CAMINHOS TEÓRICOS E PRÁTICOS analise critica do discurso

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    CAMINHOS TERICOS E PRTICOSEM ANLISE CRTICA DO DISCURSO

    Cleide Emlia Faye Pedrosa (UFRN, UFS, UERJ)[email protected]

    Derli Machado de Oliveira (UFRN, Faculdade Atlntico)[email protected]

    Taysa Mrcia dos Santos Souza Damaceno (UFRN)[email protected]

    1. IntroduoEste minicurso apresenta como objetivo a proposta de aplicar co-

    nhecimentos advindos da anlise crtica do discurso em prticas de anli-se em texto/discurso, ressaltando as categorias de comodificao, tecno-logizao e intertextualidade. Este objetivo dar conta da seguinte ementa:viso terica da anlise crtica do discurso (ACD); propostas de anlise apartir das categorias: democratizao; comodificao; tecnologizao; in-tertextualidade e primado do interdiscurso. Como justificativa para estaabordagem, apontamos: Por julgar que a anlise crtica do discurso(ACD) ainda pouco conhecida na academia, principalmente, em suasperspectivas de aplicao, este minicurso tem como objetivo apresentar,em primeiro plano, uma viso terica da anlise crtica do discurso(ACD), para logo em seguida apresentar duas propostas de anlise queforam desenvolvidas com base nessa linha de investigao, especialmen-te, na que concerne corrente social desenvolvida por Fairclough (2003,2008). Faz parte ainda da parte prtica, deste minicurso, os pressupostosdesenvolvidos por Maingueneau (2008) em Gnese dos discursos sobre

    a semntica global, especificamente, sobre o primado do interdiscurso ea polmica como interincompreenso. Desse modo, organizamos o mate-rial de apoio ao desenvolvimento da proposta em: a) caminhos histricose metodolgicos em anlise crtica do discurso; b) Modelo tridimensionalda ACD; c) Democratizao; tecnologizao e comodificao: categoriasde anlise e; d) Semntica Global: teoria e prtica. Com o resultado, es-peramos que as perspectivas do pblico-alvo (alunos de Letras e reas a-fins, professores do ensino mdio, profissionais e usurios do tex-to/discurso) sejam atendidas.

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    2. Caminhos histricos e metodolgicos em anlisecrtica do discursoAnlise crtica do discurso, perspectiva que recusa a neutralidade da in-

    vestigao e do investigador, que define os seus objetivos em termos polticos,sociais e culturais e que olha para a linguagem como prtica social e ideolgi-ca e para a relao entre interlocutores como contextualizada por relaes depoder, dominao e resistncia institucionalmente constitudas. (PEDRO,1998, p. 15)

    Os analistas crticos do discurso se posicionam politicamentequanto s anlises que procedem. Para eles, importante verificar comoas prticas lingusticas, discursivas e sociais se inter-relacionam de talmaneira nas estruturas socialmente aliceradas em prticas ideolgicasque se torna difcil fugir delas. Seguir uma postura crtica, como a assu-

    mida pela anlise crtica do discurso (ACD), requer se identificar comseu objetivo, qual seja, elucidar as naturalizaes advindas de prticas i-deolgicas, tornando claro os efeitos que o discurso causa por serem o-pacos para os participantes (FAIRCLOUGH, 1995a) e, deste modo, in-tervir na sociedade a fim de gerar mudanas, principalmente, a favor dosperdedores (excludos sociais, pessoas sujeitas a relaes de opresso,pobres), dos menos favorecidos. Pois fato sabido que a circulao detexto dentro de uma sociedade pode servir de meios de dominao atra-vs da linguagem, entre alguns destes aspectos Hanks (2008, p. 155) a-

    ponta: exerccio de poder social, desigualdade poltica, cultural, discri-minao de classe, sexo, etnia. Por isso que cabe a ACD desnaturalizarestas prticas discursivas analisar e revelar o papel do discurso na(re)produo da dominao (PEDRO, 1998, p. 25).

    Sobre este assunto, Van Dijk (2008, p. 19) afirma o seguinte:

    Se o discurso controla mentes, e mentes controlam ao, crucial paraaqueles que esto no poder controlar o discurso em primeiro lugar. Como elesfazem isso? Se eventos comunicativos consistem no somente de escrita e falaverbais, mas tambm de um contexto que influencia o discurso, ento o

    primeiro passo para o controle do discurso controlar seus contextos. [...] Issosignifica que precisamos examinar em detalhe as maneiras como o acesso aodiscurso est sendo regulado por aqueles que esto no poder (VAN DIJK,2008, p. 19).

    Examinar em detalhe as maneiras como o acesso ao discurso estsendo regulado por aqueles que esto no poder (FAIRCLOUGH, 1995b,p. 33; RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 49-50) o grande desafio daACD. E para dar conta deste desafio, esta concepo assume que a ideo-logia , por natureza, hegemnica, pois serve tanto para estabelecer como

    para sustentar relaes de dominao e convm, igualmente, para repro-

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    duzir a ordem social que beneficia indivduos e os blocos dominantes nosquais esto inseridos, perpassando suas ideias como fruto do senso co-mum.

    Foi com esta postura que surgiu dentro do campo da Lingustica a anlise crtica do discurso com fortes influncias de outras escolas,tais como lingustica crtica, semitica social e sociolingustica crtica.

    Seu termo foi utilizado por Fairclough em artigo publicado em1985. Mas foi um congresso na Universidade de Amsterdam, em janeirode 1991, que deu corpo s ideias de um grupo de pesquisadores: Teunvan Dijk, Norman Fairclough, Gunter Kress, Theo van Leeuwen e RuthWodak. Eles estiveram juntos discutindo teorias e mtodos de anlises de

    discursos. Wodak (2003, p. 21, Traduo Nossa), que participou ativa-mente deste congresso histrico, pronuncia-se; assim, em relao esteencontro: esta reunio de Amsterdam sups um comeo institucional,um esforo tendente a comear um programa de intercmbio (ERAMUS,durante trs anos) (WODAK, 2003, p. 21, traduo nossa). Desde aprimeira reunio, o grupo, embora internacional e heterogneo, consoli-dou o novo paradigma. Esta consolidao foi mais fruto de um agenda-mento e programa de investigao que pela existncia de teorias e me-todologias comum, acrescenta Wodak (2003, p. 22, traduo nossa).

    Fairclough (2008) esclarece-nos que, mesmo tendo ligao com aLC, como apontado acima, a ACD vai surgir a partir de limitaes desta.O autor tambm aponta que limitaes tambm em propostas de anliseda Anlise do Discurso (AD) contriburam para o surgimento da ACD.Para ele, a AD, ao enfatizar a perspectiva social, relegou a anlise lin-gustica; enquanto, a LC ao evidenciar a anlise lingustica, deu poucanfase aos conceitos de ideologia e poder. Fairclough sustenta que ambasapresentam uma viso esttica das relaes de poder.

    Nessa conjuntura, o grande posicionamento deste novo paradigmavai ser o fato de considerar a linguagem como uma forma de prtica so-cial e para tal, necessrio atender a trs perspectivas: linguagem comoparte da sociedade (no algo externo a ela); linguagem como um proces-so social; linguagem como um processo condicionado socialmente (FA-IRCLOUGH, 1995b, p. 22). Tambm ela ser norteada por trs conceitosbsicos: poder, histria e ideologia.

    As situaes de socializao e subjetividades em que os seres hu-manos esto inseridos so cruciais para estudos crticos. Pois estes estu-

    dos do discurso requerem teorizao e descrio dos processos e das es-

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    truturas sociais, bem como dos processos nos quais os sujeitos histricoscriam sentidos em sua interao com textos (WODAK, 2003). Os textos,para investigao, podem estar inseridos em diversos contextos, tais co-

    mo o poltico, o econmico; "o racismo, a propaganda e a mdia, e osambientes institucionais como a burocracia e a educao (HANKS,2008, p. 172, 173).

    Para dar suporte a sua anlise do texto\discurso, a ACD busca ba-se terica na lingustica de Halliday, na sociolingustica de Bernstein, nasobras de crticos literrios e tambm de filsofos sociais como Pcheux,Foucault, Harbemas, Bakhtin, e Voloshinov e Giddens com sua Teoria daEstruturao. Para esta teoria, o sujeito capaz de gerar transformaessociais por meio do discurso (o discurso modela a sociedade e modela-

    do por ela). Esclarecendo um pouco mais a Teoria da Estruturao, te-mos:

    Aspectos da Teoria da Estruturao de Giddens (1989) prestam-se dis-cusso sobre o papel dos agentes sociais, e seus discursos, na manuteno etransformao da sociedade. Segundo essa teoria, a constituio da sociedadese d de maneira bidirecional, ou seja, h uma dualidade da estrutura socialque a torna o meio e o resultado de prticas sociais (RESENDE & RAMA-LHO, 2006, p. 41).

    Abaixo apontaremos algumas correntes desta escola e destacare-

    mos a corrente social, com a qual vamos trabalhar neste minicurso.

    2.1.Correntes de pesquisa em ACDCom base em Resende (2009), pode-se afirmar que Fairclough ar-

    ticula a lingustica sistmica funcional com a sociologia; que van Dijkprocura estabelecer a ligao entre a lingustica textual com a PsicologiaSocial; e que os trabalhos de Wodak ligam-se com a Sociolingustica e aHistria. J com base em Meyer (2003), podemos destacar as correntesque sugiram devido s escolhas do quadro terico-metodolgico assumi-do por alguns pesquisadores em ACD: a microsociolgica com RonScollon; as teorias sobre a sociedade e o poder com base na tradio deMichel Foucault com Siegfried Jger, Norman Fairclough e Ruth Wo-dak; e as teorias do conhecimento social com Teun van Dijk. Entre estascorrentes e quadro terico apontados, destacaremos a corrente que se-guimos: corrente social da linguagem de Fairclough.

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    2.1.1. Corrente social da linguagem: Norman FaircloughNorman Fairclough, um dos pioneiros da ACD, interessa-se pelos

    estudos crticos e interdisciplinares sobre a prtica discursiva e a sua re-lao com a mudana social e cultural. Suas contribuies centrais paraos estudos crticos da linguagem foram criar um mtodo para estudar odiscurso e fazer com que cientistas sociais e estudiosos da mdia reco-nheam a necessidade de um trabalho com linguistas (MAGALHES2005; cf. RESENDE; RAMALHO, 2006). Este seu trabalho assumiugrande importncia na solidificao da funo de linguistas crticos nacrtica social contempornea (RESENDE; RAMALHO, 2006). As auto-ras ainda afirmam:

    O dilogo crescente entre a Lingustica e a Cincia Social Crtica, nas ba-ses tericas da ADC, foi determinante no processo de abertura da disciplina,que culminou no movimento da centralidade do discurso para a percepodeste como um momento de prticas sociais (RESENDE; RAMALHO, 2006,p. 146).

