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VI Encontro Nacional e IV Encontro Latino-americano sobre Edificações e Comunidades Sustentáveis - Vitória – ES - BRASIL - 7 a
9 de setembro de 2011
Tecnologias sociais e Permacultura na construção de consciências e
cidades
Fernando Carneiro Pires (1), Maristela Moraes de Almeida (2) e Juliana Hammel
Saldanha (3)
(1) Graduando em Arquitetura e Urbanismo, UFSC e IÇARA, Brasil. E-mail: [email protected]
(2) Departamento de Arquitetura e Urbanismo, UFSC, Brasil. E-mail: [email protected]
(3) Bióloga, UFSC e IÇARA, Brasil. E-mail: [email protected]
Resumo: A construção de cidades melhores passa pela necessidade de transformarmos e construirmos
nossas consciências, uma vez que as cidades são a expressão da sociedade que a constrói e a sociedade é
reflexo das pessoas e da cultura coletiva. Nesta “construção” de consciências, para preparar e iniciar a
transformação necessária das cidades, o trabalho corporal com bioconstrução mostra-se um bom
caminho para integrar o pensamento e a ação concreta. Este artigo apresenta a experiência de duas
oficinas de bioconstrução realizadas em 2010 em Florianópolis/SC, que visavam o aprendizado de
tecnologias sociais por estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, através da
construção de estruturas de apoio às atividades do Instituto ÇaraKura - IÇARA, uma ONG que
desenvolve ações em educação ambiental, permacultura e tecnologias sociais no município. O objetivo
deste trabalho é registrar as experiências destas duas oficinas, as quais oportunizaram vivências de
caráter coletivo e de integração com a natureza e, como matéria prima, utilizaram o bambu e a técnica
de calfitice (cal+fibra+tierra+cemento), como exemplos de tecnologias sociais aplicáveis em ambiente
rural ou urbano. As técnicas construtivas e a abordagem pedagógica das oficinas basearam-se nos
conceitos de Permacultura e de Tecnologias sociais e a viabilidade operacional se deu através da
parceria institucional entre UFSC e IÇARA, tendo na mediação desta parceria grupos de extensão
universitária com gestão estudantil. Esta parceria permanece e está entrando em uma nova etapa, a qual
buscará fortalecer o contato e a troca com o curso de arquitetura e urbanismo da UFSC. Ver e vivenciar
o espaço construído que antes era apenas uma idéia, é um dos resultados mais expressivos das oficinas.
Outros foram a experiência do trabalho coletivo, a espontaneidade e a criação coletiva durante a
execução da obra, o contato com materiais naturais, a noção prática da resistência dos materiais e a
integração entre áreas acadêmicas/profissionais. Em relação às técnicas construtivas utilizadas, foi
possível verificar características potenciais e limitantes da sua aplicação, das quais destacamos o baixo
custo, baixo impacto ambiental e o incentivo ao manejo sustentável do bambu, com destaque à utilização
de Bambusa tuldoides em lascas e com revestimento, de forma a protegê-lo de insetos e das intempéries
e, com isso, viabilizar um maior uso desta espécie tão recorrente no Brasil. E além do aspecto técnico,
consideramos importante destacar o trabalho em parceria da universidade e instituto e a pedagogia do
trabalho coletivo aliado à convivência em grupo, como meios para a solução de problemas e a
construção de cidades mais harmônicas e sustentáveis.
Palavras-chave: Permacultura, Bambu, Tecnologias sociais.
