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7 a edição revista, ampliada e atualizada EM AÇÃO CARREIRAS EM AÇÃO coordenação: Leonardo Garcia Coleção Teoria e Prática no Estado Democrático de Direito DELEGADO DE POLÍCIA Bruno Taufner Zanotti Cleopas Isaías Santos 2021

Bruno Taufner Zanotti Cleopas Isaías Santos DELEGADO DE ... · Público ou da vítima, no sentido de que as suas investigações são direcionadas a fornecer autoria e materialidade

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7a edição revista, ampliada e atualizada

EM AÇÃO

CARREIRAS EM AÇÃOcoordenação: Leonardo Garcia

Coleção

Teoria e Prática no Estado Democrático de Direito

DELEGADO DE POLÍCIA

Bruno Taufner ZanottiCleopas Isaías Santos

2021

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INQUÉRITO POLICIAL 153

CAPÍTULO IIIINQUÉRITO

POLICIAL

Bruno Taufner Zanotti

1. A FASE PRÉ-PROCESSUAL DA AÇÃO PENALA persecução penal no Brasil se dá em duas fases. A primeira fase, chamada

de investigação preliminar criminal, é concretizada por meio do inquérito policial, do termo circunstanciado (presente no juizado especial e estudado em capítulo próprio) e pelas peças de informações (feitas por outras autoridades que não compõem a estrutura da Polícia Civil ou da Polícia Federal). Em razão desta última, a fase pré-processual é chamada de “investigação preliminar criminal” e não “investigação policial”. A segunda fase é feita processualmente, por meio da respectiva ação penal.

Da mesma forma que a ação penal é dever do Estado, também cumpre ao Estado, por meio da Polícia Judiciária (art. 144 da Constituição), salvo em algumas hipóteses analisadas no primeiro capítulo, apurar os fatos e suas circunstâncias.

2. CONCEITO E FINALIDADE DO INQUÉRITO POLICIALÉ comum, na doutrina pátria, afirmar que o inquérito policial constitui um

procedimento administrativo e privativo da Polícia Judiciária, que tem por finalidade apurar a autoria e a materialidade das infrações penais, de modo a auxiliar na for-mação do convencimento (opnio delicti) do Ministério Público e, excepcionalmente, da vítima (querelante). Nesse contexto, o inquérito policial é um instrumento cujo fim consiste em fornecer justa causa para a ação penal, tanto que, como consta do art. 12 do CPP, o inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou a outra. 172

Faz-se necessário desconstruir algumas conclusões que são colocadas de maneira pacífica na doutrina. O ponto relativo à finalidade do inquérito policial é uma delas. Admitir que o fim do inquérito seja fornecer justa causa para uma futura ação penal, significa concluir que a Polícia Civil trabalha a serviço do Ministério Público ou da vítima, no sentido de que as suas investigações são direcionadas a fornecer autoria e materialidade para uma ação penal, ou seja, a demonstrar a existência de um ilícito penal em face de um determinado cidadão.

172. LIMA, 2011, p. 113.

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Não se nega que o inquérito policial possa ter essa consequência; mas, não se pode admitir que essa seja a sua finalidade. Essa distinção se faz necessária, em especial, para conscientizar que o instrumento em estudo não pode ser dire-cionado a um fim que vá de encontro às prerrogativas do cargo de Delegado de Polícia, como a imparcialidade.

Nesse contexto, a finalidade do inquérito policial, a partir da base teórica exposta nos capítulos anteriores, deve ser a produção de diligências investigas de modo a se colher todos os possíveis pontos de vista do fato, devidamente respeita-dos os direitos fundamentais dos afetados pela investigação policial, confirmando (ou não) a autoria e a materialidade.

Posicionamento em sentido contrário consubstanciaria a ideia de que a Auto-ridade Policial trabalha para buscar elementos de informação contra o investigado, conduzindo a investigação nesse sentido, como se tivesse um suposto interesse em sua acusação (como têm o Ministério Público e a vítima), o que violaria funda-mentos basilares do cargo, como a imparcialidade e a autonomia funcional. Tanto isso não está de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro que, ao final do inquérito policial, o mesmo pode ser arquivado ou servir de base para a denúncia. Por isso, é possível concluir que o fim do inquérito policial é a “reconstrução” do fato, a partir de sua documentação no procedimento, que pode ter como conse-quência uma futura ação penal. Se o inquérito policial não ensejar uma eventual ação penal, igualmente terá alcançado a sua finalidade.

Por fim, observe que, no parágrafo anterior, utilizou-se o termo “elementos de informação”, e não “elementos de prova”. Isso é decorrência da reforma promovida ao CPP pela Lei nº 11.690 de 2008, que passou a diferenciar os dois conceitos:

Art. 155 do CPP: O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo funda-mentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

O termo “prova” é utilizado para se referir aos elementos produzidos em con-traditório (mesmo que diferido), ao passo que o termo “elementos de informação” abrange todos os demais que foram produzidos inquisitoriamente ou por uma das partes fora do devido processo legal.173

3. CARACTERÍSTICAS DO INQUÉRITO POLICIAL

3.1 AdministrativoA atividade policial não possui caráter judicial, razão pela qual o inquérito

policial não é peça com natureza judicial. O inquérito policial consiste, na verdade, em um procedimento administrativo,174 com caráter informativo de

173. LIMA, 2011, p. 116.174. Nesse sentido, cita-se Ismar Estulano Garcia e Breno Estulano Pimenta (2009, p. 9) e Renato

Brasileiro de Lima (2011, p. 114).

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autoria e materialidade do fato. Desse modo, como regra, os vícios existentes no inquérito policial não afetam a ação penal.

Contudo, em hipóteses excepcionais, quando a gravidade do vício viola a própria essência do inquérito policial, este será inteiramente nulo, não sendo ad-mitido como peça informativa suficiente para instaurar a ação penal. Cita-se, como exemplo, quando o inquérito policial não é presidido pela Autoridade Policial.175

Durante o debate da proposta da Súmula vinculante nº 14, alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal se posicionaram de forma contrária ao caráter admi-nistrativo do inquérito policial. De acordo com o Ministro Carlos Britto, o art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal, determina que a todo processo administrativo deva ser assegurado o contraditório e a ampla defesa. Como esses direitos não te-riam aplicabilidade no inquérito policial, o caráter administrativo estaria afastado, sendo, portanto, um “pré-processo”:

Nós sabemos que o inquérito processual nem é processo adminis-trativo nem processo judicial, é pré-processo, um tertium genus. É uma terceira figura, uma terceira via de direito. Daí chamarmos muito até – eu nem gosto dessa expressão – de fase inquisitorial da investigação criminal.176

Não obstante, faz-se necessário salientar que a doutrina e jurisprudência majoritária defendem a natureza administrativa do inquérito policial.

Como esse assunto foi cobrado em concurso público?

(PC/Delegado/AP/2006/discursiva) Discorra sobre o inquérito policial, abordando, o conceito e a natureza jurídica.

3.2 Dispensável?O inquérito policial, apesar de ser um instrumento de grande relevância

para a coleta de provas, não é necessário para a instauração da ação penal. O Ministério Público, caso já tenha os elementos de informação, poderá ins-taurar a ação penal se entender que possui justa causa suficiente.

Com base nesse fundamento, o art. 27 do CPP prescreve que “qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público, nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção”. Após essa provocação, o

175. Com a finalidade evitar a nulidade de eventuais ações penais, o tema será retomado ao tratar dos elementos de informação ilícitos no inquérito policial, em especial no tópico “momento de análise e possibilidade de desentranhamento dos elementos de informação ilícitos no curso do inquérito policial”. No citado tópico, será feita uma proposta de como o Delegado de Polícia deve agir diante de uma prova ou elemento de informação ilícito.