    O modelo desenvolvido por Fairclough rene anlise lingustica eteoria social, numa combinao desse sentido mais socioterico de dis-curso com o sentido de texto e interao na anlise de discurso orien-tada linguisticamente (FAIRCLOUGH, 2008, p. 22). Sobre isto, Resen-de e Ramalho (2006, p. 11)1 afirmam: A teoria social do discurso uma

    abordagem de anlise de discurso crtica (ADC), desenvolvida por Nor-man Fairclough, que se baseia em uma percepo da linguagem comoparte irredutvel da vida social dialeticamente entrecortada a outros ele-mentos sociais.

    A forte herana de Halliday se faz presente explicitamente naspropostas de Fairclough. O texto analisado, segundo o modelo sitmico-funcional, daria conta das funes: ideacional experincia do mundo,sistema de conhecimentos e crenas; interpessoal interao social entre

    os participantes, sujeitos sociais, identidade; Textual ligao das partesde um texto em um todo coerente. Caldas Coulthard (2008, p. 33), as-sim, se expressa:

    A metafuno ideacional ou experimental a manifestao no sistemalingustico de um propsito geral que nos permite entender ou experimentar oambiente em que vivemos; a metafuno interpessoal ou relacional nos permi-te constituir e mudar relaes sociais e identidades sociais, marcando a intera-o entre as pessoas.

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    As autoras Resende e Ramalho utilizam o termo "anlise de discurso crtica" (ADC), preferimos uti-lizar ACD como em Pedro (1998) e Wodak & Meyer (2003), entre outros.

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    Para Fairclough (2008), a localizao teortica da ACD est emver o discurso como um momento das prticas sociais, sabendo que todasas prticas incluem os elementos: atividade produtiva, meios de produ-

    o, relaes sociais, identidades sociais, valores culturais, conscincia esemioses.

    O primeiro modelo de anlise desenvolvido por Fairclough (2008) chamado de modelo tridimensional do discurso engloba trs dimen-ses: o texto, a prtica discursiva e a prtica social. Assim se expressaHanks (2008, p. 172)

    Nessa abordagem (ACD), o discurso tratado sob trs perspectivas: comotexto dotado de forma lingustica, como prtica discursiva por meio da qualos textos so produzidos, distribudos e consumidos, e como prtica social

    que tem vrios efeitos ideolgicos, incluindo normatividade e hegemonia.A seguir, no prximo tpico, abordaremos este quadro teri-

    co/metodolgico tridimensional desenvolvido por Fairclough (2008). Ne-le, observa-se, alm das categorias que compem as prticas textuais,discursivas, a prtica social que envolve trs tendncias principais demudana discursiva que tm afetado a ordem do discurso societal, quepodemos relacionar diretamente s mudanas social e cultural: a demo-cratizao, a comodificao e a tecnologizao. Especificamente, estas

    trs tendncias tambm sero desenvolvidas em tpico a parte.

    Modelo tridimensional

    O modelo tridimensional desenvolvido por Fairclough (2008) baseado na lingustica sistmica-funcional de Halliday, como j afirma-do, teoria que considera a linguagem na forma como ela configuradapelas funes sociais que deve atender. Segundo esta escola a lingua-gem uma semitica social e a forma lingustica afetada sistemati-

    camente pelas circunstncias sociais (CALDAS-COULTHARD, 2008, p.27-28). Halliday (apud CALDAS-COULTHARD, 2008, p. 28) afirmaque a forma particular apresentada pelo sistema gramatical de uma ln-gua est estreitamente relacionada com as necessidades pessoais e sociaispara as quais a lngua ir servir. O texto, analisado segundo esta pers-pectiva, considerado uma unidade semntica e uma forma de in-ter(ao).

    Este modelo tridimensional de anlise do texto\discurso assume oposicionamento que qualquer evento ou exemplo de discurso pode ser

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    considerado, simultaneamente, um texto (anlise lingustica), um exem-plo de prtica discursiva (anlise da produo e interpretao textual) eum exemplo de prtica social (anlise das circunstncias institucionais e

    organizacionais do evento comunicativo). Nas palavras de Fairclough(1998, p. 83-84):

    Esta abordagem tem uma caracterstica especial: a ligao entre a prticasociocultural e o texto mediada pela prtica discursiva. A forma como umtexto produzido e interpretado ou seja, que prticas e convenes discursi-vas tm origem em que ordem (ou ordens) do discurso e como se articulam dependem da natureza da prtica sociocultural que o discurso integra (incluin-do a sua relao com hegemonias j existentes); a natureza da prtica discursi-va da produo textual molda o texto, deixando vestgios nas suas caracters-ticas superficiais; por fim, a natureza da prtica discursiva da interpretaotextual determina a forma como sero interpretados os laos superficiais deum texto.

    Para atender a esse modelo tridimensional, devero ser considera-das trs perspectivas analticas, a multidimensional, a multifuncional e ahistrica. A primeira, para avaliar as relaes entre mudana discursiva esocial e, tambm, para relacionar as propriedades particularizadas de tex-tos s propriedades sociais de eventos discursivos; a segunda, a multifun-cional, para averiguar as mudanas nas prticas discursivas que contribu-em para mudar o conhecimento, as relaes e identidades sociais; final-

    mente, a histrica, para discutir a estruturao ou os processos articula-trios na construo de textos e na constituio, em longo prazo, de or-dens de discurso (FAIRCLOUGH, 2008, p. 27, destaques do autor).

    A anlise de um discurso, tomado como exemplo particular deprtica discursiva, focaliza os processos tanto de produo e de distribui-o como de consumo textual. Esses processos so sociais, por isso exi-gem referncia aos ambientes econmicos, polticos e institucionais par-ticulares, nos quais o discurso gerado. Podemos, ainda, afirmar que aproduo e o consumo so, parcialmente, de natureza sociocognitiva. Es-

    sa afirmao se justifica porque ambas so prticas que abrangem pro-cessos cognitivos de produo e interpretao textual que, por sua vez,so fundamentados nas estruturas e nas convenes sociais interiorizadas(da o uso do prefixo scio-). Van Dijk (2008), da corrente sociocogni-tivista da ACD, no aceita a passagem do discurso ao social (especial-mente ao poder e dominao), sem lig-lo ao cognitivo:

    De acordo com o meu esquema terico, essa ligao direta no existe: noh uma influncia direta da estrutura social sobre a escrita ou a fala. Antes, es-truturas sociais so observadas, experimentadas, interpretadas e representadas

    por membros sociais, por exemplo, como parte de sua interao ou comunica-

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    o continuada. essa (subjetiva) representao, esses modelos mentais deeventos especficos, esse conhecimento, essas atitudes e ideologias que, nofim, influenciam os discursos e outras prticas sociais das pessoas (VANDIJK, 2008, p. 26).

    Por fim, ainda se pode afirmar que a concepo tridimensionaldo discurso rene trs tradies analticas (FAIRCLOUGH, 1998): des-crio anlise textual; interpretao prtica discursiva; explicao anlise social. Caldas-Coulthard (2008) nos informa que na tradio des-critiva, o texto, embora unidade semntica, analisado segundo suas ca-ractersticas formais; a interpretao investiga o uso das convenes; aexplicao tem por objetivo explicitar como as propriedades de intera-o situam-se na ao social (p. 32), verificando o uso poltico e ideol-gico dessa interao e as relaes de poder e valores discriminatrios.

    Observa-se que nem sempre ntida a distino entre descrioe interpretao. O critrio recomendvel, segundo o prprio Fairclough(1998, 2008), considerar como descrio os casos em que mais sedestaquem os aspectos formais do texto. Realando-se mais os processosprodutivos e interpretativos, h de ter-se em conta a anlise da prticadiscursiva, embora se envolvam, tambm, os aspectos formais do texto.Tambm vale lembrar que a anlise do discurso uma atividade multi-disciplinar. Ao analisar textos, mesmo linguisticamente, estamos consi-

    derando tanto forma quanto contedo, ainda que algumas abordagens te-nham tentado diferenciar e distanciar esses aspectos.

    A seguir (Cf. Figura 1)), o modelo tridimensional e suas categori-as de anlise. Deve-se considerar que estas categorias e dimenso nodevem constituir-se de forma estanques, so apenas nortes que ajudam naanlise.

    1.1.1. Anlise textualDimenso baseada na tradio de anlise textual e lingustica e

    tem como objetivo descrever as caractersticas organizacionais gerais, ofuncionamento e o controle das interaes. No deve ser feita isolada-mente das outras dimenses. Os itens relevantes nesta anlise so: toma-da de turnos, estruturas de trocas, controle de tpicos, determinao e po-liciamento de agendas, formulao, modalidades, polidez, ethos, conecti-vos e argumentao, transitividade e tema, significado das palavras, cria-o de palavras, metforas, entre outros. A anlise textual envolve quatroitens, apresentados em escalas ascendentes: a) vocabulrio (lexicaliza-

    o); b)gramtica, c) coeso e d) estrutura textual

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    Figura 1: Adaptao do Modelo Tridimensional2

    .

    a) VocabulrioSignificado das palavras: mapear as palavras-chave que apresen-

    tam significado cultural varivel, o significado potencial de uma palavra,

    enfim, como elas funcionam como um modo de hegemonia e um foco deluta.

    Criao de palavras: examinar as lexicalizaes alternativas e suasignificao tanto poltica quanto ideolgica. interessante constatar quea criao de itens lexicais gera novas categorias culturalmente essenciais.

    Para Fairclough (Cf. RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 75) Ossignificados das palavras e a lexicalizao de significados no so cons-trues individuais, so variveis socialmente construdas e socialmente

    contestadas, so facetas de processos sociais e culturais mais amplos.Com isto devemos entender que os significados das palavras ou a lexica-lizao destes significados no resultam de leituras individuais, mas lei-turas de indivduos inseridos histrico-socialmente. O prprio Rajagopa-lan (2003) destaca que o processo de nomeao um ato poltico.

    2 Pedrosa (2005) apresenta o modelo atravs de quadros em "Anlise crtica do discurso umaproposta para a anlise crtica... " Propostasda ACD. A ACD prope-se a estudar a l i nguagem

    como prtica social e, Os que fundamentam suas pesquisas na anlise crtica do discursowww.filologia.org.br/ixcnlf/3/04.htm

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    Metfora: caracterizar as metforas utilizadas em contraste commetforas usadas para sentidos semelhantes em outro lugar, verificar quefatores (cultural, ideolgico, histrico etc.) determinam a escolha dessa

    metfora. Verificar as implicaes polticas e ideolgicas, identificandoos conflitos entre metforas alternativas. Fairclough (2008), com base emLakoff e Johnson, afiana que as metforas esto infiltradas na vida co-tidiana, na linguagem, no pensamento e na ao. Isto corrobora o fato denosso sistema conceitual ser, por natureza, metafrico. Significa, destemodo, que os conceitos no s estruturam os pensamentos, estruturamtambm o modo como apreendemos o mundo e como nele nos compor-tamos. Para DellIsola (1998), a metfora um fenmeno discursivo epor isso apresenta-se em um contexto referencial, podendo tambm con-

    ter marcas culturais. O criador da metfora e seu desconstrutor, inseri-dos em um contexto cultural, subvertem as regras da lngua/do discurso afim de construir novas formas de discursos e representaes da realidade.

