CadCRH-2007-430

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    Denise Vital e

    RESENHATEMTICA

    O objetivo deste artigo explorar as possi-bilidades e os limites do modelo da democraciadeliberativa, a partir da construo terica de umde seus principais autores, Jrgen Habermas. Em-

    bora o debate sobre o conceito de democraciadeliberativa tenha recebido diversas contribuies,que dialogam criticamente com a formulao inici-al de Habermas, no abordaremos aqui o conjuntodessas crticas, o que mereceria um outro artigo.As anlises que se seguem tm como foco a pro-posta habermasiana para uma poltica deliberativae a indicao de alguns de seus limites, particular-mente referentes relao entre democracia e desi-gualdades e fundamentao dos direitos sociaise econmicos.

    O PAPEL DA DEMOCRACIA NO PROJETO

    MODERNO

    A questo da democracia assume posiocentral no pensamento de Habermas. O ponto departida do autor dado pela idia de um projetoincompleto da modernidade. Contrrio tese que

    JRGEN HABERMAS, MODERNIDADE EDEMOCRACIA DELIBERATIVA

    DeniseVitale

    considera a modernidade um perodo j esgotado e ento substitudo pela chamada ps-modernidade, Habermas identifica srios limites no conceitode Razo adotado nos ltimos sculos, que teriam

    obstrudo a implementao do projeto emancipadoranunciado pelo Iluminismo. A crise da razo esta-ria fundada numa recorrncia estrita e numa com-preenso incorreta do conceito de razo. O rompi-mento da modernidade com a unidade tica,marcada pelo elemento unificador do sagrado, pro-vocou a fragmentao das diversas esferas de valorque comearam a se diferenciar umas das outras apartir de critrios de racionalidades especficas.

    Esse processo foi primeiramente identifica-do por Max Weber com a idia dedesencantamentodo mundo. Para Weber, medida que o processo deracionalizao avanava, os elementos cognitivo,esttico-expressivo e moral-avaliativo destacavam-se da tradio religiosa e tornavam-se livres paraseguir suas lgicas prprias (Habermas, 1984, p.163). Dessa forma, as esferas da economia, da pol-tica, da arte, do erotismo, da cincia e da prpriareligio ganharam independncia e passaram a serregidas por princpios distintos, especficos e in-

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    compatveis. Nesse novo cenrio, a convivncia entreas diversas esferas, diferenciadas e fragmentadas,passou a ser regida pela presena de uma tensocrescente, j que nada mais poderia unific-las como

    antes fazia a religio (Weber, 1946a, p. 323-359).Habermas sistematiza a anlise weberiana in-

    dicando trs formas de manifestao do racionalismoocidental na emergncia da modernidade. A primei-ra ocorre durante o processo de racionalizaocultural, no qual as esferas culturais de valor (ci-ncia e tecnologia; arte e literatura; direito e moral)se diferenciam das vises de mundo da tradiometafsico-religiosa transmitida pelas heranas gre-ga e judaico-crist. Uma vez independentes, cadaesfera de valor tornou-se livre para seguir sua pr-

    pria lgica interna de operao. Assim, a cincia ea tecnologia passaram a se reproduzir de acordocom a racionalidade cognitivo-instrumental, a artee a literatura seguiram uma razo esttico-expres-siva e o direito e a moral, por sua vez, assumiramuma orientao prtico-moral.

    Como um segundo processo, surge a racio-nalizao da sociedade, no qual cada esfera culturalde valor assume uma forma institucionalizada. Osvalores da cincia e da tecnologia se cristalizam na

    empresa cientfica (universidades e academias), en-quanto a arte e a literatura constituem a empresaartstica (produo, distribuio e recepo de artebem como a mediao da crtica de arte). Por suavez, a esfera do direito e da moral divide-se em duasinstituies diferentes: o sistema jurdico e a con-gregao religiosa. Alm disso, a esses dois siste-mas culturais de ao, a racionalizao da socieda-de tambm conta com os subsistemas de ao queestabelecem sua estrutura: a economia capitalista, oEstado moderno e o ncleo familiar. Finalmente, o

    terceiro campo inclui aspectos da personalidade,caracterizados por disposies de comportamentoe orientaes de valores tpicas da conduta metdi-ca de vida, e tambm dos estilos de vida da contra-cultura (Habermas, 1984, p. 165-167; 237-240).

    Essa anlise conduz Weber a uma conclu-so duplamente pessimista: a perda de sentido e aperda de liberdade na modernidade. Habermas noconcorda com as duas concluses. Na viso de

    Weber, a perda de sentido est ligada ao fato deque, embora no processo de desencantamento, cadaesfera cultural de valor passou a seguir sua lgicainterna especfica, agindo racionalmente de acor-

    do com sua prpria orientao; a ausncia de umelemento unificador tornou a tenso entre as esfe-ras crescente. A incompatibilidade e a instabilida-de criadas no poderiam ser superadas, e a ausn-cia de um ponto de convergncia transformou amodernidade em um perodo sem sentido.