176. BRITTO, Carlos. PSV1, julgada em 2/2/2009, Rel. Ministro Menezes Direito. O trecho consta da p. 24 do inteiro teor do voto.

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Ministério Público pode requisitar a instauração do inquérito policial ou mesmo apresentar a denúncia.

Decorre desse contexto a dispensabilidade do inquérito policial e, pra-ticamente, o seu menosprezo como instrumento eficaz da Justiça Criminal. Faz-se necessário ir além desses preconceitos enraizados em diversos livros e em diversos atores do processo penal.

De fato, caso existam elementos suficientes, o Ministério Público pode, inde-pendentemente da existência do inquérito policial, propor a denúncia. No entanto, esses casos são a exceção e a imensa maioria das ações penais é instruída pelo inquérito policial, que se mostra como importante procedimento para se verificar indícios de autoria e prova da materialidade.

Na verdade, o inquérito policial é um dos principais instrumentos penais porque materializa praticamente todo o conjunto probatório. Afinal, além de a instrução em juízo ser pouco efetiva, ela basicamente reitera as provas pro-duzidas em sede de inquérito policial. Isso sem contar que existem diversas provas que, por sua natureza, são irrepetíveis, como a interceptação telefônica, o cumprimento de busca e apreensão, a confecção de uma perícia, entre outros.

Trata-se, portanto, de uma dispensabilidade regrada, na medida em que o inquérito policial, de fato, só é dispensável nos poucos casos em que a vítima ou o Ministério Público possuírem documentos suficientes de autoria e materialidade do fato. Nas demais hipóteses, o inquérito policial mostra-se como instrumento necessário e indispensável para o funcionamento da Justiça Criminal. Afinal, cabe ao Delegado de Polícia eleger as linhas de investigação, de modo que de suas ati-tudes dependerá, em geral, do êxito da acusação.

3.3 Forma escritaPor determinação do art. 9º do CPP, “todas as peças do inquérito policial

serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade”.

É importante ressaltar que essa característica tem sido cada vez mais relati-vizada, muito em função do processo de informatização da investigação criminal. Verifica-se imperiosa a aplicação analógica do art. 405, § 1°, do CPP (e outros artigos correlatos), a fim de tornar possível o uso de recursos de gravação audio-visual de diligências e a materialização de todo os documentos da investigação em meio virtual, realidades já presentes em alguns Estados da Federação. Alguns Estados chamam de “inquérito virtual” ou “inquérito eletrônico”, inexistindo, em certos casos, documentos impressos de todo o caderno investigativo.

3.4 Sigiloso: a análise da súmula vinculante nº 14, o acesso do advo-gado ao inquérito policial e a Lei n° 13.245/16

A complexa questão do acesso do advogado aos autos do inquérito policial envolve uma natural tensão entre direitos fundamentais e inquérito policial. Por

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um lado, a proteção às testemunhas, o art. 20 do CPP, o caráter sigiloso do inqué-rito policial e, por outro lado, o acesso ao inquérito policial como prerrogativa do advogado e decorrência direta do contraditório e ampla defesa, mostram como a questão se manifesta complexa no ordenamento jurídico brasileiro. É importante ressaltar que toda a análise que será feita abaixo aplica-se, nos termos do art. 7°, § 13, da Lei nº 8.906/94, dispositivo inserido à lei no ano de 2019, aos processos e a procedimentos eletrônicos.

Por determinação do art. 20 do CPP, “a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”. O sigilo citado é direcionado principalmente a terceiros desinteressados, como a im-prensa e as pessoas do povo. O sigilo, por óbvio, não abrange o juiz e o promotor de justiça do caso. Não obstante, questiona-se: qual a amplitude do sigilo do inquérito policial em face do advogado? E, ainda, imagine a hipótese em que um advogado compareça perante uma Autoridade Policial e, mesmo sem procuração, peça vista dos autos do inquérito policial. Deve o Delegado de Polícia autorizar o pedido?

O art. 7º da Lei nº 8.906/94 (Estatuto dos Advogados), inciso XIV, após alterado pela Lei nº 13.245/16, prescreve que o advogado possui o direito de “examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem pro-curação, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital”. O pedido deve ser feito pelo advogado por escrito e juntado ao procedimento investigativo para análise do Delegado de Polícia.

A redação supramencionada segue, basicamente, a redação antiga do disposi-tivo legal, mas com duas importantes inovações. Primeiro, o dispositivo revogado restringia o acesso a procedimentos criminais como o auto de prisão em flagrante e o inquérito policial, ao passo que a nova previsão legal amplia a prerrogativa do advogado para todo e qualquer procedimento investigativo, de modo a abranger não somente os procedimentos criminais, mesmo quando presidido pelo Minis-tério Público; mas, também, os procedimentos administrativos, como o processo administrativo disciplinar. Segundo, o novo dispositivo prescreve a possibilidade de o advogado copiar peças ou tomar apontamentos pelo meio digital, podendo, por via de consequência, tirar fotos das páginas ou utilizar digitalizadores portáteis.

Acontece que, tal como o dispositivo revogado, a nova prescrição legal deve ser lida a partir de questões pacificadas pela jurisprudência dos tribunais superiores, em especial pela pequena alteração redacional pela qual o inciso passou. Desse modo, deve-se analisar a sua relação com a Súmula Vinculante de nº 14 do STF, que possui a seguinte redação: “É direito do defensor, no interesse do repre-sentado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.

A súmula vinculante determina que o sigilo do inquérito policial não pode ser oponível ao defensor, desde que respeitados três pressupostos: (a) deve ser

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feito no interesse do representado, (b) para o exercício do direito de defesa e (b) desde que os elementos de prova já estejam documentados no inquérito policial.

O primeiro pressuposto diz respeito à necessidade de o advogado juntar a procuração para ter acesso ao procedimento investigativo. Apesar de a leitura da súmula não ser clara, uma de suas interpretações pode levar à equivocada conclusão de que, em razão da necessidade de se provar a qualidade de “representado”, seja necessária apresentar a procuração pelo seu “representante”. O tema foi ampla-mente debatido na proposta que originou a Súmula vinculante nº 14. Um trecho do voto do Ministro Celso de Mello177 resume a questão:

No que concerne ao inquérito policial há regra clara no Estatuto do Advogado que assegura o direito aos advogados de, mesmo sem procuração, ter acesso aos autos (art. 7º, inc. XIV) e que não é excepcionada pela disposição constante do § 1º do mesmo artigo que trata dos casos de sigilo. Certo é que o inciso XIV do art. 7º não fala a respeito dos inquéritos marcados pelo sigilo. Todavia, quan-do o sigilo tenha sido decretado, basta que se exija o instrumento procuratório para se viabilizar a vista dos autos do procedimento investigatório. (...) Portanto, a presença do advogado no inquérito e, sobretudo, no flagrante não é de caráter afetivo ou emocional. Tem caráter profissional, efetivo, e não meramente simbólico. Isso, porém, só ocorrerá se o advogado puder ter acesso aos autos. Advogados cegos, ‘blindlawyers’, poderão, quem sabe, confortar afetivamente seus assistidos, mas, juridicamente, prestar-se-ão, unicamente, a legitimar tudo o que no inquérito se fizer contra o indiciado.

