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Chesed (resséd) amor de aliançainabalável constânciafidelidadeforça bondademisericórdiagra Christopher Walker

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Chesed(resséd)

amor de aliançainabalávelconstânciafidelidadeforçabondademisericórdiagraça

Christopher Walker

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1º edição

Americana/SPImpacto Publicações

2015

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Copyright © 2015 por Impacto PublicaçõesTodos os direitos reservados

RevisãoRenata Balarini Coelho

Capa Eduardo de Oliveira

DiagramaçãoSueli Buzinaro

1ª Edição - Outubro de 2015 Impacto Publicações

Este texto pode ser citado e pequenos trechos podem ser reproduzidos, desde que mencionada a fonte, com endereço postal e eletrônico.

Para os textos bíblicos, foi usada a versão Revista e Atualizada de João Ferreira de Almeida.

Algumas palavras ou frases foram colocadas em negrito para dar mais destaque.

IMPACTO PUBLICAÇÕESTelefone: (19) 3462.9893

www.revistaimpacto.com.br

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Sumário

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Capítulo 1 Uma revelação da glória de Deus . . . . . . . . . . . . . .

Capítulo 2 Sete aspectos da natureza de Deus . . . . . . . . . . . . .

Capítulo 3 Duas histórias de Chesed . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Capítulo 4 Chesed e ciúme . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Capítulo 5 Chesed nas Escrituras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Capítulo 6 Formando um relacionamento permanente . . . . . .

Capítulo 7 Chesed e conversão na Nova Aliança . . . . . . . . . . . .

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INTRODUÇÃO

A mente humana gosta muito de definições; especial-mente a ocidental, com sua lógica e racionalidade. Sem dú-vida, foi uma das consequências que herdamos do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Quando lemos a Bíblia, procuramos extrair definições dos textos, mesmo quando não as encontramos de maneira explícita. Reino de Deus, igreja, aliança, amor – você pode pesquisar do início ao fim das Escrituras e não encontrará nada que se asseme-lhe a uma fórmula que lhe permita delimitar (domesticar, controlar) esses conceitos. Essa função de definir e “regu-lamentar” os conceitos bíblicos é normalmente considerada uma tarefa dos teólogos – que gastam páginas e páginas com linguagem acadêmica para tentar formalizar princípios e verdades espirituais que são muito mais amplos do que a lógica humana.

Agora, se definir um princípio bíblico é um de-safio quase impossível, imagine a tarefa de definir Deus! Quem seria capaz de dizer quem Deus é – no sentido de compreendê-lo ou limitá-lo a algum sistema finito de lógica humana?

É verdade que as Escrituras nos fornecem várias

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descrições de Deus, mencionando suas qualidades e, em al-guns casos, usando até mesmo uma expressão típica de de-finição como “Deus é...”. A mais conhecida afirmação desse tipo é “Deus é amor” (1 Jo 4.8). Além dessa, existem pelo menos mais três declarações semelhantes: “Deus é luz” (1 Jo 1.5), “Deus é espírito” ( Jo 4.24) e “Deus é fogo consumidor” (Hb 12.29). Nenhuma dessas afirmações, entretanto, é uma definição, porque não diz tudo sobre ele. Ao mesmo tem-po, são declarações singulares com profundas implicações, porque indicam que Deus não apenas tem aquela qualidade, mas também que ela faz parte de sua essência.

Se é verdade que Deus é amor, então, certamente te-mos uma chave importante para compreender um pouco de sua natureza. Entretanto, ainda permanece uma dúvida: o que é amor, da perspectiva divina? Até que ponto nos-sos conceitos contaminados nos fazem confundir a natu-reza do amor de Deus, dificultando ou impedindo o nosso relacionamento com ele?

Para buscar uma revelação mais completa de Deus como amor, o último lugar em que muitas pessoas procu-rariam seria no Antigo Testamento. Existe uma impres-são comum, até no meio cristão, de que o Deus retratado ali é um Deus severo, mal-humorado, que decreta juízo e destruição e pode, a qualquer momento, enviar fogo para consumir toda a humanidade – bem diferente do Jesus do Novo Testamento! Se é assim que você pensa também, es-pero que tenha uma agradável surpresa nas páginas a seguir. Quero convidá-lo a participar de uma breve jornada por alguns textos bíblicos para ver Deus de maneira um pouco mais ampla – mas não para tentar defini-lo!

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Uma revelação da glória de deUs

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UMA REVELAÇÃO DA GLÓRIA DE DEUS

Iniciaremos nossa caminhada numa passagem que, para mim, sobressai como a revelação mais completa e íntima

de Deus a um ser humano em todo o Antigo Testamento. É o relato de uma das experiências de Moisés. De acordo com as próprias Escrituras, Moisés foi o homem (antes de Jesus) que chegou mais perto de Deus, que recebeu a maior revelação de como ele é e que desfrutou de mais intimidade com ele (Dt 34.10).

Moisés teve várias experiências fenomenais com o Senhor. A primeira foi na sarça ardente, na qual ele não só viu uma aparição sobrenatural, mas chegou a dialogar longamente com Deus e até a argumentar com ele. De-pois, ele também viu o Senhor operar sinais e maravilhas extraordinárias diante da maior potência do mundo daquela época. Nunca mais Deus manifestou tamanho poder diante do mundo; seu braço estendido, trazendo juízo ao Egito e livramento ao povo de Israel, só será visto com efeitos

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superiores, de acordo com os profetas e o livro do Apocalip-se, na ocasião da Segunda Vinda de Jesus.

Em seguida, além de presenciar contínuas manifes-tações sobrenaturais e de conversar com Deus no deserto, Moisés teve o privilégio extraordinário de passar 40 dias com Yahweh ( Jeová, Iavê, EU SOU O QUE SOU) dentro de uma nuvem no cume do monte Sinai, onde viu o mode-lo do tabernáculo a ser construído. Ele também recebeu as tábuas de pedra escritas com o dedo de Deus e instruções detalhadas sobre todas as normas e leis que governariam a nação de Israel.

No entanto, nenhuma dessas experiências, por mais maravilhosas que fossem, chegou a ser o ponto mais eleva-do de revelação para Moisés. Sua experiência mais gloriosa veio na esteira da maior crise – aquela do bezerro de ouro. Graças a Deus pelas crises que nos levam para mais perto do Senhor! Neste, que foi o maior drama da história huma-na, em que Deus resgatou para si uma nação inteira e fez com ela uma aliança inquebrável, tudo estava prestes a ir por água abaixo.

Um pedido ousadoDurante os desdobramentos da crise, Deus chegou a

propor a destruição de toda a nação para recomeçar do zero com Moisés (Êx 32.9,10). Porém, depois da intercessão de Moisés (Êx 32.11-13), Deus voltou atrás e disse que dei-xaria o povo entrar na terra, mas que não andaria mais no meio deles. “Posso mandar o meu anjo; eu mesmo não irei, pois não suportaria a atitude do povo e logo o consumiria na minha ira” (Êx 33.1-3).

Moisés não gostou da proposta e respondeu: “Se é as-sim, eu também não vou! Só vou se o Senhor for!”.

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A crise então piorou! O que poderia acontecer em seguida? Como era possível que alguém conversasse assim com o próprio Deus? Será que isso o faria mudar de ideia?

Mas Moisés ainda não havia terminado: “Agora, pois, se achei graça aos teus olhos [aliás, foi o Senhor mesmo quem me disse isso], rogo-te que me faças saber neste momento o teu caminho, para que eu te conheça...” (Êx 33.13).

Moisés estava pedindo permissão para conhecer a Deus! Você consegue imaginar essa situação? Se Moisés ainda não conhecia o caminho de Deus, quem poderia co-nhecê-lo? Poucos versículos acima, o texto declara: “Falava o Senhor a Moisés face a face, como qualquer fala a seu amigo” (Êx 33.11).

Esse episódio nos faz lembrar de Paulo. Quando es-creveu aos filipenses (3.8-14), o apóstolo afirmou que corria com toda a intensidade atrás de uma só meta na vida (co-nhecer a Cristo), mas que julgava não tê-la alcançado ainda! Como alguém que tivera um encontro pessoal com Jesus no caminho de Damasco, que recebera revelações incompará-veis do mistério de Deus e fora até arrebatado ao terceiro céu poderia dizer que ainda não conhecia a Cristo?

Como Deus reagiria a esse pedido de Moisés? Se você não conhecesse o restante da história, não ficaria em tre-mendo suspense para ver o resultado?

Mas (que alívio!) Deus aceitou o seu pedido: “Farei também isto que disseste... Farei passar toda a minha bondade diante de ti e te proclamarei o nome do Senhor...” (Êx 33.17,19).

Esta seria, sem dúvida, a maior revelação de Deus a Moisés. O próprio Deus lhe avisou que teria de escondê-lo na fenda de uma rocha, porque nenhum homem poderia ver a sua face e viver. Em outras palavras, a revelação seria

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tão forte que Moisés teria de ficar escondido e só abrir os olhos quando o Senhor já tivesse passado para vê-lo pelas costas. A única parte que o patriarca não veria seria a face de Yahweh. Entretanto, a glória do Deus Todo-poderoso passaria diante dele (Êx 33.22). Moisés já tinha visto e ex-perimentado muita coisa, mas nada semelhante a isso.

O ponto central da experiênciaMoisés viu algo com os olhos naturais? Certamente.

O fato de Deus ser invisível, ou seja, de não poder ser visto por olhos humanos não significa que não tenha corpo ou forma real. Significa apenas que, na nossa condição atual, não podemos vê-lo. Ele só pode ser visto por meio de Jesus, o único que consegue expressar o Pai para o homem caído ( Jo 1.18; 14.9). É maravilhoso pensar que Moisés viu a gló-ria de Deus, que chegou muito perto de ver sua face, que a própria mão de Deus o cobriu para que não fosse fulminado pela radiação da luz divina (Êx 33.22,23). Contudo, qual é o significado dessa experiência? O que permaneceu na vida de Moisés depois dela?

Temos a tendência a perder o foco e voltar nossa atenção para aspectos secundários. Queremos especular so-bre o que, exatamente, Moisés viu? Será que foi uma luz, um espetáculo, algo que lhe cegou os olhos? Será que Deus tem corpo? Houve uma mão literal que cobriu os olhos de Moisés? O que significou ver Deus “pelas costas”?

O fato é que Moisés desceu do monte com o ros-to brilhando, dando uma prova concreta de que sua experiência não fora meramente sonho ou visão. Entretan-to, por mais fantástico que tenha sido contemplar a glória de Deus, se não incluísse algo além disso, a experiência não teria significado muito para o povo de Israel ou para nós

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hoje. Moisés não voltou empolgado apenas com o que viu, nem ficou contando durante o resto da vida sobre o “dia em que meu rosto resplandeceu”. O que permaneceu de mais forte desse contato inédito com o Senhor foi o conteúdo comunicado naquele momento sublime.

Quem me ajudou, há muitos anos, a enxergar o ponto central dessa revelação singular de Deus foi Bob Mumford (autor de A Patrola de Deus). De acordo com ele, foi por meio da proclamação do nome do Senhor que Moisés viu a sua glória! Observe com atenção: primeiro, Moisés pediu para ver a glória de Deus (Êx 33.18); em sua resposta, o Senhor disse: “Farei passar toda a minha bondade diante de ti e te proclamarei o nome do Senhor” (Êx 33.19). Depois, Deus ainda explicou: “Quando passar a minha glória, eu te porei numa fenda” (Êx 33.22); e, finalmente, quando o Se-nhor realmente desceu na nuvem e colocou-se diante de Moisés, ele “proclamou o nome do Senhor. E, passando o Se-nhor por diante dele, clamou...” (Êx 34.5,6). A proclamação do seu nome foi a glória que Deus lhe mostrou conforme prometera.

Várias pessoas no Antigo Testamento tiveram ex-periências muito fortes com Deus e viram certa medi-da de sua glória (de modo especial, podemos citar Isaías, Ezequiel, Daniel e Zacarias). Porém, o que fez dessa ex-periência de Moisés algo diferente de todas as demais não foi apenas o fato de ele ter visto o Senhor “pelas costas”, mas de Deus ter feito passar diante dele “toda sua bondade” (Êx 33.19) e de ter proclamado seu nome (natu-reza ou identidade) de maneira muito mais completa do que homem algum já houvesse conhecido. A glória de Deus inclui tanto sua manifestação visível quanto a revelação de sua essência e natureza.

