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Antonio de Araujo Silva 1

Calabouço Contos e outros

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“Calabouço: contos e outros” traz um universo novo em sete narrativas, com enredos de desconstrução literária, de uma forma provocativa à ditadura acadêmica imposta e às situações de adversidade da cultura brasileira.

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Antonio de Araujo Silva

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Calabouço contos e outros

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Antonio de Araujo Silva

Calabouço:

Contos e outros

São Paulo 1ª Edição - 2012

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Antonio de Araujo Silva

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Copyright ©2012 – Todos os direitos reservados a:

Antonio de Araujo Silva

ISBN: 000-00-0000-000-0

1ª Edição

Junho 2012

Direitos exclusivos para Língua Portuguesa cedidos à

Biblioteca24horas, Seven System International Ltda.

Rua Luís Coelho 320/32 Consolação

São Paulo – SP – Brasil CEP 01309-000

(11) 3259-4224

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Todos os direitos reservados. Nenhuma parte do conteúdo deste livro poderá ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma, seja ele impresso, digital, áudio ou visual sem a expressa autorização por escrito da Biblioteca24horas sob penas criminais e ações civis.

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direito a uma licença de uso (disponibilizada na

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constantemente o conteúdo deste livro e/ou do

conteúdo fornecido via internet sem prévio aviso. Copyright © 2012 - Todos os direitos referentes ao Benefício Adicional Gratuito são reservados à Biblioteca24horas Seven System International.

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Colaboradores:

Diagramação: Antonio de Araujo Silva

Capa: Criação, design, e acabamento:

Vinicius Yagui

Revisão de Texto: Profa. Giovanna Wrubel Brants

Ao meu querido neto, “Arthur”.

Que a sua vida seja repleta de grandes sonhos e fabulosas

realizações.

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Agradecimentos

Meus sinceros agradecimentos a todos aqueles que, direta ou

indiretamente, colaboraram para que mais este projeto se

tornasse realidade.

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Sobre o autor

Antonio de Araujo Silva, nascido na cidade de Ouricuri -

PE, desde 1990 reside em São Bernardo do Campo. SP.

Formado em Naturopatia, Massoterapia, e Terapias

Complementares pela Humaniversidade Holística de São Paulo.

Reiki master, pela escola tradicional Mikao Usui. Ministra

atividades terapêuticas relacionadas à qualidade de vida.

Facebook/dearaujosilva

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Sinopse

“Calabouço: contos e outros” traz um universo novo em sete

narrativas, com enredos de desconstrução literária, de uma

forma provocativa à ditadura acadêmica imposta e às situações

de adversidade da cultura brasileira.

“O sábio e a lesma” é um convite à reflexão sobre o que

vivemos pessoalmente, e o que verdadeiramente somos em um

contexto em que, salvo em raras exceções, nos tornamos

escravos do desejo e das necessidades impostas pelo modelo de

sociedade em que vivemos.

Já “O monopólio da dor de dente” é uma narrativa suave e

divertida de uma situação cotidiana, na qual demonstramos toda

a nossa incapacidade de lidarmos com o novo, e desta forma,

para livrarmos do indesejado, procuramos os recursos mais

inusitados, tornando-nos, assim, alvos fácéis aos oportunistas de

plantão.

“Calabouço” traz, com uma lucidez explícita, a fragilidade

humana diante as tragédias do percurso das nossas vidas, onde

quase sempre entregamos a nossa felicidade nas mãos alheias e

nos esquecemos de que não somos seres eternos. E torna-se

inevitável o conflito extremo entre o viver sem razão, ou

encontrar uma nova razão para viver.

“Ventríloquos do ego”, de uma forma mais descontraída, traça

um paralelo entre os desejos e as necessidades, onde o ego está

sempre acima de todas as nossas escolhas. Um tema pesado,

porém, tratado com leveza e descontração.

“A morte do planeta azul” é um alerta sobre a falta de respeito

que temos em relação ao planeta no qual vivemos e as

consequências que isso pode trazer para a raça humana, e a toda

a forma de vida terrestre.

“A dívida” ressalta o doce paradoxo do querer além do poder, e

de suas consequências.

“Diferenças” é uma indagação da razão pela qual a raça humana

está perdendo o bom senso diante da corrupção: há tanta gente

vendendo o que nos é dado de graça e, ao mesmo tempo, tantos

outros estão pagando por coisas que não se compram.

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Sumário

Primeiro capítulo:

O sábio e a lesma 12

O monopólio da dor de dente 18

Calabouço 21

Segundo capítulo:

Ventríloquos do ego. 39

A morte do planeta azul 79

A dívida 90

Diferenças 105

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Primeiro capítulo

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O sábio e a lesma

Em uma bela manhã de primavera em um lugar inconteste

diante de sua localização geográfica, um homem, quase que

surgido do nada, caminhava ao redor de um lago que ficava

entre duas imensas avenidas, um lugar surreal, onde quatro

imensas seringueiras o cercavam e davam suporte a um

pequeno jardim.

Aquele homem com um olhar triste e o semblante de

desolação, senta-se à beira do lago, e passa a observar

lentamente que o barulho que vinha das duas avenidas era

ensurdecedor, o sol brilhava intensamente e a brisa quente que

aquecia sua face também formava pequenas ondas na água fria

do lago. Depois de alguns minutos de contemplação, ele

percebe que, do outro lado do lago, havia mais alguém além

dele naquela imensidão.

Calmamente, ele levantou-se e começou a contornar o

lago. Ao chegar mais próximo, ele pôde observar que se tratava

de um jovem senhor de barba e cabelos brancos e longos, tinha

um corpo esguio e uma face serena e tranquila, quase plástica.

A forma com a qual aquele velho homem contemplava a

imensidão dava a entender que o mesmo ignorava aquele

mundo ao seu redor.

Aquele homem triste sentou-se ao seu lado sendo quase

despercebido.

E, depois de algum tempo, com aquela indiferença

provocadora, o homem triste arisca uma breve pergunta:

- Como pode o senhor observar com este olhar de tanto

esplendor, como se estivesse vendo a mais bela paisagem do

universo?

Estático, e como se não tivesse ouvido a pergunta, o

velho homem nada lhe respondeu. Por alguns segundos, os

semblantes dos dois homens se misturam naquele torpor que os

envolvia. O homem triste não desiste da possibilidade de um

dialogo, dirigindo uma nova pergunta:

- Será que o senhor consegue ver algo de tão nobre neste

velho lago no meio do nada? O velho homem parecia estar

imune a qualquer interferência que viesse do seu exterior.

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Decepcionado e constrangido, o homem triste levanta-se e

contorna vagarosamente todo o lago, e desaparece na imensidão

daquela paisagem cinzenta.

Alguns dias depois o homem triste retorna ao lago, entra no

pequeno jardim como o fez da outra vez, e logo pode observar que

o velho homem lá está, como se nunca tivesse dali saído.

Então o homem triste começa a contornar o lago, como o fez na

primeira vez; sentou-se novamente ao lado do velho homem, e

mais uma vez tentou iniciar um diálogo: - Veja só, cá estamos nós,

lado a lado, a observar esta imensidão de pessoas, cada uma

lutando para alcançar um lugar ao sol dos desesperados. O senhor

não acha um absurdo esta corrida frenética que imprimimos às

nossas vidas, de tal forma que, às vezes, até nos esqueçamos do

óbvio, que é simplesmente viver?

E com a mesma forma de quietude e silêncio em que se

encontrava, o velho homem continuou estático e indiferente, sem

esboçar qualquer reação.

O homem triste, mesmo assim, permaneceu ali por algum

tempo; depois, da mesma forma que chegou, levantou-se e

contornou lentamente o lago até a saída, tentando imaginar por que

aquele velho homem ficava tanto tempo inerte a observar a

imensidão do horizonte, como se buscasse a si mesmo. E assim,

mais uma vez, ele se perde na fumaça da sua inevitável realidade.

Passaram-se algumas semanas e o homem triste retornou ao

lago e, inexplicavelmente, estava lá o velho homem inerte e

tranquilo a observá-lo.

O homem triste contornou o lago como sempre fez e, já

imaginando não ter sucesso em sua investida, sentou, aquietou-se e

fingiu uma calma inexistente.

Virando-se para o velho homem, ele começa seu diálogo solitário:

- Sabe, meu senhor... Em todas as últimas manhãs da minha

existência tenho me perguntado por que, apesar de ter conseguido

meu bom emprego, minha bela casa, meu belo carro, e a minha

mulher ser a melhor esposa do mundo e que amo, e ter meus filhos,

mesmo assim, um vazio imenso tem me consumido por toda minha

existência.

Para sua surpresa, o velho homem vira em sua direção e lhe

pergunta:

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- O que tanto perturba seu espírito, filho, o que o torna

tão triste, qual a razão desta inquietude desesperada na sua

alma?Acalme-se, pois não há mal que não tenha reparação.

Aquiete sua alma e alimente o seu espírito com o que há de

melhor no mundo. Por que fugir do caos se ele é o princípio de

todo equilíbrio? Esqueça o seu meio e resgate sua essência, pois

lá não existe aflição ou medo, apenas o existir pleno.

Com voz quase oculta, o homem triste, sentindo-se insultado

diante suas dificuldades, responde ao velho homem:

- Como é fácil definir soluções para os problemas alheios,

como é nobre a capacidade de se viver em equilíbrio, quando

tudo está dando certo em sua vida.

O velho homem, sem alterar o seu semblante, e com

uma voz quase celestial, responde-lhe:

- Certamente que não, filho, mas me responda: As suas

inquietações e preocupações, raivas e ódio, já lhe foram úteis?

Em algum momento lhe trouxeram a solução ou eliminaram

algum problema? Pare de gastar sua valiosa energia

concentrando-se nos problemas; ao invés disso, foque toda sua

energia na busca de soluções. Responda-me com sinceridade:

quando você abre o seu armário ou a sua geladeira, o que de

fato tem dentro dela que você realmente escolheu e comprou,

pensando exatamente no seu prazer e satisfação? Acho que não

há nada, pois, para os insatisfeitos, isso não tem tanta

importância, geralmente compram para os outros, o outro está

sempre em primeiro lugar. Por acaso eles conseguem ser feliz

por você, sentir prazer por você?

Quantas calças, camisas, sapatos, você escolheu e

comprou? Você, pelo menos, sabe quantos têm?

No modelo que escolhemos para viver, com o passar do tempo,

nos preocupamos mais com a vida dos outros do que com a

nossa. Propomo-nos a fazer sempre pelos outros e fatalmente

esquecemos que não podemos fazer pelo próximo nada que não

possamos fazer por nós mesmos.

Há quanto tempo você não pratica o exercício do prazer e

da diversão, o que você gostava de fazer, ia ao teatro, cinema,

um bom futebol? E música, a quantos eventos musicais você foi

ultimamente?