Abstract: Building better cities involves the need to transform our consciousness, since cities are the
expression of society that builds and reflects the people and the collective culture. In building awareness,
to prepare and initiate the required transformation of the cities, the workshops shows up good way to
integrate thinking and concrete action. This article presents the experience of students in two workshops
held in Florianopolis, Brazil in 2010, aimed at teaching social technologies at Universidade Federal de
Santa Catarina – UFSC. Students learned by building structures that support the activities of the Institute
ÇaraKura - IÇARA, an NGO that develops programs in environmental education, permaculture and
social technologies in the municipality. The aim of this work is to record the experiences of these two
workshops, who used bamboo as raw material and technique calfitice (Lime + fiber + tierra + cement),
as examples of social technologies applicable in rural or urban setting, and developed providing
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opportunities of a collective experience and integration with nature. Construction techniques and
pedagogical approach of the workshops were based on the concepts of Permaculture and social
technologies and operational viability occurred through the institutional partnership between UFSC and
IÇARA, bearing in mediation this partnership with groups of university extension management student.
This partnership continues and is entering a new phase, which will seek strengthen contact and
exchanges with the course of Architecture and Urbanism of UFSC. See and experience the built space
that was once only an idea, is one of the most significant results of the workshops. Others were
experience of collective work, spontaneity and collective creation during the execution of work, contact
with natural materials, the notion practical strength of materials and integration between differents
professional areas. Regarding the construction techniques used, was possible to verify features and
limiting its potential application, which emphasize low cost, low environmental impact and encouraging
the sustainable management of bamboo, with emphasis on the use of Bambusa tuldoides in chips and
finishing in order to protect it from insects and thereby facilitate greater use of species as the applicant in
Brazil. And beyond the technical aspect, we consider important to highlight the partnership work of the
university and institute as well as the pedagogy of collective work with the group as a means to solve
problems and make cities more harmonious and sustainable.
Key-words: Permaculture, Bambu, Social technologies.
1. INTRODUÇÃO
A atual lógica de desenvolvimento das cidades parece estar longe de conseguir criar ambientes saudáveis
para as pessoas e sustentáveis ambientalmente. É notável a desigualdade social e econômica que cria e
mantém a miséria de muitos para que poucos usufruam a maior parte dos benefícios produzidos pela
sociedade como um todo. Este quadro é bastante complexo e foge ao domínio da arquitetura e do
urbanismo, e mesmo de uma abordagem multidisciplinar. Nesta lógica, em que estamos historicamente
inseridos, o afastamento das pessoas entre si e com o ambiente – recursos naturais e fluxos que sustentam
a vida (CAPRA, 1999) – tem sido uma importante característica que alimenta os problemas sociais e
ambientais atuais. Partindo deste raciocínio brevemente esboçado, um possível contraponto é a
transformação dessa lógica de forma estrutural, ou seja, buscar transformar as cidades, considerando-as
como lugares de vida (PRONSATO, 2005) acima de espaços de reprodução do capital (ROLNICK,
1995), a partir das pessoas, de suas consciências e da atuação individual e coletiva, no contato direto e
interação cuidadosa com o ambiente, do qual somos parte.
Neste sentido, trabalhar coletivamente em oficinas de bioconstrução tem sido um interessante caminho,
para refletir e, ao mesmo tempo, atuar na construção, metafórica e literal, de cidades melhores. Isto
porque o trabalho físico, nesta busca, permite integrar o pensamento e a ação concreta. Esta integração
parece ser fundamental para uma efetiva transformação da sociedade, no sentido de garantir uma
sustentabilidade social (SACHS, 2000) que mantenha, de forma criativa, o ambiente e as relações
construídas nessa transformação.
Este artigo apresenta a experiência de duas oficinas de bioconstrução realizadas em 2010 em
Florianópolis/SC. As oficinas visavam o aprendizado de tecnologias sociais por estudantes da
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, através da construção de estruturas de apoio às
atividades do Instituto ÇaraKura - IÇARA, uma ONG que desenvolve ações em educação ambiental,
permacultura e tecnologias sociais no município. O objetivo deste trabalho é registrar as experiências
destas duas oficinas, as quais oportunizaram vivências de caráter coletivo e de integração com a natureza
e, como matéria prima, utilizaram o bambu e a técnica de calfitice (cal+fibra+tierra+cemento), como
exemplos de tecnologias sociais aplicáveis em ambiente rural ou urbano.
