próprio para fazê-lo. Além disso, foi

estabelecida nessa época a articulação do grupo com o “Trocas Verdes”, uma cooperativa de

compras preocupada com o consumo de produtos orgânicos e de produtores locais, como são os

de agricultura familiar, de assentamentos ou da agricultura urbana na região37. Nesse mesmo ano

realizaram um curso de turismo rural, com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR)

e iniciaram o processo para a formalização legal do grupo enquanto associação.

No momento de conclusão do trabalho de campo, segundo semestre de 2010, a associação

já tinha concluído sua formalização, e seguia com a comercialização das cestas agroecológicas.

Além disso, começava a buscar possibilidades de crédito no banco popular para aquisição de uma

Kombi, tentando solucionar o histórico problema que tem enfrentado com a falta de transporte.

3.4. A construção social de tecnologias no Horto-Vergel

Uma revisão do histórico da AMA permite encontrar alguns momentos nos quais, para

viabilizar suas atividades produtivas, a associação mobilizou processos de construção tecnológica

a partir de recursos materiais, sobretudo locais. Compreendendo a tecnologia como um produto

37 http://www.trocasverdes.org/

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sócio-material, e que sociedade e tecnologia são definidas mutuamente (WAJCMAN, 2004)

analisam-se aqui essas experiências, buscando compreender quais são os grupos sociais

envolvidos e de que maneira definem e são definidos por esses processos de desenvolvimento

tecnológico.

3.4.1. Fogões da cozinha comunitária

Como mencionado no histórico da AMA, na época da ocupação as mulheres se

responsabilizaram pela organização de uma cozinha comunitária. Segundo as entrevistas com as

integrantes do grupo, a cozinha era utilizada para processar a alimentação básica de todo o

assentamento. As mulheres recebiam e organizavam todas as doações de comida que chegavam

ao Vergel – a maior parte vinda de igrejas e pessoas articuladas pelas próprias mulheres -

cozinhavam a comida e distribuíam para os 400 acampados. Além disso, centralizavam as

doações de leite, que era repartido entre as crianças da ocupação. Segundo dizem, os primeiros a

comer eram as crianças e as mulheres, e os homens comiam no final.

A maior parte das mulheres entrevistadas não estava na ocupação no momento em que se

estruturou a cozinha; algumas chegaram alguns dias depois. Uma das associadas, Carmen38,

juntamente com duas mulheres hoje não integrantes do grupo, foi quem iniciou a organização da

cozinha. E foi também ela que explicou como foram organizadas as instalações e artefatos para

produzir a alimentação.

O espaço utilizado neste caso foi um antigo curral do Horto-Vergel, que para adaptar-se a

sua nova atividade contou com uma limpeza pesada, realizada pelas mulheres e seus familiares

com o apoio dos bombeiros. Os bombeiros foram acionados pela coordenação do assentamento a

pedido das mulheres:

Eu como eu falei que cuido da alimentação, eu falei que precisava de um espaço pra gente no mínimo ver o que podia fazer pra proteger eles. Ai tinha esse barracão, que era um barracão de..de...de...gado, um curral, que tinha uma altura bem grande de, como fala?!...de resíduo que tinha lá..ai que nós fizemos?! Nós pedimos pro coordenador, o coordenador foi lá pediu pros bombeiros, e o bombeiro limpou. E os bombeiros chego no acampamento 5 horas da manhã, ai eu levantei eu, meu marido, mais meu filho de criação que é o Dijailson e mais 4 jovens e pegamos junto com os

38 É importante destacar aqui que esta associada é a principal liderança da AMA. É a única dentre as entrevistadas que está desde o princípio do grupo, que se manteve na associação praticamente em todos os seus momentos e ainda é a principal representante externa da AMA. Além disso, é liderança reconhecida também dentro do assentamento.

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bombeiros e fomos..os bombeiros foi jogando água e nós raspando com a enxada, com a vassoura, tirando aquele lixo tudo pra fora. E ali começou uma cozinha coletiva. (Carmen, 54 anos, viúva)

Com espaço já garantido, o passo seguinte era conseguir o fogão com bocas suficientes

para fazer comida para as famílias acampadas, e aqui surgiram dois exemplos de adaptação

tecnológica. O primeiro fogão que utilizaram foi um fogão feito com um cupinzeiro. Segundo

contam as participantes, no cupinzeiro era feito um furo na parte lateral baixa, onde se colocava

lenha, e outro na parte de cima para as panelas.

83

Figura 3.5: Exemplo 2 de fogão de cupinzeiro.

Fonte: http://www.nipponclub.com.br/

Figura 3.4: Exemplo de fogão de cupinzeiro.

Fonte: http://www.flickr.com/photos/katiaribas/

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Infelizmente não foram encontrados registros fotográficos deste equipamento no

assentamento. As fotos acima, retiradas da internet, são trazidas para ilustrar exemplos de fogões

feitos a partir de cupinzeiro - pode-se perceber que seu sistema de funcionamento é muito

parecido com o de um fogão à lenha. A lenha é colocada na parte lateral inferior, e o calor

gerado atinge as panelas, que são ajustadas na parte superior do cupinzeiro.

Segundo Carmen, a ideia de construção desse fogão foi de seu marido e do marido de

outra das mulheres integrantes do grupo:

Carmen: O cupim era um cupinzão, aí o João cortou o cupim por cima e cutucou tudo com, com, com...com machado, tirou tudo aquele oco do cupim. Tirou e do lado tirou também, fez um redondo assim e cortou e trazia toquinho de lenha, a gente colocava em baixo e em cima a gente colocava a panela pra cozinhar. Entrevistadora: Foi o seu marido que fez pra vocês?Carmen: Foi o meu marido e foi o marido da Nésia, que é um outro rapaz que morava aqui. (Carmen, 54 anos, viúva)

Esse fogão, no entanto, não era o único utilizado na cozinha. O assentamento recebeu

doação também de um fogão industrial, de sitiantes da região, mas o fogão estava desregulado e

por isso as chamas eram muito altas. Ao invés de deixar de usar o fogão, este foi adaptado de

forma que fosse mais cômodo para as cozinheiras. Segundo Carmen os homens sugeriram que o

fogão fosse utilizado com lenha e o readaptaram:

..deram esse fogão (à gás) para a gente, e a gente então começou a cozinhar nesse fogão, mas como o fogão pegava fogo, então o que a gente fazia, começamo a usar ele também com lenha, tinha um espaço embaixo, a gente socava lenha ali e punha as panelas nas bocas. [E quem teve essa ideia? - entrevistadora]. Ai foi os homem né, nessas alturas a organização é muito lindo, todo mundo se ajuda...(Carmen, 54 anos, viúva)

Uma outra entrevistada, Beatriz, comenta que quando chegou ao assentamento foi para a

cozinha comunitária ajudar e ficou impressionada porque era tudo improvisado. Conta que

sempre tinha panela no fogão, porque as panelas eram pequenas e por isso tinham que ir fazendo

a comida por partes e colocando em vasilhas.

Como nesse espaço eram feitas todas as refeições do dia, as mulheres se alternavam em

grupos para dar conta de toda a comida que tinha que ser produzida. E como os utensílios não

eram suficientemente grandes, a solução encontrada era ir produzindo em parcelas menores e

servindo ou deixando a comida pronta armazenada em vasilhas.

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Vale citar também que neste momento de organização mais coletiva do acampamento, as

poucas mulheres que vivenciaram esse período citam uma maior facilidade em sua participação e

envolvimento político nas atividades do assentamento. Esse cenário se modifica com a mudança

e instalação das famílias nos lotes, trazendo mais dificuldades para o envolvimento das mulheres.

3.4.2. A produção da farinha de mandioca

Uma das atividades desenvolvidas pelas mulheres, durante os anos de 2005-2006, foi a

produção da farinha de mandioca e seus derivados. A partir das mandiocas produzidas nos lotes

familiares das mulheres da associação, processavam farinha de mandioca, polvilho doce e azedo

e com estes faziam bolos, pães, biscoitos e doces para comercializar na região.

Segundo descrevem as diferentes associadas, a produção da farinha de mandioca era um

processo que normalmente levava dois dias para ser realizado, e incluía as seguintes etapas:

PRIMEIRO DIA:

COLHEITA DA MANDIOCA:

No primeiro dia as mulheres acordavam cedo e passavam a manhã na roça colhendo a

mandioca. Toda a mandioca era então levada em carroças até o local onde seria realizado o

processamento.

DESCASCAR E HIGIENIZAR:

Na parte da tarde se reuniam no local do processamento e ficavam horas descascando as

mandiocas de maneira manual, utilizando apenas facas. Feito isso colocavam as mandiocas em

tonéis cheios de água, e deixavam de molho até o dia seguinte.

SEGUNDO DIA:

RALAR:

No segundo dia de processamento, inicialmente a mandioca era retirada dos tonéis e a

fase de lavagem era finalizada. Em seguida as mandiocas eram raladas. Para tanto era utilizado

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um ralador que funcionava com um motor, que elas chamam de “bolinete”. Como não foram

encontrados registros fotográficos do equipamento, não é possível saber como era seu

funcionamento exatamente, mas elas dizem que o ralador tinha lâminas e que o funcionamento

do motor as movimentava e ralava a mandioca, manualmente colocadas no equipamento por uma

das mulheres.

PRENSAGEM:

Depois de ralada, a mandioca era colocada em sacos grandes, e passava à etapa de

prensagem, os sacos eram colocados uns sobre os outros e um equipamento fazia peso sobre estes

para que toda a água que havia ficado na mandioca fosse retirada. Esse processo poderia levar até

três horas para ser realizado.

PENEIRAGEM:

Os sacos com a mandioca já prensada eram então abertos e as mulheres espalhavam a

mesma sobre mesas grandes e depois peneiravam para retirar os pedaços maiores que não

deveriam passar à seguinte etapa.

TORREFAÇÃO

Por fim, a mandioca era torrada em tachos de ferro no fogão à lenha. Essa era uma etapa

bastante demorada e, segundo as mulheres, a mais complicada. Era muito importante saber

identificar o ponto certo de torrefação, porque era fácil deixar passá-lo e neste caso toda a farinha

queimava e se perdia. Elas identificavam esse ponto pelo barulho que fazia a farinha quando esta

era friccionada com os dedos.

EMBALAGEM:

Depois de torrada, a farinha era depositada em sacos plásticos pequenos, de 500g e 1Kg,

que eram selados, com auxílio de uma seladora. Este equipamento fecha embalagens de plástico

a partir de uma barra metálica que aquece o plástico de maneira localizada e controlada, e assim

funde a abertura do pacote, selando a embalagem.