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Quanto tempo faz que você não se delicia com o seu

prato predileto? E, mesmo assim, você acredita que não sabe de

onde vem o vazio que lhe consome? Por acaso você acha que

está sempre fazendo o que é possível?

Pois saiba, meu caro homem triste, você simplesmente

está na contramão dos seus desejos, e certamente tudo isso é

muito pouco para quem quer alcançar a tão sonhada felicidade.

Quando é que vamos deixar de fazer sempre o possível e passar

a fazer sempre o que é necessário?

Você pode até ter uma grande vida, mas nada do que você

tem escolheu pensando exclusivamente em si mesmo. Quantas

paredes de sua casa você pintou da cor que mais gostava?

Sinceramente, acho que nenhuma. E a cor do seu carro, é a que

você mais gosta? Ou você comprou daquela cor porque todas as

pessoas que julga importante têm carro naquela cor? Você se

acha importante por seu carro ter esta cor? Você sente-se feliz

ou satisfeito com esta escolha?

Você escolheu e ama o que faz? Ou simplesmente o

salário é compensador, e assim pode proporcionar conforto para

você e sua família? O seu casamento ainda vale a pena, ou

simplesmente ainda é tolerável? Onde vocês esqueceram a

paixão, em que lugar guardaram o desejo de estar sempre junto,

o que fizeram com o amor que existia entre os dois?

Enterraram-no nos jardins das insatisfações? Onde está aquele

casal que um dia fez juras eternas, que veredas e atalhos

construíram para os quais não possam retornar? Quantas horas

passam juntos com seus amados filhos?

Mesmo assim, vocês insistem em falar de forma

possessiva: meu emprego, minha mulher, meus filhos, e onde

está a nossa felicidade?

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O monopólio da dor de dente

E, como todo bom brasileiro, você acorda e se dá conta

de que finalmente chegou a tão sonhada, esperada, festejada e

maravilhosa manhã de domingo. Nada de congestionamento,

busão lotado, trem empilhado ou metrô encaixotado, nada disso.

Acordar cedo! Nem pensar. Você abre o olho, um de cada

vez para se certificar que não é ilusão de ótica, olha em direção

à janela do seu quarto e a réstia de luz que entra pela fresta da

janela denuncia uma bela manhã de sol. E logo vem à sua mente

futebol, churrasco, muita cerveja e aquele animado papo

informal com os amigos. E olha que muitos homens às vezes até

se esquecem de que têm uma bela mulher deitada ao seu lado.

Mas vamos deixar estas questões paralelas para outra

oportunidade.

Aquela mesma réstia que denuncia o sol é a mesma que

deixou a brisa fria da madrugada que inunda todo o seu quarto,

então você se recolhe ao aconchego do calor do corpo da sua

amada.

Mas logo você nota que algo está diferente: você percebe

que a sua arcada dentária superior lateja infernalmente.

Parabéns, pois aquele inútil e imprestável dente do siso resolveu

estragar a sua bela manhã de domingo.

Você nem vai se lembrar que é domingo e que

provavelmente o dentista mais próximo deve estar a uns

cinquenta quilômetros de distância de sua casa, e você não tem

sequer o seu número de telefone.

Então você pensa: “calma, eu sou um cara tranquilo e

equilibrado, isso é fácil de controlar, nada que dez minutos de

relaxamento e meditação não resolvam”. E aí, depois de um

esforço quase sobrenatural, você adormece feito um anjo.

Bem, claro que sua doce e amada companheira também

esperou a semana inteira pela aquela bela manhã de domingo

para poder recompensar todos aqueles desencontros da semana

inteira. Pois finalmente ela vai poder lhe dar o prazer de te

acordar, com um beijo apaixonado e não com aquele som

ridículo do despertador do celular. Com aquela musiquinha

chinesa irritante e que você não consegue substituir, afinal os

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aparelhos Xing Ling não vêm com nenhum manual de instrução

e os que têm, vêm escritos em mandarim, vê se pode, por acaso

você conhece algum tradutor? Porque nem o Google consegue

traduzir aquelas letrinhas infames.

Aí sua doce amada te acorda com um belo beijo

cinematográfico, para não dizer de desentupir pia, pois é

literariamente inconveniente e mal educado, e você sente como

se estivessem sugando o seu maxilar que lateja

insuportavelmente, e a sensação é como se você estivesse sido

atingido por um cruzado de direita do Mike Tyson.

O que fazer em um momento desses? Você agradece?

Não, apenas padece calado, pois a coitada não sabe o que se

passa, ou então, simplesmente xinga.

Calma, afinal você é um cara equilibrado, afinal é só

um maldito e inútil dente do siso que lateja sem parar,

ressoando em seu cérebro como a batida de uma marreta em

uma maldita bigorna de aço.

Mas como toda boa esposa, ela não se apega aos

problemas e sim, às soluções. Aí começa a via sacra da dor:

gelo não funciona, água morna também não, partimos pra

cachaça - não deu jeito, então fomos para a dipirona - falhou,

Aspirina não combinou, apelamos para uma ação mais forte,

veio então a ideia, que é quase a morte, de tomar paracetamol,

mas também fracassou. Acupuntura, Reiki, benzedeira,

meditação, relaxamento e até um pouco de unguento - nada

solucionava; bem, agora só restavam os santos para fazer

promessa. Começamos com São Judas Tadeu, que é das causas

urgentes, acho que estava ocupado, pois o milagre foi recusado,

aí bateu o desespero, apelamos então para Santo Expedito, que é

das causas impossíveis, acho houve falha na conexão, pois

fiquei na mão.

Nesta altura do campeonato lembrei-me de Nossa

Senhora, saí em desespero, entrei em um terreiro, pois podia

jurar que na entrada tinha uma estátua da santa. Mas para

piorar, foi engano, na verdade era de Iemanjá. Aí, meu amigo,

nessa hora baixou a entidade e, para o meu desespero, baixou

exu.

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Calabouço

E como já era de costume naquele momento da vida de

Drailson Pereira, ele acordou com uma cara de quem tinha

dormido uma eternidade, mal conseguia se livrar do seu imenso

cobertor.

Pois, apesar de estarmos em janeiro, com calor quase que

sertanejo, ele dormia com um cobertor daqueles de inverno

rigoroso; claro que não há nada que aqueça quando o frio vem

da própria alma. Quase sempre inexplicavelmente, nos seus

momentos mais difíceis, o ser demonstra a sua incapacidade de

entender a dimensão da criação e os seus propósitos. O ser em

sua infinita impaciência recusa-se a seguir a lógica da criação,

assim sendo, molda seus caminhos em valores equivocados,

onde a lógica é revertida ao seu bel prazer. Mal sabe ele que

ninguém foge da colheita de suas escolhas e sua meta traçada.

Pode-se até adiar alguns eventos, mas o tempo se encarregará

de reabrir o ciclo anterior, então você se dá conta que suas

escolhas foram em vão. Nesse momento, as decisões são

inevitáveis e o preço a se pagar, muito elevado. Drailson já não

entendia por que a sua existência tinha tomado aquela direção,

mas não tinha como fugir do efêmero destino.

O desespero de quem achou que poderia alcançar o mais

alto degrau, sem passar pelos inevitáveis e turbulentos degraus

intermediários de sua existência. Pois ninguém jamais

conseguiu chegar ao topo da escada sem ter de galgar os

primeiros degraus. Ele, na sua infinita ingenuidade, adquirida

pelo tempo gasto com coisas insignificantes, atropelou os seus

sentimentos, sem se dar conta dos valores inestimáveis de uma

boa convivência entre as pessoas que se amam. Sem perceber,

ele esquece que nos foi dada a vida para ser vivida com

determinação; então, jamais esqueça que um ser superior rege

as regras do jogo sem pedir licença. Despretensiosamente, deixou o seu legado de dor aos que

achavam o sofrer, a perda da vida antes da morte. Apenas são

sepultados aqueles que adquirem uma doença incurável, pois

vejam que a sua interminável dor supera qualquer doença,

porque nada é mais doloroso do que se estar vivo e não ver um

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sentido para tal. Drailson, em sua trajetória de dor, em que a

razão deixa de existir, a lógica se desprende do ser e todas as

coisas que faziam sentido perdem a razão de ser, trazem-lhe a

sensação do não existir, afinal, estamos todos muito ocupados

em saber qual vai ser o fim da novela, a cotação do dólar ou do

euro, não importa, já não temos tempo para sequer nos ver,

imagine o próximo. A cada dia que passava, ele se desprendia

da realidade das pessoas que faziam parte da sua vida. Irmão,

vizinho e até mesmo da sua amada. Como pôde ter se

distanciado tanto sem se dar conta da enorme necessidade que

ele tinha de compartilhar o seu dia a dia com alguém que

compreendesse suas aflições e desejos.

Até quando ele poderia achar que conseguiria preencher sua

mente com futilidades para se omitir dos seus deveres para com

a sua amada?

Era quinta feira, 7 de agosto de um ano qualquer,

precisamente 3 horas da manhã, e apesar do desânimo

inevitável, ele tenta recomeçar um novo dia. Como se para os

infelizes existisse o novo, afinal, todos os dias são iguais: têm

vinte e quatro horas, e o sol nasce e se põe com a precisão do

inexplicável, mas para ele já não trazia um novo amanhecer.

É como estar fora de contexto em uma pintura eterna, do

nada a lugar nenhum. Como se tornou tão vago, o não ser o não

estar o não crer, e o não poder... Ele levanta, faz o seu café, sem

nem mesmo saber o porquê, ele continuava a tomar aquele café.

Afinal, qual a diferença entre café, chá, leite ou simplesmente

água, se o viver já não lhe permitia o prazer de sentir o seu

próprio paladar? Talvez fosse o hábito de existir sobrepondo-se

ao ser, mas aos poucos a paisagem para ele foi se tornando

sempre a mesma.

Todos os dias, já não importava a hora, para ele as

pessoas tinham um mesmo rosto, com o mesmo sorriso

hipócrita estampado em suas faces - até parecia que eram todos

felizes.

Para Drailson alguns são, ou pelo menos pensam que

são felizes. Talvez isso fosse a única diferença entre o “ser” e o

“estar”. Outros estão ou simplesmente fingem estar felizes. Ele

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já não tinha esta capacidade hipócrita de demonstrar para o

mundo uma falsa alegria.

Para ele, naquele momento, os dias as cores eram todas

no mesmo tom, não lhe fazia diferença o azul do amarelo, o

vermelho do preto. Então como que por simples instinto, ele

resolve mais uma vez sair de casa. Esta era a sua rotina atual,

vagar nesse ermo de solidão entre uma floresta de concretos,

onde os canibais urbanos transitam como seres dóceis e

inofensivos, onde a caça é tão voraz quanto o próprio caçador,

onde a solidão é doce como fel da sua própria existência. Às

vezes ele se surpreendia refletindo sobre o porquê de existir se

todos têm o mesmo fim; para ele, as pessoas continuavam com

o mesmo rosto, com o mesmo gosto, e o mesmo desgosto em

seu rosto. Seguindo uma trilha sem rumo, como se todos

tivessem o mesmo pensamento, consumindo o que lhe

consome.

