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Camomila: Textos sobre métodos de ensino e outros ensaios Organização: Maurício Castanheira Lourdes Bastos Rafael Alvarenga

Camomila - dippg.cefet-rj.brdippg.cefet-rj.br/ppfen/attachments/article/147/PPFEN_Camomila.pdf · moitas de camomila, como se lhes imputando um castigo. No entanto essa Camomila que

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Camomila: Textos sobre métodos de ensino e outros ensaios

Organização:

Maurício CastanheiraLourdes Bastos

Rafael Alvarenga

Copyright© 2016 Maurício Castanheira (Organizador)Esta é uma obra aberta. É permitida a reprodução total ou parcial desde que os(as) autores(as) da obra ou capítulo sejam citados(as).

Título Original: Camomila − Textos sobre métodos de ensino e outros ensaios

Editor: André FigueiredoEditoração Eletrônica: Luciana Lima de AlbuquerqueCriação de Capa:

Comissão de revisão técnica:Gabriel NevesWagner de Moraes Pinheiro

COLEÇÃO “CHÁS PARA A FILOSOFIA”COORDENADOR DA COLEÇÃO: MAURÍCIO CASTANHEIRA

ORGANIZADORES DO VOLUME CAMOMILA: Maurício CastanheiraLourdes BastosRafael Alvarenga

PubLIT SOLuÇõES EdITORIAISRua Miguel Lemos, 41 salas 711 e 712Copacabana - Rio de Janeiro - RJ - CEP: 22.071-000Telefone: (21) 2525-3936E-mail: [email protected]ço Eletrônico: www.publit.com.br

Ficha

CONSELHO EdITORIAL dA COLEÇÃO “CHÁS PARA A FILOSOFIA”:

Antonio José Caulliraux Pithon (CEFET-RJ)Antonio Martinez Fandiño (UFRRJ)Edgar Lyra (PUC-Rio e CEFET-RJ)

Eduardo Gatto (CEFET-RJ)Lélio Moura Lourenço (UFJF)

Maurício Castanheira (CEFET-RJ)Míriam Carmen Maciel da Nóbrega Pacheco (CEFET-RJ)

Mírian Paura Sabrosa Zippin Grinspun (UERJ)Patrícia Maneschy (UERJ)

Rafael Mello Barbosa (CEFET-RJ)Renato Noguera (UFRRJ e CEFET-RJ)

Roberto C. Zarco (CEFET-RJ)Úrsula Maruyama (CEFET-RJ)

Os Organizadores desejam expressar seu agradecimento à Professora Maria de Lourdes Bastos pelo seu espírito coletivo e esforço na busca da inclusão de alguns dos autores e textos desta coletânea.A ela nosso muito obrigado.

Sumário

APRESENTAÇÃO ...................................................................................................9

PREFáCIO ............................................................................................................11Felipe Gonçalves Pinto

Métodos de Ensino – Textos dos Mestrandos

POP’FILOSOFIA: UM ENSINO ESTÉTICO-CONCEITUAL .........................33Aline Oliveira Rosa Moreira

DEBATE SOBRE A SALA DE AULA: ONDE ESTá O LÚDICO? ....................46Gabriel Bezerra Neves

O ENSINO DA FILOSOFIA ATRAVÉS DE PRáTICAS AUDIOVISUAIS ......54Carolina Romanazzi

CâMERA NA MÃO E IDEIAS (FILOSóFICAS) NA CABEÇA! – POSSIBILIDADES DE PENSAR COM IMAGENS ...........................................64Daniele Gomes

RESISTêNCIA FILOSóFICA E CAPOERISTA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS ..........................................................................................................75João Paulo Mendes

PELO CAMINHO DA FILOSOFIA ....................................................................82Maria de Lourdes Bastos

A RETóRICA (hypocrisis) COMO INSTRUMENTO DIDáTICO ...........93Andreia Maciel

ENSINANDO FILOSOFIA PARA JOVENS E ADULTOS EM FASE DE ALFABETIZAÇÃO: DESAFIOS E POSSIBILIDADES .......................................99Angélica Lino Pacheco Paiva

A IMPORTâNCIA DO CONCEITO DE TRáGICO PARA O ENSINO DE FILOSOFIA NA ESCOLA DAS ARTES TÉCNICAS PAULO FALCÃO .........116André Meirelles

ENSINO DE FILOSOFIA à LUZ DE ALGUNS ELEMENTOS BAkHTINIANOS: UMA ExPERIêNCIA ONLINE ........................................125Miguel Angelo Castelo Gomes

Outros Ensaios – Textos dos Mestrandos

A MENINA E O MURUCUTUTU: UMA POSSÍVEL HISTóRIA SOBRE A AMIZADE VIRTUOSA ......................................................................................137Anne Caroline Bessa Lima da Silva

REPENSANDO PARADIGMAS EM BUSCA DE UMA DIDáTICA FILOSóFICA .......................................................................................................143Fabio Martins de Sousa Lindoso

A CONSTRUÇÃO DA IDEIA DE HOMEM E O DESENVOLVIMENTO DA PAIDEIA GREGA ................................................................................................161Humberto do Valle Amorim

O CONCEITO MARxIANO DE ALIENAÇÃO E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA O PLENO DESENVOLVIMENTO DO ALUNO ..............................................172Leonardo Berbat de Brito

UM ESTUDO SOBRE EVASÃO NA TURMA 2 DA 3ª EDIÇÃO DO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO TECNOLóGICA NO POLO DE VOLTA REDONDA ............................................................................................182Rafael Alvarenga

O VALE DA ESTRANHEZA ..............................................................................195Shirlei Massapust ...................................................................................................195

Textos dos Professores

APONTAMENTOS SOBRE “UM UNICóRNIO PASSEIA PELA SALA DE AULA OU COMO TRANSFORMAR UM VILÃO EM HERóI” ....................205Oazinguito Ferreira da Silveira Filho

A ExPERIêNCIA DE PRODUÇÃO DE JOGOS NO ENSINO DE FILOSOFIA ...223Bárbara Martins GomesTaís Silva Pereira

CURRICULO EM AÇÃO: ENSINAGENS E APRENDIZAGENS CONJUNTAS .231Patricia ManeschySonia Regina Mendes dos Santos

CURRÍCULO, MÉTODO E DIFERENÇA: O FUNDAMENTO COMO RECUSA ..............................................................................................................242Danielle Bastos Lopes

PEqUENA INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA RETóRICA .........................256Felipe Gonçalves Pinto

INTERDISCIPLINARIDADE, TRANSDISCIPLINARIDADE & EMPREENDEDORISMO POR MEIO DE NOVAS PRáTICAS EDUCACIONAIS: CRITICAL ExPLORATION & PROJECT-BASED LEARNING ......................................................................266Úrsula MaruyamaCarla Mota SilvaSérgio AnversaNélio Georgini

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APRESENTAÇÃOColeção “Chás para a Filosofia”: volume − Camomila

A colheita é de todos, mas cada um capina sua parte. (Guimarães Rosa)

Minha vó dizia que Camomila atrai dinheiro. E por isso as pessoas se sentem cal-mas depois de beber o seu chá. Para ela, mesmo que jamais o tenha dito, era como se o efeito psicológico causado fosse mais importante que qualquer propriedade que só a ciência via dentro das coisas. Não que duvidasse de tudo quanto não conseguisse ver. Mas acreditava que acreditar tinha um poderoso poder sobre as pessoas e suas vidas.

Ela mesma plantava camomila nas quinas da calçada. E sempre bebia seu chá quen-te. Não enriqueceu em nenhum dos anos em que viveu. Mas nem por isso decepou as moitas de camomila, como se lhes imputando um castigo.

No entanto essa Camomila que agora floresce em livro, vem mostrar outras coisas. De imediato anunciamos que não trará dinheiro a ninguém. Tampouco a pessoa amada ou a resposta para um possível Ser ou não Ser da questão. Conquanto, o leitor não deve por isso decepcionar-se e abandonar esse livro à estante, tal como faria ao erguer uma foice e decepar um canteiro.

Basta ver pelo mundo como são tantos os métodos de cultivo da Camomila para entender que aqui também ela é cultivada de formas diversas. Cada texto explorando um método para se chegar ao seu produto final: a apresentação de sua ideia ou prática. Cada autor usando de suas habilidades e experiências para oferecer ao leitor a flor da qual se faz o chá. Há, portanto, a possibilidade de que páginas do nosso Camomila se inclinem a uma questão estética e outras a uma questão psicológica ou política.

Mas a pureza da iniciativa da “Coleção Chás para a Filosofia” e deste 3º volume, Camomila, está em iniciar jovens pesquisadores no terreno da publicação acadêmica; oportunizando a vitória contra o receio de não ter um texto aceito e devolver à socie-dade e aos contribuintes o investimento num programa de uma instituição pública, gratuita e de qualidade.

Enfim, insistimos com mais uma safra, cujo trabalho artesanal nos faz suar dentro do inverno. Não somos muitos, porém não nos consideramos poucos. Cultivamos esse 3º Chá filosófico como quem cuida de um canteiro nas quinas da casa. E quando nos abaixamos junto a terra é para ver a grandeza e a beleza de uma flor que nasceu pequena para se chamar Camomila.

Rafael Alvarenga

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PrefácioFelipe Gonçalves Pinto

“As folhas funcionam!” foi o que gritou Ossaim quando se deu conta de que Iansã, seguindo desígnio de xangô, arrastava todas as folhas das plantas para o palácio do rei de Oió. As folhas, então, voltaram a Ossaim. As poucas que ficaram no palácio perde-ram seu axé. Não podiam mais curar. As plantas funcionam. As plantas têm o poder de operar transformações, contanto que mantenham seu axé.

A referência às plantas que caracteriza os títulos desta coleção traz consigo uma intenção semelhante à que apresenta Ossaim quando confronta xangô: afirmar, contra os idiotas da objetividade, o poder performativo e transformador do ensino de filosofia. Em certo sentido, porém, seu projeto e sua finalidade parecem se aproximar mais do empenho de xangô em distribuir as folhas a todos os orixás do que do empenho de Ossaim em reivindicar exclusivamente para si os segredos primordiais das plantas. Mais crucial, neste momento, é o entendimento de que, para que o ensino de filosofia, é necessário e inadiável o exercício do filosofar, seu axé.

A coleção “Chás para a Filosofia” surgiu, e continua surgindo de gole em gole, no interior do curso de Mestrado Profissional em Filosofia e Ensino do Programa de Pós--Graduação em Filosofia e Ensino do Centro Federal de Educação tecnológica Celso Suckow da Fonseca do Rio de Janeiro (PPFEN-Cefet-RJ) e a ideia de um Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino nasceu das inquietações partilhadas por docentes que experimentaram o amor pela pesquisa filosófica tanto quanto o amor pelo ensinar e aprender, em especial no contexto da educação básica. Experimentaram também o desconforto com uma organização das práticas acadêmicas e com um ordenamento do trabalho docente que tendem, cada um a seu modo, a interditar ao docente da educa-ção básica a reflexão crítica e a exposição pública do saber gestado na sua prática. Ao mesmo tempo, subtraem daqueles socialmente reconhecidos como pesquisadores o desafio de falar para e, sobretudo, com os não iniciados nos mistérios da Academia, o desafio de elaborar um discurso que não demande, por sua própria natureza, mediação terceirizada e tardia do que se fala e se pensa nos pequenos círculos de docentes e discentes de pós-graduação e, sobretudo, de ouvir o que se fala fora desses círculos.

Aprender e ensinar a filosofar: é com isso que se ocupam os textos aqui presentes. Com o título “Camomila” se evoca o poder da serenidade e da paciência para compre-ender e participar de um mundo que demanda curtidas e comentários instantâneos,

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resultados de curto prazo e alta produtividade irrefletida. Aqui interessa fazer funcionar a paciência filosófica e observar os processos que ela é capaz de desencadear e modular.

Nesse sentido, este livro foi subdividido em três partes. Na primeira estão con-centrados textos de mestrandos e especialistas sobre método de ensino. Na segunda, cujo título é outros ensaios, também encontramos trabalhos de mestrandos, porém não circunscritos a um tema específico. Já na última encontram-se os textos de docentes do PPFEN/CEFET-RJ além de professores convidados. Dentre os trabalhos apresentados ao longo dessas subdivisões a maioria é inédita com exceção de uma pequena parte revista e atualizada, contando com a autorização de seus respectivos editores para sua publicação.

Ao abrir a primeira parte temos o texto “Pop'filosofia: Um Ensino Estético-Con-ceitual” onde a professora Aline Oliveira Rosa Moreira se propõe a investigar a relação que a filosofia mantém com a arte, para isso utilizando do filósofo francês Gilles De-leuze, que dedicou vários de seus estudos às artes, literatura, pintura, teatro, cinema. Segundo Deleuze, a filosofia mantém uma relação intrínseca, e não externa e eventual, com a arte, não lhe sendo, relativamente ao pensamento, nem superior nem inferior. Filósofos e artistas são igualmente pensadores e criadores. A partir dessa relação, aborda os conceitos de “Pop'filosofia” e de “canto falado” deleuziano que privilegiam o aspecto criativo da filosofia em si mesma e em sua relação com a arte. Com eles, busca enfatizar a compreensão não-conceitual e intuitiva (não-filosófica), que Deleuze diz ser consti-tutiva da filosofia, junto com a compreensão conceitual (filosófica). A Pop’filosofia e a aula como canto falado fazem da filosofia um pensamento destinado a todos e não apenas a especialistas. Para Deleuze, a filosofia se destina a um público qualquer, a qual-quer pessoa. Com isso, a autora busca trazer para a filosofia um processo de ensino que entrelace conceitos, objetos próprios da filosofia, e sensações, objetos próprios da arte, e enfatizar no ensino de filosofia a compreensão não-conceitual, acreditando ser uma aula de filosofia um movimento estético. Uma aula de filosofia é mais do que argumen-tativa, é som, é cor, é imagem... é uma dança entre personagens conceituais e paisagens filosóficas. Uma aula de filosofia não é apenas entendimento, é também afeto e emoção, é conceitual e sensitiva, é filosófico e não-filosófico.

O texto “Debate sobre a sala de aula: Onde está o lúdico?” de Gabriel Bezerra Neves, busca fazer uma relação direta entre educação e ludicidade, apresentando uma base para novas estratégias que aumentem e realizem o potencial de ensino nas escolas. Usando a obra de Johan Huizinga, além de trabalhos práticos feitos por professores do ensino fundamental, o artigo evidencia a existência de tentativas mais antigas baseadas em atividades lúdicas que tiveram um enorme sucesso educacional. Apresenta, ao fim, a sua proposta de material didático para incrementar o repertório de ferramentas lúdicas no estante da pedagogia.

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Em seguida a professora Carolina Romanazzi apresenta o texto “O ensino de Filo-sofia através de práticas audiovisuais” o qual tem como objetivo não só fazer uma critica a instrumentalização pedagógica do audiovisual, o que se propõe é que o audiovisual colabore com a construção e emancipação intelectual dos educandos, bem como com o ensino da Filosofia através de experiências de inserção, produção e observação de material audiovisual no espaço escolar. Isso se deve principalmente porque acredita-mos que trabalhar com audiovisual seja potencialmente atrativo, mas também devido à dificuldade que se configura em ensinar filosofia na educação básica. Essa será melhor elucidada adiante ao longo desse trabalho.

A mestranda Daniele Gomes, com o artigo “Câmera na mão e ideias (filosóficas) na cabeça! – possibilidades de pensar com imagens” pretende abordar como determina-dos traços da sociedade de controle (Foucault) e sua transição, a sociedade disciplinar (Deleuze), criam um sistema de visualidade que modifica as formas de ser e estar no mundo. A partir daí, observa-se as interferências que a escola contemporânea sofre com essa conjuntura (Sibilia), que mantêm sua estrutura institucional com marcas da Modernidade, mas recebe estudantes com outros corpos, subjetividades e outro regime tensional. É pensando essa tensão, que se propõe a produção cinematográfica no espaço escolar, sob orientação da pedagogia da criação (Bergala), do entendimento do cinema como alteridade (Bergala), (que por ser considerado enquanto gesto de arte e criação, é percebido como um Outro no espaço escolar, que costuma ser marcado pela repro-dução), e da teoria das igualdades das inteligências (Rancière), como um movimento de possíveis resistências e ressignificações, frente a esse status quo, num gesto ético, estético e político (Migliorin). Assim, conjecturando essas potencialidades da produção cinematográfica no espaço escolar que emergem semelhanças com o ato de filosofar, em especial os aspectos de saída da ignorância, maravilhamento, atividade, reflexão e criação, apostando que ambos os gestos são experiências de deslocamentos no pensamento, que descobrem o novo e vivenciam as intensidades.

Já o texto do mestrando João Paulo Mendes, intitulado “Resistência filosófica e ca-poerista na Educação de Jovens e Adultos” busca pensar a capoeira como instrumento didático para a reflexão filosófica com estudantes da EJA.

A professora Maria de Lourdes Bastos apresenta o texto “Pelo caminho da filoso-fia” onde resolve pensar sobre uma proposta de contato entre o ensino de filosofia e o estudante do ensino médio na periferia carioca. Caminhar através da experiência sem pretensões de estabelecer critérios ou rotas, antes apreciar as possibilidades desse trajeto, com a intenção de perceber a diversidade de oportunidades e situações presentes no es-paço escolar. Utilizando temas da filosofia como roteiro, busca o contato com as narra-tivas que povoam a sala de aula. Como surge a filosofia e os caminhos que inaugura em

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seu percurso são partes desse encontro, como também pensar sobre os processos pelos quais será possível ensinar e aprender filosofia. Falar sobre ensino inaugura a discussão de teorias e práticas que se entrecruzam e se alimentam das inúmeras concepções sobre o homem e o mundo, a natureza e a cultura. O Homem e o mundo que o cerca, a lin-guagem, a formação de conceitos aliada à formação de si. A potência da alteridade e do questionamento na construção de novos interesses e na abertura de possibilidades de crescimento. Destacando o vínculo entre a escola e a sociedade, permanecemos atentos para a discussão sobre o lugar da filosofia na formação dos estudantes, os métodos de ensi-no e o papel do professor no diálogo entre gerações. A possibilidade de transformação na relação com o outro surge como alternativa de mudança no cenário pedagógico, cultural e político. As políticas educacionais e as teorias sobre a elaboração de currículos podem nos oferecer pistas sobre a intervenção de forças diversas e o impacto que as propostas curriculares exercem sobre a prática de filosofia que efetivamente ocorre no espaço escolar.

Logo após a professora Andreia Maciel oferece o texto “A retórica (hypocrisis) como instrumento didático” nele considerando a importância da retórica como recurso di-dático às aulas, pretende-se expor como a aplicabilidade de seu uso, principalmente no que se refere a hypocrisis (gestos, deslocamento espacial) de Aristóteles, para que se che-gue ao diálogo acordado, entre educador e educando, com um único objetivo, o da boa condução da aula. Objetiva-se observar como a condução das palavras e da expressão corporal pode facilitar o processo didático no ambiente de sala de aula com alunos do Ensino Médio da rede pública e particular.

O artigo “Ensinando filosofia para jovens e adultos em fase de alfabetização: desa-fios e possibilidades” de autoria da professora Angélica Lino Pacheco Paiva nasce com o intuito de pontuar reflexões acerca do ensino de Filosofia em classes de alfabetização de Jovens e adultos enquanto uma possibilidade a ser não apenas considerada, mas prin-cipalmente praticada. Ao longo de sua história a Filosofia tem servido como suporte para um ensino mais crítico e humano, justamente o que estamos há anos defendendo para os sujeitos da EJA. E se incluir Filosofia em uma turma de jovens e adultos já se faz algo extremamente audacioso, o que dizer sobre sua inclusão em turmas de alfabe-tização? Certamente não será uma tarefa fácil, porém poderá se constituir como uma experiência não apenas desafiadora como gratificante. Ao defendermos uma educação condizente com o público da EJA, defendemos mais diálogo, criticidade e pensar. Para fazer isso é preciso ir além do que presenciamos cotidianamente nas salas de aula volta-das para esse público, é preciso levá-los até vivências significativas e transformadoras e nesse sentido, começar a filosofar parece ser um bom começo.

O professor André Meirelles apresenta o texto “A importância do conceito de trá-gico para o ensino de filosofia na Escola das Artes Técnicas Paulo Falcão” o qual tem

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como objetivo empregar o conceito de trágico1 a partir de um diálogo com os pensa-mentos de Friedrich Nietzsche, e Jean Pierre Vernant, onde busco compreender algu-mas características primordiais do teatro trágico na Grécia antiga tendo em mira uma reflexão que sinalize as possibilidades de utilização do conceito de trágico na sala de aula como impulsionador do ensino de filosofia. Esta problemática tem sido enfrentada por mim nas aulas de Filosofia e História da Cultura na Escola das Artes Técnicas Paulo Falcão, em Nova Iguaçu, onde leciono desde 2009.

Fechando os textos dessa primeira parte, o professor Miguel Angelo Castelo Gomes escreveu “Ensino de Filosofia à luz de alguns elementos bakhtinianos: uma experiência online” cujo propósito é pensar uma experiência filosófica EaD, tendo como cenário a prática de monitoria na disciplina à distância “Introdução à Filosofia”, apresentando, em linhas gerais, alguns elementos do pensamento de Bakhtin, a partir da percepção deles como especificamente implicados num fórum de discussão online, ocorrido em uma turma na PUC-Rio no segundo semestre de 2014.

O percurso foi inspirado especialmente nos conceitos de “dialogismo”, “polifonia” e “enunciação”, onde os participantes de uma conversação constroem um fluxo dialó-gico, à medida em que posicionam, de maneira interativa, o ato da linguagem. Nesta perspectiva, o texto mostra interiormente a presença de influxos e inspirações outras, percebidos ao longo do processo de recepção e percepção de um enunciado. Seu propó-sito, portanto, é a procura por relações entre algumas das características do pensamento de Bakhtin e uma experiência contextualizada de Ensino de Filosofia à distância.

Na segunda parte os mestrandos do PPFEN/CEFET-RJ contribuem com seis textos cuja temática não se encontra amarrada por um único tema.

No primeiro deles “A menina e o Murucututu: uma possível história sobre a amiza-de virtuosa” a professora Anne Caroline Bessa Lima da Silva analisa uma possibilidade de trabalho com crianças das séries iniciais do Ensino Básico. As diferentes possibili-dades de amizade, definidas por Aristóteles, são propostas para os estudantes a partir de uma história sobre as relações estabelecidas entre uma menina e o Murucututu. A coruja, personagem de um mito indígena brasileiro, é visto sob o olhar do escritor Mar-cos Bagno, mas sem perder suas características de mito indígena. A partir da história, as crianças podem ser incentivadas a perceber as diferentes motivações para estabelecer relações de amizade e a importância ética de uma amizade virtuosa, na perspectiva aristotélica. A metodologia utilizada está baseada nos pressupostos de Paulo Freire de uma educação dialógica, onde os estudantes têm participação ativa. Nessa perspectiva

1 Apresento no desenvolvimento a ideia de trágico a partir das relações entre o apolíneo e o dionisíaco, tal como formulado por Nietzsche. Portanto, tanto a tragédia como arte cênica quanto a filosofia trágica de Nietzsche aparecem como elementos fundamentais do texto. Além disso, o aporte de Jean Pierre Vernant é importante para pensarmos o trágico na atualidade.

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essa proposta também é orientada pelos escritos de Vigotsky, onde conhecimento é algo que se constrói na convivência social. Por fim, o trabalho proposto faz parte de um conjunto de atividades desenvolvidas com as séries iniciais do Ensino Básico, visando o trabalho com a cultura indígena brasileira, compreendendo que esta faz parte da cultura brasileira, sendo essencial conhece-la e respeitá-la como parte do patrimônio imaterial brasileiro. Seu desejo é que o trabalho possa contribuir pedagogicamente e que seja também prazeroso, para as crianças e professores.

O professor Fabio Martins de Sousa Lindos escreveu o texto “Repensando paradig-mas em busca de uma didática filosófica” onde busca repensar que paradigmas seguir a fim de se obter resultados significativos no ensino de filosofia face a tantos desafios é uma tarefa filosófica; aliás, torna-se um problema filosófico à medida em que a Filosofia reconhece a necessidade de pensar seu processo de ensino. É preciso acentuar as contin-gências entre ensino e filosofia, trazendo o problema do ensino para o terreno da Filosofia, com isto, a atitude docente volta-se para a problematização da prática. Nesta perspectiva, uma didática filosófica inscreve-se como fator condicionante da disciplina de filosofia, de modo que ensinar filosofia não seja diferente de ensinar a filosofar, de fazer filosofia, o que torna filosófico o ensino de filosofia - e somente nesta condição a filosofia galgará resultados significativos, legitimando sua existência nos currículos do Ensino Médio.

O artigo “A Construção da Ideia de Homem e o Desenvolvimento da Paideia Grega” do professor Humberto do Valle Amorim, busca tratar da evolução da educação ou do processo de formação do homem grego (a PAIDÉIA) e sua articulação com o pen-samento filosófico e político desenvolvido durante o período das epopeias homéricas, por Platão e pelos Sofistas. Entendemos que nos textos homéricos e nas duas escolas filosóficas representativas do período clássico do pensamento grego a formação do ho-mem grego é compreendida de forma ideal (idealizada ou modelar) tendo como pano de fundo a discussão em torno do modelo ideal de homem.

A exposição está dividida em três partes acrescida de uma conclusão. Assim, o tra-balho está dividido em:

1. definição e a constituição do conceito de Paidéia e homem nas epopeias homéricas;2. apresentação dos traços gerais do pensamento político e pedagógico dos sofistas;3. apresentação da concepção platônica de política e sua articulação com seu projeto educacional.

Em seguida, o artigo “O conceito marxiano de alienação e sua contribuição para o pleno desenvolvimento do aluno” do professor Leonardo Berbat de Brito é o resultado da reflexão sobre o direito dos indivíduos à educação e o texto da Lei de Diretrizes e Ba-ses da educação brasileira (Lei 9.394/1996), segundo o qual o ensino de Filosofia tem

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de ser obrigatório em todas as séries do ensino médio, e a educação deve proporcionar o pleno desenvolvimento do educando e seu preparo para o exercício da cidadania. Partindo destes pressupostos, o trabalho enfatiza a importância de se abordar o con-ceito marxiano de alienação, no contexto do ensino de Filosofia em sala de aula, como meio de se atingir os objetivos supracitados da LDB e, dessa maneira, contribuir para a formação humana e cidadã do aluno brasileiro.

O trabalho “Um estudo sobre evasão na turma 2 da 3ª edição do curso de especiali-zação em educação tecnológica no polo de Volta Redonda” apresentado pelo professor Rafael Alvarenga pretende mostrar o resultado de um processo que gerou a evasão TURMA 2 da 3ª edição do curso de Especialização em Educação Tecnológica oferecido pelo CEFET-Rio no polo de Volta Redonda. Para tanto foram apontadas inquietações surgidas durante o curso e como era o ambiente da turma que se formava em torno da plataforma virtual Moodle. Nesse sentido, uma rápida apresentação do curso foi feita com intuito de explicar seu funcionava e dinâmica. Na TURMA 2, a partir da observação feita, a ausência nos FóRUNS era um indicativo da evasão. Em todo caso, o trabalho não deseja oferecer, a título de consideração final, uma fórmula para se combater a eva-são de forma geral. Mas sim trazer para a reflexão os números da evasão em um curso e turma específicos.

Para fechar essa parte temos o texto “O Vale da Estranheza” da mestranda Shirlei Massapust onde a autora faz a seguinte provocação: contra a hipótese da necessidade de estabelecer restrições ao uso comercial de figuras humanas conforme o grau de estranha-mento ao realismo, em curto prazo, apresentamos em antítese a reação inversa (atração pela repulsão) havida fora do ambiente laboratorial, em longo prazo; e ressaltamos o potencial educativo da exposição deliberada do sujeito ao objeto de estranhamento.

Na terceira parte convidamos professores de filosofia para apresentarem trabalhos novos, revistos ou ampliados sobre a filosofia dentro e fora da sala de aula. A seguir oferecemos os resumos de cada um desses textos.

O ensaio “Apontamentos sobre “Um Unicórnio Passeia pela Sala de Aula ou como transformar um vilão em herói”” do professor Oazinguito Ferreira da Silveira Filho procura resumir aquilo que foi apresentado em uma dissertação de mestrado de-fendida na Universidade Católica de Petrópolis: a utilização em sala de aula do curta-metragem “The Porcelain Unicorn” dirigido por keegan Wilcox e vencedor do YouTube Festival, visando à sensibilização e conscientização dos estudantes quanto ao estudo historico-contextual do período entre-guerras, assim como do genocídio praticado pelos nazistas, a partir da perseguição étnica estabelecida,no acontecimento conhecido como holocausto; o estudo procura destacar a importância da utilização do curta-metragem em sala de aula como ferramenta pedagógica auxiliar aliada

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a sua exibição e distribuição experimental pelo celular, ferramenta tecnológica e co-municação culturalmente presente no universo estudantil, mas também considerada pedagógica pelas TICs, e que se respalda ainda no sistema de comunicaçãodoBluetooth presente no próprio celular; pratica-se também a proposta pedagógica de uma educa-ção emancipadora a partir da exibição do curta-metragem, princípio metodológico criado por Theodor Adorno. Para este fim, elaborou-se um projeto institucional com a criação de um laboratório de intervenção pedagógica em saladeaula de uma escola pública tradicional, onde ocorreu a distribuição do curta-metragem entre os alunos no interior do ambiente da sala de aula, não somente contando com a utilização do celular para exibição e assistência cinematografica, praticando também uma ressignificação do espaço tradicional da sala de aula para tal fim. O projeto elege assim como objetivo pa-ralelo a promoção de experiências de aprendizagem utilizando as TICs, Tecnologias de Informação e Comunicação, a partir do uso do binômio celular/bluetooth distribuidor de curta-metragem. O público alvo do projeto foram os alunos de turmas terminais do Ensino Médio do Colégio Estadual D. Pedro II de Petrópolis, com a apresentação de no-vas metodologias de ensino e abordagem didática em sala de aula, considerando-se como essencial a motivação dos alunos para o processo de ensino/aprendizagem e da adoção das tecnologias de comunicação que pertencem ao universo cultural dos estudantes.

A professora Tais Silva Pereira em parceria com Bárbara Martins Gomes, apresen-ta o texto “A experiência de produção de jogos no ensino de filosofia” onde explica que entre os anos de 2013 e 2015 foi desenvolvido no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ), no Campus de Nova Iguaçu, o projeto de extensão “A filosofia na construção de jogos”. A proposta da atividade, vol-tada especialmente para a comunidade escolar local, consistia em aproximar o grande público das questões filosóficas que permeiam nosso cotidiano, de forma lúdica e par-ticipativa. Para isto, ela foi estruturada na forma de oficinas, nas quais os participan-tes construíam em conjunto com o professor um jogo a partir de um tema filosófico para ser jogado durante a Semana de Extensão. Neste sentido, todos os envolvidos no projeto participaram ativamente do percurso de elaboração: desde da escolha do problema a ser tratado, passando pelo processo de estudos (levantamento bibliográ-fico e grupos de estudos), discussão e produção do jogo (a partir da sistematização de um manual, do jogo físico e dos testes de jogabilidade) e sua apresentação. Estas etapas foram importantes tanto para a consolidação do conteúdo advindo da tradição filosó-fica quanto para a tradução adequada do texto para o conjunto de regras do manual do jogo. Primeiramente, a atividade compartilhada promoveu um encontro saudável de propostas diferentes que devem ser debatidas mediante a contraposição de argu-mentos visando o consenso, retirando o professor do centro do ensino-aprendizagem.

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Com efeito, isto também corrobora com orientação curricular nacional no tocante ao desenvolvimento de habilidades de oferecer razões e receber razões sobre determinado posicionamento, bem como investir na capacidade autônoma dos alunos. Ademais, a construção de jogos, a partir do estudo filosófico, além de aproximar o grande pú-blico a questões da tradição de forma lúdica, igualmente nos impõe um exercício de tradução da linguagem estrita do texto filosófico para a das regras e da atividade de jogar. Por fim, esta experiência produziu três jogos, apresentados no CEFET-RJ e em outros locais, e pretende fazer parte do acervo de material didático para professores da educação básica a ser desenvolvido pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino, na mesma instituição.

O segundo texto “Currículo em Ação: Ensinagens e Aprendizagens Conjuntas” das professoras Patricia Maneschy e Sonia Regina Mendes dos Santos relatam a seguinte questão: Enfrentamos o desafio, na contemporaneidade, nas universidades de construir outros referenciais curriculares a partir dos parâmetros político-educacionais no Brasil, que contemplam as competências como veículo estruturador dos desdobramentos for-mativos seja para os alunos e para os professores. Para ensinar e aprender precisou usar a categoria da inovação, mas como compreender o que trata e o que se pode fazer em salas de aula para uma aprendizagem aconteça? Não há garantias, mas possibilidades. Esse texto trata de uma experiência em sala de aula no Curso de Pedagogia, em que os conhecimentos e a aprendizagem são o foco por meio de experiências práticas mobiliza-doras de reflexão e teorização sobre o fazer. Pensamento e ação, práxis, são trabalhados em contextos significativos para os alunos e para o docente.

Em seguida o texto “Currículo, método e diferença: o fundamento como recusa” da professora Danielle Bastos Lopes discute o campo do currículo e a noção de método de ensino em diálogo com correntes filosóficas desconstrucionistas (Derrida, 1995, 2011; Deleuze, 1995), que tomou curiosa ênfase na teoria curricular no Brasil a partir dos anos 1990. Dentro de uma percepção de desconstrução e diferença, na qual aprofunda o sentido de cultura, identidade analisa-se o que acontece quando se rejeita uma cultura escolar como coisa, como mero artefato de sociedades, seguindo numa discussão que tem se projetado ao longo dos últimos anos acerca de um pós-fundamento no campo da Educação. Entre o fio cortante da Pedagogia e da Filosofia currículo, neste sentido, consiste não apenas nos documentos escritos e protocolares, mas em todo movimento, processo de significação que acontece nas relações com o ensino. A própria condição de método e objetivo para chegar a determinado fim, nesta condição, entende-se negocia-do face de sentidos antagônicos e de disputas tantos nos cotidianos das escolas, quanto em redes organizativas internacionais/nacionais que tentam estabelecer uma cultura de qualidade e avaliação no ensino.