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A glória de Deus é quem ele é! Moisés não só viu esplendor, grandeza e beleza incomparáveis, mas também ouviu uma proclamação do próprio Yahweh, expressan-do quem ele era. Moisés viu toda a bondade do Senhor. E, quando lemos esse relato, também podemos ficar des-lumbrados, de acordo com o grau de revelação do Espírito Santo que tivermos, com a beleza, a perfeição e o equilí-brio perfeitos do caráter divino. O Deus que já se revelara a Moisés como o “EU SOU O QUE SOU”, como aquele que nem precisa de definição mas simplesmente é, condes-cendeu ao pedido de um homem mortal e revelou aspectos específicos de sua natureza.

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SETE ASPECTOS DA NATUREZA DE DEUS

Qual foi o nome mais completo, então, que Yahweh re-velou a Moisés nessa experiência tão sublime e assom-

brosa? Não foi um só nome, mas sete nomes ou aspectos da sua natureza (Êx 34.6,7). Não é nosso propósito aqui apro-fundar-nos em cada um deles, mas é importante enfatizar que todos são necessários para conhecer a Deus. As diversas traduções da Bíblia usam palavras diferentes para alguns, mas vou enumerar os sete nomes aqui com uma breve des-crição para identificá-los melhor:

1. Compaixão (no hebraico, rachum): um sentimen-to profundo de ternura e preocupação despertado pela fraqueza ou pelo sofrimento de pessoas que passam por aflição ou infortúnio, acompanhado por um desejo de aliviar sua condição.

2. Misericórdia ou graça (no hebraico, chanun): mostrar favor, inclinar ou curvar-se em bonda-de; agir para conceder graça sem merecimento.

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Denota uma ação realizada como resultado da primeira qualidade, que é a compaixão.

3. Tardio em irar-se ou longânimo (no hebraico, duas palavras: arek – tardio ou lento e aph – ira): neste caso, a tradução em português corresponde bem ao sentido original. Em Provérbios 14.29, vemos que a pessoa longânima, que demora para irar-se, é grande em entendimento. Em Provér-bios 19.11, a longanimidade é associada ao per-dão de pecados. O contrário do homem longâ-nimo é o iracundo, que se irrita com facilidade (Pv 15.18). Devemos ser muito gratos por Deus ser tardio em irar-se! Não significa que Deus não sinta ira (como as Escrituras mostram em várias passagens!), mas que ele não tem “pavio curto”, que demora muito para expressá-la ou ser movido por ela.

4. Amor de aliança (no hebraico, chesed ou hesed): esta é uma palavra que não possui um corres-pondente adequado no português (nem no inglês ou em outros idiomas). As versões da Bíblia em português a traduzem como bondade, benignida-de, misericórdia ou, no caso da NVI, amor. São traduções incompletas e confusas, porque já exis-te outra qualidade (a segunda) chamada miseri-córdia. Porém, realmente tem sido difícil para os tradutores encontrar uma palavra adequada para expressar o significado original que é muito rico e inclui vários aspectos do amor relacionado à aliança, como bondade, lealdade e perseverança. O importante a ser assinalado neste ponto é que esta é a única qualidade que foi repetida por Deus duas vezes: “grande em misericórdia [chesed] e fi-delidade; que guarda a misericórdia [chesed] em mil

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gerações...” (Êx 34.6,7). 5. Fidelidade (no hebraico, emeth): mais traduzida

como verdade, significa estabilidade, confiabili-dade, certeza; é o oposto de mentira e hipocrisia.

6. Perdoador (no hebraico, nasa): esta palavra sig-nifica carregar, levar embora, suportar. Caim disse que o castigo dele era maior do que seria capaz de “suportar [nasa]” (Gn 4.13). Isaías profetizou que o Messias “levaria [nasa]” sobre si o pecado de muitos (Is 53.12). Neste texto de Êxodo 34, Deus se revelou como aquele que “carrega [per-doa]” iniquidade, transgressão e pecado, ou seja, todo tipo de culpa.

7. Justo: neste caso, não foi dada uma palavra espe-cífica para representar a qualidade; houve apenas uma descrição. “... ainda que não inocenta o culpa-do, e visita a iniquidade dos pais nos filhos e nos fi-lhos dos filhos, até à terceira e quarta geração” (Êx 34.7). Essa qualidade traz o outro lado do sexto aspecto da natureza de Deus: ainda que perdoe os pecados, ele também é justo para não inocentar o culpado. Em outras palavras, seu perdão jamais anula sua justiça.

Deus é amor no Antigo Testamento também? Se Deus é amor, como o apóstolo João afirmou, você

não esperaria que a descrição mais completa de sua nature-za no Antigo Testamento (e, de fato, na Bíblia toda) desta-casse, de alguma maneira, essa qualidade tão importante de sua essência?

De fato, o amor está exatamente no centro da lista, representado pela palavra chesed, traduzida de forma apro-ximada como amor de aliança. Ao mesmo tempo, os sete

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aspectos da natureza de Deus são como as sete cores do ar-co-íris que, somadas, formam a luz branca e completa. Deus é amor e, para entender o que significa esse amor em toda a sua plenitude, você precisa examinar cada um dos aspectos individuais e, depois, reunir todos em uma só pessoa, uma só essência.

Olhando para esta lista, você consegue ver alguma di-ferença entre o Deus do Antigo Testamento e o Deus do Novo? De todos os sete aspectos revelados, somente um mostra um lado que poderíamos chamar de negativo, por mencionar o justo juízo sobre os culpados. Todos os demais revelam aspectos de ternura e cuidado: compaixão, miseri-córdia, longanimidade, bondade ou amor, fidelidade e per-dão. E precisamos de todos os sete (inclusive do último!) para entender a grandeza do seu amor.

Compaixão, em primeiro lugarVoltemos, agora, ao contexto dessa revelação. Moi-

sés não estava sozinho num retiro contemplativo, buscando uma experiência mais forte e íntima com Deus que satisfi-zesse um desejo pessoal. Ele estava querendo um conheci-mento mais completo do Senhor para poder “convencê-lo” a continuar andando no meio de seu povo de aliança, a fim de conduzi-lo à terra prometida e ao objetivo final de ha-bitar no meio deles para sempre (Êx 15.17). Afinal, Deus havia feito algumas ameaças muito sérias: destruir o povo de uma vez ou, no mínimo, não aparecer mais no meio dele. Deus é justo e tinha toda razão de estar irado. Como Moi-sés acharia um argumento para apresentar a ele? Foi por isso que suplicou ao Senhor que lhe revelasse sua glória e seus caminhos.

E como foi que Deus respondeu? Concedendo a

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Moisés exatamente o que pediu: a revelação da sua nature-za. E qual foi a primeira qualidade que lhe revelou? Com-paixão! Se Deus quisesse endurecer sua posição e resistir ao pedido de Moisés para voltar ao povo, você acha que começaria a exposição de si mesmo pela qualidade que mais lhe tornaria vulnerável aos seus argumentos? Só podemos concluir que ele queria ser “convencido”. Era o que seu co-ração mais desejava. Ele se revelou a Moisés, dizendo: “Sou um Deus compassivo; sou tocado pelo sofrimento humano. Olho para a situação do meu povo e fico comovido”.

Se você realmente deseja conhecer a Deus, não pode imaginá-lo como um ser que sabe de todas as coisas e, por isso, não se comove porque já sabe o que vai acontecer e o que precisa ser feito para trazer a solução. Não pense nele como quem já “viu o filme” de antemão e não se emociona durante os desdobramentos reais. Esse não é o nosso Deus! O Deus que servimos é um Deus que se comove com cada passo do drama humano, que se emociona com a sua his-tória pessoal e com a minha, com o sofrimento das nações, com as decapitações feitas pelo Estado Islâmico, com a mi-séria, com a rebeldia, com a independência do homem e com as suas divisões. Deus não está distante, tranquilo, ob-servando de longe. A compaixão é a primeira característica que foi revelada a Moisés.

Deus amou o homem antes da fundação do mundo e o amará eternamente! Sua compaixão é eterna! É sua natu-reza! Deus estava entrando em aliança com o povo de Israel como um todo e, para isso, precisava revelar quem ele era. Deus é tudo o que revelou a Moisés. Não é possível fazer aliança somente com o Deus misericordioso e perdoador, nem somente com o Deus juiz. Não existe aliança com ape-nas uma parte dele.

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Justiça, em último lugarO fato de a compaixão ser a primeira qualidade da

lista não é o único aspecto significativo a ser notado. Toda a sequência dos sete aspectos é importante. Por exemplo, a justiça só aparece no fim da lista. Por quê? Por ser uma qualidade de menor importância? Não! A justiça de Deus é séria; estende-se até a terceira e quarta gerações. O culpado não será inocentado. A justiça foi colocada no fim da lista para mostrar que Deus fará todo o possível para não ser obrigado a exercê-la por meio de juízo. Todas as seis qua-lidades que vêm antes têm o objetivo de conquistar o cora-ção do homem a fim de não precisar de disciplina, castigo ou juízo para transformá-lo. Deus tem compaixão, usa de misericórdia, demora para ficar irado e transborda de amor eterno, amor que jamais falhará nem acabará (veja 1 Co 13.7,8). Seu amor não rompe a aliança já no primeiro tro-peço de infidelidade da outra parte (nem no segundo ou no terceiro!). Ele vai atrás, persiste, continua fiel!

A fidelidade, que é a quinta qualidade, revela um Deus verdadeiro e autêntico. Podemos dizer que também inclui uma conotação “dura”, porque a verdade dói. Em muitos textos bíblicos, chesed e emeth (misericórdia e fideli-dade, ou amor de aliança e verdade) aparecem em conjunto. É o equilíbrio perfeito de Deus: ele ama, derrama bondade e graça, mas, ao mesmo tempo, é verdadeiro, fiel e autêntico. Seu amor é um amor verdadeiro, não um amor falso, hipó-crita, incoerente ou cego. Deus também deseja encontrar essa verdade fiel e autêntica no nosso interior (Sl 51.6).

Finalmente, antes de falar sobre a justiça, Deus ainda se revela como perdoador, capaz de perdoar toda espécie de iniquidade, pecado e transgressão. E ele é capaz de reunir todas essas qualidades e continuar perfeitamente justo, sem

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violar sua total inconivência com o pecado.

O que é chesed?Vale a pena examinar minuciosamente cada um des-

ses sete aspectos da natureza de Deus. Nosso objetivo aqui, porém, é examinar mais de perto apenas um deles, o quarto, identificado pela palavra hebraica chesed. A escolha dessa qualidade tem dois motivos: 1) por ser pouco conhecida, já que nem mesmo possui uma tradução adequada no nosso idioma, e, 2) por ser a única que é repetida duas vezes na proclamação de Deus a Moisés e a que foi, de longe, a mais citada dentre as demais no Antigo Testamento.

O termo mais aproximado em português para chesed, na minha opinião, é amor de aliança ou amor inabalável. É mais que lealdade, mais que misericórdia, mais que bonda-de. Não é mais que amor, porque o amor como essência da natureza de Deus inclui tudo. Porém, chesed é amor num sentido mais estrito, muito relacionado com aliança, con-forme veremos mais adiante.

De acordo com o Dicionário Vine, uma das referências mais conhecidas sobre o significado original das palavras em hebraico (Antigo Testamento) e grego (Novo Testamento), é preciso somar três conceitos distintos para chegar a uma compreensão da palavra chesed: 1) amor; 2) força – algo ina-balável, inesgotável, inexaurível, absolutamente firme, capaz de suportar pressões enormes; e, 3) constância – algo fiel, duradouro, eterno, infalível, inquebrável, confiável, imutá-vel, que nunca desiste.