Desse modo, a exigência da procuração somente é legítima após a decretação do sigilo pela autoridade policial (com base no art. 20 do CPP)178 ou pela autoridade judicial, como consta do art. 7º, § 10, da Lei nº 8.906/94. É importante ressaltar que o acesso ao inquérito abrange todos os seus anexos, como eventual interceptação telefônica e quebra de sigilo bancário devidamente finalizados, questão que será mais bem analisada abaixo.

No segundo pressuposto, é interessante levantar o seguinte questionamento: o acesso do advogado ficará restrito às provas relacionadas com o seu representado ou também abrange os documentos que tenham relação exclusiva a terceiros (coauto-res)? Essa questão foi levantada pelo Pleno do STF, no julgamento do HC 94387 ED,179

177. MELLO, Celso de. PSV1, julgada em 2/2/2009, Rel. Ministro Menezes Direito. O trecho consta da p. 49 do inteiro teor do voto.

178. No mesmo sentido, tem-se Renato Brasileiro (2015, p. 119). A Resolução n° 181/17, do CNMP, que regula o PIC, tem previsão similar conferindo tal poder ao membro do MP: “Art. 16. O presidente do procedimento investigatório criminal poderá decretar o sigilo das in-vestigações, no todo ou em parte, por decisão fundamentada, quando a elucidação do fato ou interesse público exigir, garantido o acesso aos autos ao investigado e ao seu defensor, desde que munido de procuração ou de meios que comprovem atuar na defesa do investigado, cabendo a ambos preservar o sigilo sob pena de responsabilização.”

179. HC 94387 ED, julgado em 6/4/2010, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski. É importante ressaltar que a ementa do julgado não corresponde ao que foi decidido. Na página 704 do inteiro teor do acórdão, o Ministro Relator, Ricardo Lewandowski, revê o seu voto e muda o conteúdo do que foi decidido nos termos apresentados.

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e fixou-se o entendimento de que o advogado pode ter acesso a todas as provas, mesmo que tenham relação exclusiva com terceiros ou que haja um suposto risco de vida para as testemunhas caso o advogado tenha a informação180. No mesmo sentido, caso haja violação ao direito à intimidade de terceiros, o sigilo também não pode ser oposto ao defensor:

Em suma, impedir que o defensor acesse dados já formalmente incorporados ao procedimento inquisitorial se revela incompatível com a pureza do princípio constitucional da plenitude de defesa, mormente em matéria penal (embora estejamos aqui a tratar de acesso a informações contidas em inquérito policial, que não é pro-priamente um processo penal, mas tão somente, um pré-processo); mesmo que isto implique desproteção da intimidade de um ou de outro investigado.181

O terceiro pressuposto da súmula vinculante institui que a vista do defen-sor somente se dará ao procedimento investigativo documentado (finalizado). Esse pressuposto é ratificado, em parte, pelo parágrafo 11, inserido pela Lei nº 13.245/16 ao Estatuto da OAB ao prever que “a autoridade competente poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligên-cias em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências”.

Observe que, de acordo com o novo dispositivo legal, a existência de diligência em andamento, por si só, não constitui óbice para acesso do advogado a essas di-ligências, na medida em que esse acesso será possível, salvo quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências. Assim, a Autoridade Policial deve se atentar para a comprovação de uma dessas três condicionantes para, de forma fundamentada, obstar o acesso às diligências em andamento. Observe que, não obstante essas divergências entre a redação da súmula e a lei, vários concursos ainda assim questionam a redação da súmula vinculante.

Por exemplo, caso algum procedimento ainda esteja em trâmite (podem ser citados, como exemplos, a interceptação telefônica, a busca e apreensão domi-ciliar ou qualquer outra medida cautelar), o advogado poderá ter acesso a tais informações, salvo quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências, situações que devem ser comprovadas em despacho fundamentado pelo Delegado de Polícia. Trata-se, também, de hipó-tese em que o sigilo deve ser mantido quando algum procedimento já concluído indicar a necessidade de produção de outras provas e, no caso, existir risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências caso seja concedido o acesso ao advogado.

180. Nos casos em que existe um suposto risco de vida para as testemunhas caso o advogado tenha a sua identificação, recomenda-se a utilização da técnica do depoimento da testemunha não identificada, já regulamentada em alguns Estados, como São Paulo e Espírito Santo.

181. Trecho do voto do Ministro Ayres Brito, presente no HC 94387 ED, julgado em 6/4/2010, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski.

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Ainda sobre o tema do acesso do advogado aos procedimentos investigativos, existem duas inovações legislativas que merecem atenção:

Art. 7º do Estatuto da OAB, § 12. A inobservância aos direitos estabelecidos no inciso XIV, o fornecimento incompleto de autos ou o fornecimento de autos em que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo implicará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável que impedir o acesso do advogado com o intuito de prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer acesso aos autos ao juiz competente. (inserido pela Lei n° 13.245/16)

Art. 32. da Lei n° 13.869/19. Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Os dispositivos legais são direcionados ao presidente do procedimento inves-tigativo responsável por analisar o pedido do advogado em acessar o inquérito policial. A finalidade é evitar as retiradas arbitrárias de peças pelo Delegado de Polícia, na medida em que os dispositivos devem ser compatibilizados com o poder--dever de a Autoridade Policial delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências.

Cita-se, como exemplo, a hipótese em que um inquérito policial possui dentro do caderno principal (e não em anexo) um pedido de busca e apreensão, o qual foi deferido pelo magistrado, mas ainda não foi cumprido pela Polícia Civil. Trata-se de diligência em andamento e, portanto, a Autoridade Policial deve obstaculizar o acesso do advogado a tais documentos de modo a garantir a efetividade do cumprimento do mandado de busca e apreensão.

Como se observa pela leitura do parágrafo citado, o dispositivo legal atri-bui ao magistrado a competência para analisar eventual conflito acerca da legalidade da restrição imposta pelo Delegado de Polícia ao advogado, cabendo ao Juiz Criminal verificar se foi correta eventual retirada de peça presentes no procedimento pela Autoridade Policial. Exatamente por isso que o despacho fundamentado do Delegado de Polícia que analisa os limites e as possibilidades de acesso do advogado ao procedimento investigativo deve ser bem construído e fundamentado com todas as razões de fato e de direito que justificaram a sua tomada de decisão.

É importante pontuar que a lei não estipula um prazo para o Delegado de Polícia analisar o pedido do advogado de acesso ao procedimento investigativo. É possível aplicar por analogia o art. 24 da Lei nº 9.784/99 que estabelece o prazo

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de 5 (cinco) dias, podendo tal prazo ser dilatado até o dobro mediante comprova-da justificação; contudo, esse prazo deve ser entendido de modo a não se causar prejuízo ao exercício da defesa, devendo a Autoridade Policial analisar o pedido assim que o advogado apresentar o pedido por escrito nos casos de urgência ou comprovada necessidade, devendo ainda haver uma maior celeridade na hipótese de investigado preso.

Na hipótese de violação ao direito do acesso do advogado aos autos do inquérito policial, Renato Brasileiro182 sustenta a possibilidade do manejo da reclamação (por violação à Súmula vinculante nº 14 do STF), do mandado de segurança (por violação ao direito de defesa, em decorrência do desrespeito da prerrogativa funcional do advogado) ou do habeas corpus (por violação ao direito de locomoção, pois a negativa do acesso aos autos do inquérito pode re-sultar, posteriormente, numa prisão temporária ou mesmo numa pena privativa de liberdade ao final da ação penal). A Lei nº 13.245/16, no art. 7º, § 12, trouxe mais uma possibilidade, qual seja, o requerimento pelo advogado do acesso aos autos ao juiz competente.