A tarde cai e revela a noite que desce para ele como um

obscuro manto negro. E mais um dia passa na vaga existência

de um ser atormentado pela quase obrigatoriedade do viver, sem

nenhuma lógica do existir.

Para Drailson, o amanhã certamente não será diferente do

hoje, que foi um retrato mal feito do ontem. É como se os dias

se repetissem continuamente com o mesmo tom de uma mesma

melodia morta.

Com a chegada da noite, deveria lhe vir o sono. O dormir, para

ele, era como padecer numa escuridão da eternidade serena e

pequena.

Pequena por que logo o sol renasce, e tudo está exatamente do

mesmo jeito, inalterada e inexplicavelmente, o não existir

continua nele como a nódoa na roupa branca.

O convívio com os amigos já não mais existia. Apesar de

que, certamente, ninguém gostaria estar ao lado de uma pessoa

tão vaga e inútil. O dia se arrasta lentamente e logo a noite cai

novamente, feito navalha que dilacera a alma, quase inexistente.

Como um desabafo para ele mesmo e os seus pensamentos tão

confusos, perguntava se lhe restou algum sentimento, ou se

simplesmente, neste curto espaço de tempo, ele se transformou

apenas em um amontoado de frases soltas.

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Mas naquela noite, por algum motivo que ele

desconhecia, o sono não era sua companhia e, como se não

bastassem os dias intermináveis, agora as noites serão também

como uma tortura negra, e imperceptível aos olhos dos que

dormem o sono dos justos. Ele já não tinha argumento para

avaliar o porquê do ter ou não sono. Sentindo em si o desfalecer

da madrugada, ele não sabia diferenciar o sono ou mesmo o

adormecer eterno...

E como para todos que vivos aqui estão, um novo dia

sempre nasce à revelia do seu desejo, e assim recomeça mais

um fatídico mergulho no desconhecido de mais uma jornada

diária. Por algum motivo, hoje ele sentia-se estranho e, mesmo

descrente da possibilidade de um novo dia, certamente lá fora o

mundo está justamente como ele se tornou: vazio e inútil.

Vejam as pessoas com aquele mesmo sorriso amarelo e pálido

como a própria existência. Às vezes imaginava por que ele já

não via o mundo com esses seus olhos da inocência e sem a

malícia do verdadeiro ser que há em cada um de nós, mas o

amargo passar dos tempos lhe trouxe a verdadeira transparência

de cada um.

Um ser que está abrindo mão do bem mais precioso que o

criador lhe deu, ainda acha tempo para um lamento vago e

inconteste para seus dias. Como seria a vida se todos nós

pudéssemos ver um ao outro como a face da mesma moeda?

Acho que o tempo e o falso brilho do verniz da hipocrisia nos

deixam cegos para a realidade daqueles que nos cercam.

É a partir deste exato momento que lamentamos o

padecer de cada um, pois isso nos da a visão amarga dos seres

que vivem para o não viver do seu semelhante, mas vamos

deixar bem claro que ele não pretende ser o senhor da verdade,

mesmo porque, ele não acredita em verdade, em absoluto. As

verdades são como os sonhos, sempre haverá novos.

E assim lá se foi mais um dia e novamente ele se nega a

acreditar na sua existência, em como os dias se arrastam feito

cobra manca, e o seu existir se transforma em um sacrifício

interminável, pois a noite apenas separa o falso renovar de um

ser não renovável. E isso lhe sufoca, e o prende a uma

intolerância banal e insignificante; logo, ele não pode continuar,

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se o que para todos é um novo amanhecer, para ele é só a

continuação de uma tortura anterior.

O amargo viver sem vida soma-se ao querer não existir,

então a tormenta de cada segundo vivido lhe é inevitável.

Poderíamos muito bem estarmos nos perguntando o que leva

um ser a pensar com um pessimismo quase que perverso. Claro

que todas estas decisões drásticas são decorrentes de um

amontoado de problemas que sempre se subestimou.

Vamos fazer uma breve passagem pelas suas memórias.

Talvez possamos entender o porquê de todo esse desencanto

com a vida.

Ele nasceu em uma pequena e longínqua cidade do

interior, nessas cidades onde você sabe o nome de quase todos

os habitantes, inclusive os animais de rua - sempre aparece um

engraçado para lhe dar um nome, mesmo que seja bizarro.

Ele, como o sexto filho de uma família pobre, criado com

uma educação calcada na honra e princípios rígidos. Apesar de

poucas posses, isso não quer dizer que eles não fossem felizes, e

como disse anteriormente, era o irmão caçula de seis. O mais

velho, o Joça, depois vinha o Ginelson, e o Gerilson, e tinha a

Gerilda e a Ginelsa. Nomes tão esquisitos... é que as pessoas lá

do interior têm essa mania de rimar os nomes dos seus filhos,

talvez seja uma influência da sua cultura. Refiro-me à difundida

naquela região, talvez seja simplesmente porque eles costumem

seguir uma analogia dos seus próprios nomes, pois a mãe se

chamava Geraldina, e seu pai Gedinilson. Filho de pais

analfabetos. Quando eles foram registrar o menino, o coitado do

tabelião, também semianalfabeto (se você dissesse que Joaquim

era com G ele também registraria). Mas vamos deixar essas

questões paralelas de lado e vamos aos fatos interessantes.

Ele era e sempre foi um jovem apático a festas, danças e

badalação, em geral teve uma infância feliz dentro das

limitações. Mesmo porque o sistema os limitava. Até os dez

anos ele não tinha nem um tipo de responsabilidade com o

mundo, aos 12 anos começou a trabalhar. Não era, digamos, um

trabalho de futuro, mas o suficiente para tomar gosto pela coisa;

nunca foi lá um bom aluno, era um garoto rebelde. Então veio a

adolescência - tempo bom aquele em que a mudança de

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comportamento é radical e, junto a ela, surgem os problemas.

Você tem uma vaga noção de liberdade, mas precisa saber

como exatamente lidar com ela. Aos quinze anos ele já

colecionava um punhado de dúvidas que lhe consumiam e

assolava o seu pensamento adolescente, e que vieram a lhe

transformar cada vez mais em uma pessoa que não se encaixava

no sistema.

Então veio a maioridade e, junto a ela, as

responsabilidades que ele sempre ignorou, então aquela cidade

de uma cara só, já não servia para ele. Tratou de arrumar a mala

e pegou a estrada, porque ele não aguentava mais os mesmos

rostos, os mesmo gostos, a diversão era conversar na venda do

seu Zé, aquilo se tornava uma prisão para ele que sonhava

grande, mal sabia que, quanto maior o sonho, maior pode ser a

decepção, ou mesmo o tombo. Como ia dizendo, pegou a

estrada e veio parar nesta selva de concreto. Aqui passou por

tudo que ainda não tinha experimentado, mas nada lhe tirava o

sonho, morou na rua, trabalhou em quase tudo que você possa

imaginar, de catador de papel, a gerente de uma grande

empresa; como você pode imaginar, sua vida foi, a principio,

uma aventura maravilhosa.

Mas como sempre ele queria mais, nunca estava

satisfeito, ele tinha uma posição social confortável. Contudo,

com tanta luta, ele não tinha tido tempo para o amor.

Bem, amigo, acho que aí começou o reverso da conquista

pessoal, foi quando ele conheceu Verônica, uma moça formosa,

estatura média, cabelos longos, lisos e loiros como ouro. Tinha

um sorriso leal, enigmático, acolhedor e sincero. Era uma

criatura que impressionava pela sua fala farta, e um senso de

humor de encantar o mais intrépido dos homens, e ele que tinha

se privado por tanto tempo de um relacionamento mais sério, se

encantou com a beleza daquela criatura, não demorou muito,

eram praticamente um só, e com dez meses de namoro eles já

estavam casados.

Ele era o mais feliz dos homens, a vida passou a ter um

novo sentido, a felicidade era cada vez mais crescente, suas

manhãs era como sonhos de primaveras, quentes e floridos.

Page 27: Calabouço Contos e outros

Antonio de Araujo Silva

27

Resolveu então ter o seu primeiro filho. Quando faltava

mais ou menos uma semana para o seu nascimento, a empresa

em que ele trabalhava lhe fez um pedido para que fosse para

uma de suas filiais em outro estado. Era próxima, coisa rápida, a

empresa estava tendo alguns problemas e o diretor geral achava

que, em no máximo dois dias, conseguiria contornar os

problemas lá existentes.

A princípio, ele repudiou a ideia e estava quase

irredutível, mas a Verônica acabou lhe convencendo do

contrario. Então ele viajou e, de fato, em dois dias ele contornou

a situação e imediatamente ele pegou a estrada de volta. 3000

km lhe separavam da sua tão sonhada felicidade, Aquele filho

fazia Drailson vibrar de alegria, afinal, depois de toda aquela

luta para criar as condições necessárias para educar o seu filho,

finalmente estava tão próximo de realizar seu grande sonho de

constituir sua própria família.

Mal sabia ele o que o destino lhe reservava. Quando

retornava de sua viagem, na metade do caminho, subitamente

ele perde o controle do veículo em uma curva e capota o carro

por varias vezes. Sofrendo um grave acidente, coisa do destino,

fatalidade ou, quem sabe, o acaso, ficou três semanas em coma,

e como por castigo, ele volta do coma como se não tivesse

acontecido nada, como que por milagre, sem numa sequela

aparente, ao menos era isso que os médicos diziam.

Ao retornar daquele coma, era como voltar de uma longa

noite de sono, mal sabia ele que ali começava o seu triste e

inevitável calvário. Quando acordou, a sua primeira pergunta

foi sobre o que tinha acontecido e qual era o dia da semana, pois

não se lembrava de nada.

Era normal, diante da gravidade do acidente. Foi

informada a primeira lembrança na sua mente: o nascimento do

seu filho, pois ele teria nascido no dia anterior, então logo ele

entendeu por que aqueles lindos olhos não estavam ali a sua

frente quando acordou.

Dois dias tinham se passado da sua saída do coma, e então

alguns dos seus amigos vieram lhe visitar. A princípio, ele ficou

um pouco irritado, afinal, ele estava a uma hora de viagem da

sua casa e ninguém tinha indo lhe visitar.

Page 28: Calabouço Contos e outros

Calabouço contos e outros

28

Ao quarto dia entrou na sala o médico e uma enfermeira

com um olhar pouco convincente disse-lhe que era hora de

tomar seus remédios, “afinal, você não vai querer passar a vida

inteira nesta cama não é mesmo?”. Ele tomou as suas cápsulas,

olhou nos olhos do médico, e perguntou se ele tinha alguma

coisa para lhe falar e não estava encontrando as palavras exatas.