O professor Felipe Gonçalves Pinto apresenta o texto “Pequena Introdução ao Estu-do da Retórica” elaborado e utilizado por ele mesmo na disciplina de Filosofia Aplicada a Negociações Internacionais para uma turma do 2° período do curso de graduação em Línguas Estrangeiras Aplicadas a Negociações Internacionais (LEANI/Cefet-RJ) com o intuito de introduzir o estudo da retórica. Buscou elaborar um discurso cujo rigor não o tornasse demasiadamente cansativo e desinteressante à turma, mas que pudesse, da maneira clara e coerente, expor e partilhar algumas distinções e conceitos tradicionais a partir dos quais pudéssemos prosseguir o estudo e qualificar o exercício do debate. Foi buscar essas distinções e conceitos nas obras de Aristóteles sem pretender com essa referência iniciar, junto à turma, uma pesquisa ou estudo aprofundado sobre a filosofia aristotélica. O objetivo não consistia senão em tomar como mapa estelar determinado repertório conceitual construído por Aristóteles para situar, de maneira relacional e empírica, as rotas que percorridas dali em diante.

E, finalizando, temos o texto “Interdisciplinaridade, transdisciplinaridade & empreendedorismo por meio de novas práticas educacionais: critical exploration & project-based learning” dos professores Úrsula Maruyama, Carla Mota Silva, Sérgio Anversa e Nélio Georgini onde se lê: empreendedorismo e inovação são temas conside-rados como competências indispensáveis ao profissional deste século. O objetivo deste trabalho é apresentar temas transversais que dialoguem com métodos de ensino. Para tanto, foi elaborado um estudo de caso múltiplo longitudinal, com o intuito de buscar em diferentes especialidades, diversidade de perspectivas que fossem enriquecedoras para a proposta de um novo modelo educacional. Trabalhos executados com alunos do ensino básico, iniciação científica do ensino médio tecnológico, graduação e até educação corporativa foram selecionados para proporcionar uma contribuição à inter-disciplinaridade, transdisciplinaridade, empreendedorismo e criatividade para inovação na educação.

É frequente, ao menos nos cursos de graduação em Filosofia, que estudantes in-troduzam no meio da dissertação de conclusão de algumas disciplinas uma receita culinária, brincando de ousar desmascarar a impaciência do docente avaliador diante do texto entregue. Façamos um elogio dessa brincadeira: esquente a água até levantar fervura, acrescente um punhado de flores secas de camomila e deixe o recipiente tam-pado por 10 minutos. Depois é só coar e beber. Seja bem-vindo, leitor. Deguste, com o mínimo possível de ansiedade, o tanto de xícaras que lhe for benfazejo.

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Apresentação dos autores em ordem alfabética

Aline Moreira: Cursando Mestrado em Filosofia e Educação - CEFET-RJ e Licencia-tura em Dança, UFRJ. Possui Pós-graduação em Filosofia com ênfase na Educação, CEFET-RJ (2015). Pós-graduação em Ensino de Filosofia do Programa de Residência Docente do Colégio Pedro II (2016), Licenciatura em Filosofia - PUC-PR, (2013). Pesquisas nas áreas: educação, ensino de filosofia, Pop Filosofia, estética e política. Bolsa de Iniciação a Pesquisa Científica - PIBIC - CNPq - PUC-PR; bolsa do Programa de Intercâmbio PIBIC Mobilidade Nacional, realizado na UFRJ-IFCS, orientador Dr Ericson Falabretti da PUC-PR e coorientador Dr Guilherme Castelo Branco da UFRJ; bolsa de Iniciação a Docência - PIBID - PUC-PR.

André Meirelles: Minha formação acadêmica tem início na Universidade Federal Flu-minense, onde obtive a graduação e a licenciatura em História no ano de 2004. Em 2014 entrei para o CEFET cursando uma especialização lato sensu em Filosofia, cujo objetivo é a produção de material didático voltado para o ensino médio. Atualmente faço parte do corpo discente do CEFET no curso de mestrado em Filosofia e Ensino. A minha experiência profissional na sala de aula inicia-se em 2003, onde ministrava aulas de História. Em 2004 entrei para o Centro Educacional da Lagoa para dar aulas de Filosofia, instituição em que permaneci até 2008. Nesse mesmo ano fui trabalhar na Escola das Artes Técnicas Luis Carlos Ripper, no morro de Mangueira. Essa escola forma profissionais para os bastidores do teatro e carnaval, entre outros universos das artes cênicas. Com a abertura da unidade Paulo Falcão, em Nova Iguaçu, iniciou-se minha trajetória na Baixada Fluminense, primeiramente com a disciplina de Filosofia Política, e, posteriormente, História da Cultura com aporte na filosofia de Nietzsche, que é a disciplina lecionada por mim atualmente. No que tange ao tema do texto “A importância do conceito de trágico para o ensino de filosofia na Escola das Artes Técnicas paulo Falcão” cumpre assinalar que é produto de questões que me norteiam desde pelo menos a adolescência, já que a brevidade da vida, as experiências do prazer e sofrimento, os sobressaltos e solavancos da existência hu-mana, tudo aquilo que causa horror, mas também o que causa espanto e admiração faz parte de todo o conjunto de aspectos relativos à perspectiva trágica da vida enfatizada no texto. O encontro com a filosofia de Nietzsche tem suscitado muitas questões que me assaltam contribuindo para rechaçar qualquer perspectiva que não veja na vida um manancial maravilhoso de luta e realizações. Com Nietzsche tenho aprendido a dizer sim à vida apesar de toda a sua tragicidade, o que me impeliu a levar para a sala de aula o debate nietzschiano sobre a condição humana neste lugar chamado planeta Terra.

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Através da reflexão sobre a arte tenho vivenciado uma prazerosa experiência junto aos alunos no sentido de levar ao âmago de nossas almas uma sinalização de valorização da vida em tempos de niilismo exacerbado em nossa modernidade. [email protected]

Andreia Maciel: Posso afirmar que passei por 4 thaumas peculiares que promoveram um verdadeiro divisor de águas sobre a prática filosófica em minha vida. O primeiro aos 4 anos, de maneira transcendental ao visitar o planetário e repensar as estrelas, a segunda no ingresso à graduação em filosofia na UERJ, ao pensar e repensar sobre as teorias filosóficas, o terceiro por meio da luz em vida, minha mãe Lúcia. Sua humani-dade me fez repensar a minha existência, provocando uma atitude filosófica como um exercício de reflexão sobre si (como as reflexões desenvolvidas por Michel Foucault e Pierre Hadot) como instrumento de autoconhecimento e um agente na formação de minha identidade. E por último, como professora supervisora do PIBID-UFF, em que fui coordenada com extrema sensibilidade, confiança e liberdade pelo professor Luis Antonio Cunha (UFF) e tive o presente de trabalhar com os bolsistas Marcos Phelipe e Isaac Dobbin, que me apresentaram os métodos e exercícios do Teatro do Oprimido, do teatrólogo brasileiro Augusto Boal, que me fizeram repensar a minha prática do-cente e ingressar no mestrado. A todos responsáveis por estes quatro movimentos, serei eternamente grata!Como parte do projeto do PIBID e por meio da confiança e apoio da diretora Jacyntha de Fátima, associamos os exercícios teatrais às aulas de filosofia no colégio Estadual Joaquim Távora – Niterói. Percebi a importância do aspecto lúdico como um gatilho que seduz o educando e promove uma reflexão corporal. Puder notar o quanto os jogos e exercícios teatrais potencializam a expressão corporal e consequentemente a participa-ção dos educandos durante as aulas, promovendo um despertar de expressões corporais e pensamentos, até então engessados, como uma forma de movimento e resistência a rigidez disciplinar. Durante as aulas no mestrado no CEFET-RJ, com a disciplina contribuições da retórica para o Ensino de Filosofia, do professor Edgar Lyra, pude observar a importância da re-tórica no processo educacional, e particularmente a retórica corporal. Trata-se de uma expressão que não apenas favorece, mas propicia um maior envolvimento ao processo de ensino aprendizagem.Buscando continuar a repensar a prática docente me debrucei pelo estudo da corpo-reidade, e do quanto é responsável por grande parte de nossa comunicação e de nossos afetos. A retórica corporal é fator de afeição, sedução e, consequentemente, está inseri-da à prática docente. Viver é encenar, ou seja, interpretar o nosso próprio personagem e

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outros tantos em diversos momentos e de diversos aspectos. Segundo Boal : “Podemos calar a boca, jamais o corpo”. Desta forma, cabe nos pensar no potencial comunicativo do corpo durante o processo de ensino aprendizagem.

Angélica Lino: Formada com láurea Acadêmica em Licenciatura em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense (2014). Atualmente cursa Licenciatura em Geografia (UFF) pós-graduação em Educação de Jovens e Adultos e mestrado em Filosofia e Ensi-no (CEFET-RJ) tendo experiência na área de Educação, com ênfase em Administração de Sistemas Educacionais na qual atua como chefe da Seção de Registros acadêmicos do CEFET-RJ campus Angra dos Reis. É tutora presencial da disciplina Políticas Pú-blicas do consórcio CEDERJ no curso de Pedagogia ofertado pela UERJ, e membra do setor de extensão do CEFET/RJ, bem como conselheira suplente do conselho escolar do CEFET/RJ CAMPUS ANGRA. Interessa-se por estudos na área de Ensino de Filosofia, Educação de Jovens e Adultos, trabalho e Educação, Desigualdades Sociais e políticas públicas.

Anne Caroline bessa Lima da Silva: Nasci em Natal, Rio Grande do Norte. Aos cinco anos vim morar no Rio de Janeiro, pelo motivo de sempre: meu pai se mudou para cá por causa do emprego. Desde a minha 5ª série sou aluna de escola pública... me formei em Magistério das Séries Iniciais, fiz Pedagogia na Universidade Federal Fluminense. Tenho dois cursos de Especialização: Educação Ambiental e Educação Especial. Sou professora das séries iniciais na rede municipal de Duque de Caxias desde... já faz mais de uma década... Atuei como professora de Sala de Leitura, de EJA, na Biblioteca, e com as séries regulares de 1º ao 5º ano. Sempre gostei de contar histórias para os alunos e sempre me preocupei com as bases filosóficas do fazer pedagógico e foi isso que me trouxe ao mestrado em Ensino da Filosofia.

bárbara Martins Gomes: Bolsista de extensão do Centro Federal de Educação Tecno-lógica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ), Campus Nova Iguaçu, entre os anos de 2014 e 2015, e graduanda em filosofia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Carla Mota dos Santos da Silva: Atuou como executiva até 2006 nas áreas de Marketing e Comunicação, na indústria petrolífera e de equipamentos, em empresas nacionais e internacionais, e prestadoras de serviços. Foi consultora para projetos de marketing e comunicação corporativa em organizações como Nestlé, Petrobras, Cen-tro Cultural Banco do Brasil, RJZ/Cyrella, dentre outras. Doutoranda e Mestre em Ciência da Informação pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação

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(PPGCI) do Instituto Brasileiro de Informação para a Ciência e Tecnologia (IBICT - órgão vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia), em convênio com a Universi-dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora em regime de tempo integral (40h) da Universidade Castelo Branco (UCB), no Rio de Janeiro, e coordenadora do curso de Marketing desde 2010, liderou os processos de reforma curricular do curso em 2014, de aprimoramento do quadro docente do curso, e a atualização e revisão de seu projeto pedagógico em 2011, 2013 e 2015. Ministra disciplinas de marketing para os cursos de Marketing, Administração, Recursos Humanos, Gestão Empresarial e Logística.

Carolina Romanazzi: Possui licenciatura plena em Filosofia pela UFRJ (2014), mes-tranda em Filosofia e Ensino pelo programa de pós graduação em Filosofia e Ensino do CEFET. Foi professora contratada CAp -UERJ e da rede privada de ensino. Tem interesse na área da educação com enfase no ensino com uso das tecnologias, ensino de Filosofia, e filosofia política.

daniele Gomes: Daniele é mestranda em Educação (PPGE-UFRJ), onde investiga as profanações que o cinema pode provocar ao adentrar a escola pública de educação básica, dialogando com o grupo Cinema para Aprender e Desaprender (CINEAD). Ensaia a docência desde que se graduou em Filosofia (IFCS-UFRJ). Nesse processo, enfatizou os estudos na área de Estética, perpassada pela questão do uso da imagem e do texto na educação contemporânea, tendo como companheirxs de investigação e instigação, xs membros do grupo Imagem, Texto e Educação Contemporânea (ITEC) do Laboratório do Imaginário Social e Educação (LISE - UFRJ). Aprende e ensina por todos os cantos, compartilha saberes e dúvidas, espalha alegrias em troca de sorrisos, e acredita que é possível provocar resistências tendo como intercessoras as Artes e as Filosofias. Sem roteirizar a vida, inventa e experimenta os possíveis, apostando que a transformação e a criação estão à espreita.

danelle bastos Lopes: É Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) no Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp - UERJ); dou-tora em Educação (PROPED /UERJ); foi bolsista Capes / Proex; Mestre em História Social (PPGHS /UERJ - 2011) e possui graduação em Pedagogia pela (UERJ - 2008). É membro do grupo de pesquisa Currículo, Cultura e Diferença vinculado ao (PRO-PED / UERJ), coordenado pela Profª. Drª Elizabeth Macedo; é pesquisadora associada ao Pró - índio - UERJ, coordenado por Profº. Drº. José Bessa Freire. Sua atual pesquisa concentra-se na educação com influências pós-coloniais e deleuziana que abrangem as grandes áreas da Educação, Filosofia e Antropologia. Tem como interesse os assuntos da socialidade, cosmologia ameríndia, alteridade, processos de escolarização e currículo.

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Fábio Lindoso: Fabio Martins de Sousa Lindoso ou somente Lindoso, como sou mais conhecido. Lindoso, a propósito, não tem a ver com beleza, mas com “limite”, é o que narra a história desse meu sobrenome lusitano. Nasci em São Luís, capital do Maranhão, terra de poetas, de “cantadores de boi” e de “zeladores de vodum”. Meio a tanta cultura popular, destoei... Não herdei o dom de improvisar “toadas” em verso, me enveredei pelo caminho da Filosofia. Ainda aluno de Filosofia na UFMA, assisti a luta pela reinserção da Filosofia na Educação Básica, o que foi decisivo para me tornar um professor consciente de que desmistificar a disciplina e contribuir para a consolidação do seu espaço próprio no currículo exi-gido para a formação de cidadãos não são meras virtudes ou deveres éticos, antes, são inexoráveis saberes docentes de quem leciona Filosofia. Outro saber docente é o de se indagar sempre que oportuno: como ensinar filosofia em um mundo que nos oferece tudo pronto ou já embalado “para viagem”, como fazem os “fastfood”? Pensar na transmissão de conceitos de uma determinada corrente filosófica não é uma construção qualquer e demandará do professor o quanto ele pode ser filósofo, o quanto ele é capaz de ressignificar a relação professor/aluno numa aula de Filosofia. Como professor de escola pública e de escola particular no Rio de Janeiro, estou no “limite”, mas não deixo de insistir nessa empreitada. Os desafios insinuam-se intrans-poníveis: das salas de aula precárias aos alunos analfabetos funcionais; das cobranças absurdas dos gestores que nada entendem de Filosofia à risonha bonomia dos pais que alegam amar a Filosofia, mas não deixam escapar a oportunidade para depreciá-la quan-do o critério é a aprovação de seus filhos, fazem do professor de Filosofia uma vítima diante de tantos assédios e quase um herói ao perseverar na sua sina.Na tentativa de nos traduzir, os olhos do senso comum e das ciências que circundam a Filosofia escamoteiam o real valor de nosso trabalho e acabam sucumbindo a um poço de preconceitos e falácias. Por esta razão, entendo que ensinar Filosofia deve ser, antes, traduzido por e para nós mesmos professores como POSSIBILIDADE e RESPONSA-BILIDADE: possibilidade pela construção de ideias que darão relevo seja a um pensa-mento original, seja a um pensamento incansavelmente debatido e tratar desse “cogito” é nossa responsabilidade.

Felipe Gonçalves Pinto: Técnico em patologia clínica pela EPSJV-Fiocruz e graduado em Filosofia pela UFRJ. Mestre e Doutor em Filosofia pelo PPGF (UFRJ), orien-tado pelo professor doutor Fernando José de Santoro Moreira. Estágio Doutoral no Centre Léon Robin (Univ. Paris IV/ENS). Atuou como docente de Filosofia no IFF (campus Macaé) e na EPSJV (Fiocruz). Desde o ano de 2014 é servidor público federal do Ministério da Educação como docente EBTT lotado no campus Maria da Graça

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do Cefet-RJ, onde atua nos cursos de ensino médio integrado e coordena o projeto de extensão “à Luz da Imagem”, destinado à pesquisa prática e teórica dos processos fotográficos ditos artesanais/históricos/alternativos/mistos. Membro do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN/Cefet-RJ). Pensa que filosofar é militar por algo que não sabe bem o que é, mas sabe que deve ser o melhor (ok: melhor para quem, cara pálida?!).

Gabriel Neves: Psicólogo graduado pela PUC-Rio em 2010 e mestrando do PPFEN/CEFET-RJ. Foi monitor das disciplinas de bioneurologia (2006 a 2007) e psicologia social (2007 a 2009), e participou como bolsista de iniciação científica (CNPq) no grupo Diretório Jovens em Rede (2007 a 2010) da PUC-Rio. Atuou como designer instru-cional na Coordenação Central de Educação a Distância (CCEAD) da PUC-Rio por 4 anos, tendo trabalhado também na ID materiais didáticos e, atualmente, na AfferoLab.

Humberto Amorim: Mestrando em Filosofia pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN/CEFET RJ). Professor Docente I da Fundação de Apoio à Escola Técnica (FAETEC) e da Rede Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC/RJ) na disciplina de FILOSOFIA.Na presente edição da coleção Chás para Filosofia que recebe o nome de Camomila, busco tratar da evolução da educação ou do processo de formação do homem grego (a PAIDÉIA) e sua articulação com o pensamento filosófico e político desenvolvido durante o período das epopeias homéricas, por Platão e pelos Sofistas. Entendo que a busca pela constituição de um conceito ou ideia de homem é perpassa, de maneira diferente, o debate em torno da formação do homem grego.

João Paulo: Professor e mestrando do PPFEN CEFET-RJ

Leonardo berbat de brito: Meu nome é Leonardo Berbat de Brito, sou professor de Filosofia na rede pública de ensino e resido, desde que nasci, em Macaé, cidade litorânea do Rio de Janeiro, famosa pelo petróleo contido em suas águas. Diferente da maioria dos macaenses, que geralmente escolhem uma profissão alinhada ao ramo petrolífero, apaixonei-me pelo ensino e, principalmente, pela Filosofia e sua natureza crítica, reflexiva e abrangente. Sou professor, amo o que faço e acredito, francamente, que a educação transforma positivamente o indivíduo e, por conseguinte, a sociedade. Utopia ou não, creio neste ideal, sou movido por ele e pretendo que assim seja até o fim dos meus dias.

Maria de Lourdes bastos: Estudar sempre foi uma atividade atraente, pois sempre fui afetada pela curiosidade. Ensinar tornou-se um desafio, pois aprender a melhor forma

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de aproximar-se do outro, é uma tarefa que não tem fim. A filosofia, a história e a educação foram as ferramentas mais utilizadas nesse trajeto. Como professora da rede pública de ensino, venho exercitando a delicadeza do olhar e a paciência do saber ouvir. Como mestranda Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ), venho investigando e partilhando diferentes métodos para dar mais cor a filosofia.Pensar uma forma de apresentar a filosofia, disciplina que circula por um longo ca-minho entre perguntas e respostas, práticas e fundamentos, é mais um convite para explorar novos saberes (sabores).

Miguel Angelo Castelo Gomes: Meu nome é Miguel Angelo, professor concursado do Estado do Rio de Janeiro, e leciono filosofia em duas escolas, cada qual em uma região administrativa diferente, a saber, Metros 3 e 4, nos bairros da Ilha do Governador e Cosmos, respectivamente. Sou bacharel em teologia e licenciado em filosofia, ambas as graduações concluídas na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Além disso, possuo uma especialização em Ensino Religioso, pelo Instituto Claretiano e, atualmente, curso mestrado profissional em Filosofia e Ensino, pelo CEFET-Rio, e pós-graduação em Sociologia, pelo Instituto Signorelli.

Nélio Georgini: É especialista em Empreendedorismo e Gestão de Novos Negócios (MBA-FGV-Rio, 2013), Mestre em Interdisciplinar de Linguística Aplicada (UFRJ-2007), especialista em Língua Inglesa (PUC-Rio, 2003), Bacharel em Letras (Portu-guês-Literaturas, UFRJ-2002), Licenciado em Letras (Português-Inglês-UVA-2004). Sua atuação profissional, como diretor de atendimento do Curso ER (www.cursoer.com) e pesquisador, se foca em projetos de interação/negociação no cenário de glo-balização (internacionalização) construídos pelas empresas multinacionais sediadas no Brasil. A partir de 2014, se foca em compreender a relação entre os entes públicos e privados. É integrante da primeira turma do Programa Internacional de Seminários em Governabilidade, Gerência Política e Gestão Pública (George Washington University - CAF-FGV-RJ) em 2016.

Oazinguito Ferreira da Silveira Filho: Licenciado em História pela Universidade Ca-tólica de Petrópolis-RJ, Brasil (1982), com Pós-graduação em História do Século xx concluída pela Universidade Candido Mendes-RJ (2001), atualmente realiza o Curso de Mestrado em Educação do Centro de Teologia e Humanidades da Universidade Católica de Petrópolis (2012), onde ocupa o cargo de professor de História do C.A. da mesma universidade; sendo também professor da rede publica municipal em Petrópolis

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e da rede publica estadual. Membro do Instituto Histórico de Petrópolis. Experiência na área do ensino de História, com ênfase em História Geral, Séculos xIx/xx; atuando em pesquisa principalmente nos seguintes temas: história local, história social, história da imprensa local e ensino de história.

Patricia Maneschy: Em uma trajetória de 15 anos no ensino superior, hoje pedago-ga e Doutora em educação, que vem de longa data até participar do tal momento de “formador de formador”, como nos diz Paulo Freire (1998). Não consigo deixar de estabelecer relações de processos contínuos de ensino e aprendizagem no cotidiano das salas de aula em que piso e início uma relação com inúmeros alunos por semestre. E a cada dia compreendo mais que não há respostas seguras, mas uma circularidade inédita de conhecimentos em que presentes estão: a filosofia e as demais áreas. Permitam-me os cientistas de todas as áreas, o pensamento estabelecido sobre a ciência é um nasce-douro sobre o próprio pensamento. E nesta dimensão venho expor aos colegas e todos que lerem o texto exposto, hoje neste livro, que as ideias cada vez mais são a criação e a perspectiva de manutenção de uma grande história, a dos homens, seus conhecimentos e suas formas de organização política e social. E, nesta perspectiva possam continuar as descobertas que as salas de aula e todos os demais espaços sejam permeados por momentos educativos.

Rafael Alvarenga: quando nasci o médico gritou: é um menino! E de alguma outra sala do hospital disseram que seria Rafael. Não fora escolha espontânea, meu avô pa-terno insistiu que deveria ser um nome simples de falar na hora de dar alguma ordem: Rafael vai à venda do Amaro e compra 1kg de batatas. Pronto! Livrei-me de ter um nome inventado a partir da junção de pedaços dos nomes dos meus pais, o que era comum no lugarejo.Depois de nomeado veio a certidão de nascimento e toda confusão. Nasceu no dia 22/09/1982, disse meu pai ao tabelião. Ao que minha mãe se contrapôs afirmando ter sido no dia 21/09/1982 às 23:50. Meus pais se separaram eu passei a ter dois aniversá-rios por ano.Pois bem, cresci um tanto, e passei a trabalhar para poder ir à escola. Em algum tempo tornei-me professor de filosofia!, eu dizia a todos os parentes que me perturbavam. Ao que perguntavam de pronto: Mas que é isso a filosofia? Devo dizer que sempre os achei bastante delicados, pois nunca perguntavam para que servia isso, a filosofia.Em cada cidade onde já vivi bati a porta de jornais e revistas e disse às sisudas secretárias que me atenderam que havia marcado hora com o editor chefe. Claro, ficavam todas feito baratas tontas e eu acabava conseguindo um espaço estreito para escrever literatura, uma das paixões que há tanto me acompanham.

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Faz tempo, penso que a filosofia deve ser de todos e para todos. E por isso gasto tanta fibra de meus músculos buscando trabalhar ideias filosóficas através de personagens. Já assinei como Rafael Gomes, mas, por enquanto, prefiro Rafael Alvarenga. Dois perso-nagens interpretados por um ator que em 2008 se graduou em filosofia pela UFRJ e em 2015 se especializou em Educação Tecnológica pelo CEFET-Rio onde agora aparece como mestrando pelo PPFEN.Com a literatura, esse ator – um eu mesmo que nunca é o mesmo, participou de livros junto a outros autores e individualmente. Seu nome esteve em concursos literários por todo Brasil e até fora dele. E suas histórias ainda correm em jornais de Resende e Cabo Frio, bem como em um blog pela internet – www.ninhodeletras.blogspot.com. Hoje o que mais lhe interessa é refletir sobre a filosofia através de personagens de literatura e trabalhar para que a coleção chás para filosofia seja ainda mais cultivada.Atualmente o autor está em cartaz com o espetáculo “Filosofia e ensino através do per-sonagem Simão Bacamarte: um estudo de valores”. A entrada é franca e a classificação é [email protected]

Sérgio Anversa: Possui na área de meio ambiente e docência mais de 15 anos de ex-periência. Consultoria, Elaboração e Coordenação de projetos na área ambiental e de Educação Ambiental. Auditor ambiental possuindo mais de 100 auditorias ambien-tais realizadas no Brasil para empresas de diferentes setores; Auditor Líder Ambiental ISO 14001:2004, acreditado pela RABqSA; CRB – 24706/02-D; Docência (níveis: pós-graduação, Educação Infantil, fundamental I e II, médio, pós-médio, extensão e técnico). Mestre do Ensino de Ciências da Saúde e do Meio Ambiente pela UNIPLI; Pós-graduado em: Educação Ambiental, Análise Ambiental – SIMONSEN; química Ambiental – UERJ; Altas Habilidades (superdotação) – UERJ e Licenciatura em Ciên-cias e Biologia – FAMATH e Tecnico de Segurança do Trabaho – Colégio Realengo RJ. Coordenador do Curso de Tecnólogo em Gestão Ambiental da Universidade Castelo Branco – Realengo-RJ. Membro da comissão de Biossegurança, Membro da comissão de Sustentabilidade e do conselho da Empresa Junior.Consultor na área ambiental atuando em empresas em todo Brasil, realizou mais de 100 auditorias de conformidade Legal Pela DZ 056-R3, Resolução SMAC 550/14 (lei municial do RJ) e Resolução Conama 306/02.

Shirlei Cristina Massapust: É advogada bacharel em Direito pela Universidade Está-cio de Sá (UNESA) e Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com pós-graduação em Direito Civil (UNESA), atual aluna do Curso de Mestrado do

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Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ).

Sonia Regina Mendes dos Santos: Doutora em Educação pela UFRJ, atuando no en-sino superior há 24 anos, organiza seus estudos e pesquisa em torno da Didática como construção pensada de situações didáticas para atender aos objetivos de aprendizagem, a seleção dos meios mais apropriados e das estratégias de aprendizagem que melhor se adéquam para uma possibilidade de desenvolvimento da autonomia intelectual dos estudante, visto como autores e produtores de conhecimento num mundo em trans-formação.

Tais Silva Pereira: Doutora em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janei-ro (UERJ) e professora do Ensino Médio Integrado e do Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino, ambos no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Su-ckow da Fonseca (CEFET-RJ). Foi coordenadora do projeto “A filosofia na construção de jogos” entre os anos de 2013 a 2015.

Úrsula Maruyama: Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI) do IBICT/UFRJ. Mestre em Ciência, Tecnologia e Educação (PPCTE/CEFET-RJ) com a linha de pesquisa Inovação na Educação Tecnológica. Gra-duada em Administração Industrial pelo CEFET-RJ, MBA Gerenciamento de Proje-tos, especialização em Língua Inglesa, especialização em Gestão de Recursos Humanos e MBA Gestão Pública. Formada no ensino técnico do CEFET-RJ como eletrotécni-ca, estagiou no CEPEL/Eletrobras e trabalhou em multinacionais como ABB, Petroflex (Lanxess) e Shell. Morou 2 anos em Washington DC (E.U.A.) em intercâmbio cultural e ao retornar trabalhou 5 anos nas áreas de Logística Industrial e Negócios Grandes Contas da White Martins. Professora temporária no curso técnico de Administração CEFET-RJ (2011-2013). Analista na Gerência de Controles Internos da BB Tecnologia e Serviços, empresa controlada pelo Banco do Brasil SA (2013-2014). Ingressou como professora efetiva no CEFET-RJ (2014-atual), onde atua nos cursos de graduação em Administra-ção, Engenharias (Elétrica, Automação, Eletrônica, Telecomunicações, Mecânica), Ciên-cia da Computação e Línguas Estrangeiras Aplicadas a Negócios Internacionais (LEANI). Bolsista CEDERJ, disciplina Gerenciamento de Projetos, vice-coordenadora do curso EAD Tecnólogo em Gestão de Turismo, CEFET/RJ (CEDERJ - 2016 *). Integrante da primeira turma do Programa Internacional de Seminários em Governabilidade, Gerência Política e Gestão Pública (George Washington University - CAF-FGV-RJ) em 2016.

MÉTOdOS dE ENSINOTextos dos Mestrandos

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POP’FILOSOFIA: uM ENSINO ESTÉTICO-CONCEITuAL

Aline Oliveira Rosa Moreira

“Me parece certo que a filosofia é um verdadeiro canto, que não é o da voz, e que tem o mesmo sentido de movimento que a música.”

(Gilles Deleuze, Conversações)

INTROduÇAO

Deleuze afirma que a filosofia mantém uma relação intrínseca, e não externa e eventual, com a arte, não lhe sendo, relativamente ao pensamento, nem superior nem inferior, filósofos e artistas são igualmente pensadores e criadores. É a partir dessa re-lação que proponho um ensino de filosofia estético-conceitual, ou educação filosófico--artística, uma relação que se estabelece entre a arte e a filosofia, buscando uma filosofia intuitiva, ou sensitiva. A partir dos conceitos deleuzianos de Pop’Filosofia e Canto Fala-do enfatizo a compreensão não-conceitual e intuitiva (não-filosófica), que Deleuze diz ser constitutiva da filosofia, junto com a compreensão conceitual (filosófica). A filosofia como Pop’filosofia assenta-se na concepção de que pensar é ato criativo, privilegiando a “capacidade criativa” da atividade filosófica e de sua relação com a arte, buscando afirmar a presença de uma compreensão não-conceitual, intuitiva, dos conceitos. É por meio dessa compreensão que a filosofia se relaciona internamente com a arte, sendo ca-paz de falar diretamente para não-filósofos, como os artistas falam para um público em geral. O que a filosofia toma da arte é a sensação, objeto específico da arte, e é por meio da sensação que a filosofia pode relacionar-se intimamente com os objetos estéticos e falar para um público em geral.

Não pretendo dizer como deve ser a prática docente, mas sim trazer uma proposta de ensino estético-conceitual, encontrada na fundamentação teórica de Deleuze sobre o ensino de filosofia. Trata-se, pois, de algumas sugestões que concebe o ensino de filo-sofia como um processo de ensino que entrelace conceitos e sensações. É nesta direção que levanto as seguintes perguntas: “de que forma o professor de filosofia pode possi-bilitar esse processo para que os conceitos, juntamente com as sensações da arte, sejam trabalhados de forma a estimular a aprendizagem para a criação?”, e “Se pensar é ato criativo, como ‘ensinar a criar’?”.

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A FILOSOFIA COMO CRIAÇÃO

Em o que é a filosofia?, livro escrito em parceria com o psicanalista Félix Guattari, o filósofo francês, Gilles Deleuze, afirma que pensar é criar e a filosofia é “a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos” (DELEUZE, 1992, p. 10), “a filosofia é a disciplina que consiste em criar conceitos” (DELEUZE, 1992, p. 13). Se a filosofia é criação de conceitos, “o filósofo é o amigo do conceito, ele é o conceito em potência” (DELEUZE, 1992, p. 13). Nesse sentido, Deleuze rompe com a ideia grega de que o filósofo é o amigo da sabedoria e opera uma modificação na figura do filósofo, o filósofo deixa de ser amigo do saber ou do conhecimento para se tornar o conceito em potência, para ser o amigo do conceito, aquele que vai trazer os novos conceitos ao mundo. Com isso, Deleuze critica e abandona também a ideia de que a filosofia seja reflexão, comunicação ou argumentação. A filosofia “não é contemplação, nem reflexão, nem comunicação” (DELEUZE, 1992, p. 14), ela instaura um mundo próprio, uma linguagem própria, que não coincide com a linguagem cotidiana, com a percepção comum das coisas. Re-flexão, comunicação, argumentação são conceitos criados pela filosofia para definir a própria atividade filosófica. Eles não definem, entretanto, a especificidade da filosofia, que é “a disciplina que consiste em criar conceitos” (DELEUZE, 1992, p. 13). Isso porque há reflexão na arte, na ciência, na vida psíquica, na lógica; há comunicação e ar-gumentação na linguagem, no conhecimento em geral. A especificidade da filosofia é a criação conceitual, e, como toda criação, os conceitos são singulares, trazem ao mundo algo radicalmente novo e impensável até então. A filosofia é, pois, singular, “o conceito como criação propriamente filosófica é sempre uma singularidade” (DELEUZE, 1992, p. 15); como tal, é a fuga dos sistemas e modos de pensamento já existentes, incluindo a linguagem. Antes, pois, de definirem o fazer filosófico, a reflexão, a argumentação, a contemplação, a comunicação são conceitos criados pela filosofia, são efeitos da prática filosófica e, não, a sua condição.

Deleuze diz que “as ciências, as artes, as filosofias são igualmente criadoras, mas só compete apenas à filosofia criar conceitos” (DELEUZE, 1992, p. 13). São estas, ciência, arte e filosofia, as três disciplinas do pensamento, e pensar é criar; todas são, portanto, criadoras, mas seus objetos de criação são objetos distintos. A filosofia cria conceitos, a arte cria blocos de sensações e a ciência cria funções.