1.1. Princípios e conceitos
A base conceitual e metodológica das duas oficinas aqui descritas parte dos conceitos e princípios da
Permacultura e das Tecnologias Sociais. Trabalhamos também com bases educacionais que buscaremos
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elucidar. E além destes conceitos principais, utilizamos outros termos que buscaremos esclarecer, para
melhor expressar o nosso entendimento em relação a eles.
A Permacultura foi conceituada por Bill Mollison e David Holmgren nos anos 70, como um sistema de
design para a criação de ambientes humanos sustentáveis. Neste sistema temos princípios éticos e de
design que orientam a idealização, a construção e a manutenção dos ambientes criados, com base “na
observação de sistemas naturais, na sabedoria contida em sistemas produtivos tradicionais e no
conhecimento moderno, cientifico e tecnológico” (MOLLISON, 1991, p. 8). Partindo dos princípios
éticos e de design, David Holmgren aponta sete campos de atuação que se inter-relacionam (as sete
pétalas da flor da Permacultura): manejo da terra e da natureza; espaço construído; ferramentas e
tecnologia; educação e cultura; saúde e bem estar espiritual; economia e finanças; e posse da terra e
governo comunitário. E dentro do campo espaço construído, temos como orientação, por exemplo, o uso
de materiais de construção naturais e a construção pelo proprietário (HOLMGREN, 2007).
O conceito de Tecnologias sociais, segundo a Rede de Tecnologias Sociais, é de que estas compreendem
“produtos, técnicas e/ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que
represente efetivas soluções de transformação social” (RTS, 2009, p. 8). Características como
simplicidade de execução, baixo custo e baixo impacto ambiental complementam este conceito em sua
aplicação nas oficinas, onde foram utilizadas tecnologias baseada no manejo e uso de bambu e terra.
Pedagogicamente, Paulo Freire em Pedagogia do oprimido (1987) e Pedagogia da Autonomia (1996), e
Donald Schon com os conceitos de “conhecer-na-ação” e “reflexão-na-ação” em Educando o profissional
reflexivo (2000) expressam bem o que se buscou trabalhar nas oficinas: um processo de aprendizado
baseado na vivência e na prática reflexiva e refletida, onde mais do que informações incorporamos
sensações e relações interpessoais e de pertencimento com o meio, ou seja, lidamos com um processo que
tem lugar, tempo e pessoas. Neste processo não lidamos apenas com conceitos e informações intelectuais,
são materialidades e relações sutis que atuam na existência com um todo. Neste sentido, trabalhar com o
corpo é uma forma de exercitar a mente e interiorizar a experiência sem fragmentar o pensamento e a
ação objetiva.
Trazendo estes conceitos para a construção de edificações e ambientes, entendemos como bioconstrução
o processo e o produto das construções com baixo impacto ambiental, que utilizam prioritariamente
materiais naturais abundantes na região, valorizam características e saberes locais e, na sua construção e
no seu uso, proporcionam uma relação de pertencimento e cuidado do homem em relação à natureza.
1.2. O local
As oficinas foram realizadas no sítio ÇaraKura, sede do Instituto de mesmo nome, localizado no norte da
Ilha de Santa Catarina, parte do município de Florianópolis. O sítio está inserido na bacia hidrográfica do
Rio Ratones, no distrito de Ratones, ao lado da trilha histórica que liga a região à Lagoa da Conceição.
FIGURA 1: Localização do Sítio ÇaraKura na bacia hidrográfica do Rio Ratones, Florianópolis/SC.
Canasvieiras
Jurerê
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A Ilha de Santa Catarina possui praias, planícies e morros onde encontramos ecossistemas de restingas,
manguezais e floresta Atlântica, na sua maioria em estágio secundário de regeneração. O distrito de
Ratones encontra-se próximo aos balneários mais urbanizados da ilha (figura 1), mas é um dos que ainda
mantém predominantemente paisagens rurais (figura 2).