Primeiro, ele achou que se tratava de alguma sequela do

acidente que os médicos estavam lhe escondendo. Mas logo o

médico lhe traquilizou, afirmando que ele estava muito bem,

apesar do susto.

Então ele começou a ficar alterado, jamais ele imaginaria

o que realmente teria acontecido; o médico, então, lhe relatou os

fatos que tinham ocorrido enquanto ele esteve em coma. Sua

esposa, ao saber do seu acidente, entrou em desespero, e tomou

uma dose muito elevada de calmantes. E, infelizmente, quando

ela foi socorrida, já não era possível fazer mais nada, tanto em

relação a ela, quanto ao bebê.

E neste exato momento ele morreu. Não fisicamente, mas

era como se sua própria alma tivesse sido arrancada à força do

seu corpo, afastando aos poucos do seu corpo, qualquer desejo

de viver. O que o medico lhe falou depois disso ele nem chegou

a ouvir mais. Pois naquele momento o mundo estava desabando

sobre a sua cabeça, e o que era felicidade virou tormento.

Drailson passou mais três semanas internado em estado

de choque, e cada vez que ele abria os olhos, para ele era como

se tivessem apagado o azul do céu. Ele recusava-se a acreditar

nos fatos, é isso, nem se quer pôde ir ao sepultamento da sua

querida esposa e do fruto daquele imenso amor, e porque não,

dizer neste momento o sepultamento da sua vida e da sua

felicidade - tudo no mesmo túmulo; acabava ali qualquer desejo

de continuar a viver, pois já não existia razão para isso. Dali em

diante, os dias se passaram, mas a dor e a angústia da eterna

solidão só aumentava. Sentia-se sempre como um ser que o pai

lhe tirou a vida, mas esqueceu do corpo a vagar sozinho no

meio de uma multidão com a mesma face. O hoje, para ele, não

passa do prenúncio de um sonho que um dia viveu, e como uma

enxurrada de pensamentos, todos os seus fracassos povoavam

sua mente que já não tinha paz. Agora você pode ter a dimensão

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Antonio de Araujo Silva

29

exata do termo padecer, com tudo que aconteceu em sua vida,

desde daquele efêmero dia, a sua vida não foi mais a mesma, e

não podia ser diferente. Bem, os fatos que aconteceram no decorrer dos dias, a

partir daquela data, foram o início do epílogo da sua existência.

Acho que você já pode imaginar o que veio nos dias que se

seguiram. Ele passou, ao todo, seis semanas no hospital, teve

alta e voltou para casa.

Mas aquele já não era mais o seu lar, sinceramente, não

encontro palavras para descrever o sentimento exato daquele

momento, era como se ele estivesse fora do contexto de tudo

que havia naquele lugar. Por um breve instante ele ficou

completamente pálido e inerte, contemplando a paisagem do

desespero, ele podia sentir o cheiro do doce perfume de sua

amada em cada objeto ali presente. Com o olhar fixo, ele podia

ver ali, naquele momento, o prelúdio do fim. Era como um

pesadelo onde só ele era real.

Dali em diante, para ele, os dias passavam à revelia da

sua existência, como se a vida nele não mais existisse..foi

degustando a dor a cada dia, mas, infelizmente, o ar que agora

respirava passou a ser tal como navalhas de tortura que

dilaceravam seu espírito inebriado pela perda do sentido de

viver.

Hoje já estamos em 5 de agosto e, certamente, você já

sabe um pouco sobre a sua pessoa, como você pode observar o

sol nascer no mesmo horizonte de sempre, com a precessão do

absoluto. Mas a ausência nem sempre tem a consciência do

poder da solidão que, aos poucos, nos leva a desejar um fim,

mesmo que seja breve, como se pudéssemos recomeçar, e o não

existir passa a ser seu objeto vital.

Voltamos ao passeio diário, sim, isso mesmo, ele continua

a fazer isso todos os dias, afinal o mundo passou a ser o seu

purgatório. E como numa réstia, ele pendura as suas ilusões

para secar ao vento morno das incompreensões, então a noite

cai e o espírito seca ao prenúncio de um amanhecer que só

acrescenta o seu padecer; ele já pode até sentir o cheiro

perverso da coberta que lhe cobre...

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Calabouço contos e outros

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Antonio de Araujo Silva

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Segundo capítulo

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Calabouço contos e outros

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Ventríloquos do ego

Em um mundo cada vez mais moderno e consumista,

onde o ter é tão importante quanto o ser, o homem carrega em si

a responsabilidade de resguardar o seu caráter sem que seu ego,

absorva para si esta última linha tênue que o separa dos

irracionais. Assim, iniciamos este embate entre o criador e a

criatura, em um intempestivo duelo de ideias e pontos de vista

incoerentes com a realidade de cada um.

E sem mais demanda. Em um palco qualquer desta

abençoada Pátria:

Com uma cadeira ao centro uma mesa posta com um bule

de café que se imagina ser fresco, e duas xícaras. João do nego

e seu comandado iniciam mais um... Quem sabe... - Olá, boa noite a todos, eu sou João do nego, e este é

Cicinho, como vão vocês? Olha só Cicinho, quanta gente aqui,

num é que nos ta ficando importante, está que até parece

espetáculo da bróde.

- E o que é brode? Hein? Padim.

- Eita que também, lá vem tu querendo saber tudo, pelo

menos vamos esperar todo mundo tomar seus assentos, não é

Cicinho? Porque aí, enquanto a gente conversa, nós toma um

cafezinho pra nós esquentar o espírito não é mesmo? Mas vocês

que estão aí desculpe pela indelicadeza, mas é que o Cicinho

num é de dá atenção a qualquer coisa, num sabe. Não, eu não

quero dizer que vocês é qualquer coisa não, mais é que esse pau

preto é todo metido a besta, é que nem burro brabo só vê o que

tá na frente do nariz. Mas como eu sei que vocês tudo tão

cansado depois de um dia de trabalho, cada um de sua maneira

não é mesmo, teve o trabalho de vir aqui vê esse matuto e suas

histórias bestas, isso mesmo, porque se num fosse besta num

tinha graça, não é mesmo?

E por falar em historia besta, acho que vou começar esta

noite contanto um causo que aconteceu há muito tempo atrás

com o meu amigo Jessé de dona maroca.

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Antonio de Araujo Silva

33

- Eita, Padim, que num aguento mais ouvir esse causo!

Será que num da prá inovar, mudar o repertório não, Padim?

- Num tô dizendo se você dá liberdade prá preto é isso

que acontece, o bicho acha que é gente.

- Ôchi! O Padim perdeu a noção do perigo, foi? Por acaso

o Padin num se lembra mais, que se o Padim continuar a me

ofender me chamando de preto, eu posso processar o Padim,

lembra mais não, é?

- Num tô falando, agora vocês aí da plateia por acaso tem

algum idiota que acredite que alguma lei vai acabar com o

preconceito, hein? Me digam.

- Olha aqui, meu Padim, se vai acabar eu não sei, mas que

vai botar um monte de cabra na cadeia, isso vai.

- Largue de ser besta, então tu acha que nesse mundo

quem tem dinheiro vai conhecer o xilindró, algum dia, hein?

- Ôchi! Padim, a gente tem que acreditar na justiça, e olha

que o Padim mesmo que me falou, num foi?

- Tudo bem, Cicinho, mas vamos mudar de assunto

porque o povo aí já tá é ficando aperreado com tanta lenga,

lenga sem futuro, num sabe.

- Padim.

- Fala Cicinho.

- Eu também posso contar uma história besta, posso?

- Claro que pode, mas que história você quer contar,

Cicinho?

- Posso contar aquela...

- Qual menino de deus?

- Ah! Vai dizer que o Padim não se lembra de mais

daquela do embaraço da ribeira de baixo.

- Olha aqui, seu neguinho magrelo, se você começar, vai

se arrepender de ter nascido, já tá na hora de você me respeitar

seu moleque.

- Ôchi! Padim precisa ficar nervoso não, eu tava só

brincando, ôchi!

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Calabouço contos e outros

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- Tudo bem, vamos deixar isso pra lá e vamos ao que

interessa.Há muitos anos atrás, quando eu ainda morava lá na

ribeira de baixo...

- Num é por nada não mais se eu fosse o sinhô, Padim,

num contava essa não.

- Num é que o pau preto ficou todo sentido, só porque eu

vou falar do seu antigo patrão, é?

- Oia aqui Padim, primeiro meu nome num é pau preto, é

Cicinho, segundo, se Padim continuar me ofendendo, eu vou

denunciar o Padim por racismo, e lhe meto na cadeia.

- Mas olha, olha, vê se tem jeito uma coisa dessas, a gente

dá casa comida e roupa lavada para o infeliz e o peste ainda

ameaça pôr o sujeito na cadeia. Num tô dizendo que esse

mundo ta perdido? Porque no tempo do meu avô, esses pretos

trabalhavam de sol a sol e de graça, e se fizesse corpo mole ia

direto para reio, hoje em dia eles tem cota pra tudo, do jeito que

vai nós vai é virá escravo deles, não é mesmo?

- Oia aqui Padim, acho melhor a gente parar por aqui se

não isso vai feder, num sabe.

- E num adianta ameaçar não porque eu vou contar.

Vocês desculpa, mas é que toda vez que eu falo dessa história

ele fica nervoso. Num sei porque, tudo bem que é uma coisa um

pouco pessoal, mais nem por isso eu vou deixar toda essa gente

sem saber porque o seu antigo patrão te chamava por esse nome

de Ciço bananeira, não é. Pelo que eu sei, num existe esse

sobrenome em lugar nenhum.

Ele era ainda jovem, vichi! Que isso faz tempo não é

mesmo Cicinho? Porque o tiçãozinho aqui só tem cara de novo,

mas esse bichinho pisou na lama do dilúvio, num sabe.

- Padim, acho melhor o sinhô pará.

- Tudo bem, num faz tanto tempo assim, mas vamos dizer

que num existia ainda essa tal de televisão, computador, pelo

menos aqui pra gente da roça. Mas pensando bem, Cicinho,

naquela época a diversão era bem melhor não é mesmo Cicinho,

Virche Maria! A gente arrumava um rabo de saia e a diversão

tava garantida. Tá certo que naquele tempo menino nascia que

nem coelho, era de ninhada, mas quem se importava? Se Deus

deixou nascer é porque vai ajudar a criar, não é mesmo?

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Antonio de Araujo Silva

35

- Eita que o Padim hoje tá com a peste. Dá pra

desembuchar logo essa história prá esse povo, ou tá difícil,

hein? Padim.

- Mas como eu ia dizer, e num adianta fazer bico, nem

cara feia, porque eu vou contar tim, tim, por tim, tim, num sabe.