Note-se, por fim, que existem alguns fatos nos quais (a) a publicidade se apresenta como regra ou mesmo (b) é capaz de auxiliar a investigação na colheita das provas.

No INQ 4831,183 o qual tramita no STF em face do Presidente da República, o Ministro Celso de Mello estabeleceu a regra da ampla publicidade – em detri-mento do caráter sigiloso da investigação – nos crimes relacionados a autoridades públicas com base nos seguintes fundamentos extraídos do seu voto:

Os estatutos do poder, em uma República fundada em bases demo-cráticas, não podem privilegiar o mistério nem legitimar o culto ao sigilo: consequente necessidade de este Inquérito transcorrer sob a égide do postulado da publicidade. (...)

Não constitui demasia rememorar, aqui, na linha da decisão proferida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento do MI 284/DF, Red. p/ o acórdão Min. CELSO DE MELLO (RTJ 139/712-732), que o novo estatuto político brasileiro – que rejeita o poder que oculta e que não tolera o poder que se oculta – con-sagrou a publicidade dos atos e das atividades estatais como valor constitucional a ser observado, inscrevendo-a, em face de sua alta significação, na própria declaração de direitos e garantias fundamentais reconhecidos e assegurados pela Constituição da República aos cidadãos em geral. (...)

Ao dessacralizar o segredo, a Assembleia Constituinte restaurou velho dogma republicano e expôs o Estado, em plenitude, ao princípio democrático da publicidade, convertido, em sua expres-são concreta, em fator de legitimação das decisões, das práticas e dos atos governamentais. (...)

182. LIMA, 2011, p. 131, 132.183 INQ 4831, Min. Celso de Mello, julgado em 5/5/2020. No mesmo sentido, MI 284, Relator(a)

p/ Acórdão: Min. CELSO DE MELLO.

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Não se pode desconhecer que a liberdade de imprensa, enquanto projeção da liberdade de manifestação de pensamento e de comuni-cação, reveste-se de conteúdo abrangente, por compreender, entre outras prerrogativas relevantes que lhe são inerentes, (a) o direito de informar, (b) o direito de buscar a informação, (c) o direito de opinar e (d) o direito de criticar.

Como consignou o Ministro Celso de Mello, o princípio da publicidade, nesses casos, direciona a atividade estatal e se coloca como pressuposto necessário para a investigação criminal, de modo a permitir o escrutínio público não só pelos ci-dadãos, mas, também, pela imprensa, rechaçando o segredo e o mistério enquanto premissas inerentes à democracia.

Ademais, existem casos em que a publicidade é capaz de auxiliar a investigação na colheita das provas. É o que ocorre, v.g., com a divulgação pela imprensa da foto de um preso em flagrante a fim de que surjam mais vítimas de crimes sexuais envolvendo menores. A participação da população, em alguns casos, mostra-se como importante instrumento para trazer mais informações ao inquérito policial.

Essas hipóteses excepcionais devem ser construídas dentro de um propósito de repassar a informação de modo isento e impessoal, a fim de os policiais não veicularem conteúdo no sentido de antecipar a culpa daquele que é investigado, cenário que caracterizaria abuso de autoridade por determinação expressa do art. 38 da Lei n° 13.869/19 ou mesmo sua incidência no art. 13 da mesma lei.

Como esse assunto foi cobrado em concurso público?

1. (PC/Delegado/ES/2010/CESPE) Sinval foi indiciado pelo crime de dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei em relação a órgão da adminis-tração federal. Durante a fase do inquérito, a defesa de Sinval pleiteou o direito de acesso amplo aos elementos de prova documentados em procedimento investigatório realizado por órgão dotado de competência de polícia judiciária. Tal pedido não foi integralmente atendido pelo órgão competente, sob o argumento de que deveria ser ressalvado o acesso da defesa às diligências policiais que, ao momento do requeri-mento, ainda estavam em tramitação ou ainda não tinham sido encerradas. Nessa situação, com base na jurisprudência prevalecente no STF, é adequada a aplicação conferida pelo órgão dotado de competência de polícia judiciária.

A assertiva foi considerada correta por estar de acordo com a jurisprudência e Súmula Vinculante nº 14, tal como exposto acima.

2. (PC/Delegado/AP/2010/Discursiva) Instaurado inquérito policial nº 123/10, da Delegacia Especializada em Entorpecentes, para apuração do crime de tráfico ilícito de entorpecentes, são identificados e indiciados 3 suspeitos da prática do crime, os quais seriam intermediários entre o traficante internacional que traz a droga proveniente do exterior e os traficantes que vendem a droga diretamente aos usuários. Os indiciados são José da Silva, João de Souza e Joaquim dos Santos. Com o avançar das investigações, são inquiridas várias testemunhas, as quais temem por suas vidas caso os indiciados tomem conhecimento dos seus depoimentos, bem como reunidas provas da participação de José, João e Joaquim no crime. Autorizada a

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INQUÉRITO POLICIAL 163

interceptação telefônica por quinze dias (medida cautelar nº 456/10), são coletadas provas suficientes para o oferecimento da denúncia, razão pela qual o pedido de in-terceptação não é renovado, sendo os autos da medida cautelar juntados aos autos do inquérito, elaborando o Delegado um relatório conclusivo e encaminhando os autos à justiça, que os remete ao Ministério Público. O promotor de justiça, contudo, requisita como diligência a oitiva dos investigados, providência que não tinha sido tomada pelo delegado. Ao intimar o indiciado João de Souza, comparece antes da data aprazada para realização da oitiva um advogado com procuração com poderes específicos para defendê-lo nos autos do inquérito policial nº 123/10, solicitando vista dos autos e obtenção de cópias. Tendo em vista o disposto no art. 20 do CPP, pergunta-se:

a.Poderá o Delegado de Polícia indeferir pedido de vista dos autos do inquérito, formulado por advogado constituído pelo indiciado, alegando que a divulgação dos depoimentos das testemunhas coloca suas vidas em risco?

b. Poderá o Delegado de Polícia indeferir pedido de vista da cautelar apensada aos autos do inquérito, alegando que o mandato outorgado está restrito aos autos do inquérito?

c. Poderá o Delegado de Polícia restringir o acesso do advogado de João aos docu-mentos e conversas que se refiram exclusivamente a João?

O ponto abordado na letra “a” foi analisado acima e, consoante posição do STF, o Dele-gado de Polícia não pode indeferir pedido de vista dos autos do inquérito, formulado por advogado constituído pelo indiciado, ao simples argumento de que a divulgação dos depoimentos das testemunhas coloca suas vidas em risco. Em relação ao ponto abordado na letra “b”, o Delegado de Polícia não pode indeferir pedido de vista feito pelo advogado da cautelar apensada, pois, do contrário, haveria descumprimento do art. 7º da Lei nº 8.906 de 1994 e da Súmula vinculante nº 14, em especial porque o procedimento da interceptação telefônica já foi concluído e relatado, tendo o seu acesso pelo advogado íntima relação com o direito de defesa do indiciado. Por fim, na letra “c”, consoante posição do STF acima exposta, mesmo que haja violação ao direito à intimidade de terceiros, o sigilo não pode ser oposto ao advogado.

3. (PC/Delegado/BA/2013/Cespe) De acordo com o CPP, entre os procedimentos a serem adotados pela autoridade policial incluem-se a oitiva do ofendido e a comu-nicação a ele dos atos da investigação policial, em especial, os relativos ao ingresso ou à saída do acusado da prisão, à designação de data para interrogatório e, no caso de indiciamento do acusado, à remessa dos autos à justiça.

