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1 CAMINHOS DA LIBERDADE: UM ESTUDO SOBRE A PRÁTICA DA ALFORRIA NA REGIÃO DO GUARAPIRANGA (1820-1870) Tiago Pereira Leal 1 (UFOP) Resumo: Este artigo examina as cláusulas testamentais almejando compreender a prática da alforria na região do Guarapiranga, província de Minas Gerais, no período de 1820-1870. Para tal propósito, foi analisado o perfil dos manumitidos considerando algumas variáveis demográficas (origem, gênero e idade), bem como as modalidades, condições e os arranjos que determinaram a concessão da alforria. A base documental consistiu em 90 traslados de testamentos anexados aos inventários post mortem, disponíveis no acervo da Casa Setecentista de Mariana e no Arquivo do Fórum de Piranga. A região de Guarapiranga encontrava-se sustentada pelas atividades provenientes da economia de subsistência voltadas ao abastecimento dos mercados vicinais. Diante disso, o estudo das alforrias torna-se instigante em virtude de não haver grandes concentrações de escravarias, sendo a mão de obra cativa importante para a manutenção e desenvolvimento das atividades de subsistência. Palavras-chave: Manumissão; Testamentos; Guarapiranga. Abstract: This article examines the terms of wills aiming to understand the exercise of manumission in Guarapiranga region, province of Minas Gerais, during the period of 1820-1870. To get this aim, it was analyzed the profile of manuscript considering some demographic data (origin, gender and age) and the modalities, conditions and arrangements that determine the grant of manumissions as well. The documental base consists of 90 copies of wills attached to post mortem inventories available at Casa Setecentista in Mariana and at Archive of Forum in Piranga. The Guarapiranga region was sustained by the activities from subsistence economy based on supply of vicinal market. In this way, this study of manumission becomes incendiary because of the lack of great concentration of slaves and the captive hand labor, important to keep and to develop the subsistence activities. Key Words: Manumission; Wills; Guarapiranga. 1 Este texto apresenta resultados parciais de uma pesquisa de mestrado que encontra-se em desenvolvimento na qual estamos elaborando um estudo sobre a prática das alforrias e a transição da escravidão para a liberdade na região de Guarapiranga, província de Minas Gerais, no período de 1820-1870. Contato: [email protected].

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CAMINHOS DA LIBERDADE: UM ESTUDO SOBRE A PRÁTICA DA ALFORRIA NA REGIÃO DO GUARAPIRANGA (1820-1870)

Tiago Pereira Leal1 (UFOP)

Resumo:

Este artigo examina as cláusulas testamentais almejando compreender a prática da alforria na região do Guarapiranga, província de Minas Gerais, no período de 1820-1870. Para tal propósito, foi analisado o perfil dos manumitidos considerando algumas variáveis demográficas (origem, gênero e idade), bem como as modalidades, condições e os arranjos que determinaram a concessão da alforria. A base documental consistiu em 90 traslados de testamentos anexados aos inventários post mortem, disponíveis no acervo da Casa Setecentista de Mariana e no Arquivo do Fórum de Piranga. A região de Guarapiranga encontrava-se sustentada pelas atividades provenientes da economia de subsistência voltadas ao abastecimento dos mercados vicinais. Diante disso, o estudo das alforrias torna-se instigante em virtude de não haver grandes concentrações de escravarias, sendo a mão de obra cativa importante para a manutenção e desenvolvimento das atividades de subsistência.

Palavras-chave: Manumissão; Testamentos; Guarapiranga.

Abstract:

This article examines the terms of wills aiming to understand the exercise of manumission in Guarapiranga region, province of Minas Gerais, during the period of 1820-1870. To get this aim, it was analyzed the profile of manuscript considering some demographic data (origin, gender and age) and the modalities, conditions and arrangements that determine the grant of manumissions as well. The documental base consists of 90 copies of wills attached to post mortem inventories available at Casa Setecentista in Mariana and at Archive of Forum in Piranga. The Guarapiranga region was sustained by the activities from subsistence economy based on supply of vicinal market. In this way, this study of manumission becomes incendiary because of the lack of great concentration of slaves and the captive hand labor, important to keep and to develop the subsistence activities.

Key Words: Manumission; Wills; Guarapiranga.

1 Este texto apresenta resultados parciais de uma pesquisa de mestrado que encontra-se em desenvolvimento na qual estamos elaborando um estudo sobre a prática das alforrias e a transição da escravidão para a liberdade na região de Guarapiranga, província de Minas Gerais, no período de 1820-1870. Contato: [email protected].

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Introdução

A historiografia sobre a escravidão brasileira e principalmente sobre a prática das

manumissões alcançou avanços teóricos e metodológicos consideráveis nas últimas décadas.

Este avanço ocorreu em grande parte devido ao desbravamento dos arquivos inexplorados

espalhados pelo extenso território brasileiro e o intercruzamento das mais variadas tipologias de

fontes (cartas de alforrias, testamentos, inventários, registros batismais, prestação de contas do

testamento, ações cíveis, processo-crime, jornais, dentre outras) que sustentam as mais diversas

pesquisas.

Diante disso, analisar os caminhos para a libertação seria uma ambição inócua a partir

do momento que a base documental é um conjunto simplório de testamentos anexados aos

inventários. A ressalva aos testamentos se deve ao fato de se privilegiar o momento de morte

do testador, o que em tese não registraria qualquer liberdade concedida ao longo da vida.

Porém, essa ressalva é contornável no momento em que o testamento, por ser um registro

legal e público, torna-se um dos instrumentos mais acessíveis à libertação (EISENBERG,

1989; DAMASIO, 1995; GUEDES, 2008; FERRAZ, 2010).