Olha que a história seria mais divertida se num fosse um pouco

trágica. Foi há uns vinte e pouco anos atrás, antes dele vir aqui

prá cidade grande, essa caatinga de maluco onde ninguém

respeita ninguém. Mas deixa prá lá vamos ao que interessa.

Nós morávamos lá no sítio da pedra mole, um sertão seco

que não tinha mais fim, quem se importava com isso, éramos

todos jovens cheios de sonhos, apesar da vida pelas aquelas

bandas estar mais para pesadelo.

- É bom o Padim num esquecer que também num está tão

inocente nessa história, que eu sei que o sinhô também pelou

muito sabiá por lá mesmo, quando trabalhava para o coronel

Jasflores mata Onça.

- Eita peste, mas que pretinho mais atrevido, num é que o

bicho tá querendo desmoralizar minha imagem? Espere aí seu

preto de uma figa, que mais tarde tu vai vê uma coisa. Mas

vamos deixar as nossas pendengas pra depois.

Ele morava com o coronel Jasflores pega Onça, agora pense

num homem bruto da molesta, vichi! Que só o nome metia

medo até em onça braba. Ele morava lá na fazenda Ribeira de

dentro, o coronel era casado com Dona Linda Boa Ventura. Cá

entre nós, e Deus que nos escuta, o nome fazia justiça, porque

eu já tô com mais de dez punhados de ano nas costas e já rodei

todo esse mundo de meu deus, mas nunca vi mulher com

formosura igual. Ela era alta, branquinha, cabelo preto como

onça da noite, tinha um sorriso largo, bem que não era só o

sorriso que era largo não... Tudo bem, Cicinho, eu num vou

passar daí não, porque tem criança ouvindo o causo.

A casa do coronel ficava perto do riacho da Ribeira, lugar

onde toda tarde dona Linda ia se refrescar e mostrar sua

formosura pros deuses.

- É, mas pelo que eu sei, não era só os deuses que

desfrutava de sua beleza não, não é mesmo Padim?

Page 36: Calabouço Contos e outros

Calabouço contos e outros

36

- Tô vendo que é hoje que desmonto esse neguinho

desgraçado em porrada.

- Vichi! Que o Padim ficou foi nervoso, a gente num pode

nem mais fazer uma brincadeirinha besta.

- Oia só, vou relevar dessa vez pra evitar a possível

necessidade de jogar este café na tua cara, neguinho sem

compostura. E afinal ele tá uma beleza, por acaso vocês já

tomaram desse tipo de café aqui, ah, claro que não porque hoje

em dia é tudo cheio de frescura, é café descafeinado, solúvel,

café forte, extra forte e tem até café light. Pra mim isso é coisa

de fresco, que me desculpe os frescos, porque eu num tenho

nada contra eles, afinal, cada um dá o que pode, e o que tem,

não é mesmo?

Tudo bem Cicinho, eu já sei que eu tenho essa mania de

misturar assunto, ôchi! O que tem homem, nós só tá tendo um

dedinho de prosa a mais, e isso num mata ninguém, não é

mesmo? Como eu tava falando antes do fresco entrar no meio.

- Ôchi! Que peste é essa Padim?

- Que isso Cicinho eu num tô falando que você é fresco

não, eu quis dizer antes da história do fresco entrar no meio,

eita! Que neguinho desconfiado. Mas vê se você me deixa

continuar com a história, que esse pessoal num veio aqui pra

ouvir tua ignorância não, ah, já entendi, você tá é querendo

tumultuar o causo, nem adianta porque você, querendo ou não,

eu vou contar. Tudo bem, eu sei que vocês estão aí sem

entender nada, já tem até mulher ficando nervosa se mexendo

na cadeira como se tivesse sentado num pé de cansanção.

- Padim, falando em mulher, posso falar uma coisa?

- Claro, Cicinho, diga.

- O Padim já viu o tamanho daquela mulher ali na

primeira, fila, viu?

- Ôchi! Tu ta ficando doido, é?

- Pronto, por quê?

- Me admiro muito, pra quem tava querendo me botar na

cadeia por lhe chamar de neguinho, desse jeito você vai me

fazer companhia por lá, não é mesmo?

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Antonio de Araujo Silva

37

- Ôchi! Padim, mais basta olhar pra vê que ela tá maior

do que uma baleia, num cabe nem na cadeira direito, e olha que

as cadeiras daqui são bem servidas.

- Mas veja só, e por acaso num basta olhar prá tu prá ver

que tu és preto não, me diga qual é a diferença?

- Eita peste, Padim, será? Virche! Ainda bem que ela num

ouviu, não é mesmo?

- Agora vê se fica com essa matraca fechada antes que eu

seja expulso daqui, tô certo.

Mas como eu ia dizer, tudo bem, eu não vou explicar

agora o que é cansanção, mas eu ia dizer mesmo é que esse meu

café aqui é torrado com rapadura, quando você põe na xícara,o

bicho parece engrossante. Quando você toma a pressão vai lá

em cima, bem e lá embaixo também, mas pra encurtar o nosso

assunto, falando do riacho da ribeira. Lá na vazante tinha um

plantio de bananeira que era uma beleza, e por coincidência era

ali na vazante que dona Linda se refrescava como veio ao

mundo, vichi! Nossa Senhora que eu nem gosto de lembrar que

a pressão sobe na hora.

Tá bem, Cicinho, pressão é modo de dizer, isso todo

mundo já sabe. Numa daquelas tardes, como todas do sertão,

com aquele mormaço da molesta, o coronel Jasflores mandou o

então Ciço, rapaz novo taludo e que andava mais seco que a

lagoa no mês de setembro, buscar um cacho de banana lá na

vazante.

Bem, assim, na hora do vexame de atender o coronel, e

também na pressa de mandar, nenhum dos dois se lembrou de

que era bem na hora que dona Linda tava se refrescando, e o

Ciço desceu pra vazante ligeirinho, direto pros pé de banana

mais perto da vazante, que era onde o cacho crescia mais

ligeiro. Sei bem que com o que ele viu, não era só o cacho que

crescia ligeiro não. Bem, pra sua alegria ou desespero, sei lá eu,

quando chegou à ponta da vazante que era onde ficava os

primeiro pé, ou os último de bananeira, depende da ordem de

chegada do indivíduo.

Pra sua felicidade ou desgraça, lá estava aquela belezura

indescritível, como veio ao mundo, em carne e osso, sei bem,

que mais carne do que osso, não é mesmo Cicinho?

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Calabouço contos e outros

38

- Eita! Depois eu é que sou safado, não é mesmo? Não que

dona Linda seja gorda, não, dona Linda tinha tudo na medida

certa e que certeza de medida. Acho que o criador estava num

estado de graça quando criou aquela mulher.

- Quando o Ciço viu aquilo ele ficou abestado, num sabia

se corria ou se ficava se pegava o cacho ou a banana, nesse

intervalo da meia alucinação ou lucidez a mais da conta. O

coronel se lembrou de que a dona Linda tava lá no Riacho da

Ribeira, Vichi que o home endoidou, olha, porque cá entre nós,

e Deus que nos ouve... Porque se alguém fizesse a besteira de

olhar prá dona Linda com os olhos de segunda intenção, o

coronel mandava cortar os documento do cabra assim, na hora,

e isso ela com roupa, imagine o cabra vendo ela peladinha como

veio ao mundo, ave Maria num queira nem imaginar.

Bem, pra encurtar o causo, o coronel passou a mão ligeiro

como uma onça na sua pistola Mauser e no seu punhal de

estimação, e desceu pra ribeira fervendo, o home ora branco

como um capucho de algodão, ora como um tição, ora fungando

mais que respirando. E chegando lá na ribeira, o homem ia

cego, o coitado do Ciço abestalhado com o que via, sei bem que

o danado não estava tão abestalhado assim não, e com isso nem

viu o coronel chegar. Quando ele se deu conta o coronel tava na

sua frente. Dona Linda tava alheia a isso tudo porque se

refrescava de costa pras bananeira, e que costa, Vichi! Quando

me lembro, chega a arrepiar até os olhos. Bem, mas voltando

prá cena anterior, quando o coronel viu o Ciço ali no pé de

bananeira, com os olhos arregalados, olhando dona Linda, o

coronel gritou:

- Que diacho você ta fazendo aí moleque safado? - Bem,

na pressa ou na agonia, num sei, de responder o coronel,o Ciço

disse:

- Ôchi! Tirano o cacho que o sinhô mandou, ora.

- Ah, é, e você poderia dizer onde diacho você comprou

essa ferramenta de corta cacho de banana, pode?

E quando Ciço olhou para as mãos é que ele se deu conta

do embaraço que tinha se metido, claro que nessa altura a

ferramenta num assustava mais ninguém...

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39

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Calabouço contos e outros

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A morte do planeta azul

Em um tempo não muito distante, quando o planeta Terra

já não era mais habitável, em uma das dezenas de estações para

onde o que restou da população mundial foi transferido. O

comandante anuncia para que todos saiam das suas cápsulas e

que se dirijam ao grande salão, a fim de que todos assistam

juntos, ao marco da nova era humana. Pois o planeta no qual se

originou a raça humana chegava ao seu ciclo final de existência.

Certamente, todos os tripulantes desta, e de todas as outras

estações que formavam a frota de habitações espaciais, mal

conseguiam controlar a ansiedade, pois a expectativa era

grande, afinal, se aproximava o fim do grande planeta azul.

Até há dois séculos, ninguém poderia acreditar nesta

possibilidade tão absurda e irreal, mas, diante dos

acontecimentos dos últimos séculos, já se tornara um consenso.

E o fato era inevitável.

Vamos agora retornar, então, há alguns séculos atrás,

quando tudo começou, mais precisamente em meados do século

vinte e um. Quando um velho cientista, até então desconhecido

para a comunidade cientifica mundial, chamado Antoniese

Larise, surpreendeu o mundo com suas teses sobre a extinção

do planeta azul. No ano de 2005, em uma conferência

universitária, Larise tornou público um artigo em que traçou

seus primeiros parâmetros entre a evolução do homem e a

inevitável trajetória para a destruição do planeta. Em seus

artigos, ele aliava a alienação do ser humano com a inevitável

desagregação da espécie; a qual, primeiramente, levava o

isolamento do homem até a inevitável destruição do planeta.

No ano de 2005, o então desconhecido pesquisador

Larise, começava a destilar suas teses, segundo as quais, em um

pequeno intervalo de tempo, já provocavam alvoroço e

incômodo aos seus colegas.

O sr. Antoniese era um homem reservado, pouco se sabia

da sua vida pessoal, apenas que ele era um dos maiores

estudiosos do comportamento humano e da sobrevivência

humana da época.

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Antonio de Araujo Silva

41

Naquele dia, o pequeno auditório encontrava-se

completamente ocupado, com pessoas em pé que se espalhavam

por todos os lados.