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O esquema abaixo mostra todas essas etapas e os equipamentos utilizados de forma

esquemática:

Ao conjunto de equipamentos listados acima, necessários para produzir a farinha, as

mulheres dão o nome de farinheira. Dentre todos estes artefatos, a maior parte é encontrada com

frequência nas cozinhas do assentamento - facas, tonéis, mesas e peneiras – com exceção dos

equipamentos utilizados para ralar, prensar e o tacho para torrar a farinha.

Assim, para começar a produção, inicialmente as mulheres se instalaram na casa de uma

das associadas, Rosana, que já possuía uma mini-instalação de farinheira. Segundo contam as

filhas dela, que hoje são integrantes da AMA, o pai delas era “o único que tinha experiência de

87

Figura 3.6: Etapas do processamento de farinha de mandioca e equipamentos.Fonte: Elaboração própria a partir dos dados de pesquisa.

Colheita demandioca

Descascarmandioca

Lavarmandioca

Ralarmandioca

Prensar

Peneirar

Torrarfarinha

Embalar

Facas

Tonéis com água

Ralador

Prensa

Peneiras

Fogão eTacho

Seladora

ETAPAS DOPROCESSAMENTO EQUIPAMENTOS

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montar essas coisas” (Cristina, 32 anos, casada) e por isso construiu para a esposa todos os

equipamentos necessários para a produção.

A associação, a princípio, pensou em produzir farinha de mandioca nesse espaço, mas o

marido de Rosana colocava muitos problemas, e ainda que ela estivesse disposta a enfrentá-lo

para que o grupo permanecesse ali, seu falecimento acabou impossibilitando o trabalho das

mulheres naquele local:

Ai quando chegou lá, a primeira restrição que nós tivemos: o marido dela. O Pedro assim um homem muito bom, mas ele bebia, sabe...como até hoje você sabe...expulsou até os filhos, imagina o grupo. E porque se punha o pau aqui ele falava que num queria aqui, porque se aqui ele num quer aqui, porque era muita gente num queria, porque num sei o que, que num pode aqui, porque num planta lá..vixxiii...'num dá pra gente fazer aqui, e agora o que nós vai fazer?'. Ai mesmo assim a Rosana falou assim 'Quer sabe duma coisa Carmen, nós vai fazer sim porque aqui quem manda sou eu.', uma mulher decidida sabe...e fomo. Começamo a tirar madeira, começamos a tirar tudo quanto é coisa pra começar a construir a farinheira. Ai menina pra nossa decepção..bem nessa época a Rosana me morre. Que nós faz agora...morreu a farinheira. (Carmen, 54 anos, viúva)

Então, daí quando minha mãe morreu nós saimo de lá....porque meu pai num queria que fosse lá, sabe?! (Cintia, 31 anos, casada)

Com este impedimento, as mulheres decidiram buscar um local alternativo. A solução

encontrada foi produzir na casa da Carmen, que doou a cozinha de sua casa, mais um cômodo

para fazer a instalação da farinheira. Neste novo espaço as mulheres não tiveram problemas com

o marido da associada, que apoiava as ações do grupo e ajudava nas tarefas, principalmente

carregando as mandiocas e fazendo consertos quando necessário.

É importante destacar aqui que em distintos momentos da organização da AMA o sítio de

Carmen foi utilizado como espaço da associação, não apenas para produção, mas também para

reuniões, encontros e outras atividades.

No entanto, enquanto na primeira casa as mulheres tinham à sua disposição todos os

equipamentos, na nova instalação foram necessárias algumas adaptações. Para tanto, foi

importante o apoio das filhas de Rosana, que tinham aprendido com a mãe como era o processo

de produção da farinha. Além de fazer reformas pontuais na casa da Carmen, elas compraram

com recursos próprios um tacho para torrar a farinha, levaram parte do ralador da farinheira

antiga de Rosana e conseguiram um motor emprestado para que este funcionasse. Além disso,

pediram emprestada de um outro assentado uma prensa maior para a sua produção porque,

segundo elas, aquela utilizada anteriormente era muito pequena.

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As articulações para que tudo isso fosse possível foram muitas, e a participação dos

maridos e outros assentados foi importante para tanto:

A Cristina e a Cintia falou assim 'o equipamento de ralar nós leva pra cima, só que precisa arranjar motor.', que nem o motor o pai dela num deixou tirar de lá. Ai nós...o Zé Carlo, ele tinha um motor e falou 'Não Carmen eu empresto o motor pra vocês.' Ai o Zé Carlos emprestou o motor pra gente, nós catamos essa peça que era da Rosana, que essa era dela, trouxemos pra cá montamos. (Carmen, 54 anos, viúva)

Só que chegou aqui em cima a prensa era pequena. Ela era pequenininha, porque era só pra minha mãe. Ai chegou aqui a gente emprestou a do rapaz, uma outra prensa maior. Ai a gente emprestou dele, e a gente usava ela, daí o motor era do meu pai, o bolinete era do meu pai, ai essas coisas a gente devolveu pra ele. Ele queria, era dele, daí a gente devolveu pra ele. (Cristina, 32 anos, casada)

(Quem ajudou a montar?) Não...o João. O João da Carmen foi guerreiro, ele tudo que falava pra ele...ele tava. Ele que dava apoio em tudo ali. Porque meu pai só foi e ajudou a montar. Mas fazer alguma coisa, correr atrás de uma instalação que num deu certo era o João né? Ele ajudou bem. João foi guerreiro. (Cristina, 32 anos, casada)

Na parte assim se quebrava alguma coisa era sempre o João e Pedro que vinha arruma, porque a gente não conseguia arrumar mesmo.”(Cintia, 31 anos, casada)

Eu acho que foi comprado só uma peça, um ferrão dessa tamanho, uma latona, pra torrar. O ralador é dela (Rosana), a prensa é de um amigo da gente. (Maria, 32 anos, casada)

A partir de todas essas articulações, conseguiram juntar os equipamentos necessários da

farinheira e iniciar o processo de produção da farinha de mandioca.

3.4.3. Os problemas com a farinheira

Esses equipamentos, no entanto, apesar de terem sido utilizados pelas mulheres por um

ano, também tinham alguns problemas, e representavam até riscos à saúde das mulheres. As

associadas dizem, por exemplo, que o ralador (ou bolinete) era perigoso, porque tinha partes

soltas e lâminas muito afiadas:

Essa parte era o bolinete, é uma roda assim, é um ralador...Ele é assim, e tipo nele tem uma lata pregada com os furinhos do lado de fora pra por a mandioca, e ali aquele negócio ia ralando mesmo. As vezes a borracha escapava, era um perigo menina, uma borrachona que tem assim, e escapava do motor e vinha em cima da pessoa, era muito perigoso, perigoso viu...(Cristina, 32 anos, casada)

Só que eu num ia muito naquele negócio ali não, porque era muito rápido menina, se a gente num fosse rápido era perigoso até cortar os dedos da gente aqui. (Citnia, 31 anos, casada)

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A prensa também era um equipamento problemático. Ela tinha a função de prensar os

sacos de mandioca ralada e assim tirar toda a água, e era feita com um tronco de eucalipto

bastante pesado. A foto abaixo tirada do equipamento já desativado, apesar de um pouco escura,

permite ter uma ideia do tamanho do tronco:

O tronco que está na parte de cima (enrolado em uma corda laranja) era preso através de

uma corda e um cabo de aço, e as mulheres tinham que movimentá-lo, colocando-o sobre os

sacos com mandioca ralada e retirando-o em seguida. Ao que indicam os relatos das mulheres, o

tronco não tinha apoio muito fixo, o que fazia com que elas tivessem que suportar a maior parte

de seu peso durante a movimentação, e se este se soltava de suas mãos podia atingi-las:

90

Figura 3.7: Prensa feita com tronco de eucalipto.Fonte: Arquivos ITCP/UNICAMP.

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Só que era um perigo menina, se aquilo desse pra escapar ali, ele arregaçava a coisa toda. Porque o pau, muitas vezes você tá enrolando ele aqui assim, e se ele escapa e a gente tá aqui assim, ele pega no queixo da gente e joga a gente longe. Um perigo. Ele chegou a escapar lá. Num sei quem tava na prensa lá que ele chegou a escapar menina, sorte que a pessoa tava um pouco pra trás. Mas se num tá um pouco pra trás, dá um acidente gravíssimo mesmo.(Cristina, 32 anos, casada)

Muito pesado. Nossa, a dificuldade era pra levantar ele, pra gente por o pau debaixo dele pra prensar mais. A gente pegava o toco assim com a mão, pra por debaixo dele. Cansa. Dói o braço, eu tenho problema nessa munhaca minha mesmo. O único bom é que a gente esmagrace. (risos) (Cristina, 32 anos, casada)

Boa, boa ela não era não porque ela era muito pesada, tanto que a gente saiu de lá até 'estuquiada' da coluna e tal. (Cintia, 31 anos, casada).

As mulheres falam também que passavam longas horas trabalhando, principalmente

ralando e torrando mandioca de maneira manual porque, segundo dizem, a mandioca não podia

esperar de um dia para o outro para ser torrada porque azedava, e sofriam com as altas

temperaturas que atingiam os fornos:

a hora que o sol começava a encobrir nos descia o cassete no forno, pra poder...senão nos num guentava o calor, passando mal, a pressão abaixava e como a gente num tinha uma chaminé legal, muitas das vezes a fumaça vinha aos olhos da gente..(Cintia, 31 anos, casada)

E era assim também, quando a gente mexia com essa farinha a gente num deixava a massa dormi, porque azeda. E se a farinha azeda ninguém...(...) Era três horas da manhã nós tava torrando farinha ainda.(Cristina, 32 anos, casada)

Apesar de todos esses problemas, chama atenção como as mulheres relembram dessa

época como um período muito bom, quando passavam horas conversando, cantando, escutando

música, enquanto trabalhavam:

Até tarde menina, e era gostoso...pior é que era gostoso. Nossa, era uma beleza, a gente num via a hora passando. Nossa, era muito bom, muito bom. Ai a gente ficava até tarde mesmo, num tinha preguiça não. (Cristina, 32 anos, casada)

Porque as vezes quando a gente num dá conta de torrar ela toda, a gente passava a farinha no forno esquentava pra no outro dia a gente dar a continuidade da farinha. Mas era uma delícia viu! (Maria, 32 anos, casada)

Nossa! A gente levava o radinho que eu tenho ainda, passava o dia cantava mesmo! Nossa era uma delícia. Pena que num deu continuidade essa farinheira viu. (Cristina, 32 anos, casada)

Mesmo que seguissem motivadas a trabalhar, as mulheres enfrentaram dificuldades com a

vigilância sanitária. Incentivadas por um grupo de repórteres que foi ao local fazer uma