Na documentação examinada constatei que foi comum o testador mencionar que a

verba testamentária teria a mesma força de carta de liberdade2 ou descrever que na pia

batismal passou carta de alforria a um ingênuo.3 Ainda em algumas cláusulas testamentais foi

possível verificar a preocupação do testador em afirmar que em algum momento da sua vida

concedeu liberdade ao seu cativo. 4

Para compreender os caminhos da liberdade, foram analisadas, através das cláusulas

testamentais, as modalidades das alforrias, as condições e os arranjos que determinaram a

concessão almejando assim identificar um padrão de alforrias para o período proposto. Na

averiguação preliminar das verbas testamentais considero que a alforria foi uma prática

expressamente unilateral, pois cabia aos proprietários eleger os pareceres das obrigações e

2 Traslado do testamento de Camila Antonia de Jesus. AFP. Ano 1853. Códice A022. Auto 298. 3 Traslado do testamento de Ana Joaquina Jesus. AFP. Ano 1845. Códice A006. Auto 76. 4 Traslado do testamento de João Ferreira dos Santos. AFP. Ano 1845. Códice A055. Auto 575.

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deveres que os cativos tinham que efetuar para confirmarem a efetivação da liberdade. Porém,

para serem contemplados os cativos tiveram que valer de suas estratégias e das brechas do

cotidiano para serem contemplados com a liberdade. Neste sentido, seria um erro negar a

busca dos cativos por um espaço de autonomia, assim como adquirir pecúlio, propriedade e

arranjos familiares que influenciariam na obtenção da liberdade (PAIVA, 1995, CASTRO

1995, GONÇALVES, 2011). A liberdade obtida à revelia senhorial, principalmente na

segunda metade do século XIX, pode ser percebida no momento que os escravos e libertos

recorriam às instâncias judiciais para reivindicar ou manter uma suposta liberdade

(CHALHOUB,1990; KRINBERG, 2008 ; GONÇALVES, 2011).

Seria tendencioso apontar um padrão de manumissão tendo em vista as variações

econômicas, demográficas e as flutuações do tráfico internacional de escravos. Peter Eisenberg

advertiu sobre a padronização das manumissões alertando que o padrão de alforrias variava com

determinações históricas específicas no tempo e no espaço (EISENBERG, 1889, p.256). Sheila de

Castro Faria, com argumento semelhante, apontou que as pesquisas mais recentes sobre as

manumissões, nas mais diversas regiões e períodos, não demonstram um padrão fixo para o perfil

dos alforriados (FARIA, 2007, p.15).

Tendo em vista estes apontamentos, viso verificar os padrões das alforrias considerando

algumas variáveis (etnicidade, gênero e idade), bem como discorrer sobre as cláusulas restritivas.

A base documental consistiu em 90 traslados de testamentos anexados aos inventários post

mortem que permitiu uma leitura do alcance da liberdade para além dos “esquematismos” que

havia em torno das condições impostas. Contribui para análise o fato dos testamentos, em alguns

casos, fornecerem informações das relações pessoalizadas entre os proprietários e os seus cativos,

pois não seria qualquer documento que o proprietário reconheceria a paternidade5 de um cativo ou

que o proprietário assumiria que contraiu dívidas com sua própria posse.6 Também não seria

qualquer documento que o mesmo declararia seus cativos como herdeiros. 7

5 Traslado do testamento Antônio Pereira de Magalhães. AFP, Ano 1832. Códice A009. Auto 136. 6 Traslado do testamento de Clara Fortunata da Silva.AFP. Ano 1851, Códice A022, Auto 301. 7 Traslado do testamento de José Ferreira Rocha. AFP. Ano 1846. Códice A071. Auto 415.

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A região de Guarapiranga,8 integrada ao Termo de Mariana, enquadra-se no que estudos

denominaram “período de acomodação”, correspondente à transição de uma economia centrada

na mineração para uma economia articulada pela agricultura mercantil (LIBBY, 1988;

ALMEIDA, 2005). Porém, no período proposto deste trabalho, a região de Guarapiranga

encontrava-se sustentada pelas atividades provenientes da economia de subsistência voltadas a

abastecer os mercados vicinais (LEMOS, 2012; SILVA, 2012). Não se pode afirmar que com o

fim das atividades da mineração do século XVIII a região esteve estagnada. Pelo contrário, ao

longo do século XIX, através das atividades agropastoris, a região conservou parte do seu

dinamismo econômico no qual preservou parte das suas escravarias e dos libertos na região. Neste

sentido, o estudo das alforrias torna-se instigante em virtude de não haver grande concentração de

escravarias, sendo a mão de obra cativa importante para a manutenção e desenvolvimento das

atividades de subsistência (MENDES, 2011).

Classificação das Alforrias

Para o pesquisador das alforrias torna-se muito difícil classificá-las, uma vez que não havia

um padrão e, principalmente, a obrigação do proprietário de concedê-la. Tal dificuldade é mais

problemática quando se trata de buscar uma classificação que é resultado de relações escravistas

baseadas no direito privado. Em outros termos, até a primeira metade do século XIX não houve

uma legislação que regulasse a relação entre proprietários e escravos, posto que os privilégios

adquiridos pelos escravos foram resultados de práticas costumeiras da qual o Estado reconhecia,

8 A região do Guarapiranga pertencente ao termo de Mariana encontra-se na divisa entre a região Mineradora Central Oeste e a Zona da Mata. A freguesia do Guarapiranga e posteriormente Vila do Piranga (1841) está localizada ao sul da cidade de Mariana e oeste da antiga vila de Queluz (atual Conselheiro Lafaiete). A região e geograficamente conformada pelo vale do rio Piranga, que possui sua nascente na Serra da Mantiqueira, no atual município de Ressaquinha. Este rio é principal afluente do rio Doce que, ao receber as águas do rio Carmo, toma forma no município de Alto Rio Doce. Tendo em vista as inúmeras mudanças na definição geográfica da paróquia durante o século XIX, adotamos uma definição abrangente da qual privilegia a delimitação regional a partir da abrangência da justiça local. Além do arraial do Piranga, os arraiais do Bacalhau, Manja Léguas, Mestre Campos, Pinheiro, Calambáu, Tapera, Barra do Bacalhau, São Caetano do Chopotó, São José do Chopotó, Senhora de Oliveira, Espera, Brás Pires, Conceição do Turvo, Dores do Turvo, Remédios e Desterro do Melo. Para melhor detalhamento da localização da região (ver: SILVA, 2012).