    Para Habermas, porm, essa perda de senti-do no uma conseqncia necessria. Emboraconcorde com o diagnstico de Weber, relativo aoaumento crescente de tenso entre as diferentes es-feras, Habermas encontra alguns instrumentos de

    mediao que atuam como uma ponte entre as frag-mentadas esferas, trazendo de volta um mnimo dosenso de totalidade perdido e dando sentido para avida e para a sociedade. De fato, um dos principaisproblemas introduzidos pelo processo de fragmen-tao moderna o abismo criado entre os conceitoselitistas, desenvolvidos por especialistas nas diver-sas esferas culturais de valor (cientistas, artistas,juristas) e os conceitos utilizados na vida cotidiana.No entanto, esse abismo pode ser significativamen-

    te reduzido com o auxlio de instrumentos capazesde ligar os dois mundos. A crtica de arte e a crticaliterria, a imprensa e a filosofia so alguns meca-nismos que asseguram certa unidade ao mundo davida (Habermas, 2000, p. 292, 472).

    A prpria existncia de um mundo da vida(Lebenswelt), espcie de pano de fundo comum sconvices partilhadas por todos os sujeitos queagem comunicativamente (Habermas, 1984, p. 70),j contribui para um mnimo de contedo capazde garantir um sentido comum compartilhado por

    todos os atores. Mais que isso. A idia de mundoda vida desenvolvida por Habermas limitada auma concepo culturalstica, na qual

    os padres culturais de interpretao, avaliaoe expresso funcionam como recursos para aobteno do entendimento mtuo pelos partici-pantes que desejam negociar uma definio co-mum de uma situao e, dentro dessa estrutura,chegar a um consenso a respeito de algo no mun-do (1987, p. 134).

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    Desse modo, o mundo da vida mantm apossibilidade de dilogo e de obteno de consen-so sempre aberta, vislumbrando uma soluo paraas muitas situaes problemticas existentes no frag-

    mentado universo da modernidade. Essa perspec-tiva de entendimento atravs da comunicao tam-bm contribui para dar sentido vasta complexida-de das sociedades contemporneas.

    Alm dessa primeira concluso, Weberaponta para uma perda de liberdade durante o pro-cesso dedesencantamento do mundo. A emanci-pao das diferentes esferas levou a uma racionali-zao da sociedade e ao aumento do aparato buro-crtico, causando uma perda de liberdade. Ao dis-

    cutir as conseqncias sociais e econmicas da bu-rocracia, Weber identifica que embora elas depen-dem das direes que os poderes que utilizam oaparato do a elas (...) muito freqentemente umadistribuio crypto-plutocrtica de poder tem sidoo resultado. (Weber, 1946b, p. 230). Esse proble-ma est relacionado com a aliana histrica entreestruturas burocrticas e interesses capitalistas,fortalecendo o escopo de compromissos em detri-mento da liberdade (Weber, 1946b, p. 230-232).Na perspectiva de Habermas, o aumento da buro-

    cracia e os problemas da gerados so, sem dvi-da, fatos considerveis.

    Contudo essa questo est envolvida em umdilema mais complexo: a existncia de um dese-quilbrio no desenvolvimento das vrias esferas devalor aps o processo de fragmentao. As institui-es formadas no processo de racionalizao da so-ciedade, a saber, o sistema capitalista e o Estado mo-derno, acabaram por prevalecer em relao s outrasesferas de valor, que permaneceram, assim, numa

    posio desvantajosa. O sistema capitalista, de umlado, e o Estado moderno, de outro, so, paraHabermas, os dois subsistemas de um universosistmico que contrasta com a dimenso do mundoda vida. Segundo a teoria habermasiana, ambos,mundo da vida e sistema, assumem um papel equi-valente e essencial nas sociedades contemporneas.O problema no est, ento, na existncia e no avan-o do universo sistmico, mas sim no superdesen-

    volvimento de sua lgica e estrutura, s custas doencolhimento do mundo da vida. A racionalidadeinstrumental, tpica do universo sistmico, avanacomo se fosse a nica razo possvel, limitando a

    emancipao da razo como um todo e pondo emrisco o projeto da modernidade.Essa anlise leva Habermas a questionar as

    causas apresentadas por Weber sobre as tensesentre as esferas.

    Ns precisamos pelo menos considerar (...) se astenses entre as cada vez mais racionalizadasesferas da vida dizem respeito de fato a uma in-compatibil idade de padres abstratos de valor easpectos de validade ou, principalmente, a umaparcial e portanto desbalanceada racionalizao por exemplo, ao fato de que a economia capita-lista e a administrao moderna se expandem scustas de outros domnios da vida que so estru-turalmente inclinados a formas de racionalidadeprtico-moral e expressiva e se espremem emformas de racionalidade econmica ou adminis-trativa (Habermas, 1984, p. 183).