A assertiva está equivocada por dois motivos: (a) não existe obrigatoriedade de comunicação ao ofendido dos atos de investigação policial, em especial porque tal providência tornaria inexequível inúmeras diligências pela possibilidade de o ofen-dido intervir no procedimento; e (b) a atribuição de comunicar o ofendido acerca do ingresso ou saída do acusado da prisão é direcionada ao magistrado, consoante previsão do art. 201 do CPP.

3.5 Inquisitivo: a atuação do advogado no inquérito policial e a Lei n° 13.245/16

De acordo com o Código de Processo Penal, o inquérito policial não contempla os direitos fundamentais do contraditório e ampla defesa, sendo, por essa razão, qualificado como inquisitivo.

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Faz-se necessário salientar que essa característica, de acordo com alguns julgados, influi na necessidade da autoridade policial em proceder a oitiva do suspeito (ou indiciado) no curso do inquérito policial. Apesar de o art. 6º, inciso V, do CPP, determinar a obrigatoriedade da oitiva, o STJ admite não existir nulidade caso fique comprovada a ausência da oitiva do indiciado:

O inquérito policial e o procedimento investigatório efetuado pelo Ministério Público são meramente informativos, logo, não se submetem ao crivo do contraditório e não garantem ao indi-ciado o exercício da ampla defesa. Desse modo, não se vislumbra nulidade pela ausência de oitiva do investigado na fase indiciária, sobretudo porque ele teve oportunidade de se defender de todas as acusações antes do recebimento da denúncia pelo Tribunal a quo, em virtude das prerrogativas de seu cargo de Promotor de Justiça.184

Em sentido contrário, Luiz Flávio Gomes185 entende queNenhuma medida coercitiva contra o suspeito (ou indiciado) conta com validade jurídica, se ele se encontra à disposição da autoridade investigante, com endereço certo, principalmente quando se acha no “distrito da culpa”, e não foi ouvido em nenhum momento. Nessas circunstâncias não são válidos a investigação e muito menos os atos subsequentes nela fundados: indiciamento, prisão temporária, prisão preventiva ou mesmo o ato da denúncia.

[...]

Mesmo diante da inquisitividade do inquérito policial e, pois, de qualquer outro procedimento investigatório preliminar, é certo que uma série de direitos (do suspeito) devem ser estritamente observados. Não há que se falar em contraditório ou ampla de-fesa nessa fase, mas isso não significa que o averiguado esteja impedido de participar dos atos de investigação (para exercer ao menos sua autodefesa), que não possa requerer diligências (nos termos do art. 14 do CPP), que seu advogado não tenha o direito de manusear os autos de inquérito policial, findo ou em andamento, podendo extrair cópias e fazer anotações, nos ter-mos do artigo 7°, XIV, do Estatuto da Advocacia, que não tenha direito ao silêncio, que não tenha direito de se entrevistar com seu advogado, que não tenha direito de assistência da família e de advogado etc..

Seguindo a linha de pensamento do doutrinador acima, é possível defender que, com a promulgação da atual Constituição Federal, o caráter inquisitivo do inquérito policial tem sido cada vez mais mitigado.

Dentre desse contexto se apresenta a publicação da Lei n° 13.245/16, ao in-serir o inciso XXI ao art. 7º do Estatuto da OAB, o qual possui a seguinte redação:

184. HC 142089, julgado em 28/9/2010, Rel. Ministra Laurita Vaz.185. GOMES, Luiz Flávio. Investigação preliminar e oitiva do suspeito ou indiciado. Disponível

em: < http://jus.uol.com.br/revista/texto/7822/investigacao-preliminar-e-oitiva-do-suspeito--ou-indiciado>. Acesso em: 16 ago. 2011.

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XXI - assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interroga-tório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração:

a) apresentar razões e quesitos;

b) (VETADO).

O dispositivo legal aborda, basicamente, três temas, quais sejam: (a) a prerro-gativa de o advogado assistir os seus clientes; (b) a questão da nulidade decorrente da inexistência de tal assistência; e (c) o direito de o advogado apresentar razões e quesitos no curso da respectiva apuração.

A assistência do advogado ao seu cliente não se trata de uma inovação legis-lativa, situação essa que já era garantida anteriormente; no entanto, as grandes inovações decorrem das novas possibilidades de participação do advogado no procedimento investigativo e da previsão legal acerca da nulidade absoluta do interrogatório ou depoimento se houver desrespeito a essa assistência.

O dispositivo legal consubstancia uma realidade cada vez mais presente na jurisprudência brasileira ao trazer para procedimentos administrativos e preparató-rios, como o inquérito policial, a incidência da teoria das nulidades, já amplamente presente nos procedimentos judiciais.

Ainda hoje é comum encontrarmos na jurisprudência186 e na doutrina enten-dimentos de que as nulidades do inquérito policial não contaminam a ação penal, brocardo colocado quase como uma verdade absoluta. Ressalvado uma ou outra exceção, essa posição é vista equivocadamente de forma majoritária, em muito contribuindo para que o inquérito policial fosse relegado a um plano secundário pelos principais manuais de processo penal.

A previsão legal caminha exatamente no sentido contrário, na medida em que não só torna absolutamente nulo o interrogatório ou depoimento quando a prerrogativa do advogado em assistir o seu cliente é desrespeitada, mas também aplica a teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree)187 ao tornar também absolutamente nulos todos os elementos investigativos e proba-tórios dele decorrentes, direta ou indiretamente.

Os grandes questionamentos, a partir da mencionada inovação legislativa, giram em torno dos limites e possibilidades da efetiva participação do advogado no inquérito policial.

Ao analisar a jurisprudência, verifica-se que o STJ, no HC 69405,188 reconheceu a possibilidade de o ofendido (e seu advogado) requerer diligências ao Delegado de Polícia; no entanto, entendeu que as diligências solicitadas pelas partes não

186. HC 142089, julgado em 28/9/2010, Rel. Ministra Laurita Vaz.187. O tema será estudado ainda neste livro em capítulo próprio.188. HC 69405, julgado em 23/10/2007, Rel. Ministro Nilson Naves.

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podem ser negadas pela Autoridade Policial se ficar comprovada a inexistência de prejuízo ao procedimento investigatório e se for necessário para o deslinde da causa. O posicionamento do Tribunal está em consonância com a Lei n° 13.245/16 e com a base teórica defendida neste livro, uma vez que o Delegado de Polícia tem o dever de verificar a adequação das diligências solicitadas ao caso concreto, não podendo, com base numa suposta discricionariedade,189 indeferir a produção de tais elementos de informação, quando forem necessários para o caso concreto. Por um lado, cabe ao ofendido a necessidade de demonstrar a relevância de produção das diligências que solicita; por outro lado, cabe à Autoridade Policial o dever de avaliar e, fundamentadamente, deferir ou indeferir o pedido a partir da análise do caso concreto. É também no mesmo sentido o teor da Súmula nº 4, aprovada no I Seminário Integrado da Polícia Judiciária da União e do Estado de São Paulo: Repercussões da Lei 12.830/13 na Investigação Criminal, realizado na Academia de Polícia Coriolano Nogueira Cobra, em 26 de setembro de 2013, com a participação de Delegados da Polícia Civil do Estado de São Paulo e da Polícia Federal:

Súmula nº 4: Na presidência da investigação criminal, cabe ao Delegado de Polícia exercer o juízo de legalidade e oportunidade sobre diligência indicada pelos interessados na promoção da futura acusação ou defesa, sob o ponto de vista da conveniência da inves-tigação e de sua conformidade legal.