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mas não legitimava (CUNHA, 1986, p.123-144). Isso significa que o proprietário que se

predispusesse a manumitir o seu escravo seria quem formularia o modo e a forma de libertar.

As alforrias em testamentos revelam muito sobre os arranjos da uma sociedade

escravista e revelam um pleno domínio senhorial sobre o conteúdo das cláusulas, tendo os

proprietários controle e domínio das suas vontades e decisões. A liberdade dificilmente seria

concedida sem o consentimento do proprietário. Ainda que consentida pelo testador, não se

pode afirmar que toda liberdade ou promessa dela foi revertida em liberdade plena, em virtude

de não sabermos com qual frequência os testamenteiros a confirmava na prestação de contas

dos legados testamentais (GUEDES, 2008; PEDRO, 2009; FERRAZ, 2010).

Para a análise das alforrias da região de Guarapiranga (1820-1870), considero duas

modalidades: as incondicionais e as condicionais. Ressalto que as alforrias aqui examinadas

foram aquelas descritas nos testamentos com suas respectivas cláusulas restritivas, ou seja,

nesta análise constam as “promessas” de alforrias, pois do ponto de vista legal, a alforria em

testamento é considerada uma promessa, uma vez que havia a possibilidade de os senhores

revogarem a mesma por meio de um codicilo ou mesmo através de escritura pública (PEDRO,

2009, p.123; FERRAZ, 2010, p.79-81).

Nesta análise foram consideradas alforrias incondicionais todas aquelas em que o

proprietário não apresentava nenhuma condição à liberdade, seja monetária, prestação de

serviços para cônjuge, herdeiros ou alguém da parentela. Em suma, a alforria incondicional se

dá pelo fato de o testador não explicitar nenhuma cláusula exigindo pagamento, prestação de

serviço, ou algum tipo de cumprimento que postergasse a concessão da liberdade.

As alforrias condicionais foram todas aquelas que exigiam do cativo algum tipo de retorno

para o testador e/ou herdeiros ou qualquer condição restritiva que adiasse a liberdade. Estão

inclusas: servir ou acompanhar ao testador até a morte, prestar serviços ao cônjuge ou alguém da

parentela, pagamento parcelado, atingir certa idade, ter bom comportamento, contrair matrimônio,

viver pacificamente, participação em funeral, celebrar missas e outras cláusulas que reforçavam o

domínio senhorial sobre sua posse. Parto da premissa de que a presença dos herdeiros forçados

influenciou a concessão da liberdade, visto que as condicionalidades impostas pelos testadores

visavam a contemplar alguém da parentela.

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Neste estudo considerei a datação de elaboração ou aprovação do testamento como data

a ser considerada na análise. Esta escolha considerou que o momento da redação do

testamento é aquele em que o testador em seu estado adoentado e prevendo a morte resolve

para a “salvação da sua alma” realizar as disposições de última vontade de acordo com os

princípios cristãos. Porém, não desconsidero a data de abertura, visto que o testador poderia

lançar mão de um codicilo revogando ou concedendo alguma liberdade.

O espaço-temporal (1820-1850) compreende num primeiro momento as rupturas

políticas e abrange as flutuações do tráfico atlântico e interprovincial de escravos. Um

segundo momento corresponde ao período posterior às leis de proibição do tráfico negreiro (1851-

1870). Através dos dados obtidos deste período posso assimilar em que medida os proprietários

escravistas da região de Guarapiranga sentiram os efeitos do cessar do tráfico atlântico e quais

foram as consequências na concessão da prática das alforrias.

Tabela 2.0: Distribuição das alforrias condicionais e incondicionais

Período Alforrias Condicionais Alforrias incondicionais Total

1820-1850 133 (81%) 30 (19%) 163 (100%)

1851-1870 90(94%) 5 (6%) 95 (100%)

Total 223 (86,5%) 35(13,5%) 258 (100%)

Fonte: traslado dos testamentos abrigados no ACSM e AFP.

Com base na documentação examinada posso inferir que as frequências das

manumissões não se alteram com a proibição do tráfico internacional de escravos. No período

anterior, 53 testadores libertaram 163 escravos, ao passo que para o período posterior 37

testadores libertaram 95 escravos. Proporcionalmente não houve uma mudança drástica na

frequência de libertar. Porém, houve uma mudança na forma de libertar. Observei que houve uma

mudança na política de libertar a qual os proprietários se apresentaram mais relutantes em

conceder a liberdade sem condições. Proporcionalmente, houve uma queda considerável das

alforrias incondicionais e um aumento das alforrias condicionais. Enquanto no primeiro momento

(1820-1850) as alforrias condicionais representavam 81% das amostras, para o período posterior

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ao fechamento do tráfico internacional de escravos as alforrias condicionais obtiveram 94% das

alforrias examinadas. Uma hipótese para a mudança na política das alforrias é a percepção por

parte dos proprietários que alforriassem condicionalmente, o que significava segurar o cativo por

mais tempo no cativeiro, evitando assim tensões num momento que o sistema escravista

começava a mostrar os primeiros sinais de declínio (FERRAZ, 2010, p.128). No entanto, essa

hipótese não pode ser a única, caso contrário o ato da alforriar seria uma mera decisão dadivosa e

unilateral.

Há que ressaltar a possível participação dos escravos nesta política de alforrias em um

momento em que a escravidão começava a estremecer suas balizas, tendo o ato de alforriar

condicionalmente sido interpretado como uma exigência dos escravos, através de acordos

formais e informais tratados ao longo do período do cativeiro, tendo em vista que os artigos

da lei 28 de setembro de 1871 foram a legitimação do privilégio em direito (CHALHOUB,

159-161 e 173, CASTRO, 1997). Porém, a instituição escravista era reforçada no momento

em que cedia à pressão e concedia a liberdade condicionada, que poderia significar anos de

servidão. O significado das alforrias condicionais para o período posterior ao fechamento do

tráfico internacional de escravo torna-se compreensível quando conseguimos estabelecer o

significado de liberdade para os agentes envolvidos.