Esta característica rural é hoje um aspecto valorizado pelos moradores e turistas, mas carece de maior
atenção para sua manutenção, tendo em vista o processo de urbanização da ilha. A manutenção das
características rurais e o apoio a atividades produtivas de agricultura e turísticas na região são discussões
correntes que, dentre vários aspectos, reflete a relação urbano-rural das cidades.
FIGURA 2 – Paisagem rural do Distrito de Ratones, Florianópolis/SC. Fonte: acervo do autor.
O Instituto ÇaraKura – IÇARA foi criado em 2007 com o objetivo de desenvolver projetos de educação
ambiental e ações referentes a aplicação de tecnologias sociais, principalmente na construção de
habitações ecológicas, utilização de energias renováveis, recuperação de áreas degradadas, manejo e uso
do bambu, agricultura ecológica, sistemas alternativos de saneamento básico, entre outras, bem como a
valorização e resgate dos conhecimentos ancestrais. As atividades desenvolvidas pelo instituto buscam o
aprimoramento das habilidades humanas associadas à recuperação e proteção dos ambientes naturais,
promovendo a sensibilização e a participação das crianças, jovens e adultos em atividades éticas ligadas
ao uso sustentável dos recursos naturais (IÇARA, 2007). O IÇARA é formado por estudantes e
profissionais de diversas áreas.
O sítio conta com moradores permanentes e outros temporários, os quais fazem a manutenção do espaço,
cuidam dos animais e dão suporte às atividades lá desenvolvidas: vivências de estudo, oficinas, visitas e
cursos. A dinâmica de voluntariado é fundamental ao ritmo do sítio e, durante o ano de 2010, estiveram
presentes três voluntários e quatro voluntárias, dentre as quais uma arquiteta e urbanista com experiência
em calfitice.
O sítio possui 14 hectares, sendo a parte de maior utilização em torno de 1 ha, onde se encontram as
casas, a horta, os pastos, o abrigo dos animais, o rio e a represa (figura 3). Nas proximidades da Casa de
pedras foram realizadas as duas oficinas, para a construção de estruturas de apoio às atividades
desenvolvidas pelo sítio/instituto.
FIGURA 3 – Casa de pedras, Engenho e horta no sítio ÇaraKura. Fonte: acervo do autor.
2. AS OFICINAS DE BIOCONSTRUÇÃO
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A realização das duas oficinas faz parte de um impulso que visa oportunizar, aos estudantes da UFSC
especialmente, a reflexão e a vivência de modos de vida e tecnologias apropriados ao momento de
necessária adequação das atividades humanas aos ritmos naturais de sustentação da vida, responsáveis,
por exemplo, pela limpeza da água, do ar e dos pensamentos. Este impulso visa também adequar a
estrutura física do sítio à sua demanda crescente de atividades, as quais participam grupos de 10 a 60
pessoas, de diferentes idades e inclusive portadores de necessidades especiais. As estruturas que
oportunizaram as oficinas foram a construção de um sanitário externo à Casa de pedras, onde estão os
alojamentos, sede dos cursos, cozinha e refeitório, e a reforma da casinha para crianças.
Estas experiências foram viabilizadas através de uma parceria entre universidade e sociedade organizada,
que pode ser vista como uma tecnologia social em si. No caso, a parceria foi entre a Universidade Federal
de Santa Catariana - UFSC e o Instituto ÇaraKura – IÇARA. A mediação desta parceria foi feita por dois
grupos de extensão universitária com gestão estudantil e orientação docente: o Núcleo de Educação
Ambiental do Centro Tecnológico – NEAmb e o Ateliê Modelo de Arquitetura – AMA, onde membros
destes grupos eram também membros do referido instituto. Através da parceria viabilizaram-se recursos
financeiros para a alimentação dos estudantes durante as oficinas, e na primeira oficina também para o
transporte entre universidade e sítio.