    Trata-se, assim, na viso do autor, de umprocesso de colonizao do mundo da vida porimperativos sistmicos, o que constituiria umasociopatologia. O mundo da vida, cada vez maisracionalizado, no apenas destacado de, mas tam-bm depende dos domnios sistmicos de ao,

    como a economia e a administrao do Estado(Habermas, 1987, p. 305).Apesar desse diagnstico de possvel per-

    da de liberdade, Habermas novamente visualizauma sada. Em sua viso, a emancipao da razoe o restabelecimento da liberdade podem ser pos-sveis atravs do fortalecimento de estruturas domundo da vida, o que requer, por sua vez, o forta-lecimento da razo comunicativa. Apenas o de-senvolvimento da razo e da ao comunicativapode permitir que o mundo da vida resista colo-

    nizao sistmica.A dificuldade em pensar e implementar o

    fortalecimento da razo comunicativa durante osltimos sculos est diretamente relacionada a umsegundo dilema: a no superao da filosofia dosujeito. Habermas identifica a necessidade de se iralm da idia de uma razo centrada no sujeito,atravs da introduo de um outro paradigma, fun-dado na intersubjetividade. No h dvida de que

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    a filosofia do sujeito e o conceito de subjetividadeintroduzido no incio da modernidade provocaramuma profunda revoluo no pensamento ocidentale originaram os princpios que at hoje continuam

    a estruturar as idias e o modo de vida no Ociden-te. Descartes, Kant, Hegel e Marx so autores cen-trais na construo desse paradigma. Mas, apesarde sua importncia inquestionvel, no apresenta-ram alternativas para um modelo intersubjetivo.

    Por outro lado, a soluo proposta por au-tores como Habermas e Hannah Arendt criou umnovo paradigma que poderia completar a emanci-pao do projeto racional moderno. Nessa pers-pectiva, a realidade das sociedades contempor-neas deve ser compreendida no mais conside-

    rando o indivduo como principal referncia, mas,sobretudo, o espao comum que existe entre osindivduos, isto , sua intersubjetividade. Ao ecomunicao desempenham um papel fundamen-tal nesse processo, o que requer, na esfera poltica,regimes cada vez mais democrticos.

    Nesse ponto da anlise, a relao entre aocomunicativa e democracia parece estar bastanteclara, pois o fortalecimento da razo comunicativaest extremamente relacionado ao aprofundamento

    democrtico. Em outras palavras, a defesa de ummundo da vida livre e a autonomia das diversasestruturas de valor que ele abrange (arte, cincia,religio), bem como um desenvolvimento balance-ado entre essas esferas, dependem da existnciade prticas cada vez mais democrticas, j que elasconstituem o nico instrumento capaz de assegu-rar o estabelecimento de um livre processo de en-tendimento mtuo em busca de consenso. Acompletude do projeto moderno e a emancipaoda razo dependem, em ltima anlise, da intensi-

    ficao do processo democrtico.Com efeito, voltando discusso a respeito

    das concluses de Weber sobre as perdas de senti-do e de liberdade, ser valioso se pudermos elucidara posio que a democracia assume. No primeirocaso, se seguirmos a alternativa de Habermas, con-siderando a recorrncia alguns instrumentos demediao entre os conceitos dos especialistas e osda vida cotidiana, como a mdia, as crticas de arte e

    literria e a filosofia, a democracia poderia perfeita-mente ser mais um instrumento, talvez o mais im-portante de todos. E aqui vale pensar em dois as-pectos: de um lado, na prtica democrtica dos

    mencionados instrumentos (uma mdia livre e de-mocratizada, uma crtica de arte livremente produ-zida, distribuda e recepcionada e uma prtica filo-sfica tambm livre) e, de outro, o uso de institutosdemocrticos como outros instrumentos de media-o. Em nosso contexto, interessa-nos, sobretudo,o segundo aspecto.

    medida que uma sociedade desenvolvemeios mais eficientes que permitam a discusso ea deliberao de questes referentes ao interessepblico, aperfeioa-se o canal de comunicao en-

    tre indivduos em seu contexto cotidiano e especi-alistas pblicos que atuam profissionalmente napoltica. E quanto mais esse canal for aprofundado,mais as questes pblicas se tornam compreens-veis e mais sentido a atividade poltica passa a serno mundo da vida.

    No segundo caso, referente perda de li-berdade, o papel da democracia tambm decisi-vo. Se partirmos da idia de Weber, de que o au-mento do aparato burocrtico levaria a uma perda

    de liberdade, a importncia da democracia not-vel. A existncia de instrumentos de controle dasprticas burocrticas s pode contribuir para colo-car limites em sua expanso. E se seguirmos o ar-gumento de Habermas, segundo o qual o proble-ma da perda de liberdade estaria mais relacionadocom uma racionalizao parcial, devida a umsuperdesenvolvimento da lgica sistmica, o papelque a democracia assume tambm crucial, comoum meio de fortalecimento da ao comunicativa.

    Em sntese, esse debate procurou mostrar que

    a completude do projeto moderno pode ser atingidaatravs da substituio da filosofia do sujeito peloparadigma da intersubjetividade, o que exige a ex-tenso do conceito de razo, que passa de uma re-duzida razo instrumental para uma razo mais am-pla, centrada no princpio comunicativo.