Tabela 2.1: Alforrias por gênero

Período Homem Mulher Total

1820-1870 136 (53%) 122 (47%) 258(100%)

Fonte: Traslado dos testamentos abrigados no ACSM e AFP.

Ao contrário do padrão clássico de alforrias proposto por Jacob Gorender na qual

prevaleceu às mulheres como as mais beneficiadas com a liberdade, 9 a amostragem indicou o

contrário, ou seja, foram os homens os mais beneficiados com as manumissões. Com base nas 9 O padrão apresentado por Jacob Gorender: “a) maioria de alforrias onerosas e gratuitas condicionais, tomadas em conjunto; b) proporção relevante de alforrias gratuitas incondicionais; c) maior incidência das alforrias na escravidão urbana do que na escravidão rural; d) alforrias mais frequentes nas fases de depressão e menos frequentes nas fases de prosperidade; e) a maioria de mulheres entre os alforriados embora fossem minoria entre os escravos; f) elevado percentual de domésticos entre os alforriados; g) maior incidência proporcional entre os pardos do que entre os pretos; h) elevado percentual de velhos e inválidos em geral entre os alforriados. (GORENDER, 1985, p. 354-355.)

8

listas nominativas de 1831/32 as mulheres estavam em menor número que os homens nas

escravarias (ver: ANDRADE, 2014, p.39), o que significa afirmar que proporcionalmente as

mulheres tiveram destaque entre os contemplados com alforrias. Mesmo assim, não seria correto

afirmar que havia uma preferência por parte dos proprietários para libertar as mulheres. Neste

sentido, podemos concluir que o gênero não foi critério aparente para concessão da liberdade.

Tabela 2.1: Alforrias, origem e gênero (1820-1850)

Fonte: Traslado dos testamentos abrigados no ACSM e AFP.

Tabela 2.2: Alforrias, origem e gênero (1851-1870)

Brasileiros Africanos Sem Identificação Total

46 (48%) 14 (15%) 35(37%) 95 (100%)

M F M F M F M F

25 21 8 6 15 20 48 47

Fonte: Traslado dos testamentos abrigados no ACSM e AFP.

Quanto à naturalidade dos escravos libertados nos testamentos, notei um aspecto

negativo já ressaltado por Eisenberg. Houve uma tendência entre os proprietários de não

informar a origem dos cativos, principalmente após a lei de 1831 que transformou o comércio

de transatlântico de escravos para o Brasil em atividade ilegal (EISENBERG, 1989, p.271-

272). Muitos testadores não informaram sobre a naturalidade ou designação racial do cativo,

isso significa que não foi possível identificar a naturalidade de 79 escravos, ou seja, 30% do

total.

Brasileiros Africanos Sem Identificação Total

89 (54,5%) 30 (18,5%) 44 (27%) 163 (100%)

M F M F M F M F

38 51 23 5 27 19 88 75

9

Dos 70% de escravos com a origem identificada, os escravos brasileiros foram, sem

dúvidas, os mais contemplados com a liberdade, antes e depois da proibição do tráfico

internacional de escravos (1850). Entretanto, a proporção para os dois períodos foi a mesma,

enquanto no período de 1820 a 1850 libertou-se 89 escravos brasileiros e 28 escravos africanos e

no período de 1851 a 1870 foram libertados 46 escravos brasileiros e 14 escravos africanos. Em

outras palavras, nos dois períodos em questão, a cada três escravos brasileiros libertava-se um

escravo africano.

No primeiro período de 1820 a 1850, as cativas brasileiras foram contempladas com um

número maior de liberdade do que os homens. No entanto, para o período de 1851 a 1870 homens

brasileiros foram os mais contemplados. No que diz respeito ao sexo dos africanos, nos dois

períodos os homens tiveram maior primazia da liberdade que as mulheres. Para o período de 1820

a 1850, identifiquei uma discrepância considerável entre os sexos, sendo 23 africanos e somente 5

africanas, ou seja, é quase a cada 5 escravos africanos libertos é que teria uma africana liberta.

Parto do pressuposto que a presença dos africanos nas escravarias da região ocorreu por causa do

tráfico direto com o Rio de Janeiro, tendo forte presença de escravos da região africana centro

ocidental (SILVA, 2012, p.17).

A dificuldade de conseguir mão de obra de origem africana e a participação secundária no

tráfico internacional de escravos podem ser consideradas variáveis que influenciaram os

proprietários da região a privilegiar os escravos brasileiros com a liberdade. Mesmo nessas

circunstâncias, as alforrias estiveram ao alcance de todos os escravos e os africanos,

principalmente os boçais, tiveram que adaptar e “ladinizar” para estabelecerem de igual com os

cativos brasileiros (FLORENTINO, 2002).

Os testadores também não se preocuparam em declarar as idades dos escravos

agraciados com liberdade. Uma hipótese para a omissão das idades dos escravos seria a

preocupação dos testadores em burlar as leis de proibição do tráfico atlântico de escravos. Na

documentação examinada não identificamos a idade de 136 escravos para todo o período

(1820-1870), o que significa que 53% dos escravos não tiveram suas idades declaradas.

Todavia, recorri aos inventários com o intuito de encontrar algum registro de idade dos

cativos contemplados com a liberdade. Nesta análise torna-se inócuo qualquer apontamento

10

sobre as idades privilegiadas para a manumissão, mas cabe apresentá-las nos dois períodos

propostos. Tanto antes quanto após a proibição do fechamento internacional de escravos

(1850) todas as faixas etárias foram contempladas com a liberdade, sendo na faixa entre 11 a

49 anos os mais privilegiados com a liberdade.