Em face do que foi exposto e a fim de melhor aprofundar a questão, serão trabalhados com cenários hipotéticos de ocorrência e a respectiva atuação ade-quada do Delegado de Polícia.

CENÁRIO 1: Cidadão é preso em flagrante, não tem advogado próprio e o De-legado de Polícia toma o seu interrogatório sem a presença de qualquer advogado ou defensor público. Haverá nulidade em tal interrogatório? A resposta é negativa, uma vez que não havia advogado previamente constituído e não houve, desse modo, desrespeito ao direito do advogado em assistir o seu cliente. Ademais, a lei não previu a obrigatoriedade de todos os interrogatórios e depoimentos serem acompanhados por advogado. Em outras palavras, a nulidade prevista pela lei se impõe em virtude do cerceamento de uma prerrogativa do defensor e não em decorrência da ausência do advogado. É por isso que a prerrogativa não se trata de um dever direcionado ao advogado, mas, sim, de um direito a ele direcionado. Exatamente por causa da não obrigatoriedade da presença do advogado no momento da lavratura da prisão em flagrante é que ocorre a remessa do auto de prisão em flagrante à Defensoria Pública no prazo de 24 horas sempre que o autuado não informar o nome do seu advogado (art. 306, §1°, do CPP).

CENÁRIO 2: Cidadão é preso em flagrante, não tem advogado próprio, mas solicita que lhe seja nomeado um, sendo que o Delegado de Polícia toma o seu interrogatório sem a presença de qualquer advogado ou defensor público. Haverá

189. Sobre o tema, conferir o próximo capítulo do livro, em especial a parte relativa ao “poder discricionário” da Autoridade Policial.

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INQUÉRITO POLICIAL 167

nulidade em tal interrogatório? A resposta é positiva desde o advento da nova lei de abuso de autoridade, uma vez que a Lei n° 13.869/19, em seu art. 15, parágrafo único, inciso II, caracteriza como crime qualquer autoridade de “prossegue com o interrogatório de pessoa que tenha optado por ser assistida por advogado ou defensor público, sem a presença do patrono”. Via de consequência, esse interro-gatório deverá ser declarado nulo.

CENÁRIO 3: Cidadão é preso em flagrante, tem advogado próprio, mas o ad-vogado não comparece ao ato sem motivo justificado após tomar conhecimento da prisão e o Delegado de Polícia toma o seu interrogatório sem a presença de qualquer advogado ou defensor público. Haverá nulidade em tal interrogatório? Depende! Se o preso solicitou o advogado, haverá abuso de autoridade e nulidade no interrogatório, tal como exposto no item anterior. Por outro lado, se o preso não solicitou o advogado, sendo que a provável presença desse decorre de conhe-cimento do Delegado de Polícia (situação comum em comarcas do interior), não haverá nulidade, uma vez que foi dada a oportunidade de o advogado comparecer ao ato, mas esse permaneceu inerte. Nessa segunda situação, o seu não compare-cimento pode ser visto como uma estratégia de defesa, em especial porque a lei não previu a obrigatoriedade de todos os interrogatórios e depoimentos serem acompanhados por advogado. Como um direito do advogado, esse pode abrir mão do seu exercício sem que acarreta nulidades para o procedimento. Caso o autuado tenha informado o nome do seu advogado, não ocorrerá a remessa de cópia do auto de prisão em flagrante à Defensoria Pública no prazo de 24 horas (art. 306, §1°, do CPP).

CENÁRIO 4: Cidadão é preso em flagrante, tem advogado próprio, mas o advogado não pode comparecer ao ato por motivo justificado (v.g., está em uma audiência no fórum). Como proceder? Depende! Se o preso solicitou o advogado, haverá abuso de autoridade e nulidade no interrogatório, tal como exposto no item anterior. Por outro lado, se o preso não solicitou o advogado, sendo que a provável presença desse decorre de conhecimento do Delegado de Polícia (situação comum em comarcas do interior), não haverá nulidade. No entanto, considerando o prazo de 24 horas para a comunicação do auto de prisão em flagrante delito, é aconselhável que o Delegado de Polícia compatibilize a possibilidade de com-parecimento do advogado com o interrogatório dentro do prazo legal e a carga de serviço no qual o Delegado de Polícia está inserido. Aconselha-se ao Delegado de Polícia consignar o horário de entrega do preso na Delegacia de Polícia e o momento da lavratura do auto de prisão em flagrante. Por fim, o contexto apre-sentado no cenário 3 pode ser aqui aproveitado, de modo que deve ser dado ao preso a possibilidade de seu advogado se fazer presente e tal possibilidade deve estar consignada no procedimento (no respectivo interrogatório ou em certidão própria), não sendo tal presença obrigatória para a validade do interrogatório. Caso o autuado tenha informado o nome do seu advogado, não ocorrerá a remessa de cópia do auto de prisão em flagrante à Defensoria Pública no prazo de 24 horas (art. 306, §1°, do CPP).

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CENÁRIO 5: Cidadão é preso em flagrante e o advogado comparece ao interro-gatório após tomar conhecimento da prisão. Durante o interrogatório, o advogado deseja fazer perguntas ao cidadão, o que é impedido pelo Delegado de Polícia. Haverá nulidade em tal interrogatório? A resposta é positiva, pois houve prejuízo à assistência do seu cliente. No curso de procedimentos investigativos, é direito do advogado assistir o seu cliente e apresentar quesitos, ou seja, fazer perguntas ao referido cliente durante o depoimento ou interrogatório. Cabe ao Delegado de Polícia analisar a pertinência de cada questionamento, podendo indeferir, funda-mentadamente, todo o quesito que seja: • meramente protelatório, ilegal ou sem conexão com o caso que se investiga;• formulado de modo a induzir a uma determinada resposta pretendida pelo

advogado; e• quando a perguntar formulada importar na repetição de outra já respondida.

Para tanto, recomenda-se que o Delegado de Polícia conste do depoimento do cidadão a pergunta feita pelo advogado e respectivo motivo do indeferimento.

CENÁRIO 6: Cidadão é preso em flagrante e o advogado comparece ao inter-rogatório após tomar conhecimento da prisão. O Delegado de Polícia conclui o interrogatório sem a ocorrência de qualquer evento ou problema. Em relação aos futuros atos investigativos do procedimento (que não seja outro interrogatório do cidadão, como o depoimento de testemunhas), existirá a necessidade de o Delegado de Polícia intimar pessoalmente o advogado para acompanhamen-to dos atos? A resposta é negativa, pois o dispositivo legal não traz tal dever para o Delegado de Polícia, mas, caso tome conhecimento do ato e o advogado compareça por iniciativa própria, é direito do advogado do investigado se fazer presente no depoimento de terceiros, podendo, também, fazer as devidas per-guntas, aplicando-se a mesma lógica do cenário 5. O direito de fazer perguntas a testemunhas ou terceiros é um dos pontos mais controversos da lei; contudo, entendemos que essa possibilidade decorre da parte final do art. 7º, inciso XXI, do Estatuto da OAB, uma vez que é direito do advogado, no curso da apuração, apresentar quesitos e razões, mesmo em relação ao depoimento de testemunhas ou terceiros. Não fazemos uma leitura restritiva do dispositivo legal, de modo a limitar sua abrangência a quesitos periciais, até porque a própria lei não fez essa restrição. A máxima efetividade dos direitos fundamentais reclama esse tipo de interpretação. Ressalta-se que esse direito não é aplicável quando o Delegado de Polícia faz uso da técnica da “Testemunha não Identificada” por haver risco em relação à identificação da testemunha.