A RELAÇÃO ENTRE A ARTE E A FILOSOFIA

o jovem sorri na tela enquanto ela dura. o sangue lateja sob a pele deste rosto de mulher, e o vento agita um ramo, um grupo de homens se apressa em partir. Num romance ou num filme, o jovem deixa de sorrir, mas começará outra vez, se voltarmos

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a tal página ou a tal momento. A arte conserva, e é a única coisa no mundo que se conserva. conserva e se conserva em si (quid juris?), embora, de fato, não dure mais que seu suporte e seus materiais (quid facti?), pedra, tela, cor química, etc. (DELEUZE, p. 213, 1992)

A arte conserva a sensação, a contemplação é despertada diante da obra de arte, o sentimento de prazer aparece, o corpo é estimulado, se abre... Sensação, contemplação e sentimento de prazer compõem a experiência estética! Mas o que é a arte? E onde a arte e a filosofia se tocam?

“Composições, composições, eis a única definição da arte. A composição é estética (...), é o trabalho da sensação” (DELEUZE, p. 247, 1992). Para Deleuze, a arte produz “blocos de sensações”, “isto é, um composto de perceptos e afectos” (DELEUZE, p. 213, 1992). Os acordes musicais, os tons das cores são afectos, afectos produzidos pela obra de arte. O artista cria blocos de perceptos e de afectos, estes se sustentam por si mesmo, uma obra de arte só é uma obra de arte se ela se sustenta sem o artista, pois é próprio da arte conservar-se no tempo. Mas o que são perceptos e afectos?

os perceptos não são mais percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, percepções e afectos, são seres que valem por si mesmo e excedem qualquer vivido. Existem na ausência do homem, podemos dizer, porque o homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo das palavras, é ele próprio um composto de perceptos e afectos. A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si.” (DELEUZE, p. 213, 1992).

Perceptos e afectos não são algo que está no homem e que, desde o homem, no caso o artista, passa a habitar o mundo, eles são o novo que aparece no mundo mediante a criação de algo que sequer ainda foi pensado, mas que o pensamento, e só ele, é capaz de criar e fazer existir numa obra de arte. Nesse sentido, perceptos e afectos são devires, mas devires “não humanos do homem” (DELEUZE, p. 220, 1992). O artista quando cria ele rompe com essas percepções e afecções cotidianas, isto é, criando novos afectos e perceptos, são sensações que ainda não vivemos e que só podemos experimentar atra-vés da arte. Não pertence mais ao homem, mas pode habitá-lo também pela experiência estética; através dela, o homem passa a ser também um composto de sensações, um composto de perceptos e afectos, vindos da arte. E a arte ou seus elementos constitu-tivos constituem também o homem, uma vez que somos afetados por ela. Os artistas acrescentam sempre variedades ao mundo, “os seres de sensações são variedades” (DELEUZE, p. 227, 1992), o que ainda não vivemos, os perceptos e afectos são visões

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e devires que os artistas criam. Nesse sentido, “o artista é mostrador de afectos, inventor de afectos, criador de afectos” (DELEUZE, p. 227, 1992).

O objetivo da criação artística é “arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o afecto das afecções, como passagem de um estado a um outro” (DELEUZE, p. 217, 1992), é extrair um bloco de sensações e fazê--lo existir no tempo como uma eternidade. Esses blocos de sensações presentes na obra de arte sensibilizam, causam emoção, afetam o pensamento com o novo, o que ainda não foi pensado. A arte sensibiliza o pensamento e a emoção provoca interesse. Por isso Deleuze, quando se refere a aula de filosofia, afirma que uma aula é também emoção, é tanto emoção como entendimento, pois sem emoção não há interesse, não há nada. A emoção produz uma zona de indeterminação e é isto que dá liberdade ao pensamento. E é esse o papel do percepto e afecto na obra de arte, fazer com que o pensamento entre em movimento diante da aparição do novo, jamais visto e pensado, criação que man-tém o seu caráter de novidade no tempo.

A arte tem um tipo de pensamento cujo sentido se dá por meio de intuições, através de sensações, “tornar sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo, e que nos afetam e que nos fazer devir” (DELEUZE, p. 235, 1992) – devir = criar –, que junto à filosofia dar-se-ia pela composição entre os conceitos da filosofia e as sensações da arte. “A sensação composta, feita de perceptos e de afectos, desterritorializa o sistema da opinião que reunia as percepções e afecções dominantes num meio natural, histó-rico e social” (DELEUZE, p. 253, 1992), a arte não é opinião, é um pensamento, um conhecimento intuitivo, uma “imaginação contemplante” (DELEUZE, p. 273, 1992).

Assim como a arte, os conceitos portam perceptos e afectos, sensações, que é a sua outra metade intuitiva. No entanto, os conceitos não são somente perceptos e afectos, eles podem ser entendidos, uma vez que eles se materializam através da linguagem, ou seja, eles apresentam a forma de um enunciado linguístico, sem se confundirem, contudo, com as palavras que os manifestam, pois eles são da ordem do sentido. Eles são um modo do pensamento, que comporta um modo de ser ou de existir. O sentido do conceito só pode ser apreendido em toda a sua extensão ou compreensão, quando, além de entendidos, são intuídos. Os perceptos e afectos constituem a parte intuitiva do conceito, o não-filosófico presente na filosofia, e é exatamente isso que aproxima a filosofia da arte.

A filosofia e a arte se assemelham pelo seu objeto de criação, seu estilo deixado no objeto que cria. A arte produz figuras estéticas – o estilo deixado pelo artista – que são sensações, paisagens e rostos, visões e devires, imagens-tempo. Também a filosofia produz estilos conceituais. O estilo deixado pela filosofia é o movimento conceitual: “os conceitos tomam valores rítmicos”, tornam-se estilo (DELEUZE, p. 221, 1992),

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“é o estilo, o ‘tom’” (DELEUZE, p. 228, 1992), dobram-se e redobram-se numa escala rítmica atuando nos corpos como um modo de vida, nietzschiano, aristotélico, heide-ggeriano... Assim como a arte encarna sua matéria-prima, os conceitos se encarnam em corpos, habitam o mundo como modo de vida e, como tais, podem ser compreen-didos intuitivamente, assim como as sensações da arte. Os conceitos contêm também elementos intuitivos, compostos por sensações, perceptos e afectos. Esta é a segunda metade do conceito, sendo o conceito constituído por duas partes, duas metades, a intelectual e a sensitiva. Metades que Deleuze coloca como partes iguais, uma não se sobrepõe à outra. Deleuze defende que para que a filosofia seja entendida é necessário que o conceito seja uma união de duas metades, a conceitual e a não-conceitual. Só é possível compreender de maneira não-filosófica a filosofia, porque o conceito possui elementos não-conceituais, porque o conceito é também sensação, comportando afetos e perceptos. “Afeto, percepto e conceito são três potências inseparáveis, potências que vão da arte à filosofia e vice-versa” (DELEUZE, 1992, p. 171).

Por isso, a filosofia pode ser compreendida por não-filósofos; como uma música, uma pintura, um filme, pode despertar em alguém interesse e sentido. Por sua dimen-são não-filosófica, os conceitos podem expressar-se como um canto, podem ser ditos belos, podem emocionar, ser sentidos antes mesmo de ser compreendidos. Os conceitos não são modos de pensar sem ser também modos de perceber e sentir. A sensação faz do conceito algo vivo: é a sensação que liga o conceito à terra e o mantém vivo nos corpos em que encarna. É no encontro entre conceito e sensação que se baseia a Pop’filosofia de Deleuze: a não-filosofia no coração da filosofia como condição de audição e de abertura da filosofia para os não-filósofos, a não-filosofia como condição constitutiva da filosofia.

É dessa forma que a filosofia deleuziana é uma filosofia para não-filósofos, que se dirige a todos, e não apenas para especialistas. Existindo uma relação entre os concei-tos da filosofia e as sensações da arte. As figuras estéticas da arte não são idênticas aos perceptos e afectos dos conceitos filosóficos, já que estes podem também ser compreen-didos não-intuitivamente, “mas é na medida em que há sensações de conceitos e con-ceitos de sensações” (DELEUZE, p. 229, 1992), que a filosofia e a arte se relacionam. Isso não quer dizer que a arte precise da filosofia para existir ou a filosofia da arte, elas coexistem juntas, mantendo sua autonomia.

POP’FILOSOFIA: uM ENSINO ESTÉTICO-CONCEITuAL.

Deleuze formula o conceito de “Pop’filosofia” a partir do movimento da pop art dos anos 1960 que buscava o público leigo, atingir a todos, de maneira direta. Esse

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também é o sentido da Pop’filosofia, a filosofia indo da academia para o público em geral, tentando sair dos rígidos limites acadêmicos. Ela propõe uma compreensão dos conceitos baseada na intuição, o que pressupõe uma outra relação entre conceitos e sensações (perceptos e afetos artísticos), ligando a filosofia à arte, inserindo nos con-ceitos as sensações. Deleuze chega mesmo a dizer que os conceitos são cores, imagens e sons. As imagens estéticas interagem com os conceitos, dentro e fora da obra de arte; há e houve sempre interfaces entre conceitos e sensações estéticas. As imagens exigem outro tipo de compreensão conceitual e abrem perspectivas inacessíveis ao raciocínio lógico-discursivo. O antagonismo se dá entre um tipo de pensamento filosófico (lógico discursivo) e a arte e não entre a arte e a filosofia, quando se concebe que pensar é criar.

Nessa pespectiva, Deleuze afirma que os livros de filosofia devem ser lidos como se escuta uma música, como se vê um filme..., pois os conceitos são sons, cores, imagens. Ao contrário de um método enrijecido, a Pop’filosofia entende que a interação entre arte e filosofia é fundamental para um projeto de produção do pensamento. Além disso, uma vez que “hoje temos novas maneiras de ler, e talvez mesmo de escrever” (DELEUZE, 2004, p. 14), assim também as aulas de filosofia não podem ser engessadas, mas de-vem acompanham o movimento conceitual, num movimento artístico e estético, quase como uma dança entre conceitos, um ir e vir dos conceitos, retomando-os sempre e relacionando-os entre si, mas sempre respeitando o ritmo de cada filósofo, pois os con-ceitos são como música, diz Deleuze.

Mas uma boa maneira de ler hoje em dia seria tratar um livro como se ouve um disco, como se vê um filme ou uma emissão televisiva, como se recebe uma canção: qualquer tratamento do livro que exija um respeito especial, uma atenção de outro tipo, vem do passado e condena definitivamente o livro. Não há nenhuma questão de dificuldade nem de compreensão: os conceitos são exatamente como sons, cores ou imagens. são intensidades que vos são ou não convenientes, que passam ou não passam. pop filosofia. (DELEUZE, 2004, p. 14)

Essa citação expressa muito bem o sentido da Pop’Filosofia, advindo da Pop Art, sentido que se manifesta também na compreensão que Deleuze tem da leitura de um livro de filosofia. Para Deleuze não há nada que interpretar em um livro, não há mis-térios, os conceitos estão ali, eles vão e vem, num movimento próprio, numa dança conceitual. Não há nenhuma questão de dificuldade ou de compreensão, os conceitos são exatamente o que são. Deleuze critica a antiga concepção do livro para poucos lerem e rompe com a escrita de uma filosofia enrijecida, dura, uma filosofia para espe-cialistas. “Não há palavras certas. (...) Só há palavras inexatas para designar exatamente alguma coisa. Criamos palavras extraordinárias...” (DELEUZE, 2004, p. 13). É nesse

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contexto que Deleuze afirma: “hoje temos novas maneiras de ler, e talvez mesmo de es-crever” (DELEUZE, 2004, p. 13). Não há sequer a necessidade de ler um livro porque disseram: “É preciso ler isto! É famoso!”, ou mesmo: “Todos devem ler este livro...”. Nenhuma leitura é urgente e necessária por si só, ela se justifica pelo interesse e o sentido que pode mobilizar o leitor. Cada livro de filosofia contém o seu movimento próprio, o seu ritmo, que caracteriza o estilo do filósofo que o escreveu. É esse ritmo que poderá despertar o interesse do leitor. Há livros que são rock’n roll, há livros que são valsa, por exemplo, que ritmo podemos sentir dos livros de Nietzsche, que ritmo, dos de Witgenstein?

O estilo não são as palavras e nem as frases, é o movimento conceitual, que se eter-niza no tempo-espaço. E o mais importante em uma leitura é atentar-se ao estilo do filósofo que está sendo emitido, o seu movimento conceitual. O estilo de um filósofo é um modo de vida, um modo de existência. Um livro de filosofia deve ser lido como qualquer outro, não há uma urgência para ser lido, mas é preciso fazer sentido, é preciso seguir o estilo do filósofo, seu movimento conceitual.

A Pop’Filosofia propõe uma outra relação entre conceitos e sensações, ou, de for-ma mais abrangente, entre filosofia e arte. A Pop’Filosofia entende que as artes, ou as sensações, não são inferiores aos conceitos quando a tarefa é sensibilizar o pensamento. As sensações exigem um outro tipo de pensamento, que não é o raciocínio lógico, mas é intuitiva. A Pop’Filosofia tem uma espécie de parceria com a arte, deixando-se levar pelos perceptos e afectos da arte, que sensibilizam o aluno para a entrada do conceito. Esse processo faz parte da educação criadora que possibilita ao aluno uma aprendiza-gem intuitiva, inesperada, e, a rigor, livre e incerta. O ensino de filosofia como uma educação estética, Pop’filosofia, tem de assumir graus de incerteza e de liberdade. En-fim, na liberdade do pensar está, avaliamos, a importância do nosso tema. Assim acredi-tamos que tem de ser uma aula de filosofia: um movimento estético, onde os conceitos ressoem como música e se propaguem através das cores e sons, “com uma sonoridade pura, liberando imagens-tempo” (DELEUZE, 1992, p. 154). É sendo capaz de produ-zir tais sensações que uma aula de filosofia pode estimular uma aprendizagem para um pensamento e um corpo criativo.

A Pop’Filosofia não é um instrumento pedagógico, muito menos um material didá-tico, não é para ser entendida como um método de dar aulas de filosofia. Ao invés disso, a Pop’Filosofia entende que a filosofia, nela e por ela mesma, tem uma relação essencial com a arte. A Pop’Filosofia, não pretende padronizar um modo de dar aula, mas é um abrir-se para as relações estético-conceituais do pensamento de cada filósofo. É uma concepção de educação estética. A utilização de uma música, um filme, uma pintura em sala de aula não faz necessariamente dessa aula uma Pop’Filosófica. Ela se caracteriza

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por deixar que o próprio movimento conceitual aconteça na aula, deixar com que faça sentido ao aluno, deixar que ele seja de alguma maneira afetado... Deleuze concebe com isso uma ligação intrínseca entre pensamento e sensação, entre conceito e emoção. Uma aula de filosofia, segundo ele, é tanto emoção como entendimento. Deixar ecoar a estética do filósofo é apreender e apresentar o ritmo de seu pensamento, a relação entre seus conceitos. qual é o ritmo de um filósofo? De Aristóteles, de Platão, de Descartes, de Hegel, de Nietzsche, de Habermas?... Será que se trata da mesma aula? Será que se trata do mesmo canto? quais são os afectos e perceptos que emanam dos conceitos desses filósofos? A quem seus conceitos podem afetar? que interesses podem desper-tar? Apresentar a filosofia como Pop’Filosofia é estar atento aos efeitos que a aula pode produzir nos alunos. Ao conceber dessa forma a filosofia, Deleuze não compreende a estética como uma parte, ou uma disciplina específica, do pensamento filosófico. A filosofia já trás dentro dela, em seus conceitos, uma estética.

Se considerarmos o ensino de filosofia como um pensar criativo, o professor deve estar imerso no movimento conceitual, e que possibilite o rompimento das estruturas vigentes, isto é, romper o senso comum, o mundo da representação. Levantando pro-blemas filosóficos e suas soluções conceituais. É nessa possibilidade, talvez remota, que mora o limiar do processo criativo. Esse processo é uma construção diária, dessa forma, não haveria uma didática prévia. Assim uma aula de filosofia ultrapassa o próprio pla-nejamento didático. Ocorre aqui a mesma incerteza que se tem com o fato de não saber em que momento a filosofia pode fazer sentido e despertar interesse do aluno. Este é um processo inerente do pensar criativo.

A AuLA dE FILOSOFIA: uM CANTO FALAdO.

Como deve ser então a aula de filosofia se os conceitos têm de ser compreendidos para além de sua expressão gramatical?

Na série de entrevistas feita por Claire Parnet, filmada nos anos de 1988 e 1989, Abecedário, Deleuze afirma, em “P de professor”, que as aulas de filosofia devem ser ministradas como uma espécie de “canto falado”, “um curso é uma espécie de Spre-chgesang [canto falado], mais próximo da música que do teatro” (DELEUZE, 1992, p. 173), pois um teatro é composto de diálogos, ou seja, perguntas e respostas e para Deleuze uma aula de filosofia se dá pelo movimento conceitual. O canto falado é o re-sultado do encontro entre as vocalizações do professor e os conceitos filosóficos, o estilo de um filósofo sendo emitido num movimento conceitual. “Os grandes filósofos são também grandes estilistas. O estilo em filosofia é o movimento conceitual” (DELEUZE, 1992, p. 175). Trata-se de uma aula onde os conceitos trabalhados aproximam-se de

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uma música, onde “os conceitos são cantos” (DELEUZE, 1992, p. 186). “Parece-me certo que a filosofia é um verdadeiro canto que não é o da voz, e que ela tem o mesmo sentido do movimento que a música.” (DELEUZE, 1992, p. 2002). Não é uma aula feita a partir de perguntas e respostas, de debates e discussões, em que se defende ou ataca uma ideia ou tese por meio de premissas sobrepostas lógica e argumentativamente (nem dialética nem analítica); é uma aula em que o professor fala e os alunos devem ouvir em silêncio, como se ouve uma música, seguindo o movimento da composição, essa composição é o movimento dos conceitos, que Deleuze chama de estilo.

Essa seria uma aula magistral, onde o professor fala para os alunos, não é uma aula feita a partir de perguntas e respostas, de debates ou discussões, em que se defende ou ataca uma ideia ou tese por meio de premissas sobrepostas logicamente; é uma aula no qual se segue o movimento da composição do filósofo, como “uma composição musical” (DELEUZE, 1994, p. 64). Essa composição é o movimento dos conceitos, o estilo. Para Deleuze, o mais importante numa aula é a relação da voz do professor com o conceito, nessa junção expõe o estilo do filósofo por vocalizações. O professor deve reproduzir o movimento conceitual do filósofo, encontrar seu ritmo, fazer ecoar suas relações conceituais. As aulas devem ter um fluxo contínuo, como um canto falado, onde os conceitos são notas musicais. De fato, como se pode notar, trata-se de uma compreensão estética da aula de filosofia e da filosofia, uma proposta de aulas magis-trais, uma composição entre filosofia e arte.

o que significa uma concepção musical de aula? Acho que são duas coisas, na minha experiência. (…) conhecendo um público, o que foi o meu público, penso: sempre tem alguém que não entende na hora. E há o que chamamos de efeito re-tardado. Também é como na música. Na hora, você não entende, um movimento, mas três minutos depois, aquilo se torna claro porque algo aconteceu nesse ínterim. Uma aula pode ter o efeito retardado. podemos não entender nada na hora e, dez minutos depois tudo se esclarece. há um processo retroativo. (…) se ele é interrom-pido, é por isso que as interrupções e perguntas me parecem tolas. Você pergunta porque não entende, mas basta esperar. (DELEUZE, 1994, p. 67-68)

Como seria uma aula como um canto falado? Parece que, a partir dos relatos dos textos de Deleuze, uma aula como um canto falado é uma aula expositiva, na qual o professor está expondo para os alunos os conceitos filosóficos e os alunos primeiramen-te ouvindo. Pode-se achar que essa não é uma aula criativa, mas o criativo que Deleuze se refere não tem a ver com recursos externos a filosofia, como por exemplo um filme, uma encenação teatral, uma música. O criativo se dá no pensamento e seu protagonista é o próprio conceito, o movimento conceitual.

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Uma aula expositiva é uma aula magistral. No entanto, o silêncio do aluno não significa uma proibição de falar, de interromper a aula, o que Deleuze obviamente per-mitia. O silencio do aluno tem de ser interpretado como um processo de escuta pelo qual um novo sentido, um novo interesse podem ser despertados. Deleuze não teria a intenção de proibir a fala do aluno em sala de aula, estabelecendo uma aula arbitrá-ria, isso seria contraditório a sua proposta de “Pop’filosofia” e de “canto falado”. Mas Deleuze faz uma crítica ao modo vigente de dar aula, que compreendia a aula de filo-sofia como uma sessão de perguntas e respostas, uma aula baseada na lógica euristica. Para Deleuze, uma aula baseada em debates e/ou argumentações, onde há uma disputa entre professor e aluno sobre proposições lógicas não seria um ensino conceitual que estimule a criação filosófica. Deleuze defende uma aula que seja baseada em conceitos, o professor tem a função de apresentar o conceito aos alunos e deixar que este faça sen-tido, deixar que o aluno encontre o movimento conceitual de cada filósofo. O sentido de uma aula de filosofia não é argumentativo, é conceitual. Uma aula de filosofia é o resultado do encontro entre as vocalizações do professor e os conceitos filosóficos. É o encadeamento dos conceitos que faz da fala do professor uma composição musical, as notas desse canto são conceitos. A aula torna-se mais ou menos interessante, conforme a composição conceitual. O que conta é ouvir e esperar até que, não se sabe quando, a aula possa despertar um interesse. Despertar o interesse é fazer sentido. Assim, a com-preensão da aula não é imediata nem total, mas fragmentada e de efeitos retroativos.

A aula, diferente do debate, da discussão, é um processo lento, é preciso ouvir, pen-sar, e só depois perguntar. É preciso deixar que faça sentido, e nunca se sabe quando algo vai fazer sentido... Para Deleuze, o tempo mais adequado para um aluno retomar o assunto ao professor é o período de uma semana, onde ele dá tempo do conceito ser entendido, destrinchado dentro dele e aí, sim, se não tiver entendido, retoma-se o assunto. E não é uma questão de entender ou ouvir tudo, numa aula nem tudo é aprendido, não dá para tudo ser absorvido, mas de “acordar em tempo de captar o que lhe convém pessoalmente” (DELEUZE, 1994, p. 68), aquilo que comove e emociona. O mais importante nesse processo é o professor ser capaz de despertar no aluno uma emoção a fim de gerar nele um sentido. É somente quando isso acontece que se dá a compreensão estética, ou, como diz Deleuze, compreensão intuitiva dos conceitos (não se trata de entender apenas, mas de intuir o sentido). Deleuze chama essa compreensão de “não-filosófica”, porque é intuitiva e não discursiva. É a parte da filosofia que é afeti-va e que está no coração do conceito. Não se entende a filosofia se dela também não se tem uma compreensão não-conceitual, não-filosófica. Só entendemos o que é a filosofia quando temos as duas compreensões, a conceitual e a não-conceitual. Isso se dá quando relacionamos o conceito à sensação. É justamente por isso que, como já foi afirmado,

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a filosofia não é apenas para especialistas, é para todos – todos podem entender um conceito filosófico. A compreensão não-filosófica ocorre pela intuição de perceptos e afetos, blocos de sensações, objetos próprios da arte, imagens ou sensações estéticas (DELEUZE, 1992, p. 193). Perceptos e afetos são conceitos pelos quais Deleuze de-signa as sensações artísticas, isto é, são objetos propriamente estéticos, compreendidos intuitivamente. Essa intuição, quando acontece, provoca uma emoção, momento in-certo, pois não se sabe nem quando nem como irá acontecer. Mas é ela que desperta o interesse, o sentido da aula. Assim, para Deleuze, “uma aula é emoção, é tanto emoção quanto inteligência. Sem emoção não há nada, não há interesse algum.” (DELEUZE, 1994, p. 68). Para ser Pop’filosofia, uma aula deve ser regada de emoção. Sem isso, estaremos longe do pensar criativo. Para que isso aconteça, a aula tem de fazer sentido primeiramente ao professor. A aula exige do professor a compreensão intuitiva dos con-ceitos a fim de que ele possa expressar os afetos e os perceptos presentes nos conceitos. Para tanto, é preciso preparação, ensaio, como um músico antes de uma apresentação musical precisa ter ensaiado muito. É na repetição que se faz a diferença. É necessário uma preparação muito maior do que a duração da aula. A aula de filosofia exige do professor, como na música, preparo, ensaio e inspiração:

Uma aula é algo que é muito preparado. parece muito com outras atividades. se você quer 5 minutos, 10 minutos de inspiração, tem de fazer uma longa prepa-ração. para ter esse momento de... se não temos... Eu vi que, quanto mais fazia isso... sempre fiz isso, eu gostava. Eu me preparava muito para ter esses momentos de inspiração. com o passar do tempo, percebi que precisava de uma preparação crescentemente maior para obter uma inspiração cada vez menor. (…) É preciso estar totalmente integrado do assunto do qual falamos. isso não acontece sozinho. É preciso ensaiar, preparar. É preciso ensaiar na própria cabeça, encontrar o ponto em que... é preciso encontrar... É como uma porta que não conseguimos atravessar em qualquer posição. (DELEUZE, 1994, pp. 60-61)

Envolvendo, pois, a compreensão do movimento conceitual, uma aula é, para Deleuze, uma espécie de laboratório de pesquisa e não a exposição fria de um saber que já se tem: “dá-se um curso sobre aquilo que se busca e não sobre o que se sabe” (DELEUZE, 1992, p. 173). Um curso deve ser ministrado com paixão e não pode ser apresentado como uma conferência, rápido, sem profundidade e artificial. A aula deve ser pensada e sentida. Esse é o sentido da aula de filosofia como um canto falado, como se escuta uma música de Beethoven, sem interrompê-la, ou ainda como uma composi-ção de uma eterna dança entre conceitos, trazendo sempre a transformação, como um infinito tear de uma teia de conceitos.

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CONSIdERAÇõES FINAIS

Entendo que a aula de filosofia no Ensino Médio deve ser uma aula estético-con-ceitual, que segue o movimento dos conceitos filosóficos e o estilo de cada filósofo. O professor deve apresentar os conceitos aos alunos, possibilitando a mudança do estado inicial do aluno por meio da produção de sentido, em que o aluno tenha a liberdade de, trabalhando com os conceitos, entrar no movimento filosófico. Dessa forma, a aula de filosofia poderá contribuir para a autonomia intelectual do adolescente, do jovem e enfim, para quem for afetado pelo movimento conceitual. Vincular, no Ensino Médio, filosofia e arte nos parece oportuno, pois tal encontro pode melhor estimular o interesse do aluno por conceitos e temas filosóficos, o que pode facilitar a compreensão destes, uma vez que costumam ser entendidos como “abstratos”, a arte desempenha um papel complementar à filosofia por apresentar um tipo de aprendizagem cujo sentido se dá por meio de intuições.

Assim acredito que tem de ser uma aula de filosofia: um movimento estético, onde os conceitos ressoam como música e se propagam através das cores e sons, propagando uma estética do filósofo, seu movimento conceitual. Uma aula de filosofia é mais do que argumentativa, é som, é cor, é imagem... é uma dança entre personagens conceituais e paisagens filosóficas, um ir e vir de conceitos, respeitando o movimento estético-con-ceitual de cada filósofo. Uma aula de filosofia não é apenas entendimento, é também afeto e emoção, é conceitual e sensitiva, uma relação entre conceito e sensação (percep-tos e afactos), filosófico e não-filosófico. É uma compreensão “não-filosófica”, porque é intuitiva e não discursiva, é a parte da filosofia que é a sensação. Só entendemos o que é a filosofia quando temos as duas compreensões, a conceitual e a não-conceitual. Isso se dá quando relacionamos o conceito à sensação. Por isso uma aula de filosofia é emoção, é tanto emoção como entendimento e é sendo capaz de produzir tais sensações que uma aula de filosofia pode estimular uma aprendizagem para um pensamento e um corpo criativos. Compreendendo uma filosofia que se dirige a todos, a filosofia para não-filósofos, qualquer pessoa tem a possibilidade de entender os conceitos filosóficos, uma vez afetado por eles. O conceito de não-filosofia ou não-conceitual está no coração da filosofia deleuziana, do vinculo entre a inteligência e a emoção, entre o pensamento e a sensibilidade, do conceito como conhecimento afetivo.

Para compor uma aula de filosofia como um canto falado não há método certo, ape-nas preparação, ensaio, inspiração e emoção. Dessa forma, cada professor deve inventar a sua maneira, percorrer o seu próprio caminho, entrar no movimento conceitual e tra-çar o seu próprio movimento do pensamento pelo qual se possa compor novas relações conceituais.

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REFERÊNCIAS bIbLIOGRÁFICAS

ALLIEZ, Éric. Gilles deleuze: uma vida filosófica. Coordenação da tradução de Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Editora 34, 2000.

DELEUZE, Gilles. Abecedário: P de Professor. Claire Parnet: Transcrição integral do vídeo, 1994. in: http://escolanomade.org/images/stories/biblioteca/downloads/deleuze-o-abecedario.pdf. Acessado dia 19/06/2014.

______. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

______. Francis bacon: lógica da sensação. Tradução de Roberto Machado (coorde-nação). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

DELEUZE, G. GUATTARI, F. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

DELEUZE, G. GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Tradução de Aurélio Guerra Neto. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.

DELEUZE, G. PARNET, C. diálogos. Tradução de José Gabriel Cunha. São Paulo: Relógio D’água, 2004.

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

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dEbATE SObRE A SALA dE AuLA:ONdE ESTÁ O LÚdICO?

Gabriel Bezerra Neves

O LÚdICO COMO ASPECTO EduCATIvO

A importância da sala de aula tem sua importância e valor estratégico reconhecido de forma quase universal. Tal reconhecimento vem em muitas formas, alguns apenas repetem o senso comum enquanto outros observam os ganhos gerados pelos estudos, mas parece ser um consenso de que a escola e suas salas de aula oferecem poder, na forma de conhecimentos considerados necessários para um indivíduo ser bem-sucedido em sua coletividade.

A beleza desse consenso parece terminar rapidamente quando nos debruçamos so-bre a questão de como a escola deve passar estes conhecimentos aos seus alunos. Em-bora seja difícil imaginar que há 30 anos era comum vermos lugares no interior sem energia elétrica ou que tínhamos máquinas de escrever em vez de computadores, as escolas permanecem praticamente as mesmas nesse período (e arrisco pensar que elas vem sendo imutáveis há muito mais tempo). Embora os currículos mudem, o modelo de exposição verbal baseado em uma postura histórico conteudista segue como um padrão difícil de largar.

Ao longo de minha jornada na vida me deparei com enormes muralhas na escola que me imprimiam a marca de uma frieza determinista, como uma exigência de que eu fosse construído a partir de uma máquina industrial. A história jogava suas datas e acontecimentos de forma a serem decoradas, tais como fórmulas físicas, matemáticas e químicas. Por vezes, através do esforço extra de um professor, a experiência seria di-ferente, mais próxima de um contador de histórias apaixonado e que contamina seus ouvintes.

A partir destas experiências, uma mistura de sério com não-sério, ocorreu a faísca que iluminou o meu caminho. O ensino lúdico é uma alternativa ao modelo de ex-posição verbal, histórico conteudista que vem sendo dominante nas salas de aula. Mas como o aspecto lúdico seria justificável em métodos de ensino?

Para responder a isso considero necessário apresentar o conceito do jogo e da brin-cadeira sob uma perspectiva educacional, buscando definir estes conceitos como algo que suporte o desenvolvimento de conhecimentos práticos na obtenção do sucesso em nossa sociedade pós-moderna.

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O quE É O JOGO?

Nesta edição de coleção de chás filosóficos que buscam nos acalmar quando tenta-mos pensar a união da filosofia e da educação, proponho pensarmos a união das ideias de duas pessoas que se posicionaram na defesa da espontaneidade humana, embora em diferentes perspectivas da natureza humana.

O primeiro é o historiador Johan Huizinga, reconhecido por sua vontade de saber “como as coisas realmente eram” em culturas humanas de épocas passadas. A sua meto-dologia é bastante curiosa, pois como se fosse um Indiana Jones, Huizinga fazia uso fontes de pesquisa inesperadas, como a estética e a filologia, em suas investigações (seus colegas historiadores não eram particularmente interessados em tais obras para a busca do passado). Este aspecto de criatividade e curiosidade em seu trabalho tinha uma base na crença de que a consciência e responsabilidade do individuo eram os maiores indi-cadores de cultura, sendo essa mais do que aspectos objetivos e deterministas (quanti-tativos). O homem é repleto de elementos complexos, cujas origens nem sempre são as mais óbvias. Estes elementos sutis que participam da construção da mente de um indivíduo são explorados em sua obra “homo ludens”, onde Huizinga aponta como o ser humano é essencialmente mais que o puro racional.

From the point of view of a world wholly determined by the operation of blind forces, play would be altogether superfluous. Play only becomes pos-sible, thinkable and understandable when an influx of mind breaks down the absolute determinism of the cosmos. The very existence of play continually confirms the supra-logical nature of the human situation. Animals play, so they must be more than merely mechanical things. We play and know that we play, so we must be more than merely rational beings, for play is irrational2.

Em seus estudos sobre o lúdico, Huizinga aponta que o lúdico é uma força espontâ-nea e inegável. O brincar e o jogar são um componente que acompanha a humanidade e seus indivíduos por todas as fases e idades, embora nossa cultura tente esconder isso por trás do que chamamos de “sério” e “não sério”.

Por outro lado, nossa rotina é basicamente o mesmo modelo de um jogo, onde regras são seguidas e nossos ânimos e desânimos são alcançados através da vitória ou derrota em tais condições. Um professor e seus alunos seguem papéis tal qual o mestre

2 Livre tradução: Do ponto de vista de um mundo totalmente determinado pela a ação de forças cegas, jogos seriam totalmente supérfluos. O jogo só se torna possível, pensável e entendível quando um fluxo de mentes quebram o absoluto determinismo do cosmos. A própria existência do jogo continua confir-mando a natureza supralógica da situação humana. Animais brincam, então eles devem ser mais do que coisas meramente mecânicas. Nós brincamos e sabemos que brincamos, então devemos ser mais do que coisas meramente racionais, pois o brincar é irracional.

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e os jogadores em um RPG. Além disto, é natural do ser humano imaginar contextos criativos para motivar-se, tal como comparar seu esforço em exercícios físicos ou de estudos a alguma figura representada na jornada do herói.

A segunda pessoa que participa desta dança é o famoso filósofo francês Jean Paul Sartre, que firmou seus estudos sobre a nossa existência através de uma escrita lúdica, usando romances para demonstrar e inspirar reflexões sobre nós mesmos. Sartre acreditava em liberdade e se opunha a crença do determinismo como algo natural e confiável.