    Caldas-Coulthard (2008, p. 33, 34) sugere uma lista de perguntasnorteadoras para se proceder anlise do vocabulrio:

    1- H palavras no texto que so ideologicamente contestadas (sexistas,recistas etc.);

    2- H algumas que permitem classificar as pessoas no texto quanto aotipo de profisso e de papeis sociais.3- H palavras formais ou informais no texto (formas de tratamento, porexemplo)?

    4- Que valor expressivo dado s palavras (como as palavras avaliativasso usadas, por exemplo)?

    5- Que metforas so usadas?

    b) GramticaTransitividade (funo ideacional da linguagem): Verificar se ti-

    pos de processo [ao, evento...] e participantes esto favorecidos no tex-to, que escolhas de voz so feitas (ativa ou passiva) e quo significante a nominalizao dos processos (FAIRCLOUGH, 2008, p. 287). H umamotivao social para analisar a transitividade. Pode-se tentar estabelecerque fatores sociais, culturais, ideolgicos, polticos ou tericos decidemcomo um processo significado num tipo de discurso particular (ou

    mesmo em diferentes discursos) ou em um dado texto. Por exemplo, h

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    motivao para escolher a voz passiva. Seu uso permite a omisso do a-gente por ser irrelevante, por ser evidente por si mesmo ou por ser des-conhecido, mas, tambm, a omisso pode ter razes polticas ou ideol-

    gicas, a fim de ofuscar o agente, a causalidade e a responsabilidade.Tema (funo textual da linguagem): observar se existe um padro

    discernvel na estrutura do tema do texto para as escolhas temticas dasoraes. Tema a dimenso textual da gramtica da orao dedicadaaos modos pelos quais os elementos da orao so posicionados de acor-do com a sua proeminncia informacional (FAIRCLOUGH, 2008, p.221).

    Modalidade (funo interpessoal da linguagem): determinar pa-

    dres por meio da modalidade, quanto ao grau de afinidade expressa comproposies. Quando as pessoas escolhem suas oraes em termos demodelo e estrutura, selecionam, tambm, o significado e a construo deidentidades sociais, de relaes sociais, de crenas e conhecimentos. Al-guns itens gramaticais so utilizados para modalizar a orao: verbos au-xiliares modais, tempos verbais, conjunto de advrbios modais e seus ad-

    jetivos equivalentes. Alm desses elementos, outros aspectos da lingua-gem tambm indicam a modalizao, como padres de entonao, falahesitante, entre outros. Na modalidade, temos mais que um comprome-

    timento do falante com suas proposies, um comprometimento que pas-sa, tambm, pela interao com os interlocutores.

    A lista de Caldas-Coulthard (2008, p. 34) em relao gramtica a seguinte:

    1- Que tipos de processos verbais e participantes so predominantes nainterao?

    2- O agenciamento explicito (quem faz o qu)?3-

    Que tipos de nominalizaes so usados?

    4- As oraes so ativas ou passivas?5- Que modos (declarativo, interrogativo, imperativo) so usados?6- Como a modalidade feita?7- Que tipos de pronomes so usados? E como?8- As oraes so positivas ou negativas?

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    9- As oraes complexas so caracterizadas por subordinao ou coor-denao?

    c) CoesoMostrar de que forma as oraes e os perodos esto interligados

    no texto. Na coeso, pode-se considerar como as oraes so ligadas emfrases e como essas so ligadas para formar unidades maiores nos textos.Os marcadores coesivos no podem ser vistos apenas como propriedadesobjetivas dos textos, mas tm de ser interpretados pelos intrpretes detextos como parte do processo de construo de leituras coerentes do tex-to (FAIRCLOUGH, 2008, p. 220). Esses marcadores tambm necessi-tam ser tomados dinamicamente e segundo a viso do produtor do texto:

    os produtores de texto situam ativamente relaes coesivas de determi-nados tipos no processo de posicionar o intrprete como sujeito. A coe-so pode tornar-se um modo significativo de trabalho ideolgico que o-corre em um texto.

    d) Estrutura textualDescrever as caractersticas organizacionais gerais, o funciona-

    mento e o controle das interaes. A estrutura textual tambm diz respei-

    to arquitetura do texto, principalmente no que se refere a aspectos supe-riores do planejamento de diferentes tipos de texto. A forma como o tex-to se organiza pode expandir a percepo dos sistemas de crenas e co-nhecimentos e alargar, tambm, a percepo dos pressupostos sobre asrelaes sociais dos tipos de texto mais diversos.

    Polidez: identificar que estratgias de polidez so mais utilizadasna amostra e o que isso sugere sobre as relaes sociais entre os partici-pantes. As regras de polidez particulares tanto incorporam quanto reco-

    nhecem relaes sociais de poder particulares. Segundo Fairclough(2008, p. 204), investigar as convenes de polidez de um dado gneroou tipo de discurso um modo de obter percepo das relaes sociaisdentro das prticas e dos domnios institucionais, aos quais esse gneroest associado.

    Ethos: verificar as caractersticas que contribuem para a constru-o do eu ou de identidades sociais. A imagem discursiva de si [...]ancorada em esteretipos, um arsenal de representaes coletivas que de-terminam, parcialmente, a apresentao de si e sua eficcia em uma de-

    terminada cultura (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 221).

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    Esses esteretipos culturais circulam nos mais diversos domnios: litera-tura, cinema, publicidade etc. (MAINGUENEAU, 2001). O posiciona-mento de Fairclough (2008) o de que o ethos pode ser consideradoco-

    mo parte de um processo mais amplo de modelagem em que o tempo eo lugar de uma interao e seus participantes, assim como o ethos dessesparticipantes, so constitudos pela valorizao de ligaes em certas di-rees intertextuais de preferncia a outras.

    Mais uma vez, a contribuio da lista elaborada por Caldas-Coulthard (2008, p. 34)

    1- Onde est situada a principal informao no texto?2- Que tipos de relaes oracionais existem?3- Que tipos de estruturas genricas so usados (narrativa, argumenta-es, relatrios etc.)?

    1.1.2. Anlise discursivaA prtica discursiva (produo, distribuio e consumo) est ba-

    seada na tradio interpretativa ou microssociolgica de levar em conta aprtica social como algo que as pessoas, ativamente, produzem e apreen-

    dem com embasamento em procedimentos compartidos consensualmen-te. Trata-se, portanto, de uma anlise chamada de interpretativa, pois uma dimenso que trabalha com a natureza da produo e interpretaotextual. Alguns aspectos podem ser observados nessa anlise, envolven-do as trs dimenses da prtica discursiva: produo do texto interdis-cursividade e intertextualidade manifesta; distribuio do texto cadeiasintertextuais; consumo do texto coerncia. A essas trs dimenses, Fa-irclough (2008) acrescentou as condies da prtica discursiva com afinalidade de apresentar aspectos sociais e institucionais que envolvem

    produo e consumo de textos.

    a) Produo do textoPor interdiscursividade e intertextualidade, entende-se a proprie-

    dade que os textos tm de estar repletos de fragmentos de outros textos.Esses fragmentos podem estar delimitados explicitamente ou miscigena-dos com o texto que, por sua vez, pode assimilar, contradizer ou fazer

    ressoar, ironicamente, esses fragmentos.

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    Interdiscursividade (intertextualidade constitutiva): Especificaros tipos de discurso que esto na amostra discursiva sob anlise, e de queforma isso feito.

    Intertextualidade manifesta: Especificar o que outros textos estodelineando na constituio do texto da amostra, e como isso acontece.Como ocorre a representao discursiva: direta ou indireta? O discursorepresentado est demarcado claramente? De acordo com o processoconsiderado, a intertextualidade pode ser vista diferentemente. No pro-cesso de produo, a intertextualidade acentua a historicidade dos textos,sendo sempre acrscimo s cadeias de comunicao verbal (BAKH-TIN, 2000). No processo de distribuio, a intertextualidade til para aexplorao de redes relativamente estveis em que os textos se movi-

    mentam, sofrendo transformaes predizveis ao mudarem de um tipo detexto a outro (FAIRCLOUGH, 2008, p. 114). No processo de consumo,a intertextualidade proveitosa ao destacar que no unicamente o tex-to (ou os textos intertextualizados na constituio desse texto) que mol-da a interpretao, porm, tambm os outros textos que os intrpretes,variavelmente, trazem ao processo de interpretao. Observar se h rela-o entre intertextualidade e hegemonia importante e produtivo comopista para a interpretao, para explicar as mudanas. O conceito de in-tertextualidade liga-se produtividade dos textos, pois aponta para como

    os textos transformam textos anteriores e reestruturam as convenes e-xistentes a fim de originar novos textos.

    b) Distribuio do textoCadeias intertextuais: classificar a distribuio de uma amostra

    discursiva atravs da descrio das sries de textos nas quais ou das quais transformada. Quais os tipos de transformaes, quais as audincias an-

    tecipadas pelo produtor? Quando especificamos as cadeias intertextuaisem que entra um tipo particular de discurso, estamos, na verdade, especi-ficando sua distribuio. O nmero de cadeias intertextuais limitado pe-lo nmero de cadeias reais, ou seja, pelo nmero de instituies e de pr-ticas sociais. As cadeias intertextuais podem ser muito complexas, comoocorre, por exemplo, quando se transforma um discurso presidencial emoutros textos, pertencentes a diferentes gneros (reportagens, anlises ecomentrios, artigos acadmicos etc.), ou podem ser muito simples, poisuma contribuio a uma conversa informal no poder gerar tantas cadei-

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    as intertextuais como no exemplo anterior, provavelmente ser apenasmodificada por formulaes dos coparticipantes.

    c) Consumo do textoCoerncia: Considerar as implicaes interpretativas das particu-

    laridades intertextuais e interdiscursivas da amostra. Como os textos sointerpretados e quanto de trabalho inferencial requerido. A coernciadeixa de ser abordada como propriedade do texto para ser tratada comopropriedades de interpretao, pois um texto s faz sentido para algum,quando lhe possvel interpret-lo, ao gerar leituras coerentes. Contudo,no se deve esquecer que h a possibilidade de fazerem-se leituras dife-

    rentes, como resistncia proposta pelo texto. De qualquer modo, a fimde que um texto faa sentido, necessrio que os intrpretes encontremuma maneira de convencionar seus vrios dados em uma unidade coeren-te, conquanto no necessariamente unitria, determinada ou no ambiva-lente. No dizer de Magalhes (2001, p. 23): Os interpretantes, alm desujeitos discursivos em processos discursivos, so tambm sujeitos soci-ais com determinadas experincias acumuladas de vida e recursos orien-tados diferentemente para as dimenses mltiplas da vida.

    d) Condies da prtica discursivaEspecificar as prticas sociais de produo e consumo do texto,

    ligadas ao tipo de discurso que a amostra representa.A produo cole-tiva ou individual?H diferentes estgios de produo? A fim de com-preender as condies de prticas discursivas, necessrio perceber queos textos so produzidos de maneira particular e em contextos sociaisparticulares. Semelhantemente produo, os textos so consumidos di-

    ferentemente em variados contextos sociais. A produo e o consumopodem ser individuais ou coletivos. Os textos podem ser caracterizadospor distribuio simples (conversa casual) ou complexa. Eles podem a-presentar resultados variveis, de natureza extradiscursiva e, ainda, dis-cursiva (os atos de fala).