    Nesse sentido, na teoria social de Habermas,a razo comunicativa se apresenta como a refern-cia comum a todas as esferas de valor que formam

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    o mundo da vida, capaz de estabelecer os critriosde relacionamento entre elas, criando canais demediao e reduzindo as tenses entre as vriasesferas. A razo comunicativa surge, assim, no

    como uma razo incompatvel com as demais ra-zes que regem cada uma das esferas de valor domundo da vida. Ela surge como a razo tpica domundo da vida como um todo, apenas competin-do com a razo instrumental, que rege o universosistmico. Como razo tpica do mundo da vida, arazo comunicativa pode concentrar um forte po-tencial de ao essencial para deter a colonizaopela unidade sistmica.

    Nesse contexto, a anlise do papel que ademocracia assume ou deveria assumir torna-se

    fundamental. Se o desenvolvimento do projetomoderno deve alterar seu paradigma, que tipo dedemocracia deve ser construdo? Quais so os li-mites e as possibilidades para a participao pol-tica e a deliberao pbica?

    A CONCEPO DE DEMOCRACIA

    DELIBERATIVA EM HABERMAS

    O conceito de democracia, no pensamentode Habermas, construdo a partir de uma dimen-so procedimental, calcada no discurso e na deli-berao. A legitimidade democrtica exige que oprocesso de tomada de decises polticas ocorra apartir de uma ampla discusso pblica, em que osparticipantes possam cuidadosa e racionalmentedebater a respeito dos diversos argumentos apre-sentados, para somente ento decidir. Assim, ocarter deliberativo corresponde a um processocoletivo de ponderao e anlise, permeado pelo

    discurso, que antecede a deciso.1

    Habermas est convencido do papel decisi-vo que tanto a democracia como o direito assu-mem no processo de superao da filosofia da cons-cincia e, consequentemente, na completude do

    projeto moderno. Discurso, direito e democraciaesto intimamente ligados. A compreenso da idiademocrtica parte, assim, da anlise dos vrios elosque se estabelecem entre esses trs elementos.

    De acordo com sua viso, discurso e demo-cracia so duas faces da mesma moeda, mediadospelo direito. Uma vez institucionalizado juridica-mente, o princpio do discurso converte-se emprincpio da democracia. Ambos, porm, funda-mentam-se a partir da mesma fonte, j que todopoder poltico deve ser extrado do poder comu-

    nicativo dos cidados. Nesse contexto, o conceitode institucionalizao refere-se a um comporta-mento esperado do ponto de vista normativo e institucionalizao de procedimentos que garan-tam a eqidade dos possveis compromissos(Habermas, 1997a, p. 221).

    Se, pelo princpio do discurso, as normasque pretendem validade precisam encontrar o as-sentimento de todos os potencialmente atingidos, oprincpio da democracia assegura a formao polti-

    ca racional da opinio e da vontade, atravs dainstitucionalizao de um sistema de direitos quegarante a cada um igual participao num processode normatizao jurdica (Habermas, 1997a, p.146).

    A importncia decisiva do direito reside noseu potencial de institucionalizao jurdica deprocedimentos que garantam os princpios forma-dores da teoria discursiva. Nesse sentido, fala-seem uma teoria procedimental atravs da qual a le-gitimidade das normas jurdicas mede-se pelaracionalidade do processo democrtico da legisla-

    o poltica (Habermas, 1997a, p. 290). A legitimi-

    1Bernard Manin diferencia dois sentidos assumidos pelotermo del i ber ao. No primeiro caso, deliberaocorresponde ao processo de discusso que precede a de-ciso. No segundo, deliberao significa a prpria deci-so. Manin critica Rousseau e Rawls por utilizarem osegundo sentido, acreditando que os indivduos delibe-ram sozinhos ou chegam ao momento da deciso comsua escolha de preferncias feita. Para Manin, a forma-o da deciso se d durante o prprio processo de dis-cusso. Pois, quando os indivduos entram num pro-

    cesso de deciso coletiva, eles tm certas preferncias ealgumas informaes, mas essas so incertas, incom-pletas, geralmente confusas e contraditrias. O processode deliberao, a confrontao de vrios pontos de vista,ajuda a clarificar a informao e a formar suas prpriaspreferncias. Eles podem at modificar seus objetivosiniciais, se necessrio. Assim, A fonte da legitimidadeno a vontade predeterminada dos indivduos, mas aocontrrio, seu processo de formao isto , a prpriadeliberao. (Manin, 1987, p. 341-352).

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    dade dos resultados reside no uso adequado doprocedimento, necessariamente discursivo edeliberativo e, nesse sentido, democrtico. A defe-sa da legitimidade pela legalidade parte da neces-

    sidade de se encontrar, nas sociedades modernas

    ... um equivalente para o direito sagradoprofanizado e para um direito consuetudinrioesvaziado, capaz de preservar ummomento deindisponibilidadepara o direito positivo (...). Apso colapso do direito racional, a racionalidadeprocedimental, que j emigrou para o direitopositivo, constitui a nica dimenso na qual possvel assegurar ao direito positivo um momen-to de indisponibilidade e uma estrutura subtra-da a intervenes contingentes (Habermas, 1997c,p. 237-246).