2.1. O processo
O processo de idealização, organização e realização das oficinas foi se construindo ao longo do ano de
2010 de acordo com impulsos de idéias, dos moradores e voluntários do sítio, associados à viabilidade de
execução destas idéias pelos membros e parceiros do IÇARA. Um destes impulsos foi o de construir com
calfitice e usar esta técnica com estruturas de bambu em formas escultóricas, a partir do entrelaçamento e
amarração deste em lascas. A experimentação do sistema construtivo se deu entre março e maio, até a
realização da primeira oficina, tendo neste processo o acompanhamento técnico de uma arquiteta e um
estudante de arquitetura, ambos voluntários do Instituto. Durante as oficinas, as atividades foram
orientadas por moradores, voluntários e colaboradores do instituto. A segunda oficina teve um suporte
técnico menor, o que não prejudicou o resultado, uma vez que os moradores e voluntários, que
participaram da primeira oficina e estavam na segunda, conseguiram replicar com segurança as técnicas
construtivas. Vale destacar neste processo, a participação de um bambuzeiro experiente, parceiro do
Instituto, durante as duas oficinas.
As oficinas aconteceram nos meses de Maio e Setembro de 2010, ambas com duração de quatro dias. A
primeira foi realizada em dois finais de semana, com a chegada nas sextas-feiras antecedentes, de modo
que nos sábados pela manhã o grupo já estivesse reunido e integrado. A segunda aconteceu durante o
feriado de sete de setembro, com a mesma dinâmica para a chegada e inicio das atividades, contando
desta vez com quatro dias contínuos. As duas tiveram períodos de preparação, de dois meses na primeira
e um mês na segunda e, para a divulgação na universidade, foram feitos cartazes (ANEXO A).
Em relação ao término das construções, tanto o banheiro como a casinha precisaram de continuidade após
as oficinas, o que está em curso até o momento, conforme exposto na tabela 1. Esta continuidade pode ser
avaliada positivamente pelo aspecto das criações e intervenções de outros voluntários que passaram pelo
sítio após as oficinas, fazendo das construções obras de arte a muitas mãos. Já pelo aspecto funcional a
que se destinam, as obras inconclusas impedem o seu uso e a atenção a outras tarefas.
TABELA 1 – Cronograma do processo das oficinas.
2010 2011
jan fev mar abr mai jun jul ago set out nov dez jan fev mar abr mai
Preparação Realização Continuidade necessária para finalizar a obra
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2.2. Os materiais e as técnicas
Um objetivo inerente à escolha dos materiais, técnicas e desenho das construções das oficinas, foi usar
materiais naturais e equilibrar o adensamento construído com jardins e áreas onde a natureza respire, e
ainda, produzir em ciclos onde não são gerados resíduos, mas sempre recursos, de um processo para
outro. Como exemplo destes ciclos, temos o uso da terra retirada na escavação da fossa do banheiro da
primeira oficina, na massa da parede do próprio banheiro.
Contudo, até alcançarmos este futuro ideal de geração zero de resíduos, algumas concessões são
necessárias e o uso do cimento é uma delas. Mantendo a utilização da terra local, optou-se por utilizar
cimento para estabilizar mais rapidamente a massa de recobrimento, que ficaria exposta à chuva, em uma
experimentação da técnica de calfitice (ou calfetice).
O calfitice é uma técnica colombiana utilizada em construções com Guadua Angustifolia (espécie de
bambu nativa da América do Sul) e, no Brasil, o calfitice tem sido usado em obras e oficinas de
bioconstrução (ESPIRALANDO, 2008). Nesta técnica se utiliza cimento e cal para estabilizar a terra - o
cimento estabilizando a areia e a cal a argila. A palavra vem de sua composição (em espanhol): Cal+Ferro
ou Fibra+Tierra+Cemento. O traço utilizado nas oficinas foi 1:2:6 (cimento CP3:cal hidratada:terra 70%
areia 30% argila) em volume. Junto da massa, na função da fibra, foram utilizados sacos plásticos ou de
juta reaproveitados Na primeira oficina os sacos foram aplicados após o masseamento e na segunda,
aperfeiçoando a técnica, também amarrados à estrutura de bambu antes da aplicação da massa (figura 4).