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entrevista, as mulheres contataram os órgãos competentes locais na tentativa de regulamentar a

produção. O resultado disso foi a frustração da associação, que começava a criar expectativas de

regulamentar o produto e comercializar em um número maior de estabelecimentos, além de uma

mudança no discurso das mulheres que passaram a falar da aquisição de equipamentos industriais

como alternativa ao cansativo processo de trabalho:

Quando foi um dia eles (fiscais da vigilância sanitária) apareceram. Apareceram vieram, fizeram visita aqui...num restringiram nada, num foi nada radical...mas simplesmente eles falaram assim 'Olha, pra vocês ter o SIM39 de gente, vocês tem que ter o barracão tanto por tanto, rebocado, com azuleijo, com piso, vocês tem que ter bota, roupa clara' e foi falando tudo que a gente precisava...'equipamento num pode ser esse, tem que ser um equipamento adequado industrial, tem que ser isso, aquilo...'. Ai a gente foi..inclusive até a gente tem o manual do equipamento industrial que a gente foi ver....mas ficava em mais de cem mil reais.... (pausa) Voltamos a estaca zero, desmanchou o grupo de novo. (Carmen, 54 anos, viúva)

A gente quer uma coisa industrial, porque o que nós tinha era tudo a mão...e nós já tava sem força, nós num tava aguentando mais. Tinha que descascar na mão, ralar na mão, e num sei o que....e gente viu uma que ela faz tudo. A única coisa que a gente faz é ajudar a olhar a farinha, mas do resto...ela (farinheira industrial) faz tudo. Ela mesmo descasca, ela mesmo rala, ela mesmo prensa..a gente tem que por, né? Mas é menos trabalho, né? Já sai da prensa que tem tipo um cano assim...a gente abre a prensa já sai já tira num...num caninho assim, que já vai pra bacia desfarelar...isso aí é...(Cristina, 32 anos, casada)

Uma coisa que afetou nós muito foi a vigilância sanitária e transporte. Foi as coisas que dificultou nóis. O ideal mesmo é gente querer aquela..como se diz...mais industrial...que é muito mais prática, mas rápida, né? Então a gente..o processo mesmo seria esse. Só que a gente foi ver e o equipamento da farinheira e na época ficava muito caro pra gente financiar (Cintia, 31 anos, casada).

Todas essas dificuldades, somadas à falta de mandioca nos lotes, falta de transporte para

comercialização e baixos recursos gerados pela empreitada, fizeram com que as mulheres

deixassem de produzir a farinha naquele momento. No entanto, mesmo sem produzir seguiam

buscando alternativas para retomar; por um lado começaram a buscar possibilidades de

financiamento para comprar os equipamentos industriais, e em um determinado momento

fizeram junto com a incubadora uma visita a outro assentado que havia construído em sua casa

uma farinheira.

39 O “SIM” é o nome utilizado pela entrevistada para o selo concedido pela vigilância sanitária e que regulamenta um produto alimentício para que possa ser vendido no mercado formalmente.

92

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3.4.4. Outro modelo de farinheira

Utilizando apenas peças que tinha em sua casa, e partes de equipamentos comprados de

sucata, esse assentado construiu no seu quintal uma farinheira, utilizada por ele e pela mulher

para fazer farinha de mandioca. Os equipamentos, além de terem baixo custo de produção, eram

mais práticos e mais leves que aqueles utilizados pelas mulheres no período anterior.

Destacam-se os modelos de prensa e ralador desenvolvidos pelo assentado, que são

justamente os equipamentos com os quais as mulheres tinham mais dificuldade. A prensa, por

exemplo, foi feita utilizando apenas um “macaco para caminhão”, normalmente utilizado para

suportar a carroça do caminhão para fazer consertos e trocar pneus, e uma bomba de pistão, que

gera energia mecânica através de um processo de compressão de ar, ambos comprados de um

sucateiro. O aparato construído desta forma não exigia esforço físico praticamente nenhum para

ser manuseado:

Esta foto busca ilustrar o modo de funcionamento da prensa. Na parte de cima está

instalado o macaco de caminhão de maneira invertida, ou seja, a parte destacada em vermelho é

aquela que se movimenta e faz pressão sob os sacos de mandioca que são dispostos na estrutura

metálica justo abaixo deste. A bomba pistão é a caixa que está à direita, e é o que aciona o

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MACACOINVERTIDO

BOMBAPISTÃO

SACOS DEMANDIOCARALADA

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macaco. Ela é ativada através da movimentação de sua alavanca, o bastão justamente ao lado da

caixa.

Além da prensa, este produtor adaptou também uma picadeira, um equipamento

normalmente utilizado para cortar o capim em troços pequenos, para ralar a mandioca:

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Figura 3.8: Picotadeira fechada.Fonte: Arquivos ITCP/UNICAMP

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A primeira foto mostra o equipamento fechado e a outra, desde o mesmo ângulo, o

equipamento aberto. A seta vermelha indica onde eram colocadas as mandiocas e a seta azul

mostra o detalhe das lâminas que a trituravam. No caso deste equipamento não existe o mesmo

risco do “bolinete” utilizado pelas mulheres de cortar as mãos para inserir a mandioca, já que há

uma separação e espaço adequado para inserir a matéria-prima.

No entanto, ainda que inicialmente o assentado tenha se disposto a ajudar o grupo

emprestando a própria farinheira ou até mesmo ensinando o grupo e auxiliando para que elas

montassem a própria farinheira, a articulação não deu certo. Durante as entrevistas buscou-se

resgatar quais foram os motivos, mas as associadas não sabiam dizer ou não se lembravam muito

bem como tinha sido o processo.

3.4.5. Os “Professores Pardais” da Agricultura Familiar

Estas experiências encontradas na história da AMA de desenvolvimentos ou adaptações

tecnológicas indicam a significativa capacidade dos agricultores e agricultoras de, a partir de

recursos locais, construir as tecnologias que necessitam para trabalhar, assim como os diferentes

papéis que têm homens e mulheres nesses processos. Por outro lado, evidencia como um cenário

de falta de acesso a uma série de recursos materiais e direitos básicos, gera as demandas por

95

Figura 3.9: Picotadeira Aberta

LÂMINAS

INSERIR MANDIOCA

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encontrar maneiras locais de resolver os problemas tecnológicos, e encontrar alternativas para

manter-se na terra, e como dificuldades extras parecem se impor às mulheres nesse contexto.

A partir das experiências de construção do fogão de cupinzeiro, da adaptação de um

fogão industrial, e das diferentes farinheiras desenvolvidas no assentamento, percebe-se que esses

produtores rurais possuem habilidades técnicas que utilizam para adaptar e construir novas

ferramentas para o trabalho no assentamento. Como nos estudos apresentados por Kline e Trevor

(1996), onde os agricultores dos EUA e suas habilidades técnicas em consertar e fazer novos usos

dos motores dos carros foi importante para a incorporação dessa tecnologia naquele contexto.

Assim como na experiência norte americana, no assentamento do Vergel se observa

também que está concentrado na figura dos homens o papel de “montar”, “consertar” ou

“construir” as tecnologias. As aspas são colocadas para demarcar uma etapa específica daquilo

que representa um processo de desenvolvimento tecnológico, porque se visto de maneira mais

ampla é possível perceber que as mulheres cumprem também papéis importantes na definição

final do artefato.

Na maior parte dos casos aqui apresentados elas são não apenas aquelas que demandam a

tecnologia, mas também as que possuem conhecimentos acerca do processo como um todo, que

articulam as pessoas com habilidades para ajudá-las a construir as tecnologias, e que

provavelmente fazem adaptações pontuais aos equipamentos que só seriam observáveis a partir

do acompanhamento do processo.

De toda forma, ainda que as mulheres cumpram com todos esses papéis no processo,

permanece o papel do homem como aquele que tem habilidades mais específicas na etapa de

construção da tecnologia em si. Parece que os “Professores Pardais” da agricultura familiar

seguem sendo homens, ainda que as mulheres ganhem espaço de interferência e que os

laboratórios não sejam distantes e fechados; ou seja, continua existindo uma relação muito

próxima da tecnologia com a masculinidade, como indicam muitos estudos de gênero e

tecnologia (WAJCMAN, 1998; COCKBURN, 1992).

Essa estreita relação da tecnologia com a masculinidade, no entanto, não é

problematizada pelas mulheres. Ao contrário, elas parecem vê-la com naturalidade, e parecem

carregar uma visão dualista dos papéis, atribuindo com facilidade aos homens as tarefas de

arrumar, consertar e montar equipamentos quebrados. Uma das entrevistadas comenta:

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Se fosse pra gente arrumar, a gente arrumaria, mas como tem o homem ali do lado ali...risos. É assim sabe, mas se fosse pra gente arrumar a gente arrumaria...(Cintia, 31 anos, casada)

Ou seja, parece que elas atribuem aos homens a responsabilidade por “arrumar” os

equipamentos, não porque não saibam fazer, mas porque entendem esta tarefa como papel

masculino.

Além disso, surgiu durante as entrevistas uma fala da Carmen sobre como viam de forma

positiva a aproximação dos homens do grupo nesses momentos, mais que tudo como uma

estratégia para conquistar a confiança deles, e facilitar a participação das respectivas esposas na

associação:

E tem mais sabe porque que era o bom?! Que a gente trazia muito os marido. Que como as mulheres viviam muito reunidas, os maridos se reuniam também. Porque tinha dia que a gente saia daqui as três horas da manhã. Ai os maridos tinha que ficar ajudando nós..como é que fala...secar farinha. (...) E eles vinham pra dentro ajudar as mulheres e cada um ia tralhando junto com a gente. E nessa época nós conseguimos conquistar o Benedito! Que o Benedito era nooossa... (Carmen, 54 anos, viúva)

Segundo as entrevistas, desde o princípio de sua história a associação enfrentou

problemas com maridos que colocavam restrições à participação das mulheres nas atividades da

AMA. Sendo assim, optaram pela estratégia de aproximação e conquista dos maridos como

caminho para facilitar os processos de negociação das mulheres em suas famílias, elemento que

ficará mais claro na parte seguinte do capítulo.

Da mesma forma, é importante destacar que os homens nesse contexto foram mobilizados

para desenvolver tecnologias utilizadas pelas mulheres para gerar renda própria delas, e assim

abrem possibilidades para a construção da autonomia das mesmas. Ao mesmo tempo em que as

tecnologias são moldadas a partir da histórica construção da relação de tecnologia com a

masculinidade, os equipamentos construídos abrem portas para moldar de maneira diferente as

relações de gênero na agricultura familiar, a partir da possibilidade de autonomia financeira das

mulheres. Neste sentido, a experiência associativa se difere dos estudos acerca das mulheres

rurais nos Estados Unidos (KLINE e TREVOR, 1996) onde os homens, na maior parte das vezes,

utilizavam suas habilidades para beneficio próprio e melhora da produção agrícola, contribuindo

pontualmente para a execução das tarefas domésticas.