    1.1.3. Anlise socialO objetivo geral dessa prtica especificar a natureza da prtica

    social da qual a prtica discursiva uma parte, constituindo a base para

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    explicar por que a prtica discursiva como ; e os efeitos da prtica dis-cursiva sobre a prtica social (FAIRCLOUGH, 2008, p. 289), porque aprtica social (poltica, ideolgica etc.) uma dimenso do evento comu-

    nicativo, da mesma forma que o texto (FAIRCLOUGH, 2008, p. 99).Essa uma anlise de tradio macrossociolgica e com caractersticasinterpretativas. uma dimenso que verifica as questes de interesse naanlise social, ou seja, analisa as circunstncias institucionais e organiza-cionais do evento discursivo e de que maneira elas moldam a natureza daprtica discursiva. Em resumo a anlise social tem por objetivo, especi-almente, trabalhar ideologia e hegemonia.

    a) Matriz social do discurso: especificar as relaes e as estruturassociais e hegemnicas que constituem a matriz dessa instncia parti-

    cular da prtica social e discursiva; como essa instncia aparece emrelao a essas estruturas e relaes [...]; e que efeitos ela traz, emtermos de sua representao ou transformao? (FAIRCLOUGH,2008, p. 289-290).

    b) Ordens do discurso: explicitar o relacionamento da instncia daprtica social e discursiva com as ordens de discurso que ela descre-ve e os efeitos de reproduo e transformao das ordens de discursopara as quais colaborou.

    c) Efeitos ideolgicos e polticos do discurso: focalizar os seguintesefeitos ideolgicos e hegemnicos particulares: sistemas de conhe-cimento e crena, relaes sociais, identidades sociais (eu).

    Conforme Fairclough, ideologias so construes ou significaesda realidade (mundo fsico, relaes sociais, identidades sociais) que sefundamentam em diferentes dimenses das formas e dos sentidos dasprticas discursivas e que colaboram para a produo, a reproduo ou atransformao das relaes de poder.

    As ideologias implcitas nas prticas discursivas so por demaiseficazes quando se tornam naturalizadas e conseguem atingir o status desenso comum (repositrio dos diversos efeitos de lutas ideolgicas pas-sadas e constante alvo de reestruturao nas lutas atuais). Contudo, essapropriedade aparentemente estvel e estabelecida das ideologias pode sersubjugada pela transformao, ou seja, pela luta ideolgica como dimen-so da prtica discursiva, conseguindo-se, assim, remodelar as prticasdiscursivas e as ideologias que nelas foram construdas, no contexto dasredefinies das relaes de dominao.

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    A ideologia uma propriedade tanto de estruturas nas ordens dosdiscursos (que constituem o resultado de eventos passados) quanto deeventos (ou condies de eventos atuais e nos prprios eventos). Nas pa-

    lavras de Fairclough (2001, p. 119), uma orientao acumulada e natu-ralizada que construda nas normas e nas convenes, como tambmum trabalho atual de naturalizao e desnaturalizao de tais orientaesnos eventos discursivos.

    Fairclough afirma que os sujeitos, mesmo sendo posicionados i-deologicamente, tm capacidade de agir criativamente, no sentido de e-xecutar suas prprias conexes entre as diversas prticas e ideologias aque so expostos e, tambm, de reestruturar tanto as prticas quanto asestruturas posicionadoras. O equilbrio entre o sujeito efeito ideolgi-

    co e o sujeito agente ativo uma varivel que depende das condies so-ciais, tal como a estabilidade relativa das relaes de dominao (FA-IRCLOUGH, 2008, p. 121).

    Esta questo do sujeito vem a ser o grande embate entre AD eACD. Aquela com um sujeito assujeitado e esta com um sujeito trans-formador. Diante deste aspecto, interessante conhecer o posicionamen-to de um grande analista (da AD) nacional Sirio Possente. Possenti(2009, p. 83) afirma que passou no aceitar a tese corrente em AD se-

    gundo a qual o sujeito assujeitado, no foi por desconhec-la. Foi exa-tamente porque eu a conhecia bastante bem e a tinha anteriormente acei-to. Se passei a no mais aceit-la, pelo menos na formulao Althusseri-ana, foi por outras razes, tericas e empricas, e ainda acrescenta que oprprio Foucault em sua obra o Uso dos Prazeres (1984 apudPOSSEN-TI, 2009, p. 87) abandonara seu posto antigo, e visava agora a um sujei-to das prticas do cotidiano, cercado de circunstncias que certamenteno o deixam livre, mas que no o subjugam. E arremata com a frase:Estamos longe do sujeito assujeitado.

    Fairclough considera que nem todo discurso irremediavelmenteideolgico. As ideologias caracterizam as sociedades que so estabeleci-das numa relao de poder, de dominao. Assim, medida que os sereshumanos transcendem esse tipo de sociedade, transcendem tambm a i-deologia. Por isso, Fairclough (2008) no aceita a viso que atribui a Al-thusser, em que a ideologia o cimento social, o que inseparvel da so-ciedade. Os discursos caracterizam-se abertos em termos de princpios,logo, eles no so investidos ideologicamente no mesmo grau.

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    O segundo ponto a ser tratado na anlise da prtica social a he-gemonia, conceito procedente dos estudos de Gramsci (Apud FAIR-CLOUGH, 2008) sobre o capitalismo ocidental e da estratgia revolucio-

    nria da Europa Ocidental. Destacaremos algumas concepes de hege-monia aceitas por Fairclough (2008, p. 122):

    a. tanto liderana como exerccio do poder em vrios domnios de umasociedade (econmico, poltico, cultural e ideolgico).

    b. , tambm, a manifestao do poder de uma das classes economicamentedefinidas como fundamentais em aliana com outras foras sociais sobre asociedade como um todo, porm nunca alcanando, seno parcial e tem-porariamente, um equilbrio instvel.

    c. , ainda, a construo de alianas e integrao atravs de concesses(mais do que a dominao de classes subalternas).

    d. , finalmente, um foco de luta constante sobre aspectos de maior volubi-lidade entre classes (e blocos), a fim de construir, manter ou, mesmo, afim de romper alianas e relaes de dominao e subordinao que as-sumem configuraes econmicas, polticas e ideolgicas.

    Ideologia, a partir dessa viso de hegemonia, uma concepodo mundo que est implicitamente manifesta na arte, no direito, na ativi-dade econmica e nas manifestaes da vida individual e coletiva(GRAMSCI apudFAIRCLOUGH, 2008, p. 123). A produo, a distribu-

    io e o consumo de textos so, em verdade, um dos enfoques da luta he-gemnica que contribui, em diferentes graus, para a reproduo ou atransformao da ordem de discurso e das relaes sociais e assimtricasexistentes.

    Hegemonia, em resumo, o domnio baseado no consenso, naconcesso que grupos poderosos fazem a grupos menores, a fim de nodesestabilizar o poder.

    O discurso vem a ser a grande fora utilizada para naturalizar pr-

    ticas sociais hegemnicas, pois ele tem a fora de naturalizar condiesadversas ou discrepantes socialmente em algo aceito sem questionamen-to. Van Dijk (2008, p. 21) afirma que A iluso de liberdade e diversida-de pode ser uma das melhores maneiras de produzir a hegemonia ideol-gica que servir aos interesses dos poderes dominantes na sociedade".

    2.2. Metodologia em anlise crtica do discurso

    A anlise crtica do discurso uma disciplina que dialoga com a

    Lingustica e a Cincia Social Crtica e constitui um modelo terico-

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    metodolgico aberto a pesquisas de diversas prticas na vida social. Con-forme Pedro (1998, p. 26). a ACD procura centrar-se na anlise das es-tratgias discursivas que legitimam o controle, que naturalizam a ordem

    social e, especialmente, as relaes de desigualdade.Por isso, as anlises empricas em ACD devem movimentar-se en-

    tre o lingustico e o social, pois esta considera o discurso como uma for-ma de prtica social, ou seja, como um modo de ao sobre o mundo e asociedade, apontando para as mudanas sociais contemporneas e as pr-ticas emancipatrias. Isto justifica por que pesquisa, nesse campo, requeruma viso cientfica de crtica social a fim de prover base cientfica paraum questionamento crtico da prtica social (RESENDE; RAMALHO,2004).

    Por isso que fundamentam suas pesquisas na anlise crtica dodiscurso orientam para que os mtodos utilizados sirvam para vincular ateoria com a observao. Seus mtodos indicam as vias seguidas ou quesero seguidas pela investigao. Pelo fato de os investigadores seguiremvrios enfoques, a metodologia adotada, como no poderia deixar de ser,seguir, tambm, vrios caminhos, de acordo com os enfoques ressalta-dos. Segundo Meyer (2003), necessrio que a ACD mantenha, continu-amente, uma retroalimentao entre a anlise e a recolhida de dados. Por

    isso, a seleo de dados no se encerra quando do incio da anlise, aocontrrio, o analista, diante de um fato novo, buscar, em sua fonte dedados, exemplos que possam confirmar o que foi encontrado. O que po-deria gerar uma anlise infinita controlado pelo recorte estabelecido pa-ra a pesquisa. Assim, a coleta de dados passa a ser uma fase, ou melhor,um processo permanentemente operativo. Isto por que trabalhos em ACDno delimitam as diferenas entre teoria, descrio e aplicao.

    Dentre seus campos de pesquisa, esto: mdia, enquadramentoprofissional, contextos burocrticos, burocratizao e tecnologizao da

    linguagem, literatura, discursos legais, mdico, da cincia, da economia,racismo, discriminao com base no sexo, desvantagem educativa, situa-es multitnica, entre outros.