    Ao mediar a relao entre discurso e demo-

    cracia, o direito assume um papel essencial na li-gao entre mundo da vida (regido pela razo co-municativa) e sistema (formado pelos subsistemaseconomia e administrao pblica e regido pela ra-zo instrumental). Desse modo, tambm atravsdo direito, e de uma perspectiva normativa, que a

    fora social e integradora da solidariedade, queno pode ser extrada apenas de fontes do agircomunicativo, deve desenvolver-se atravs de umamplo leque de esferas pblicas autnomas e deprocessos de formao democrtica da opinio eda vontade, institucionalizados atravs de umaconstituio e atingir os outros mecanismos daintegrao social o dinheiro e o poder adminis-trativo (Habermas, 1997b, p. 22).

    O conceito de democracia deliberativa pro-posto por Habermas pode ser compreendido commais clareza a partir da distino que estabeleceentre as vises republicana e liberal. Para Habermas,a poltica deliberativa encontra-se teoricamente si-tuada numa posio intermediria entre essas duasperspectivas, sendo construda a partir de elemen-

    tos de ambas as vises. Assim como a viso repu-blicana, a sada procedimental pelas vias do dis-curso compreende a democracia como um proces-so essencialmente comunicativo, atribuindo posi-o central na dinmica de formao da opinio eda vontade poltica coletiva. No paradigma demo-crtico permanece no dilogo e no a competiode interesses, tpica do mercado. Se os argumen-tos a favor e contra leis e polticas devem ser da-

    dos em termos de avano ou no do bem comumdos cidados e da justia da sociedade poltica, aproposta deliberativa deve ser entendida em con-traste com as concepes elitista e pluralista, base-

    ada em grupos de interesse (Christiano, 1999, p.243). Ao mesmo tempo, o carter instrumental,presente na formao de compromissos, no detodo excludo, sendo reconhecido como necess-rio na dimenso pragmtica da poltica, emborasujeito a procedimentos justificados por critriosde justia (Habermas, 2001, p. 245). A reduo doexcesso de carga tica e a introduo criteriosa deprocessos de compromissos a partir de interesses,na concepo democrtica, permitem uma sadamenos idealista do que a republicana e menosutilitria do que a liberal.

    O estabelecimento de um procedimento ide-al para a deliberao e a tomada de decises, a par-tir do entrelaamento dessas duas perspectivas, de-pende da devida institucionalizao das correspon-dentes formas de comunicao. nesse sentido que

    o desabrochar da poltica deliberativa no depen-de de uma cidadania capaz de agir coletivamentee sim da institucionalizao dos correspondentesprocessos e pressupostos comunicacionais, comotambm do jogo entre deliberaes instituciona-

    lizadas e opinies pblicas que se formaram demodo informal (Habermas, 1997b, p. 21).

    Ao sintetizar esses dois elementos, a viadiscursiva adota como eixo os processos e pressu-postos comunicacionais da poltica deliberativa,normatizados em termos constitucionais. Assim, osprocessos e condies para a formao democrticada opinio e da vontade so institucionalizados pelomediumdo direito, cristalizando-se em um feixede direitos fundamentais nas deliberaes

    institucionalizadas nos parlamentos e nas redesinformais da esfera pblica. Esse percurso assegu-ra a necessria superao da filosofia do sujeito e acompletude do projeto moderno, pois se apia,fundamentalmente, na intersubjetividade de pro-cessos de entendimento (Habermas, 1997b, p. 21).

    Para Habermas, somente uma soluointersubjetiva, capaz de romper com o paradigmada filosofia da conscincia, seria coerente com sua

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    poder poltico, concebendo os atores individuaiscomo dependentes de processos sistmicos, a viaprocedimental, a partir da imagem de uma socie-dade complexa descentrada, percebe a soberaniapopular em seu anonimato, diluda nas redes in-formais de comunicao e nas deliberaesinstitucionalizadas (Habermas, 2001, p. 250-251).

    A sntese elaborada pela alternativa do dis-curso pode ser tambm entendida pela noo deum Estado Democrtico de Direito, a partir da rela-

    o essencial entre o que Habermas considera osdois pilares de sustentao e legitimao do direi-to moderno: a soberania popular e os direitos hu-manos (Habermas, 1987, p. 178; 1997a, p. 133). Aconciliao entre direitos humanos e soberaniapopular pode ser entendida a partir da identifica-o de um nexo interno entre direito e poder pol-tico, elementos que se pressupem mutuamente,num movimento circular contnuo. Pois, ao mes-mo tempo em que o direito apenas se legitima coma obteno da aceitao racional de todos os mem-

    bros da comunidade jurdica, o que ocorre atravsda prtica democrtica, a legitimao do poderpoltico, se d atravs do direito legitimamenteestatudo, que o organiza (Habermas, 1997a, p. 172).Em outra passagem, o autor explica que:

    Ao emprestar forma jurdica ao poder poltico, odireito serve para a constituio de um cdigo depoder binrio. Quem dispe do poder pode darordens aos outros. E, nesse sentido, o direito fun-ciona como meio de organizao do poder doEstado. Inversamente, o poder, na medida em querefora as decises judiciais, serve para a consti-

    tuio de um cdigo jurdico binrio, os tribu-nais decidem sobre o que direito e o que no (Habermas, 1997a, p. 182).