Em nosso mundo, onde a sobrevivência depende continuamente de nossas produ-ções e ganhos, acredito que as pessoas desenvolveram um gosto pelo que fornece uma chance de sucesso previsível e familiar. Salários, regras de conduta e rotinas são apenas alguns exemplos disso, onde o desconhecido é encarado como uma aventura divertida em pequenas doses ou intenso desespero em doses cavalares. Embora sejamos livres, buscamos as melhores regras para nos adequarmos, isso não é ruim, pois permite a vida em sociedade e progresso enquanto raça humana. Porém isto não implica que tenhamos desligado nossas formas mais únicas de pensamento e sentimento.

Se para Huizinga o lúdico é uma força espontânea e inegável, para Sartre tal força é a liberdade. Nossa consciência é única e trabalha continuamente para ligar o mundo sensível ao mundo inteligível de forma que nos proteja. Em outras palavras, nossa men-te aprende com as nossas vivências (que por mais semelhantes que sejam, são únicas a cada um) e nos prepara para lidar com o mundo lá fora.

Juntando suas ideias, temos que a liberdade e o lúdico são as bases formadoras da cultura de um indivíduo e sua coletividade. O jogo, seja na forma de um tabuleiro, teatro ou trabalho, é a forma pela qual forjamos nossa presença no mundo por causa de sua intensidade. Ver até onde chegamos, desafiar a nós mesmos a conseguir chegar no ponto de chegada.

O lúdico e o jogo são mais do que momentos para descargas puramente biológicas ou uma atividade contida em si. quando bem aplicado, isto é, usado de forma a res-peitar a capacidade do aluno de ir além do pré-determinado, o lúdico permite que os alunos vejam com mais do que apenas seus olhos.

O JOGO dE ENSINAR

Com a perspectiva de que o aluno é espontaneamente disposto a impulsos lúdicos e a exercer sua liberdade, professores devem fazer uso destes fatores para que o envolvi-mento em sala de aula seja o maior possível. Não é difícil lembrar meus momentos de exploração do mundo, vivendo aventuras, tudo motivado pela diversão e a busca pela liberdade de fazer mais coisas. E igualmente fácil é lembrar o quão restrito e frio eram

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os momentos em sala de aula, onde as lições de história eram passadas sem nenhum facilitador, nenhum esforço para me mostrar o porquê daquilo ser algo que eu devia me interessar salvo pela necessidade de acumular pontos abstratos nas provas.

Em tribos indígenas brasileiras o ensino tradicional é baseado na imersão das crian-ças na realidade da sua cultura. Os adultos da tribo ensinam através da convivência e participação ativa na rotina do grupo, dando ênfase a importância dos ritos e reco-nhecendo as potencialidades e desejos individuais de cada criança, colocando-as sob a orientação de um mestre da área onde ela se tornara a próxima especialista. Aqui é importante notar como o lúdico possui muitas formas, não sendo presente apenas nas formas de brincadeiras infantis ou no que tendemos a chamar de “momentos des-contraídos” ou “sem seriedade”, por isso o reconhecimento dos jovens índios como membros importantes e úteis é em si lúdico pelo reforço de suas identidades enquanto membros da aceitos dentro da tribo. O “lado” sério do lúdico será comentado em uma seção subsequente.

Ao olharmos a nossa escolha por programas de exposição de conteúdos que, mui-tas vezes, não possuem uma preocupação com as potencialidades de cada aluno como indivíduo, fico com a impressão de que o que Nietzsche apontou como “mediocridade padrão”, quando descrevia o modelo usado pelas instituições de ensino em sua época, continua como exigência padrão no nosso atual currículo.

Algumas tentativas de inovação em sala de aula merecem ser mencionadas por sua “coragem” de ir contra o tradicional assim como para servir de inspiração para os pri-meiros passos de outros professores que desejem seguir no caminho do lúdico educativo.

O jogo da paz mundial: quando o professor de ensino fundamental, John Hunter, recebeu liberdade para desenvolver um novo modelo de aula para a disciplina de his-tória, ele desenvolveu e aplicou um jogo onde os alunos eram os jogadores. O objetivo deste jogo era a obtenção da paz mundial pelos jogadores que atuaram em diversos papéis de grande importância no mundo (tais como presidentes de nações, a ONU, CEOs de empresas de petróleo, generais, entre outros). Cada aula seguiu uma espécie de roteiro onde os jogadores teriam momentos para planejar seus atos, dialogar entre si para persuadir um ao outro de apoiar seus planos, assim como para observarem a execução de suas decisões.

O manual do jogo era composto por diversas obras, de Sun tzu a tratados políti-cos, e não eram leituras obrigatórias, porém os alunos comumente recorreriam a estas leituras para obterem orientação sobre como prosseguir em suas respectivas áreas. O jogo também dava a liberdade para os alunos agirem como bem entendessem, o que permitiu que atos bélicos e hostis fossem conflagrados, embora o jogo respondesse com

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atividades que faziam com que os jogadores tomassem consciência de seus atos (inclu-sive escrevendo cartas para os pais de soldados que morreram em guerras criadas pelos jogadores).

O resultado, no fim, foi a apreensão dos alunos em relação ao fracasso no objetivo do jogo devido ao excesso de atividades egoístas que eles realizaram ao longo do ano. E em um último momento recorreram a um grande acordo, onde ricos e pobres foram equalizados pelo esforço comum.

Um relato completo desta experiência pode ser encontrado nas referências biblio-gráficas deste capítulo, porém é notável como o jogo conseguiu pôr em contato com os alunos não apenas conteúdos do currículo (na forma do seu manual de jogo e orien-tações do próprio professor), mas também a realidade social e afetiva do nosso mundo dominado por atos de egoísmo, vaidade e necessidade por vitória a qualquer custo, tornando a sala de aula algo muito maior do que a exposição verbal de conteúdos para a realização de uma prova bimestral ou de vestibular.

quest to Learn: Na página digital deste projeto há a seguinte descrição: “Uma escola pública de Nova York pioneira que oferece um promissor novo modelo para o engajamento de estudantes”. Esta escola investiu recursos em um experimento envol-vendo jogos e ensino pelo esforço conjunto de professores e game designers para criar um ecossistema educacional que surpassa as quatro paredes da sala de aula. Fazendo uso da experiência lúdica eles transformam o aprendizado em algo excitante e que captura o interesse do aluno, mantendo-se culturalmente e curricularmente relevante.

A quest to Learn alterou o seu currículo escolar para seguir o modelo de jogos, onde o estudante (tal qual um jogador) se vê necessitando de saber mais. Isso é co-mum em modelo de contação de histórias em jogos, onde o foco não é no conteúdo mas na forma de apresentação do mesmo. Isso não significa dizer que há perda de conteúdo, apenas que eles é melhor absorvido se houver interesse do envolvido, aluno ou jogador.

JOGO COMO COISA SÉRIA

Ensinar de forma divertida já é uma realidade inegável, mas é possível resistir a isso apelando para um sentimento de lealdade aos modelos tradicionais de ensino. Não é difícil nos convencermos de que o trabalho extra de tornar algo agradável e, talvez, informal não vale a pena pois o conteúdo não dá base para isso. E para reafirmar essa dificuldade existe a preconcepção de que jogos não são coisa séria. Huizinga (2000, pg. 5) percebeu isso e comentou algumas definições comumente utilizadas para o jogo:

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A psicologia e a fisiologia procuram observar, descrever e explicar o jogo dos animais, crianças e adultos. Procuram determinar a natureza e o significado do jogo, atribuindo-lhe um lugar no sistema da vida. A extrema importância des-te lugar e a necessidade, ou pelo menos a utilidade da função do jogo são ge-ralmente consideradas coisa assente, constituindo o ponto de partida de todas as investigações científicas desse gênero. Há uma extraordinária divergência entre as numerosas tentativas de definição da função biológica do jogo. Umas definem as origens e fundamento do jogo em termos de descarga da energia vital superabundante, outras como satisfação de um certo “instinto de imita-ção”, ou ainda simplesmente como uma “necessidade” de distensão. Segundo uma teoria, o jogo constitui uma preparação do jovem para as tarefas sérias que mais tarde a vida dele exigirá, segundo outra, trata-se de um exercício de autocontrole indispensável ao indivíduo. Outras vêem o princípio do jogo como um impulso inato para exercer uma certa faculdade, ou como desejo de dominar ou competir. Teorias há, ainda, que o consideram uma “ab-reação”, um escape para impulsos prejudiciais, um restaurador da energia dispendida por uma atividade unilateral, ou “realização do desejo”, ou uma ficção desti-nada a preservar o sentimento do valor pessoal etc.2 .

A ideia de que o jogo é um efeito de relaxamento biológico e nada mais é inadequada se observamos que mesmo adultos se deixam levar por seus sentimentos e pensamen-tos. Música, filmes, passeios e viagens são coisas divertidas porque apelam para algo em nós diferente de razão pura, nossa criatividade parece andar de mãos dadas com a nossa capacidade de nos perdermos em nossa própria mente, elucubrando em histórias fantásticas, tal qual como crianças que montam um trem de verdade a partir do enfilei-ramento de cadeiras da mesa de jantar. Somos seres suprarracionais segundo Huizinga, e isso pode ser observado no texto de Hélio Schwartsman onde ele aponta que:

“Não pense numa revoada de pássaros. Dileto leitor, por maior que seja a sua boa vontade para com este escriba, se você leu a frase anterior, é cognitiva-mente impossível que não tenha pensado numa revoada de pássaros. (...) a ideia de jogo está por trás de todas as instituições culturais, incluindo filosofia, linguagem, arte e, claro, o direito. Traços disso estão por todos os lados. Na Inglaterra advogados e juízes ainda usam perucas (por aqui só sobrou a toga). A coisa funciona porque aceitamos os resultados desses jogos como legítimos e não os contestamos de forma violenta.”

Schwartsman neste trecho se refere a questões de política e justiça e seus pedidos irreais sobre a nossa capacidade de ignorar o que sentimos. É real a impossibilidade de ignorarmos seletivamente informações nas quais estamos imersos, mas isso parece ser parte do sistema que construímos. Tribunais e palcos políticos são mais formais e

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compostos de pessoas que desejam aceitar as tais regras (e inclusive as utilizam em suas estratégias de jogo), mas como lidar com isso nas escolas?

Não é viável esperar que crianças e jovens tenham a vivência necessária para aceitar a regra de que as lições que lhes são faladas são sem gosto e a falta de esforço em utilizar suas imaginações e a intensidade do brincar.

MINHA PROPOSTA dE MATERIAL dIdÁTICO

Para apresentar uma alternativa à realidade conteudista e, por vezes, indiferente a necessidade dos alunos por um viés lúdico, meu projeto envolve a construção de um livro jogo que oferece uma leitura não linear para o aluno. Baseado nas antigas séries de aventuras fantásticas, o leitor acompanha a história de forma a escolher que decisões são tomadas e quais são os resultados dessa escolha.

O protótipo é desenhado para auxiliar um professor que esteja lecionando sobre in-trodução a filosofia, como se respondendo a pergunta “o que é a filosofia?”, e isso acei-tando a proposta de Cerletti (2009) sobre o ensino da filosofia não ser exclusivamente sobre sua história e conteúdos, mas também de incentivar os alunos a aquecerem suas mentes para o processo de investigação dos seus mundos através da própria filosofia. Inspirar em novas gerações as mesmas intensas curiosidades que os antigos filósofos sentiam e, por elas, motivados a crescer suas visões de mundo.

A produção deste material didático visa auxiliar o professor de forma a incentivá-lo a adotar mais métodos lúdicos em sua aula. Portanto o plano de aula que acompanhará este livro jogo não será invasivo, sendo intencionalmente persuasivo, explicando formas de inserir esta interação com a turma sem quebrar o currículo deles. Evidentemente, por se tratar de um protótipo, é esperado que o objeto didático sofra múltiplos ajustes para adequá-lo a realidade da sala de aula.

O roteiro deste livro jogo é a parte do projeto que oferece os maiores desafios, exigindo que seja feita a apresentação de conteúdos filosóficos, não linear e gerando a intensidade e desejo espontânea dos aprendizes. A escolha dos textos ainda está em aberto, mas os dialógos de Platão são por natureza informais por se tratar de diálogos com perguntas cujas respostas geram diferentes reflexões. Um romance que adeque conhecimentos filosóficos com a narrativa baseada (livremente) na estrutura narrativa da jornada do herói também é uma possibilidade.

CONCLuSÃO

Embora o jogar seja uma das atividades mais antigas da raça humana, a pós modernida-de parece ter herdado um descaso com ela, trancando-a em um papel abaixo do “sério”.

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Pequenos e discretos movimentos ao longo do mundo vem alterando isso muito por conta dos perfis radicalmente destoantes das novas gerações com as anteriores. Se a escola almeja manter o seu papel como formadora de pessoas pensantes e intensas é ne-cessário que ela seja aberta a novas possibilidades, dentre as quais, acredito, a aplicação do lúdico tem maior potencial.

REFERÊNCIAS bIbLIOGRÁFICAS

CERLETTI, Alejandro. O Ensino de Filosofia como problema filosófico. Trad. Ingrid Müller xavier. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

Detmer, D. Sartre on Freedom and Education. Berghahn Books, v. 11, n.1/2, pp. 78-90, Huizinga, J. Homo Ludens. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.

Neves, G. Homo Ludens Encontra o Computador. In: MAMEDE, M.; CASTANHEI-RA, M. (Org.). Coisas são coisas até que os jovens em rede provem o contrário. Rio de Janeiro: Neves, G. Crueldade, ofensas e provas de amizade na internet e nas torcidas organizadas. In: Maneschy, P. (Org.) Em pauta: Juventude ‐ percursos entrecruzados. Rio de Janeiro: Publit Soluções Editoriais. 2008. p. 21‐31.

Neves, G. O que é design instrucional. In: CASTANHEIRA, M. Capim Limão espere esfriar: Ensaios sobre produção do conhecimento, material didático e outros textos. Rio de Janeiro: Publit Soluções Editoriais. 2016. p. 128 ‐ 136

Thomson Gale. Enciclopédia Internacional de Ciências Sociais - Johan Huizinga. Dis-ponível em: <http://www.encyclopedia.com/topic/Johan_Huizinga.aspx> Acesso: 26 de abr. 2016

questo to Learn. Institute of Play. Disponível em: <http://www.instituteofplay.org/work/projects/quest-schools/quest-to-learn/> Acesso: 1 de maio 2016

World Peace Game. TED Talk – John Hunter. Disponível em: <https://www.ted.com/speakers/john_hunter> Acesso: 1 de maio 2016

World Peace Game Foundation. Disponível em: <http://www.worldpeacegame.org/> Acesso: 1 de maio 2016

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O ENSINO dA FILOSOFIA ATRAvÉS dE PRÁTICAS AudIOvISuAIS

Carolina Romanazzi

INTROduÇÃO

Observando algumas pesquisas existentes bem como o espaço escolar, podemos evi-denciar que desde muito cedo e antes mesmo de frequentar a escola crianças e jovens já trazem de casa uma forma “nova” de apreender as informações. Isso se deve a presença das tecnologias audiovisuais presentes em sua vida desde a infância “Integrar as novas tecnologias nas escolas é uma iniciativa válida principalmente porque estas estão inseri-das na vida do sujeito desde muito cedo” (BACEGGA. 2002. p.5). Estas proporcionam novas possibilidades de aprender as mais diversas informações principalmente devido à precocidade que se inserem na vida desses jovens.

BACCEGA (2002) nos diz que:

[...] as crianças chegam à escola já alfabetizadas. Não na alfabetização que im-plica a escritura, mas na alfabetização audiovisual. É o que Huergo chama de alfabetizações pós-modernas. [...] Desse modo, a alfabetização possibilita uma mudança drástica e irreversível no ethos: enquanto abre novos caminhos para o conhecimento e para a cultura, fecha outros definitivamente. A alfabetiza-ção, associada à lógica escritural e à escolarização, provoca processos dos quais não se volta atrás. Ocorre que a lógica da escritura foi colocada em segundo plano nas últimas décadas. Ela foi ultrapassada pela hegemonia audiovisual e isso traz consequências. [...] a alfabetização que as crianças trazem para escola é essa: oralidade secundária, resultado da comunicação generalizada, da socie-dade dos meios de comunicação. (BACEGGA, 2002, p. 2).

Nesse trabalho a proposta é trazer novas leituras para o audiovisual que o insira nas escolas não de forma instrumentalizada, mas sim de modo que seja capaz de promover diálogos entre os sujeitos a fim de através dessa experiência colaborar com a construção intelectual dos educandos, bem como com o ensino da Filosofia.

Alguns questionamentos são importantes nesse trabalho, por exemplo: como inserir o audiovisual na escola? que tipo de efeito ele produz quando relacionado diretamente ao processo de construção de conhecimento de uma disciplina?

Acreditamos que um fato já dado é que o audiovisual tem servido, em sua maioria, a um propósito que não seja educar e emancipar os sujeitos e isso em parte é responsável

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pela recusa da escola a sua inserção em seu espaço que por essência objetiva formar sujeitos emancipados. Obviamente fazemos essa colocação com a devida ponderação principalmente porque não podemos ignorar a existência das tvs educativas, bem como das demais formas de apropriação do audiovisual. Outro ponto importante que não podemos esquecer é que não possuem um fim meramente publicitário ou comercial. Os apontamentos feitos estão relacionados principalmente ao tipo de audiovisual que se produz principalmente com o advento da Indústria Cultural.

Se analisarmos a perspectiva teórica de Theodor Adorno e Max Horkheimer, na obra Dialética do Esclarecimento, (1985), pode-se identificar, através da Indústria Cultural3, a importância dos veículos de massa na formação dos indivíduos. 

Como explica Guillermo Orozco Gómez:

O que está acontecendo é um fenômeno onde a lógica tradicional da lingua-gem escrita está se modificando por outra; sobretudo do hipertexto, do digital. Sobretudo as capacidades das novas gerações têm sido modificadas porque podem mais rapidamente assimilar informações simultaneamente, de diferen-tes meios. Entretanto, as novas gerações podem não ser experts na lógica da linguagem escrita, que é a exigida pelos professores na escola. (Orozco, 2005, p.18)

A TV, por exemplo, encontra-se no quotidiano de jovens e adultos desde a infância, sendo ela responsável por um processo de “alfabetização” não formal, ou seja, aquela que se dá fora do espaço escolar. Dessa maneira, não temos como negar que o audio-visual exerce sim influência na vida dos sujeitos e que esta vai além do consumo, passa também pelo modo como as pessoas passam apreender as informações. Diante disso, retomamos mais uma vez ao questionamento inicial: porque não inseri-las no espaço escolar? Claro que não devemos ser ingênuos e crer que essa proposta será capaz de sanar definitivamente os problemas que encontramos na escola.

Orozco nos diz que:

[...] há um suposto implícito de que a escola está muito atrasada com relação aos aparelhos tecnológicos e que, então, a solução é trazer a tecnologia para que a educação tenha êxito. Parece-me que existe um reducionismo, porque a educação não depende só das tecnologias [...]. [...] crê-se que as tecnologias têm um poder enorme para resolver qualquer tipo de problema. E isso não

3 Indústria Cultural é o conceito, proposto pelos filósofos da escola de Frankfurt Theodor Adorno e Max Horkheimer em 1947, na obra Dialética do Esclarecimento (1985), e refere-se ao modo como os meios de comunicação de massa se apropriaram dos bens culturais e passaram a comercializa-los segundo o mo-delo do sistema de produção capitalista e, através de técnicas fetiche, criando no indivíduo a necessidade de consumir tudo aquilo que lhe é apresentado

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é verdadeiro. [...] há de se modificar na escola, a filosofia e a metodologia educativas, só assim se poderá aproveitar as novas tecnologias. (Orozco. 1998. p. 80).

Nesse trabalho propomos pensar na inserção do audiovisual não só para auxiliar no processo de ensino, mas também na construção de sujeitos emancipados, levando em conta que a escola exerce importante papel na construção do sujeito frente à sociedade. Além disso, o texto visa trazer que o trabalho das imagens pode sim ser uma proposta interessante e atuar concomitantemente com a escola na produção de conhecimento. Essa experiência deve ser capaz de afetar o estudante, aguçar sua sensibilidade, e não apenas funcionar como uma prática de produção cinematográfica sem propósito claro.

Para tanto é importante entender e diferenciar a televisão que se “produz” com fins educativos daquela com fins comerciais.

Como diz Adorno:

Em primeiro lugar, compreendo “televisão como ideologia” simplesmente como o que pode ser verificado, sobretudo nas representações televisivas norte-americanas, cuja influência entre nós é grande, ou seja, a tentativa de incutir nas pessoas uma falsa consciência e um ocultamento da realidade, além de, como se costuma dizer tão bem, procurar-se impor às pessoas um conjun-to de valores como se fossem dogmaticamente positivos, enquanto a formação a que nos referimos consistiria justamente em pensar conceitos problematica-mente, como estes que são problematicamente assumidos meramente em sua positividade, possibilitando adquirir um juízo independente e autônomo a seu respeito (ADORNO, 1985, p.79).

Apresenta-se a possibilidade de inserir o audiovisual dentro da escola de modo que estas colaborem com apreensão de conceitos filosóficos (sem instrumentaliza-los, é cla-ro,) e sempre atento à importância da presença do professor. “Um ensino através da televisão evidentemente só funciona de modo correto quando o professor presente à transmissão discute e explica o que foi apresentado” (AMBROZINI, 2014, p.90).

Além disso, pretendemos também ressaltar que esse debate não é novo, a discussão de como pensar a escola e a cultura audiovisual já é alvo de muitos pesquisadores que se debruçam sobre o tema. Especificamente nesse trabalho esperamos que se produzam dois efeitos que são fundamentais: primeiro deles é a experiência do dialogo com as imagens no espaço pedagógico com intuito de produzir obras audiovisuais bem como colaborar na formação dos sujeitos. O segundo consiste em partindo do primeiro ensi-nar conceitos filosóficos aos educandos.

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1. A pedagogia da tevê e dos meios de comunicação: Alfabetização e implicações na vida do indivíduo

Os veículos de comunicação de massa tem sem dúvida alto poder de penetração na vida das pessoas, daí a tese de que a Indústria Cultural funciona como um modelo de “alfabetização” dos telespectadores.

BACCEGA (2002) nos diz que:

[...] as crianças chegam à escola já alfabetizadas. Não na alfabetização que im-plica a escritura, mas na alfabetização audiovisual. É o que Huergo chama de alfabetizações pós-modernas. [...] Desse modo, a alfabetização possibilita uma mudança drástica e irreversível no ethos: enquanto abre novos caminhos para o conhecimento e para a cultura, fecha outros definitivamente. A alfabetiza-ção, associada à lógica escritural e à escolarização, provoca processos dos quais não se volta atrás. Ocorre que a lógica da escritura foi colocada em segundo plano nas últimas décadas. Ela foi ultrapassada pela hegemonia audiovisual e isso traz consequências. [...] a alfabetização que as crianças trazem para escola é essa: oralidade secundária, resultado da comunicação generalizada, da socie-dade dos meios de comunicação. (BACEGGA, 2002, p. 2).

O que o audiovisual traz é uma “alfabetização” múltipla, essa oralidade secundária que se deve à “hegemonia audiovisual”. Na contemporaneidade é difícil pensar em for-mas de apreensão de conteúdos que não se aproximem dessa realidade na qual crianças, jovens e adultos estão inseridos.

A multiplicidade de informações que evidenciamos ao observar a estrutura com a qual, principalmente o audiovisual expõe seus conteúdos é em parte responsável pela nova estrutura de percepção que os estudantes possuem. Segundo xavier (2008) “Um dos vetores fundantes da organização do fluxo de imagens é a velocidade. A velocidade vertiginosa com que as imagens são transmitidas, e até justapostas, interfere nas rítmi-cas perceptiva e cognitiva do espectador”.

O audiovisual gera essa educação, que é resultado de sua entrada na vida das pessoas precocemente, como diz Baccega (2002) “Assim a televisão introduziu-se como fonte de educação que não pode ser ignorada”. É necessário aceitar que o audiovisual tam-bém proporciona um processo de aprendizagem. Eles não visam o desenvolvimento no âmbito da escritura e de conteúdos programáticos, pois não estão comprometidos com isso, mas ainda assim exercem influência no processo de apreensão das informações. Os jovens estão impregnados desse novo modo de pensar, construir e desenvolver ideias por meio do imaginário.

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As gerações contemporâneas estão familiarizadas com um novo modo de assimilar informação. Isso se deve principalmente à forma como as informações são apresenta-das. A televisão, por exemplo, proporciona grande variedade de informações que, por diversas vezes, aparentemente acontecem em tempo real. Segundo xavier (2008), “A sociedade contemporânea “videota” vive subordinada a uma política da velocidade que prescreve o eterno presente”. Também não podemos deixar de apontar para as barrei-ras que o audiovisual rompe. Todos tem acesso às mesmas informações, é “extinto” o muro entre as diferentes faixas de idade. Nesse sentido, o que temos é uma ruptura com a ideia de informações que separam as diferentes faixas etárias. Já que a imagem prevalece, e a esta todos tem acesso, a informação chega teoricamente do mesmo modo a todos por meio da imagem. Ou seja, por meio da imagem podemos apresentar, com adequações a idade é claro, grande clássicos de literatura a uma criança.

Os signos que compõem a publicidade na TV são destinados a atingir os sentidos, a emo-ção do telespectador. Imagens simbólicas funcionam no inconsciente, na construção da ideia de felicidade e necessidade. Elas são associadas a um discurso persuasivo, o ideal de perfeição, beleza, realização, que cooperam para despertar no telespectador a necessidade de consumo.

A publicidade também utiliza o mecanismo de identificação do telespectador com o personagem. Isso se dá de maneira que esse reconheça na personalidade algum mo-mento que ele já tenha vivido provocando as mais diversas sensações.

Assim, o indivíduo consome não por uma necessidade real ou pela utilidade do produto e sim porque o consumo satisfaz uma ideia de prazer que a indústria cultural, através de seus mecanismos, estimula.

Isso se estende para além de bens materiais, ela contribui também na construção dos padrões de beleza masculino e feminino, nos modelos comportamentais que suposta-mente são de determinada classe social; em alguns casos colaboram para a manutenção de preconceitos e estereótipos existentes, etc. Como diz Baccega (2001), “a televisão atua na área dos valores. Ela ajuda a construir, por exemplo, uma imagem de mulher e a difunde em sua programação, partindo sempre dos ideais postos presentemente ou virtualmente”.

Seu poder é confirmado na medida em que é capaz de influenciar as decisões dos sujeitos em maior ou menor grau, segundo Adorno “o mundo inteiro é forçado a pas-sar pelo crivo da indústria cultural”. Esse poder se reflete no lema: é imprescindível se adequar ao existente. Agir em conformidade com determinado padrão, seja pelo uso de trajes, objetos, gostos e até mesmo nas ações, equivale à aceitação social. O grande triunfo da Indústria Cultural é, por meio da propaganda, se apresentar como aquela que possibilita ao telespectador tal aceitação.

A isto se soma a perda da individualidade, propagando a ideia de bens culturais ao al-cance de todos por meio do consumo. Com a necessidade de inserção do indivíduo dentro

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dos padrões pré-estabelecidos, a indústria cultural castra a possibilidade do sujeito expor sua individualidade.4 Cabe adequação ao existente, não havendo espaço para o diferente.

2. As tecnologias contemporâneas e a escola

Nesse sentido, nos propomos a pensar em que medida inserir tais tecnologias na escola é uma iniciativa válida. Podemos pensar que a incorporação do audiovisual na escola pode funcionar como uma estratégia para que os estudantes se apropriem dessas tecnologias, sobretudo por identificar que estas já fazem parte de seu quotidiano.

O primeiro ponto de partida da produção audiovisual na escola - no mero registro de atividades - quase sempre desconsidera os aspectos de linguagem audiovisual afeitos, necessariamente, aos produtos que se deseja construir com a câmera. O segundo destino [...] muitas vezes passa por cima das especifici-dades da linguagem audiovisual, limitando-se a explorar os recursos técnicos – da câmera digital, do aparelho celular, da máquina fotográfica- [...].

Com o uso deste na escola, é preciso trabalhar a partir de uma experiência formativa, fazendo com que os “registros audiovisuais deixem de ser vistos como meios, para serem vistos como fins em si mesmos”. Parece interessante que se reflita sobre a potencialidade não só do uso das tecnologias nas escolas, mas também na influência na vida pratica das pessoas.

Segundo Fresquet (2010):

Pensar a produção audiovisual no contexto de uma proposta formativa, de-senvolvida no âmbito da escola, implica considerar os processos de construção de conhecimentos pressupostos no desenvolvimento das atividades, dentre as quais, a produção audiovisual, em si mesma, seja tomada como a culminância dessas atividades. Nesse sentido é preciso considerar [...] conhecimentos histó-ricos da linguagem cinematográfica, de recursos técnicos [...] mobilizados para a estruturação de um texto audiovisual. (Fresquet. 2010.p 228).

É preciso entender, por exemplo, a importância da elaboração de um roteiro para a produção de um material audiovisual, que funcione como um canal de orientação para o desenvolvimento do produto final que se deseja apresentar, no caso, a aula.

Pensando ainda no desenvolvimento de práticas educativas das experiências audio-visuais, é conveniente refletir sobre a relação entre a imagem e a palavra escrita e sua potencialidade na geração de significados.

4 Adorno e Horkheimer apontam que a indústria cultural trata a todos nós como seres substituíveis. A televisão aparelhada pela indústria cultural traz consigo a ideia de pseudo-individualidade, uma vez que o individuo desaparece e passa a ser considerado objeto da indústria cultural.

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A FILOSOFIA POR MEIO dA IMAGEM

Aqui cabe pensar sobre as questões que permeiam as especificidades do Ensino da Filosofia nas escolas e o uso desse aparato audiovisual, promovendo um diálogo entre os textos e a apresentação dos conceitos filosóficos.

Tal inquietação e proposta se deve principalmente à obrigatoriedade do ensino da Filosofia nos estabelecimentos de educação básica e as dificuldades de lecionar devido a diversos fatores, como: a linguagem pouco usual dos textos de Filosofia, a particula-ridade do trabalho com os conceitos que são recriados e adquirem novos significados ao longo do tempo e o caminho que se percorre até se chegar a determinado conceito.

Sabemos que tradicionalmente uma das maneiras mais comuns de acesso à filosofia na contemporaneidade é por meio dos textos filosóficos. Nas universidades, nós profes-sores, acessamos os conceitos filosóficos através de leituras das fontes primárias e secun-dárias. A ideia de contemporaneidade foi salientada, visto que, a filosofia ao menos na Grécia nem sempre foi acessada por meio de leituras.

Retomando ao ponto anterior, o professor ao se inserir no espaço escolar reproduz essa prática na educação básica. O que se desvela nesse caso para o professor é que agora está inserido numa nova configuração de aprendizado e que estratégias para a prática docente são importantes para a sala de aula.

Admitindo que o audiovisual é potencialmente atrativo propomos pensá-lo não só como produção de entretenimento, mas também de conhecimento e nesse caso um muito específico, que é a filosofia. Acreditamos que com o domínio de técnicas audiovisuais, mesmo que as mais básicas, possamos ensinar conceitos filosóficos. Sa-lientamos que quando é colocada a importância de domínio das técnicas audiovisuais, estamos apontando para o processo que se dá para a produção de material audiovisual. Ou seja, ressaltar a importância de entender o processo inicial e final de produção de um material audiovisual por acreditar que essa etapa também é fundamental para a elaboração do nosso material. Isso se justifica principalmente pela ideia de colaborar com um processo de emancipação e leitura critica do audiovisual dos sujeitos, no caso educadores e educandos.

Apenas como um exemplo poderíamos propor como audiovisual conceitos filosófi-cos usando como base leitura e estudo do texto filosófico, e após isso adequação desse conceito ou texto aquilo que esta sendo investigado.

Marcondes:

[...] o instrumento fundamental deve ser, ao menos de inicio a leitura e a inter-pretação dos textos mais relevantes para o interesse do estudante. [...] todos os métodos de leitura e interpretação de textos, estrutural, hermenêutico, históri-

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co, analítico podem ser válidos e úteis nesse sentido, o importante é que sejam escolhidos em função do papel que podem exercer e que venham transformar-se em instrumentos do desenvolvimento da reflexão de cada um. Isso significa que mesmo nos níveis introdutórios, a leitura dos textos é indispensável.

Também é necessário não só entender as técnicas que envolvem as criações audio-visuais, que vão dialogar em conjunto com os textos. Essa proposta se mostra interes-sante na medida em que além de incentivar a pesquisa em fontes secundárias de textos filosóficos, desperta também o interesse em identificar como acontece o processo de produção de obras audiovisuais. Além disso, ela traz a possibilidade dos estudantes participarem ativamente na formação de seu próprio conhecimento.

Por esse e outros motivos parece interessante que o professor tenha em mente alguma estratégia de aproximação para que os alunos despertem sua curiosidade sobre a disciplina.

Para Marcondes (2004)

O grande desafio para o ensino da Filosofia consiste em motivar aquele que ainda não possui qualquer conhecimento do pensamento filosófico, ou sequer sabe para que serve a Filosofia, a desenvolver o interesse por este pensamen-to, a compreender sua relevância e a vir elaborar suas próprias questões. [...]. Deve-se então partir da realidade destes estudantes, de seu contexto, de sua experiência de vida, de suas inquietações. É preciso ser sensível a seus dilemas e interesses.

Num primeiro momento, é importante que o professor acredite que ensinar a fi-losofia também é um problema filosófico, daqueles que ele estudou na universidade. Propomo-nos a pensar que esse problema se inicia justamente no momento em que refletimos sobre como transmitir esses conteúdos, o que já é caracterizado como um problema filosófico por muitos autores.

Conforme diz Cerlleti:

[...] à diferença de outras disciplinas, nas quais a definição de seu campo não é um problema disciplinar complexo (para um geógrafo ou físico não é difícil deslindar seu território a partir de seus objetos de estudo), para a filosofia, a delimitação de seu campo já é um problema filosófico.

O caminho para o ensino da Filosofia passa por uma tarefa onde a delimitação de um campo já é um problema filosófico. Entendemos que isso impõe ao professor de filosofia uma lógica onde este deve criar condições para que a filosofia seja ensinada a partir de questionamentos gerando condições para tal, levando em conta que “ensinar, ou tentar transmitir, é também e antes de tudo um desafio filosófico”.

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Supõe-se que, ao planejar uma aula, o professor faz um exercício filosófico de res-ponder a inquietações que são o motor de determinado problema e que ao apresentá-lo para os estudantes, com os estímulos necessários, estes farão o mesmo movimento.