    2. Democratizao, tecnologizao e comodificao: as tendnciascontemporneas do discurso

    Novas prticas de linguagem esto emergindo nos mais variadoscampos da vida social. De acordo com Fairclough (2008), as mudanas

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    na prtica social so inicialmente marcadas no plano da linguagem pelasmudanas no sistema de gneros discursivos. Uma sociedade ou institui-o particular tem uma configurao particular de gneros com relaes

    particulares entre eles, constituindo um sistema. Dessa forma, quando osgneros sofrem mudanas, isso acaba alterando as relaes entre eles, econsequentemente, o seu sistema.

    Para o autor, as trs tendncias que tm afetado o discurso nas so-ciedades contemporneas so: a democratizao, a comodificao e atecnologizao. As duas primeiras referem-se a mudanas efetivas nasprticas discursivas, enquanto a terceira, a tecnologizao do discurso, uma tendncia de mudana nas ordens de discurso que sugere uma inter-veno consciente nas prticas discursivas, fator significativo na produ-

    o de transformaes sociais.

    Destaca ainda, o referido autor, que as tendncias interagem entresi nos processos de luta hegemnica sobre a estrutura das ordens de dis-curso, causando um impacto notvel sobre diversas ordens de discursocontemporneas e projetando rearticulaes.

    Fairclough (2008) desenvolveu anlises de publicidade referenteao ensino superior para ilustrar esses processos. Os resultados mostramuma mudana nas tecnologias discursivas empregadas, fundamentadas

    em posicionamentos discursivos que revelam a construo do leitor comoconsumidor de um produto.

    Essa tendncia neoliberal e globalizada tambm tem causado mu-danas que afetam as prticas religiosas, contribuindo para uma nova vi-so de religio, associando-a aos princpios mercadolgicos de produoe rentabilidade, introduzindo nas instituies religiosas a lgica da com-petio e concorrncia no mercado.

    Escolhemos como objeto de anlise o discurso institucional da I-

    greja Universal do Reino de Deus, entidade pblica religiosa, em virtudede ela nos parecer um exemplo caracterstico de estrutura empresarial-eclesistica na atualidade. O corpus para anlise constitudo por teste-munhos publicados na seo Superao do jornal Folha Universal em2008. Para entendermos melhor os trs processos vejamos como eles soconceituados e como se realizam neste corpus.

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    3.1 Democratizao do discurso: a eliminao simulada demarcadores explcitos de poder

    As transformaes ocorridas nas ltimas dcadas, aceleradas pe-los avanos na tecnologia nos meios de comunicao, nos modos deproduo e na natureza das organizaes produziram a necessidade deuma nova linguagem. De modo geral, o discurso formal vem sendo subs-titudo pelo informal.

    Para Fairclough (2008), essa tendncia ao discurso conversacional resultado do processo de democratizao em todas as esferas da ativi-dade humana. O autor entende como democratizao do discurso, a re-duo de marcadores explcitos de assimetria de poder entre pessoas com

    poder institucional desigual professores e alunos, gerentes e trabalha-dores, pais e filhos, mdicos e pacientes , que evidente numa diversi-dade de domnios institucionais (FAIRCLOUGH 2008, p. 129).

    Em sua pesquisa, o linguista britnico analisa cinco reas de de-mocratizao discursiva: relaes entre lnguas e dialetos sociais; acessoa tipos de discurso de prestgio; eliminao de marcadores explcitos depoder em tipos de discurso institucionais com relaes desiguais de po-der; tendncia informalidade das lnguas, e mudanas nas prticas refe-rentes ao gnero na linguagem. Em nosso trabalho destacaremos a retira-

    da de marcadores explcitos de poder em tipos de discurso institucionaiscom relaes desiguais de poder.

    Essa tendncia de eliminar marcadores explcitos de poder, enfati-za o autor, est intimamente ligada informalidade, cuja importncia temsido bastante acentuada pelos valores culturais contemporneos. Ele a-firma: nos tipos mais formais de situao que as assimetrias de poder estatus so as mais ntidas (FAIRCLOUGH, 2008, p. 251). A forma co-mo o discurso conversacional est sendo projetado do seu domnio pri-

    vado para a esfera pblica uma manifestao clara de informalidade.Destaca ainda que a conversao est colonizando a mdia, vrios tiposde discurso profissional/ pblico, educacional e outros.

    A mudana na relao entre discurso falado e escrito d a dimen-so dessa manifestao de informalidade. Percebemos essa mudana re-ferente conversao no s em todas as partes da mdia impressa, mastambm nos meios eletrnicos como rdio e televiso. Com isso cresce onmero de programas de entrevistas e de apresentadores que conversamcom seus ouvintes como se estivessem batendo um papo com amigos.

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    Reportagens de jornais simulam o discurso conversacional. Observemosa chamada da seo Superao.

    TODA SEMANA VOCVAI ACOMPANHAR,AQUI,HISTRIAS EMOCIONANTES E DRAMTICAS

    DE QUEM ENFRENTOU E VENCEU DESAFIOS.

    A personalizao dos leitores (voc), e a direo individualizada afiis potenciais (voc e no vocs), simulam uma relao conversacionale, portanto, relativamente pessoal, informal, ntima, solidria e igual en-tre a instituio (Folha Universal/Igreja Universal) e o leitor, a quem eladeseja persuadir. Desse modo, com o uso do pronome voc, o locutor

    encena um dilogo com o leitor e o convida para ler a seo todas as se-manas.

    A referncia direta usada convencionalmente como marcador deinformalidade na publicidade moderna. A esse respeito Fairclough(2008) afirma que os textos comodificados, construdos sobre modelosde publicidade, manifestam comumente aspectos democratizantes como ainformalidade e o discurso conversacional.

    Porm, Fairclough (2008) ressalta que essa retirada funciona ape-

    nas como uma maquiagem e mostra sua preocupao com a eliminaode marcadores explcitos de hierarquia e assimetria de poder em tipos dediscurso institucional nos quais as relaes de poder so desiguais. Naspalavras do autor, detentores de poder e sentinelas de vrios tipos es-to simplesmente substituindo mecanismos explcitos de controle pormecanismos encobertos (FAIRCLOUGH, 2008, p. 251).

    Corroborando e ampliando essa ideia, Carvalho (2002, p. 17) a-firma que o discurso [da propaganda] e da publicidade um dos instru-

    mentos de controle social e, para realizar esta funo, simula igualitaris-mo, remove da estrutura de superfcie os indicadores de autoridade e po-der, substituindo-os pela linguagem da seduo.

    Esses traos textuais marcam uma mudana histrica importantena natureza e nos objetivos dos testemunhos religiosos alinhada com asmudanas maiores da religio crist: a colonizao do discurso religiosopelo discurso de mercado. O mercado opera no sentido de cooptar ocampo da religio para a reproduo dos seus interesses, exercendo assimo papel de reproduo e legitimao do modo de produo e da ideologia

    dominante.

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    Nessa perspectiva, as leis da religio passam a praticar o idiomada mercadoria e a submeter tudo a essa engrenagem mercantilizadora. Apublicidade, por sua vez, portadora dos interesses do capital, pressiona a

    religio a operar na mesma lgica, submete-a as mesmas regras e valores.Num primeiro momento, o evangelho vira mercadoria, oferecido em out-doors, faixas, propagandas e outras formas de mdia. Num segundo mo-mento a f vira mercadoria, que submete seu valor de uso ao valor detroca. E num momento final, os prprios fiis viram mercadorias, atravsdas notcias, dos testemunhos.

    Ento, podemos afirmar que, nos casos analisados, h uma esp-cie de democratizao relacionada a um sentido hegemnico, que acabapor participar da manuteno ou mudana dos valores, das crenas, da

    prtica social.

    3.2 Tecnologizao do discurso: a mudana discursiva comoresultado de um processo consciente

    O termo tecnologias discursivas, adotado por Fairclough (2008),foi adaptado da anlise de Foucault sobre as tecnologias e tcnicas li-gadas ao biopoder moderno, e a tecnologizao do discurso como ca-

    ractersticas de ordens de discurso modernas, ao se referir a uma das ten-dncias de produo de mudana discursiva.

    Norman Fairclough (2008, p. 264) chama de tecnologizao dodiscurso um conjunto de tcnicas que so usados estrategicamente parater efeitos particulares sobre o pblico. Tendncia das sociedades mo-dernas, essas tcnicas tm sido cada vez mais utilizadas por um grupode pessoas detentoras de habilidades especiais, geralmente especialis-tas no manejo da linguagem, das tcnicas lingusticas, de conhecimentossobre a sociedade e seu funcionamento, na tentativa frequente de controle

    sobre a vida das pessoas.O terico britnico (2008, p. 90) listou cinco caractersticas da

    tecnologizao do discurso: 1. O surgimento de peritos em tecnologiado discurso; 2. Uma mudana no policiamento das prticas discursi-vas; 3. Concepo e projeo de tcnicas discursivas descontextualiza-das; 4. Simulao discursiva com fundamentos estratgicos; 5. Pressono sentido de uniformizar as prticas discursivas. Ele diz:

    As tecnologias discursivas estabelecem uma ligao ntima entre o conhe-

    cimento sobre linguagem e discurso e poder. Elas so planejadas e aperfeioa-

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    das com base nos efeitos antecipados mesmo nos mais apurados detalhes deescolhas lingusticas no vocabulrio, na gramtica, na entonao, na organiza-o do dilogo, entre outros, como tambm a expresso facial, o gesto, a pos-tura e os movimentos corporais. Elas produzem mudana discursiva mediante

    um planejamento consciente. Isso implica acesso de parte dos tecnlogos aoconhecimento psicolgico e sociolgico (FAIRCLOUGH, 2008, p. 265).

    Caracterizadas como uma forma de poder, como instrumentos depoliciamento e dominao das prticas discursivas, as tecnologias discur-sivas esto avanando para locais institucionais especficos, onde soconscientemente cuidadas, planejadas e aperfeioadas por especialistaspara atender s exigncias institucionais na transmisso das tcnicas. Osespecialistas ou tecnlogos tm acesso ao conhecimento sobre a lingua-gem e o discurso que moldam as prticas discursivas institucionais.

    Fairclough (2008, p. 264) afirma que a entrevista, o ensino, o a-conselhamento e a publicidade so tcnicas transcontextuais que soconsideradas como recursos ou conjunto de instrumentos que podem serusados para perseguir uma variedade ampla de estratgias em muitos ediversos contextos.

    A mdia (recursos tecnolgicos ligados comunicao) o espaoideal para a tecnologizao dos discursos das igrejas neopentecostais. A-travs dos meios de comunicao de massa, espao que abriga profissio-

    nais aptos e especialistas em tcnicas persuasivas, que so publicizadosos discursos comodificados das instituies religiosas.