O Dr. Larise aparece trajando uma roupa bem casual para

o momento. Quem o conhecia, sabia que ele não era muito

adepto de formalidades.

Ele começa a sua apresentação agradecendo a presença

daquela pequena multidão que ali se aglomerava, agradece

também pelo convite daquela entidade e a oportunidade para

que ele pudesse divulgar as conclusões dos seus longos anos de

pesquisa. Explicou, em primeiro lugar, que não tinha a menor

intenção de transgredir qualquer conceito atual com as suas

conclusões sobre os longos anos de pesquisa da espécie humana

e o seu habitat, apenas elucidar o que ele achava inevitável

acontecer, diante os resultados obtidos.

Ficou em silêncio por alguns segundos, pediu a atenção

de todos ali presentes. A tensão era tão presente, que se podia

ouvir o som daquela respiração coletiva do ambiente.

Iniciou dizendo que era factual e notório que, apesar dos

milhões de anos da existência humana, o homem continuava

fingindo entender o universo para não ter tempo para entender o

seu próprio planeta. Pois um dos grandes desafios da

humanidade era entender que a miscigenação não eliminou

nenhum elemento genético das primeiras criaturas humanas que

habitaram o mundo. O que houve foram apenas algumas

adaptações naturais às necessidades de todos os habitantes,

conforme a seleção natural entre o cruzamento de espécies, de

acordo com o que já fora especificado em pesquisas de alguns

séculos atrás...

Além de causar muita apreensão entre os presentes, os mesmos

esperavam pelas revelações que já circulavam nos meios de

comunicação sobre o seu intrigante artigo.

As comunidades científicas diziam que seus resultados

eram incoerentes para o momento em que vivia o nosso planeta

e, segundo os doutores do tempo, os fatos relatados não tinham

qualquer consistência. Mesmo assim, ele já tinha uma pequena

legião de seguidores.

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Calabouço contos e outros

42

Ignorando os olhares de descrença de alguns colegas ali

presentes, primeiro ele começa a relatar sobre os resultados

obtidos, os quais demonstravam a desordenada adaptação da

espécie humana no nosso planeta.

Com a adaptação da espécie para convivência em

sociedade de regras preestabelecidas, o homem e suas

inquietações, e a complexidade de sua mente, levaram-no a

criar situações de mistérios absolutos sobre suas próprias

capacidades. Com suas necessidades antepassadas escondidas

nos seus subconscientes, o homem muitas fezes se depara com

suas inevitáveis verdades inconvenientes. Trazendo assim, com

o desenvolvimento tecnológico, o começo da perda do contato

direto com sua própria espécie, ele então começa a resgatar

valores, desejos e necessidades que já não povoavam sua mente

consciente.

Tudo isso, trazido a um contexto de competividade

apregoada nos modelos sociais atuais, resultou em uma situação

de descontrole emocional ireversivel, e que se torna

incompreensivél para a mente, pois ela não consegue identificar

os horizontes de direcionamentos desejáveis. Sendo assim, a

mente se autoprograma de acordo com os sentimentos mais

eminentes, de acordo com o meio onde vive. Como nada no

subconsciente do ser humano é descartado, somos

surpreendidos por ações desumanas, vindas de pessoas ditas

normais.

Com a evolução muito rápida do seu meio, o homem

chega muito rápido à fase adulta de sua mente, sem que o

sentimento como pessoa o acompanhe, gerando, assim, muitos

conflitos, pois ele não se vê como a sociedade que o rodeia.

Vivendo com essa mente conflitante, ele se transforma em

passageiro de si mesmo. Sem a capacidade de controlar suas

próprias ações, o homem começa a depositar sua esperança na

capacidade dos seus semelhantes, gerando, assim, uma falsa

expectativa de paz interior.

Sempre esperamos que o homem finalmente encontrasse

um ponto de equilíbrio, entre o desenvolvimento do seu meio e

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Antonio de Araujo Silva

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a capacidade de sua adaptação. Pois corríamos o sério risco de

termos, cada vez mais, um crescimento desordenado de

verdadeiras legiões de alienados, incorporados ao nosso meio

social que julgamos sano, mas que, infelizmente, em um futuro

bem próximo, virá a causar um desequilíbrio capaz de

comprometer o convívio social aceitável entre os homens...

Conforme o professor Antoniese ia se aprofundando nos

relatos das suas conclusões, mais gerava grande expectativa,

sobre o que poderia vir a seguir. Porque, apesar de praticamente

viver em uma eterna clausura, onde dedicava praticamente todo

tempo de sua vida ao desenvolvimento do conhecimento

humano, pouco se sabia sobre as suas teses.

E depois de uma pequena pausa, ele retoma o seu discurso,

explicando que, ao longo das últimas décadas, temos utilizado

de forma indiscriminada produtos químicos para garantir uma

produção satisfatória de alimentos. Desta forma, temos

acelerado também processos de mudanças genéticas

significativas, e causando, assim, danos irreparáveis à saúde do

homem a logo prazo.

Já é notória a situação de risco da existência humana

diante a incapacidade do homem de preservar a si mesmo e ao

seu meio...

E dessa forma, o professor seguia conduzindo sua apresentação;

até então, nada de assustador tinha sido revelado diante dos

comentários que tanto falavam sobre ele, então ele seguia

pontuando cada etapa da sua pesquisa.

Explicava que estamos todos vivendo teleguiados por

uma junção de ações internas e externas que dificultam a

capacidade de compreensão das nossas próprias necessidades

imediatas.

Com a necessidade de se competir com a mesma espécie,

o homem passa a ter uma evolução desajustada, transformando

qualquer um em presa.

Este fato desagrega a organização da família, quebrando assim

o eixo principal do conceito de sociedade que vivemos

etrazendo, assim, enormes perdas para o vínculo de família.

O homem traz de volta a si, seus extintos mais

conhecidos de sobrevivência, criando uma desordem na

Page 44: Calabouço Contos e outros

Calabouço contos e outros

44

estrutura social capaz de tornar inviável a qualquer ação de

estabilidade e sustentabilidade organizacional que se torne

eficaz no controle da violência...

De certa forma, as pessoas ali presentes começavam a

ficar impacientes, pois eles não viam ali, nada

significativamente novo, que justificasse tanta importância dada

aos resultados de suas pesquisas. Mas, apesar de notar esta

impaciência e indiferença em sua plateia, ele continua

explicando.. Sempre sereno e tranquilo, ele prossegue as suas

explicações.

Destaca que a individualização do ser e o acesso rápido à

cultura e aos costumes, hábitos sociais e alimentares do mundo

inteiro, orna-nos mutantes diários de hábitos sociais, culturais e

alimentares. Com esta interferência complexa e diária, o homem

se transformou em um ser fragmentado psicossomaticamente

falando, trazendo um resultado físico e mental desastroso.

Sublinho que, sobre o meio ambiente, é inevitável ressaltar que,

ao longo da nossa existência, exaurimos do nosso planeta,

indiscriminadamente, todos os recursos naturais, com o intuito

do desenvolvimento, e sem o menor respeito ao planeta. Pois

muitas vezes nos pegamos a pensar se e o homem, em algum

momento, teve a consciência de que todos os minérios retirados

do nosso solo tinham uma função para o equilíbrio da vida do

planeta. Derrubamos as nossas florestas, aniquilamos todo o

sistema pluvial e aquífero do nosso planeta. Estamos

conseguindo o que parecia impossível: contaminamos todos os

nossos oceanos, retiramos bilhões de toneladas de ferro,

manganês, ouro, prata, bauxita etc. E não nos contentando em

retirar todas as reservas de petróleo dos leitos mais superficiais,

agora também pretendemos exaurir de uma forma irracional

todas as reservas do pré-sal.

Será que em nenhum momento paramos para imaginar

que tudo isso faz parte de um sistema que dá a sustentabilidade

de existência do planeta, pois o que estamos fazendo é mata-lo

lentamente.

E que, a partir de agora, só nos resta arcar com as

consequências. É irreputavel dizer que a situação, hoje, já é

simplesmente irreversível.

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Antonio de Araujo Silva

45

E assim sendo, com este desenvolvimento desagregador

da espécie e do seu meio, certamente será inevitável o

retrocesso ao processo de convivência em tribos

individualizadas, causando um enorme prejuízo, ou talvez ao

fim do conceito da coletividade. Inevitavelmente, haverá a

ruptura do nosso atual conceito da ordem social.

Dessa forma, o que nos resta é sentarmos todos, em

nossos imensos sofás da hipocrisia e aguardarmos ansiosos ao

novo milagre da divina criação...

A partir deste momento, ele começa a causar um

verdadeiro alvoroço entre a plateia de cientistas e intelectuais

ali presentes. Novamente, ele faz uma pequena pausa, antes de

reiniciar com o que ele tinha de mais assustador como resultado

dos seus experimentos científicos, ao longo dos anos de

pesquisa. Considerado pelos seus colegas pesquisadores como

alguém sem muito embasamento ou consistência científica, ele

traz revelações assustadoras para o meio daquela época.

Segundo a sua tese, logo na segunda metade deste século, o

homem perderia 50% de toda água doce do planeta. Com as

mudanças bruscas de temperatura e o degelo dos pólos, haveria

a inversão dos leitos dos rios, então o ciclo se inverteria e o mar

passaria a invadir os leitos dos rios, contaminando, assim, 50%

de toda água doce do planeta.

Claro que, na época, não se deu nenhum credito, pois

qual ser humano de bom senso acreditaria em uma coisa

absurda desta. Nem mesmo os mais pessimistas dos

pesquisadores jamais compartilhariam da ideia de que houvesse

a destruição do planeta em um espaço de tempo tão curto como

em apenas quatro séculosCom a sua morte, dois anos depois

desta apresentação, suas pesquisas simplesmente foram

esquecidas.

E só no ano 2075, seu nome e suas pesquisas voltaram à

cena mundial, pois foi mobilizada toda acomunidade científica,

em virtude de ter iniciado um processo, que até então se

julgava quase impossível.

O nível dos oceanos começou a se elevar rapidamente

com as altas temperaturas no planeta, e os polos começam a

derreter muito rápido.

Page 46: Calabouço Contos e outros

Calabouço contos e outros

46

A situação fica fora de controle, toda a população das

cidades litorâneas começam a serem evacuadas, são erguidas

grandes barreiras nas ligações do mar com os rios mais

importantes, na tentativa de evitar a contaminação dos rios. É

retirada, em regime de emergência, toda a população ribeirinha.

Logo, todas as regiões pantaneiras também necessitam ser

evacuadas; em todos os países acumulam-se bilhões em

prejuízos na agricultura, a pecuária de corte é quase que banida.

E o mundo inteiro começa a enfrentar a escassez de alimento.