Por outro lado, o desenvolvimento dessas tecnologias está também relacionado a um

cenário sócio-econômico precário vivido pelos assentamentos rurais, que ainda enfrentam muitas

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dificuldades para encontrarem os meios de manterem-se na terra. A improdutividade de muitas

das terras, a falta de acesso à assistência técnica, luz, transporte, educação, são alguns dos

elementos que contribuem para este cenário (RUA e ABRAMOVAY, 2000). Essa situação de

dificuldade de permanência na terra inclui desafios extras para as mulheres. A AMA encontrou

na organização associativa uma alternativa, mas este caminho impõe dificuldades, derivadas do

fato de ainda serem os homens que detêm a propriedade e os meios de produção nesse contexto.

A experiência com o marido que impunha problemas à organização do grupo em suas

casas é o exemplo mais marcante desse argumento. No entanto, ainda que os casos sejam

bastante diferentes, com um dos maridos explicitamente colocando impedimentos para o

desenvolvimento da produção, e outro apoiando a organização do grupo, as mulheres figuram

nos dois cenários como dependentes daqueles que possuem os meios de produção. Não têm

apenas dificuldades em garantir um local para a produção, mas a maior parte dos equipamentos é

também emprestada dos maridos ou de outros homens assentados.

Ainda que as mulheres da associação demonstrem uma habilidade considerável em

articular os diferentes assentados para garantir a infraestrutura e equipamentos que necessitam

para a produção, as marcas das relações de gêneros na agricultura familiar se fazem muito

evidentes. A concentração não apenas da propriedade da terra e do poder de decisão na mão dos

homens, abordada por muitas autoras desse campo teórico (NOBRE, 2005; PAULILO, 2010),

são fatores que se demonstram muito presentes no assentamento aqui estudado e que têm

implicações diretas nos processos de desenvolvimento tecnológico e de organização do trabalho

da associação.

Este argumento fica mais claro a partir de outra experiência vivida pela associação, não

com a produção da farinha de mandioca, mas com a iniciativa mais recente de comercialização

de cestas agroecológicas.

3.5. As cestas agroecológicas e a divisão sexual do trabalho

Quando se iniciou o trabalho de campo para este estudo em 2009, a AMA estava

comercializando as cestas agroecológicas. Ou seja, as mulheres reuniam produtos in-natura e

processados pelas famílias em cestas, que eram levadas para comercialização em Campinas com

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apoio da incubadora e, ao voltar, os recursos eram repartidos entre as mulheres de acordo com o

que cada uma havia contribuído em produtos.

Em função dessa atividade, a incubadora nesse período estava realizando uma série de

oficinas para auxiliar as mulheres no processo de organização das cestas. Debatiam com as

mulheres quais produtos entrariam na cesta, as quantidades, como colocar os preços, de que

forma repartir os recursos e como fazer as contabilidades.

No entanto, cada vez que a ITCP/UNICAMP voltava com o dinheiro e realizava com o

grupo a contabilidade para reparti-lo, era gerado certo desconforto entre as mulheres porque

umas recebiam mais que as outras. Apesar dos esforços da incubadora em utilizar ferramentas

contábeis que pudessem ser apropriadas pelas associadas, a situação de incômodo não se

modificava. Os ganhos diferentes estavam diretamente relacionados às diferentes quantidades de

produtos colocados por cada mulher na cesta, e isso foi aos poucos ficando claro para todas.

Depois de algumas reuniões em que isso se repetia, uma das associadas explicitou o

conflito, ou seja, que as disparidades nas retiradas da cesta eram consequência da dificuldade de

algumas mulheres em conseguir negociar com suas famílias, mais especificamente com os

maridos, aquilo que poderiam levar para a cesta:

Surgiu mais uma vez o assunto das cestas e ficou tudo meio tenso e mais evidente que o problema dentro da casa da Camila é que o marido não queria deixar ela colocar os produtos na cesta. Neste momento a Carmen sugeriu que fosse feita uma formação com as famílias para trabalhar a importância da AMA com os homens e família. (anotações caderno de campo, 14/10/2009)

A associada que sugere a oficina, na entrevista coloca outra vez esse problema vivenciado

pelas mulheres nas famílias e que chega até o grupo:

Se você for olhar, olha...Cristina num tem o que vende, e vive discutindo..por ela, ela vem porque ela é uma mulher decidida, o marido num impede, ela falou 'vou e acabou'.(...) A Beatriz com a Joana, tem um grande problema com o marido. Porque lá ele num divide isso aqui de terra com elas pra trabalha, porque era uma demanda total. (Carmen, 54 anos, viúva)

Dentro desse contexto, a incubadora organizou uma oficina com o objetivo de discutir a

divisão sexual do trabalho nas famílias. A ideia era debater o conflito abertamente, entender as

formas pelas quais essas relações familiares estavam interferindo nas ações do grupo, para que as

mulheres decidissem coletivamente como enfrentar essa situação-problema.

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A primeira etapa da oficina consistiu em que cada mulher fizesse um desenho de sua casa

e ao redor desta colocasse todos os trabalhos feitos pela família. As mulheres que não sabiam

escrever receberam auxílio das filhas e filhos presentes na reunião. Cumprida esta etapa, os

formadores da incubadora tinham preparado uma tabela em papel kraft para sistematizar todas as

informações, cada mulher apresentava o seu desenho e as atividades eram listadas.

Ao mesmo tempo em que as mulheres falavam as atividades, os formadores anotavam no

papel e faziam perguntas para completar os outros itens da tabela: quem fazia a atividade, quem

decidia sobre ela, e por que era importante. As respostas eram colocadas indicando se eram

homens ou mulheres. Quando outra mulher apresentava, seguia-se o mesmo processo,

adicionando aquelas atividades não citadas anteriormente. O resultado desse processo de

sistematização foi o seguinte:

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Essa sistematização40, somada aos debates que se desenvolveram durante a oficina, e a

algumas falas das entrevistadas, permitem aprofundar uma série de elementos acerca das relações

de gênero nas famílias da AMA, assim como suas consequências para a organização da

associação e na construção social das tecnologias.

Percebe-se inicialmente que se mantém nas famílias uma divisão sexual do trabalho, onde

mulheres são responsáveis pelos trabalhos reprodutivos, como trabalho de casa e refeição, e os

homens pelo trabalho produtivo, como tratar dos animais, horta e roça, aqueles que geram

40 Para facilitar a compreensão e visualização da tabela foram excluídas dessa versão as atividades que foram citadas apenas por uma mulher, a saber: montagem de cestas, eventos, palestras, pesquisas (estas citadas pela liderança, normalmente encarregada das atividades representativas), ir a cidade, médico e ir a escola.

101

Figura 3.10: Sistematização oficina ITCP/UNICAMP.Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da Oficina.

Atividade Quem faz? Quem Decide? Porque é importante?

Adultos Crianças

Ir a Igreja♂ Família

♀♀ ♀ ♀

Horta♂♂ ♂ ♂♂♀ ♀ ♀

Tratar Animais♂♂♂♂ ♂♂♂♂♀♀♀♀ ♀♀

Roça♂♂♂ ♂♂♂♀♀♀ ♀

AMA♀♀♀♀♀ ♀ ♀♀♀♀♀

ITCP Novidades, Organização♀♀♀♀ ♀ ♀♀♀♀

Cursos♂ ♂

Aprender♀♀♀♀♀ ♀ ♀♀♀♀♀

Trabalho de Casa♂

Higiene♀♀♀♀♀ ♀ ♀♀♀♀♀

Refeições♂

Fortalecer♀♀♀♀♀ ♀ ♀♀♀♀♀

Artesanato♀♀ ♀♀

Reunião Escola Acompanhar♀♀ ♀♀♂ ♂

Saber do Assentamento, se organizar♀♀♀ ♀♀♀

Descanso♂

Descanso♀♀ ♀♀

Ajudar a Família Solidariedade♀♀ ♀♀

Comunhão com Deus, aprender a ler a bíblia

Renda , Sustento

Alegria, Trabalho na Roça, Alimentação, Renda

Alimento, Renda

Organização, Renda , Conhecimento, Gosto

Distrair, Esfriar a cabeça, Renda

Reuniões do Assentamento

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“renda”. Ainda que seja evidente que as mulheres transitem na execução de todas as tarefas, no

campo e na casa, segue sendo válida a representação da roça como um lugar masculino e a casa

como feminino. Algumas falas durante a oficina e outras de entrevistas reforçam essa visão:

Mulher ajuda na roça e faz o serviço de casa, e eles só ficam na roça.Quem decide as coisas de dentro da casa sou eu, mas as coisas da roça e terra é ele.Quem decide da escola sou eu, ele nunca vai na reunião, não faz nada.(Falas durante a oficina)

Ele que cuida da roça, ele que se vira. (Cristina, 32 anos, casada)

Eu mesma trabalho e fico com a parte da roupa e com comida, e meu marido que cuida da roça. Ele que planta, que colhe, ele faz tudo na roça.(Cintia, 31 anos, casada)

Essas falas são apenas alguns exemplos de como se mantém essa visão dicotomizada dos

papéis na família, que não apenas denota a roça como responsabilidade do homem, mas também

imputa à mulher a responsabilidade pelo trabalho doméstico e de cuidados. De maneira subjetiva

esse discurso se reproduz ao longo de todo o trabalho de campo.

A tabela mostra também como as mulheres acumulam jornadas de trabalho. Trabalham na

roça, na associação, na igreja, no assentamento e além disso assumem sozinhas, ou algumas

vezes com ajuda dos filhos e filhas, as tarefas reprodutivas. Apesar disso, algumas falas

demonstram que não veem esse lugar com tanta naturalidade, e questionam o fato de os homens

não contribuírem com os serviços domésticos:

Do tempo da minha mãe pra cá a mulher se libertou, foi trabalhar fora. A mulher ganhou muita liberdade, mas ao mesmo tempo muita responsabilidade. O homem não entrou na divisão de tarefas. (Carmen, 54 anos, viúva)

Num lava nem uma colher pra comer. Num faz...ele fala que num é obrigação dele não, que a obrigação dele é no mato. (risos). É filha...(..) porque se eu ajudo ele na roça num tem porque ele não ajuda um pouquinho dentro de casa também, né? Num tem nada a ver, mas ele fala que trabalha mais do que eu. Que eu fico dentro de casa e num faço nada. É...que na roça o serviço é mais pesado, né?(Cristina, 32 anos, casada)

Se por um lado elas se queixam que os homens não executam com elas o trabalho

reprodutivo, por outro percebe-se a marca de um processo histórico de valorização diferenciada

dos trabalhos masculino e feminino. A fala de Cristina quando diz “na roça o serviço é pesado,

né?”, nos indica que de alguma forma ela concorda que o trabalho realizado pelos homens seja

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mais cansativo, exija mais energia do que o feito por ela, e nesse caso poderia ser uma

justificativa para a relutância dos homens de não contribuir ao serviço doméstico.