Veja como é importante somar os três conceitos. Amor, isoladamente, se confunde facilmente com sen-timentalismo e tolerância. A palavra em hebraico para amor (sem conotação de aliança) é ahabah (pode ser

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transliterada também como “ahavah” ou “ahab”) e é usa-da no sentido mais abrangente de amor como sentimento de afeto e apego, sem restrição da obrigação ou do dever de aliança (como se pode ver em Dt 7.7,8, Jr 31.3 e Os 11.1). Já fidelidade (emeth) traz o conceito de honrar com-promissos e acordos, o que, sem amor, pode tornar-se um jugo insuportável. Chesed inclui os dois aspectos. É amor relacionado à força e à constância de uma aliança, ou seja, amor fiel e inabalável. Por um lado, não é só sentimento; por outro, não se limita a obrigações e deveres de uma aliança. Enquanto ahabah é usada um pouco mais de 50 vezes no Antigo Testamento, chesed aparece nada menos que 246, das quais aproximadamente 180 relacionam essa característica com Deus!

Que conclusão podemos tirar de tudo isso? Por que a palavra mais usada para especificar o amor de Deus é che-sed e não ahabah? Quando lemos sobre o amor de Deus, especialmente no Novo Testamento, descobrimos que é derramado sobre justos e injustos, amigos e inimigos (Mt 5.43-48) – sem depender de correspondência ou gratidão (como na cura dos dez leprosos em Lucas 17.11-19). Con-tudo, a revelação do amor de Deus no Antigo Testamento mostra um amor relacionado à aliança, a um vínculo forma-do entre duas partes. Chesed é uma palavra que denota atos de bondade e amor, mas sempre com o objetivo de formar um relacionamento duradouro e recíproco entre aquele que oferece graça e misericórdia e aquele que as recebe. Nunca é usada para descrever atos indiscriminados de bondade em geral. Traz a ideia de reciprocidade, relacionamento, lealda-de e firmeza.

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DUAS HISTÓRIAS DE CHESED

Para entender melhor como chesed é usada nas Escrituras, quero apresentar duas ilustrações de relacionamentos

horizontais entre pessoas antes de mostrar sua aplicação no nosso relacionamento com Deus.

Raabe e os espiasA primeira é a dos dois espias que Josué enviou a Je-

ricó para reconhecer o lugar antes de ir com todo o exército para fazer sua primeira conquista na terra prometida. Essa narrativa se encontra em Josué 2. Depois de os espias serem recebidos na casa de Raabe, uma prostituta, o rei da cidade ficou sabendo e mandou seus homens procurá-los. Raabe conseguiu despistar os servos do rei e, então, foi conversar com os dois israelitas.

“Eu sei que o Senhor dará esta terra a vocês”, ela lhes disse. A notícia de que o Deus de Israel havia seca-do o mar Vermelho diante deles e derrotado os reis dos

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amorreus deixou os habitantes de Canaã aterrorizados. Ela, porém, reagiu de forma diferente, passando a acreditar que Yahweh era o único Deus verdadeiro no céu e na terra.

Em seguida, ela propôs um acordo (na verdade, uma aliança, embora não tenha usado a palavra) que ilustra bem o conceito de chesed. “Agora, pois, jurai-me, vos peço, pelo Se-nhor que, assim como usei de misericórdia [chesed] para con-vosco, também dela usareis para com a casa de meu pai; e que me dareis um sinal certo [emeth – fiel, confiável] de que conser-vareis a vida a meu pai e a minha mãe, como também a meus irmãos e a minhas irmãs, com tudo o que têm, e de que livrareis a nossa vida da morte” ( Js 2.12,13).

Ela usou de misericórdia ou bondade (chesed) com os espias. O que isso significa? Que arriscou a própria vida para escondê-los. O que teria acontecido com ela se o rei de Jericó descobrisse que os espias estavam ali? Raabe não teve meramente um sentimento de compaixão; ela se ofereceu para protegê-los e ajudá-los em sua missão. Ela usou de bondade, mas foi muito mais do que isso; envolveu doação, sacrifício e risco pessoal.

E o que ela quis ganhar com esse ato de amor e sa-crifício? Não foi um ato aleatório que poderia servir para beneficiar qualquer pessoa. Ela usou de chesed com os espias para que eles também usassem de chesed com ela e, princi-palmente, com sua família. Chesed é uma palavra que mostra a atitude e o comportamento que se esperam num relacio-namento mútuo. Começa por um ato de misericórdia: algo que não era devido nem merecido. Porém, seu objetivo é produzir um laço forte, uma aliança mútua, que sirva para construir algo permanente.

Raabe, uma mulher prostituta de um povo cananeu, passou a crer no Deus de Israel. E, ao mostrar chesed para

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os dois espias israelitas, ela quis demonstrar sua fé neste Deus e obter salvação (preservação de vida, participação no reino que o povo de Israel estabeleceria ali) para toda a sua família.

O resultado foi uma aliança. Embora não tenham usado a palavra, tinha todas as marcas, incluindo juramento e a escolha de um sinal. Ela queria um sinal “certo” como garantia. Esta palavra no hebraico é emeth, que significa verdadeiro, fiel, firme (a quinta característica de Deus na lista que ele revelou a Moisés).

Como já mencionamos, chesed é usada muitas vezes em conexão com emeth (na própria lista de Êxodo 34.6: “grande em chesed e emeth”; também em Sl 86.15 e 89.14). A firmeza e a confiabilidade de emeth reforçam ainda mais a lealdade e a constância que caracterizam chesed.

Assim, Raabe usou de bondade e graça com os espias para demonstrar sua nova relação com o Deus de Israel. Com isso, ela queria receber os benefícios dessa aliança para si mesma e para toda a família. Para selar a aliança, ela pediu um juramento e um sinal de fidelidade.

Os espias corresponderam com a mesma linguagem e comportamento. “A nossa vida responderá pela vossa se não denunciardes esta nossa missão; e será, pois, que dando-nos o Senhor esta terra, usaremos contigo de misericórdia [chesed] e de fidelidade [emeth]” (v.14). Não estavam fazendo um tra-to superficial válido apenas em circunstâncias favoráveis ou convenientes; a própria vida deles seria a garantia do acor-do. Havia também condições: Raabe não poderia revelar os planos dos israelitas às autoridades da cidade, e a garantia de proteção valeria somente para quem estivesse dentro da casa dela. Para selar o acordo, combinaram um sinal: um cordão de fio escarlata amarrado na janela para ser visto

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pelo exército de Israel quando chegasse à cidade (vv.17-21). Se não estivesse na janela, não teria como identificar a casa, e ninguém seria protegido. Tudo isso era para mostrar a im-portância, a seriedade e a solidez do que estavam fazendo.

Essa história ilustra bem o conceito de chesed como amor e bondade praticados como base para um relaciona-mento recíproco firme, confiável e capaz de suportar situa-ções de grande perigo. Mostra também como o relaciona-mento entre duas pessoas ou grupos de pessoas só se torna firme e inabalável quando inclui na receita a presença de Deus. Como sabemos pela genealogia de Jesus em Mateus 1, Raabe não só foi preservada na conquista de Jericó, mas também entrou na linhagem que trouxe o Messias para a humanidade!

Jônatas e DaviA segunda ilustração é bem mais conhecida. É a

história de Jônatas e Davi e da bela amizade que surgiu en-tre eles. Como foi que esse relacionamento teve início? Veja em 1 Samuel 18.1: “Sucedeu que, acabando Davi de falar com Saul, a alma de Jônatas se ligou [ou se apegou] com a de Davi; e Jônatas o amou [ahabah] como à sua própria alma”. Tudo começou com ahabah, amor simples e incondicional. Davi estava falando com o rei Saul, e algo encontrou profunda ressonância no coração de Jônatas e o conquistou. Não foi um sentimento volúvel ou superficial; foi um amor tão forte que Jônatas passou a amar Davi com a mesma força com que amava a si mesmo: “como à sua própria alma”.

Esse amor levou Jônatas a se despojar de tudo o que assinalava seu status de filho do rei: capa, armadura, espada, arco e cinto. Não era uma brincadeira de garoto, deixando o colega ter o prazer de usar suas roupas e apetrechos reais

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por alguns momentos. Ele estava, de fato, cedendo seu lugar de herdeiro ao trono para Davi. Em outra ocasião, ele che-gou a dizer isso claramente: “Eu sei que você será o próximo rei, e eu não o serei” (1 Sm 23.17).

Portanto, para construir um relacionamento forte (uma aliança), o ponto de partida é amor, bondade, miseri-córdia. Nunca se deve começar com o lado das obrigações, com o compromisso de ser leal, de cumprir fielmente os deveres de um relacionamento. Se não houver amor em pri-meiro lugar, se não for lançado um fundamento que leve uma pessoa a doar a vida pela outra, a praticar atos de graça sem justificativa e sem que a outra pessoa “mereça”, não co-nheceremos a natureza de Deus e não experimentaremos o relacionamento baseado em chesed. É assim que funciona o relacionamento na Trindade, é assim que Deus age conosco e é assim que devemos proceder nos relacionamentos entre nós. Uma aliança seca, sem chesed, será apenas imposição, impreterivelmente fadada ao fracasso.

Por outro lado, uma aliança baseada em chesed vai muito além do sentimento. Muitos casais passam por crises e dizem: “Não dá para continuar; nosso amor acabou!”. Ou, então, no meio de uma crise na igreja, irmãos que andaram juntos durante muito tempo se separam e criam uma di-visão. “Não dou mais certo com ele, não posso continuar em comunhão.” Como assim? Onde está a força da aliança? Onde está a fidelidade? Não podemos depender somente de sentimentos, apesar de serem muito importantes e faze-rem parte tanto do processo de aproximação quanto da sus-tentação da aliança. Chesed é muito mais do que sentimento, do que manter as coisas enquanto estão “dando certo”. É o fundamento da fidelidade e da lealdade que mantém, na verdade, o amor de aliança e que traz de volta o sentimento depois das crises e tempestades.

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Algum tempo depois desse primeiro encontro entre Davi e Jônatas, Saul ficou enciumado do sucesso de Davi e começou a persegui-lo e a tentar matá-lo. Foi preciso que Davi fugisse de sua própria casa para não ser morto. O pri-meiro lugar de refúgio que encontrou foi junto ao profeta Samuel. Quando Saul soube disso, mandou mensageiros para apanhá-lo lá. Davi fugiu novamente, desta vez para perto de Jônatas (1 Sm 20.1).

Em princípio, Jônatas, como filho de Saul, não seria uma boa opção para ele naquele momento por estar prati-camente no “olho do furacão”. Mas Jônatas representava um lugar seguro para Davi. Algo muito forte acontecera entre eles. Davi não podia ficar em sua própria casa, com Mical, não podia voltar para a casa dos pais, nem mesmo ficar com Samuel. No entanto, ele sabia que poderia encontrar apoio e segurança em Jônatas. Quantas pessoas, hoje, fazem parte de uma igreja, grande ou pequena, e, apesar de rodeadas por irmãos, não sabem em quem podem confiar! Não conse-guem achar um lugar seguro! Precisamos descobrir como estabelecer verdadeiros relacionamentos de aliança no Cor-po de Cristo que funcionem em todo tempo, especialmente nos momentos de crise.

É na hora de crise e perigo que vemos a força ou a fraqueza de uma aliança. Davi confiava totalmente em Jô-natas. Foi nessa ocasião que apareceu pela primeira vez na história deles a palavra chesed. Depois de conversarem sobre a situação, Davi disse a Jônatas: “Usa, pois, de misericórdia [chesed] para com o teu servo, porque lhe fizeste entrar contigo em aliança no Senhor” (1 Sm 20.8a).

Veja como o relacionamento estava crescendo: pri-meiro, houve amor, um sentimento de profundo afeto e identificação, baseado na paixão e ousadia que ambos

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tinham pela causa do Senhor (Davi enfrentando Golias e Jônatas indo sozinho com o escudeiro contra uma fortaleza dos filisteus). Depois, Jônatas demonstrou seu amor, abrin-do mão de sua posição de herdeiro ao trono e passando os símbolos da sua posição especial para Davi. Em seguida, num momento de grande crise e perigo, Davi pediu que Jô-natas usasse de chesed, arriscando seu relacionamento com o pai, para buscar informações e proteção para ele. E por que Davi poderia solicitar chesed? Porque o próprio Jônatas ha-via tomado a iniciativa, algum tempo antes, para estabele-cer com Davi uma aliança – não uma aliança qualquer, mas uma aliança no Senhor, ou uma aliança de Deus! Na cultura hebraica, e mesmo nas outras culturas da época, uma alian-ça já era um assunto muito sério. Mas, quando uma aliança é feita com Deus como testemunha e participante, é muito mais forte e duradoura!