Em menos de trinta anos, mais de vinte por cento da

população mundial morre por fome ou desastres naturais, tufões

maremotos terremotos, tsunamis de ondas gigantes nos cincos

continentes, simultaneamente. Assim, todas as ilhas e as áreas

costeiras do planeta são devastadas, matando 80% da população

daquelas áreas.

Em todo o mundo, as regiões de florestas tropicais

enfrentam, em média, seis meses de chuvas torrenciais e

ininterruptas.

Nas regiões dos trópicos passam até cinco anos sem chuvas, e

quando chove, o que era a média de milímetros de um mês

passa a chover em ritmo diário. Então, já no inicio do século

vinte e dois inicia-se, apesar de grandes protestos no mundo

inteiro,, a execução de construção de estações permanentes em

Marte e na lua. As três maiores potências econômicas do mundo

na época, se juntam para a construção de uma estação na lua e

outra em Marte, com capacidade para seis milhões de habitantes

cada uma. Pois todos eles já contavam com seis pequenas

instalações itinerantes, com capacidade de trezentos mil

habitantes cada uma. A revolta da população era eminente, pois

isto não representava nem dez por cento do percentual da

população atual, com uma expectativa de vida, em média, de

250 anos. Apesar de toda a tecnologia existente, o mundo já

não conseguia produzir alimento suficiente para todos. Foram

tempos difíceis, por mais que se tentasse não se conseguia

controlar a ação de pirataria que desviava grandes partes dos

alimentos distribuídos para as áreas mais isoladas...

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Antonio de Araujo Silva

47

Page 48: Calabouço Contos e outros

Calabouço contos e outros

48

A dívida

Prezado leitor, lá para as bandas do meu sertão, é muito

comum se recorrer aos amigos compadres ou parentes para

tentar se livrar daquelas dívidas inevitáveis do mundo moderno

e consumista de hoje em dia, mesmo nos lugares mais ermos do

nosso velho mundo.

Agoniado por demais, o seu Manoel da besta... Agora me

diga se tem cabimento se chamar um cristão por um nome deste

quilate. Todos sabem bem, que é de costume lá no meu nordeste

fazer esse tipo de coisa. Esses nomes associativos, como:

Manoel do bode, Zé de zefa... e por aí vai...

Mas vamos ao que interessa... Bem, pelo menos eu acho

que interessa, senão você não estaria aí lendo, não é mesmo,

caro leitor?

Como eu comecei anteriormente, o seu Manoel da besta

estava desesperado, pois tinha contraído um dívida, vamos dizer

que, para alguns, seria até insignificante, mas que para um

caboclo, para quem o dinheiro é quase uma “visagem”, fica

difícil honrar seus compromissos.

Não encontrando outra saída, o seu Manoel da besta

resolveu pedir ajuda, como é de costume a todos por lá, ao seu

compadre Chico ventania.

Bem, eu avisei que os nomes eram todos assim, vamos

dizer, meio esquisitos... mas vamos voltar para a história. O seu

Manoel acordou com as galinhas - bem, e agora eu acho que

você vai entender o porquê do nome; eita, eu e essa minha

mania de querer explicar tudo. Lá no sertão, pra comprar um

cavalo é preciso se ter um bom recurso, mas “besta” é mais

barato porque ela não serve para mão de obra pesada.

Então, como se diz por lá, quem não tem cão, caça com

gato, como se tivesse a ver uma coisa com outra. Bem, mas o

seu Manoel da besta estava um pouco preocupado com este tipo

de coisa, pois ele tinha contraído uma dívida com o seu Zé corta

saco. Pelo nome, nem precisa explicar o motivo do medo do seu

Manoel, não é? Pois o cabra poderia causar um estrago se ele

não honrasse o pagamento da dívida.

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Antonio de Araujo Silva

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Só a título de esclarecimento, naquele tempo, naquela

região, não se usa cheque, recibo ou promissória. Porque lá o

cabra faz acerto verbal mesmo. Agora, meu amigo, se o cabra

faltasse com a palavra... Aí para não ser muito dramático,

vamos dizer que o cabra estava meio enrolado.

Seu Manoel da besta tomou seu café mais ligeiro do que

teiú na caatinga seca. Arriou a besta e sumiu ribeirão adentro

para a casa do seu compadre Chico ventania, que era um sujeito

calmo, pacificador, mas que, quando perdia a paciência, não

tinha pra ninguém.

Quando ele chegou ao ribeirão, na casa do seu Chico

ventania, o homem nem tinha saído pra lida ainda. Seu Chico

tava no terreiro arrumando as coisas nas mulas pra levar pra

roça, quando avistou, surgindo lá na curva da velha estrada

empoeirada, o seu Manoel.

E logo resmungou uma pequena frase:

- Eita peste, virche! Que deve ter acontecido alguma

desgraça muito grande pro compadre Manoel vir esta hora pra

essas bandas.

- Olá compadre Chico, bom dia.

Quase que simultaneamente vai falando e descendo da

besta ao mesmo tempo, o que deu para o seu Chico já ir notando

o tamanho do aperreio do cabra.

- Ôchi! Tô muito bem graças ao meu bom Deus, e o

compadre Manoel, como tá?

- Ôchi! Com a graça de Deus, tô muito bem, por que,

num devia tá não, é?

- Eita homem ignorante da porra, tô só querendo saber

como o homem tá, e ele já me vêm com uma patada da molesta

dessa. Olha que pelo tamanho do cavalo eu até pensei que o

coice fosse bem menor, num sabe.

- Olha aqui compadre Chico, em primeiro lugar cavalo é

a mãe, e num me aperreie que hoje, compadre, eu tô azedo, num

sabe...

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Calabouço contos e outros

50

- Bem que eu desconfiei que boa coisa num poderia ser,

pro compadre tá por essas horas por essas bandas, num é

mesmo, compadre?

Mas vamos, me diga que diacho aconteceu pro compadre

ficar tão azedo assim, vamos, me diga.

- Virche! Compadre, nem te conto, não é que antes de

ontem eu fui resolver umas pendengas lá pras banda da ribeira

de baixo, e na pressa de me livrar do problema, compadre, não é

que eu fiz foi me enrrolar mais ainda?

- Ôchi, compadre Manoel se enrolou com que, me diga,

vamos.

- Fazia um bom tempo que eu tinha umas pendências

financeiras por lá, e a semana passada eu tinha algumas coisas

pra fazer por lá, então resolvi matar dois coelhos de uma

cajadada só.

Então lá fui eu dar uma satisfação pros meus credores,

num sabe, afinal se não podemos honrar os nossos

compromissos no prazo, pelo menos devemos dar uma

satisfação, não é mesmo, compadre?

- Espere compadre, que num tô entendendo coisa com

coisa, porque quanto mais o compadre explica, menos eu

entendo, por que o compadre num desembucha de uma vez,

afinal que miséria de enrrolação é essa, me diga, vá.

- Eita que homem avexado da molesta, num dá pra

esperar não, é, tô só querendo explicar as coisas direitinho, num

sabe. Mas, em todo o caso, vamos lá... pra acabar com esse

aperreio de uma vez. Chegando lá na bodega do seu Zé corta

saco, que é um dos credores, num sabe?

Houve uma pequena pausa, e seu Chico logo perguntou:

- Agora, também, compadre, com tanta gente no mundo

pro compadre arrumar dinheiro emprestado, foi logo pegar com

o seu Zé corta saco, o compadre perdeu o juízo de vez, foi?

Porque o compadre sabe muito bem que aquele homem é o cão

em pessoa, num é mesmo. Porque até a mãe dele pensa duas

vezes em se meter com ele, não é mesmo compadre?

- Ôchi! Compadre Chico, na hora do aperreio o sujeito

pega com o primeiro que aparece, vê se na hora da desgraça o

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Antonio de Araujo Silva

51

sujeito tem tempo de pensar nas consequências que vêm depois,

não é mesmo. Mas voltando ao que eu tava contando antes...

Não é que na pressa de dar uma satisfação pro homem,

não é que eu disse que até tinha arrumado o dinheiro pra acertar

com ele, mas o coitado do Ciço do peixe tava num aperreio da

molesta. E eu tinha arrumado o dinheiro pra ele, e assim que o

Ciço me devolvesse eu ia lá acertar com ele.

- Eita compadre, que agora o sinhô se lascou pra valer.

- Nem me fala compadre, que se eu escapar dessa, nunca

mais eu quero conversar com agiota, num sabe.

- Oia compadre, me desculpe o trocadilho, mas enquanto

ele é agiota, o compadre agiu como um idiota, não é mesmo?

- Ôchi! Compadre, também num precisa ofender desse

jeito, porque eu já tô lascado e o compadre ainda vem e me

chama de idiota, isso é demais pra mim, num sabe.

- Que isso compadre, num tô querendo ofender o

compadre não, tô só querendo abrir os olhos do compadre pra

ver se nunca mais cai em uma esparrela dessas. Mas vamos

deixar isso pra lá, me diga, como é que o compadre saiu dessa

enrascada, hein?

- Mas aí é que tá compadre, quem disse que eu saí?

Quanto mais eu tentava sair, mais eu me enrolava, num sabe.

- Ôchi! Por que, me diga, vamos...

- Sabe, compadre, na hora eu num entendi muito bem,

mas compadre, quando seu Zé soube que eu tinha emprestado o

dinheiro pro Ciço do peixe, o homem virou o cão chupando

manga, num sabe. E me deu 24 horas pra eu quitar a minha

dívida, porque senão... Virche! Que meu São Leopoldo da perna

torta me ajude, que chega até a me da arrepio só de pensar no

que pode me acontecer, não é mesmo, compadre? E ainda ficou

se gabando de ser um sujeito compreensivo, bondoso, e não um

cabra intransigente como se fala dele por aí.

- Eita peste, que primeiro pra mim esse santo é novo, de

onde o compadre desenterrou esse, e olha que eu conheço santo

pra mais de ano.

- Agora veja só se isso é hora pra brincadeira besta,

compadre. Então o compadre acha, que no aperreio da molesta

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Calabouço contos e outros

52

que eu tava, eu ia ter tempo pra escolher quem era o santo que

ia me ajudar, era?

- Que isso, compadre, eu num tenho nada contra o seu

santo não, só acho que com tanto santo conhecido, e o

compadre, vai buscar um que a gente nem sabe de onde é, e se

pelo menos existe, não é mesmo?

- Tudo bem, se trocar de santo vai deixar o compadre

mais tranquilo... Mas pensando bem, se fosse Nossa Senhora,

talvez a coisa ficasse mais fácil, porque afinal de contas,

problema que ela num resolver, pode esquecer ajuda divina.

Porque num tem mais santo que dê jeito, não é mesmo,

compadre? Mas vamos esquecer os santos e vamos pra coisa

prática, não é mesmo?

- Ôchi! Pode parar, que pelo tom da conversa tô vendo

que já me meteram nesse rolo.

- Ôchi! E o compadre agora deu pra adivinhar, foi?