Para o acabamento final foi utilizada nata de cimento com pigmento no traço 1:2 (cimento:cal de pintura)
em quilos para 10 litros de água.
O bambu utilizado foi da espécie Bambusa tuldoides, cultivada no próprio sítio. A folhagem é utilizada na
alimentação dos animais e as touceiras tem funções de quebra-vento e cercas-vivas. A sua aplicação foi
na forma natural, em lascas de variadas dimensões, trançadas e amarradas (figura 4). Para proteger os
bambus da umidade do solo, as lascas foram fixadas sobre a fundação de pedra. A proteção a insetos e a
água da chuva foi feita com o recobrimento da estrutura pelo calfitice.
O conjunto bambu-calfitice assemelha-se à argamassa armada, mas sabe-se que as características
químicas, físicas e mecânicas não podem ser diretamente relacionadas, devido, por exemplo, ao módulo
de elasticidade do bambu ser no máximo 10% o do aço (PEREIRA, 2008). No entanto, além de outras
formas de utilizar o bambu e a terra, este conjunto mostrou-se uma interessante alternativa ao uso do aço
e do cimento, por ser de baixo custo e, em relação ao impacto ambiental, estar associado ao cultivo e
manejo sustentável do bambu.
FIGURA 4 – Etapas do sistema bambu-calfitice (cal+fibra+terra+cimento). Fonte: acervo do autor.
Os materiais utilizados na execução foram: luva de borracha, serra, facão, barbante sintético, cal, cimento,
terra, água, pó xadrez, cimento branco (para nata de pintura com cores claras), cal de pintura, fibra de
sisal, saco de juta, saco de cebola – plástico, marreta, pedras (fundação), barras metálicas (conexão
parede-fundação) e objetos de vidro – principalmente garrafas e pratos.
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3. OFICINA DE BIOCONSTRUÇÃO E SANEAMENTO ECOLÓGICO
A primeira oficina abordou, além da bioconstrução, o tema de saneamento ecológico, através da
implantação de um banheiro com o tratamento local dos efluentes, onde não há coleta de esgoto sanitário.
A edificação do sanitário foi a obra executada na oficina e, em relação ao saneamento ecológico, foi
realizada uma palestra com a doutoranda do Grupo de Estudo em Saneamento Descentralizado –
GESAD/ENS/UFSC que pesquisa o sanitário seco do Sítio ÇaraKura.
A forma e a localização do banheiro foram idealizadas pelos moradores e, partindo de desenhos (figura 5)
e maquetes de estudo, chegou-se na estrutura e quantidade dos materiais. O desenho considerou aberturas
inferiores e uma zenital para circulação do ar e as dimensões do sanitário feminino para o seu uso por
cadeirantes. A maquete física de estudo foi construída uma semana antes da oficina, com lascas de bambu
simulando a execução em escala real, e nela foi possível verificar a resistência das lascas às curvaturas
desejadas e definir algumas amarrações e cruzamentos de lascas de caráter estrutural. A maquete também
serviu para ilustrar a estrutura aos participantes na primeira etapa da oficina.
FIGURA 5 – desenhos de estudo para orientar a execução durante a oficina. Fonte: Instituto ÇaraKura.
No período de preparação da oficina foram realizados testes do sistema bambu-calfitice, e também o
preparo do terreno, onde foi necessário realizar transposição de duas árvores (Ipê- amarelo), a fundação,
com pedras locais e barras de aço em arco (reaproveitadas), para a conexão com as paredes, e a promoção
da oficina junto a UFSC (tramite institucional, divulgação e inscrição).