O que se propõe é que os estudantes exerçam o esforço de investigação sobre aquilo que é apresentado em sala de aula. E, para que isso aconteça, cabe ao professor causar inquietação nos alunos a partir do material que utilizará para abordar os conteúdos.

Como diz Cerletti (2008):

Cada planejamento estará construído sobre a base de inquietações filosóficas do professor e de seus alunos... Se for necessário cada planejamento ir se mo-dificando em parcial ou mesmo totalmente em função do seu objetivo fun-damental: filosofar. Se em sentido estrito considerarmos o ensino de filosofia filosófico, o professor deverá ser um filósofo, que cria e recria cotidianamente seu mundo de problemas filosóficos e suas tentativas de resposta, isto ele não faz sozinho, mas com seus alunos.

Desse modo, ao darmos aulas de Filosofia na educação básica, é interessante ressaltar que estamos proporcionando ao estudante o acesso a formas distintas de abordagem de problemas que por vezes estão inseridos no próprio quotidiano da vida do estudante. A relevância da filosofia se dá também quando o jovem é capaz de identificar essa dinâmica.

CONSIdERAÇõES FINAIS

No decorrer desse trabalho após acumular algumas leituras acerca de temas e prin-cipalmente de propostas de metodologia de ensino entendemos que é importante sa-lientar que não temos a pretensão de impor um método de ensino aos professores. A ideia aqui contida visa principalmente apontar para uma das múltiplas possibilidades de abordagens discursivas que colaboram para as situações de ensino.

Cabe ressaltar também que o audiovisual foi escolhido, mas outros meios bem como outras tecnologias contemporâneas podem ser utilizadas e devem. Isso obvia-mente, cada professor poderá definir de acordo com a estrutura e as limitações do espaço escolar que esteja inserido.

Espera-se que com a apropriação da Filosofia e do audiovisual que educandos e educadores possam apreender e se apropriar de distintas formas daquilo que foi apre-endido. Nesse processo, educadores vão se inserir numa proposta metodológica para o Ensino da Filosofia que visa não só a melhoria da qualidade de ensino e formas de apre-sentação conceitual, mas também que estes se sintam parte do processo de construção

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do conhecimento partindo de suas subjetividades. No caso dos educandos o que pre-tendemos é que estes se sintam contemplados no processo de aprendizagem, na medida em que, vão observar que suas realidades, e sua realidade não esta sendo ignorada ou secundarizada na escola. Ainda no que concerne aos educandos esperamos também que estes ao final desse processo sejam capazes não só de entender os conceitos filosóficos, mas também ao final das oficinas audiovisuais tornem-se espectadores emancipados frente aos meios de comunicação.

REFERENCIAS bIbLIOGRÁFICAS:

ADORNO, Theodor Ldwing; Horkheimer, Max. dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985

ADORNO, Theodor. Indústria Cultural e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002

ALMEIDA, Jose Benedito. Metodologia do ensino de Filosofia. Português. 2007. n 57fls. UFU. 2008.

BACCEGA, Maria Aparecida. Televisão e escola: Aproximações e distanciamentos. In. Congresso Anual em ciência da comunicação, 25., 2002. Salvador: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, Disponível em: http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/15999749417050870364241954281402151688.pdf

BACCEGA, Maria Aparecida. Televisão e escola: uma mediação possível? São Paulo: Senac, 2003.

kOHAN, Walter (org.). Filosofia caminhos para seu ensino. Rio de janeiro. Ed. Lamparina, 2008.

LOBO, Roberta (org.). Crítica da imagem e Educação: Reflexões sobre a contempora-neidade. Rio de Janeiro: EPSJV,2010

MARCONDES, D. É possível ensinar a filosofia? E, se possível como? In: kOHAN, W. (Org). Filosofia; caminhos para o seu ensino. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

MARTÍN-BARBERO, J. e REY, G. Os Exercícios do ver. Hegemonia Audiovisual e Ficção Televisiva. São Paulo: SENAC, 2001.

OROZOCO, Guillermo. Uma pedagogia para os meios de comunicação. Revista Co-municação e Educação, São Paulo, V4,n. 12. Maio/ago. 1998.

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CâMERA NA MÃO E IdEIAS (FILOSóFICAS) NA CAbEÇA! – POSSIbILIdAdES dE PENSAR

COM IMAGENSDaniele Gomes5

A realidade não teria um modelo fixo, mas seria, a todo momento, criada ou produzida pelo personagem, pela câmera e pelo espectador

Gilles Deleuze

Palavras chave: visualidade; espaço escolar; ressignificações.

Michel Foucault (2003) nos diz que “o aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único olhar a ver tudo permanentemente” (p.143), evidenciando assim, como a disciplina é uma tática de controle de corpos e mentes que não atua apenas através de técnicas de punições, testes, normas, mas também, de visibilidade. Sob esse regime vi-sual, os indivíduos, modelados por essas técnicas, estariam aptos a servirem ao Estado, a economia, a sua família, e atualmente, às demandas do sucesso pessoal.

O parâmetro de eficiência disciplinar ao qual ele se refere é o Panóptico6, proposto por Jeremy Bentham, pois esse dispositivo produz indivíduos por meio da invenção da ideia de uma visibilidade constante, em que haveria uma suposta vigilância permanen-te. Numa fórmula que não há possibilidade para o fora ou o vazio.

Tais princípios serão a sustentação das instituições disciplinares, como famílias, fábricas, escolas, hospitais, exércitos, etc, na medida em que a função disciplinar é pro-duzir “corpos dóceis”, que podem ser moldados e configurados segundo as necessidades sociais. Dessa forma são incutidos parâmetros e normatizações comportamentais para determinar os corpos dos estudantes, dos soldados e policiais, bem como o dos traba-lhadores. Os corpos disciplinados, exercitados e submissos, têm sua força orientada para a produção, mas têm diminuição da força dos corpos em sentido político, enquanto se mantêm obedientes e disciplinados. Ou seja, a obediência e a conformação dos corpos os tornam mais produtivos. Dessa forma, a disciplina é uma “arte das distribuições”.

Sua primeira operação é a distribuição dos indivíduos no espaço. É necessário, por-tanto, delimitar esse espaço através de uma arquitetura que ordene os corpos, indivi-dualizando-os e que possibilite a vigilância dos mesmos. Daí a segmentação das salas,

5 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGE – UFRJ).6 Torre central de vigilância em torno do qual se localizam as celas.

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nichos, corredores, grades, postos de trabalho, uniformes. Nesse espaço, os indivíduos são distribuídos segundo uma lógica organizacional. Exemplo disso é a forma com a qual os estudantes são distribuídos nas escolas, organizados por séries ou anos, por classes ou grupos. Essas ação, segundo Foucault (1987), transforma uma “multidão confusa” em uma “multiplicidade organizada”.

O segundo aspecto da tecnologia disciplinar é o controle das atividades. Nas insti-tuições disciplinares, as atividades são controladas através da distribuição temporal, ou seja, há o momento certo, definido cronologicamente, para se fazer cada coisa. O con-trole de horários é um dos pilares da disciplina: cada indivíduo aprende a controlar seu corpo, de modo a circular por determinados espaços apenas em horários estabelecidos; ir ao banheiro somente quando lhe for permitido, e não quando tiver vontade; comer somente no horário estipulado pela instituição, e não quando sentir fome. Essa atenção ao corpo disciplinado gera eficiência e produtividade, pois obedece docil-mente a parâmetros externos. Ele torna-se (parte de) uma máquina, na medida em que é um corpo “que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam” (FOUCAULT, 2003, p.117), ou seja, um corpo útil e dócil.

Com isso, as instituições delimitam as possibilidades de atuação, operando sobre a inclusão e a exclusão, a normalidade e a anormalidade, se atualizando através da vigi-lância, que ensina que, qualquer desvio deve e será punido.

Pensando com Foucault e dando continuidade às suas considerações, Gilles De-leuze (1992) aponta como nova forma de organização social, a sociedade de controle, que está “substituindo” as sociedades disciplinares. A partir da crise das instituições, em que não há mais uma dependência de trânsito entre os meios de confinamento e a diluição da rigidez que existia em tais espaços, agora transvestidos de liberdade. Se anteriormente, havia um modelo de concentração de força, de indivíduos e de atenção, na sociedade de controle a dispersão e as constantes atualizações de modulações (sob a ótica capitalista do mais novo e do melhor, regido pelos excessos de produção, pelo consumo exacerbado, pelo marketing, pela propaganda, pela publicidade, pelos fluxos financeiros em tempo real e pela interconexão em redes globais de comunicação), incu-tem um novo ritmo de vida, pautado pela aceleração dos modos de ser estar no mundo, pois os dispositivos da sociedade de controle são os curtos prazos, a rápida rotação, contínua e ilimitada, em que não são mais necessários muros divisórios para acionar suas modulações, pois agora elas se dão por redes (virtuais, sociais). Agora, ela se dá ao ar livre, graças aos dispositivos eletrônicos portáteis “que cobrem toda a superfície glo-bal e respondem com extrema precisão” (SIBILIA, 2012, p.205), como as câmeras de vigilância espalhadas pelas cidades, os GPS’s e principalmente, as telas dos dispositivos

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portáteis de informação. Assim, o tripé: meios de comunicação, tecnociências e leis de mercado, sustenta a lógica de constante atualização e velocidade.

Dessa forma, as instituições da sociedade disciplinar que ainda permanecem, lidam com uma tensão entre tempos, corpos e subjetividades, que se encontram em um outro ritmo, como é o caso da escola. Os corpos e subjetividades violentam esse dispositivo social, ao mesmo tempo em que são violentados, na medida em que exigem que os es-tudantes tenham um regime corporal, subjetivo, comportamental e atencional marca-damente Modernos, que se mostram como sendo “incompatíveis” com as outras esferas de sua vida, gerando assim uma tensão.

Ao ler, estudar ou escrever como propõe o dispositivo escolar, por exemplo, experimenta-se um tempo cumulativo, linear e ascendente: cada momento re-quer uma etapa anterior que lhe dá sentido e coerência, como um avanço gra-dativo que se enquadra na lógica racional do progresso. Os meios audiovisuais e interativos, ao contrário, solicitam e incitam outras disposições corporais e subjetivas, bem distintas daquelas que são postas em prática pela leitura e pela escrita. (SIBILIA, 2012, p.90)

Dessa maneira, algumas ações que anteriormente eram cotidianas e introspectivas como ler e escrever, atualmente se apresentam como atividades artesanais e que, para realizá-las é preciso exercer certa pressão contra os ritmos da atualidade, pois impõem aos corpos e as subjetividades outra cadencia, um outro tempo. O tempo da artesania, da vivencia, da atenção. Atenção esta que mobiliza escuta, cuidado e presença. Presença física e intelectual. É preciso reestabelecer e reconectar essas duas instancias de atuação. Até porque, outra marca da Modernidade que a escola carrega é a separação entre corpo e mente (herança cartesiana), sendo o espaço escolar o do domínio do intelecto em que o corpo não tem importância e atuação. E que para que se cumpra com os parâmetros comportamentais determinados, o estudante passa a ser “educado fisicamente” a partir de uma disciplina que se dedica a isso exclusivamente. Assim, se configura a “tensão entre a submissão utilitária dos corpos – que os torna produtivos para fins pré-estabelecidos – e a modulação hiperconectiva de corpos livres – e sempre disponíveis ao trânsito e à conexão em redes – que não cessam de refazer as expe-riência do tempo, do ritmo e do pertencimento a um certo espaço e comunidade” (MIGLIORIN, 2015, p.101).

Sendo assim, cabe também à educação e a escola, a partir de orientações não sistê-micas, recolocar e ressignificar o corpo e suas urgências do espaço escolar, voltadas para a atualidade do espaço-tempo em que está inserida. Além de estabelecer outras redes de conexões, que produza densidades capazes de desacelerar, transformar as vivencias em

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experiências, que articulem outros modos de ser, estar, pensar, dialogar, sentir e criar, enfim, que possibilite a abertura e a alterização. Afinal,

a escola não é apenas formadora dos indivíduos que estão com ela diretamen-te implicados, mas parte de um processo bem mais amplo, que toca ricos e pobres e que participa das modulações dos nossos processos subjetivos, do que desejamos, da forma como investimos nossas energias e engajamos nossas forças. Sem essa abertura, a escola se mantém como uma questão privada, em que cada um tenta resolver o seu problema e com isso aceitamos a opressão que obriga crianças, jovens e adultos a cederem sempre aos poderes em cur-so: o capital, o Estado, o medo da dívida ou do desemprego (MIGLIORIN, 2015, p.106).

A escola deve ser então, um espaço de vitalização, enfrentamento e resistência à realidade política, social, cultural atual, bem como a arte. E é sob essa perspectiva de transformação e ressignicação ética, política e estética, que se acredita que o cinema enquanto arte, deve habitar o espaço escolar. Não apenas como elemento ilustrativo ou instrumentalizado, a serviço estritamente de uma matéria “superior” a ele. É claro que a exibição cinematográfica já provoca alterações no status quo da escola como domínio da cultura letrada e abre espaço para pensar outras possibilidades de porosidade com ou-tras esferas da vida social, e em especial com a produção imagética, mas, a proposta aqui defendida é fazer cinema, justamente por ser uma experiência radical de aproximação, (re)educação dos sentidos, ressignificação do espaços, de (re)apropriação dos saberes, e principalmente, de igualdade e criação. Exibir filmes é importante, pois o universo ima-gético e cinematográfico já permeiam o espaço escolar e o imaginário dos estudantes, mas possibilitar a criação a partir desse encontro potencializa tanto o cinema quanto a escola. Com essa crença, se aceita o risco de seguir esse caminho e a partir da realidade, reinventar o real (MIGLIORIN, 2010). Para tal, parte-se do cinema como hipótese de alteridade e criação (BERGALA, 2008) e do fazer cinema partindo da igualdade das inteligências e como gesto de emancipação (RANCIÈRE, 2002). Assim, não se busca uma abordagem cronológica e que vise um ensino técnico, mas sim, pretende-se pensar as potencialidades que podem ser despertadas pela convocação a criar outras imagens a partir da ressignificação dos espaços e da abertura do olhar para o Outro.

O cinema entendido enquanto arte, introduzido no espaço escolar, se afasta da concepção do “filme como produtor de sentido (o autor escolheu esse ângulo ou esse quadro para significar isso) ou nos casos menos graves, como produtor de emoções”. (BERGALA, 2008, p. 27). Tal procedimento de apropriação do cinema na escola e sua percepção como arte, não se enquadra dentro de uma disciplina, pois não se busca o uso instrumentalizado da produção imagética, principalmente por que:

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a arte não pode depender unicamente do ensino, no sentido tradicional de disciplina inserida no programa e na grade curricular dos alunos, sob res-ponsabilidade de um professor especializado recrutado por concurso, sem ser amputada de sua dimensão essencial. (BERGALA, 2008, p.29)

Busca-se mobilizar a expansão e transformação do sujeito, da forma como percebe o Outro e ao mundo, ao convocar a perceber o ambiente que o circunda de outra forma, buscar outras representações possíveis, trabalhar e interagir com o grupo a partir de uma situação inesperada, exercitar a autonomia e a tomada de decisões individual e em grupo a partir do debate, trabalhando assim a atitude do sujeito quanto à experiência de coletividade, evidenciando que os saberes que se aprendem e se trocam no espaço escolar não se limitam aos saberes formais, mas se expendem e se diluem nas relações interpessoais e nos diferentes modos de sentir, conhecer e ver, partindo de uma certa desestabilização de procederes autômatos, na medida em que a arte é “um elemento perturbador dentro da instituição. Ela não pode ser concebida pelo aluno sem a expe-riência do “fazer””. (BERGALA, 2008, p.30).

“O cinema se apresenta como uma experiência com o mundo, com o outro, com o conhecimento, através de imagens e narrativas. Receber um conteúdo com o cinema é inseparável de uma experimentação pessoal e coletiva desse conteúdo” (MIGLIORIN, 2015, p. 10). Assim, ao produzir imagens, a relação com o aprendizado de dá de forma ativa, criativa e crítica. Na medida em que possibilita outro entendimento do que os ro-deia, a partir de uma experiência de aproximação, que cria e inventa possíveis ao mundo.

Para nortear esse fazer, que não se deve partir de um suposto “gosto” dos estudantes para só depois introduzir obras com outros padrões estéticos, haja vista que o cinema na escola deve se dar por encontros com filmes que eles não teria chance de encontrar fora dela.

Nesse processo, não tomar como ponto de partida o que os estudantes conhecem não é uma maneira de desvalorizar seus saberes, pois a crítica não é sobre os estudan-tes, mas sim sobre as produções da indústria cultural e os seus produtos “facilmente assimiláveis”, que garantem ao cliente um produto pasteurizado, que leva sempre ao mesmo tipo de prazer, numa política de marcas. Essa lógica de consumo visual instrui sob a lógica de uma “alfabetização” no qual são adquiridos signos que inscrevem e fazem inscrever determinados constructos estéticos, mas que não lhes dá autonomia criativa. Além de não promover a “estranheza” do encontro com uma obra de arte. Esse estranhamento, ao romper com o fluxo cognitivo habitual evidencia a possibilidade de outros modos de ser, estar e perceber o mundo, pois solicitam uma outra atenção a si e ao Outro. Essa outra atenção convoca ao cuidado, à escuta e à espera, haja vista que é preciso tempo para ruminar a novidade. Afinal, a obra de arte se diferencia, e mui-

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to, dos produtos de fácil e rápida assimilação que compõem o cardápio dos produtos massificados. Até por que, seria em certa medida, subjugar a capacidade dos estudantes e corroborar para a lógica sistêmica exibir-lhes o de “fácil assimilação”. As imagens e padrões estéticos já conhecidos não são formadores porque já foram banalizados. Já a arte “é o que resiste, o que é imprevisível, o que desorienta num primeiro momento” (BERGALA, 2008, p.97). O cinema resiste a partir da existência de outros mundos, unificando pensamento e criação, experimentando os limites e subvertendo as imagens produzidas pelo real.

A experiência do cinema atua junto ao corpo e as intensidades, produzindo imagens a partir de outra experiência do real:

As imagens são fruto de um encontro entra uma maquina, um sujeito – ou vá-rios – e algo que está no mundo. mas toda imagem é dupla. Isso significa que toda imagem possui uma dupla inserção no real. No mesmo gesto, na mesma imagem que sofre o real, há uma construção do mesmo real, feita por aquele que opera a câmera, que decide o quadro, que escolhe o movimento, que com-põe uma mise-en-scène e, mais do que isso, por todos os atores não-humanos que também fabricam a imagem – a câmera Sony, a lente Zeiss, o corretor de cor da Apple, o microfone comprado em um camelo do Rio de Janeiro. Toda imagem, portanto, é mundo afetando-a e, a um só tempo, uma certa opção de mundo que envolve atores humanos e não-humanos. Essa definição nos lança no campo necessariamente político e estético da experiência do cinema, uma vez que a imagem é o mundo e uma opção de mundo, simultaneamente. O cinema é transformação contínua do que há. Pelo menos nos bons filmes, o mundo não está separado de um desejo de mundo. parafraseando Pasolini, podemos dizer que o cinema é uma realidade que opera na realidade” (MIGLIORIN, 2015, p. 35).

Daí sua potencia de transformação e afetação no real. E, seu contra movimento nos ritmos acelerados da contemporaneidade se dá pelo compartilhamento de tempo, pois “é preciso ter tempo, ver, rever, sair de certa logica de consumo midiático e da veloci-dade do entretenimento. Experimentar a imagem (...)” (MIGLIORIN, 2015, p.150).

Concebe-se o cinema como arte e por isso, é um Outro em si. Um elemento estra-nho e que está sujeito a outras regras, ou melhor, não está submetido às regras escolares. Sendo esse elemento problematizador e instaurador de experiências, que se foca no gesto de criação, na medida em que, “a arte não se ensina, mas se encontra, se experi-menta, se transmite por outras vias além do discurso do saber, e às vezes mesmo sem qualquer discurso. O ensino se ocupa da regra, a arte deve ocupar um lugar de exceção” (BERGALA, 2008, p.31).

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É traçada uma estratégia de resistência que articula pedagogia, produção de conhe-cimentos, formação de identidades e desejos, na medida em que atua no espaço escolar, mas não pode ser definido nem delimitado, pois sua atuação é através da criação de desterritorializações dentro do território localizável da instituição escolar, com seus pa-râmetros e regras. Num ambiente em que a reprodução predomina, o cinema na escola é algo totalmente Outro, por possibilitar a criação e a invenção.

Fazer arte é arriscar-se, pois seu processo é imprevisível e nem sempre compreen-sível. Mas isso não é ruim, pois faz parte da existência é aceitar ver as coisas com a sua parte de enigma, antes de sobrepor-lhes palavras e sentidos e aceitar a ideia de incom-pletude. E fazer cinema é uma experiência de processualidade que faz com que sejam vivenciados outro regime temporal e cognitivo, em operações mentais que se refletem fisicamente e se combinam e se entrelaçam de modo dialético em todas as fases do fazer cinematográfico.

A hipótese de cinema como alteridade proposta por Bergala (2008) parte do en-tendimento que a arte na escola, por atuar pela criação, é algo totalmente outro dentro da escola, concebida como espaço de (re)criação. Mas expandindo os sentidos possíveis da prática da criação artística podemos entender que a abertura à alteridade também se refle na interação do “eu” com o Outro, na medida em que a invenção se dá na interação com agentes externos, sejam eles outros estudantes, professores, espaços físicos, passantes escolares, outros “pontos de vista” que são assumidos ou até mesmo as imprevisibilidades.

Ao aceitar essa experiência não roteirizável, assume-se a errancia, não só por acei-tar percorrer outros caminhos dentro do espaço escolar e principalmente, no âmbito das aprendizagens, não se mantendo fixos numa posição estabelecida (travestidos de alunos, de maneira uniforme) mas, assumindo diversos outros papeis, pois, no fazer cinematográfico no contexto escolar, há uma rotatividade dos estudantes nas mais di-versas funções nas fases de pré, pós e na produção, para que não se repliquem os com-portamentos que acontecem nas aulas, a saber: o mais prolixo e desinibido atua, os mais tímidos ficam atrás das câmeras e etc. Faz-se com que os estudantes permutem os papéis desempenhados, hora diretor, hora ator, produtor, assistente, etc. Além disso, se aceita o “erro” como elemento constitutivo, se mantendo atento aos movimentos e a inquie-tudes, caminham com aqueles que aprendem por se interessarem pelo Outro, jogando com o corpo e com o pensamento e possibilitando a invenção.

Como no cinema não há “certo” nem “errado” as possibilidades de percorrer ficam abertas e os desvios de um possível caminho, é um elemento constitutivo da criação.

O cinema não requer conhecimentos prévios, pelo menos nos moldes do que a escola tradicional entende por “conhecimentos prévios”. Nesse sentido, fazer

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cinema na escola é uma experiência rica para reduzir assimetrias entre pro-fessores e estudantes, e entre eles próprios. A descoberta de novos interesses e capacidades pode contribuir para a uma reconfiguração da autoestima de alguns estudantes, o modo como eles são vistos pelos professores e colegas e, inclusive, pelas próprias famílias (FRESqUET, 2013, p. 61)

Nessa relação inventiva, todos são considerados artistas em potencial, perturbando assim as hierarquias estabelecidas (professor – aluno, bons alunos – maus alunos, cultu-ra letrada – linguagem visual, disciplina – flanagem/deslocamentos espaciais, apreensão do saber – descolamentos sensíveis, planejamento – percursos possíveis). E os saberes que são mobilizados nesse momento, não se restringem ao conteúdo de tom “artístico”. As mudanças de posições hierárquicas e a igualdade estética se dão também quando, ao assistir o filme todos se posicionam no mesmo sentido, e vislumbram a tela, e quando se aprende a filmar, todos se posicionam ao redor da câmera, assim, não havendo quem ocu-pe o lugar do saber. Todos sabem o que se quer, mas ninguém sabe o que vai acontecer.

Além disso, assumem a ignorância não só por ignorarem para onde estão indo, mas por desconhecerem qualquer possível desigualdade com os outros participantes, ocu-pando assim os mesmo espaços simbólicos e estatuto estético, pois todos estão sujeitos as mesmas vivencias e afetação sensível da obra fílmica. Os espectadores compartilham de uma igualdade estética, não só por poderem ser igualmente afetados pela obra, mas porque são todos capazes de refletirem e criar leituras possíveis a partir da visualização de determinada obra. De tal modo, o fazer cinematográfico na escola deve partir da igualdade das inteligências (RANCIÈRE, 2002), bem como do compartilhamento da igualdade das possibilidades criativas e políticas de todos os envolvidos, e, igualdade não deve ser confundida com a “homogeneidade entre diferentes, mas com desloca-mentos sensíveis entre diferentes afetando o espaço comum e as formas de ser e sentir de cada um” (MIGLIORIN, 2015, p. 71), é “a entrada de sujeitos, máquinas e tradições em um emaranhado, em um aparente caos formado por objetos e sujeitos de muitas naturezas, espaço/tempo entre máquinas e processos subjetivos em que a experiência com a diferença é parte das transformações em si e dos modos de ser da comunidade.” (MIGLIORIN, 2015, p.193).

Na experiência de cinema no espaço escolar não há a ocupação do papel do lugar de saber fixo, pois aquele que ensina também se aventura na experimentação, num deslocamento horizontal de produção de conhecimento, ao se posicionaram atrás das câmeras. Ver um filme, também desloca todos para o mesmo lado. Assim, experimentar é se deixar afetar e produzir com o desconhecido.

Outro ponto é que, não se trata de levar ao estudante algo que ele não possui e que tem um “efeito” previsto, mas possibilitar a circulação da arte no espaço escolar através

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de encontros estéticos e discursivos que funcionam como vórtice de engajamento dos sujeitos em novos mundos, realocando processos subjetivos, em diversas formas de ser, estar, sentir e pensar o mundo possibilitem (re)inventar a si e ao mundo.

A categoria de emancipação (RANCIÈRE, 2002) também cabe nessas colocações, afinal, o tipo de relação que se estabelece não é de decodificação ou explicação dos filmes, mas sim como é possível auxiliar a conexão entre estudantes e a arte cinemato-gráfica. Ou seja, não se pode ensinar nada, mas apenas podemos criar condições para que haja aprendizados. Afinal, nas trocas de saberes, não se aprende o que o outro sabe, mas sim propicia-se mecanismos para aprender, através de uma atmosfera de estímulos que permitem a descoberta e a invenção. para que haja apropriação e produção de co-nhecimento. Daí a produção cinematográfica, colocar a câmera na mão dos estudantes ser algo tão potente, horizontal e emancipatório.

Enquanto dispositivo “atravessado pelo principio de igualdade” (MIGLIORIN, 2015, p.80), parte da democracia como prática igualitária, e não como finalidade a ser atingida, “a lente da câmera parece circunscrever, recortar, aquilo que desejamos co-nhecer, marcado pelo ritmo do tempo. Convida-nos a restaurar o valor da ignorância, como aquilo que permeia desejo e conhecimento” (FRESqUET, 2013, p. 10). E essa “ignorância”, essa posição de não saber e o desejo de conhecer, são elementos que se assemelham a Filosofia, ao remeter de alguma maneira à colocação socrática do “só sei que nada sei”, que admite a própria ignorância como ponto de partida para se alcançar o saber, mas também principalmente por nos proporcionar espanto ou maravilha (traû-ma7). O cinema ensina uma ignorância sobre o mundo, que é o ponto em que a criação é possível e os pensamentos se conectam. Ele não explica, mas interroga, vê e ouve. Ele atua na ocupação dos espaços, tempos, rupturas, conexões, recortes, “no limite do que é espaço e do que é vazio, do que é fala e do que é grito, do que é sonho ou realidade, do que é este e do que já é outro mundo” (MIGLIORIN, 2015, p.192).

Assim, sob a ignorância e a dúvida vamos construindo saberes, experiências (de pensamento) e reflexões, na medida em que não há explicações dadas ou parâmetros pré estabelecidos para a criação cinematográfica. Dessa maneira, o que se propõe são outras formas de pensar, olhar e sentir as coisas. “Uma forma atenta, disponível e aberta aos imprevistos e diferenças” (MIGLIORIN, 2015, p. 25). Tal qual as diversas corren-tes do pensamento filosófico. quando estamos fazendo cinema, não atuamos subser-vientes a valores dados, mas sim buscamos as possibilidades de aprender, desaprender e reaprender que o gesto de criação cinematográfico pode promover. Ou seja, nos deslo-camos no senso comum e da reprodução, e passamos a construir outros possíveis, nessa

7 Traûma é um termo grego que pode ser traduzido como espanto ou maravilha, e que é apontado por Sócrates, no Teeteto 155c de Platão como o principio da Filosofia.

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experiência que “não é algo contido no objeto a ser apreendido pelo estudante, nem funciona por acúmulo, mas por deslocamento do conhecido, por desvios nos processos de compreensão de si e da comunidade” (MIGLIORIN, 2015, p. 51), sendo assim, desarmônica e dissensual em relação ao que está dado.

Desse modo, conhecer é “criar ordens instáveis entre saberes dados, uma criação que se faz imediatamente como resistência aos poderes, que decidem o que é a estabili-dade do saber. Conhecer é criar, descobrir e fazer processos subjetivos em caminhos não traçados no emaranhado que inclui o conhecimento e os buracos em que o conhecido é colocado como pura contingência” (MIGLIORIN, 2015, p.199), não há uma verdade dada, mas ela é criação, ela é arte, que permite “experimentar o mundo politicamente”, sabendo que “o que há é passível de desestabilização e transformação, e para isso, po-demos nos organizar e criar para que forças que ainda nem sabemos existir venham se juntar a nós” (MIGLIORIN, 2015, p.138).

Portanto, em certo sentido, o caráter pedagógico do cinema está nele ensinar a ver, “um ver que transcende as habilidades do olho e engaja um processo subjetivo” (MIGLIORIN, 2015, p. 50). E, sendo um modo de ver, ele constrói o que vivemos, a partir da invenção e de uma nova experiência do real, construindo novos territórios, comunidades e relações. E seu caráter filosófico esteja em nos colocar na posição de não saber, mas que se abre ao espanto e ao maravilhamento para trilhar novos percursos de pensamento.

Ao se deslocar do cinema do espaço privado, do escuro, do ingresso pago, da sala de cinema e se proliferar em “múltiplas telas, projetores móveis, intervenções dos especta-dores nas imagens e nos sons, reorganizações do espaço e do tempo dos espectadores” (MIGLIORIN, 2015, p.185), há uma experiência de cinema expandido, em que, na escola, “se expande naquilo que o cinema inventou de mais forte em sua história: for-mas de ver e inventar o mundo” (MIGLIORIN, 2015, p.185).

Assim, podemos concluir que, o fazer cinema é tanto uma experiência de pensa-mento como uma experiência estéticas, e que, assim como a Filosofia nos colocar no lugar do não-saber e nos provocar diversos deslocamentos, mas que não se conforma nesse lugar de “ignorância” e busca o gesto de criação. Criação esta que pode ocorrer do choque, do espanto, ou mesmo, na necessidade de conhecer (tal qual a máxima aris-totélica, de que “todos os homens desejam, por natureza, conhecer”) e que é pautada por um momento de reflexão. quando habita o espaço escolar, entra como estrangeiro, como um Outro, na medida em que possibilita um olhar novo e criativo, num espa-ço que tem marcas da reprodução, possibilitando assim percorrer outros percursos do pensamento, em que não há caminho “certo” ou “errado”, mas possíveis rotas a serem investigadas, e não memorizadas, mas inventadas de forma (cri)ativa.

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REFERÊNCIAS:

DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

FRESqUET, Adriana Mabel. cinema e educação: reflexões e experiências com pro-fessores e estudantes de educação básica, dentro e “fora” da escola. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

FOUCAULT, Michel. historia da sexualidade i. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2003.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987.

kOHAN, Walter. o mestre inventor: relatos de um viajante educador. Trad. Hélia Freitas. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

MIGLIORIN, Cezar. inevitavelmente cinema: educação, politica e mafuá. Rio de Janei-ro: Beco do Azougue, 2015.

SIBILIA, Paula, redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

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RESISTÊNCIA FILOSóFICA E CAPOERISTA NA EduCAÇÃO dE JOvENS E AduLTOS

João Paulo Mendes

INTROduÇÃO

Contemporaneamente tem-se exercitado com a Educação de Jovens e Adultos dife-rentes interações, interdisciplinares, que atravessam e não somente tangenciam outras disciplinas. Nestas, observa-se do corpo docente inquietação quanto aos conteúdos dispostos no currículo mínimo. A filosofia passada de forma histórica não reforça o seu potencial reflexivo, mais ainda, não existe diferença nos currículos para curso normal e a EJA. Sendo modalidades distintas as formas de inferir não só por serem distintas, mas também pela possibilidade, enquanto enriquecimento didático em variar didaticamen-te o plano de aula e de curso. A EJA traz educandos com mais experiências, práticas e aprendizados em contextos ainda não teorizados. É no diálogo entre a prática e a teoria que Paulo Freire indagou as estruturas educacionais.

Junto com esta observação, de que a filosofia na EJA requer reflexão em formas mais cotidianas e não apenas orientadas, por exemplo, nos conteúdos eurocêntricos, essencialmente conteudistas e clássicos, refletimos um conteúdo que dialogasse e apro-ximasse nossas vivências diárias com os saberes transmitidos em sala. Para isso, analiso numa maneira autenticamente brasileira à parte de qualquer cientificismo e conteudismo definidos como generalizantes e universais.

A capoeira, especificamente a Capoeira Angola, elementar viés corporal de ginga em significações emancipatórias traduzidas em jogo, dança e luta, representada e criada em solo brasileiro. Na capoeira angola encontramos um formato filosófico de intera-ção com os alunos da EJA, seja enquanto praticante de capoeira, ou como professor de filosofia, observamos que a capoeira diz sobre nossas culturas, que refletidas pela filosofia autenticam não apenas originalidade, mas compromisso em dar valor às nossas criações, valorando e compreendendo nossa história.

Na prática da capoeira angola observei a sabedoria de mestres, assim como na filo-sofia encontrei a sabedoria de pensadores, tanto uma como a outra não estão restritas aos ambientes em que às vemos; rodas de capoeira e salas de aula. O compromisso com estes dois saberes impulsionaram a decisão de analisar com estudantes que perfazem caminhos semelhantes ao da filosofia e também da capoeira na EJA.

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A produção didática será disposta para turmas na modalidade de Educação de jovens e Adultos, a EJA, na Escola Estadual Herbert de Souza. Esta sugestão será nas bases filo-sóficas, que atualmente correspondem igualmente às da modalidade de ensino normal.