Tabela 2.3: Faixas Etárias e Escravos Alforriados (1820-1850)

Faixas Etárias Escravos Alforriados

0-10 14 (8,6%)

11- 49 50 (30,7%)

> 50 25 (15,3%)

S.I 74 (45,4%)

Total 163 (100%)

Fonte: Traslado dos testamentos abrigados no ACSM e AFP. S.I: Sem identificação.

Tabela 2.4: Faixas Etárias e Escravos Alforriados (1851-1870)

Faixa Etária Escravos Alforriados

0-10 5 (5,3%)

11-49 16 (16,8%)

>50 12 (12,6%)

S.I 62 (65,3%)

Total 95 (100%)

Fonte: Traslado dos testamentos abrigados no ACSM e AFP. S.I: Sem identificação.

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As liberdades concedidas sem alguma restrição aparente corresponderam a 13,5% da nossa

amostragem, ou seja, 35 escravos foram libertos sem alguma restrição que adiasse a liberdade. O

fato de não haver nenhuma cláusula restritiva não implica que necessariamente o cativo tenha sido

liberto no momento de elaboração do testamento, podendo ter esperado ainda a morte do testador

para efetivar sua liberdade. Correspondendo 86,5% da nossa amostragem as alforrias

condicionais, foram caracterizadas pelo impedimento imediato da liberdade, o teor das cláusulas

foram em certa medida reflexo da relação pessoalizada entre cativos e proprietários e ao mesmo

tempo uma forma de ceder a pressão dos cativos pela liberdade sem perder de imediato a posse

sobre os mesmos.

Cláusulas Restritivas

As liberdades testamentais identificadas para a região de Guarapiranga foram marcadas por

seu caráter condicional, demonstrando que a liberdade nem sempre era efetuada com a morte do

testador, obrigando os cativos beneficiados a esperarem anos para sua concretização. As

condicionalidades foram uma forma encontrada pelos testadores para reforçar a escravidão,

principalmente a partir da segunda metade do século XIX, através de imposições que mais

privilegiavam os herdeiros com serviços dos cativos do que facilitava a liberdade destes.

Em termos metodológicos classifiquei a cláusula “servir até a morte do testador” como

restritiva, pois poderia ser classificada como uma liberdade incondicional, pois aparentemente

não houve nenhuma restrição que adiasse a liberdade. É importante ressaltar que toda alforria

outorgada em testamento é concedida a partir da morte do testador independente se ela vem

acompanhada de outras condições restritivas (FERRAZ, 2010). No entanto, o óbito do

testador poderia tardar a ocorrer, mesmo que as liberdades fossem concedidas em momento

de frágil saúde do testador. Na espera pela morte do testador, o cativo poderia ter a sua

liberdade revogada, nesta perspectiva o escravo deveria ser merecedor da liberdade até o

último momento. Diante disso, servir até morte do testador foi aqui classificado como

condicionada.

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Tabela 3.1: Liberdade Condicionada (1820-1870)

Servir/Acompanhar até a morte do testador*, acrescida de:

Completar idade determinada

Contração de Matrimônio

Viver Pacificamente

Participação em Cerimônia Fúnebre

Celebrar Missas

95 (42,5%)

Servir/Acompanhar ao cônjuge ou alguém da parentela 88 (39,5%)

Pagamento parcelado: coartação

Aprender ofício

40 (18%)

Total 223 (100%)

Fonte: Traslado dos testamentos abrigados no ACSM e AFP.

Porém, ser liberto após a morte do testador foi somente uma das condicionalidades a

liberdade, pois na documentação examinada vários testadores deixavam outras restrições para

além do falecimento do testador. Outras foram verificadas: servir ao cônjuge ou algum familiar do

testador e realizar algum pagamento monetário parcelado. Complementando estas situações,

alguns testadores também exigiam que os escravos completassem a idade determinada,

contraíssem matrimônio, vivesse pacificamente, tivessem participação em cerimônia fúnebre, na

qual dariam o corpo do testador em sepultamento e celebração de missas pela alma do ex-

proprietário. Estas últimas condicionalidades encontram-se incluídas na categoria “servir até a

morte do testador”, tendo em vista que a imposição destas condições de cunho comportamental e

intercessor foi descrita após o testador ter registrado que deixava livre após a sua morte, sendo as

últimas cláusulas complementares. Na busca da salvação da alma, essas exigências eram

impostas, tornando aqueles que viveram os piores do regime o intercessor da salvação.

13

A morte do testador trazia mudanças significativas na vida de um escravo, incluindo a

possibilidade da alforria. O momento do falecimento do testador foi para os escravos o início de

um período de incertezas em virtude da possibilidade de serem partilhados ou vendidos. Os

cativos estavam sujeitos a serem separados de familiares e de companheiros de cativeiro e ainda

tinham que se adaptar ao jugo de um novo proprietário da qual podia ser um desconhecido do

cativo. Um novo proprietário poderia significar para o cativo a perda dos privilégios adquiridos

com seu antigo proprietário (CHALHOUB, 1990, p.112).

Na documentação examinada, 95 escravos teriam que servir ou acompanhar aos seus

testadores até estes falecerem, ou seja, 42,6% dos escravos alforriados condicionalmente tiveram

que viver com a imprevisibilidade da liberdade e de uma possível revogação da verba

testamentária. Uma vez contemplado com a alforria condicional, os escravos estariam sujeitos a

condições que impediriam a liberdade imediata, mas ao mesmo tempo poderiam ser beneficiados

com outras doações, o que proporcionaria uma inserção menos complicada no mundo dos

libertos.10

Entre os possíveis arranjos familiares identificados para o alcance da liberdade consta o

reconhecimento da paternidade de filhos naturais, geralmente, fruto de relações ilegítimas com

escravas.11 Também não foi incomum escravos serem herdeiros dos seus proprietários. José