    A produo discursiva miditica evanglico neopentecostal vemse caracterizando atravs da capacidade de despertar desejos. Em relao ideia de seduo, Fairclough (2008), citando a obra de Habermas(1984), destaca a colonizao do mundo pelos sistemas da economia edo Estado, o que provocaria um deslocamento de usos comunicativosda linguagem (...) por usos estratgicos da linguagem orientados parao sucesso, para conseguir que as pessoas realizem coisas (FAIRCLOU-GH, 2008, p. 24).

    No podemos deixar de observar que a IURD, enquanto institui-o religiosa, investe nessas tecnologias discursivas, usando uma gamade estratgias. Para ser mais eficaz naquilo que prope, convencer os fi-is dos eficientes servios e produtos, a IURD aperfeioou sua tcnica deoratria contratando jornalistas e profissionais da rea de marketing. Es-ses profissionais usam tcnicas cada vez mais aprimoradas para conven-cer da capacidade que a prpria IURD tem de resolver todos os males da

    face da Terra. Giddens (1991) utiliza o termo peritos quando se refere

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    aos profissionais das igrejas que so pagos pelo trabalho de mediao en-tre o fiel e Deus, espcie de psicoterapeutas que proveem as pessoas daschaves compreensivas de suas dificuldades.

    Como ressaltamos anteriormente, o sucesso profissional e os ga-nhos materiais so temas recorrentes nos testemunhos publicados na se-o Superao. Essa estratgia discursiva de seduo fica bem evidenci-ada nos exemplos abaixo.

    Ttulo: A pobreza tentou apagar meu sonho

    [...]

    Atribuo nosso sucesso profissional aos propsitos de f que sempre par-ticipamos na IURD. Alm do consultrio, o casal alcanou outra vitria: o

    nascimento do filho. (Edio 832, 16/03/2008)

    Ttulo: Determinao essencial para o sucesso

    Subttulo: Mergulhado em dvidas, mdico encontra o verdadeirocaminho para os objetivos

    [...]

    Hoje, ele proprietrio de centros clnicos nos municpios de So Gona-lo, Itabora e Araruama, no interior do Rio de Janeiro, e de um consultrio

    prprio na capital, oferecendo servios em diversas reas mdicas, contandocom uma equipe de aproximadamente 30 especialistas. (Edio 837,20/04/2008)

    Ttulo: Ideia redentora

    Subttulo: Aps duas falncias e muitas derrotas, empresria faz su-cesso em outros pases

    Superamos as duas falncias que tivemos e as derrotas se tornaram con-quistas, conta.

    Tais resultados satisfatrios, segundo Selma, foram alcanados aps par-ticipar do propsito da Fogueira Santa (campanha realizada na IURD), do qualela faz questo de no ficar de fora at os dias de hoje. A cada Fogueira San-ta, Deus me d novas inspiraes. Recentemente, adquiri um salo de beleza eesttica num dos bairros de alto nvel de Curitiba, relata. (Edio 858,22/09/2008)

    Nos fragmentos selecionados acima, o sucesso profissional e aprosperidade financeira detm importante centralidade. Os exemploscomprovam os propsitos comunicativos tecnologizados dos editores e

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    evidenciam a lgica eminentemente capitalista que procura contextuali-zar a f ao mercado consumidor.

    Constatamos, portanto, que a tecnologizao do discurso tem pro-vocado mudanas no discurso religioso, por meio de mudanas nas or-dens de discurso das instituies e na configurao e articulao de no-vos gneros discursivos, como o caso do testemunho miditico, contex-to da nossa pesquisa. Nesse caso, a mudana discursiva planejada emdetalhes, estrategicamente, para atingir objetivos predeterminados.

    3.3 Comodificao: o discurso mercantilizado e marketizadoda religio

    Alm de poder classific-los na tendncia de democratizao etecnologizao, possvel vislumbrar outra tendncia na superfcie dostextos analisados: a comodificao.

    Segundo Fairclough (2008), a comodificao um processo quese configura na organizao de domnios sociais diversos cujo alvo no a produo de bens de consumo em estruturas de produo, distribui-o e consumo: discursos associados com a produo de bens de consu-mo colonizam outros discursos institucionais.

    O exemplo de comodificao que o autor apresenta o discursoeducacional que oferece cursos vendidos pela publicidade. Tal como aeducao, os produtos e servios religiosos seriam apenas um deuma srie de domnios cujas ordens de discurso so colonizadas pelo g-nero publicitrio. O resultado uma proliferao de textos que conjugamaspectos de publicidade com aspectos de outros gneros de discurso.

    O foco nesta seo a intergenericidade: a emergncia de um dis-curso hbrido de depoimento-e-publicidade e segue um modelo de anlise

    tomado de Fairclough (2008). Pode-se destacar, de acordo com esse au-tor, que as mudanas na prtica social so marcadas no plano da lingua-gem pelas mudanas no sistema de gnero discursivo. A anlise intertex-tual e interdiscursiva do gnero discursivo fundamental para o estudodo aspecto hbrido dos gneros discursivos. Na concepo de Fairclough(2008), o aparecimento de novos gneros e a transformao dos j exis-tentes esto relacionados com mudanas discursivas mais amplas na so-ciedade contempornea. Essa uma tendncia comodificao do dis-curso que explica o carter hbrido, interdiscursivo do gnero discursivo

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    testemunho religioso em mdia impressa que composto por configura-es de diferentes gneros e discursos.

    At aqui temos nomeado nosso objeto de anlise de gnero teste-munho religioso em mdia impressa, para fazer distino do testemunhoreligioso veiculado na mdia no impressa (radiofnica, televisiva e ou-tras). A recente evoluo dos testemunhos um reflexo das pressessofridas pelas igrejas no sentido de se adequarem s condies do merca-do vendendo os seus cultos e fazendo uso de tcnicas discursivasprovenientes da rea da publicidade. Algumas das mudanas j efetuadasrefletem-se na aparncia fsica dos testemunhos: uma configurao detexto multimodal, utilizando vrias linguagens ou semioses a verbal, aimagtica, as cores etc.

    Tradicionalmente o testemunho consistia no relato de algumabeno alcanada. Continha, portanto, informaes relativas ao problemaenfrentado pelo depoente e a sua soluo. O objetivo era a glorificaodo nome de Deus. No modelo comodificado, o objetivo seria divulgaruma marca (instituio) e vender seus produtos.

    Trata-se, portanto, de um tipo de texto jornalstico com proprieda-des publicitrias, ou seja, expe um fato, relata um acontecimento comintenes explcitas de promoo mercantil. Embora o testemunho publi-

    cado na seo Superao tenha um funcionamento lingustico-discursivoe formal do que seja uma linguagem jornalstica (ttulo, subttulo, lead,relato de um fato), utiliza a linguagem marquetizada da persuaso, carre-gando a ideia de promoo mercantil.

    Constatamos, portanto, que tal gnero discursivo, de maneira su-til, incita os leitores a um estilo de vida, despertando neles antes uma ne-cessidade ou desejo de ter algo. Assim, o espao para o depoimento dosfiis deixa de ser um simples relato e passa a ser persuasivo, mercan-

    tilista.O fato que o produto ou servio veiculado sob cone de um de-

    poimento (ACONTECEU COMIGO), no espao editorial, ter mais cre-dibilidade e legitimidade perante os leitores do testemunho. Assim, po-demos dizer que o gnero discursivo testemunho religioso em mdia im-

    pressa tem como propsito comunicativo divulgar algum produto ou ser-vio, no caso especfico, a prpria IURD e seus produtos (Fogueira Santade Israel) aproveitando-se do espao editorial e de algumas propriedadesda linguagem jornalstica, com intenes explcitas de promoo mercan-

    til. Portanto, a funo comunicativa deste gnero hbrida: informa para

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    vender e vende para informar. Essa dubiedade confere ao depoimen-to/produto uma nova forma de ao e interao com o pblico, desper-tando o desejo pelo produto/servio anunciado, impelindo o lei-

    tor/consumidor ao. Dessa forma, vinculado a um acontecimento, otestemunho-publici-dade passa a estimular as necessidades e interessesdo leitor/consu-midor, tendo como argumento vantagens, benefcios,como pode ser verificado no exemplo:

    Vida sem dvidas [manchete]

    Casal sofre fracasso financeiro mas participa de propsitos e recupera asperdas

    Por Ana Carolina Sousa

    [email protected]

    So inmeros os motivos que levam uma pessoa Igreja Universal doReino de Deus. Um deles o fracasso na vida financeira. Foi o que aconteceu,por exemplo, com Marlene Jos Cabral Soares e lcio Aparecido Soares, am-bos de 37 anos. (FATO, ACONTECIMENTO) Quando o casal de trabalhado-res autnomos chegou IURD (PRODUTO) no possua nada alm de dvi-das. Marlene relembra aquele momento difcil da vida:

    Trabalhvamos muito e no crescamos. Morvamos de favor em apenasdois cmodos e nossos filhos adoeciam constantemente. Com isso, o poucodinheiro que entrava era gasto com mdicos e remdios. Nosso casamentotambm estava desgastado por brigas e traies.

    A mudana aconteceu quando chegaram IURD (PRODUTO). Aprende-ram sobre a importncia do dzimo e participaram de campanhas e propsitos(PRODUTOS). Hoje, a famlia comemora o casamento feliz, os filhos saud-veis e a prspera vida financeira. Somos muito abenoados em todos os sen-tidos. Nossa famlia unida e no temos doenas. Conquistamos quatro cami-nhes, pois trabalhamos com comrcio de frutas. Temos casa prpria, um lotee carro de passeio, conclui Marlene. (EDIO 852, 8/08/2008, destaquesnossos)

    Como se pode observar, o texto acima apresenta uma configura-o hbrida: insere-se no espao editorial Superao, tendo a temtica daf, como pano de fundo, para divulgar os produtos da IURD, que trans-forma a vida das pessoas. Para tanto, de forma direta, divulga os benef-cios e vantagens do produto IURD, por meio de um texto jornalstico.

    Percebemos no exemplo que o texto traz uma estrutura jornalsti-ca: ttulo Vida sem dvidas (frase curta para chamar a ateno), atribui-o de voz a um dos personagens (Marlene Jos Cabral Soares e lcio

    Aparecido Soares), assinatura (por Ana Carolina Sousa reda-

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    [email protected]), enfatizando a responsabilidade do jornalis-ta, e foto-legenda. O texto traz informaes acerca dos fiis, mas procura,neste cenrio informativo, divulgar produtos oferecidos pela IURD.