CENÁRIO 7: Cidadão é preso em flagrante e o advogado comparece ao inter-rogatório após tomar conhecimento da prisão. O Delegado de Polícia conclui o interrogatório sem a ocorrência de qualquer evento ou problema. Em relação a necessidade de um futuro interrogatório do cidadão, existirá a necessidade de o Delegado de Polícia intimar pessoalmente o advogado para acompanhamento dos atos? A resposta é negativa. Deve o Delegado de Polícia intimar somente o cidadão para prestar novo interrogatório, podendo o mesmo se fazer presente com o seu

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INQUÉRITO POLICIAL 169

advogado. A lei impõe a possibilidade de o advogado assistir os seus clientes e não o dever de sua intimação pessoal ou o seu comparecimento pessoal mesmo no ato de interrogatório, podendo o Delegado de Polícia proceder o interrogatório mesmo sem a sua presença, desde que tenha previamente cientificado o investigado acerca da possibilidade de estar com o seu advogado. Vale lembrar que, de acordo com o art. 15, parágrafo único, inciso II, da Lei n° 13.869/19, se o investigado solicitar um advogado, sendo que o Delegado de Polícia toma o seu interrogatório sem a presença de qualquer advogado ou defensor público, haverá nulidade em tal in-terrogatório e abuso de autoridade por parte do Delegado de Polícia.

CENÁRIO 8: Durante uma investigação, o Delegado de Polícia necessita fazer o interrogatório de um investigado que tem advogado constituído. No dia marcado para o interrogatório, o advogado não pode comparecer ao ato por motivo justi-ficado (v.g., está em uma audiência no fórum). Como proceder? Diferentemente do flagrante, em que existe um prazo exíguo de 24 horas, esse cenário requer mais cuidado por parte do Delegado de Polícia. Havendo ainda tempo hábil para a remarcação do interrogatório, recomenda-se que assim proceda a Autoridade Policial, desde que o motivo seja, de fato, justificado. Deve-se entender que as justificativas não podem ser utilizadas para protelar eventual conclusão de uma investigação criminal, devendo o Delegado de Polícia proceder ao interrogatório do investigado mesmo sem a presença do advogado quando tal situação estiver caracterizada e devidamente fundamentada. De todo modo, vale lembrar que, se o investigado solicitar o advogado, haverá abuso de autoridade e nulidade no interrogatório, tal como exposto acima.

CENÁRIO 9: Ciente de que o Delegado de Polícia solicitará perícia no caso em que o seu cliente é investigado, o advogado apresenta uma petição com quesitos a fim de ser levada ao perito que analisará determinada prova. Pode o Delegado de Polícia indeferir os quesitos? No curso de procedimentos investigativos, é direito do advogado apresentar quesitos direcionados a eventual perícia. Cabe ao Delegado de Polícia analisar a pertinência de cada quesito, podendo indeferir, fundamentadamente com base no art. 14 do CPP, todo o quesito que seja ilegal ou sem conexão com o caso que se investiga. Para tanto, o Delegado de Polícia deve constar de um despacho a análise da petição do advogado, demonstrando os motivos de fato e de direito que levaram a essa tomada de decisão.

Ao se adotar o entendimento acerca da possibilidade de o advogado formular perguntas à testemunha ou ao seu cliente, deve-se analisar a melhor forma de se fazer essa inquirição. Recomenda-se a adoção de parte do modelo utilizado no processo penal desde 2008 (art. 212 do CPP), adaptada à inquisitoriedade do inquérito policial. Em síntese, a parte inicial do questionamento é de iniciativa do Delegado de Polícia, o qual efetuará todas as perguntas que entender necessárias e, em um segundo momento, a Autoridade Policial passará a palavra para o ad-vogado efetuar as perguntas diretamente à testemunha ou investigado, cabendo ao presidente do procedimento controlar a qualidade das perguntas e indeferir fundamentadamente as que entender desnecessárias.

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Ainda sobre a inovação legislativa, é direito do advogado, no curso da apuração, apresentar razões. As razões são petições do advogado acerca de determinado ponto que entenda relevante, com pedidos, sugestões ou explanações, mas sem qualquer força vinculante para o Delegado de Polícia. De qualquer modo, cabe ao Delegado de Polícia, até o relatório final, analisar as razões apresentadas pelo advogado.

Diante de tudo o que foi exposto, a Autoridade Policial, no curso de uma investigação criminal, deve ter as seguintes posturas:• Entender que a nulidade prevista pela lei se impõe em virtude do cerceamento

de uma prerrogativa do defensor e não em decorrência da simples ausência do advogado no interrogatório;190

• Não exigir do advogado a procuração a fim de que ele possa se comunicar com o seu cliente, uma vez que tal situação caracterizaria abuso de autoridade, tal como previsto no art. 7º-B da Lei n° 8.906/94;

• Entender que o Delegado de Polícia comete abuso de autoridade se (a) pros-seguir com o interrogatório de pessoa que tenha optado por ser assistida por advogado ou defensor público, sem a presença de seu patrono, nos termos do art. 15, parágrafo único, inciso II, da Lei n° 13.869/19; (b) se impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado, nos termos do art. 20 da Lei n° 13.869/19; (c) se prestar informação falsa sobre a investigação criminal com o fim de prejudicar interesse de investigado, nos termos do art. 29 da Lei n° 13.869/19;

• Compreender a importância da fundamentação das suas decisões, condição de possibilidade para a legalidade de muitos atos do inquérito policial, em especial quando forem analisados pelo Poder Judiciário.Retornando ao tema da inquisitoriedade e do contraditório, existe a possibili-

dade de o advogado utilizar o habeas corpus e o mandado de segurança no curso do inquérito policial, o que, de certa forma, são qualificados como um instrumento de defesa (autodefesa).

Não obstante, é possível verificar, na doutrina pátria,191 a existência de linhas de pesquisas que defendem a integral aplicação, no inquérito policial, dos direitos fundamentais do contraditório e da ampla defesa. Essa alteração substancial no inquérito policial seria relevante para o aproveitamento na ação penal de todas as provas produzidas na Polícia Civil, sem a necessidade de sua repetição em juízo, tal como ocorre hoje.

190. Em sentido contrário, Alexandre Morais da Rosa (2016, p. 232) defende que, em razão da Lei nº 13.245/16, todos os interrogatórios devem ser acompanhados, necessariamente, por um advogado, sob pena de nulidade absoluta. Nenhum interrogatório pode ser realizado sem ad-vogado. Também em sentido contrário, Aury Lopes Jr., no artigo “Lei 13.245/2016 não acabou com o caráter ‘inquisitório’ da investigação” (Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016--jan-29/limite-penal-lei-132452016-nao-acabou-carater-carater-inquisitorio-investigacao). Acesso em 24/05/2016.

191. .ROVÉGNO, André. O inquérito policial e os princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa. Bookseller: Campinas, 2005. 381 p.

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Independentemente de qual posicionamento se adote, o Delegado de Polícia pode aplicar, ele próprio, o princípio do contraditório e ampla defesa nos inquéritos policiais. Isso decorre da inexistência de uma previsão legal que determine uma exata concatenação dos atos, o que confere à Autoridade Policial a atribuição de verificar, a partir do caso concreto, o procedimento mais adequado e o modo como esse procedimento será executado. De qualquer forma, o contraditório e a ampla defesa não são proibidos, mas pode o Delegado de Polícia estabelecê-los, caso seja mais adequado para a investigação policial. Cabe lembrar, ainda, que não existe direito fundamental absoluto e que, nesse caso, a razoabilidade será o ponto fundamental a ser observado pela Autoridade Policial.