Ferreira Rocha,12 morador em São José do Chopotó, libertou todos os seus treze escravos após o

seu falecimento. O testador era solteiro e não tinha herdeiros legítimos ou ascendentes, tornando

assim os cativos seus herdeiros. No entanto, para a concretização da liberdade, algumas

condições de cunho moral ainda precisavam ser cumpridas. Os escravos de até dez anos de

idade teriam que mandar celebrar dez missas cada um pela alma do seu proprietário e dos seus

familiares. Os escravos que estariam sujeitos a essa condição só efetuariam a liberdade depois

que apresentassem as certidões comprovando as missas celebradas em memória do testador e

dos familiares deste. O testamenteiro passaria a carta de liberdade logo após o falecimento do

10Traslado do testamento anexado ao inventário Francisco Manoel Bastos. ACSM. 1º Ofício. 1820. Códice 113, Auto 2318. Traslado do testamento anexado ao inventário José Lopes Rosado. AFP. Ano 1839. Códice S/C. Auto 536. Traslado do testamento anexado ao inventário de Ana Rosa de Jesus. Ano 1854. AFP. Códice A190. 11 Traslado do testamento anexado ao inventário de Antônio Pereira de Magalhães. AFP, Ano 1832. Códice A009. Auto 136. 12 Traslado do testamento de José Ferreira da Rocha. AFP. Ano 1846. Códice A071, Auto 415.

14

testador para demais escravos. O testador deixou claro que se o testador se descuidasse por

passar a carta de liberdade, a verba testamentária serviria como carta de liberdade. Os cativos

teriam acesso a todos os bens do proprietário, no entanto, a venda de qualquer bem estaria

proibida, somente o usufruto dos bens era concedido.

Sobre as exigências de bom comportamento, o padre Antônio Gonçalves Vale ordenou

que a escrava Franciana fosse obrigada a viver pacificamente com seu marido, o escravo

Domingos Congo e depois de seu falecimento a escrava gozaria da liberdade.13 Clara

Fortunata da Silva14 exigiu no seu testamento que após o seu falecimento os seus cativos

estivessem sujeitos aos herdeiros até se casarem, mesmo sob a condição de libertos. No

mesmo testamento, a testadora declarou que devia a seus escravos a quantia de cento e trinta

mil réis que seria abatida na liberdade do filho da escrava Lúcia, cabendo a mesma escrava

quitar o restante. A testadora devia a outros cativos quantias menores, no entanto, essas

quantias não foram convertidas em liberdade. Chama atenção o compromisso da testadora em

ressaltar as dívidas com seus cativos. Tal reconhecimento demonstra que o acúmulo de

dinheiro pelos cativos foi um fato concreto, visto como um privilégio reforçado com o

compromisso do testador em quitar a dívida. Os batizados por forro também vivenciaram

situações semelhantes, pois mesmo considerados forros tiveram que servir até o falecimento

do proprietário.15

Como observado os caminhos para liberdade não foram marcados somente sob a

condição onerosa ou de prestação de serviços, mas também foram estabelecidos acordos que

demandavam por parte dos cativos uma retribuição às funções que geralmente eram

desempenhadas pelos familiares. Constato a preocupação dos testadores libertadores em

querer que os alforriados zelassem pela sua alma e a dos seus familiares. Entretanto, nem

sempre foi harmoniosa a relação entre escravo e proprietários e a possibilidade de uma

13 Traslado do testamento do Padre Antônio Gonçalves Vale. AFP. Códice A009, Auto 143. 14 Traslado do testamento de Clara Fortunata da Silva. AFP. Ano 1851, Códice A022, Auto 301. 15 Traslado do testamento de Joana Custódia de Araújo. AFP. Ano 1835. Códice A051, Auto 372.

15

revogação da liberdade ou arrependimento da mesma liberdade ocasionava situações

conflitantes nesta relação.16

As condições impostas pelos testadores não foram somente as que determinavam que os

escravos zelassem pela sua alma ou dos familiares já falecidos, mas também havia a

preocupação dos testadores com seus respectivos cônjuges e com familiares para depois do

seu falecimento. Diante disto, várias foram as cláusulas que impediam a liberdade imediata

com a condição de servir e/ou acompanhar ao cônjuge ou alguém da parentela do testador.

A liberdade condicionada a servir ao cônjuge ou alguém do grupo familiar representou

39,5%, ou seja, 88 dos alforriados condicionalmente. Servir alguém da parentela poderia

significar um empecilho à liberdade, pois a adaptação em outro grupo doméstico talvez não

favorecesse um comportamento tão esperado como a que tinha com o antigo proprietário. Ser

alforriado sob condições poderia significar que a formação familiar escrava estava

comprometida. Alguns testadores, prevendo alguma discórdia em relação à prole, declararam

em testamento que o escravo que tivesse filhos no período da condicionalidade pertenceria

aos seus herdeiros.17

O cativo alforriado condicionalmente por verba testamentária só estaria realmente livre

quando cumpridas todas as cláusulas, pois em grande parte dos testamentos a carta de

liberdade só seria passada depois de cumpridas as condições determinadas pelos testadores.

Pode-se inferir que o não cumprimento do acordo das cláusulas do testamento pelo cativo

significava voltar ao estágio inicial. Quando se libertava por uma verba testamentária,

esperava-se que ambos contraentes proprietários e escravos respeitassem o cumprimento do

acordado, por mais que os conteúdos das cláusulas fossem uma decisão iminente senhorial.

Os critérios estabelecidos para essa classificação referem-se aos mencionados no

documento. Alguns testadores declararam que o escravo devia servir à esposa, esposo,

16 Cito o processo crime de 1843 da Justiça Pública contra o escravo Antônio Pardo que cometeu crime de homicídio contra seu proprietário que se arrependeu da liberdade doada ao mesmo escravo Antonio. O processo encontra-se disponível no Hall do fórum de Piranga. Dentre autos de manutenção de liberdade cito a ação dos libertos Francisco da Nação, sua mulher Mariana e filhos e Joaquina, irmã da mesma Mariana que recorreram a justiça no ano de 1870 para manter sua liberdade. O auto também encontra-se disponível no Hall do fórum de Piranga. 17 Traslado do testamento de André Lino de Souza. ACSM. 1º Ofício. Ano 1821, Códice 91, Auto 1907.