Buscando problematizar essa valorização diferenciada que se fazem dos tipos de trabalho,

em um terceiro momento da oficina os formadores apresentaram às mulheres uma tabela que

sistematizava os trabalhos feitos por homens, por mulheres e aqueles mistos:

Os resultados dessa tabela possivelmente estão influenciados pelo fato de que a oficina

tenha sido realizada exclusivamente com as mulheres, mas o seu objetivo central era evidenciar a

variedade de tarefas realizadas pelas mulheres e a importância delas para a sobrevivência da

família. Quando os formadores perguntam se existem atividades exclusivamente masculinas, as

mulheres brincam que a única atividade só deles é a diversão.

Apesar disso, em um determinado momento do debate uma das mulheres diz “mas eles

trabalham mais”. Em seguida sua fala é vaiada por outras mulheres participantes que insistem

que a as mulheres trabalham muito, com o que ao final ela concorda.

Esse episódio é representativo de como a construção histórica das relações de gênero que

desvaloriza o trabalho feminino deixou raízes na vida dessas mulheres. Apesar de estarem em

processo de desconstruir essas imagens e tentarem valorizar e visibilizar seu trabalho, as

mulheres ainda se deparam com ideias incorporadas que valorizam de forma diferenciada os

trabalhos masculinos e femininos.

103

Figura 3.11: Sistematização 2 oficina ITCP/UNICAMP.Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da Oficina.

Mulheres Homens MistasAMA IgrejaTrabalho na casa HortaRefeições AnimaisCursos Roça

ITCPReunião Assentamento

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A forma como essa divisão sexual do trabalho, que tende a desvalorizar o trabalho

feminino, segue presente nas relações de gênero no campo é abordada por muitas feministas

trabalhando sobre o tema (PAULILO, 2004; MELO e DI SABATTO, 2008; HIRATA e

KERGOAT, 2003). Essas autoras mostram como a sociedade incorpora essa ideia às suas ações,

a partir de uma visão naturalizada da divisão, que justifica através da biologia ou religião a

permanência dessa desigual valorização dos trabalhos. E ainda que em processo de

desconstrução, percebe-se que essas ideias pré-construídas têm muita força e se refletem nas

ações e organização da vida social.

Essa valorização diferenciada dos trabalhos, que torna menos visível os trabalhos

femininos, tem suas implicações sobre as relações de poder dentro das famílias. Como pode-se

ver pela tabela, e em algumas falas das mulheres, o homem ainda ocupa nos lotes um lugar

privilegiado no que diz respeito às decisões sobre produção e uso dos recursos gerados pelo

trabalho familiar:

A propriedade não é da família é de um dono. Na minha casa é ele que decide com o que vai gastar o dinheiro.Na minha casa quem decide sou eu, mas é ele que dá o dinheiro.Sou visita no lote.(falas durante a oficina)

Esse papel ainda ocupado pelos homens de “chefe de família” tem uma série de

implicações na vida das mulheres e dos jovens. Aparece em alguns momentos no discurso das

mulheres uma preocupação em como manter a juventude no assentamento, e alegação de que

muitos se desmotivam a ficar no campo pela dificuldade de inserção na vida e produção familiar,

que está concentrada na figura do pai.

A experiência com as cestas agroecológicas e as dificuldades de algumas mulheres em

trazerem produtos é apenas um dos exemplos de como essas relações desiguais de gênero

repercutem na organização da associação. Dentro ainda do processo de comercialização das

cestas, mas em momento posterior a esta oficina, para citar outro exemplo, a liderança do grupo

apontou que algumas mulheres estavam usando veneno em suas plantações, e por isso

desrespeitando a proposta agroecológica do grupo.

Tem. Igual eu falo pra você, esse grupo meu num posso falar nada de mal delas. A única coisa que me radicalizei com o grupo foi por causa dessa história de veneno, mas não por causa delas, mas por causa dos maridos. Porque é assim sabe Bruna...'Quem manda sou eu, eu vou jogar veneno e acabou', foi o que a Joana falou

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'Olha Carmen, o que eu posso fazer...marido falou que vou jogar é veneno.'...e aí? Vai fazer o que? É igual o marido da Cristina, falou assim 'Aqui quem manda sou eu, eu faço o trabalho do jeito que eu quero.' (Carmen, 54 anos, viúva)

Seu incômodo vinha, sobretudo, porque ela, como mulher viúva, dependia de seu

cunhado para ajudar a cuidar da terra, e estava tendo problemas em negociar com ele para que

não utilizasse veneno, mas se mantinha firme em sua postura, enfrentando o familiar. E

“radicalizou” ao saber que as outras mulheres não faziam o mesmo.

Esse poder dos homens sobre as famílias e os lotes aparece em diversos momentos da

análise. Foram citadas anteriormente as dificuldades enfrentadas pelas mulheres para conseguir

espaço onde produzir alimentos ou farinha, e de terem acesso aos equipamentos devido às

disputas com os maridos, que como “donos” da terra e dos meios lhes impunham restrições.

Além disso, ao longo de sua história a associação sempre teve problemas com os maridos

que colocavam impedimentos à participação das mulheres no grupo:

Cristina: Ah, eu amava. Apesar de meu marido ser cri-cri, né?Entrevistadora: Seu marido num gostava?Cristina: Não, até hoje ele num gosta que eu fique envolvida em reunião. É...ele num gosta não.Entrevistadora: E por que?Cristina: Ele diz que eu (deixo?) as obrigações pra ficar atrás de reunião. (risos) (Cristina, 32 anos, casada)

Dava problema porque o Benedito ele se sentia muito sozinho. Ele sentia muito sozinho demais e a Aline então era pequenininha e eu tinha outro também que era pequeno e num fazia nada direito em casa. A casa ficava uma bagunça, só o restaurante só. Daí eu tinha uma senhora que morava comigo, uma senhora de 70 anos, que eu cuidava dela também. Então ficava difícil, eu sai do restaurante mais por causa dela. Por causa dessa mulher de mais de 70 anos, era cunhada minha, tinha que cuidar dela. (Maria, 32 anos, casada)

Tinha...tinha duas...acho que a maioria ali. Maioria tinha problema com o marido. (Beatriz, 49 anos, solteira)

Como indicam os estudos de Faria (2011) e Dantas (2005), esse não é um problema

exclusivo da AMA, mas enfrentado pela maior parte das organizações das mulheres no campo,

muitas vezes impossibilitadas de participar das ações por restrições dos maridos.

Outro elemento que surge na fala de Maria é a conciliação, ou a impossibilidade de fazê-

la entre o trabalho doméstico e as atividades da associação. Em seu caso ela chegou a ter que

deixar as atividades da AMA naquele momento porque tinha que cuidar de uma pessoa idosa,

mas durante o trabalho de campo as reuniões sempre contavam com a presença de crianças, dos

105

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filhos e filhas das associadas, e frequentemente acabavam mais cedo, ou havia mulheres que

tinham que sair antes, para ir para casa preparar o jantar.

As mulheres da AMA, no entanto, indicam que houve mudanças nessas posturas dos

maridos, pelo menos no que diz respeito à participação das mulheres nas reuniões e atividades do

grupo, quando comparado com os momentos passados da organização:

Entrevistadora: Antes foi mais difícil?Maria: Antes foi mais difícil, agora não, agora tá tudo acostumado.Entrevistadora: Hoje em dia os parceiros num colocam muito problema pra participar?Maria: Não. Hoje não, hoje tá tudo liberado pra nós. (risos) (Maria, 32 anos, casada)

A maioria aqui porque...na verdade naquela época nós tinha muuuito marido...durão. Hoje já melhorou porque as mulher já se resgatou muito...nossa...mas tinha homens que se não, não, naquela época. (Carmen, 54 anos, viúva)

Essa fala da Carmen acerca do “resgate” das mulheres ilustra em grande medida a postura

da AMA com relação a qual é sua principal estratégia no caminho para mudar a vida das

mulheres.

No final da oficina sobre as cestas de agroecologia, quando as mulheres chegaram ao

ponto de debater quais seriam os próximos passos para resolver o problema daquelas que não

conseguiam colocar produtos na cesta, elas inicialmente apontaram as limitações e complicações

de resolver “o problema das famílias”. Resgataram a partir daí a experiência pessoal de algumas

delas sobre como foram estabelecendo diálogos na família para ganharem mais espaço e

liberdades.

Para elas é muito importante o papel da associação de “resgatar” as mulheres, acreditando

que através do processo de conscientização das mesmas, elas podem modificar as relações dentro

das famílias. Têm posições muito conciliadoras, conhecedoras que são das dificuldades de

debater os problemas das famílias e de que as mulheres que têm que fazer esse papel e, aos

poucos, a partir de sua conscientização, ir transformando a realidade das casas.

Outra opção trazida pelas mulheres é de aproximar os homens das atividades feitas pela

AMA, acreditando que se eles tiverem mais conhecimento dos trabalhos que desenvolvem na

associação poderiam respeitá-las mais, ou seguir o modelo de outros maridos que apoiam o

grupo, e assim aceitar melhor a participação das esposas nas atividades. O que nos remete ao

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tema da tecnologia, quando certas habilidades técnicas tidas pelos homens são utilizadas como

ferramenta para aproximá-los da associação.

Carmen, a liderança da associação, durante a entrevista foi a única que comentou sobre a

possibilidade das mulheres buscarem uma área coletiva para desenvolverem suas atividades.