Analisar o currículo mínimo será a estratégia da produção. No atual currículo ob-servamos conteúdos que inserem pouco a nossa própria cultura. Por isso, criticando o que se encontra atualmente nestas bases curriculares, diversificar em formas afro-brasi-leiras de interação e socialização pouco estudadas, que interajam com o público da EJA.

Pelo meio de estilos culturais diferentes através da filosofia, que no material didático funcionará com a interação dos educandos no processo produtivo. Tendo em vista suas experiências e demandas no cotidiano, diferentes dos educandos do ensino normal, argumentando em prol da ideia de emancipação.

Analisar criticamente concepções conteudistas é a escolha feita na proposta de um material didático para a filosofia aplicada na EJA. Os dois (EJA e filosofia) em pata-mares que conscientizem não por absorção, mas pela reflexão de que não possuímos apenas saberes com fins objetivos e otimizados.

Esta proposta tem nos seus meios a variação e desconstrução de formas arcaicas de ensino. No formato de cartilhas criadas conjuntamente em sala de aula dá-se inde-pendência às formas de refletir, que incluirão conceitos trabalhados para versar sobre culturas afro-brasileiras, especificamente a capoeira Angola.

resistência e Barbárie, ressignificações criticas às perspectivas competitivas, conteu-distas e objetivantes da atualidade. São dois conceitos que estarão na estratégia didática de criticar saberes midiáticos.

JuSTIFICATIvA

Na atualidade observamos um desapego às culturas afro-brasileiras, passadas em períodos específicos no nosso calendário, porém pouco entronizadas em nossa coletividade.

Mestre Pastinha, considerado o “pai” da capoeira angola, certa vez disse que: “a capoeira é tudo que a boca come”. Com esta expressão iniciamos um tratamento à ca-poeira angola, que viaja em contextos diversos de nossa cultura, correspondendo neles a uma ânsia de liberdade, e que requisita atenção, por estar anuviada entre discursos não-dialógicos.

Observamos na capoeira angola traços de ancestralidade, que posteriormente transformados, contribuíram para a formação da nossa cultura e tradição, decorrên-cia da historia, conhecimento e visão de mundo trazidos em grande parte através de culturas africanas.

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Assim como a filosofia, a capoeira angola ao longo de uma trajetória de inserções e rejeições - se pensarmos nas politicas que fomentam os seus estudos e práticas bem como enriquecem nossa produção e história - passou por constantes mudanças, demandando por isso estar sempre em posição de defesa, resistência dos seus enunciados e argumentos, cada vez menos potencializados nas escolas, maneiras de ser numa sociedade cada vez mais preconceituosa travestida por discursos sofisticados, no entanto falaciosos.

As filosofias contidas na capoeira angola são pouco reconhecidas em nossa tradição, não conquistando valor e disseminação em seu próprio berço. Esta manifestação de dança, luta e jogo, é por muitas vezes observada num ponto de vista exterior à cultura em que foi criada.

Atualmente, a divulgação e difusão da capoeira angola se dá, dentre outras, através de documentários, que por sua vez também tem a produção pouco incentivada.

Guardadas as proporções, a filosofia, a EJA e a capoeira angola são maneiras, modos e atitudes que resistem na atualidade (mesmo com a pouca divulgação e estímulo) às negli-gencias informativas que não aprofundam a reflexão dos saberes “capoerísticos” e filosóficos.

Os saberes relacionados à capoeira são fundamentalmente nossos, os quais determi-naram o legado da escravidão na época presente. Retomando a nossa história de opressão, perseguição e preconceito. A arte da capoeira versa na criação diante da opressão.

A questão será, com a frase citada, aproximar a filosofia com duas formas de expres-são; primeiro a reflexão sobre a natureza da capoeira angola através do documentário; pastinha! Uma vida pela capoeira. Em segundo, interagir filosoficamente conceitos e ma-nifestações de resistência contra a barbárie com a Educação de Jovens e Adultos (EJA).

ObJETIvO

Para concretizar a ideia didática enfatizo dois filósofos que trazem reflexões im-portantes. Michel Foucault traz as questões sobre resistência, interferência permanente nas sociedades, contra o desenvolvimentos de jogos de poder que envolvem discursos opressores. Corroborando com esta questão Theodor Adorno traz sobre a modernidade reflexões importantes que denominou de barbárie, a qual prevalece não apenas na for-ma física de opressão.

A expressão no inicio do texto salienta que a filosofia é também “tudo que a boca come”, seja na forma universal de expressões orais da cultura africana, seja no que Só-crates manejou na Grécia, a filosofia esta em tudo, permanecendo livre de discursos demagógicos. O seu estudo ultrapassa formas otimizadas de ensino.

Tanto a filosofia quanto a capoeira angola valem para levantar questões que expres-sam nossas identidades, despotencializadas quando desconhecemos a história. Ambas

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se fazem entender em qualquer lugar, não unicamente em seus espaços formais – sala de aula e roda de capoeira -, elas resistem. A frase dita por Pastinha também se aplica à filosofia porque tudo o que escolhemos no cotidiano, desde o alimento que comemos, ao esporte que praticamos e a cor de roupa que preferimos remontam identidades nu-tridas naquelas questões, que esquecidas absorvem qualquer meio simplesmente dado.

A ideia será orientar um material que dirija o educando da EJA no conceito de resistência, através da capoeira. Original e autêntico com dados e fenômenos que jus-tifiquem nossas escolhas, quer dizer, experiênciar na tradição angoleira resistências à modernidade. De uma indústria que vislumbra o senso comum de meios midiáticos de manipulação, que findam no conceito de barbárie - dialogando com Adorno - suas caraterísticas;

O percurso rigoroso e original de simbologias africanas, desenvolvidas e construídas no Brasil por camadas da população que sofriam e sofrem com a falta de identificação cultural. O alimento histórico de discursos massificadores velam a potencialidade dos educandos, por isso a necessidade de desconstruir uma teia de conceitos que permeia a objetivação, o cálculo e a mecanização do saber. A frase pode ser também uma ironia, não podemos comer qualquer coisa, a velha sabedoria popular.

Filosofia, capoeira e EJA resistem pela insistência em não se perder humanidade, que faz parte e interage conosco quando dissociados de discursos que não problematizam as três. Ao contrário, são anuviadas e alienadas em formas binárias e “líquidas”, como Zigmunt Bauman salientou. De sociabilidades idealistas e hegemônicas, demandadas em zonas de conforto recheadas de inconsequências, que traduziremos como: precon-ceito, intolerância e desprezo pelo outro.

A competição selvagem anula o lúdico, que é nossa primeira manifestação de in-teração. Theodor Adorno, filósofo que participou de reflexões na Escola de Frankfurt, ratificou uma critica referente a objetivação e mecanização dos saberes técnicos, que anularia os sujeitos e consequentemente suas formas independentes de criação. O en-cobrimento das reflexões filosóficas redunda em senso comum.

A consequência é uma orientação para a demagogia. Adorno ressalta os mecanis-mos que tornam a natureza nossa serva, resultam numa barbárie.“ (...) a barbárie existe em toda parte em que há uma regressão a violência”. Esta regressão é qualquer maneira de opressão.

A filosofia da história e não a história da filosofia, ou seja, o compromisso em não tangenciar apenas nossas identificações culturais – valorar o que é nosso - transformam o ideal de educação e emancipação em Adorno, que critica um histórico de longa data que não privilegia o ser humano, ou que sustenta o desenvolvimento tecnológico como instrumento nivelador da civilização. Estimar o que é nosso são características para a

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desbarbarização, ideia trazida também por Theodor Adorno. Descontruir os nós, que nos amarram, iludem e alienam. Estar ligado de alguma forma à história de capoeira trará a ideia de que a filosofia esta em todo lugar, principalmente onde há insatisfação.

A EJA luta para se firmar dentro deste senso comum caótico, confuso por não res-peitar o educando e o educador discursando com elementos demagógicos, burocráticos e gerenciais que não se preocupam com a coletividade de uma cultura a-histórica, bem como de seus atributos formadores e descontínuos.

Basta ver os livros didáticos, onde podemos ver num de filosofia a preocupação com a áfrica? Onde vemos escrito que o “pai” da capoeira angola se chamou mestre Pastinha? quando a capoeira é incentivada na escola? Essa tradição é mostrada no documentário e servirá de base para a produção dos educandos.

SObRE A PROduÇÃO dE uM MATERIAL dIdÁTICO

Considero que os modelos em cartilhas possam sobrepor debates, além dos mate-riais didáticos conteudístas, causando maneiras de desconstruir perspectivas do senso comum. E no que concerne à cultura afro-brasileira somos os que mais criticamos e limitamos através do esquecimento histórico sobre a formação de grande parte de nossa identidade cultural.

Padrões eurocêntricos são formas de controle, a frase citada no início trará descon-tinuidade para a concentração de nossas escolhas, julgadas em ideais de certo e errado, verdadeiro e falso, que valorizam estruturas binárias, contrariamente a esta perspectiva proposta. Nossa herança africana especificamente com a capoeira angola não adequa valor primordial ao binarismo das concentrações e reflexões, desenvolvendo a identida-de subjetiva através de uma coletividade que vai além do cálculo. O que a boca come esta em toda parte, sendo de fora para dentro, não permanecendo imune, livre do tem-po descontínuo e heterogêneo.

O cálculo tange apenas valores anuviados – subjetividade e sensibilização coleti-va - pela globalização técnica, manipulando e não habitando as coisas. O conceito de resistência em Foucault é justamente a tentativa em não estar no simplesmente dado e manipulado. A percepção filosófica da capoeira na EJA serve para a vida, não somente tangenciam nossas atitudes no coletivo, faz com que nos imbriquemos e investiguemos a autenticidade dos discurso hegemônicos.

A cartilha remonta a reflexão da barbárie contemporânea, que sufoca flexibilidades ou congratula em seus próprios discursos hegemônicos, de modo a coisificar e objetivar. A produção de cartilhas por parte dos educandos tornará o trabalho movente, fluido e não liquido, melhor dizendo, faz das ressignificações atitudes criticas.

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Para o publico da EJA esta iniciativa agrega o teor filosófico, que é justamente o acréscimo e crescimento do próprio educando na prática discursiva. Remontado na cultura afro-brasileira, que diversifica padrões e intensifica identidades descuidadas pelo capitalismo.

Abordar elementos iniciais em cartilhas diferencia o material didático, que inclusive não tem merecido por parte do Estado um tratamento distinto, sendo uma modalidade com características diversas as do ensino regular-normal, pois os recursos didáticos tra-balhados não obedecem a iniciativas diferentes, retomando ainda que o material atual obedece uma lógica que não congratula culturas afro-brasileiras, no mais em notas pequenas, e muito menos a capoeira angola.

Trago a questão para diversificar e manejar com o que realmente pode fazer a dife-rença para a EJA no que se vincula a filosofia. Com um publico com experiências de vida e práticas discursivas moldadas por ideologias que assujeitam nossas vontades.

As cartilhas serão portas para resistências culturais, que através da filosofia problema-tizará o conhecimento passado e norteado por discursos hegemônicos. Na contramão desta zona de conforto estarão as cartilhas feitas e produzidas pelos próprios alunos ao final de um semestre.

Este trabalho a partir de cartilhas terá por função também auxiliar as próximas turmas, que poderão manejar e inserir novas visões e reflexões a respeito. O que poderá ser rudimentar referente ao temas num primeiro contado, representará uma memória coletiva e social dos engajamentos que resistem a padrões eurocêntricos, devendo por isso sempre ser atualizado.

A filosofia na educação de jovens e adultos enfatiza manejos práticos, contextualiza-dos com nosso mundo circundante. É deveras um trabalho rigoroso por resgatar fontes de saber pré-concebidas como culturas mortas. Contudo, o que foi experienciado por sujeitos oprimidos permanece enquanto uma memória coletiva, que ainda atravessa nossos enunciados.

Produzir o material potencializa experiências do cotidiano numa ressignificação. Tomamos parte ao desvelar atitudes alienadas, ideologizantes, lineares. Dialogar a sala de aula com nosso cotidiano é expandir a sala para o mundo.

Analisar as produções com a primazia de conteúdos afeta a EJA. Desarma as poten-cialidades e experiências dos educandos, ao desfocar os discursos de posições, tempos e lugares por modelos técnicos e linguísticos.

Nas cartilhas identificamos a prática e desenvolvimento de propostas novas. A capoeira angola é uma das maneiras de resistência, que a filosofia traz sob a perspectiva de que aparelhos ideológicos anuviam e simplificam suas marcas em nossa historicidade.

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Na cartilha iniciaremos com parte do vídeo, onde Mestre Pastinha diz a frase cita-da. A conversa especificamente com relação a capoeira angola sob um olhar filosófico, capoeira filosófica, ratifica os conceitos trazido de resistência e barbárie. A produção começara nas transcrição do vídeo. Após isso pesquisas sobre o tema que envolvam filósofos africanos bem como suas filosofias, encontrar neles algo que se conjugue com a capoeira angola. Por fim, estabelecer e organizar na cartilha os saberes envolvidos. O tempo de estudo, pesquisa e produção versará ao longo de um dois meses.

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PELO CAMINHO dA FILOSOFIAMaria de Lourdes Bastos

Palavras Chave: Filosofia; Ensino; Métodos.

Le seul véritable voyage, le seul bain de Jouvence, ce ne serait pas d’aller vers de nouveaux paysages, mais d’avoir d’autres yeux, de voir l’univers avec les yeux d’un autre, de cent autres, de voir les cent univers que chacun d’eux voit, que chacun d’eux est.

La prisonnière, Marcel Proust

A ORIGEM

Pensamos a filosofia, um saber universal, base do pensamento ocidental, como uma ferramenta de emancipação. A partir dai surge nosso problema: a história do pensa-mento filosófico fornece condições para dialogar com as questões que circulam nos territórios dos jovens que habitam regiões cercadas pela violência? Para apontar uma resposta a essa questão o professor toma como ponto de partida sua concepção de fi-losofia. Revisitar o que a filosofia representa em sua formação e em seus propósitos é a condição para abrir o espaço da escuta e apontar o caminho para a troca com os atores que serão chamados a participar de uma aula de filosofia.

Certamente receberá alunos que ainda não foram apresentados ao pensamento filo-sófico, já que na rede pública municipal do Rio de Janeiro, de onde provém a maioria dos estudantes da rede estadual, a disciplina não faz parte do currículo do ensino fun-damental. Explicar ao aluno que inicia o ensino médio o que é a filosofia, é uma tarefa desafiadora que implica em estimular os alunos para praticar a filosofia, experimentá-la, e não só estudar o conteúdo retido nos livros, que ainda que filosófico, não abrange a filosofia como atividade, prática ou experimentação. ARISTóTELES (1979), no Livro I da Metafísica nos diz:

“Foi, com efeito, pela admiração que os homens, assim hoje como no começo, foram levados a filosofar, sendo primeiramente abalados pelas dificuldades mais óbvias, e progredindo em seguida, pouco a pouco até resolverem proble-mas maiores”.

Abrimos o espaço para o contato com uma disciplina que, na opinião de muitos que a estudam, irá questionar as bases de nossa visão de mundo. Bem exercida, uma

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atividade que é capaz de alterar nossa relação consigo mesmo, com as pessoas e com o mundo a nossa volta. Tomamos como pressuposto esse desejo, de dar a filosofia uma perspectiva de formação, adotando-a como ferramenta que carregamos ao longo da vida. Partimos do primeiro encontro de nosso estudante com a filosofia e pensamos como apresentá-la.

Uma possibilidade é utilizar a formação da palavra para iniciar esse encontro. Apresentamos uma disciplina que tem uma atividade ou um sentimento na formação de seu nome, e ao nomeá-la afirmamos sua gênese e sua essência. Pretendemos ver a filosofia como a procura do conhecimento, uma atitude de inquietação e inconfor-mismo que nos leva a rejeitar as respostas prontas. Apontamos então seu alvorecer no esforço para encontrar os princípios e as causas, e para isso é estratégico nos aproxi-marmos do mundo grego, suas conquistas, suas viagens e sua necessidade de explorar o desconhecido.

Mas se a filosofia, a procura do conhecimento, entra em ebulição e transborda quando um povo questiona sua própria cultura, não poderá também despontar em outras línguas? Aceitemos que surge quando os alemães enobrecem suas raízes, cresce quando os franceses perseguem valores humanos e pode também ressurgir nas tradições ancestrais ocultas na voz de tambores amordaçados. E talvez possamos vê-la sobrevo-ando pensadores brasileiros quando buscam retirar a máscara de igualdade criada para esconder sua diversidade, na luta para recuperar de suas raízes caboclas a potência do seu pensamento selvagem!

Deleuze nos fala que “Com a filosofia, os gregos submetem a uma violência o amigo, que não está mais em relação com um Outro, mas com uma Entidade, uma Objetividade, uma Essência”. (1992, p. 11) Escolhemos o caminho que considera a filosofia como uma disciplina do pensamento, que opera com a fa-bricação de conceitos.

Ao pensar a origem da filosofia, nossa atenção estará voltada para remover a capa de conformismo que nos atrela às respostas prontas construindo uma ponte que nos levará à compreensão de si e do mundo. Essa escolha revela um caminho possível, a sedução pela procura da origem, a eterna passagem da crença para a dúvida. Teremos como guia a tradicional história da filosofia, que aponta a Grécia como seu berço. Consideramos as questões colocadas pelos gregos como universais, não pelo seu con-teúdo, mas a partir da inquietude que nos provocam, incentivando a desnaturali-zação dos discursos que nos rodeiam. Provocar uma reação em nossos alunos será a finalidade de nosso trabalho e nesse trajeto escolhemos o encanto das narrativas para inaugurar o percurso.

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ATRAvÉS dO LOGOS

A verdade, meu amor, mora num poço.É Pilatos lá na bíblia quem nos diz.E também faleceu por ter pescoço,

O autor da guilhotina em Paris.(Positivismo – Noel Rosa)

Apresentar a filosofia como uma prática de pensamento a um jovem que passou pelo ensino fundamental quase sempre aprendendo que deve estudar para passar de ano é um desafio que implica em provocar sua curiosidade, atrair sua atenção e ofere-cer a oportunidade de questionar aquilo que aprende. Eis que surge o professor que tentará substituir as certezas pelas dúvidas. São diversas as maneiras de cumprir esse desafio e muitas caminham juntas com emoções, estranheza, sentimentos, seja através do choque, do espanto ou da filia (atração). Nas palavras de HERáCLITO: “Sobre o Logos, com o qual estão em constante relação (e que governa todas as coisas), estão em desacordo, e as coisas que encontram todos os dias lhes parecem estranhas”8.

Caminhemos um pouco pela história da filosofia retomando a tradição, onde em solo grego cresce a disputa pela verdade. A procura do conhecimento traz a necessida-de da certeza, da adequação, da representação. Traz para o espírito humano receio do engano, do erro, da ilusão. Sendo difícil garantir a correspondência entre o que se en-contra em nossa mente e o que existe fora de nós, através da enunciação, do argumento, os filósofos tentaram garantir a verdade, no sentido de adequação e aceitação. Para en-contrar regras que garantissem a validade dos discursos dirigiram seu esforço na busca de manter a coerência em nosso pensamento e expressá-lo de forma clara por meio de um discurso inteligível. Localizamos a procura do conhecimento na cultura grega, mas afirmamos esse desejo como patrimônio de todos e de cada um.

Para esta tarefa a lógica clássica toma como base os princípios. O primeiro deles, o princípio da identidade afirma que uma coisa não pode ser e não-ser ao mesmo tempo. Um aluno é um aluno e não poderá ser um não-aluno (nem tudo é possível, afinal). O princípio da não contradição e do terceiro excluído completam a base que sustenta os raciocínios e argumentos.

Esquecer o conteúdo dos discursos e compreender apenas a forma de argumenta-ção. Essa pode ser uma estratégia para atrair o aluno para as mil faces do pensamen-to filosófico. Conviveremos com a dificuldade de tornar mais leve, mais palatável, a severidade do pensamento formal. Provavelmente encontraremos mais facilidade de estimular os alunos com propensão a adaptar-se às regras. Porém ao nos defrontarmos

8 Fragmento 72. In: BORNHEIM, G. (Org.). os Filósofos pré-socráticos. p. 40.

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com dificuldades com alunos que não se sentem confortáveis com a rigidez das regras, teremos como alternativa apontar uma atitude de desafio: como quebrar ou suplantar essas regras? São apenas fruto do nosso intelecto ou estão ancoradas a uma realidade ex-terna? Através das regras do silogismo, da precisão da forma exercitamos o pensamento para criar ou para julgar nossas escolhas.

SER Ou NÃO SER...

Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um gover-no, ou uma revolução, alguns dizem que assim é que a natureza compôs as suas espécies.

Machado de Assis em “Histórias sem Data: Primas de Sapucaia”

Compreender o mundo que o rodeia é a busca que põe em marcha o ser humano. Compreender para aceitar, para transformar ou tão somente para comunicar o que lhe afeta. Reconhecer e representar o mundo são uma conquista almejada por inúmeros grupamentos humanos. Mas cedo percebemos que as percepções do mundo são diferen-tes e tem início a escolha dos critérios e julgamentos que podem garantir a adequação entre nossas representações e o que existe fora de nós.

Mais uma vez voltamos aos filósofos gregos que ao procurarem os princípios e causas do mundo natural, encontraram a questão do ser. Tudo existe e é idêntico a si mesmo em nosso discurso. Afirmamos a existência de algo quando o nomeamos. Mas como garantir o que afirmamos se tudo se modifica, o tempo passa por nós e tudo transforma. Já em algum momento entre os séculos VI e V a. C., HERáCLITO afir-mava que: “Em nós, manifesta-se sempre uma e a mesma coisa: vida e morte, vigília e sono, juventude e velhice. Pois a mudança de um dá o outro e reciprocamente”9.

Reconhecer a relatividade do discurso foi a saída escolhida pelos sofistas. Mas Só-crates instiga os atenienses a procurar pela verdade. Existe uma essência que garante o nosso discurso e podemos alcança-la. Platão aposta em um mundo suprassensível, onde as formas imutáveis garantem a pureza do pensamento. Aristóteles resolve o problema estabelecendo uma interpretação analógica da noção do ser. O ser se diz de várias formas, e através de nossa atividade intelectual conseguimos alcançar a essência única que existe em cada ser.

A ontologia clássica tornou-se o alicerce do pensamento ocidental. A partir da me-tafísica foi construída uma visão de mundo que privilegia a racionalidade, a lógica e a técnica. Um tema desenvolvido ao longo da história da filosofia, a condição humana,

9 Fragmento 88. In: BORNHEIM, G. (Org.). os Filósofos pré-socráticos. p. 41.

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aparece algumas vezes enlaçado à construção do conhecimento. Ontologia e epistemo-logia se confundem quando pensamos na formação do sujeito.

O Homem, animal do logos, aquele que possui consciência de si e que, por nature-za deseja o saber. Será a formação do sujeito o trabalho do professor em nossas escolas? Essa pergunta muitas vezes entorpecida na regularidade de diretrizes e propostas curri-culares toma fôlego ao contato do aluno com a filosofia. Para Hall (2006) os avanços na teoria social e nas ciências humanas a partir da segunda metade do século xIx, tiveram como um de seus efeitos o “descentramento final do sujeito cartesiano” (p.34), resul-tando esse processo “nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do sujeito pós-moderno.” (p.46).

Ampliar nossa leitura de mundo, uma tarefa da filosofia, exercida entre iguais, trás a tona os diversos sujeitos presentes em nosso discurso e propostas inusitadas de encon-tros com a alteridade. Nas palavras de TEIxEIRA (2015)

“Filosofia é a possibilidade que tenho em mim mesmo de perceber a especi-ficidade, a especialidade e unidade que em mim se realiza como minha ação de viver e, ao mesmo tempo, as múltiplas possibilidades que sou.” (p. 218).

AFETOS

“[...] vida sem exame não é vida digna de um ser humano [...]”.Platão. Defesa de Sócrates.

Todas as apostas na neutralidade como a condição para alcançar o verdadeiro co-nhecimento não conseguiram deixar de lado aquilo que nos afeta. Antes de estabelecer o método de ensino, nos preocupamos com o que ensinar. Essa escolha parte de uma concepção ontológica, fruto de compartilhamento e disputa de ideias com o mundo que nos cerca. As teorias da educação estão sempre atreladas a uma visão de mundo. Já em seu livro “Paideia: a formação do homem grego” JAEGER afirma que na visão dos gregos a educação e a cultura estão essencialmente unidas à estrutura histórica objetiva da nação. (1995. p. 1). Defende a necessidade da educação enquanto organização física e espiritual da comunidade humana, que é dotada de dupla estrutura, corporal e espi-ritual. (Idem, ibidem, p.3).

Um dos caminhos para pensar o ensino de filosofia a partir do que nos afeta aponta para a questão dos valores, dos embates entre desejos e pressões externas, vetores, senti-dos e escolhas. Prosseguimos nesse processo atrelados a tarefa de pensar a filosofia como forma de pensamento que atua na formação de conceitos e o ensino como atividade que tem como prerrogativa a formação de pessoas.

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“Não há conceito filosófico que não remeta a determinações não filosóficas, é sim-ples, é bem concreto” diz Deleuze10. Não sendo uma atividade que pertença ao tribunal crítico da razão, a atividade de formar conceitos estará atravessada por devires como afetos e entrelaçada aos perceptos. Sem falsas pretensões, estaríamos nos colocando ao lado de Deleuze quando afirma:

“Dentre os inúmeros conceitos que kant inventou, está o do tribunal da ra-zão, que é inseparável do método crítico. Meu sonho não é esse. [...] Nós nos consagramos a problemas. E não é qualquer problema, isso também vale para os cientistas. A afinidade de alguém para determinado problema e não para outro. E uma filosofia é um conjunto de problemas com consistência própria, mas não pretende cobrir todos os problemas. Ainda bem! Eu me sinto ligado aos problemas que procuram meios para acabar com o sistema de juízo e co-locar outra coisa no lugar11”.

Educar a partir da formação de conceitos seria uma tarefa da filosofia. Pensamos essa tarefa como uma educação libertária, que não adota modelos rígidos e discipli-nadores, antes procura abrir novos espaços para a atividade filosófica. Seguindo esse propósito, buscamos um sentido para a educação. Na busca de sentido, de direção, es-barramos necessariamente com os valores que precisamos defender. Antes de pensar em um sentido para a educação estamos fadados a questionar o valor da vida, do homem e da cultura. Essas perguntas acompanham professores ou educadores e são a base dos modelos teóricos para a transmissão do conhecimento.

Encontrar o sentido da educação na formação de si pode trazer cada um para o centro da narrativa. As questões que surgem a partir de provocações presentes na his-tória da filosofia, ganham vida quando trabalhadas a partir do encontro com narrativas individuais. Abandonar o medo de transgredir e a responsabilidade de quem busca transmitir o já conhecido e abraçar interesses comuns é uma sugestão para o trabalho a partir dos afetos.

Trazer para o questionamento ético o sentido do ensino da filosofia implicaria tam-bém em pensar o outro como nós mesmos e colocar em jogo as relações de alteridade. Nas palavras de SkLIAR: (2014, p.194)

A ética não se dirige a ninguém em particular, mas a qualquer um e a cada um. É esse seu princípio mais revelador e sua condição de prática mais complexa. Para as instituições educativas, os sujeitos deveriam ser compostos dessa dupla

10 O Abecedário de Gilles Deleuze, transcrição integral do vídeo para fins exclusivamente didáticos. P.15O Abecedário de Gilles Deleuze - 1ª parte (1:09:05) – “D” de desejo.11 O Abecedário de Gilles Deleuze, transcrição integral do vídeo para fins exclusivamente didáticos. “k” de kant. P.41

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qualidade: ser qualquer um – isto é, não importa quem for, em termos de identidade: é qualquer um e a esse qualquer um vai dirigido o ensino; ser cada um – isto é, trata-se de um sujeito singular, específico, em que o ensino se en-carnará, se fará aprendizagem. Cuidar do outro significará, talvez, considera-lo como qualquer um e como cada um.”

O princípio délfico “conhece-te a ti mesmo”, propagado por Sócrates, está em in-junção com o cuidado de si, e este preceito domina a vida social, sustenta a arte de bem viver e as regras da cidade, diz FOUCAULT no texto “A hermenêutica do sujeito” (p.6 a 9). Sócrates incita os homens a cuidarem se si mesmos, a cuidarem de suas almas, e ensinar os homens a cuidarem de si mesmos também é ensiná-los a cuidarem da cidade. Nesse sentido, temos como objetivo praticar a filosofia como uma tarefa entre amigos, que buscam o conhecimento de si e do outro, e inauguram novas formas de convivência.

POLíTICA E EduCAÇÃO

“O homem é, por sua natureza, como dissemos desde o começo, ao falarmos do governo doméstico e do dos escravos, um animal feito para a sociedade civil”

Aristóteles – A Política.

A tradição nos conta que a filosofia surgiu no seio de um povo que transformou a cidade em local da disputa, onde os homens se aperfeiçoavam competindo por va-lores como a honra, a verdade, a beleza e a justiça. Vemos hoje, no Brasil a formação do cidadão como um dos principais objetivos da educação básica. Entendida em seu duplo papel, além de garantir a transmissão do conhecimento acumulado, a educação determina a aquisição das normas e códigos necessários para a socialização dos futuros cidadãos. Na dupla intervenção que exerce sobre a representação de si e a convivência com o outro, os valores que são afirmados no espaço escolar estabelecem a dimensão política da educação.

Como foi bem esclarecido por SAVIANI (1983)12, uma teoria educacional está sempre vinculada a uma finalidade. No mais das vezes, essa finalidade é formar as novas gerações para cumprir seu papel social. Logo as diversas propostas pedagógicas nascem a partir de uma visão da sociedade que está intimamente ligada à finalidade que se destina para a educação. Sob esse aspecto, o sistema educacional poderá ter a função de perpetuar o sistema social vigente ou tornar-se uma ferramenta para transformá-lo, dando origem a um novo sistema.

12 Saviani, Demerval. Escola e Democracia. ( Pag. 5)

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Algumas teorias sobre a educação atribuem a ela uma situação de autonomia. A educação forma os cidadãos e oferece oportunidades a todos. Dentro desta corrente, classificadas por SAVIANI13 (1983) como teorias “não críticas”, a educação é capaz de transformar a sociedade e garantir a harmonia e a igualdade social. Neste conjunto, onde encontramos teorias tão diversas quantos a pedagogia tradicional, o grupo de-nominado “Escola Nova” ou adeptos da pedagogia considerada tecnicista, a função da educação é contribuir para a harmonia da sociedade. Seja priorizando o desenvolvi-mento cognitivo, emocional ou instrumental, a educação é responsável por inserir os jovens na sociedade alcançando o progresso social.

Em outro grupo, ainda de acordo com SAVIANI14, encontramos as teorias clas-sificadas como crítico-reprodutivistas, que defendem a dependência da educação em relação à estrutura social. A função própria da educação consiste na reprodução da sociedade em que ela se insere e a escola nada mais é do que um instrumento de repro-dução das relações de produção. Na sociedade capitalista, movida pela luta de classes, a educação necessariamente reproduz a dominação e exploração.

Enquanto as teorias não-críticas apresentam uma crença inabalável na educação como instrumento de transformação da sociedade, as teorias conhecidas como teorias da correspondência ou da reprodução exercem a importante função de alertar para o fato de que só é possível compreender a educação a partir dos seus condicionantes so-ciais. No entanto, se o sistema de ensino garante a dominação cultural da classe domi-nante, não existe alternativa, a desigualdade social torna-se uma construção impossível de ser modificada dentro do sistema escolar. Na concepção de SAVIANI, estas teorias alertam para o poder da educação enquanto responsável pela reprodução da ideologia das classes dominantes, porém não apontam uma solução para o problema. Segundo o autor, o caminho para transformar o sistema escolar, seria elaborar uma pedagogia histórico-crítica.

Nesta perspectiva, a educação estaria relacionada ao contexto social, consciente das limitações impostas a ela, mas ativa, buscando soluções para diminuir a exclusão e da desigualdade social. A escola será verdadeiramente democrática quando oferecer a to-das as classes condições de adquirir através da escolarização, não só os conteúdos mais básicos, mas também os mais elevados. Os membros das camadas populares necessitam alcançar um nível elevado de assimilação da cultura da humanidade, pois só o domínio da cultura constitui instrumento indispensável para a participação política das massas.

Ao selecionar os conteúdos, o currículo estabelece relações de poder. As teorias pós-críticas de currículo, ao enfatizarem o conceito de discurso irão efetivar um des-

13 Ibid. (Pag. 7)14 Ibid. (pag.17)

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locamento na maneira de conceber o currículo. Adotar uma perspectiva pós-crítica de currículo implica em questionar a concepção de sujeito na qual se baseia todo o empreendimento pedagógico e curricular. Desconfiar dos dualismos ou pares de opos-tos presentes no conhecimento instituído pelo currículo (branco/negro, homossexual/heterossexual, natureza/cultura), abandonar a ênfase na “verdade” para destacar o pro-cesso pelo qual algo é considerado verdadeiro. (Silva, 2015, p. 123).

Estamos em uma conjuntura onde a discussão sobre as bases do currículo nacional está sendo amplamente divulgada através da internet e das instituições de ensino. O Ministério da Educação convoca a todos para o debate sobre o que é importante ensi-nar, mas ainda não vemos essa discussão presente no dia-a-dia. Ouve-se falar em crise da educação, como também ouvimos dizer que a educação deve andar apartada da política. A relação entre política e ensino de filosofia é uma tarefa urgente e ambiciosa, que ultrapassa o escopo desse texto, porém vale destacar o pensamento de RANCIÈRE (1996), quando afirma que:

“A atividade política é a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho, faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho”. (p.42)

CONSIdEREMOS

“Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimi-riam sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê. E mais ainda quando é visível: Félix Guattari e eu somos intercessores um do outro.”

Deleuze, Conversações

Até onde as forças políticas e ideológicas determinam a produção de subjetividade? O trabalho do professor flutua entre a escuta das singularidades e preparação para o exercício da convivência. Esse processo, essa intervenção mediadora sofre atravessa-mentos, pressões externas e exige um trabalho sem tréguas. Pensar a filosofia como questionadora da ordem remete a imagem do filósofo como o amigo e não o proprie-tário da sabedoria. Problematizando e desconstruindo as certezas a filosofia abre espaço para novos saberes.