Participaram 11 estudantes na primeira etapa (7, 8 e 9 de Maio) e 9 na segunda (14, 15 e 16 de Maio), dos
cursos de arquitetura e urbanismo, biologia e engenharia sanitária e ambiental. E além destes, estavam
presentes os moradores e voluntários do Sítio, totalizando de 15 a 20 pessoas em média nos turnos. A
programação seguiu o ritmo apresentado na tabela 2.
TABELA 2 – Programação da oficina de bioconstrução e saneamento ecológico.
7, 8 e 9 de maio 2010
14, 15 e 16 de maio 2010
Sexta Sábado Domingo Sexta Sábado Domingo
7h
Despertar
Despertar
8h Desjejum Desjejum
M (9h-12h) Prática Prática Prática Prática
Almoço Almoço
T (14h-18h) Chegada Prática Prática Chegada Prática Prática
Jantar Jantar
N (20h-22h) Alojamento Palestra Despedida Alojamento Sarau Despedida
Na chegada, entre o jantar e o alojamento, foi feito o acordo de convivência e uma primeira apresentação
de todos; nos momentos de alimentação buscava-se sintonizar o grupo na importância e gratidão pelo
alimento e estes eram seguidos de conversas informais que contribuíam para a harmonização e sintonia do
grupo; nos turnos de prática os participantes se revezavam entre atividades específicas, de modo a passar
por todas as etapas e variar os movimentos e tipos de atenção solicitados; e as noites de palestra e sarau
foram momentos de troca de informações e aproximação entre as pessoas.
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No primeiro final de semana foi montada a estrutura de bambu e no segundo foi realizada a aplicação da
massa de calfitice. Para trabalhar no alto, foi montado um andaime de bambu no interior da construção, a
partir de um tripé e varas horizontais amarradas com câmara de pneu.
FIGURA 6 – Evolução da obra. Fonte: Instituto ÇaraKura.
Para conclusão da obra, foi necessário continuar o recobrimento dos bambus por calfitice após os dois
finais de semana da oficina. Durante esta continuidade necessária, que se deu num ritmo conciliado às
outras atividades do sítio, varias pessoas participaram e novas idéias foram incorporadas. Uma destas
idéias foi a alteração da cobertura para uma forma mais escultórica e lúdica, chegando-se na forma final
alusiva a uma saracura.
4. OFICINA DE BIOCONSTRUÇÃO “CASINHA PARA CRIANÇAS”
A segunda oficina foi organizada dando continuidade às atividades de bioconstrução envolvendo
estudantes da UFSC e o IÇARA, tendo como objetivo a construção de uma casinha para crianças, a partir
da existente no sítio. Nesta segunda construção experimentando a técnica de bambu em lascas com
calfitice, buscou-se uma forma bastante lúdica, a de um tamanduá.
A experiência adquirida com a primeira oficina permitiu a organização e realização desta segunda com
um menor apoio técnico prévio, sendo elaborado apenas um desenho de estudo, com a distribuição de
lascas principais para a formação da estrutura. Deste estudo foi possível estimar a quantidade de material
necessário para a execução.
A oficina contou com a participação de 10 estudantes das áreas de arquitetura e urbanismo, biologia e
engenharia sanitária e ambiental e seguiu a programação apresentada na tabela 3.
TABELA 3 – Programação da oficina de bioconstrução casinha para crianças.
Dias 3, 4, 5, 6 e 7 de setembro 2010
Sexta Sábado Domingo Segunda Terça
7h
Despertar
8h Desjejum
M (9h-12h) Prática Prática Prática Prática
Almoço
T (14h-18h) Chegada Prática Prática Prática Prática
Jantar
N (20h-22h) Alojamento Filme, Sarau, Descanso Despedida
De modo semelhante à oficina anterior, o ritmo colocado pela programação incentivou a interação dos
participantes entre si, com o ambiente e com os materiais e as técnicas que estavam sendo trabalhados de
forma experimental. Assim, novamente oportunizou-se uma série de percepções e vivências que
promovem a construção de referências concretas e sutis de convivência em grupo e de trabalho coletivo.