16

mulher, marido, filhos/filhas, sobrinhos/sobrinhas, afilhada, comadre, irmãos/irmãs e a uma

liberta provavelmente uma ex-cativa. Mas nem sempre foi assim, pois em alguns casos os

testadores mencionaram somente que os cativos deveriam servir aos herdeiros, não os

especificando. Outros testadores somente estipulavam a condição de servir, mas sem referir o

legatário. Os testamenteiros, quase sempre um herdeiro, também foram beneficiados com os

serviços dos cativos. Há de se ressaltar que os testamenteiros tinham um papel importante na

prestação de contas dos legados testamentários, caberia apresentar em juízo a quitação de

todas as verbas testamentárias, inclusive a liberdade.

Tabela 3.1: Grupos familiares beneficiados com serviços dos escravos alforriados

Cônjuge 29

Herdeiros* 16

Testamenteiro 14

Irmão/Irmã 11

Filho/Filha 9

Sobrinho/Sobrinha 5

Afilhada 2

Liberta 1

Comadre 1

Total 88

Fonte: Traslado dos testamentos abrigados no ACSM e AFP.

Houve inúmeras cláusulas que demonstravam a preocupação dos testadores em garantir

os serviços dos cativos aos cônjuges, que desfrutariam dos serviços por certo período de anos

17

ou até a morte.18 A prestação de serviços ao cônjuge até a morte do mesmo tornou-se uma

ação totalmente imprevisível, pois não se sabe quando o beneficiado iria falecer, sendo que

poderia haver uma diferença de idade considerável entre os cônjuges. É importante observar

também a idade do escravo alforriado sob condições, que em muitos casos não poderia dispor

de si após o falecimento do cônjuge. Ressalto que na documentação examinada nem todos os

testadores declararam “servir até a morte do cônjuge”, mas apenas designavam que tinha que

servir, sem qualquer indicativo de tempo.

Os testamenteiros constaram em nossas amostras como um dos mais agraciados com

serviços dos cativos. Pode-se apontar que a escolha do testamenteiro se deu pela confiança do

testador naquele, como já exposto, quase sempre alguém do grupo familiar (FARIA, 1998).

Sendo remunerado pela função, o testamenteiro teria que administrar e dar contas dos legados

testamentais no prazo estipulado pelo testador no testamento. Por ser uma função que exigia dos

testamenteiros anos de trabalho e um compromisso formal, alguns testamenteiros foram

contemplados com os serviços de alguns cativos que foram alforriados condicionalmente no

testamento. Tal benefício foi uma forma de pagamento e agradecimento pela função

desenvolvida.19

Os herdeiros sem especificação também foram beneficiados dos serviços dos cativos

após o falecimento do testador. Esta categoria foi criada pela falta de especificação do

indivíduo do grupo familiar a quem o cativo deveria servir.20 Os Filhos*, sobrinhos, afilhados,

comadres e também uma liberta foram agraciados com serviços decorrentes da

condicionalidade exigidas.

A maioria dos cativos com a obrigação de servir ao cônjuge ou alguém do grupo

familiar teve o tempo determinado nas cláusulas testamentais. Houve uma variação de um a

trinta anos no período que os cativos teriam que servir. Alguns cativos estavam sujeitos a

18 Traslado do testamento de José Manoel Dias.AFP.. Ano 1867, CódiceA265, Auto 478. Traslado do testamento Anacleto Gonçalves da Cunha. ACSM. 1º Ofício. Ano 1836. Códice 08, Auto 323. 19 Traslado do testamento de Rita Soares de Almeida. AFP. Ano 1857, Códice A108. Traslado do testamento de Felicidade Perpetua da Natividade. AFP. Ano 1857, Códice A108, Auto n/c. 20 Traslado do testamento anexado ao inventário de Joaquim Ferreira da Cunha. AFP. Ano 1864, Códice A011, Auto 349. Traslado do testamento anexado ao inventário de Antônia Cândida de Jesus Vidigal. AFP. Ano 1854, Códice n/c, Auto n/c.

18

servir até a morte do cônjuge, atingirem certa idade e servirem alguém do grupo familiar até

que este adquirisse escravo. Ressalvo que nesta contagem não estão incluídos “servir até a

morte do testador”, visto que tal escolha prioriza o tempo da condicionalidade destinada ao

cônjuge e a terceiros. A obrigação de “servir até a morte do testador” é estacionar sobre a

imprevisibilidade, mesmo tendo a certeza de que o testamento é elaborado em um momento

frágil e de previsão da morte.

Tabela 3.3: Período e arranjos da condicionalidade

Anos

a servir

1 2 3 4 6 8 10 12 15 20 30 Idade S.I Morte Troca Total

Número de

escravos

5

4

2 12

7

2

8

2

1 2

3

5

27

7 1

88

Fonte: Traslado dos testamentos abrigados no ACSM e AFP. A idade significa que os escravos deveriam servir até completarem determinada idade; S.I significa sem identificação; Morte significa que o cativo deveria servir até morte do cônjuge ou de algum do grupo familiar; A troca foi único caso em que o cativo deveria servir até o

herdeiro beneficiado até que este adquirisse outro cativo.

Como já mencionado, servir até a morte do testador seria situar-se no campo da

imprevisibilidade, assim como servir até a morte do cônjuge ou algum terceiro seria atribuir à

liberdade o caráter da incerteza e imprevisibilidade. Porém, ter o tempo definido para o

cumprimento da condicionalidade significou que a permanência dos escravos no cativeiro estava

com os dias contados. Sem dúvidas, criavam-se também expectativas sobre os cativos em torno

da liberdade. Os proprietários utilizavam desta expectativa e moldavam os comportamentos dos

cativos beneficiados criando anseios de liberdade no restante dos escravos. Esperar o legatário

adquirir um escravo para poder libertar outro também significou uma incerteza diante da

liberdade, pois não conseguimos mensurar até que ponto um escravo poderia conseguir pecúlio

suficiente para adquirir outro escravo para substituí-lo. No entanto, como já observado, alguns

proprietários teriam dívidas com alguns cativos, e outros poderiam contar com os laços de família

para deixar o cativeiro.