Segundo conta, antes mesmo de começarem o trabalho com agroecologia tentaram negociar com

maridos e assentamento um pedaço de terra para trabalharem, mas não conseguiram:

'Nós queremos fazer uma horta coletiva, mas nós num tem área coletiva.', 'Então vamo descubrir uma área coletiva.' Ai porque...dentro do sitio, marido nenhum dava área pro outro trabalhar dentro não, e até hoje ainda é assim. Ai meu marido falou assim 'Olha se vocês quiser eu libero meu sitio, se as mulherada quiser trabalhar meu sitio inteiro, tá aí!', e ele ainda brincou 'vou administrar'. Ai mesmo assim, a gente falou, a gente num quer não, a gente quer fazer uma área coletiva e a gente vamo procurar. 'Tem uma área coletiva do núcleo, vamo lá!', aí descemos, todas nós tem um pedaço de terra lá, até hoje a gente tem. Ai nós fizemos a reunião com as famílias e fomos pedir esse pedacinho de área. Não foi cedido pra gente....Sabe porque?! A mulher aqui sempre teve uma restrição muito grande pra trabalho. (Carmen, 54 anos, viúva)

Esses problemas vivenciados pelas mulheres da AMA remete às contribuições de

Siliprandi (2009) e Paulilo (2010) sobre as dificuldades enfrentadas pelas mulheres rurais em

modificar as relações de gênero ao mesmo tempo em que buscam lutar pela agricultura familiar,

preservando as relações familiares e comunitárias.

A experiência associativa trás para as mulheres a possibilidade de autonomia e melhora

de autoestima, mas ainda têm que enfrentar os desafios que permanecem relativos à

concentração das terras, ao poder de decisão na mão dos homens, assim como a responsabilidade

exclusivamente feminina pelo trabalho reprodutivo e a desigual divisão dos recursos gerados pelo

trabalho familiar.

3.6. Processamento de alimentos: a apropriação da tecnologia doméstica

Apesar das experiências até aqui apresentadas destacarem o poder dos homens nos lotes,

como proprietários dos meios, e o papel central que ocupam nos momentos de desenvolvimento

tecnológico, uma ampliação do olhar permite ver o protagonismo das mulheres na apropriação e

adaptação dos processos de processamento de alimentos. Portanto, aqui exploram-se as distintas

cozinhas já organizadas pela AMA, com a intenção visibilizar essas experiências e entender as

distintas nuances das relações de gênero a partir desse olhar.

107

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Além da cozinha comunitária e do processamento de farinha, a associação se

responsabilizou pela cozinha da creche (1998-2000), organizou um restaurante (2001-2003), e

processou compotas, pães e salgados a partir da agroecologia (2004-2006). Durante a creche,

faziam refeição para as crianças, no restaurante comercializavam marmitas, e na época que

entraram em contato com a agroecologia passaram a processar os derivados da farinha de

mandioca e frutas da estação.

Comum a todas as experiências são as dificuldades das mulheres em conseguir um local

adequado para produzir, e as articulações feitas para disponibilizar os equipamentos, que vinham,

sobretudo, de doações e de suas próprias casas.

Na época da creche, as mulheres fizeram pedido ao Estado para utilizar as edificações

onde antes estava instalada a sede do Horto Florestal, sendo concedido o espaço. Este barracão

estava em boas condições e inclusive contava com uma cozinha, ainda que sem equipamentos.

Segundo seus relatos, juntaram equipamentos e utensílios que tinham em suas casas, como

panelas, colheres e vasilhas e receberam doações de uma igreja, que trazia entre outros itens um

fogão a gás. E foi dessa maneira que garantiram a produção de alimentos para as crianças.

Depois que a creche acabou, instalaram no mesmo barracão o restaurante. Utilizaram os

equipamentos que ficaram ali, e levaram das casas botijão de gás e utensílios que faltavam e ali

produziram as marmitas. Uma das entrevistadas comentou que nesta ocasião elas utilizavam

também um fogão à lenha, porque o fogão à gás não era suficiente, e quando questionada se

tiveram ajuda para fazer esse fogão, Carmen diz:

Nãããoo quem fez foi a Rosana..Rosana fez o fogão de lenha.(Carmen, 54 anos, viúva)

O restaurante servia todas as refeições do dia, e para conseguir atender a todas as

demandas, as mulheres se organizavam em turnos:

Tinha almoço, tinha o café da manhã. Quem fazia....nós levantava cinco horas da manhã pra fazer o café da manhã e fazer o almoço e depois do meio dia pra tarde a outra equipe entrava. E ficava até 11h da noite. (Maria, 32 anos, casada)

Na época do projeto de transição agroecológica receberam capacitação para processar

derivados de mandioca e frutas do assentamento; motivadas pelo processo, montaram uma

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cozinha na casa da Carmen para produzir e comercializar os produtos41. A foto mostra alguns

produtos feitos nessa época:

Após o fechamento do restaurante, o barracão onde estava instalado o mesmo foi deixado

pelas mulheres e ocupado para diferentes usos pelo assentamento. No entanto, a associação que já

tinha organizado tantas atividades nesse espaço, no ano de 2007, decidiu entrar com pedido ao

ITESP para que tivessem a concessão legal do barracão para o grupo. Após um processo de

negociação o pedido foi atendido e a AMA passou a ser o grupo com direito legal de uso do

espaço.

41 Esse momento coincide com a produção de farinha de mandioca, mas parece que também o antecede.

109

Figura 3.12: Mandioca chips e biscoitos feito pela AMA.Fonte: Arquivos ITCP/UNICAMP.

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Como mostram as fotos, apesar de atualmente as mulheres terem garantido esse espaço,

após alguns anos em desuso ele está em condições estruturais muito ruins, as portas estão todas

quebradas, a maior parte das janelas não tem vidros, o piso está quase todo destruído e uma parte

considerável do barracão está destelhado. Estas condições inviabilizam, por exemplo, sua

utilização para o processamento de alimentos. Além disso, outro problema do local é que está

muito distante das casas das mulheres. O barracão fica na zona central do assentamento,

enquanto a maior parte das mulheres vive do outro lado deste, são 30-40 minutos de caminhada

entre suas casas e o espaço. Assim, ainda que seja uma grande conquista para a AMA, os atuais

debates giram ao redor das possibilidades de uso do local.

110

Figura 3.13: Barracão AMA, frente.Fonte: Arquivos ITCP/UNICAMP.

Figura 3.14: Barracão AMA, lateral.Fonte: Arquivos ITCP/UNICAMP.

Figura 3.15: Barracão AMA, detalhe teto.Fonte: Arquivos ITCP/UNICAMP.

Figura 3.16: Barracão AMA, detalhe piso.Fonte: Arquivos ITCP/UNICAMP.

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O barracão foi uma das conquistas do grupo na tentativa de viabilizar um espaço onde as

mulheres pudessem não só organizar suas atividades formativas, mas também um espaço de

produção onde tivessem a possibilidade de trabalhar com o processamento de alimentos. No

entanto, como mencionado na seção de sua história, a disputa delas por projetos de construção de

cozinhas no assentamento se iniciou no ano de 2003, em tentativa de articulação com o ITESP e

segue até os dias de hoje.

Uma experiência de tentativa de financiamento em particular, quando as mulheres se

articularam com a cooperativa do assentamento para fazer um projeto de cozinha industrial, é

especialmente significativa para entender como esse acúmulo de conhecimentos acerca do

processamento de alimentos pelas mulheres repercute em suas possibilidades de ação e

articulação no assentamento.

3.7. Disputas ao redor de um projeto de cozinha

Em princípios de 2006 a AMA iniciou a construção de um projeto de cozinha industrial

em conjunto com a cooperativa do assentamento, que estava em fase de estruturação. Para

entender como se deu essa articulação e as disputas geradas a partir daí, é necessário voltar um

pouco na história e compreender o que é, e como surge essa cooperativa.

A ITCP/UNICAMP, a partir de um financiamento do governo federal chamado Programa

Nacional de Incubação (PRONINC) começou no ano de 2005 a trabalhar no segmento de

agricultura familiar. O projeto previa iniciar a formação de empreendimentos autogestionários,

em assentamentos rurais da Região Metropolitana de Campinas (RMC).

Sendo assim, segundo relatos da época, a incubadora começou a fazer articulações com os

movimentos sociais rurais e assentamentos da região à procura de interessados na proposta. O

Assentamento do Horto-Vergel, na figura da APPR (Associação dos Pequenos Produtores Rurais

12 de outubro) foi um dos grupos que demonstrou interesse.

No decorrer das reuniões iniciais com a APPR, um diagnóstico participativo indicou que

a principal dificuldade dos agricultores era com a comercialização de seus produtos,

especialmente porque na maioria dos casos estes passavam pela mão de atravessadores42. A

42 Como os assentados não possuem transporte próprio para ir aos pontos comerciais entregar seus produtos, acabam tornando-se dependentes de comerciantes atravessadores, que vão até os assentamentos e passam pelas

111

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cooperativa escolheu como prioridade viabilizar a melhor venda dos produtos e, para tanto,

dedicaram esforços a encontrar possíveis compradores e novos espaços de venda nas cidades

próximas. Por outro lado, o diagnóstico apontou também como possíveis soluções para as

dificuldades a aquisição de um trator, que permitiria aumentar a produção, ou a construção de

uma cozinha industrial, para agregar valor aos produtos.

Com a saída de um edital público que financiava a instalação de cozinhas em

assentamentos rurais, a incubadora juntamente com os assentados, decide escrever um projeto e

enviar ao governo.

Até esse momento a equipe de incubação avaliava que a participação de homens e

mulheres na cooperativa se dava de maneira bastante desigual, sendo que eles eram a maior parte

do grupo, concentravam mais as falas e assim interferiam mais nas decisões:

Por outro lado, a equipe de incubação da ITCP/Unicamp avaliou que a participação de mulheres e homens na cooperativa acontecia de maneira desigual: os homens, enquanto titulares do lote da família, responsáveis pela gestão dos créditos agrícolas, coordenadores de grupos do assentamento, tinham maior poder de voz nos debates e decisões dos rumos da cooperativa, enquanto as mulheres, grupo minoritário, tinham dificuldade de se inserir nos processos produtivos e decisórios da cooperativa. (CESTARI, PREVIATO e VASCONCELLOS, 2007, p. 2)

Foi nesse cenário, no final de 2005, que a incubadora começou a construir com a

cooperativa o projeto de cozinha industrial para o assentamento. Com o auxílio de uma

estagiária da Engenharia de Alimentos43, a equipe de formadores iniciou a realização de oficinas

no intuito de construir de maneira participativa o projeto, buscando definir junto aos agricultores

onde seria instalada a cozinha, quais eram os produtos que pretendiam processar, em que época,

como seria o processamento e quais equipamentos seriam necessários.

Logo no inicio da realização dessas oficinas os assentados comentaram que existia no

assentamento um grupo de mulheres que já havia se envolvido no processo de construção de um

projeto de cozinha industrial para o assentamento junto ao ITESP. Esse grupo era a AMA, e foi

então feito um convite para que elas participassem da construção do projeto e, neste momento,

elas se integraram às reuniões da cooperativa.