Desta vez, por serem mais dias consecutivos, as etapas de preparação, posicionamento e amarração das
varas, a colocação dos sacos sobre a estrutura e o masseamento foram trabalhadas de forma contínua.
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Na oficina foi realizada toda a estrutura de bambu, formando o corpo e cabeça do tamanduá, e o calfitice
foi aplicado no corpo. A cabeça foi deixada sem revestimento, para este ser mais bem definido depois,
uma vez que, pelas dimensões que tomou, ficaria muito pesada se revestida com a massa de calfitice.
Após a oficina foi realizada a pintura do corpo por fora, a pintura da barriga por dentro, com temas
lúdicos (formigas e partes internas do corpo), o reforço da “coluna” do tamanduá para sustentação da
cabeça, por uma vara de bambu como viga, e, como solução para o recobrimento dos bambus da cabeça,
esta foi envolvida em malha de juta com nata de calfitice.
FIGURA 7 – Desenho e obra da casinha para crianças em forma de tamanduá. Fonte: Instituto ÇaraKura.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A experiência de organizar e participar das oficinas, bem como acompanhar a continuidade da execução
das obras, traz para reflexão alguns resultados. Destacamos pelo aspecto pedagógico ou de formação
social a vivência do espaço construído que antes era apenas idéia, a experiência do trabalho coletivo, a
espontaneidade e a criação coletiva durante a execução da obra, o contato com materiais naturais e a
noção prática da resistência destes materiais. Em relação às técnicas construtivas utilizadas, destacamos o
baixo custo e o baixo impacto ambiental que as obras tiveram e, apontamos o manejo sustentável de
bambu e sua utilização em lascas com recobrimento de calfitice como interessantes tecnologias sociais, as
quais merecem maior atenção e aprimoramento, mas já se mostram como alternativas viáveis a
construções rurais e urbanas.
Considerando a oficina uma vivência como um todo, onde além das tecnologias e conceitos
experimentados existe uma convivência em grupo e ritmos de trabalho cooperativo, percebe-se que este
formato promove uma experiência pedagógica positivamente distinta dos formatos mais recorrentes do
ensino formal, o que deixa como resultado, mais do que o aprendizado e as construções materiais,
sentimentos e sensações agradáveis e motivadoras em cada participante. Para manter atividades com este
caráter, e em continuidade à integração promovida entre áreas acadêmicas/profissionais, a parceria
institucional entre UFSC e IÇARA permanece, buscando aproximar trabalhos de Permacultura e
Tecnologias sociais dos cursos universitários que lidam com o território e os recursos naturais. Nesta
busca, o contato e a troca com o curso de arquitetura e urbanismo mostram-se uma necessidade, a qual
tomou força com realização das oficinas apresentadas e, a partir deste trabalho, está se fortalecendo.
Por fim, consideramos que oportunizar a “construção” de consciências atentas às questões ambientais
(através do contato com a natureza e com isso criar e valorizar sentimentos de pertencimento, como foi
buscado nas oficinas apresentadas) é um interessante caminho para a atuação de cada um e de grupos no
sentido de construir cidades mais harmônicas e sustentáveis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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9 de setembro de 2011
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
HOLMGREN, D. Os Fundamentos da Permacultura. Austrália: Holmgren Design Services, 2007.
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MOLLISON, B. Introdução à Permacultura, Tagari Publications, 1991.
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SCHON, D. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre:
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AGRADECIMENTOS
Pela realização das oficinas e por este artigo agradecemos aos moradores e voluntários do Sítio ÇaraKura,
aos participantes das oficinas, à PRAE/UFSC – Pró Reitoria de Assuntos Estudantis, ao bambuzeiro
Rodrigo Primavera, à professora Alice T. Cybis Pereira e ao professor Lino F. B. Peres. Todos foram
fundamentais neste processo.
ANEXO A – Cartazes para divulgação das oficinas