A coartação, pagamento parcelado pela liberdade, foi uma modalidade de alforria

representativa entre as libertações concedidas em testamentos (sobre a prática de coartação ver

19

entre outros: PAIVA, 1995; MELLO e SOUZA, 1999; GONÇALVES, 2011). Em um universo

de 223 alforrias condicionais encontramos um total de 40 coartações nas verbas testamentárias

que corresponderam a 18% dos condicionamentos. Foi considerado nessa contagem somente

quando identificamos o registro dos termos “coartado” ou “quartado”.

Tabela 3.4: Escravos coartados no período (1820-1870)

Nativos Africanos Sem Identificação

M F Total M F Total M F Total

14 11 25 7 3 10 5 - 5

Fonte: Traslado dos testamentos abrigados no ACSM e AFP.

A prática da coartação não estava atrelada ao sexo do cativo. Entre os escravos

brasileiros, não houve um privilegio de sexo, considerando que 14 homens e 11 mulheres

foram coartados. Levando em consideração o caráter seletivo do tráfico com preferência pelo

sexo masculino, podemos afirmar que não houve discrepância entre os contemplados com a

coartação dos escravos africanos. Do total de 10 escravos africanos constam 7 homens e 3

mulheres.

No que diz respeito a idades dos escravos coartados, preliminarmente supõe-se que

teria uma faixa etária específica como a principal beneficiada com a prática, principalmente

aquela que corresponde à idade produtiva do cativo. Porém, não constatei tal tendência, mas

observei que todas as faixas etárias foram contempladas pelo coartamento. Neste sentido

posso inferir que não houve mecanismo de defesa por parte dos proprietários para garantir os

tratos estabelecidos ou tal mecanismo estava exposto nas cláusulas que exigiam diversos

arranjos para cumprir com estabelecido como, por exemplo, recorrer a terceiros. A coartação

estava longe de beneficiar somente os que eram capazes de prover sua própria subsistência,

ainda que prevalecesse a faixa etária correspondente a de maior produtividade.

Em determinadas situações, o preço original da avaliação da coartação foi negociável,

na qual poderia haver perdão pelo restante da dívida ou mesmo constar uma flexibilidade com

prazo e valor da quitação. Os valores da coartação, geralmente, estariam próximos aos valores

20

de mercado escravos podendo variar de acordo com sexo, idade, condições físicas, saúde,

capacidade de trabalho, “qualidade” e o grau de proximidade com o proprietário (PAIVA,

1995, p.53).

Mesmo acreditando que a prática do pagamento parcelado pela liberdade não ocorreu

somente por alguma recessão econômica, acredito que tal prática foi importante na medida em

que o valor arrecadado pela liberdade esteve destinado a sanar dívidas.21 Além disso, alguns

testadores, esperando que o acordo fosse cumprido e/ou desejando uma inserção no mundo dos

livres sem complicações, exigiam que os cativos aprendessem um ofício.22

Considerações Finais

Os apontamentos levantados neste texto são fruto de uma pesquisa que se encontra em

desenvolvimento. A base documental examinada não contempla todos os testamentos

anexados aos inventários post mortem disponíveis no arquivo, por isso ainda não se pode

afirmar que as alforrias condicionais, principalmente as destinadas à prestação de serviços ao

testador e a alguém do grupo familiar tenham sido as preferências dos testadores da região.

Entretanto, se os dados aqui apresentados não podem ser tomados como unânimes, pelo

menos permite aludir que os testamentos foram fontes privilegiadas para alforriar-se,

demonstrando assim que as manumissões condicionais prevaleceram sobre as incondicionais,

ou seja, para alcançar a liberdade foi necessário, além de ser merecedor, cumprir cláusulas

que mais reforçavam a escravidão do que abria horizonte à liberdade.

Diante disso, a liberdade estava condicionada à imprevisibilidade na qual o cativo

aguardava a morte do seu proprietário ou de alguém do grupo familiar, ou mesmo aguardava pelo

término da condição estipulada. Em todo este processo o cativo deveria corresponder às

expectativas dos seus proprietários de bom comportamento e subordinação. Todavia, os cativos

corriam o risco deparar com algum herdeiro ou testamenteiro que dificultaria a inserção numa

21 Traslado do testamento de Antônio Lino de Souza. ACSM. 1º Ofício. Ano 1821, Códice 91, Auto 1907. 22 Traslado do testamento de Ana Joaquina de Jesus. AFP. Ano 1845. Códice A006. Auto 76

21

condição social. Mesmo diante de caminhos pedregosos, a alforria foi uma realidade possível aos

escravos, não tendo os testadores uma preferência aparente quanto ao sexo e a faixa etária para

alforriar. Lembrando que os escravos de origem brasileira foram os mais beneficiados com as

alforrias e proporcionalmente as mulheres tiveram intensa participação, porém os homens foram

os mais contemplados. Acredito que a baixa proporção de escravos de origem africana entre os

alforriados corresponda a sua proporção nas escravarias da região, a tendência foi diminuir ainda

mais ao longo do século XIX.

A transição da escravidão para a liberdade foi cercada de conflitos e percalços das quais

os cativos, prevendo alguma avaria em seu espaço de autonomia, aguçavam sua força de ação

na manutenção dos privilégios conquistados. Entretanto, não se pode negar que a prática da

alforria era intrínseca ao sistema escravista e que a concessão da liberdade era um mecanismo

que, se não reforçava o poder senhorial, pelo menos suavizava as relações entre os agentes.

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