Acompanhamos o pensamento de Deleuze (1992, p. 8), quando diz que “a filoso-fia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos”, pensamos a filosofia como uma modalidade do pensamento, com características, atribuições e movimentos pró-prios. Neste sentido o professor de filosofia no Ensino Médio deve deixar claro o

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lugar de onde fala e que contribuições a filosofia pode oferecer ao currículo nessa fase da escolaridade.

O importante desafio de construir conceitos começa na sala de aula por admitir a diferença e a diversidade. Não é possível criar conceitos sem respeitar o plano de ima-nência onde eles transitam. Pensando na realidade de nosso país, mais especificamente na cidade Rio de Janeiro, grande metrópole onde os conflitos encontram-se tão expos-tos que se tornam invisíveis, é muito fácil perceber a diversidade de oportunidades e situações da educação escolar. Acreditamos na necessidade de atenção redobrada para os processos culturais que circulam pelo espaço escolar e uma escuta apurada das vozes dos principais atores do processo de aprendizagem, professores e alunos.

Nas escolas de ensino médio o professor enfrenta uma rejeição muito maior do que nas universidades para fazer uma apresentação de filosofia. Os alunos não tem familia-ridade com os temas e oferecem um maior desafio aos professores. Os problemas filosó-ficos precisam ser apresentados com consistência e segurança aos alunos através de um discurso convincente e bem construído. Defendemos, portanto, um real investimento na formação do professor, com maciço investimento em pesquisa e produção. Acredita-mos na sua capacidade efetiva para efetuar uma análise das necessidades, definição dos temas, objetivos, conteúdos e atividades, priorizando a interatividade e o favorecimento da reflexão e da autonomia dos alunos.

É importante pensar o diálogo como ferramenta para ampliar o conhecimento e não como simples debate de opiniões A abertura para o improviso, o espaço da criatividade, o trabalho com conceitos, a necessidade dos intercessores, são faces do ensino de filosofia que apontam para diversos caminhos e abrem possibilidades insuspeitadas.

REFERÊNCIAS:

ARISTóTELES, Metafísica. Livro i, 10-20. IN: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cul-tural, 1979.

bORNHEIM, G. (Org.). os Filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1999.

dELEuZE, G.; GuATTARI, F.. o que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

__________. L’Abécédaire de Gilles Deleuze Documentário/Entrevista. 1996. França. Direção: André Boutang. Entrevistadora: Claire Parnet.

FOuCAuLT, M. A hermenêutica do sujeito. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

JAEGER, W. paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

RANCIÈRE, J. o desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34. 1996.

SAvIANI, d. Escola e Democracia, Cortez Editora, 1983.

SILvA, T.T. Documentos de identidade; uma introdução às teorias do currículo. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

SKLIAR, C. Desobedecer a Linguagem: educar. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

TEIXEIRA, J. N. Filosofia e Filosofar In: CASTANHEIRA, M. Capim Limão: ensaios sobre produção do conhecimento, material didático e outros textos. Rio de Janeiro: Publit, 2015.

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A RETóRICA (hypocrisis) COMO INSTRuMENTO dIdÁTICO

Andreia Maciel

Ensinar a compor segundo um plano, a encadear os argumentos de forma coerente e eficaz, a cuidar do estilo, a encontrar as constru-ções apropriadas e as figuras exatas, a falar distintamente e com vivacidade, não serão retórica no sentido mais clássico do termo? (rEBoUL, o.)

Palavras-chave: retórica, hypocrisis, expressão corporal

INTROduÇÃO

Sobre a Retórica

A retórica é a arte do discurso usado com uma intenção, a de levar os interlocutores a aceitaram as ideias apresentadas no discurso do orador, que utiliza recursos, como seleção de um conjunto ordenado de argumentos e modalização na sua fala. O recurso é utilizado para convencimento na arte da argumentação, e foi utilizado amplamente quando ainda não havia a ciência jurídica e nem advogados na Sicília grega (465 a. C.), quando os cidadãos reclamavam pelos seus bens apreendidos pelos tiranos. Por meio do discurso (texto, ideia) e da oratória (forma de falar, transmissão da mensagem) é que o orador consegue convencer seus pares a acreditarem ou acatarem suas ideias ou posicionamento de suas concepções.

A retórica pode ser encontrada em diversos lugares de acordo com as necessidades de comunicação, porém, segundo Reboul, foram os gregos que inventaram a “técnica de retórica”.

(...) a “técnica de retórica”, como um ensinamento distinto, independente dos conteúdos, que possibilitava defender qualquer causa e qualquer tese. Depois inventaram a teoria da retórica, não mais ensinada como uma habilidade útil, mas como uma reflexão com vistas à compreensão, do mesmo modo como foram eles os primeiros a fazer teoria da arte, da literatura, da religião. (REBOUL, 1991, p. 01).

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Aristóteles atribui à retórica uma função importante, no sentido de que é através dela que o condutor da fala se apresenta e pretende fazer com que o ouvinte perceba a realidade pensada.

As espécies de retórica são três em número; pois outras tantas são as classes de ouvintes dos discursos. Com efeito, o discurso comporta três elementos: o orador, o assunto de que fala, e o ouvinte; e o fim do discurso refere-se a este último, isto é, ao ouvinte. Ora, é necessário que o ouvinte ou seja espectador ou juiz, e que se um juiz se pronuncie ou sobre o passado ou sobre o futuro. O que se pronuncia sobre o futuro é, por exemplo, um membro de uma as-sembléia; o que se pronuncia sobre o passado três é o juiz; o espectador, por seu turno, pronuncia-se sobre o talento do orador. De sorte que é necessário que existam três gêneros de discursos retóricos: o deliberativo, o judicial e o epidíctico. (ARISTóTELES, 2006, I, 3, 1358a .)

Reboul afirma, no capítulo 2 do livro dos Tópicos, que Aristóteles aponta os bene-ficiários da dialética, dentre eles o pedagógico. Apesar de Aristóteles não traçar uma análise específica sobre a função pedagógica da retórica, podemos afirmar que, uma vez que o professor em sala é o condutor da fala, expondo um discurso que precisa ser não somente ouvido, mas compreendido pelos alunos, é razoável mensurar a importância dos recursos da linguagem para o êxito de qualquer aula.

HyPOCRISIS COMO INSTRuMENTO dIdÁTICO

No livro 3 da retórica, Aristóteles aponta, já na introdução, a importância do que ele afirma como detentor de maior importância na retórica a pronunciação (hypocrisis, ação, pronunciação expressiva). Trata-se das formas de organização do discurso, ele-mento encontrado nas tragédias e nos poetas (rapsodos), os primeiros a se utilizarem deste recurso expressivo. Na encenação dos poemas podemos observá-lo através dos gestos, a entonação de voz, ritmo, gesticulação, expressão corporal, ou seja, a interpre-tação na ação de quem discursa. Segundo Marcondes, “Na poética, Aristóteles indica a importância da ‘linguagem ornamentada’ ou seja, acompanhada de recursos que garantam o efeito dramático (produzir emoções) sobre a audiência.” (MARCONDES, 2010, p. 27.) Desta forma, a linguagem é acompanhada de recursos que garantam o efeito, uma das principais formas de ornamento.

A pronunciação15 se assenta na voz, por isso, Aristóteles destaca a necessidade de empregá-la de acordo com cada emoção. Observar-se os três aspectos da pronunciação com a intenção persuasiva, que se deve ao volume, harmonia e ritmo, assim como os

15 O termo pronunciação equivale ao latino actio, pronuntiatio.

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atores. Nos ditos populares já encontramos a expressão de que 10% dos conflitos são causados por diferença de opinião, 90% devido ao tom de voz empregado (citação nas redes sociais, sem autoria).

No texto, cursos de retórica, Nietzsche cita Shopenhauer

Eloquência é a capacidade de suscitar nos outros nosso ponto de vista ou nos-sa maneira de pensar a respeito de uma coisa, incutir neles nosso sentimento sobre ela e assim colocá-los em simpatia conosco: mas, isso desde que condu-zamos a corrente de nossos pensamentos para a sua mente através de palavras, com tal domínio que os próprios renunciem ao trajeto que antes percorriam e sejam arrastados pelo fluxo. (NIETZSCHE, 1999, V.II129.).

Neste mesmo texto, Nietzsche afirma que na retórica, Aristóteles parece não con-siderar essencial à declamação do discurso, e nem à apresentação física. Ainda assim, a ação, com todas as afecções que provoca, promove uma comoção, um envolvi-mento por completo de quem escuta. Os sentimentos estimulados pela expressão corporal, gestos e tom de voz, não são removidos de maneira permanente. Se nos cabe pensar sobre o encadeamento lógico (logos) do discurso, os afetos (pathos), a confiança no orador (ethos) como efeitos persuasivos e retóricos (as três formas de pistis), devemos também considerar que todos esses serão afetados pela apresentação por completo, considerando a figura quem fala e o modo que apresenta, ou seja, sua ação (hypocrisis). A ação, diz Cicero, “faz o orador parecer aquilo que quer parecer”. (REBOUL, 2004, p. 67).

Sobre a expressão, Aristóteles discorre sobre a necessidade de apresentar o assunto de forma conveniente. Considerando a retórica em sua relação com a opinião pública, devemos supor a pronunciação não pelo fato se ser ou não justa, mas porque é ne-cessária, segundo Aristóteles, ao “baixo nível do auditório”. Todo processo de expor destina-se a um ouvinte. quando a pronunciação é considerada possui o mesmo efeito da representação. Desta forma, podemos salientar que a expressão corporal simboliza intenções e símbolos que a linguagem não é capaz de significar.

Por isso, as artes que foram então estabelecidas foram Rapsódia e a represen-tação teatral, além de outras mais, e uma vez que os poetas, embora dizendo coisas fúteis, pareciam obter renome graças à sua expressão, por esta mesma razão foi um tipo de expressão poética o primeiro a surgir, com a de Górgias16. (ARISTóTELES, 2006, p. 243)

16 Górgias um dos mais influentes sofistas, século V-IVa. C..

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Sobre a relação do gesto com a palavra, Merleau-Ponty17 recorre ao gesto para escla-recer a comunicação pela palavra, busca no corpo não só a compreensão do problema da linguagem, mas também o entendimento de uma questão mais abrangente, a expres-são. Segundo ele, há um mesmo modo de apreensão sensível na base da compreensão da fala e do gesto corporal. Apreende-se o significado da palavra assim como se apreen-de o sentido de um gesto.

O elo entre a palavra e seu sentido vivo não é um elo exterior de associação; o sentido habita a palavra, e a linguagem “não é um acompanhamento exterior dos processos intelectuais”. Somos conduzidos então a reconhecer, como dizía-mos mais acima, uma significação gestual ou existencial da fala. A linguagem tem um interior, mas esse interior não é um pensamento fechado sobre si e consciente de si. (MERLEAU-PONTY, 1999, p.261).

Trata-se de buscar compreender a expressão corporal como uma linguagem expres-siva do corpo e não como uma tradução da linguagem do pensamento. Pensar no corpo como núcleo de significações. De acordo com o professor Edgar Lyra:

Mesmo a possibilidade de sustentação de uma exposição oral prolongada há de se depender da capacidade do orador valer-se do seu corpo, da sua voz e das linhas de força que preenchem os espaços por seres humanos, não sendo exceção a sala de aula. (LYRA, 2014).

Segundo Boal, somos todos atores. Sobre o palco os atores fazem exatamente aquilo que fazemos na vida cotidiana, em diversos momentos assumimos papeis diferentes, como por exemplo, a pessoa no personagem de professor. Na sala de aula cabe ao con-dutor da fala, o professor, estabelecer um discurso claro, respeitoso, em que as regras sejam estabelecidas desde o primeiro dia de aula, com isso, será garantido o ethos e o logos à sua fala. Como um personagem condutor, mas não protagonista, cabe ao pro-fessor se utilizar de todos os recursos expressivos que possam despertar todas as percep-ções, de forma a envolver e fomentar a participação do educando no diálogo.

O discurso só será ouvido se for compreendido, se houver topoi, ou seja, lugares comuns, para isso é importante que o professor considere o contexto social e cultural em que os alunos estão inseridos, para que a sua fala seja compreendida, e instigue o di-álogo. Trata-se de pensar no ensino de filosofia de maneira filosófica, problematizando temas e contextos aos quais os educandos estão inseridos.

17 O interesse do autor é mostrar outro aspecto do corpo perceptivo, o qual diz respeito à sua natureza falante, na medida em que a fala não manifesta um pensamento já feito, mas ela exprime, enquanto gesto, uma relação original entre corpo e mundo.

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(...) que o ensino de filosofia é, basicamente, uma construção subjetiva, apoia-da em uma série de elementos objetivos e conjunturais. (CERLETTI, 2008, p. 8).

Na rede pública e na particular, com educandos do Ensino Médio ou qualquer pú-blico em geral, é necessário uma linguagem que considere os fatores sócio-econômicos e estabeleça nexos, signos, analogias, ou seja, sentidos. Somente desta forma o discurso pode ser ouvido e estabelecido o diálogo.

Criar um espaço que favoreça a circulação do professor por todo o ambiente, de forma a ver e ser visto por todos educandos alimenta o pathos. As interações passam a ser visuais, corporais. O que facilmente constatamos como a distribuição em roda ou em semi-círculo. Trata-se de buscar compreender a expressão corporal como uma lin-guagem expressiva do corpo e não como uma tradução da linguagem do pensamento, de pensar no corpo como núcleo de significações.

Desta forma, a postura do professor em sala de aula emana uma retórica corpo-ral, na necessidade de captar percepções. Cabe a ele se valer dos recursos do discurso (logos), do ritmo e tom de voz (hypocrisis), da empatia no olhar e expressão corporal (pathos) e de regras bem definidas e acoradas (ethos), tudo isso, considerando o perfil de educandos à que se dirige (topoi).

REFERÊNCIAS

ARISTóTELES: Retórica. Trad. Manuel Alexandre Júnior. Biblioteca de Autores Clássicos. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2006.

ANAIS dE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 2 nº 4, 2008 ISSN 1982-5323 Ribeiro, Luís Felipe Bellintani; Mittmann, Adiel & Targa, Dante Carvalho Trad. Discursos Duplos.

CERLETTI, Alejandro. O Ensino de filosofia como problema filosófico. Trad. In-grid Muller xavier, Belo Horizonte, Autêntica, 2009.

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. São Paulo: Cosacnaif, Edições Sesc, 2015.

LYRA, Edgar. Contribuições da Retórica para o Ensino de Filosofia. Texto apre-sentado nas xxI Jornadas sobre la Enseñanza de la Filosofía, Buenos Aires, abril de 2014.

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MARCONDES, Danilo. Textos básicos de linguagem, de Platão a Foucault. Rio de Janeiro, Ed Zahar, 2010.

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ENSINANdO FILOSOFIA PARA JOvENS E AduLTOS EM FASE dE ALFAbETIZAÇÃO:

dESAFIOS E POSSIbILIdAdES Angélica Lino Pacheco Paiva

Palavras-chaves: Ensino de Filosofia; Educação de jovens e adultos; Emancipação;

APRESENTAÇÃO

“Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as condições materiais, econômi-cas, sociais e políticas, culturais e ideológicas em que nos achamos geram quase sempre barreiras de difícil superação para o cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos não se eternizam”. paulo Freire

Se nunca estaremos prontos quando o assunto é pensar, haja vista que tal tarefa se faz constantemente, como se propor a ensinar ao outro a realização de tal proeza? qual a razão de tomar conhecimento de saberes que nos provocam perturbações, desconfor-tos e ansiedades, mas que em contrapartida nos fazem sentir mais vivos?

Se existissem respostas para esses questionamentos a relevância do pensar morreria. Assim, a Filosofia é antes de tudo uma relação com o conhecimento, sua funcionalida-de não necessita ser discutida. O que devemos nos colocar não é a questão do “para que serve a filosofia” e sim o como essa ciência poderá nos ajudar a pensar as urgências que cada vez mais se tornam presentes na sociedade. Portanto, o filosofar pode parecer para poucos, mas precisa ser de muitos. “A partir disso, e em um sentido geral, considero que o que move o filosofar é o desafio de ter que dar conta, permanentemente, de uma distância ou um vazio que não acaba de se encher”. (cErLETTi, 2008, p. 24).

Portanto, a Filosofia nunca será evidente, pois o ato de refletir não tem fim – e pode-se dizer que se assim não o fosse, perderia seu sentido principal, a saber: o de se constituir como um eterno aprendizado. Por isso, para um educador comprometido com o humano no processo de ensino-aprendizagem, filosofar e ensinar Filosofia não são apenas importantes, eles podem ser a base para um aprendizado eficaz. Dessa for-ma, o professor que de fato se propõe a fazer seus alunos filosofarem deve ser antes de tudo um eterno filósofo. Seu comprometimento com o pensar deve ser algo inerente ao fazer pedagógico, mas acima de tudo uma razão para sua prática diária.

E foi justamente por sua tamanha complexidade que a Filosofia foi por vezes reser-vada aos acadêmicos, apartada da massa popular – “uma riqueza escondida daqueles

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que mais tinham a necessidade de usufruí-la”. Sua reentrada nos currículos do Ensino Médio, em 2008 - mesmo que por 50 minutos semanais, trouxe consigo a esperança de se discutir filosofia nas escolas. Todavia sua inserção no Ensino Fundamental ainda encontra barreiras, salvo pouquíssimas experiências – que embora apresentando sucesso não tiveram a força necessária para se fazer valer nos currículos escolares como disciplina obrigatória.

Se no Ensino Fundamental a inclusão da Filosofia na grade curricular apresenta-se como uma possibilidade remota, o que dizer sobre a inclusão da mesma em turmas de alfabeti-zação? E em turmas de alfabetização da EJA? Parece mesmo uma tarefa quase impossível.

Em uma sociedade onde há pouco espaço para a crítica e criação, a Filosofia é sem dúvida um bom instrumento para se começar a desbravar esse mundo. Nesse sentido, sua inserção na educação de jovens e adultos pode auxiliar na busca por um ensino que trans-forme e informe ao mesmo tempo em que questiona, debate, polemiza, dialoga e ensina.

“Em seu ensaio Educação após Auschwitz (2000 a), Adorno luta por uma edu-cação dirigida à reflexão crítica e concentrada na primeira infância. Mas, na verdade, tal empobrecimento não abrange apenas crianças. Todos nós estamos a ele submetidos. Este é um fato que merece toda a nossa atenção. Numa sociedade que estimula o pensamento estereotipado e que segue a lógica instrumental, não há espaço para a crítica e a criação. Naturalmente, temos um contexto altamente complexo para a prática da filosofia em salas de aula, mas partimos do princípio de que a filosofia pode cooperar para um alargamento da expressão e construir uma autorreflexão crítica do mundo. porém, esse processo não pode ser algo coercitivo”. (oLiVEirA, 2009, p. 43)

Portanto, nada mais audacioso para um professor de Filosofia do que afirmar-se enquanto filósofo, pois quem se propõe a ensinar a filosofar deve ser antes de tudo al-guém declaradamente apaixonado pelo saber. Da mesma forma, nada mais desafiador para um professor alfabetizador do que valer-se da filosofia para, no processo de ensino--aprendizagem de seus alunos, promover reflexões e ao mesmo tempo significações na vida desses sujeitos. Afinal, a Filosofia e a alfabetização não apenas se combinam como almejam o mesmo objetivo: promover uma mente aberta ao mundo, ao pensar autô-nomo e a aprendizagem.

A educação de jovens e adultos possui sujeitos com experiências e histórias de vida capazes de despertar profundas reflexões – que associadas à mediação filosófica correta podem servir como temática geradora, não somente nas aulas de alfabetização, como em qualquer momento de aprendizagem. Portanto, privar esses sujeitos de experiências enriquecedoras advindas de reflexões filosóficas é ocultar suas potencialidades para o pensar, pois “cada nível da educação tem certas peculiaridades e também potencialidades que merecem toda nossa atenção” (oLiVEirA, 2009, p. 45).

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Nessa perspectiva, ao menos no que diz respeito à Filosofia para crianças os primei-ros passos foram dados, haja vista as experiências e estudos na área que cada vez mais despontam de forma valiosa. Essas novas experiências nos trazem a evidência de que a Filosofia não é apenas para o Ensino Médio, mas para todo e qualquer espaço que se põe a pensar. Portanto, façamos o mesmo por nossos jovens e adultos que após anos fora da escola decidem recomeçar a aprender.

1- O ENSINO dE FILOSOFIA NO CENÁRIO ATuAL: REPENSANdO PRÁTICAS dE ENSINO NA EJA

“A filosofia só faz jus a si mesma quando é mais do que uma disciplina específica”.Theodor Adorno

É necessário concordarmos que a inclusão da filosofia na educação de jovens e adul-tos não é tão irrelevante como possa vir a parecer para uma considerável massa crítica acadêmica. Pelo contrário, constitui-se em uma possibilidade de engajamento e apren-dizado crítico, pois o questionamento é pré-condição a quaisquer atividades de ensino que se diga dialógica e reflexiva. Nesse sentido, privar o aluno da EJA de experiências que o coloquem em contato direto com o fazer filosófico é tirar a oportunidade do mesmo se descobrir enquanto um ser que pensa e, portanto, tem vez e voz.

Dessa maneira, o que se faz necessário nas escolas brasileiras são espaços onde o saber filosófico possa frutificar e conquistar novos horizontes, pois para filosofar não é preciso ser um Filosofo profissional. A história nos mostra que os primeiros filósofos vi-veram em uma sociedade eminentemente oral durante séculos, nessa perspectiva negar a filosofia a um sujeito somente porque ele não aprendeu a ler e escrever fluentemente é subestimar ao máximo sua capacidade de pensar.

“os limites da significação da reflexão filosófica na escola e na sociedade não se superam com mais e melhores “filósofos profissionais”, mas com a perspectiva mais modesta de potenciação de espaços onde o questionamento filosófico, qualquer que seja, possa frutificar”. (cEppAs, 2008, p. 35)

Assim, a introdução espontânea de vivências filosóficas durante as aulas de alfabe-tização, ainda que de natureza introdutória, deve ser vista como algo extremamente valioso, pois o filosofar se torna muito mais profundo se adquirido de modo espontâ-neo e não de maneira puramente dirigida. Afinal, “a capacidade de pensar criticamente o mundo não pode ser algo imposto”. (oLiVEirA, 2009, p. 50).

Nesse ponto uma ressalva se faz de extrema importância, estamos propondo aqui experiências filosóficas e não uma imersão na filosofia em sua dimensão mais acadêmica,

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abrangendo, por exemplo, conteúdos como sua história e correntes - o que certamente exige uma escrita e leitura mais amadurecida, além do conhecimento prévio de outros conteúdos disciplinares de escolaridade mais avançada.

O que propomos são momentos do pensar, do refletir sobre o mundo. Somente nessa perspectiva estaremos contribuindo para a produção de consciências verdadeiras entre os sujeitos da EJA em fase de alfabetização, mas para tanto o diálogo deve ser o princípio de toda e qualquer ação pedagógica.

Nesse sentido, talvez seja necessário pensar o espaço que o diálogo e a Filosofia ocupam nas turmas de educação de jovens e adultos. E nessa procura é muito provável que não en-contremos um espaço demarcado e perceptível, isso se ele existir. Portanto, uma educação que se diz empenhada em promover a emancipação, encontrará possíveis obstáculos caso não esteja ancorada em uma perspectiva dialógica e portando, embebida pela Filosofia.

Se pretendemos levar nossos alunos à emancipação talvez seja preciso antes com-preender que a mesma não se constrói em meio a aulas de “cuspe e giz”, mas em meio a reflexão. “o pensar não deve reduzir-se ao método, a verdade não é o resto que permanece após a eliminação do sujeito. pelo contrário, este deve levar consigo toda a sua inovação e expe-riência na observação da coisa para, segundo o ideal, perde-se nela” (ADorNo, 1995, p.19)

“o pensar filosófico satisfatório é crítico, não só frente ao existente e a sua molda-gem coisal na consciência, mas também, na mesma medida, frente a si mesma. Ele não faz justiça à experiência que o anima mediante uma codificação complacente, mas sim mediante uma objetivação”. (ADorNo, 1995, p. 23)

Por tal razão, por ventura seja preciso levar nossos alunos a um pensar com base na realidade. Contudo, não é desejável construir uma motivação ativista, pouco funda-mentada - oriunda de uma crítica ingênua. Assim, talvez seja necessário que a Filosofia esteja presente em todo e qualquer ano escolar, em um espaço por excelência do pen-samento, de formação do espírito crítico. Por isso, como dito anteriormente, possa ser necessário repensar o próprio lugar da Filosofia na sociedade, que não precisa limitar-se apenas as salas de aula do Ensino Médio e das universidades, pensando “filosoficamen-te” práticas filosóficas diversas, produzidas em variados contextos escolares.

Contudo, o que defendemos são práticas filosóficas fundamentadas, não simples introduções que se intitulam filosóficas sem de fato desencadear reflexões críticas aprofundadas. “A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma autorreflexão” (ADORNO, 1995, 121)

“Vale dizer, o que está em questão é o próprio propósito em nome do qual se mobi-liza a filosofia no cotidiano. sem uma prévia reflexão, a filosofia corre o risco nada

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trivial de transformar-se em mais uma mera distração do cotidiano, para além das boas ou más intenções”. (cEppAs, 2008, p. 161)

Nessa perspectiva, um ensino que se diga emancipatório talvez necessite incluir a Filosofia em seu afazer didático como motivação para refleti-lo. “A partir disso a possibi-lidade de levar cada um a “aprender por intermédio da motivação” converte-se numa forma particular do desenvolvimento”. (BEcKEr, in: ADorNo, 1995, 170).

“Evidentemente a isto corresponde uma instituição escolar cuja estruturação não se perpetuem as desigualdades específicas das classes, mas que, partindo cedo de uma superação das barreiras classistas das crianças, torna praticamente possível o desenvolvimento em direção à emancipação mediante uma motivação do aprendi-zado baseada numa oferta diversificada ao extremo”. (BEcKEr, in: ADorNo, 1995, p. 170).

Tal como nos salienta Adorno, devemos traçar esforços para difundir uma educação política que leve à emancipação. E nessa direção, os fatos nos direcionam a defesa de que sem a Filosofia esse caminho se torna mais difícil.

Dessa forma, se faz necessário uma crítica permanente, porém acima de tudo fundamentada sobre a realidade, a fim de se evitar com todas as forças a barbárie e a repetição de Auschwitz. “parafraseando Adorno no último parágrafo da Mínima Morália, quanto mais a educação procura se fechar ao seu condicionamento social, tanto mais ela se converte em mera presa da situação social existente”. (MAAr, 1995, p.11)

“o essencial é pensar a sociedade e a educação em seu devir. só assim seria possível fixar alternativas históricas tendo como base a emancipação de todos no sentido de se tornarem sujeitos refletidos da história, aptos a interromper a barbárie e realizar o conteúdo positivo, emancipatório, do movimento de ilustração da razão. Esta, porém, seria uma tarefa que diz respeito a características do objeto, da formação social em seu movimento, que são travadas pelo seu encantamento, pelo seu feitiço. por isto a educação, necessária para produzir a situação vigente, parece impotente para transformá-la”. (MAAr, 1995, p.12)

Munido da defesa de uma educação política, Adorno combate a “falsa cultura” pro-pondo uma teoria social enquanto abordagem formativa. E nessa direção sinaliza que a reflexão educacional deve antes de tudo constituir-se em uma focalização política e social. Para o filósofo, o homem deve buscar o esclarecimento e não se julgar esclarecido sem sê-lo, pois isso é ocultar uma condição que deve ser superada. É nesse sentido que a formação cultural pode conduzir à barbárie ao invés da emancipação, tal como ocorreu com a Alemanha de Goethe em meio ao nazismo de Hitler.

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Portanto, a concepção adorniana de educação gira em torno de uma educação para o esclarecimento. Meta assumida como combate à crise do processo formativo e edu-cacional, resultado da dinâmica econômica atual que constantemente controla nossos desejos e atitudes. “A vida no capitalismo tardio é um contínuo rito de iniciação. Todos têm de mostrar que se identificam integralmente com o poder de quem não cessam de receber pancadas”. (ADORNO, 1985, 127)

Parafraseando Maar (1995, p. 21), o que Adorno nos salienta por fim é que a indús-tria cultural é o reflexo da irracionalidade objetiva da sociedade capitalista tardia, como racionalidade da manipulação das massas. Assim, a crise da educação tem suas raízes na indústria cultural que reprime a formação subjetiva interiorizando a dominação.

“A indústria cultural expressa a forma repressiva da formação da identidade da subjetividade social contemporânea. Marx já assinalara como pela educação os trabalhadores “aceitam” ser classe proletária, interiorizando a dominação, por exemplo, nos seus hábitos. Agora vemos como esta “aceitação” se dá objetivamen-te no capitalismo tardio. Em primeiro lugar, há uma transformação básica na chamada superestrutura, confundindo-se os planos da economia e da cultura. A indústria cultural determina toda a estrutura de sentido da vida cultural pela racionalidade estratégica da produção econômica, que se inoculta nos bens culturais enquanto se convertem estritamente em mercadorias; a própria orga-nização da cultura, portanto, é manipulatória dos sentidos dos objetos culturais, subordinando-os aos sentidos econômicos e políticos e, logo, à situação vigente”. (MAAr, 1995, p.21)

quando Adorno fala de indústria cultural, ele está se referindo à cultura transfor-mada em mercadoria. “No plano da totalização da estrutura da mercadoria na forma-ção social, inclusive no plano das próprias necessidades sensíveis a que correspondem aos valores de uso dos bens na sociedade de consumo”. (MAAR, 1995, p.23). Dessa forma, a indústria cultural impõe a regra do mercado rompendo com a lógica de uma cultura para a formação social.

“sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear. os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em encobri-los, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de público. o cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos”. (ADorNo, 1985, p. 100)

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Nessa conjuntura, a problemática sobre o ensino de Filosofia, enquanto caminho para a emancipação, passa a constituir-se como um problema filosófico, no sentido de que essa possibilidade se coloca em questionamento constantemente. Muitos são os questionamentos que se colocam diante de um educador que pretende se valer da Filosofia em suas aulas, ainda mais quando sua tarefa se traduz em propiciar o primeiro contado do outro com o filosofar. Em se tratando de um público em fase de consolida-ção da leitura e escrita, as inseguranças são ainda maiores. Estaríamos preparados para introduzir o filosofar emancipador? Tudo nos leva a crer que nunca estaremos prontos, porém o primeiro passo precisa ser dado.

O filosofar se dá no contato com a instabilidade, com o novo que se revela, pois, “a incerteza, o incômodo, a insatisfação ou a impossibilidade de dar conta cabalmente do mais básico de nossa atividade, longe de ser um obstáculo – ou, talvez, precisamente por sê-lo – constitui o motor do Filosofar” (CERLETTI, 2008, p.23)

“Todos nós professores de filosofia enfrentamos, ano após ano, a tarefa de começar nossas aulas de filosofia. se nossa audiência já cursou alguma disciplina filosófica, ou é de estudantes de filosofia, estamos mais ou mesmos tranquilos: todo mundo já sabe do que se trata a filosofia e a questão será só ir ampliando o aprofundando alguns aspectos específicos. porém, quando temos que começar do zero (por exem-plo, em um primeiro curso de filosofia de ensino médio ou ante um grupo cuja formação não é filosófica ou simplesmente quando alguém se interessa em saber, de maneira inocente, a que nos dedicamos), então a coisa complica. E complica porque sabemos que devemos estar preparados para enfrentar algumas perguntas que inexoravelmente chegarão: “o que é filosofia?”, “para que serve”?, “ o que fazem os filósofos?” (cErLETTi, 2008, p. 22)

2 - POR uMA EduCAÇÃO EMANCIPAdORA

“o desejo de libertar-se do passado justifica-se: não é possível viver à sua sombra e o terror não tem fim quando culpa e violência precisam ser pagas com culpa e violên-cia; e não se justifica porque o passado de que se quer escapar ainda permanece vivo”.

Theodor Adorno

Vimos que para Theodor Adorno a educação deve empenhar-se constantemente em evitar a barbárie buscando promover a emancipação. Mas o que é essa barbárie a qual Adorno constantemente se refere? É justamente o que leva o homem à destruição, seu impulso destruidor que vem à tona nas mais diversas maneiras de tortura e agressivi-dade presenciadas pelo mundo afora e que podem novamente chegar ao extremismo do nazismo, de maneira que barrá-la é um dos compromissos mais importantes que a educação precisa assumir.

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A educação atual, no entanto, não tem conseguido conter o impulso dominador do homem, servindo muitas das vezes como incentivo ao desabrochar do seu lado mais perverso. Nesse sentido, o que Adorno sinaliza é justamente a necessidade do contrário. A educação deve buscar o bem, a emancipação por meio do combate à repressão.

“suspeito que a barbárie existe em toda a parte em que há uma regressão à vio-lência física primitiva, sem que haja uma vinculação transparente com objetivos racionais na sociedade, onde exista, portanto a identificação com a erupção da violência física. por outro lado, em circunstâncias em que a violência conduz in-clusive a situações bem constrangedoras em contextos transparentes para a geração de condições humanas mais dignas, a violência não pode sem mais nem menos ser condenada como barbárie” (ADorNo, 1995, p. 159-160).

Portanto, o ato de educar precisa ter como foco o humano e o social enfrentando o que vem a ser a indústria cultural – que coopta o potencial criativo e humano do indi-víduo. Assim, em Adorno chegamos à conclusão que o processo educacional deve ser humano, social, voltado à formação crítica e reflexiva que reprima o impulso repressivo e destrutivo que faz parte do homem. Somente assim, será Emancipadora.

“Qualquer debate acerca das metas educacionais carece de significado e impor-tância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie conti-nuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão”. (ADorNo, 1995, p. 119)

Portanto, depois de Auschwitz a educação precisa ser repensada de forma a buscar alternativas de superação ao fenômeno da industrialização da cultura que culmina com a manipulação das consciências - instrumento de dominação e manutenção do status quo que não exime as escolas. Essas por sua vez poderão ser mais um instrumento a favor da máxima mercantilização da cultura e destruição das consciências ou, em contrapartida, promover uma nova lógica de ensino, pautada na emancipação efetiva do homem.

Nesse sentido, a finalidade máxima da educação é impedir que Auschwitz se repita, pois a passividade diante da barbárie é o principal instrumento para a viabilização da repressão. Por isso, Adorno é contundente ao dizer que o maior e principal objetivo da educação é a desbarbarização. Auschwitz pode ter ficado para traz, mas a barbárie humana ainda é uma realidade.