Isso modificou consideravelmente a dinâmica das reuniões, que passaram a ser lideradas

pelas mulheres, com muito mais conhecimento sobre os equipamentos e demandas para a

propriedades comprando a produção agrícola a preços muito baixos e que depois vendem no mercado.43 Pesquisadora dessa dissertação, como melhor explicado em “Caminhos da Pesquisa(dora)” no inicio deste

mesmo capitulo.

112

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cozinha, em contraposição às falas de descontentamento dos homens que seguiam querendo

disputar pela aquisição de um trator que, segundo eles, representaria mais ganhos para o

assentamento (CESTARI, PREVIATO e VASCONCELLOS, 2007).

Apesar do clima de disputa, e da postura dos homens de que este era um projeto para as

mulheres, as oficinas seguiam acontecendo e coletivamente, com mediação da engenheira,

decidiram o local onde seria instalada, assim como os produtos e equipamentos necessários.

A cozinha seria utilizada para processar derivados de mandioca e frutas, como por

exemplo, pães, biscoitos, bolos, chips, geleias e doces, e ficaria instalada em uma casa na zona

central do assentamento. Para o processamento destes produtos a cozinha foi elaborada, seguindo

as normas vigentes da vigilância sanitária, dividida em três setores. Um deles era destinado ao

pré-preparo da matéria-prima, onde as frutas, hortaliças e verduras seriam recepcionadas,

higienizadas e descascadas. Em seguida, passariam ao setor de processamento em si, onde seriam

realizados os distintos processos, dependendo do produto: cortar, triturar, ralar, fritar, cozinhar,

assar, Por fim, os produtos prontos seriam levados ao setor de embalagem e armazenamento,

como pode ser visto na planta do projeto:

Figura 3.17: Planta projeto ITCP/SPM 2006.Fonte: ITCP/SPM 2006.

113

1,80

0,60

áreaexterna10m

2

4,50

0,400,40

0,40

0,60

0,60

0,60

35

4 6 7

0,80 0,90

0,60 0,60

0,90

0,908

9 10

0,60

0,60

0,80

0,80

1112

1,50

0,6014

0,30

15

17

16

1,80

0,30

2,00

8,75

4,00

área interna 35m

2

2,00

0,70

0,60

1

1,50

2

18

13

0,40

0,40

0,80

0,70

Legenda: vide memorial descritivo

Projeto ITCP/Unicamp

Medidas em metros

Escala aproximada: 1:30

Bruna Mendes de VasconcellosEngenheira de Alimentos

Paredes

Divisórias

Prateleiras

Janelas

Área sobre coifa

LEGENDA

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Além desses equipamentos foram solicitados também ao projeto recursos para fazer

reformas nas instalações e para compra de utensílios para a cozinha, conforme mostra a tabela

abaixo:

Finalizada a etapa de construção coletiva do projeto, o mesmo foi enviado em março de

2006 à Secretaria de Política para as Mulheres (SPM). O projeto incluía a reforma do prédio e

114

Tabela 3.1: Equipamentos Projeto ITCP/SPM.Fonte: ITCP/SPM 2006.

Equipamentos Equipamentos1 Mesa para seleção e descascamento 10 Mesa de aço inox, com rodízios 22 Tanque triplo para lavagem e sanitização 11 Geladeira3 Pia para lavar mãos 12 Freezer Vertical4 Fogão industrial duas bocas 13 Seladora 5 Fritadeira elétrica água/óleo 14 Mesa de inox para embalagem6 Secador à gás 15 Prateleiras para estoque de embalagens não utilizadas7 Forno à gás 16 Armário para estoque de insumos8 Balcão para apoio de equipamentos 17 Armário para estoque de produto acabado9 Mesa de aço inox, com rodízios 1 18 Coifa

N° do ítem

N° do ítem

Tabela 3.2: Itens de instalação e utensílios Projeto ITCP/SPM.Fonte: ITCP/SPM 2006.

Instalações e reforma UtensíliosTelha cerâmica Panelas semi industriais Madeiramento para 80% da cobertura Peneira galvanizadaCalhas Cesto para lixo com tampaJanela de ferro Placa verdePorta de alumínio Caixa plástica 40 lRevestimento / Impermeabilização Utensílios variadosInstalação hidráulica – água friaInstalação hidráulica - esgotoInstalação elétrica – sistema de entrada Luva profissional para fornoQuadro de distribuição e fiação Avental descartávelTomadas / Interruptores Bota plásticaTomadas especiais Óculos de proteçãoTela com esquadria Formas de pães, bolos e docesPiso ---Tinta / Cal / Cimento / Argamassa ---Mão de Obra ---

Touca descartável (pacote 100 unid)Máscara descartável (pacote 50 unid)

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compra de equipamentos para a cozinha, a capacitação de homens e mulheres para as atividades

produtivas da cooperativa, assim como formações específicas em gestão de cooperativas e

gênero. O valor total pedido era de R$83.000, dos quais R$37.000 estavam destinados aos itens

acima, e o restante do recurso era para gastos com transporte e serviços de terceiros para a

reforma e capacitações.

O envio deste projeto deixou suas marcas na cooperativa em processo de formação.

Segundo relatório enviado ao PRONINC pela ITCP/UNICAMP, as tensões criadas nesse conflito

se somaram às dificuldades enfrentadas pela cooperativa para viabilizar a comercialização de

seus produtos, devido à falta de transporte e padronização dos produtos. E assim, as reuniões

com a cooperativa começaram a contar cada vez com menos participantes, até que, em maio de

2006, um dos poucos cooperados homens que ainda participava das reuniões junto com a

ITCP/UNICAMP e a AMA, decidiram que seria melhor seguir a incubação com a AMA.

Diferente da cooperativa com dificuldades de articulação e baixa participação nas reuniões, a

AMA estava mais mobilizada e com maior identidade de grupo.

Ao final, apesar de aprovada, a verba para realização do projeto não foi liberada. O

problema neste caso foi a impossibilidade por parte da Unicamp em enviar dentro dos prazos

estipulados os documentos exigidos para celebração do convênio, conforme explica a carta

enviada pela AMA e ITCP/UNICAMP à SPM em 2007:

(..)No entanto, os documentos solicitados eram incomuns para o procedimento da Unicamp naquele momento, pois a mudança da lei para os convênios com o governo federal era recente e a Universidade ainda não havia se adequado para tal. Por isso, diante do curto prazo para a entrega dos documentos, não foi possível seu envio. (CARTA SPM, 2007)

A carta enviada à Secretaria tinha como objetivo justificar a impossibilidade de enviar os

documentos, assim como pedir a reconsideração do projeto enviado no ano anterior. No entanto,

a tentativa não obteve resposta da SPM.

Nos anos que se seguiram sobre incubação da ITCP/UNICAMP, a AMA junto com a

incubadora continuou buscando formas de viabilizar a construção da cozinha. No entanto, os

editais públicos para infraestrutura de empreendimentos solidários são muito poucos, e os poucos

projetos enviados não foram aprovados.

115

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3.8. Cozinha: lugar de mulher?

Um olhar voltado para as tecnologias domésticas, como defendido por autoras dos ESCT

(COWAN, 1983; SILVA, 1998), permite compreender dimensões das relações de gênero e

tecnologia normalmente não visíveis. A valorização desse espaço e prática tradicionalmente

feminina permite enxergar outras dimensões das relações de poder entre os gêneros, e também as

novas possibilidades de ruptura das desigualdades.

As diferentes experiências apresentadas da AMA com o processamento de alimentos,

apesar de evidenciar como a apropriação dessas tecnologias representa um reflexo da divisão

sexual do trabalho no espaço público, que pré-estabelece a cozinha enquanto lugar feminino, seu

uso não necessariamente está atrelado à reprodução das desigualdades de gênero. Na medida em

que tais tecnologias são apropriadas pelas mulheres para participar de processos organizativos

comunitários, e envolver-se politicamente, ou para gerar renda, trazendo possibilidades para sua

autonomia financeira, demonstram seu potencial para modificar as relações de gênero no campo.

Na experiência de construção do projeto com a cooperativa esses conhecimentos técnicos

que as mulheres possuíam sobre o processamento de alimentos, por exemplo, foi elemento

importante para sua inserção em espaços políticos do assentamento, antes ocupados

principalmente por homens.

No âmbito deste projeto percebe-se que a tecnologia cumpriu um papel de intermediar os

conflitos de gênero. Ou seja, a escolha de um projeto tecnológico, de trator ou cozinha, não

representava uma escolha puramente técnica, o que nunca existe, mas neste caso específico abria

a possibilidade de inserção social dos gêneros de forma distinta no assentamento. E por essa

razão, se tornou um conflito dentro da cooperativa.

Enquanto a cozinha representava a possibilidade de inserção das mulheres na cooperativa,

como conhecedoras dos processos e produtos envolvidos, encarregando-se, assim, daquilo que

seria uma importante via de comercialização da produção agrícola do assentamento, o trator

traria maiores possibilidades de inserção dos homens que, ao serem responsáveis pela produção

agrícola nos lotes, seguiriam mantendo seu lugar de poder. Isto, tendo em vista que o

assentamento não possui uma área coletiva para produzir, e portanto a produção se restringe aos

lotes familiares.

116

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Em comparação com as experiências anteriores, quando as mulheres articularam

diferentes espaços produtivos, percebe-se que enquanto elas desenvolveram as atividades sem

competir diretamente por recursos ou espaço com os homens, elas tinham mais facilidade em

movimentar-se. Entretanto, quando foi necessário priorizar o gasto de recursos, que são bastante

escassos no assentamento, o conflito se abriu e a disputa de interesses se fez nítida.

Essas experiências com as cozinhas e as possibilidades de inserção delas nos espaços a

partir desses conhecimentos representam um ponto central e paradoxal. Por um lado, são

resultado de um processo social e histórico que constrói o trabalho reprodutivo como aquele

exclusivamente feminino, e por outro essas mulheres se organizam e ganham sua autonomia a

partir da extensão ao mundo público daquelas tarefas que já desenvolviam dentro das casas há

muito tempo.

A associação que se organiza para atividades consideradas de extensão do trabalho

doméstico, a exemplo das cozinhas, da creche e da agroecologia que abarca uma dimensão do

cuidado com a alimentação e saúde da família, ganha a partir daí sua força e visibilidade. Estas

são atividades que permitem visibilizar as capacidades e potenciais da mulheres, os

conhecimentos que possuem acerca do processamento de alimentos, e suas habilidades também

para adaptar processos tecnológicos. E constituem uma ferramenta para a valorização de

trabalhos tradicionalmente desvalorizados, restritos ao âmbito doméstico e sob responsabilidade

das mulheres.

No entanto, ainda que tragam essas possibilidades, é importante não naturalizar essa

relação da feminilidade com o papel de mães e cuidadoras, como aquelas que cumprem com as

tarefas de garantir alimentação e saúde das famílias e comunidades. Para tanto, deve-se procurar

compreender suas raízes sócio-históricas e questionar os padrões estabelecidos da divisão sexual

do trabalho de maneira ampla.