Observe como um pequeno entendimento do signi-ficado de chesed muda o impacto dessas palavras de Davi. Quando lemos “Usa, pois, de misericórdia...”, pensamos que ele estava simplesmente pedindo um ato de bondade por parte de Jônatas. Contudo, Davi não estava pedindo a Jô-natas para ajudá-lo, assim como pediria a uma pessoa qual-quer para ter compaixão dele. Ele estava recorrendo a um vínculo forte que já existia entre os dois, que lhe dava base para esperar uma ação de elevado grau de risco e sacrifício, assim como ele também estaria disposto a fazer o mesmo em caso de necessidade. Deus é um Deus de misericórdia que está pronto para derramá-la sobre qualquer pessoa ne-cessitada. Seu desejo é que nós façamos o mesmo. Porém, a prática de chesed implica atos de muito maior doação e custo pessoal porque são baseados num relacionamento recíproco de amor e aliança.

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Davi foi ainda mais longe e fez um pedido surpreen-dente: “Se, porém, há em mim culpa, mata-me tu mesmo; por que me levarias a teu pai?” (1 Sm 20.8b). Talvez, essas pa-lavras nos soem como mera força de expressão. Davi, com certeza, não esperava que Jônatas o matasse. Mas ele estava falando sério quando pediu que Jônatas lhe mostrasse onde havia errado. Ter alguém que representa um lugar seguro, em quem você coloca confiança, significa também confiar que ele lhe dirá com sinceridade onde você está falhando.

“Jônatas”, Davi estava dizendo, “sei que você não vai me trair, nem me entregar para seu pai. Mas você está lá dentro, você conhece seu pai e pode me dizer se estou fa-zendo algo de errado. O que foi que eu fiz? Pelo chesed1 da nossa amizade e aliança, diga-me a verdade. Mostre-me onde estou errando. Se estou quebrando algum princípio, sendo desleal ou infiel, mate-me você mesmo!”

Como Salomão disse: “Leais são as feridas feitas pelo que ama” (Pv 27.6). Essas são feridas que curam, que nos ajudam a enxergar o que não conseguimos ver sozinhos e a deixar hábitos e atitudes que nos destroem. Não é qual-quer um que tem direito ou coragem de fazer isso. É preciso amar muito, é preciso ter chesed genuíno para mostrar o erro, para confrontar de um jeito que cure e restabeleça. Essa é a natureza do próprio Deus!

Um pouco mais adiante na conversa dos dois, Jôna-tas prometeu descobrir as intenções do pai e comunicá-las a Davi, usando, mais uma vez, o Senhor como testemu-nha: “O Senhor, Deus de Israel, seja testemunha... Faça com Jônatas o Senhor o que a este aprouver, se não to fizer saber eu...” 1 Usaremos chesed no gênero masculino devido à equivalência que estamos fa-zendo com o significado “amor de aliança” ou “amor inabalável”.

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(1 Sm 20.12,13). Veja como era sério o compromisso que estava assumindo. Não era uma simples declaração de in-tenção: “Se der certo, eu farei; se não der, você vai enten-der!”. Hoje, nossas promessas não valem quase nada. Qual-quer circunstância contrária é suficiente para justificar o não cumprimento. Para eles, as consequências eram gravíssimas: recorriam ao próprio Deus para trazer juízo caso não fos-sem fiéis às suas promessas.

Em seguida, Jônatas pediu uma resposta de chesed da parte de Davi. “Se eu, então, ainda viver, porventura não usarás para comigo da bondade [chesed] do Senhor, para que não morra? Nem tampouco cortarás jamais da minha casa a tua bondade [chesed]; nem ainda quando o Senhor desarraigar da terra todos os inimigos de Davi” (1 Sm 20.14,15). No fim, fir-maram novamente a aliança e a selaram com juramento por causa do grande amor de Jônatas por Davi. Amar alguém como você ama a si mesmo, amar com todo o amor de sua alma – este é o fundamento de uma aliança, é o que a gera e a sustenta. É uma expressão do que existe entre as pessoas da Trindade!

Fica muito evidente no relato que a iniciativa veio de Jônatas, não de Davi. Chesed só existe num relacionamento com reciprocidade, mas a iniciativa pode vir de um dos la-dos. No nosso relacionamento com Deus, é claro que essa iniciativa sempre vem do lado divino. É importante enten-der que, quando falamos que Deus é amor ágape, um amor que não depende de resposta e que é derramado sobre o mundo inteiro, isso não significa que Deus não queira ou que não esteja procurando correspondência. Sabemos que a intenção de Deus é achar uma noiva para seu Filho e ce-lebrar um casamento, mas isso só pode acontecer quando há uma resposta ao seu amor. O plano de Deus é fazer uma

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aliança eterna com um povo que retribua o seu amor, que corresponda ao seu coração, com quem possa morar eterna-mente. Tudo começa com o amor ágape, com ações de ex-trema bondade e doação da parte de Deus. Mas o objetivo é gerar chesed, um relacionamento em que a doação flui nos dois sentidos!

No fim, Jônatas não pôde realizar seu sonho de ver Davi ocupar o lugar no trono que teria sido seu por direito, como filho de Saul. Ao invés de querer ser o primeiro, o so-nho de Jônatas era ser o segundo, porque seu maior prazer seria ver Davi cumprindo seu chamamento e o propósito de Deus em sua vida. Porém, como ele também manteve sua fidelidade ao pai, Jônatas morreu ao seu lado, pelas mãos dos filisteus.

E o que aconteceu com o chesed entre Davi e Jô-natas? O amor de aliança vai além da primeira geração e chega aos descendentes, dando uma pequena amostra de como Deus estende seu chesed a mil gerações daqueles que entram em aliança com ele (Êx 20.6; Dt 7.9). Anos depois da morte de Jônatas, Davi procurou um descendente do amigo para poder “usar de bondade [chesed] para com ele, por amor de Jônatas” (2 Sm 9.1). Davi não estava que-rendo meramente ser bonzinho com o filho de Jônatas; ele queria corresponder ao amor de aliança que existira entre eles. O significado de chesed é muito mais amplo do que demonstrar um ato isolado ou aleatório de bondade. Havia algo profundo e duradouro entre Davi e Jônatas, e Davi queria dar continuidade a esse amor de aliança com o filho, já que Jônatas não estava mais presente.

“Não há ainda alguém da casa de Saul para que use eu da bondade [chesed] de Deus para com ele?” (2 Sm 9.3). Amor de aliança não é algo que conseguimos produzir a partir de

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nós mesmos. É o chesed de Deus! Era uma aliança, um laço de amizade e lealdade entre duas pessoas, Jônatas e Davi, mas, em primeiro lugar, era o chesed de Deus. O próprio Deus está nessas ligações que constituem as juntas que mantêm as partes do corpo unidas, mesmo quando surge grande tensão contrária para dividi-las. O Senhor coloca enorme importância na fidelidade aos compromissos, no cumprimento das promessas mesmo quando o preço é ele-vado. Ele próprio age com esse tipo de lealdade e sempre honra aqueles que seguem seus passos.

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Precisamos voltar agora, mais uma vez, para o livro de Êxodo a fim de entender um pouco melhor o relacio-

namento que Deus estava estabelecendo com a nação de Israel. A primeira vez que a Bíblia menciona chesed em re-lação a Israel é no cântico de Moisés, depois da passagem pelo mar Vermelho: “Com a tua beneficência [chesed] guiaste o povo que salvaste; com a tua força o levaste à habitação da tua santidade” (Êx 15.13). Quem não sabe o que significa chesed verá este versículo apenas como uma afirmação da bondade de Deus derramada sobre o povo de Israel na libertação do Egito e na condução da nação até à terra prometida. Porém, há algo muito mais profundo a ser observado aqui: Deus estava procurando um relacionamento especial com um povo, com os descendentes de seu amigo Abraão (veja também em Êxodo 19.4-6). Para isso, precisava estabelecer uma aliança, a qual, por sua vez, dependeria de conquistar o coração deles. O que vemos aqui é uma demonstração prática de bondade e misericórdia, gerada por compaixão –

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mas, acima de tudo, por amor e pelo desejo de vivenciar um relacionamento recíproco e prazeroso de doação, entrega e promoção do bem-estar do outro. Em síntese: chesed!

O início de chesed: amorNormalmente, o sentimento de amor e a disposição

de entregar-se em favor do outro não começam simulta-neamente nas duas partes do relacionamento. No caso de Davi e Jônatas, começou com Jônatas. Mas houve forte res-sonância no coração de Davi. Somente assim é que chesed realmente consegue funcionar e gerar resultados ao longo de muitos anos. No caso de Deus e Israel (ou Deus e a Igre-ja ou Deus e você), sempre começa com Deus (1 Jo 4.10). O Senhor não nos ama porque somos bons, importantes, cheios de potencial, bondade e santidade ou um povo gran-de e numeroso (Dt 7.7,8; Rm 5.8). Essa é a qualidade do amor divino que dá início a todo esse processo maravilhoso que gera relacionamentos fortes para durar eternamente! É preciso ter um início, e este início vem de Deus! Nenhuma pessoa sozinha conseguiria produzir o movimento inicial de chesed para dar à luz um relacionamento genuíno. Mesmo que nasça no nosso coração um intenso amor pelo Senhor ou por outra pessoa, precisamos reconhecer que a fonte de todo verdadeiro amor está no próprio Deus.

Deus também não começa o relacionamento conos-co colocando exigências ou deveres. Uma aliança verdadei-ra não começa com obrigações. Começa com chesed, com ações de bondade e amor. E, quando o relacionamento está sofrendo tensões, sendo ameaçado por falta de correspon-dência e sentimentos genuínos que venham do coração, o ponto de partida não é reforçar as obrigações não cumpri-das; é voltar ao ponto que gerou tudo no princípio: ações imerecidas de amor e misericórdia.

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Porém, chesed não é consumado com ações unilaterais de graça e bondade. É preciso entrar na segunda fase para estabelecer reciprocidade e correspondência. Graça gera sentimentos de gratidão e o desejo de entrar em aliança para desfrutar verdadeira amizade e relacionamento. Era isso o que Deus estava procurando no monte Sinai. Falando com o povo todo à viva voz, identificando-se como aquele que os tirara da escravidão no Egito (Êx 20.2), Deus iniciou o con-trato da aliança, os Dez Mandamentos, com dois manda-mentos que definem a exclusividade da relação. Exatamente como no casamento, Deus queria um compromisso de amor com seu povo que não admitisse infidelidade nem promis-cuidade. Não seria possível manter com ele uma espécie de relação descompromissada e passageira que oferecesse uma vantagem imediata, visando somente ao benefício próprio. Por isso, depois de declarar que adoração, devoção e amor seriam exclusivos no relacionamento, ele revelou: “Porque eu sou o Senhor, teu Deus, Deus zeloso [ciumento], que visito a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem e faço misericórdia [chesed] até mil gerações daqueles que me amam [ahabah] e guardam os meus mandamentos” (Êx 20.5,6).

Geralmente, pensamos na velha aliança, com os Dez Mandamentos, como um contrato seco que consistia uni-camente em obrigações e deveres. De fato, como foi an-terior à vinda de Jesus e do Espírito Santo habitando no interior do homem, o povo de Israel não correspondeu ao amor de Deus da maneira que ele queria. Mas não podemos ignorar o fato de que, mesmo na vigência do re-gime da lei iniciado no Sinai, o caminho de Deus era o mesmo que conhecemos até hoje; sua natureza nunca mu-dou. Observe que, desde o início, a terminologia da aliança foi uma linguagem de amor. Não era um contrato seco e

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impessoal, mas uma aliança entre duas partes unidas uma à outra por um vínculo de afeição exclusiva. E, quando o povo fosse infiel, o Senhor já estava avisando que reagiria com ciúme, a emoção que brota de um amor não correspondido.