    Da mesma forma, direitos humanos e sobe-rania popular tambm se pressupem mutuamen-te. Se, por um lado, os direitos humanos, princi-palmente os direitos de comunicao e participa-o, institucionalizam as condies comunicativaspara a formao racional da vontade, possibilitan-

    do o exerccio da soberania popular, por outro nopodem ser impostos como algo externo a esse exer-ccio, precisando ser discutidos e definidos atra-vs do processo discursivo formador da vontade

    coletiva, isto , da democracia (Habermas, 2001b,p. 117).

    Assim, na concepo discursiva, o duplofundamento da legitimao do direito modernorompe com a idia de concorrncia entre direitoshumanos e soberania popular, presente tanto natradio liberal como na republicana. Direitos hu-manos e soberania popular, bem como autonomiaprivada e pblica, so co-originrios, complemen-tares, interdependentes e igualmente cruciais para

    a concepo de uma democracia procedimental.2

    Entrelaados atravs do procedimento discursivo,

    o visado nexo interno entre direitos humanos esoberania do povo reside no contedo normativode um modo de exerccio da autonomia poltica,que assegurado atravs da formao discursivada opinio e da vontade, no atravs da forma deleis gerais (Habermas, 1997a, p. 137-138).

    E s poder ser estabelecido

    se o sistema dos direitos apresentar as condiesexatas sob as quais as formas de comunicao

    necessrias para uma legislao poltica autno-ma podem ser institucionalizadas juridicamen-te (Idem).

    Essa concepo mediadora recebe, contu-do, algumas crticas de ambos os lados. Em nossocontexto, merece ateno especial a crtica a res-peito da concepo limitada de direitos humanosadotada por Habermas, que, se aproximando de-mais da viso liberal, prioriza os direitos civis epolticos em detrimento dos econmicos e sociais.Na teoria deliberativa, o que se percebe uma ati-tude essencialmente defensiva, que procura evitarque algumas conquistas do liberalismo, como osdireitos civis e polticos, sejam suprimidas. Aqui,a defesa da participao surge como uma decor-rncia da necessidade de se fortalecer a razo co-

    2Para Habermas a idia de concorrncia entre direitoshumanos e soberania popular, tambm expressa no an-tagonismo entre liberdade e igualdade ou autonomia

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    municativa, mas no est relacionada obtenode nenhum resultado determinado, podendo le-var ou no reduo de desigualdades sociais.Essa diferena deve-se, ao menos em parte, ao con-

    texto histrico em que a teoria elaborada, espre-mida pela crise do Estado Social e pelo avano daspolticas neoliberais.

    Tendo em vista essa particularidade, comotambm a prpria construo normativa da con-cepo deliberativa, apoiada numa lgica eminen-temente procedimental, Habermas fundamenta apoltica deliberativa numa concepo parcial de di-reitos, ou seja, nos direitos de comunicao e parti-cipao os direitos civis e polticos da chamadaprimeira gerao, na conhecida classificao de T.

    H. Marshall. No plano da fundamentao, essesdireitos acabam assumindo um papel prioritrio emrelao aos direitos sociais e econmicos.

    Ao focar a co-originariedade dos princpiosde soberania popular e direitos humanos,Habermas fundamenta sua teoria na centralidadedos direitos civis e polticos, especialmente dosdireitos de participao e comunicao, impres-cindveis ao carter procedimental da polticadeliberativa. Desse modo, se os direitos civis e

    polticos so sempre justificados, independente-mente do contexto, os direitos econmicos e soci-ais so condicionalmente justificados: eles so aprioridefensveis apenas na medida em que pre-judicam a racionalidade e autonomia dos cidados(Olson, 1998, p. 218-221).

    Essa natureza condicional afirmada porHabermas na apresentao das cinco categorias dedireitos que introduz. Nos direitos fundamentaisas condies de vida garantidas social, tcnica eecologicamente, que constituem a quinta catego-

    ria, so justificados na medida em que isso fornecessrio para um aproveitamento, em igualdade

    de chances, dos direitos elencados, direitos es-ses referentes aos civis e polticos (Habermas,1997a, p. 160).

    Ao retomar mais adiante essa questo, quan-

    do da discusso da passagem do paradigma doEstado Liberal para o Estado Social, Habermasexplicita a relatividade dos direitos sociais, faceaos direitos civis e polticos:

    Do ponto de vista normativo, tanto a adaptaodas liberdades existentes s exigncias materi-ais, como a nova categoria de direitos a presta-es sociais so fundamentadas de modo relati-vo, tendo em vista uma distribuio igual de li-berdades de ao subjetivas protegidas pelo di-reito, a qual fundamentada de modo absoluto(Habermas, 1997b, p. 140).

    Isso no significa que Habermas no consi-dere os direitos sociais e econmicos importantes.Tanto os considera que os inclui entre os direitosfundamentais. O que se pretende chamar a aten-o para a fundamentao relativa desses direitosem sua teoria, o que acaba conflitando com apostulao de uma fundamentao mais ampla,defendida, por exemplo, pela doutrina contempo-rnea dos direitos humanos.3

    O problema da relativizao dos direitos

    sociais discutido por Nancy Fraser, a partir deoutra perspectiva. Para ela, o conceito de esferapblica, em Habermas, limita-se a um discursoburgus, respeitando a exigncia liberal de igual-dade apenas no seu aspecto formal. Uma vez queos interlocutores

    colocam de lado caractersticas como diferenasde nascimento e riqueza e discutem uns com osoutros como se fossem scio e economicamenteiguais (...), as desigualdades sociais e econmi-cas existentes entre eles no so eliminadas masapenas colocadas entre parnteses. (Fraser, 1999,

    p. 118-119).