Essas experiências vivenciadas pela AMA permitem perceber a imbricação das relações entre

gênero, tecnologia e Economia Solidária. Demonstram como esses elementos estão relacionados

e interagem na realidade de uma organização associativa, e como as escolhas tecnológicas, a

capacidade de apropriação e adaptação, as relações de dependência, estão diretamente vinculadas

às disputas estruturais próprias das relações de gênero na sociedade.

117

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CONCLUSÕES

Este estudo teve a intenção de refletir sobre as relações entre gênero e tecnologia no

contexto das recentes experiências da Economia Solidária. Adotam-se, para tanto, como marco

teórico as aproximações feministas no âmbito dos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia e a

compreensão de gênero e a de tecnologia como construtos sociais. Tendo em vista o estudo de

caso selecionado, uma associação de mulheres rurais, contextualizam-se a agricultura familiar no

Brasil, as relações de gênero nesse cenário, assim como as características próprias dos

empreendimentos de economia solidária organizados pelas mulheres no campo.

O estudo de caso da Associação de Mulheres Agroecológicas do Horto-Vergel (AMA),

soma-se a outros estudos feministas da tecnologia (WAJCMAN, 2000; COCKBURN, 1992;

FAULKNER, 2000) ao evidenciar como as relações de gênero modelam e são modeladas pela

tecnologia. A pesquisa indica que as relações de gênero nos assentamentos rurais, ainda

marcadas pela pouca visibilidade do trabalho feminino e o difícil acesso das mulheres às decisões

e recursos familiares, por um lado perpassam a relação com a tecnologia, e por outro, são

desestabilizadas pelo fortalecimento e valorização do trabalho das mulheres organizadas de

forma associativa.

Observou-se que um dos principais problemas enfrentados pela associação desde o

princípio de sua organização é a falta de acesso a um espaço físico e equipamentos para a

produção, devida à falta de recursos familiares ou públicos. Apesar disso, para contornar essas

carências, as mulheres mobilizaram distintos atores sociais e adaptaram inúmeros processos

produtivos e equipamentos, seja para atender às necessidades básicas de alimentação da

comunidade, seja para desenvolver atividades produtivas e gerar renda para as próprias mulheres.

O olhar mais atento às experiências da AMA construindo e adaptando processos e

equipamentos revela que distintos grupos sociais são articulados pelas mulheres. Por um lado

percebe-se que ainda existe uma permanência da histórica relação da tecnologia com a

masculinidade, e que os homens dentro do processo de construção tecnológica cumprem

principalmente o papel de montar ou construir os equipamentos. São os homens os “Professores

Pardais” da Agricultura Familiar, que possuem habilidade para desenvolver tecnologias a partir

dos recursos locais, contribuindo ao trabalho das mulheres.

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Por outro lado, percebe-se que as mulheres também cumprem papéis importantes no

processo de desenvolvimento tecnológico como um todo. Elas são não apenas conhecedoras dos

processos produtivos, mas também são elas que colocam as demandas, articulam os homens para

ajudar, e são usuárias finais dos equipamentos e produtos construídos.

Observa-se, além disso, que em um contexto ainda muito marcado por relações desiguais

de gênero nas famílias, onde as mulheres muitas vezes são impedidas ou restringidas de

participarem em atividades do mundo público ou da associação pelos maridos, as habilidades

técnicas destes são utilizadas como canal para buscar mais liberdades às mulheres. Como indica o

estudo, a AMA adota uma estratégia de aproximar os maridos das atividades da associação, na

tentativa de conquistar a confiança e respeito deles, e assim facilitar os processos de negociação

aos quais as mulheres têm que se submeter no âmbito doméstico para envolver-se com a

associação.

Se por um lado percebe-se um papel ainda central ocupado pelos homens na construção

das tecnologias, por outro, ao ampliar o olhar ao espectro das tecnologias domésticas, chama

atenção a capacidade das mulheres de apropriarem-se destas e adaptarem processos produtivos de

processamento de alimentos, em distintos contextos e para diferentes finalidades. Essas mulheres

se apropriam de um conhecimento tradicionalmente feminino e desvalorizado socialmente - a

produção de alimentos e suas tecnologias - para se organizarem, se fortalecerem, construírem um

espaço onde têm possibilidade de gerar renda, melhorar sua autoestima, seus conhecimentos e

contribuir assim a um processo de autonomização das mulheres rurais.

No contexto da construção de um projeto de cozinha com a cooperativa, esse

conhecimento foi elemento importante para que as mulheres ganhassem espaço em um local

antes ocupado principalmente por homens. Percebe-se como a tecnologia cumpre nessa ocasião o

papel de intermediar o conflito de interesses entre os gêneros. A disputa tecnológica, entre

cozinha e trator, significava diferentes possibilidades de inserção e autonomização de homens e

mulheres no assentamento e, portanto, se tornava um conflito. Isso evidencia como as escolhas

tecnológicas são também definidas pelas relações de gênero, e que este é um critério importante

de se observar em conjunto com outros fatores socais e técnicos no momento de se definirem

projetos.

Esse conjunto de experiências escancaram as formas pelas quais as relações sociais,

inclusive as de gênero, definem a tecnologia e ao mesmo tempo são definidas pelos seus usos,

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escolhas e apropriações. Se por um lado a experiência da AMA mostra como padrões ainda

desiguais de relações de gênero são (re)produzidos na definição e nos usos da tecnologia,

também demonstra que o trabalho associado abre possibilidades de desestabilização desse

paradigma relacional.

As mulheres da AMA, durante esses mais de 10 anos de organização, motivadas pela

necessidade e pela busca de autonomia, encontraram no trabalho associado uma alternativa para

manter-se no campo e também um local de construção de sua autoestima e autonomia. Marcadas

pelas relações de proximidade e confiança entre suas integrantes, assim como sua religiosidade,

essas mulheres encontraram na AMA um espaço para compartilhar problemas e conquistas e se

fortalecer. Conscientes de sua força, elas se autodenominam como mulheres guerreiras, e falam

com orgulho de tudo aquilo que já conquistaram a partir de sua auto-organização.

Percebe-se também como característica marcante da associação a concentração de

atividades que poderiam ser consideradas de extensão do trabalho doméstico, a exemplo do

processamento de alimentos, da organização da creche e dos cuidados com o meio ambiente.

Estas são atividades que permitem visibilizar as capacidades e potenciais das mulheres, assim

como os conhecimentos que possuem acerca do processamento de alimentos, e suas habilidades

para adaptar processos tecnológicos.

No entanto, assim como indicam os estudos de Guerin (2005), acerca das organizações

femininas na França e no Senegal, a articulação da AMA também se percebe claramente como

reflexo de um processo de desresponsabilização do Estado frente à sociedade civil, neste caso de

falta de priorização das políticas de reforma agrária (BERGAMASCO e NORDER, 1996; MELO

e DI SABBATO, 2008). As mulheres, enquanto encarregadas exclusivas dos trabalhos

domésticos e de cuidados, se mobilizam, articulam e constroem sua autonomia, mas isso gera

também um acúmulo de tarefas na tentativa de encontrar alternativas de sobrevivência, no difícil

contexto dos assentamentos rurais, e que não necessariamente chegam a modificar as relações de

gênero no âmbito doméstico.

Assim, ainda que essas experiências sejam significavas na construção da autonomia das

mulheres e transformação das relações de gênero, é importante não perder de vista suas raízes

sócio-históricas. Essas organizações de mulheres rurais ainda têm que enfrentar o desafio de

questionar as relações de gênero no âmbito doméstico, a desvalorização de seu trabalho, a

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desigual distribuição dos recursos familiares, e a sua exclusiva responsabilização pelos trabalhos

domésticos.

Além disso, valorizar os ganhos e conquistas dessas mulheres a partir de sua apropriação

no meio público de tarefas e tecnologias tradicionalmente femininas indica uma importante

componente do processo de valorização de atividades tradicionalmente femininas, mas não fixa

ou naturaliza esse lugar como das mulheres. A rigidez da atual divisão sexual do trabalho

também deve ser questionada, para que mulheres e homens tenham a possibilidade de escolher

ocupar distintos espaços e ter seus trabalhos valorizados de igual maneira. Mudar as relações de

gênero passa por muitos lugares, passa por desconstruir hierarquias e valorizar trabalhos

tradicionalmente femininos e levá-los em conta quando se propõe a pensar novos modelos de

economia, e passa também por superar uma segregação dos trabalhos segundo o sexo.

As frustrações permanentes vividas pelas mulheres de dificuldade de acesso a recursos e

condições adequadas para permanecer no campo indicam a necessidade também de maior

priorização das políticas de reforma agrária. Além disso, olhando mais especificamente para a

questão da tecnologia aponta também à necessidade de políticas públicas nesse sentido. A criação

de linhas de financiamento específicas que viabilizem infraestrutura para os empreendimentos da

economia solidária, e que contenham também um viés de gênero, trazendo possibilidades de

inserção para as mulheres, seriam importantes. Mais que isso, considerando os argumentos aqui

enfatizados de como as relações sociais modelam e são modeladas pela tecnologia, assim como a

capacidade das agricultoras e agricultores de adaptarem e apropriarem-se das tecnologias, seria

importante linhas de financiamento que permitam participação e interferência dos interessados

nas etapas de definição e design dos equipamentos e processos produtivos, e não apenas na

apropriação das tecnologias construídas em lugares distantes dessa realidade.

Nesse sentido, destaca-se a importância de que as entidades de fomento à Economia

Solidária, como as incubadoras, incorporem em sua atuação uma visão que entenda como a

autogestão dos empreendimentos está relacionada também às relações de gênero e tecnologia. E

que não é possível pensar um processo de transformação mais amplo, sem considerar a

imbricação indissociável desses elementos.

Por fim, o estudo indica que as experiências de Economia Solidária tem potencial para

desestabilizar as relações mais tradicionais de gênero, mas que existem desafios que

permanecem. Nesse sentido, remete-se ao que apontam algumas teóricas feministas da Economia

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Solidária (GUERIN, 2005; NOBRE, 2003; WIRTH, 2010) e autores da autogestão (TIRIBA,

2008; NOVAES, 2007) acerca da importância de que essas experiências estejam ancoradas

politicamente. Sua aproximação com os movimentos sociais, movimentos feministas e de

mulheres são elemento importante para contribuir ao processo de formação das mulheres como

sujeitos políticos e para que essas experiências sejam potencializadas ao mesmo tempo em que

contribuam à luta dos movimentos.

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