Características do amor: reações fortes e ciúmeNovamente, precisamos chamar atenção a uma pa-

lavra sempre mal traduzida nas versões bíblicas em portu-guês. O significado da palavra no texto acima não é “zelo-so”, é realmente “ciumento”. Yahweh visitaria a iniquidade dos pais nos filhos até a quarta geração das pessoas que não correspondessem a ele em amor (ou que o aborreces-sem); ele se derramaria em chesed durante mil gerações so-bre aqueles que o amassem. Portanto, estamos olhando para a dispensação da lei e observando como era, na verdade, o primeiro passo da parte de Deus para mostrar como fun-cionaria o relacionamento de amor entre ele e o seu povo. Mesmo sabendo que não funcionaria enquanto não chegas-se a plenitude dos tempos com a vinda do Espírito, Deus queria mostrar que sua aliança com o povo seria totalmente fundamentada num relacionamento de amor.

Pouco depois de promulgar sua aliança com a nação de Israel no monte Sinai, veio o primeiro teste, a primei-ra crise da aliança: o bezerro de ouro. Em toda a narra-tiva dessa crise, é possível distinguir sintomas claros de um relacionamento amoroso ferido, repletos de fortes reações e explosões. Como estamos acostumados a ver cri-ses amorosas entre namorados ou cônjuges, cheias de ati-tudes possessivas, agressivas e egoístas, é um pouco difícil aceitar o fato de que Deus sente ciúme ou que, depois de reações causadas por sentimentos feridos, ele pode se acal-mar e mudar de ideia. Como encontramos, então, neste re-lato bíblico, uma descrição de Deus que nos lembre de algo

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tão parecido? É claro que Deus não é ciumento no sentido egoísta

ou controlador que vemos constantemente nas relações hu-manas. Entretanto, penso que devemos observar pelo me-nos dois pontos importantes aqui:

1) o ciúme faz parte de qualquer relacionamento em que haja verdadeiro amor; quem não se importa com a correspondência da pessoa amada na ver-dade não ama! Em outras palavras, embora te-nhamos uma tendência a considerar todo ciúme como algo maligno e carnal, existe, de fato, um ciúme puro que faz parte da própria essência do amor;

2) Deus não é instável nem se permite ser domi-nado por caprichos de emoções passageiras; no entanto, sente paixão genuína que o faz reagir às crises no relacionamento e ter vontade de destruir tudo em sua ira (veja Gn 6.6 e Êx 32.10). Ele não age com base nesse impulso porque seu amor, sua misericórdia e sua fidelidade são muito mais fortes. Entretanto, é importante ver, por meio das narrativas bíblicas, que a constância e o equilíbrio perfeitos de Deus não o tornam uma pessoa fria, sem emoções. Moisés teve a experiência raríssima de estar com Yahweh na sua intimidade e de pre-senciar essas cenas tão fortes.

Uma das razões da existência de chesed são justamente as crises que existem em todos os relacionamentos amoro-sos. O que segura os vínculos na hora da tensão, da quebra da aliança por uma das partes ou do ciúme e da ira é a força e a constância que fazem parte do verdadeiro chesed.

Na primeira reação de Deus, quando “pediu permissão”

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de Moisés para consumir todo o povo por causa do bezerro de ouro que fizeram (Êx 32.10), Moisés intercedeu, citando as promessas que o Senhor fizera a Abraão, a Isaque e a Jacó. Ele usou os princípios de aliança e chesed, apesar de não mencionar os termos.

Depois, quando Yahweh afirmou que, mesmo assim, não conduziria mais o povo pessoalmente, Moisés pediu para conhecê-lo melhor (Êx 33.13), como já vimos antes. Como ele poderia argumentar com um Deus que não co-nhecia plenamente?

O amor nem sempre é racionalVeja, porém, como um relacionamento de amor não

segue regras lógicas. Vou resumir o relato bíblico em pontos sequenciais para ficar mais claro:

1) o povo faz o bezerro de ouro enquanto Moisés está ausente, lá em cima do monte com Deus;

2) Deus “explode”, dizendo que deseja consumir o povo em sua ira e começar tudo de novo com Moisés;

3) Moisés intercede, argumentando que os egípcios pensarão mal de Deus e, principalmente, lem-brando o Senhor de sua aliança com Abraão, Isa-que e Jacó;

4) Deus se arrepende e desiste de destruir o povo; 5) Moisés desce do monte, quebra as tábuas de pe-

dra e manda os levitas matar os idólatras; 6) Moisés intercede de novo, pedindo a Deus para

perdoar ao povo ou, então, riscar o nome dele do livro da vida;

7) Deus não diz que perdoou e afirma que não

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andará mais no meio do povo; Moisés terá de levá-lo à terra prometida por conta própria (com a ajuda do Anjo do Senhor);

8) Moisés argumenta que não pode levar o povo se nem sabe quem o acompanhará; se é verdade que ele achou graça aos olhos de Deus, que Yahweh lhe mostre o seu caminho para que o conheça de verdade;

9) Yahweh responde que “sua presença” irá com ele;10) Moisés não parece estar muito convencido; “se

tua presença não vai comigo, não me faças subir deste lugar”;

11) Yahweh responde novamente: “Farei isto que dis-seste, porque achaste graça aos meus olhos, e eu te conheço pelo teu nome”;

12) Moisés pede que Yahweh lhe mostre sua glória;13) Deus promete revelar sua glória, conquanto Moi-

sés permaneça escondido na penha; ao mesmo tempo, continua afirmando que só terá compai-xão e misericórdia de quem ele quiser (em ou-tras palavras, ele não tem obrigação de passar por cima do que o povo de Israel fez);

14) Yahweh revela sua glória, conforme prometeu, e proclama toda a sua bondade, seu nome e as sete qualidades de sua natureza.

Você já tentou entender uma discussão de casal? No final das contas, Deus havia concordado ou não em andar com seu povo, como Moisés suplicara, antes de revelar sua glória? Como ficou a questão de Deus ir ou não ir com o povo, de perdoar ou não perdoar, de manter ou não sua aliança? Alguma coisa não estava plenamente resolvida

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para Moisés. Por isso, queria muito ter um encontro com Yahweh, conhecê-lo como nunca antes.

E depois da experiência deslumbrante, o que Moisés sentiu? Ele ficou satisfeito por ser o homem que chegara mais perto de Deus? Não, continuou pensando no povo e no pedido que fizera no dia anterior antes de subir nova-mente no monte Sinai.

“Imediatamente, curvando-se Moisés para a terra, o ado-rou; e disse: Senhor, se, agora, achei graça aos teus olhos, segue em nosso meio conosco; porque este povo é de dura cerviz. Perdoa a nossa iniquidade e o nosso pecado e toma-nos por tua herança” (Êx 34.8,9).

Na sequência, Deus nem toca mais no assunto de perdão ou de não andar mais no meio do povo. Até pare-ce que perdemos alguma coisa. Ele simplesmente retoma o assunto de aliança e de como o povo deveria se portar na terra prometida. Era como se nada tivesse acontecido. Tudo estava de volta ao normal. O que mudou? Qual foi o argu-mento? O que fez Deus mudar de ideia?

Algumas coisas dispensam explicações, pois elas po-dem “quebrar o encanto” ao tentar submeter os sentimentos à racionalização. O coração se impõe à mente.

Não estou querendo inferir que Deus seja irracional, impulsivo ou volúvel. Quero que você note como a narrativa bíblica mostra um Deus de paixão, de sentimentos fortes, que nem sempre segue caminhos muito lógicos no seu rela-cionamento de amor com o homem. Às vezes, a resposta é talvez, mas significa sim; às vezes, parece que está dizendo sim, mas se percebe que a situação ainda não foi consertada.

Moisés queria conhecer os caminhos (ou a nature-za) de Deus. Quando viu Yahweh mais de perto, teve mais

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ousadia ainda para insistir com ele: “Pelo que me mostraste, tenho mais certeza de que podes continuar conosco. Tu és um Deus compassivo e misericordioso, tardio em irar-se e cheio de chesed e fidelidade. Perdoa nosso pecado, mantém teu chesed conosco, apesar de sermos um povo teimoso e infiel; continua em aliança de amor conosco”.

Sem dar uma explicação lógica, Deus aceita o pedido de Moisés (na verdade, Moisés estava apenas descobrindo o que Deus já queria fazer!) e retoma o assunto de aliança que havia iniciado pouco tempo antes. “Então, como eu estava dizendo...” Novamente, Yahweh promete realizar maravi-lhas inigualáveis, das quais nunca se ouvira falar, no meio do povo de Israel. Ou seja, ele continua firme no propósi-to de demonstrar bondade e misericórdia para conquistar o coração do povo. Com que intenção? Com o intuito de obter uma resposta de amor exclusivo e fidelidade total da parte deles. Em outras palavras, um fluir de chesed nas duas direções, de Deus para o povo e do povo para Deus.

O nome do Senhor é CiumentoPor um lado, então, Yahweh aceitou o pedido de

Moisés para não romper seu relacionamento e não apenas cumprir a letra da aliança, levando o povo em segurança para a terra prometida, mas principalmente para continuar amando-os de verdade e andando no meio deles até fazer sua habitação ali. Por outro lado, porém, ele reforçou ainda mais a advertência que já havia dado em viva voz ao trans-mitir os Dez Mandamentos: “... porque não adorarás outro deus; pois o nome do Senhor é Zeloso [Ciumento]; sim, Deus zeloso [ciumento] é ele” (Êx 34.14).

“Se estamos falando sobre manter chesed”, ele estava dizendo, “se vou continuar com o amor de aliança, vocês precisam compreender as verdadeiras implicações desse

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amor.” O amor de Deus não é um amor brando, indiferente,

que tolera qualquer atitude, sem reação, que sempre se manifesta afável e gracioso. É um amor forte, duradouro, capaz de superar enormes obstáculos e contratempos, mas também um amor apaixonado, que se importa com infidelidade, que arde em ciúme por nós por nos amar de verdade (veja Tg 4.4,5). Não é um amor que diz: “Eu amo você, mas você está livre para amar quem quiser, para se relacionar com quem quiser”. É amor de aliança, de reciprocidade, de relacionamento profundo e verdadeiro. O mesmo amor que tudo suporta, tudo espera, tudo sofre (1 Co 13.7) tem ciúme como “brasas de fogo, como veementes labaredas” (Ct 8.6). Para Deus dizer que não apenas sente ciúme, mas que se chama Ciumento, essa qualidade (inerente à essência do amor) necessariamente faz parte de sua natureza1.

Deus é amor, mas o objetivo do seu amor é viver um relacionamento de chesed com seu povo. Não é algo que pos-sa ser simplesmente ignorado. Na mesma medida em que é derramado para oferecer bondade imerecida e conquistar o coração do amado, ele também arde em ciúme quando não é correspondido ou quando a devoção do amado não é total, exclusiva e verdadeira.

1 Em 1 Coríntios 13.4, Paulo afirma que “o amor não arde em ciúmes”. Esta frase está no meio de uma lista de atitudes carnais que nada tem a ver com o amor verdadeiro, tais como soberba, busca egoísta de interesses próprios, o impulso de controlar e sufocar a pessoa amada e o ressentimento. O amor de Deus procura, em primeiro lugar, o bem maior da pessoa amada. Exige exclusividade de devoção pela própria natureza do amor, porque é impossível amar “dois senhores”. Ao mesmo tempo, o grande objetivo do amor de Deus é tornar-nos capazes de transmitir o mesmo amor a muitos outros e de formar assim uma grande família interligada, assim como acontece na Trindade. Quando tentamos “dividir” nos-sa devoção a Deus com outros deuses, na verdade estamos fazendo mal a nós mesmos, isolando-nos da única fonte de amor. Portanto, o ciúme de Deus nasce do amor e objetiva proteger o amado e a relação saudável que fará bem a ele (e a ambos). Já o ciúme humano vem do amor próprio, procurando proteger a si mesmo diante da ameaça de perda e dos prejuízos com o fim da relação.

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Veja como chesed é assunto sério. “Horrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo” (Hb 10.31). Como podemos calcar aos pés o Filho de Deus, profanar o sangue da aliança, ultrajar o Espírito da graça (Hb 10.29) e, mesmo assim, ficar impunes? “Porque o nosso Deus é fogo consumidor” (Hb 12.29).