    3Para essa concepo, os direitos civis, polticos, sociais,econmicos, culturais, paz, ao desenvolvimento, aomeio ambiente sadio, etc. so regidos pelos princpios daindivisibilidade e complementaridade, recebendo igualimportncia, seja em termos de fundamentao, seja emtermos de implementao. Isso possvel porque seuprincpio norteador no apenas o procedimento, massua combinao com princpios como a dignidade dapessoa humana. Ver, nesse sentido: Comparato, 1999,p. 250-251; Piovesan, 1998, p. 205-229; Canado Trin-dade, 1997, p. 226-227; 353-360.

    privada e pblica, recorrente desde a Revoluo France-sa, no debate entre liberais e republicanos, os primeirospriorizando os direitos humanos como autodetermina-o moral e os segundos a soberania popular como auto-determinao tica. Kant e Rousseau teriam aproxima-do as duas idias, mas Kant se aproximou do modeloliberal e Rousseau do republicano (Habermas, 1997c, p.258-259; Habermas, 1997a, p. 133).

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    No entanto, essa estratgia de pr entre pa-rnteses as desigualdades insuficiente para asse-gurar a igualdade na prtica deliberativa. A con-verso de desigualdades sociais e econmicas na

    fico de igualdade no apenas impossvel, comoindesejvel. um problema que inevitavelmentesurgir nas discusses pblicas em muitas formas,de diferenas de comportamentos de classe atdiferenas de habilidade no uso da linguagem paraargumentar. Se essas diferenas e desigualdadesno so devidamente consideradas, mas simples-mente ignoradas, o processo de deliberao demo-crtica torna-se fico, j que grupos dominantesestaro numa posio vantajosa em relao aosdemais. Vale lembrar que:

    Isso no significa que todos devem ter exatamentea mesma renda, mas requer um tipo de igualdadesubstantiva que inconsistente com as relaesde dominao e subordinao sistemicamentegeradas. No andar do liberalismo, a democraciapoltica requer uma igualdade social substanti-va. (Fraser, 1999, p.120-121).

    Esse ponto sugere que a distino queHabermas faz entre categorias de direito absolutase categorias relativas perde o sentido. Se as dife-

    renas de classe sempre comprometero, de mododireto ou indireto, o aproveitamento em igualdadede chances dos direitos civis e polticos, a redu-o dessas diferenas ser sempre necessria. Issosignifica que os direitos sociais, com vista redistribuio de recursos, so to essenciais comoos direitos de participao e comunicao.

    A questo torna-se um dos principais pro-blemas nas tentativas de aplicao da teoriahabermasiana para os pases em desenvolvimen-to, como o Brasil, marcados por altssimas dife-

    renas sociais e econmicas, onde a ausncia delimites normativos muito provavelmente contribuipara a manuteno e reproduo das clivagenssociais identificadas nessas sociedades.

    A implementao do processo de delibera-o poltica ancorado numa concepo de autono-mia que compreende os direitos civis e polticos,deixando os sociais e econmicos numa posiocontingente e no-essencial, inevitavelmente exclui-

    r aqueles que mais necessitam dos benefcios dosdireitos econmicos e sociais produzidos pela de-liberao poltica. O resultado ser que nem todosos membros da comunidade afetados pelas deci-

    ses podero definir que tipo de direitos sociais eeconmicos ser implementado.

    Assim, mais do que significar um constran-gimento lgica procedimental, direitos sociaisdevem ser internamente compreendidos pela con-cepo de autonomia, ao lado dos direitos civis epolticos. (Olson, 1998, p. 223-224). Dessa forma,a co-originariedade entre direitos humanos e sobe-rania popular implica uma compreenso maisampla de direitos humanos, que envolve todas ascategorias de direitos.

    Seguindo os princpios da tica discursivae incorrendo na mesma limitao de Habermas,Jean Cohen e Andrew Arato diferenciam trs gru-pos de direitos, dos quais apenas dois os direi-tos de comunicao e associao, e os direitos privacidade, personalidade e autonomia formamos pilares e pr-requisitos, tanto para a legitimida-de democrtica pretendida pelo discurso racionalquanto para o completo desenvolvimento da soci-edade civil. O terceiro grupo, formado pelos direi-

    tos sociais e econmicos, no ocupa essa mesmaposio prioritria. Para os autores, esses direitostambm so importantes, mas de modo menos di-reto (Cohen; Arato, 1999, p. 397-405).

    Fica clara, assim, a posio secundria atri-buda aos direitos econmicos e sociais, por cons-titurem no os princpios formadores do prpriodiscurso, mas o objeto de seu contedo. Ora, seum mnimo de contedo social e econmico nofor verificado em contextos discursivos reais e,como Cohen e Arato alertam, discurso sempre

    algo real e emprico , no haver nem possibili-dade de autonomia, nem de livre argumentao,nem de racionalidade comunicativa (1999, p. 392).