Por fim, serão garantidos o contraditório e a ampla defesa em relação aos in-quéritos que têm por objetivo a expulsão de estrangeiro, tal como previsto no art. 58 da Lei n° 13.445/17. Ainda sobre o tema, tais inquéritos eram instaurados após requisição do Ministro da Justiça, tal como constava do Decreto n° 3.447/00. Esse decreto, contudo, foi revogado em janeiro de 2020, de modo que é do Presidente da República a atual atribuição para requisitar a abertura do inquérito.

Como esse assunto foi cobrado em concurso público?

1. (PC/Delegado/RJ/2012/FUNCAB) No inquérito policial, aplica-se o princípio da ampla defesa, do contraditório, da plenitude de defesa e da publicidade, como formas irrenunciáveis de promover um efetivo garantismo penal.

A assertiva foi considerada falsa. Como estudado acima, majoritariamente, entende--se pela adoção do sistema inquisitivo no inquérito policial, sem a possibilidade de contraditório e ampla defesa.

2. (PC/Delegado/ES/2019/Instituto Acesso) A Lei nº 13.245/2016 alterou o art. 7º da Lei 8.906/94 (Estatuto da OAB) que garante ao advogado do investigado, o direito de assistir a seus clientes durante a apuração de infrações, inclusive nos depoimentos e interrogatório, podendo apresentar razões e quesitos. Com efeito, Anderson, advogado de José, impugnou a oitiva de duas testemunhas em fase de inquérito policial, alegando que não recebeu notificação informando do dia e hora da oitiva das referidas testemunhas em sede policial. Diante da temática apresentada, assinale a seguir a alternativa correta.

A) O sigilo do inquérito policial impede que o advogado tenha acesso aos atos já documentados em inquérito policial.

B) A Lei nº 13.245/2016 impôs o dever à autoridade policial de intimar previamente o advogado constituído para os atos de investigação, em homenagem ao contradi-tório e a ampla defesa.

C) A Lei nº 13.245/2016 instituiu a obrigatoriedade do inquérito policial ainda que já haja provas devidamente constituídas.

D) A Lei nº 13.245/2016 não impôs um dever à autoridade policial de intimar previamente o advogado constituído para os atos de investigação.

E) A inquisitorialidade do procedimento investigatório policial é o que impede que o advogado tenha acesso aos atos já documentados em inquérito policial.

A assertiva correta foi a letra D.

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3. (TRF 1/2019/CESPE/Oficial de Justiça) Apesar de se tratar de procedimento inquisitorial no qual não se possa exigir a plena observância do contraditório e da ampla defesa, a assistência por advogado no curso do inquérito policial é direito do investigado, inclusive com amplo acesso aos elementos de prova já documentados que digam respeito ao direito de defesa.

A assertiva foi considerada verdadeira.

3.6 IndisponívelUma vez instaurado o inquérito policial, a autoridade policial não poderá

arquivar os autos do inquérito. Essa determinação legal, prevista no art. 17 do CPP, traz em seu corpo a indisponibilidade do inquérito policial.

Como esse assunto foi cobrado em concurso público?

1. (PC/Delegado/GO/2017/CESPE/Discursiva) Certo delegado de polícia recebeu oficio de um promotor de justiça requisitando que o próprio delegado promovesse o arquivamento de determinado inquérito policial já instaurado, sob o argumento de que no âmbito do Ministério Público havia investigação sobre os mesmos fatos. O promotor alegava que eventual duplicidade de atividades poderia prejudicar o exame de autoria e da materialidade do delito. Nessa situação, o delegado de polícia deve atender ao requerimento do promotor? Justifique sua resposta apontando a disciplina do Código Penal sobre o tema e os princípios aplicáveis ao caso.

A requisição do promotor é ilegal, pois contraria o disposto no art. 17 do CPP (a autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito), de modo que o delegado de polícia pode recusar o seu cumprimento de modo fundamentado. Ademais, o inquérito policial é regido pelos princípios da indisponibilidade e ofi-ciosidade, ambos estudados neste tópico, devendo o trâmite do procedimento em sede policial continuar normalmente.

3.7 Oficial ou oficialidadeO inquérito policial consiste em um instrumento conduzido por órgãos ofi-

ciais. As Polícias Civis e Federal são órgãos que compõem a estrutura do Estado, e o Delegado de Polícia é a autoridade pública responsável por conduzir o proce-dimento investigativo.

3.8 Tramitação de ofício ou oficiosidadeA característica da oficiosidade consiste em um dever legal imposto ao

Delegado de Polícia, no sentido de que todo o procedimento é feito de ofício e com o objetivo de colher elementos de autoria e prova da materialidade, desde a instauração do inquérito policial (para a instauração do inquérito devem ser preenchidos os requisitos a serem estudados abaixo) até o relatório final. Uma vez instaurado o inquérito policial, o Delegado de Polícia deve promover atos inves-tigativos no sentido de sua conclusão. É importante ressaltar que as instaurações das ações penais públicas condicionadas e as ações penais privadas são exceções

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à característica da oficiosidade; no entanto, passada essa etapa inicial, o trâmite do procedimento segue de ofício.

3.9 Temporalidade (procedimento temporário)A característica da temporalidade impõe uma dura realidade às Delegacias de

Polícia de todo o Brasil, na medida em que é comum a existência de procedimentos em trâmite por anos sem a devida conclusão ou, pior, sem sequer ser analisado ou despacho pelo Delegado de Polícia. Nessa mesma situação se inserem os inquéri-tos policiais em que se verifica a presença de inúmeros despachos da Autoridade Policial somente requerendo a concessão de prazo para a conclusão do inquérito policial, sem qualquer diligência investigativa ao longo dos anos.

Esse quadro fático narrado no parágrafo acima, justificado pela histórica falta de estrutura e de pessoal das Delegacias de Polícia, viola direitos fundamentais básicos do investigado, em especial o direito à duração razoável do processo (art. 5°, LXXVIII, da Constituição Federal), o que torna necessário o arquivamento des-ses procedimentos por falta de prova, sob pena de se configurar constrangimento ilegal, consoante entendimento do STJ:

3. Na hipótese, já se passaram quase 10 (dez) anos sem que tenha sido concluído o inquérito, tendo decorrido mais de 04 (quatro) anos sem qualquer andamento, de forma que se mostra notório o constrangimento ilegal contra o Paciente, a ensejar a concessão de ordem de habeas corpus de ofício, em razão do evidente excesso de prazo para o encerramento do inquérito, sem prejuízo de abertura de nova investigação, caso surjam novas razões para tanto.192

3.10 DiscricionárioO tema da discricionariedade já foi tratado no capítulo 2 deste livro, no item 4.1.

3.11 InformativoO inquérito policial não pode servir, por si só, de fundamento para a sentença,

uma vez que os seus atos não foram submetidos ao contraditório, sendo, portanto, peça informativa que pode servir de justa causa para a ação penal.

Nessa linha, uma das finalidades da Lei n° 13.964/19 – conhecida como pacote anticrime – foi majorar o princípio acusatório no processo penal com a consequência inserção da figura do juiz das garantias. Esse magistrado tem como finalidade diminuir os riscos de contaminação subjetiva do juiz que julgará a ação penal, com o consequente reforço de sua imparcialidade.

É nesse contexto que se insere § 3º, do artigo 3º-C. Os autos da investigação criminal que compõem as matérias de competência do juiz das garantias não serão apensados aos autos principais que serão enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvadas as provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou

192. HC 283.751/RJ, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 11/03/2014.

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