É por isso que o shemá é reconhecido como o funda- mento de toda a Torá e confirmado por Jesus (Mc 12.28-30) como o primeiro e grande mandamento: “Ouve, Israel, o Senhor, teu Deus, é o único Senhor [ele não só é único no sentido de não existir outro; ele é único no sentido de não poder dividir o amor por ele com outros senhores]. Ama-rás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força (Dt 6.4,5). Jesus ensinou que ninguém pode servir a dois senhores, porque o amor é ex-clusivo: se você ama a um, automaticamente desprezará ou deixará de amar ao outro (Mt 6.24).

Portanto, o amor de Deus tem sentimentos e reações intensos, tanto no sentido de desejar ardentemente, de se dispor a oferecer o sacrifício máximo para redimir, abençoar e dar muito além do que seria merecido ou esperado, quanto no aspecto de arder em ciúme quando não é aceito e correspondido. Além disso, é forte e consegue superar obstáculos, suportar falhas e continuar amando e mantendo o vínculo a despeito de infidelidade e falta de correspondência. Esses dois lados podem parecer contraditórios, mas precisamos mantê-los em equilíbrio para compreender o significado de chesed e conhecer a natureza de Deus.

Uma intercessão aperfeiçoadaVeja a outra grande crise no relacionamento de Deus

e seu povo enquanto caminhavam no deserto em direção à

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terra prometida. Em Números 13, temos a história de como 12 espias, um de cada tribo, foram verificar a terra antes de o povo entrar. Quando a maioria desse grupo voltou falando que seria impossível enfrentar os gigantes que lá estavam, o coração do povo “derreteu” ( Js 14.8), e logo começaram a falar em voltar para o Egito.

Mais uma vez, houve uma veemente reação da parte de Deus, muito semelhante à que teve no monte Sinai. “Até quando me provocará este povo e até quando não crerá em mim, a despeito de todos os sinais que fiz no meio dele?” (Nm 14.11). A palavra original para “provocar” significa desprezar ou desdenhar. Você percebe o sentimento ferido de um amor não correspondido, não valorizado? Deus não havia feito sinais simplesmente para mostrar que era capaz, que tinha grande poder; ele usou de chesed para mostrar bondade e graça ao povo e conquistar o afeto do seu coração. E, apesar de tudo, os israelitas reagiram com desprezo e desdém. Deus falou novamente em dar fim a todos eles, de uma vez por todas.

Assim como fizera no Sinai, Moisés entra na brecha e intercede para mudar a decisão de Deus. Só que, desta vez, depois de conhecer de perto a glória e a natureza do Senhor, ele tem argumentos mais aperfeiçoados. Ele continua lembrando Yahweh de como um ato como esse envergonharia seu nome diante dos egípcios e dos povos de Canaã. Porém, ele usa também a revelação que o próprio Deus lhe dera: “O Senhor é longânimo e grande em misericórdia [chesed], que perdoa a iniquidade e a transgressão, ainda que não inocenta o culpado, e visita a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta gerações. Perdoa, pois, a iniquidade deste povo, segundo a grandeza da tua misericórdia [chesed] e como também tens perdoado a este povo desde a terra do Egito até aqui” (Nm 14.18,19).

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Moisés usa quatro das sete qualidades da natureza de Deus que lhe foram reveladas no Sinai, mas enfatiza chesed duas vezes, por ser a qualidade mais destacada de todas. É principalmente por causa de chesed que Moisés entende que Deus não abandonará seu povo nem deixará de manter seu relacionamento de amor com eles. O chesed de Deus é mais forte que a fragilidade do coração instável e vacilante do povo de Israel (e do nosso!). Houve consequências drásticas à atitude do povo, com punições severas, porque o amor constante de Deus não é frouxo no sentido de indiferença ou injustiça. Contudo, em resposta à súplica de Moisés (que foi de acordo com a revelação da natureza de Deus), o Senhor perdoou ao povo e manteve sua aliança e seu relacionamento de amor.

Até onde vai a força do chesed, a constância, a perseverança e a infalibilidade do amor de Deus? Não temos como medir nem como dizer se, em determinada situação, Deus vai manter sua aliança ou aplicar uma das medidas mais drásticas de juízo à nossa infidelidade. A força da aliança, na economia de Deus, não significa que ela nunca poderá ser rompida. Na história da nação de Israel, a inviolabilidade das alianças feitas com Abraão e Davi, por exemplo, significa que, de algum modo, Deus sempre levantará uma descendência para herdar as promessas, mas não quer dizer que ele tenha obrigação de manter seu vínculo de amor e fidelidade a descendentes infiéis. A história do povo judeu, começando pelas narrativas contidas no Antigo Testamento e continuando durante todos os séculos até à época presente, é a maior prova da força do chesed divino. É também um grande testemunho às terríveis consequências que recaem sobre um povo quando é infiel à aliança, ou seja, quando não corresponde ao chesed de Deus com chesed humano.

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Chesed nos SalmosO livro da Bíblia que mais fala a respeito do chesed de

Deus é Salmos: 127 vezes. É um dos temas mais recorrentes nas orações, nas súplicas e nos louvores a Deus. Ler todas as referências a chesed neste livro revela muito sobre a natureza e a força do amor de Deus em suas alianças. Veja alguns exemplos:

“Volta-te, Senhor, e livra a minha alma; salva-me por tua graça [chesed]” (Sl 6.4).“Mostra as maravilhas da tua bondade [chesed], ó Salvador dos que à tua destra buscam refúgio dos que se levantam contra eles” (Sl 17.7). “É ele quem dá grandes vitórias ao seu rei e usa de be-nignidade [chesed] para com o seu ungido, com Davi e sua posteridade, para sempre” (Sl 18.50).

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“Lembra-te, Senhor, das tuas misericórdias [racham – compaixão] e das tuas bondades [chesed], que são desde a eternidade. Não te lembres dos meus pecados da mocidade, nem das minhas transgressões. Lembra--te de mim, segundo a tua misericórdia [chesed], por causa da tua bondade, ó Senhor... Todas as veredas do Senhor são misericórdia [chesed] e verdade para os que guardam a sua aliança e os seus testemunhos” (Sl 25.6,7,10). “Pois a bondade [chesed] de Deus dura para sempre... confio na misericórdia [chesed] de Deus para todo o sempre” (Sl 52.1,8).“Pois a tua misericórdia [chesed] se eleva até ao céus, e a tua fidelidade [emeth], até às nuvens” (Sl 57.10). “Porque a tua graça [chesed] é melhor do que a vida” (Sl 63.3).

Observe que os tradutores da Bíblia, na maioria das versões, não tiveram o cuidado de traduzir chesed sempre pela mesma palavra. Por isso, para realmente compreender a riqueza e a profundidade do sentido original, é muito im-portante seguir algumas palavras, principalmente aquelas, como chesed, que não têm um termo correspondente no nosso idioma. Quando você lê os textos acima, entendendo que chesed se refere a amor de aliança, a um relacionamento recíproco e à fidelidade de Deus em manter sua bondade e suas promessas por causa do desejo de estabelecer um vín-culo profundo e duradouro com o homem, o sentido se tor-na bem mais amplo e impactante.

Os salmistas usavam chesed para suplicar a Deus por misericórdia, pedir perdão, rogar a Deus que não se lem-brasse dos pecados e das infidelidades, para descrever o

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amor eterno de Deus (o firme fundamento que sustenta toda aliança e promessa divina) e para garantir a continui-dade de sua fidelidade durante todo o futuro tanto do in-divíduo quanto do povo como um todo. O chesed de Deus é melhor que a vida, é elevado, sublime, poderoso e eterno como os próprios céus. Temos, inclusive, um salmo inteiro sobre chesed: o Salmo 136. O refrão “porque a sua miseri-córdia [chesed] dura para sempre” aparece em todos os 26 versículos.

Chesed nos profetasEncontramos nos escritos dos profetas muitas des-

crições da história da aliança entre Deus e o seu povo, comparando-a ao relacionamento entre marido e esposa, e mostrando como, desde o início, foi o chesed divino que a manteve.

“Com amor [ahabah] eterno eu te amei; por isso, com benignidade [chesed] te atraí” ( Jr 31.3). O relacionamen-to começa com amor, mas é cultivado por meio de chesed, por atos de bondade imerecida que atraem e conquistam o coração. Deus tirou Israel do Egito, cuidou do povo no deserto e fez grandes sinais e maravilhas. Isso foi no início, quando ele chamou o povo pela primeira vez. No tempo de Jeremias, ele estava falando sobre o que faria para atraí-lo de volta depois da apostasia e do cativeiro. O amor de alian-ça inclui compaixão e misericórdia.

“Lembro-me de ti, da tua afeição [chesed] quando eras jovem, e do teu amor [ahabah] quando noiva, de como me se-guias no deserto, numa terra em que se não semeia” ( Jr 2.2). Is-rael correspondia a Deus (não de modo perfeito!) com amor e chesed. Ainda que houvesse muitas falhas, Deus valorizava muito a confiança do seu povo em ir após ele ao deserto e

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em corresponder com amor, afeição e fidelidade. Ele encon-trava uma resposta, pelo menos uma pequena parte daquilo que estava procurando. Às vezes, podemos perceber nas Es-crituras algo parecido com ansiedade da parte de Deus. Ele deseja tanto achar uma resposta em nós que até mesmo um pequeno sinal, um gesto quase imperceptível o emociona!

Por causa das sucessivas infidelidades do povo, Deus precisou tomar medidas duras, porém sempre com vistas à restauração e preservação do relacionamento. “Porque o teu Criador é o teu marido; o Senhor dos Exércitos é o seu nome... Porque o Senhor te chamou como a mulher desamparada... que fora repudiada, diz o teu Deus. Por breve momento [?!?] te dei-xei, mas com grandes misericórdias [racham – compaixão] torno a acolher-te; num ímpeto de indignação [reação explosi-va causada por um sentimento de amor não correspondido], escondi de ti a minha face por um momento; mas com misericór-dia [chesed] eterna me compadeço [racham] de ti, diz o Se-nhor, o teu Redentor. [...] Porque os montes se retirarão, e os ou-teiros serão removidos; mas a minha misericórdia [chesed] não se apartará de ti, e a aliança da minha paz não será removida, diz o Senhor, que se compadece [racham] de ti” (Is 54.5-10).

Deus não colocou aqui as razões de Israel ter sido como uma mulher desamparada e rejeitada. Apenas afir-mou que sua compaixão o levou a ir atrás dela novamente. Deus fere, mas tem compaixão e “logo” nos acolhe nova-mente. É certo que, para nós, não parece que o Senhor te-nha deixado o povo de Israel (ou se afastado de nós) por um breve momento; entretanto, ele está contrastando o período de juízo com a duração eterna do seu chesed. É como a jus-tiça que ele exerce sobre os homens, que chega no máximo a três ou quatro gerações, comparada com o seu chesed, que se estende até mil gerações (Êx 34.7). O amor de aliança é

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muito maior do que a nossa infidelidade e muito mais du-radouro até do que a ira de Deus. Esse texto mostra a força do chesed divino. Não exclui o uso de disciplina e juízo, mas supera tudo e faz com que Deus seja fiel às suas promessas a despeito da nossa infidelidade.

No meio da mais longa e intensa lamentação na Bí-blia por causa dos juízos do Senhor sobre seu povo na época da destruição de Jerusalém e do cativeiro do remanescente de Judá, Jeremias exalta o chesed de Deus: “As misericórdias [chesed] do Senhor são a causa de não sermos consumidos, por-que as suas misericórdias [racham] não têm fim; renovam-se cada manhã. Grande é a tua fidelidade [palavra derivada de emeth]” (Lm 3.22,23). E ainda confirma que o chesed é mais forte e permanente do que a disciplina: “O Senhor não rejeitará para sempre; pois, ainda que entristeça a alguém, usará de compaixão [racham] segundo a grandeza das suas miseri-córdias [chesed]; porque não aflige, nem entristece de bom gra-do os filhos dos homens” (Lm 3.31-33).