    Embora a especificidade e a escolha daspolticas pblicas constituam matria de conte-do e, portanto, objeto do discurso, a garantia deum contedo social e econmico mnimo a todosos participantes potenciais no configura matriade discusso, ao contrrio, trata-se, ao lado dos

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    direitos de comunicao e participao, de umapr-condio para a prpria existncia da prticadiscursiva, da legitimidade democrtica e da pos-sibilidade de uma sociedade civil desenvolvida.

    importante ressaltar que o fato de os trsgrupos de direitos constiturem pr-requisitos paraa existncia efetiva de uma razo discursiva, istono pode significar a paralisia ou atrofia do pro-cesso democrtico, diante da espera da verificaodessas condies. Sua busca e o aprofundamentoda democracia devem ocorrer simultaneamente,com os avanos do primeiro grupo de direito, ser-vindo como combustvel para o segundo e vice-versa. A desvinculao entre as condies do pro-jeto e o prprio projeto significaria, no quadro

    emprico de grande parte dos pases, a total impos-sibilidade de at mesmo se caminhar para a demo-cratizao.

    Como pode ser possvel pases e comunida-des imersos em contextos de grandes desigualda-des sociais e econmicas conseguir reduzi-las, semo aprofundamento das prticas democrticas? Comocondicionar o desenvolvimento da democracia a umasituao ideal de equilbrio material entre gruposde cidados? Esse paradoxo indica que as duas

    questes devem caminhar juntas. Da os princpiosda indivisibilidade e complementaridade que re-gem os direitos humanos.4Da tambm a existn-cia de um limite na teoria da democracia deliberativa,ao no adotar uma dupla fundamentao, que in-clua, ao lado dos direitos de participao e comuni-cao, os direitos sociais e econmicos.

    Essas questes nos levam a uma conclusoimportante, identificada por Seyla Benhabib. Deacordo com seu argumento, a tica procedimental,se no restrita por justificveis limites, pode pro-

    duzir resultados conflitantes com convices mo-rais profundas. Embora ela se refira mais especifi-camente conseqncia da reproduo das desi-gualdades de gnero, possvel estender o proble-ma para a manuteno das desigualdades de clas-se. Ela sugere que uma sada para esse paradoxo

    seria clarificar os limites normativos impostosao discurso e seus papis constitutivos no discur-so, aceitando, ao mesmo tempo, que esses limitespossam ser sujeitos de crtica discursiva e clarifi-

    cao, ainda que nunca possam ser completamen-te suspendidos. (Benhabib, 1999, p. 89, 97).

    Dados os contextos de desigualdades socio-econmicas, inerentes a qualquer sociedade capita-lista e agravados em pases no desenvolvidos, a l-gica procedimental radical que funda a teoriahabermasiana no pode prescindir de princpiosdistributivos. No se trata de definira priorique po-lticas pblicas sero adotadas, mas de instituirnormativa e juridicamente princpios de reduo dasdesigualdades sociais que limitam o procedimen-

    talismo. Do mesmo modo, preciso que sua prote-o jurdica resulte em um mnimo de eficcia, sem aqual os prprios direitos de comunicao e associa-o no podem empiricamente ser observados.

    CONSIDERAES FINAIS

    As consideraes tecidas ao longo deste ar-tigo buscaram elucidar alguns aspectos centrais da

    proposta da democracia deliberativa desenvolvi-do nos trabalhos de Habermas. No obstante oslimites e desafios que integram o modelo, trata-sede uma aposta decisiva no aprofundamento doprocesso democrtico e na revitalizao da polticapor meio da retomada de sua legitimidade. Essaaposta volta-se tanto para a dimenso institucional,apontando a razo comunicativa e o princpio dajustificao pblica como basilares para os espa-os institucionalizados da poltica, quanto para adimenso mais informal da formao da vontade

    poltica, ou seja, a esfera pblica como um todo.Nesse sentido, a qualificao das sociedades

    democrticas implica, no mbito da implementao,de um lado, a reforma dos canais representativos,como o Executivo e o Legislativo, no sentido deincorporarem em suas decises polticas o princ-pio da razo pblica, e, de outro, a ampliao e aconsolidao de canais diretos de participao. Aquise incluem os espaos pblicos participativos, que

    4Esses princpios so garantidos pela Declarao e Progra-ma de Ao de Viena, adotada pela Conferncia Mundialdos Direitos Humanos, 14-25 de junho de 1993.

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    se estruturam de forma mais direta com o Estado,como os Conselhos Gestores de Polticas Pblicas eo Oramento Participativo, por exemplo, bem comoas diversas formas de associaes que se organizam

    na sociedade civil. por meio do fortalecimentodesse conjunto de espaos pblicos e polticos, coma incorporao dos princpios deliberativos, que oprojeto moderno anunciado pelo Iluminismo podeencontrar caminhos mais fecundos para a promes-sa de emancipao.

    (Recebido para publicao em outubro 2006)(Aceito em novembro de 2006)

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