- Eita, por acaso é preciso adivinhar, é, pelo que eu vi do

desenrolar da conversa, já tô vendo que me meteram nesse rolo

até o pescoço, não é mesmo?

- Pois é compadre, num tendo mais a quem recorrer, só

me sobrou o compadre pra me socorrer.

- Ôchi! Mas compadre, ultimamente eu ando numa

dureza de dá dó, esse ano a colheita foi pouca, a seca acabou

com os pastos, e os meus cabritos, nem valem a pena vender.

Porque os bichinhos estão magros que dá pena, tão no couro e

no osso, compadre.

- Mas ôchi! Que isso, compadre, eu não quero dinheiro

não. Ora, se num tem nem pra pagar o seu Zé, como é que eu

vou querer mais dinheiro emprestado? Ôchi, tá doido, homem.

- Eita peste, que agora quem num entendeu nada, fui eu,

num sabe, se não é dinheiro que o compadre quer, é o quê,

então, me diga.

- Ora essa, compadre, o sinhô ta cansado de saber que por

aqui nessas redondezas o compadre é a única pessoa que o seu

Zé corta saco respeita, não é mesmo. Ai eu pensei se o

compadre num podia me ajudar pelo menos a ganhar mais uns

dias pra eu pagar essa divida, não é mesmo. Porque, senão, a

desgraça tá feita. O desgraçado vai tirar meu couro, e o

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Antonio de Araujo Silva

53

compadre sabe muito bem que se eu num honrar o meu

compromisso, eu tô é lascado nas mãos do Zé... Prá num dizer

outra coisa que é coisa feia, não é mesmo.

- Arre, que o compadre Manoel, agora me apertou, sem

me abraçar, num sabe.

- Ôchi! Que conversa mais besta é essa compadre, veja só

se eu sou lá cabra de sair por aí abraçando macho, eu hein! Tá

me estranhando, compadre?

- Eita que também num se pode nem fazer uma

brincadeirinha. Não é que o compadre tinha razão quando falou

que estava azedo. Ôchi, o abraçar, foi só jeito de falar.

- Vôte! Pois pode parar com esse seu jeito de falar pro

meu lado, que eu já tenho é problema demais pra resolver, não

estou certo?

- Eita! Num se aperreie não, homem de Deus, que eu vou

dar um jeito nisso. Pode pegar seu rumo, que assim que eu

deixar esses badulaques na roça com os trabalhadores, de lá

mesmo eu vou falar com seu Zé. Se preocupe não, que num vai

ser ainda dessa vez que o compadre vai perder as ferramentas aí

não.

- Virgem Maria, mãe de Deus! O compadre nem me fala

numa desgraceira dessas, mas eu sabia que o compadre num ia

me faltar numa hora dessas, não é.

- Olha aqui, compadre, num vai cantando vitória antes do

tempo, não, porque eu num sei como vai tá o humor do homem

por lá não, acho melhor o compadre ir pra casa esfriar a cabeça.

E à noitinha eu apareço por lá com o resultado, tá bom,

compadre Manoel?

- Que isso, só do compadre ir lá falar com o homem, já tô

até mais aliviado, mas pode deixar que eu vou voltar já pra casa,

e cuidar das minhas coisas. Até mais ver, compadre Chico.

- Inté, compadre.

Depois de passar na roça, o seu Chico foi direto pra casa

do seu Zé, que não ficava muito distante da sua propriedade. Já

na entrada da propriedade do seu Zé, fica a sua casa, por sinal

uma casa grande, toda avarandada, com um terreiro enorme. Do

lado da casa de morada, ficava a sua bodega, onde ele

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Calabouço contos e outros

54

costumava passar a maior parte do seu tempo, à disposição dos

que dele precisavam, geralmente pra arrumar dinheiro a juro.

Já no terreiro, como é de costume, seu Chico se

anunciou:

- Ô de casa.

E lá de dentro ecoou como resposta aquela voz seca e

carrancuda do seu Zé.

- Ô de dentro, quem chama?

- Sou eu, seu Zé.

- Eu quem?

- Eita hominho difícil da molesta, sou eu, Chico de dona

Laurinha. Preciso ter um dedo de prosa com sinhô, seu Zé.

Bem, sempre que a coisa era séria, ele se apresentava

como Chico de dona Laurinha, que era a senhora sua mãe,

mulher respeitada por todo mundo naquela região.

- Minha Virgem Maria, que vai chover canivete por aqui

hoje, porque pra esse homem estar a essa hora por essas bandas,

deve ter acontecido uma desgraça muito grande. Mas me diga,

meu bom homem, quem morreu dessa vez?

- Ainda não morreu não. Mas é justamente por isso que

eu tô aqui, pra evitar o pior, num sabe.

- Eita peste, que nem eu mesmo sabia desse meu dom da

medicina, não é mesmo. Mas deixa pra lá, e me diga, seu Chico,

em que posso ajudar o sinhô? Mas primeiro me desculpe pela

indelicadeza da minha parte, se chegue, tome assento, acha que

podemos conversar aqui mesmo? Pelo menos o ar aqui é mais

fresco... Não que eu tenha algum gosto pela frescura, claro, mas

também quanto à frescura, cada um com as suas, não é mesmo.

- Bem, frescuras à parte, o sinhô seu Zé sabe que eu não

sou homem de rodeios. Por isso vou direto ao assunto, que me

trouxe aqui, num sabe.

- Ôchi! Então desembucha, homem, que já tá me dando

agonia de tanta curiosidade.

- Num se avexe não, que já tá é saindo. Bem, seu Zé, é

que o compadre Manoel me procurou todo aperreado, pois num

sabe mais o que fazer pra cumprir com o prazo que o sinhô deu

pra ele acertar a divida que ele tem com o sinhô, não é mesmo.

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Antonio de Araujo Silva

55

- Mas eu num tô dizendo?. Vê se isso é qualidade de

homem, pois o desgraçado fez besteira e depois foi correr pra

debaixo da saia do compadre.

Desculpe-me pela saia, mas é só modo de dizer, num

sabe. Óh! Agora pense numa qualidade de homem sem futuro,

pense. Porque, seu Chico, vê se tem cabimento uma coisa

dessas. O cabra vem na minha casa pra falar que num pode me

pagar, afinal eu não lhe autorizei emprestar o dinheiro que tinha

pra me pagar, justamente pro caloteiro filho de uma égua. Que

sumiu no mundo sem me pagar o que me devia. Vê se pode uma

coisa dessas, ou seja, fui enganado duas vezes.

Então o sinhô acha que tinha outra coisa a fazer? Ele que

se dê por satisfeito porque a coisa poderia ter sido bem pior,

num sabe. E olha que eu não engrossei com ele foi justamente

por ter muita consideração ao sinhô que é um homem de bons

princípios e num tem culpa das trapalhadas do seu compadre,

num é mesmo seu Chico?

- Bem, seu Zé, até fico agradecido pela consideração, mas

num vamos deixar uma coisa besta dessas chegar numa

desgraça. Afinal, o que aconteceu é que o compadre Manoel,

com medo das consequências de num ter o dinheiro pra lhe

pagar, acabou se enrolando todo.

- Mas como assim? Foi ele mesmo que me contou essa

história, com todas as letras, e eu ouvi muito bem, com esses

dois ouvidos que a terra há de comer.

- Mas também, cá entre nós, seu Zé, não querendo

desvirtuar a história... com a fama que o sinhô tem nessas

bandas, o coitado do compadre Manoel só pensou em ganhar

tempo. Pois corria o risco de perder o único bem precioso dele,

não é mesmo?

- Agora pense em um cabra frouxo da molesta, pois se ele

tentou ganhar tempo, ele fez foi se lascar todo, porque o único

tempo que ele vai ter é de arrumar alguém pra fazer os curativos

nos bago. Porque eu duvido que aquele frouxo arrume trinta

contos de réis em 24 horas, num é mesmo? Afinal, eu fiz

negócio foi com homem, e palavra de homem num se volta

atrás...

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Calabouço contos e outros

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Antonio de Araujo Silva

57

Diferenças

Pelo menos ao longo de quatro décadas imprimido uma

busca incessante para tentar resgatar um exemplar desta espécie

tão cultuada que chamamos de racional e inteligente. Se não,

uma das mais importantes criações da natureza, a raça humana.

Que seja isento de racismo ou preconceito. Mas,

infelizmente, quanto mais o tempo passa é raro a possibilidade

de você correr o risco de se deparar com um exemplar desta

espécie, que há muito vem neste processo de extinção. Estamos

vivendo um momento único na história da humanidade, pois

estamos presenciando um fato extremamente delicado, vivemos

um ostracismo político, religioso e social, em que cada tribo se

fecha em sua própria linha de pensamento filosófico, formando

assim uma espécie, no mínimo, curiosa:

Onde o político não faz política, o religioso não prega a religião

e, sim, a religiosidade de comprometimento, e a sociedade não

consegue aceitar as diferenças. Contudo, todos parecem unidos

em um só ideal: o consumo em massa.

Com todos correndo atrás do ouro dos tolos, sem medir

consequências, se entregam a modelos sociais pré-fabricados e

inviáveis, mas muito graciosos para o exercício pleno do

consumo.

E com o nosso otimismo quase que idiota, prossigamos nesta

caminhada em busca deste raro ser, pois graças ao criador

existem fortes indícios de que, em um tempo não muito

distante, viverão vários exemplares desta espécie que se

enquadram neste precioso perfil. E como está longe a

possibilidade do nosso desistir, sempre haverá uma boa alma

para acalentar nossas dores e desencantos. E para regrar o nosso

doce ego.

Vou terminar este texto, sendo o menos injusto

possível, citando alguns exemplares que, ao logo da existência

humana, trilharam o caminho da justiça e o respeito para com o

próximo:

Jesus de Nazaré, Buda, São Francisco de Assis, Mahatma

Ghandi, Madre Tereza de Calcutá, Irmã. Dulce, Mãe

Menininha, Chico Xavier...

Page 58: Calabouço Contos e outros

Calabouço contos e outros

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Poderíamos preencher centenas de páginas com nomes

que honraram a criação, pois é isto que nos conforta diante uma

realidade tão desumana.

Sempre teimo em usar a palavra indícios, por falar

sobre nobres almas que não conheci, mas que tenho forte apreço

por elas, apesar de só me utilizar das informações de terceiros

dos seus nobres feitos.

E fecham-se as cortinas de um velho tempo findo.

Para o recomeço em algum lugar deste extenso Universo,

Quem sabe...

Fim

Obs. Os intervalos de páginas, conforme indica o sumário,

referente ao primeiro e segundo capítulo, que se encontra oculta, é

por se tratar de uma obra protegida por direito autoral.

Para adquirir a obra completa nos formatos digital ou impresso:

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Antonio de Araujo Silva

59

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Calabouço contos e outros

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