“Quem, ó Deus, é semelhante a ti, que perdoas a iniqui-dade e te esqueces da transgressão do restante da tua herança? O Senhor não retém a sua ira para sempre, porque tem prazer na misericórdia [chesed]” (Mq 7.18).

Outra vez, Isaías, depois de falar em termos muito fortes sobre o juízo final que o próprio Jesus executaria no “dia da vingança”, descreve a força e a eficácia do chesed de Deus para seu povo: “Celebrarei as benignidades [chesed] do Senhor e os seus atos gloriosos, segundo tudo o que o Senhor nos concedeu e segundo a grande bondade para com a casa de Israel, bondade que usou para com eles, segundo as suas misericórdias [racham] e segundo a multidão das suas benignidades [che-sed]” (Is 63.7). Em seguida, exalta a ternura e o cuidado de Deus em guiar (e até carregar) seu povo no meio de todas

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as angústias no deserto (v.9). Também fala sobre a rebeldia do povo em entristecer o Espírito Santo e não corresponder ao chesed divino (v.10). Diante disso, ele faz uma oração a Deus, chamando-o de Pai (v.16 - uma de suas raras ocor-rências no Antigo Testamento) e suplicando intensamente para que ele volte a olhar para seu povo como antes (v.17), ou seja, que seu chesed continue a se manifestar.

Em várias ocasiões, os profetas expressavam o anseio de Deus por encontrar correspondência, por receber o fluir recíproco de chesed a partir do coração do homem.

“Ouvi a palavra do Senhor, vós, filhos de Israel, porque o Senhor tem uma contenda com os habitantes da terra, porque nela não há verdade [emeth], nem amor [chesed], nem conhe-cimento de Deus” (Os 4.1). Deus não encontrava fidelidade nem amor de aliança na terra, tanto nas relações entre os homens quanto entre eles e o Senhor (sentido horizontal e sentido vertical). Os dois tipos de relacionamento são in-terdependentes. Se não houver fidelidade e relacionamento firme de aliança entre nós e Deus, jamais conseguiremos es-tabelecer vínculos verdadeiros entre nós e nossos irmãos. A razão de Deus ter ficado triste e agido duramente com seu povo foi não ter encontrado correspondência, não ter rece-bido fidelidade e amor recíprocos e não ter visto a formação do relacionamento forte e significativo que chesed represen-ta. A palavra fidelidade ou verdade foi citada em primeiro lugar com o sentido de integridade e lealdade. Quando você é fiel, aquilo que promete, que sai de sua boca, você cumpre. Você não é uma pessoa de duas caras, mas é autêntico e tem verdade em seu interior. É isso que Deus procura no rela-cionamento conosco.

“Que te farei, ó Efraim? Que te farei, ó Judá? Porque o vosso amor [chesed] é como a nuvem da manhã e como o

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orvalho da madrugada, que cedo passa” (Os 6.4). Que con-tradição de termos! Como chesed pode ser comparado ao orvalho que não dura mais que algumas horas? Chesed é for-te, estável, duradouro, confiável. Como é possível que nosso amor e correspondência a Deus sejam tão transitórios, tão volúveis, tão passageiros? Deus nos deu tudo o que tinha, sua própria vida, seu Filho e seu cuidado. No entanto, nós nos esquecemos disso rapidamente! Imagine o Deus eterno buscando um relacionamento permanente conosco, e nós lhe oferecendo um amor com qualidade de orvalho! Em todos os seus relacionamentos, ele sempre demonstrou que queria algo permanente e duradouro. Com Noé, por exem-plo, na primeira aliança que é chamada de aliança na Bíblia, ele já falava em termos de “perpétuas gerações” (Gn 9.16).

“Pois misericórdia [chesed] quero, e não sacrifício, e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos” (Os 6.6). Como é importante entender o significado real das pala-vras! Sempre li este versículo entendendo que Deus queria que tivéssemos misericórdia dos necessitados. De fato, essa é uma das prioridades de Deus, e a misericórdia faz parte do significado de chesed. Porém, o que Deus está dizendo aqui é que ele deseja chesed, correspondência ao seu amor, fideli-dade ao relacionamento, um coração inteiramente devoto e dedicado a ele.

Se firmarmos um relacionamento de amor e fidelida-de com Deus, nossa relação com o próximo também mu-dará: “Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o Senhor pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia [chesed], e andes humildemente com o teu Deus” (Mq 6.8); “Assim falou o Senhor dos Exércitos: Executai juízo verdadeiro, mostrai bondade [chesed] e misericórdia [racham], cada um a seu irmão...” (Zc 7.9).

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FORMANDO UM RELACIONAMENTO PERMANENTE

Deus quer algo sólido e permanente entre nós. É isso o que ele vem procurando desde o princípio. Como

é importante compreender a natureza de Deus, conhecer, pelo menos um pouquinho, o que está no seu coração e o anseio que sente por nós! Como gentios do século 21, não temos essa cultura e compreendemos pouco do que está im-plícito num verdadeiro relacionamento de fidelidade. Até o vínculo do casamento, que deveria ser o modelo perfeito para os laços que Deus deseja formar entre nós, está per-dendo cada vez mais o sentido. Além disso, dentro da nossa compreensão incompleta da Nova Aliança, temos transfor-mado a experiência mais importante e fundamental de toda nossa vida na Terra (nascer de novo e estabelecer um rela-cionamento eterno com nosso Criador) num ato mecânico e superficial. Convidamos as pessoas a levantar a mão ou a atender a um apelo para repetir uma oração e pedir a Jesus para entrar no coração. Pronto: elas já têm a certeza da vida eterna!

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Formando um relacionamento permanente

Não estou negando que isso possa, de fato, acontecer dessa forma. Um novo nascimento não precisa ser, necessa-riamente, uma experiência dramática ou emotiva. Contudo, quando olhamos a maneira como Deus construía relacio-namentos no Antigo Testamento, não tem como negar que era um processo bem mais meticuloso, paulatino e profun-do do que as experiências de conversão de hoje.

O processo do relacionamento na vida de AbraãoVamos tomar, por referência, o caso de Abraão. A his-

tória de aliança com um povo escolhido, separado de todos os demais povos na terra, começou exatamente com ele, o pai da fé e de todos aqueles que puderam ter novamente um relacionamento forte e verdadeiro com Deus.

Quando Deus o chamou, ele lhe deu promessas e uma ordem para sair de sua terra e ir para um lugar que ainda lhe mostraria. Depois de obedecer ao chamado e de passar, durante vários anos, por novos encontros com Deus, Abraão finalmente recebeu o convite para entrar numa aliança com o Senhor, numa cerimônia que incluiu animais partidos e uma tocha sobrenatural representando a presen-ça de Deus (Gn 15). Muito tempo depois, quando já estava com 99 anos, Deus lhe deu o sinal da aliança (circuncisão) e prometeu que seria uma aliança eterna (Gn 17.7). Tudo isso aconteceu por causa de um relacionamento recíproco, em que Deus falava e Abraão respondia, reagia e obedecia.

Entretanto, a experiência de Gênesis 17 ainda não foi o auge da amizade entre Deus e Abraão! Algo aconteceu que selou ainda mais o vínculo entre os dois, incluindo os descendentes de Abraão para sempre. Podemos até achar impossível que existisse algo mais forte do que firmar uma aliança, usando animais partidos, e estabelecer um sinal

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(como o anel da aliança do casamento) para servir de tes-temunha de uma aliança eterna. Mas a força do relaciona-mento realmente foi além desse ponto.

Sabemos que Deus usou de chesed para Abraão e Sara e lhes deu um bebê, um filho na sua velhice. Isaque não era qualquer criança. Quando um casal não consegue ter filhos e passa por um longo processo de obstáculos e im-possibilidades e, finalmente, recebe a criança esperada, a alegria é muitas vezes maior. Pais e avós já ficam transtor-nados quando o filho nasce dentro de condições normais, sem “milagre” algum. Imagine Abraão e Sara, ele com 100 anos e ela com 90, curtindo cada momento, cada nova etapa na vida do bebê Isaque! Que demonstração fantástica de chesed! Deus realmente derramou imensa bondade e amor sobre aquele casal!

Só que chegou um dia em que Deus falou para Abraão: “Agora chega! Vocês vão me devolver o filho. Ele é meu, eu o emprestei a vocês por um tempo, mas agora eu o quero de volta!”.

Abraão se levantou cedinho no dia seguinte e levou Isaque para sacrificá-lo, para oferecer a Deus o que ele tinha de melhor (exatamente como havia recebido o melhor da parte de Deus). No instante exato em que estava com a mão levantada, Deus bradou do céu e levou o relacionamento a um nível ainda mais forte do que o de uma aliança: jurou que as promessas feitas seriam realmente concretizadas e firmadas para sempre.

Em Hebreus 6, o autor da epístola explica esse acon-tecimento, dizendo que Deus quis dar uma espécie de ga-rantia dupla para Abraão para “mostrar mais firmemente aos herdeiros da promessa a imutabilidade do seu propósito” (Hb 6.17), já que, mesmo sem jurar, “é impossível que Deus minta”.

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O juramento assinala o caráter irrevogável do relaciona-mento. Não seria mais possível Deus mudar de ideia!

Isso é chesed, é a força do amor de Deus e de suas promessas! E como Deus tem sido fiel a essas promessas! Até hoje, depois de 4 mil anos, o Senhor continua cumprindo sua palavra para a descendência natural de Abraão, garantindo-lhes a posse da terra de Israel! E essa é apenas uma pequena parte daquele juramento de Deus; o restante da história da humanidade na Terra ainda revelará muitos outros aspectos da fidelidade divina tanto para os descendentes naturais de Abraão quanto para os espirituais! É muito além da nossa compreensão, até mesmo da nossa imaginação!

Mas como o relacionamento chegou a esse ponto? Passou-se muito tempo, houve várias etapas no desenvol-vimento da amizade, até poder selar uma aliança eterna e um juramento irrevogável. Existem muitos níveis de ami-zade e amor. Chesed é um amor de aliança que vai crescendo progressivamente: Deus se doa cada vez mais a nós, enquanto nós correspondemos a ele, devolvendo-lhe cada vez mais o amor que recebemos da sua parte. Os laços vão se fortalecendo, pois Deus deseja produzir um relaciona-mento que durará por toda a eternidade. Para construir um prédio que suporte terremotos e abalos, capaz de enfren-tar qualquer ameaça e durar “para sempre”, é preciso cavar muito e lançar fundamentos muito fortes. E como esse pro-cesso costuma demorar! É exatamente isso que Deus está fazendo conosco: edificando um reino inabalável que nunca poderá ser removido (Hb 12.27,28). A base desse reino são relacionamentos de aliança.

O desenvolvimento de aliança na vida de DaviOutro grande exemplo de um relacionamento que

levou muitos anos para se transformar numa aliança eterna

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é o de Davi. Quanto tempo ele andou com Deus até che-gar ao momento sublime de aliança em 2 Samuel 7? Após ser ungido pelo profeta Samuel, matou Golias, passou anos fugindo de Saul, recebeu primeiro o trono de Judá e de-pois de todas as outras tribos, conquistou Jerusalém, trouxe a arca da aliança e obteve vitória sobre as nações à sua volta. Quando finalmente se propôs a fazer uma casa para que o Senhor morasse com ele na terra, Deus reagiu com tanto entusiasmo que quase se “atropelou” e já foi prometendo coisas grandiosas e duradouras. Davi ficou atônito. “Não es-tou entendendo, Deus. Eu só falei de fazer uma casa para ti (proposta, aliás, que foi recusada), e o Senhor começa a falar de coisas muito sublimes, uma casa eterna e uma aliança para todo o sempre!” (veja 2 Sm 7.18,19).

O que aconteceu mesmo naquele momento? Por que Deus ficou tão comovido? Sabemos que o Senhor tem um amor infinito e perfeito. Não tem problema algum da parte dele em criar ou manter um relacionamento conosco. Mas enquanto o amor for unilateral, não será possível estabele-cer um verdadeiro vínculo. Ele se doa completamente a nós, mas depois fica nos observando, esperando algum sinal de resposta por menor que seja. É como os pais que investem a vida inteira nos filhos durante todo o tempo de sua cria-ção, mas ficam vigiando, esperando uma resposta; qualquer sinal, qualquer gesto, ainda que seja quase imperceptível aos outros, alegra sobremaneira o coração do pai e da mãe. Deus viu nesse gesto de Davi a atitude que sinalizava a exis-tência de chesed.