    Embora veiculadas no espao para o depoimento do fiel, no e-xemplo fica evidenciado a promoo de produtos ou servios, como a di-vulgao das campanhas oferecidas pela IURD e suas vantagens e bene-fcios, despertando o interesse do pblico leitor/consumidor.

    Brown (1971) afirma que a propaganda, ou a publicidade, usa al-guns esquemas bsicos a fim de obter o convencimento dos receptores,dentre os quais destacarei dois: a criao de inimigos (o discurso persua-sivo costuma criar inimigos) e o apelo autoridade (o discurso persuasi-

    vo chama algum que valide o que est sendo afirmado).Em relao ao primeiro, as narrativas dos testemunhos revela mui-

    to bem esta questo. A IURD se justifica contra algo: a derrota em suasmais diferentes reas da vida. Antes de chegar IURD, a pessoa est fa-lida, deprimida, desenganada etc.

    Os elementos apresentados acima convergem para certas conota-es que se encontram no eixo combate-triunfo. Ou seja, as pessoas en-contram uma arma para vencer os seus inimigos: a IURD. O resultado da

    vitria o aumento do prestgio social, a paz e harmonia completa nafamlia, a ausncia total de doenas e vcios.

    Trouxemos outro exemplo (o nmero das frases foi acrescentadopor ns). O texto ocupa um quarto de uma pgina do jornal, o resto o-cupado por duas fotos (com legendas que remetem matria interna) on-de uma senhora aparece sorridente num escritrio e na outra pousa entredois carros novos em frente a uma garagem.

    Na legenda da primeira o destaque em negrito CONQUISTA:

    Representao da marca de perfumes onde Izilda recebe distribuidores,na segunda sobressai: CARROS: Bnos conquistadas atravs da Fo-gueira Santa.

    [Ttulo]: Eu venci a pobreza

    [Subttulo] Empresria d a volta por cima depois de conviver com afalta de dinheiro.

    A empresria Izilda de Oliveira Bandeira, de 50 anos, passou por muitasdificuldades antes de chegar IURD [1]. Meu marido sempre trabalhou, mas,em uma determinada poca, ficou desempregado, o que desestruturou a nossa

    vida, inclusive o nosso casamento, conta [2]. Com dois filhos pequenos e a

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    casa para cuidar, Izilda diz que ficava angustiada diante da situao [3]. Che-gamos a depender de favor e de emprstimos de familiares para sobreviver[4]. Embora morssemos em casa prpria, era inacabada, por conta das prec-rias condies financeiras, relata, acrescentando que, no bastassem tantos

    problemas, os filhos viviam doentes, e isso gerava gastos tambm com rem-dios [5]. Sem dormir direito, a empresria lembra que, durante as madrugadas,assistia programao da IURD pela televiso, o que despertou o interesse de-la em buscar ajuda [5]. Fui Igreja e l aprendi a lutar, agir minha f e, acimade tudo, obedecer a Deus totalmente [6]. Tomei conhecimento da FogueiraSanta de Israel um propsito de f da Igreja e me lancei de corpo, alma eesprito, diz, salientando que, de l para c, a vida dela nunca mais foi amesma, seno de vitrias [7]. Hoje, Izilda proprietria de uma marca de per-fumes, com escritrio prprio de representao em Santo Andr, no ABC Pau-lista. Segundo ela, a marca foi criada e estruturada a partir de uma inspiraoconcedida por Deus [8]. Pagamos as dvidas, no dependemos mais de nin-gum e temos tudo do bom e do melhor, inclusive automveis zero quilme-tro, uma casa ampla e confortvel e um belo apartamento na praia da Enseada,regio nobre do Guaruj, litoral de So Paulo, testemunha [9]. (Edio 843 01/06/2008, p. 2i).

    O exemplo apresenta o depoimento de uma usuria (cliente) daIURD e, ao mesmo tempo, tenta vende-la. O texto apresenta de formapadronizada uma alternncia no nvel da frase entre tipos de discurso dedepoimento e de publicidade. Por exemplo, a manchete (em caixa alta,tamanho de letras bem maiores, em negrito) EU VENCI A POBREZAentre aspas, possui caractersticas de um testemunho pessoal, j a conti-nuao da mesma manchete, empresria d a volta por cima depois deconviver com a falta de dinheiro parece um anncio de uma instituiofinanceira, ou de uma gerenciadora de loteria.

    No exemplo, o programa de televiso da igreja mencionado co-mo o grande responsvel pelo incio da transformao na vida da pessoa:sem dormir direito, a empresria lembra que, durante as madrugadas,

    assistia programao da IURD (frase (5)). Outras, como (6), (7) e (8)so muito claramente atribuveis ao discurso publicitrio. Assim, a repor-

    tagem acaba por se assemelhar a uma pea publicitria sobre a IURD.Alm disso, ao analisar as imagens, tambm possvel verificar a suacapacidade de simular um estilo de vida, criando um mundo que consu-midores potenciais, produtores e produtos podem conjuntamente ocupar.

    A mescla de informaes sobre o depoimento e publicidade podeser interpretada como um modo de reagir ao dilema que instituies co-mo igrejas enfrentam no mercado moderno. Segundo Fairclough (2008,p. 151), setores da economia fora da produo de bens de consumo es-to, de modo crescente, sendo arrastados para o modelo dos bens de con-

    sumo e para a matriz do consumismo, e esto sob presso para 'empaco-

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    tar' suas atividades como bens de consumo e 'vend-las' aos 'consumido-res'.

    A comodificao, de acordo com o autor supracitado, no umprocesso particularmente novo, mas recentemente ganhou fora e inten-sidade como um aspecto da cultura empresarial. Observa-se que essacultura vem se concretizando cada vez com maior fora no campo religi-oso, medida que os fiis passam a ser vistos como clientes. Isso temfeito com que as instituies religiosas se tornem cada vez mais atrativas,e seus servios precisam agradar cada vez mais os consumidores, acir-rando a concorrncia no mercado religioso cada vez mais. No intuito deatrair uma determinada clientela, as instituies tendem a mostrar quea religio pode ser algo lucrativo, bastando que os fiis frequentem regu-

    larmente a igreja, que se vende atravs do discurso marketizado comouma instituio diferenciada, e contribua financeiramente.

    Assim, as pessoas so atradas para os templos, catedrais da fcomo so chamadas, (verdadeiros shopping centers da f) com a promes-sa de algum ganho, seja ele de carter fsico, emocional ou financeiro.Com isso at mesmo a f tem se transformado em um bem de consu-mo, um objeto de leilo: leva quem d o maior lance. Ou um tipo de t-tulo de capitalizao celestial: sua oferta rende juros e correo monet-

    ria e se tiver sorte alguns prmios extras, do tipo: carros importados, a-partamentos na praia, stios e fazendas, e uma empresa, claro.

    Ainda segundo Fairclough (2008, p. 151), textos do tipo infor-mao e publicidade ou falar e vender so comuns em vrias ordens dediscurso institucionais na sociedade contempornea. Eles testemunhamum movimento colonizador da publicidade do domnio do mercado debens de consumo, num sentido estrito, para uma variedade de outros do-mnios.

    No testemunho religioso miditico a fala do testemunhante, inse-rida num contexto jornalstico, tem como principal objetivo vender oproduto IURD. Para incrementar um trabalho provocativo e sensaciona-lista, recursos estratgicos com frmulas grficas so utilizados pelos e-ditores do jornal Folha Universal para provocar reaes emocionais e as-sim atrair a ateno do leitor, seguindo princpios bsicos de toda propa-ganda: persuadir.

    O sucesso editorial depende de uma boa composio da pgina.Por isso, a seo Superao formada de um texto escrito mais uma ou

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    at duas fotografias que chegam a ocupar mais da metade de todo o seuespao.

    A reportagem da edio publicada pela Folha Universal em 15 dejunho de 2008 na pgina 2i de seu caderno Folha IURD um exemplo. Aprimeira foto traz como legenda: CONQUISTA: Depois de tomar co-nhecimento do poder de Deus, Alcimnio usou a f, deixou a vida dederrotas e conquistou muitas vitrias.

    Apresenta, no primeiro plano, um senhor de meia idade, em p,provavelmente em frente a sua casa. Seu corpo est ereto e ele olha dire-tamente para a lente da cmera que o fotografa. Em segundo plano, ve-mos uma grande piscina, uma casa bem construda, um sobrado com jar-

    dim. Temos a elementos que compem o espao em que o testemunhan-te se insere. A segunda fotografia, que ocupa um espao bem menor,mostra o ptio de uma empresa de siderurgia, com a seguinte legenda:NEGCIOS: Empresrio investe no ramo de siderurgia em cincoestados. As imagens em questo, em harmonia com o ttulo da reporta-gem e a legenda das fotos, deixam pressuposto que o empresrio citadona reportagem adquiriu aqueles bens (manso, empresa) como resultadode sua participao na campanha da Fogueira Santa.

    Para alguns analistas, o discurso neoliberal da IURD est fazendo

    com que os fiis se tornem homens econmicos. No s com relaoao sagrado, mas tambm em suas vidas profanas. No mbito do sagrado,eles negociam com a Divindade, e do profano, eles so vigorosos con-sumidores (CAMPOS, 1997). Os fiis, considerados como consumido-res, optam pelos produtos da cesta e enchem seus carrinhos de compra.

    Campos (1999, p. 358) afirma:

    Nos templos da IURD, os consumidores religiosos escolhem aqueles pro-dutos que mais se relacionam com suas necessidades e arquiteturaram em suaprpria cabea o produto desejado, conforme as suas aspiraes. Isto , a Igre-

    ja Universal oferece um Kitcontendo os ingredientes de um produto retraba-lhado no imaginrio do consumidor. O preo a ser pago para a satisfaodos desejos na IURD monetarizado. Da a importncia em sua pregao detemas como sacrifcio do dinheiro, ofertas de amor, pois dar o dzimo candidatar-se a receber bnos sem medida, repete o fundador.

    Podemos tambm enxergar no discurso miditico, alm dos benssimblicos que toda religio acaba por oferecer, a oferta de bens materi-ais de consumo em ampla escala. Neste caso, o discurso religioso assumevisivelmente os ares do discurso mercadolgico, ambos se caracterizando

    na forma de discursos de poder, j que eles no ocorrem fora dos meios

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    de comunicao, e, para isso, o discurso religioso comea a incorporaroutros domnios discursivos que so peculiares aos anseios dos especta-dores. Prega-se o que os consumidores-alvo anseiam. Promete-se o que os

    clientes potenciais precisam.Analisando a proposta de marketing da Igreja Universal, Campos

    (1997, p. 224) observou que: Cada produto iurdiano, embora faa partede uma famlia de produtos, uma espcie de iceberg que aponta parauma viso de mundo, consubstanciada num grupo de ideias centradas aoredor da expresso Cristo salva, cura, faz prosperar os que o aceitam naIgreja Universal do Reino de Deus.