Deus havia demonstrado bondade e amor a Davi, escolhendo-o e tomando-o de trás das ovelhas, acompa-nhando-o em todas as suas jornadas, lutas e dificuldades e dando-lhe um nome entre os grandes da terra (2 Sm 7.8,9). Quando Davi respondeu, demonstrando o desejo de fazer

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uma casa para Yahweh morar bem pertinho dele, Deus re-cebeu suas palavras como chesed, o fluir de amor e devoção espontâneos do coração do rei. “Eu tenho tudo”, Davi fa-lou. “O Senhor me deu o trono, me deu vitória sobre meus inimigos e uma casa sofisticada (de cedros), mas tu mesmo não tens nada, nem sequer um lugar para morar; só tens esta tenda, uma pobre barraca!”

Na mesma hora, Yahweh prometeu um trono eterno para Davi e uma relação de pai e filho para sua descendên-cia. Como pai, talvez teria de agir severamente para disci-plinar e corrigir, mas jamais tiraria deles sua “misericórdia [chesed]” (v.15), como a retirou de Saul. Deus usou de che-sed com Saul também, mas, como ele não correspondeu, o chesed lhe foi retirado. O fato de iniciar um relacionamento, de dar os primeiros passos para estabelecer uma amizade ou uma aliança, não significa que o mesmo será confirmado.

Chesed no Salmo 89O relacionamento de Davi, assim como o de Abraão,

chegou a um ponto em que Deus o selou eternamente. Isaías fala da “aliança perpétua” e das “fiéis misericórdias [chesed] prometidas a Davi” (Is 55.3). O Salmo 89, que tem como tema central o chesed de Deus, especificamente com Davi, fala do juramento divino que jamais poderia ser desfeito. “Cantarei para sempre as tuas misericórdias [chesed], ó Se-nhor”, o salmista (Etã, ezraíta, um contemporâneo de Davi e Salomão – 1 Rs 4.31) começa já no primeiro versículo. “Pois disse eu: a benignidade [chesed] está fundada para sempre; a tua fidelidade, tu a confirmarás nos céus, dizendo: Fiz aliança com o meu escolhido e jurei a Davi...” (vv.2,3). Etã começa, então, a cantar a respeito do maravilhoso amor de aliança do Senhor, que é eterno e foi exemplificado na vida de Davi.

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“Encontrei Davi, meu servo”, o próprio Deus afirma no versículo 20 (texto que é citado por Paulo, na pregação em que Davi é chamado “homem segundo o coração de Deus” – At 13.22). “A minha fidelidade e a minha bondade [chesed] o hão de acompanhar” (v.24), ele declara. E, outra vez: “Conservar--lhe-ei para sempre a minha graça [chesed] e, firme com ele, a minha aliança” (v.28). O que significa esse chesed? Significa que a mão de Deus estará sempre com ele (v.21), que seus inimigos serão derrotados (vv.22,23), que ele será conside-rado o primogênito de Deus, o mais elevado dos reis da ter-ra (vv.25-27) e que a sua descendência e o seu trono durarão para sempre (v.29). Significa, também, que, ainda que seus filhos se afastem das condições da aliança, Deus os discipli-nará, mas nunca lhes retirará o seu chesed (v.33), quebrará sua aliança ou voltará atrás no seu juramento (vv.30-37). Esse é o significado pleno de chesed: um relacionamento que permanece apesar de todo e qualquer obstáculo. A infide-lidade tem consequências sim, mas os laços da aliança são mais fortes e superam todas as inconstâncias humanas.

Em seguida, o salmista descreve a situação calamitosa em que o povo se encontrava na época em que o salmo foi escrito. Deus estava indignado com o seu ungido (v.38). Não sabemos ao certo que época foi essa, mas possivelmente era o tempo da rebelião de Absalão. Aparentemente, a aliança eterna não estava sendo honrada (v.39), os inimigos estavam triunfando (v.42) e o esplendor do reino e do trono se transformara em vergonha (v.44). Há momentos em que, da nossa perspectiva humana, o chesed de Deus não está mais valendo, e tudo está indo água abaixo. É nessa hora que precisamos nos firmar na força e na infalibilidade do amor de aliança. Podemos usar a revelação de quem Deus é para fundamentar nossas súplicas: “Até quando, Senhor? Esconder-te-ás para sempre? [...] “Que é feito, Senhor, das tuas

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benignidades [chesed] de outrora, juradas a Davi por tua fidelidade?” (v.46,49). Sabemos, agora, que Davi passou por um tempo tenebroso, mas que Deus não o abandonou nem desistiu de suas promessas. Por quantos períodos escuros o povo de Israel, os descendentes de Davi e a Igreja têm passado desde então? E o chesed de Deus continua valendo, continua “segurando as pontas” apesar de toda a nossa infidelidade!

O profeta Jeremias compara a fidelidade de Deus às suas alianças com o marido de uma esposa infiel. “Ora, tu te prostituíste com muitos amantes; mas, ainda assim, tor-na para mim, diz o Senhor. [...] Volta, ó pérfida Israel, diz o Senhor, e não farei cair a minha ira sobre ti, porque eu sou compassivo [cheio de chesed], diz o Senhor, e não mante-rei para sempre a minha ira. Tão-somente reconhece a tua iniquidade, reconhece que transgrediste contra o Senhor, teu Deus, e te prostituíste com os estranhos debaixo de toda árvore frondosa e não deste ouvidos à minha voz, diz o Senhor” ( Jr 3.1,12,13).

Pense um pouco: qual seria o maior e mais dramático exemplo do chesed de Deus na história humana? A respos-ta, sem dúvida alguma, é a trajetória dos descendentes de Abraão. Quantas promessas, quantos milagres, quantas ma-nifestações e intervenções sobrenaturais! Quantas conquis-tas e vitórias inconcebíveis! Quantas infidelidades, apos-tasias e rebeldias! Quantos infortúnios, reveses, tragédias, sofrimentos, holocaustos, perseguições, discriminações, tor-turas e massacres! E quantos retornos, restaurações e ressur-reições inimagináveis! Realmente, o chesed de Deus é muito mais forte do que todas as fraquezas, inconstâncias e infide-lidades humanas. É mais forte até mesmo do que a ira ou o castigo divinos. Como afirma Tiago: “A misericórdia triunfa sobre o juízo” (Tg 2.13).

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Como podemos aplicar à dispensação da Nova Aliança esse processo de construir, paulatinamente, um verda-

deiro e duradouro relacionamento? Evidentemente, o tipo de aliança que Deus formou com Abraão e Davi era muito mais abrangente e precisava de muito mais preparação do que a aliança individual que existe entre ele e um pecador que foi redimido pelo sangue de Jesus. Na verdade, nós en-tramos, pela fé em Jesus, na mesma aliança que Deus esta-beleceu com Abraão (Gl 3.6-14). Não precisamos passar novamente por todo o caminho que os pais da fé desbrava-ram, assim como não precisamos sofrer o que Jesus sofreu para receber perdão dos pecados e fazer parte da aliança entre ele e o Pai.

Entretanto, os princípios de amizade, relacionamento e aliança com Deus são os mesmos para todos nós. E o livro de Hebreus dá ênfase especial aos dois aspectos: tanto à obra perfeita, eterna e inteiramente suficiente de Jesus na

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Nova Aliança quanto à necessidade de perseverar até o fim. Precisamos entender que receber o perdão e a salvação que Jesus providenciou na cruz pode ser um ato instantâneo, mas o amor firme e infalível de aliança é algo a ser desen-volvido por reciprocidade e perseverança, dois elementos fun-damentais de qualquer relacionamento.

Vez após vez, o autor enfatiza: “a qual casa somos nós, se guardarmos firme, até ao fim, a ousadia e a exultação da espe-rança [...] Porque nos temos tornado participantes de Cristo, se, de fato, guardarmos firme, até ao fim, a confiança que, desde o princípio, tivemos” (Hb 3.6,14). “Desejamos, porém, continue cada um de vós mostrando, até ao fim, a mesma diligência para a plena certeza da esperança; para que não vos torneis indolen-tes, mas imitadores daqueles que, pela fé e pela longanimidade, herdam as promessas” (Hb 6.11,12). “Não abandoneis, por-tanto, a vossa confiança; ela tem grande galardão. Com efeito, tendes necessidade de perseverança, para que, havendo feito a vontade de Deus, alcanceis a promessa” (Hb 10.35,36). Em todos esses textos, vemos a necessidade de fé (que é nossa resposta à graça de Deus, evidenciando confiança e corres-pondência) e de perseverança para obter “a plena certeza da esperança”. A cultura protestante e evangélica, com a reação contra obras para garantir a salvação, tem caído, em muitos casos, numa falsa graça que não se fundamenta nem em ar-rependimento verdadeiro nem em desenvolver um genuíno relacionamento com Deus. O resultado tem sido falsa segu-rança, falsa certeza de salvação.

O reino que Deus está construindo se baseia em re-lacionamentos e alianças que não podem ser produzidos no nosso estilo contemporâneo de gerar conversões em massa, como numa indústria, numa espécie de linha de montagem. Deus quer formar um grande povo de fato; porém, cada

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indivíduo precisa entrar num relacionamento vivo com Je-sus, e todos nós precisamos estar em relacionamentos fortes e autênticos uns com os outros. E, tanto no sentido vertical, com Deus, quanto no sentido horizontal, com os nossos ir-mãos, precisamos compreender que o cimento, os elos que sustentam e mantêm o edifício (ou o corpo, de acordo com a simbologia) são baseados no amor de aliança, o mesmo que faz parte da própria essência da natureza de Deus.

Jesus demonstrou exatamente este princípio ao de-dicar a maior parte do seu tempo a 12 homens, que foram conhecidos inicialmente como discípulos e, depois, como apóstolos. Passaram de aprendizes a enviados. No entanto, Jesus lhes deu outro nome, bem mais significativo em ter-mos de relacionamento. “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho dado a conhecer” ( Jo 15.15). Eles ganharam essa “promoção” pouco antes da crucificação; em outras palavras, Jesus desenvolveu um relacionamento com eles durante três anos, até chegar ao ponto de não mais chamá-los de servos ou discípulos.

“Vós sois os que tendes permanecido comigo nas minhas tentações”, são as palavras de Jesus registradas por Lucas, também nos últimos momentos, antes da cruz. “Assim como meu Pai me confiou um reino, eu vo-lo confio” (Lc 22.28,29).

Foi assim que Jesus ensinou chesed no início da Nova Aliança, dando um modelo para que eles pudessem repro-duzi-lo ao discipular as nações. O reino de Deus não foi fundamentado numa estrutura de autoridade, com uma rede de subordinados como se fosse semelhante a algum modelo de governo humano. Muita gente quer exercer au-toridade na igreja sem demonstrar chesed a ninguém. Da mesma forma, podemos tentar implantar o modelo bíblico

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na família por meio de imposição. Isso nunca edificará o reino de Jesus. Deus deseja reciprocidade, mas ele conquista nossa resposta, doando de si mesmo, sem que haja qualquer razão ou merecimento da nossa parte, e sem fazer exigên-cias preliminares.

Parece contraditório, mas se não houver bondade imerecida sem cobrança, jamais haverá a resposta de fideli-dade e compromisso que Deus deseja. Ainda estamos mui-to distantes de um verdadeiro entendimento de aliança à moda divina. O fluir da vida de Deus acontece quando nos doamos sem exigir nada. A fim de que o receptor da graça obtenha benefício verdadeiro e permanente, ele precisa agir com reciprocidade e entrar no relacionamento. Porém, ele nunca fará isso por meio de um sistema autoritário, com cobranças e obrigatoriedade.

Que Deus nos ajude a ver seu amor de maneira nova e a permitir que o Espírito produza em nós uma resposta dig-na do seu chesed conosco, a fim de que seu profundo anseio por um relacionamento autêntico e eterno seja plenamente satisfeito. Aí sim, experimentaremos total felicidade e reali-zação na alegria e satisfação do Senhor!

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