    Dentre os servios, uma espcie de cesta bsica da f, esto a-

    queles que envolvem as emoes (terapia do amor), intelectuais e finan-ceiros. A maioria deles requer a participao constante nos cultos e umacontrapartida: o sacrifcio ou seja, dinheiro. Se os fiis esto com pro-blemas financeiros, so convencidos a agir a f, ou seja, doar mais doque podem, e at mesmo o que no tem, para que a vida sofra uma revi-ravolta. o caso da campanha Fogueira Santa de Israel.

    3. Semntica global: teoria e prticaApresentamos, neste tpico, os pressupostos desenvolvidos por

    Maingueneau (2007) em Gnese dos discursos sobre a semntica glo-bal, especificamente, sobre o primado do interdiscurso e a polmica co-mo interincompreenso, para assim demonstrarmos outra possibilidade aanlise discursiva convergente com o modelo Tridimensional de Fair-clough (2008). As anlises propostas nesta seo trazem discursos de do-centes em formao na rea de Letras e a temtica restrita abordada oensino de lngua portuguesa na Educao Bsica.

    3.1.A proposta de anlise de Fairclough e os elos com a Semn-tica Global

    O sistema de regras de boa formao semntica do discurso dizrespeito s restries de semnticas globais que sero detalhadas mais a-diante nesse trabalho. Esses traos semnticos que restringem, ao mesmotempo, todos os planos discursivos: vocabulrio, temas tratados, intertex-tualidade, instncias de enunciao. Esses traos funcionam como marcasnos textos que se filiam a um determinado discurso. Essa viso macro e

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    microlingustica dos discursos tem tambm aporte terico no modelo deanlise de Norman Fairclough (2008), que ser tomado aqui como umaadio s anlises de Maingueneau (2007), para abarcar o estudo do in-

    terdiscurso.Para Fairclough (2008), cada caso discursivo tem trs dimenses

    ou facetas, que esto interligados, mas analiticamente separveis: umalngua falada ou escrita texto; um exemplo de discurso prticas envol-vendo a produo e interpretao de texto; E uma pea de prtica soci-al.

    Dessa proposta depreende-se que h trs nveis mtodo da anlise do dis-curso: o mtodo da anlise do discurso inclui descrio lingustica da lnguatexto, a interpretao da relao entre o (produtivo e interpretativos) processos

    discursivos e de texto, e explicao da relao entre os processos discursivos eos processos sociais. (FAIRCLOUGH, 2008, p. 97)

    Quando usa o termo discurso o autor considera o uso da lingua-gem como forma de prtica social e no como pura atividade individual,o discurso no s um modo de ao sobre o mundo, mas tambm ummodo de representao:

    I O ensino de lngua materna deve ser ministrado sob a tica da umaprtica educativa3, respeitando as variaes lingusticas, haja vista que o ho-mem produto social (...) papel da escola propiciar ao estudante de lngua

    materna uma orientao acerca das oportunidades que um falante da normaculta ter, principalmente numa sociedade estratificada.

    II fundamental que os alunos tenham certo domnio de sua prprialinguagem, para que no ocorra discriminao sociolingustica. importanteque os professores se conscientizem, a procurar melhoria no ensino para mu-dana social.

    Podemos observar nesse discurso de um acadmico de Letras,quando a temtica tratava do ensino de lngua materna. As vozes aqui re-presentadas esto centradas na proposta variacionista de ensino, que re-

    presenta um conjunto de teorias que circulam na Academia. Vocbuloscomo sociedade estratificada, produto social, mudana social, prticaeducativa, variao lingustica remetem a um contexto abarcado peloconjunto poltico de propostas democratizadoras inerentes a modelo se-guido pela ideologia renovadora sobre o ensino de LM, o que no deixade ser um modo de representao e prtica social revelada no discurso.

    3 Os grifos nossos objetivam o direcionamento para as anlises centradas no vocbulo, no tema e na

    intertextualidade categorias relevantes para anlise discursiva pautada pelaSemntica Global

    deMaingueneau (2007).

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    Isso posto, implica relao entre estrutura social e discurso, umacomo causa ou efeito da outra. Para dar conta desse entendimento o autortambm entende interdiscurso como precedente ao discurso. As catego-

    rias intertextualidade e interdiscursividade so bastante exploradas pelaACD, pois ela analisa as relaes de um texto ou um discurso, conside-rando outros que lhe so recorrentes. (PEDROSA, 2008, p. 139)

    O modelo tridimensional de Fairclough (2008) compreende a an-lise textual, a anlise discursiva e a prtica social. Dentro dessas catego-rias, outras subcategorias convergem com a proposta da semntica globalde Maingueneau.

    Conforme Ramalho e Resende (2006), a anlise textual a pri-

    meira dimenso de anlise no modelo tridimensional e caracteriza-se peladescrio lingustica. Dentre as subcategorias tem-se gramtica, coeso,estrutura textual e vocabulrio. Abrimos um parntese, para demonstrareste ltimo como a ponte real entre o modelo de Fairclough e as restri-es globais de Maingueneau.

    Para Fairclough (2008, p. 288), nfase da anlise est nas pala-vras-chave que tm significado cultural geral ou mais local; nas palavrascujos significados so variveis e mutveis; e no significado potencial deuma palavra uma estruturao particular de seus significados como

    um modo de hegemonia e um foco de luta.Esses traos operadores do discurso, pela via do vocabulrio defi-

    nem conjunto de categorias lexicais opostas, j que a luta e a hegemoniaevidenciada pala materialidade lingustica pode ser definida como opera-dores de individuao que de acordo com Brunelli (2008), para cada dis-curso, dois conjuntos de categorias semntica dos vocabulrios aparecemopostas: o conjunto dos semas reivindicados (os semas positivos) e oconjunto de semas rejeitados(os negativos). Nos discursos dos graduan-

    dos em questo, semas do tipo gramtica, regras, erro, lngua tero cargaspositivas ou negativas a partir da posio discursiva do enunciador.

    Veja-se:

    III Deve sempre aproveitar o conhecimento que o aluno j possui e notrabalhar somente com a gramtica normativa, pois essa tem que deixar de serum fim e passar a ser um meio.

    IV Os professores deveriam se desprender mais da gramtica e traba-lhar temas variados, ligados a linguagem.

    V O ensino de Lngua Materna deve no ser somente algo mecnicocomo anda sendo (...) as aulas esto sendo baseadas emregras que so expos-

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    LIVRO DOS MINICURSOS E OFICINAS

    42 Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2010

    tas nagramtica normativa. O que realmente deve ser levado em conta alngua como algo funcional, ou seja, ela serve para ser utilizada de vrias for-mas e o professor como um ser consciente, deveria passar a ensinar a lnguade uma forma no somente tradicional.

    VI O ensino de LP deve ser de forma clara, com muita explicao e defcil entendimento, pois exige muitas regras, e no to fcil entender a ln-gua portuguesa.

    VII bem verdade que o ensino de LP est defasado, as crianas che-gam aos onze anos falando um portugus abaixo da mdia, segundo as normasgramaticais, devido ao convvio com os pais. No basta o professor passar1h20min , quando o aluno chega em casa e ouve grias,palavras incorretas.

    Pelas exploraes semnticas das unidades lexicais e pelo espaodiscursivo que esses exemplos se encontram, tomemos os exemplos para

    motivo de explorao contraditria implcita.Pela posio enunciativa, odiscurso V caracterstico pela posio de um sujeito opositor s ideiaspropostas pela prescrio do ensino tradicional, um sujeito crtico. En-quanto a posio enunciativa no discurso VII traz a prescrio comopremissa para o ensino demonstrando a o que chamamos de semas posi-tivos e negativos na anlise discursiva pautada pela semntica global. EmV, o vocbulo regras um sema negativo, enquanto em VI, ele no apa-rece com tanta negatividade semntica. O que chamamos aqui de negati-vidade uma rejeio e positivo como uma aceitao, uma vez que cada

    discurso repousa, de fato, sobre um conjunto de semas repartidos em doisregistros: de um lado, os semas positivos, reivindicados; de outro, ossemas negativos, rejeitados. A cada posio discursiva se associa umdispositivo que a faz interpretar os enunciados de seu Outro4 traduzindo-as nas categorias do registro negativo de seu prprio sistema. (MAIN-GUENEAU, 2007, p. 103)

    Dentro desse dilogo com o outro, temos o que chamamos de in-terdicurso, que se inscreve na perspectiva da heterogeneidade enunciativapela negao, aceitao, citao, referenciao vocabular, como veremosa seguir.

    3.2.Interdiscurso: pressuposto para anlise discursiva sob a ti-ca da Semntica Global

    4

    No estamos tratando de uma proposta lacaniana, mas sim pautada na linha discursiva de Domini-que Maingueneau (2007).

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    Cadernos do CNLF, Vol. XIV, N 3 43

    A anlise da prtica discursiva, segundo Ramalho e Resende(2006) do modelo tridimensional contempla a interdiscursividade, as ca-deias textuais, a coerncia, as condies prtica discursivas, a intertextua-

    lidade manifesta. Dessa categoria fica evidente a ponte que se faz com ointerdiscurso. Implicado nessa teoria sob a tica da intertextualidade ma-nifesta ou constitutiva, mas evidenciando a primazia dessas relaes so-bre o discurso. A intertextualidade implica uma nfase sobre a hetero-geneidade dos textos e um modo de anlise que ressalta os elementos e aslinhas diversos e frequentemente contraditrios. (FAIRCLOUGH, 2008,p. 137). Dessa forma, toma-se nesse trabalho o interdiscurso como objetode anlise.

    O conceito de interdiscurso no presente trabalho ter a orientao

    terica de Maingueneau (2008, p. 33) Nossa hiptese do primado do in-terdiscurso inscreve-se na perspectiva de uma heterogeneidade constitu-tiva, que amarra em uma relao inextricvel, o Mesmo do discurso e seuOutro. A proposta de Maingueneau coloca o discurso como uma intera-o entre discursos, o que implica um tipo de anlise em que a identidadediscursiva definida pela interdiscursividade, isto da relao do seudiscurso com o discurso do seu Outro. O autor diz que necessrio refi-nar o conceito que aparece to amplo. Para tanto, o a generalizao do in-terdiscurso ser substituda pela trade: universo discursivo, campo dis-

    cursivo e espao discursivo.Por universo discursivo, o autor entende o conjunto de todos os

    tipos de formaes discursivas interagem numa condio de produo,tambm representa necessariamente um conjunto finito, mesmo que nopossa ser apreendido em sua globalidade. Trata-se do horizonte mais am-plo tratado no discurso, do qual sero construdos os domnios mais es-truturados para a pesquisa do analista do discurso: os ca