“Adorno procura mostrar que a educação teria um poder de resistência ao rumo caótico que a civilização humana está tomando. Ela poderia se trabalhada da

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maneira correta, fazer com que o homem refletisse sobre sua realidade e a ana-lisasse de maneira crítica, não aceitando todas as imposições sociais como sendo naturais, mas entendendo que é ele o responsável pela produção da realidade”. (LiMA, 2008, p. 77)“Desta maneira a finalidade última do esclarecimento, que era a liberdade acabou gerando um novo tipo de dominação, pois a razão técnica passa a se impor como única forma de razão, o pensamento que antes almejava a liberdade passou a ser totalitário devido ao uso de maneira equivocada a que foi submetido pela técnica. portanto a educação a que os homens são submetidos na sociedade administrada não conduz a liberdade e autonomia de pensamento, mas sim a heteronomia e alienação tanto intelectual quanto material”. (LiMA, 2008, p. 80)

Dessa forma, Adorno tenta sinalizar a importância de considerar de forma crítica as condições sociais que determinam o modo como os indivíduos agem. Salientando a reflexão racional das condições de produção da realidade social e de mercantilização da cultura. “É necessário contrapor-se a tal ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias. A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma autorreflexão crítica” (ADORNO, 1995, p. 121).

3 - POR uMA EMANCIPAÇÃO CONTuNdENTE: REFLEXÃO E AÇÃO

“Em verdade, não seria possível à educação problematizadora, que rompe com os esquemas verticais característicos da educação bancária, realizar-se como prática da liberdade, sem superar a contradição entre o educador e os educandos”.

paulo Freire

quando falamos sobre educação de jovens e adultos, logo Paulo Freire nos vem à cabeça de forma tão contundente que poucos são aqueles que ousam resistir às suas considerações. E quando a temática se faz em torno da educação emancipadora suas contribuições aparecem como ainda mais contundentes. Contudo se a tarefa for posicio-nar as contribuições de Paulo Freire frente às de Theodor Adorno, será como misturar água e óleo – o primeiro otimista ao extremo, o segundo um pessimista de carteirinha. No entanto, ambos trazem contribuições de suma relevância, capazes de suscitar refle-xões grandiosas aos interessados em discutir o que de fato vem a ser Emancipação.

Como educador consciente de seu papel, Paulo Freire propõe um ensino pautado no diálogo, como contrapartida àquilo que ele entendia por educação bancária, que considera o aluno uma folha em branco – uma gaveta na qual o educador deposita suas contribuições de forma autoritária e nada construtiva.

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“Estudar é, realmente um trabalho difícil. Exige de quem o faz uma postura crítica, sistemática. Exige uma disciplina intelectual que não se ganha a não ser praticando-a. isto é, precisamente, o que a “educação bancária” não estimula. pelo contrário, sua tônica reside fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade. sua “disciplina” é a discipli-na para a ingenuidade em faze do texto, não para a indispensável criticidade”. (FrEirE, 1981, p. 8)

No que concerne ao conceito de Emancipação é preciso dizer que o mesmo admite variados contextos e significações, sendo muitas das vezes por demais abs-tratas, porém aqui daremos destaque ao âmbito educacional. Como diz Adorno: “A ideia de emancipação, como parece inevitável com conceitos deste tipo, é ela própria ainda abstrata, além de encontrar-se relacionada a uma dialética. Essa pre-cisa ser inserida no pensamento e também na prática educacional”. (ADORNO, 1985, p.143) Ou, ainda: “Única concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nessa direção orientam toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contradição e para a resistência” (ADORNO, 1985, p. 183).

Paulo Freire por sua vez, caminha em sentido parecido, defendendo que um ensino para a emancipação propõe uma educação para a criticidade, para a decisão e para a responsabilidade social e política. “Para a educação problematizadora, enquanto um quefazer humanista e libertador, o importante está em que os homens submetidos à dominação, lutem por sua emancipação” (FREIRE, 2011) Emancipar-se nesse sentido, é superar a falsa consciência do mundo.

Considerações inúmeras a parte, o que parece unânime é o fato de todos verem a emancipação como um grande progresso, que outrora já fora idealizado por Marx com destaque acentuado para o conceito de emancipação política.

“A emancipação política de fato representa um grande progresso; não chega a ser a forma definitiva da emancipação humana em geral, mas constitui a forma defi-nitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial vigente até aqui. Que fique claro: estamos falando aqui de emancipação real, de emancipação prática [...] Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o ho-mem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu traba-lho individual, nas suas relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizado suas “forces propres” (forças próprias) como forças sociais e, em conse-quência, não mais separar de si mesmo a força social na forma da força política”. (MArX, 2010, p. 41-54).

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Dessa forma, uma educação que vai ao encontro de um mundo mais humano e crítico só poderá alcançá-lo na medida em que se dispuser a pensar o sentido da eman-cipação em sua prática. E como vimos, tal como Adoro e Marx, Paulo Freire construiu uma trajetória de estudo em cima dessa temática, salientando que é preciso uma prática pedagógica em favor da autonomia do ser dos educandos.

Freire defendia uma educação comprometida com o social. Se, para ele, a educação sozinha não é capaz de transformar o mundo, sem ela seria impossível começar qual-quer tipo de luta. E é nesse sentido que também postulo: a Filosofia sozinha não será passível de conquistas, porém sua ajuda é imprescindível.

“somente homens e mulheres, como seres “abertos”, são capazes de realizar a com-plexa operação de, simultaneamente, transformando o mundo através de sua ação, captar a realidade e expressá-la por meio da linguagem criadora. E é enquanto são capazes de tal operação, que implica em “tomar distância” distância do mundo, objetivando-o, que homens e mulheres se fazem seres como o mundo”. (FrEirE, 1978, p. 65 apud DEcKEr, 2010, p. 38)

Nesse sentido, percebemos o quanto Paulo Freire se aproxima do trabalho que aqui vem sendo proposto – o de ofertar uma educação que tente ao máximo aproximar-se da Educação popular indo ao encontro da Emancipação.

“por entender as classes populares como detentoras de um saber não valorizado e excluídas do conhecimento historicamente acumulado pela sociedade, nos mostra a relevância de se construir uma educação a partir do conhecimento do povo e com o povo provocando uma leitura da realidade na ótica do oprimido, que ultrapasse as fronteiras das letras e se constitui nas relações históricas e sociais. Nesse sentido, o oprimido deve sair desta condição de opressão a partir da fomentação da consci-ência de classe oprimida”. (MAciEL, 2011, p. 328)

A descoberta do oprimido enquanto ser histórico – ou seja, emancipado – traduz a trajetória de Freire frente aos cidadãos marginalizados da EJA na tentativa de, partindo do seu cotidiano, propor formas de alfabetização mais humanas e contextualizadas das que até então vem sendo propostas.

Em seus escritos, o autor deixa claro seu compromisso com o social, salientando que um educador deve agir no intuito de fazer com que seus alunos possam “ser mais” e tornarem-se “seres para si” ao invés de ser “seres para o outro”. Tal qual Adorno, Freire é contra visões extremistas de mundo, para tanto ele propõe uma ética universal que deve permear as práticas sociais. “O erro na verdade não é ter certo ponto de vista, mas absolutizá-lo e desconhecer que, mesmo do acerto de seu ponto de vista, é possível que a razão ética nem sempre esteja com ele” (FREIRE, 2011, p.18)

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Os seres humanos, enquanto seres históricos estão em estreita ligação com o mun-do, sendo necessário que tomem consciência do mesmo para propor mudanças de for-ma fundamentada. Parafraseando Freire, o ser que simplesmente vive no mundo não se torna capaz de refletir sobre ele, apenas o habita em plena passividade desconhecendo as leis que regulam sua existência. Em contrapartida, o sujeito emancipado reflete sobre sua existência em um mundo em constante transformação, e que, portanto não está dado - sendo passível de mudanças.

Porém, para descobrir-se enquanto ser histórico, colaborador na construção de uma sociedade mais humana, antes é necessário descobrir-se enquanto um ser inacabado, alguém em eterna construção, que, por meio da reflexão e do conhecimento de si e do mundo, se torna colaborador na efetivação de uma sociedade melhor.

Assim, somente por meio da reflexão e ação dos homens no mundo é possível transformá-lo, superando a contradição opressor-oprimido.

“Feito para o ser mais, o ser humano é ontologicamente chamado a desenvolver, nos limites e nas vicissitudes de seu contexto histórico, todas as suas potencialidades materiais e espirituais, buscando dosar adequadamente seu protagonismo no enor-me leque de relações que a vida lhe oferece, incluindo as relações no mundo e com o mundo, as relações intrapessoais, interpessoais, estéticas, de gênero, de etnia e de produção”. (cALADo, 2001, p. 52 apud JUNior; NoGUEirA, 2011, p. 5)

Freire acentua dessa maneira, a passagem de uma consciência ingênua para uma consciência crítica que se processa durante o ensino, por meio de práticas dialógicas e reflexivas. Nesse contexto, alfabetizar jovens e adultos se apresenta como algo que ne-cessita ser repensado, como recusa de uma educação totalmente mecanizada.

“A alfabetização, assim, se reduz ao ato mecânico de “depositar” palavras, sílabas e letras nos alfabetizando. Escrita e lida, a palavra é como se fosse um amuleto, algo justaposto ao homem que não a diz, mas simplesmente a repete. palavra quase sempre sem relação com o mundo e com as coisas que nomeia. Daí que, para esta concepção distorcida da palavra, a alfabetização se transforme em um ato pelo qual o chamado alfabetizador vai “enchendo” o alfabetizando com suas palavras. A signifi-cação mágica emprestada à palavra se alonga noutra ingenuidade: a do messianismo. o analfabeto é um “homem perdido”. É preciso, então, “salvá-lo” e sua “salvação” está em que consinta em ir sendo “enchido” por estas palavras, meros sons milagrosos, que lhe são presenteadas ou impostas pelo alfabetizador que, às vezes, é um agente inconsciente dos responsáveis pela política da campanha”. (FrEirE, 1981, p.11)

Freire propõe outro olhar sobre a alfabetização de jovens e adultos, capaz de intro-duzi-los num caminho de criticidade e reflexão. É preciso propor outras metodologias

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que subtraiam práticas nada criativas e humanizadoras de ensino. Nesse sentido, as velhas cartilhas, por melhores que sejam, não substituem práticas dialógicas e reflexivas de alfabetização, funcionando como “o instrumento através do qual se vão “deposi-tando” as palavras do educador, como também seus textos, nos alfabetizandos. E por limitar-lhes o poder de expressão, de criatividade, são instrumentos domesticadores”. (FREIRE, 1981, p.11)

Freire nos conduz a um ensino que se distancia do erro epistemológico do banca-rismo levando o educador a um constante engajamento. Nesse sentido, ele postula que aprender criticamente é possível. “Nas condições de verdadeira aprendizagem os edu-candos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo” (FREIRE, 2011, p. 28)

“o necessário é que, subordinado, embora, à prática “bancária”, o educando man-tenha vivo em si o gosto da rebeldia que, aguçando sua curiosidade e estimulando sua capacidade de arriscar-se, de aventurar-se, de certa forma “imuniza” contra o poder apassivador do bancarismo”. (FrEirE, 2011, p. 27)

Nesse sentido, Paulo Freire representa um verdadeiro marco na história da educação de Jovens e Adultos. Ele argumenta de maneira contundente que uma educação que se faz de forma crítica deve ter o compromisso do educador com a consciência crítica do educando. Ou seja, nenhum educador é capaz de superar a condição de ingenuidade de seu aluno se não estiver aberto ao outro.

Assim, cabe ao professor o respeito ao senso comum no processo de sua superação. Porém, para agir nessa perspectiva o educador precisa “pensar certo”, o que lhe impli-ca respeitar os saberes – sobretudo os das classes marginalizadas – e “discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos” (FREIRE, 2011, p. 31)

Nessa direção, é preciso trazer para as salas de aula temáticas que permitam aos alu-nos pensarem o mundo no qual estão inseridos, refletir sobre os acontecimentos que os cercam e despertarem-se para a problemática atual, ou na visão freiriana, colocarem-se impacientes diante do mundo. O que, contudo, somente ocorre com o despertar da curiosidade que por sua vez deverá ser crítica, insatisfeita e indócil, “curiosidade com que podemos nos defender de “irracionalismos” decorrentes do ou produzidos por certo excesso de “racionalidade” de nosso tempo altamente tecnologizado” (FREIRE, 2011, p. 34)

Certamente a Filosofia, com seu caráter crítico e atuante, embora não seja a solução para as incertezas e males do mundo, nos ajuda a pensar de maneira inconformada, ou seja, questionadora, o mundo e suas problemáticas. Assim como Adorno, Freire traz ao docente a necessidade de despertar no homem o que lhe há de melhor. Mas para tanto,

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o educador necessita perceber a essência filosófica pertencente ao ato de ensinar. Essa essên-cia se fortalece na medida em que ele introduz em sala formas alternativas de aprendizagem.

Educar não é somente introduzir conhecimentos de forma puramente conceitual, como se os alunos fossem folhas em banco, educar é transformar histórias e vidas. É pensar e repensar significados. É acima de tudo dar a oportunidade desses sujeitos sentirem-se seres que pensam, vivem e agem.

“É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador. se se respeita a natureza, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Educar é substantivamente formar: Divinizar ou diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma altamente negati-va e perigosa de pensar errado”. (FrEirE, 2011, 34-35)

Assim, “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (FREIRE, 2011). Dessa forma, nossa tarefa se faz em fazer com que os nossos alunos percebam-se inacabados, pois é essa percepção que lhes permite crescer enquanto seres históricos.

Enquanto um ser inacabado, me faço, automaticamente, um ser em construção, que quando privado do conhecimento se instaura na passividade e no erro. Portanto, “seria irônico se a consciência de minha presença no mundo não implicasse já o reco-nhecimento da impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença” (FREIRE, 2011, p. 53)

Dessa forma, pensar o que é o mundo de hoje implica instaurar barreiras contra o que não queremos mais que ele seja, ou venha a ser. Nesse sentido, pensar nosso con-texto social é refleti-lo, traçando novas formas de significações e existências.

Assim, Freire e Adorno vão além das considerações tradicionais de educação ao postularem formas de educar que coloquem o homem em evidência por meio de sua efetiva existência, que provavelmente se dá por meio do que eles cunharam por eman-cipação. Nesse contexto a escola se faz lugar de construções emancipatórias.

“Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a escola tem apenas condições mínimas de resistir a isto. Mas se a barbárie, a terrível sombra a nossa existência, é justamente o contrário da formação cultural, então a desbarbarização das pessoas individualmente é muito importante. A desbarbarização da humani-dade é o pressuposto imediato da sobrevivência. Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que sejam seu alcance e suas potencialidades. E para isso ela precisa libertar-se dos tabus, sob cuja pressão se reproduz a barbárie. o pathos da escola hoje, a sua seriedade moral, está em que, no âmbito do existente, somente

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ela pode apontar para a desbarbarização da humanidade, na medida em que se conscientiza disto”. (ADorNo, 1995, p. 117)

Nessa direção, embora com perspectivas de realizações sociais diferenciadas - Freire, um eterno otimista da capacidade humana de superar sua condição de oprimido; Ador-no, um descrente do ser humano livre da barbárie – ambos defendem que a educação representa a oportunidade de superação da condição que não permite ao homem se desenvolver em plenitude.

Ao pontuarem o papel fundamental da educação no processo de descoberta do ser humano enquanto ser social que age ativamente por uma sociedade mais justa, Adorno e Freire colocam-nos uma nova forma de pensar a aprendizagem, que embora produzi-das em épocas e locais diferentes - o primeiro sobre a sombra do Nazismo de Hitler, o segundo sobre o ar sufocante da ditadura brasileira – apresentam-se como extremamen-te atuais e relevantes, pois nunca se fez tão urgente discutir novas formas de ensinar.

Até aqui vimos o quanto uma educação mais crítica se faz necessária na superação de uma forma desumanizadora de sociedade, seja pela condição de opressão, seja pela natureza de barbárie.

Assim, o que tentamos até esse momento foi mostrar o quanto a Filosofia poderá auxiliar na introdução de práticas mais contundentes e significativas nas turmas de educação de jovens e adultos, com destaque especial para as classes de alfabetização, que infelizmente ainda vivem imersas em metodologias infantilizadas e repetitivas que não trazem a criticidade, a reflexão e o diálogo como instrumentos de inovação.

Dessa forma, presumimos que as contribuições de Adorno e Paulo Freire são de natureza relevante na reflexão das práticas atuais de ensino. quando ensinamos jovens e adultos, os focos e temáticas não podem ser os mesmos que os trabalhados com crianças. Estamos falando de pessoas que passaram anos fora das escolas, e que, como a própria legislação postula, precisam ter seus direitos assegurados, e dentre esses direitos um ensino mais humano e emancipador se faz necessário.

Nesse sentido, a defesa da introdução de uma perspectiva filosófica de alfabetização se traduz como algo inovador, capaz não só de redirecionar as práticas pedagógicas vigentes até então, como também de introduzir caminhos mais diálogos e problema-tizadores de ensino. Por tal razão, defender a introdução da Filosofia nas turmas do Ensino Fundamental é tarefa apenas de educadores que acreditam na reflexão enquanto “instrumento” para um “pensar certo”.

É óbvio que muitos obstáculos serão postos - seja no plano legal, seja no plano prá-tico – para a introdução da Filosofia nas classes de alfabetização. Portanto, acreditar em uma alfabetização de cunho filosófico é muito mais que defender a aprendizagem de

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fonemas por fonemas, é defender caminhos alternativos e testar o novo, que como tudo na vida poderá ou não dar certo. Nosso objetivo não é postular que introduzindo a Filo-sofia na EJA revolucionaremos a forma de ensinar nessa modalidade, pelo contrário, não temos certezas nesse momento, em contrapartida as dúvidas nos tomam por completo.

No entanto, em se tratando do campo ensino-aprendizagem a certeza é algo que não se aplica. Cada aluno tem suas particularidades, respondem de formas diversas às atividades propostas e solicitam formas diferentes de aprendizagem. Assim, se para muitos a Filosofia é um bem, provavelmente para alguns poderá ser a solução.

Conseguiremos adotar práticas de fato mais humanas de ensino-aprendizagem? Presumo que essa é uma pergunta que, da mesma forma que as que dizem respeito à funcionalidade filosófica, não é cabível, ao menos nesse momento. Só saberemos a fun-cionalidade de uma alfabetização de viés filosófico no instante em que nos propusermos o desafio de alfabetizar de forma filosófica. Se não tentarmos o novo com a justificativa de que não há indícios que comprovem sua eficácia - o que pode ocasionar “perda de tempo” - continuaremos produzindo sempre mais do mesmo. E para produzir o mes-mo de sempre não há necessidade de formação constante, pelo contrário, “para uma aula qualquer serve muito bem um professor qualquer”.

Contudo, o que defendemos é justamente a ausência de “qualquer aula para qual-quer professor”. A prática pedagógica é um ato comprometido, pois poderá determinar o futuro, a vida e os sonhos de outra pessoa. O educador, portanto não pode abster-se de uma atuação engajada. E esse engajamento tem início no momento em que ele se reconhece enquanto um educador.

A Filosofia não é a salvação do mundo, mas trabalha nessa direção. A Filosofia não é a mudança, mas trabalha para sua viabilização. A Filosofia não é, nem jamais poderá ser a verdade definitiva, pois se assim o fosse não haveria sentido sua existência. E a Filosofia não é para poucos, pelo contrário, sua necessidade se faz condição para toda e qualquer forma de pensar e agir, e nesse sentido os sujeitos da EJA também se incluem.

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A IMPORTâNCIA dO CONCEITO dE TRÁGICO PARA O ENSINO dE FILOSOFIA NA ESCOLA dAS ARTES

TÉCNICAS PAuLO FALCÃOAndré Meirelles

CONSIdERAÇõES INICIAIS

Desde 2009 tem-se desenvolvido um trabalho com o ensino de filosofia nos cursos profissionalizantes da Escola das Artes Técnicas Paulo Falcão, unidade da rede FAE-TEC em Nova Iguaçu. Os cursos ofertados contemplam as profissões do teatro e do carnaval, tais como Contrarregra, Assistente de Camarim, Assistente de Produção, In-terpretação Teatral, entre outros. A arte vem sendo objeto central de reflexão filosófica dentro da instituição. A partir de 2014 teve início uma intervenção mais específica com o problema do trágico, no contexto da disciplina História da Cultura, cujo conteúdo é constituído de uma história do teatro e de uma história do carnaval. Nesse percurso foi introduzida a reflexão nietzschiana como um dos aportes filosóficos para os cursos em que a dita disciplina faz parte do currículo, fundamentalmente a partir da questão do trágico-dionisíaco. Desse encontro com Nietzsche em sala de aula abriu-se um cami-nho para enfrentar junto aos alunos questões áridas e problemáticas para o homem do século xxI. Essas questões têm suscitado debates e discussões sérias acerca de variados temas, tais como a violência, a felicidade, o prazer, o sofrimento, a morte, a arte, a vida, a liberdade, enfim, uma plêiade de questões caras ao pensamento filosófico, e que tem se mostrado como problemas referentes à vida dos alunos que frequentam a escola.

Um dos caminhos que temos buscado é a aproximação entre arte e filosofia a partir do teatro e do carnaval. A tragédia grega tem sido um ponto de referência muito im-portante para o pensamento reflexivo em seu enfrentamento das questões, sobretudo a história de Édipo Rei, escrita por Sófocles, que tem permitido muitos questionamentos nas aulas acerca das características da tragédia entre os gregos, mas principalmente das possibilidades de diálogo com aquela tradição em pleno século xxI.

Nessa empreitada de resgate do trágico na sala de aula, além do diálogo com o pensamento de Nietzsche, tem-se um encontro com a reflexão do historiador helenista Jean Pierre Vernant, também um ponto de apoio para a dita abordagem. A despeito das discordâncias entre o pensamento de Vernant, e do filósofo alemão, sobretudo no que tange ao fenômeno do dionisíaco entre os gregos, tenho como escopo os pontos de aproximação que entendo existir entre as duas formas de encarar a cultura grega. O pri-

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meiro ponto é que a tragédia expressa uma visão do homem como algo problemático. O homem é um enigma, sendo ele próprio o grande problema da existência.

Tanto em Nietzsche quanto em Vernant o trágico aparece como efetividade da arte naquilo que a vida tem de problemático, suas contradições e choques violentos. Em Nietzsche o problemático é a própria existência em seu eterno fluxo de forças criativas e destrutivas, o vir a ser ininterrupto de tudo que existe, e que deixará de existir para retornar novamente. Aí está a tragicidade da vida humana, com suas limitações e possi-bilidades de ação em um mundo maravilhoso, e ao mesmo tempo terrível.

Em Vernant a tragédia aparece para exprimir a questão de que o homem é enig-mático (VERNANT, 2009: 355). A existência é um enigma problemático e o homem faz parte dessa totalidade de forças. Nesse sentido, a tragédia trata “deum passado que continua levantando uma questão” (VERNANT, 2009: 363). Outro ponto importante que permeia as reflexões de Nietzsche e Vernant é a presença do páthos como pulsão no teatro trágico. A tragédia, segundo Vernant é um “modo patético que coloca perguntas sobre o homem”. (VERNANT, 2009: 362). Ela irrompe sobre o humano provocando um efeito comovedor a partir do que é descomunal. Em Nietzsche, o choque entre o apolíneo e o dionisíaco expressa um páthos originário que são os impulsos artísticos da natureza manifestando-se sobre os gregos. Eles representam pulsões exteriores ao homem, como as forças de criação e destruição da natureza, mas que também agem internamente no homem.

Tanto em Nietzsche quanto em Vernant a tragédia expressa artisticamente oque é problemático na existência, aquilo que acomete o homem em seu viver condicionando o seu destino. São esses pontos apresentados acima que gostaríamos de colocar em dis-cussão, pois expressam a mola mestra da intervenção que tem sido feita junto aos alunos buscando, ainda que limitadamente, colocar a atmosfera de nossos encontros em contato precário com algumas energias da antiguidade. Afinal, estamos tão distantes dos gregos da época trágica, representamos um corte tão abrupto com aquele mundo, que se torna extremamente difícil essa aproximação, porém, necessária em nossa perspectiva.

dESENvOLvIMENTO

Em uma aula de História da Cultura, em que o tema tratado era o trágico a par-tir da reflexão nietzschiana sobre o dionisíaco e o surgimento do teatro grego, uma aluna questionou que todas as festas dionisíacas de caráter orgiástico expressavam ma-nifestações de indivíduos infelizes, já que viver dionisiacamente era viver perdido na infelicidade, pois faltava um sentimento de deus no coração. Estávamos no meio de uma grande reflexão coletiva que se desdobrava a partir de questões surgidas com a

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história de Édipo Rei, de Sófocles. O coletivo com cerca de vinte e cinco alunos reagiu à afirmação da aluna intensificando o debate acerca das escolhas de cada um frente à existência. Estava posto o problema da moral, que também é conteúdo da disciplina, principalmente a tensa relação entre moralidade e artes cênicas.

O episódio reforçou minhas convicções sobre a importância de colocar o trágico como problema filosófico, já que ele é inquietante ao ser humano. Ele abre caminho para o deslocamento do indivíduo de sua zona de conforto, permitindo confrontar questões como o valor da existência, e a própria condição do homem.

NIETZSCHE E O TRÁGICO

Pensar o trágico na sala de aula, mais especificamente as artes cênicas, especialmente o teatro e o carnaval, tem possibilitado um diálogo com o pensamento de Nietzsche dos mais ricos. Com o teatro temos experienciado na tragédia o ponto de contato com a filosofia, cujo desdobramento reflexivo chega ao universo do carnaval, mais especi-ficamente o samba. O diálogo com o pensamento de Nietzsche constitui-se a partir de duas questões em que a primeira é apresentada em sua juventude, e a segunda na fase madura. A despeito de reconhecermos as mudanças operadas em sua trajetória, ou seja, entre a produção intelectual de sua juventude, e a produção da fase madura, não é objetivo desse texto analisar as transformações em sua filosofia juntamente com as suas implicações. Aqui nos interessa a inserção desses dois pontos na sala de aula.

O primeiro ponto é a noção de páthos em Nietzsche, fundamentada na obra o nascimento da tragédia, (NIETZSCHE, 2007: 24) que permite pensarmos a arte como criação e efetividade da vida. páthos é pulsão, é disposição originária que irrompe sobre o homem colocando-o na indigência de ser. A ideia de impulsos artísticos oriundos da natureza que alcançam a dimensão do humano nos remete a este páthos, que é uma força descomunal. Nesse sentido, o homem é compelido à criação pela sua própria condição na existência, e a arte se apresenta como uma das possibilidades de efetividade da vida.

Os impulsos artísticos que fizeram surgir a tragédia na Grécia brotaram, segundo Nietzsche, da tensa relação entre o apolíneo e o dionisíaco. O primeiro expressando a medida, a harmonia, e a busca do belo, ao passo que o segundo representa a desmedida, a criação e a aniquilação, a diluição do indivíduo na embriaguez provocada pelo abrup-to deslocamento a partir do dionisíaco. A noção de forças pulsionais que irrompem sobre o homem deslocando-o da vida regular e rotineira que ele vive no cotidiano, abre caminho para a reflexão sobre a arte em seu processo criativo. Além disso, ela permite ao pensamento mergulhar nas manifestações festivas do humano, que envolvem a

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música, a poesia e a representação teatral, no caso da tragédia grega, colocando como questão a experiência humana que é impulsionada pelas paixões, pelos desejos e pul-sões que o movem em direção ao fazer artístico, como é o caso também do samba e do carnaval.

O segundo ponto do pensamento de Nietzsche é a transposição do dionisíaco em páthos filosófico. A filosofia trágica nietzschiana é um desdobramento de suas reflexões sobre a psicologia do poeta trágico, que manifesta “o dizer sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos” (NIETZSCHE, 1983: 61). Nessa perspectiva, o con-junto da existência deve ser afirmado em todas as dimensões, ou seja, no prazer e na alegria; na dor e no sofrimento; no feio e no belo, assim como na morte e na vida.

A condição trágica do homem não é um caminho para o desespero e a pura negação da vida, mas sim a abertura para um percurso que em Nietzsche deve ser compreendido na fórmula do amor fati, que é a afirmação do páthos trágico da existência. Essa filosofia não é negação niilista como vontade de não, mas ao contrário, o que ela busca é “em vez disso, atravessar até ao inverso até a um dionisíaco dizer sim ao mundo, tal como é, sem desconto, exceção e seleção (...)”. (NIETZSCHE, 1983: 392).

Essa perspectiva nos permite penetrarmos na esfera da arte sem o aprisionamento dos padrões estéticos. A arte é efetividade da vida, como ensinam os poetas trágicos da Grécia antiga. Sendo assim, ela incorpora todas as dimensões da vida tanto o belo quanto o feio; tanto o maravilhoso quanto o que causa horror. Nesse sentido, a arte “é a grande possibilitadora da vida, a grande aliciadora da vida, o grande estimulante da vida”. (NIETZSCHE, 1983: 28). Esse caminho nos parece essencial para desalojar a arte da ideia meramente mercadológica impulsionada por parte significativa da indús-tria cultural.

vERNANT E O dIONISISMO

Vernant apresenta o dionisíaco como um ponto de tensão na cultura grega. Ele percorre um caminho diferente no sistema cultural grego, ainda que faça parte dele. Trata-se de reconhecer os conflitos que o dionisíaco representa na medida em que há um confronto com o que é regular no cotidiano. Nesse sentido, percebe-se tanto em Vernant quanto em Nietzsche um ponto em comum no que tange à percepção do alcance do dionisíaco na Grécia antiga. Para Vernant no dionisíaco “seu papel não é con-firmar e reforçar, sacralizando-a, a ordem humana e social. Dioniso questiona essa ordem; ele a faz despedaçar-se (...)” (VERNANT, 2006: 77). O mundo do cotidiano esfuma--se e funde-se alterando as oposições e contrastes, como “o masculino e o feminino, aos quais ele se aparenta simultaneamente (...)”. (VERNANT, 2006: 77). Com o dionisíaco

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embaralham-se as fronteiras levando o homem ao desterramento do que é regular e cotidiano. Trata-se de “desenvolver para os homens (...) pelo vinho e pela embriaguez, o jogo e a festa, a mascarada e o disfarce (...) enfim, fundar o teatro, em que (...) o fictício se mostra como se fosse realidade”. (VERNANT, 2006: 80) Abre-se, portanto, um imenso horizonte de interpelação do fictício na tragédia antiga em sua relação com a realidade, e o mundo virtual da modernidade avançada.

A percepção de que a tragédia apresenta o homem como enigma é outro ponto de contato entre as duas visões. Ao remontar às lendas e histórias dos deuses e heróis, o teatro apresenta o trágico como elo dos gregos com o seu passado, já que esse retorno é fundamental para o reconhecimento de que, mesmo sendo uma ficção, a tragédia coloca a questão do enigma da existência. O que é o homem? Segundo Vernant essa é a questão que a tragédia apresenta na esteira da percepção do ser humano como alguém extremamente problemático.

Entretanto, o retorno ao passado é uma porta para o próprio conhecimento e vi-vência do presente, já que os espetáculos também representavam a atuação da pólis a partir dos cidadãos. Ao organizarem competições de tragédias com a efetiva participa-ção da população (VERNANT, 2009: 360) os gregos exercitavam a própria dimensão política já que um tribunal da cidade no molde do que já existia na cidade decidia pelo vencedor, ou seja, o mesmo modo de funcionamento das instituições políticas. Vernant chega a apresentar a experiência grega no sentido de uma cidade que se torna teatro, portanto, Atenas é a expressão desse desenvolvimento cultural em que o teatro é peça fundamental no próprio reconhecimento dos gregos no que diz respeito à sua força de expressividade diante da realidade.

Contudo, outra dimensão importante alavancada pelo trágico a partir do dionisis-mo sinaliza que “o teatro é, no mundo grego, uma forma de se tornar outro” (VERNANT, 2009: 354). O dionisismo representa nos homens o desejo de se tornar outro que está fora do que é cotidiano e regular. Daí as festas, a embriaguez, o travestimento, que provoca nos homens da pólis a necessidade de “experimentar algo que difere do cotidiano, das normas” (VERNANT, 2009: 354). Esse momento de suspensão do cotidiano é pre-sidido por Dioniso, pois ele “é o deus que, num dado momento, faz tudo passar para outra dimensão, e é isto que o teatro realiza no centro da cidade grega” (VERNANT, 2009: 354).

Outro fator de grande importância na análise de Vernant é a percepção do belo como ponte para a incorporação do que é problemático no homem. Segundo o he-lenista francês “o belo torna-se uma via de acesso para a compreensão do que o homem é, ou seja, o que há de mais precioso e de mais ridículo, de mais frágil e de mais poderoso” (VERNANT, 2009: 349). Portanto, a beleza estética da tragédia não apaga o que é pavoroso na vida. Percebe-se assim um ponto de contato com a reflexão nietzschiana,

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já que o filósofo alemão compreende o trágico como afirmação da vida em todas as di-mensões. Segundo Nietzsche “a arte deve antes de tudo embelezar a vida (...) deve escon-der ou reinterpretar tudo que é feio, aquele lado penoso, apavorante (...)”. (NIETZSCHE, 1983: 134 e 135).

Assim sendo, essa perspectiva assume que a sala de aula pode ser um espaço privi-legiado para a reflexão da arte como efetividade da vida, ou seja, como portadora de uma capacidade de exprimir toda a dimensão trágica da existência, incorporando as dimensões do belo e do feio, e de tudo que é motivo de angústia ou de espanto para o humano. Com isso, abre-se um caminho que não tangencia a tragédia apenas com uma perspectiva pessimista negadora da vida como no niilismo, mas que sinaliza outras facetas da existência humana em sua plenitude e vigor.

Um dos aspectos principais trabalhados em sala de aula é o questionamento da pos-sibilidade de diálogo que aproxime a nossa modernidade e os gregos da época trágica. Existem possibilidades de contato da modernidade com o mundo grego? Talvez muitos dissessem que não há espaço para este encontro, já que a atual modernidade é um salto tão distante em relação à antiguidade, que a marcha moderna só enxerga o instantâneo e o futuro. Partimos do pressuposto de que a modernidade é um procedimento crítico, e nesse sentido, está sempre facultado ao pensamento moderno retornar ao passado, como fizeram os renascentistas e os românticos reconhecidamente modernos, que recuaram na história para poderem seguir em frente. Portanto, voltar aos antigos junto aos alunos pode trazer à baila questões fundamentais ao homem da modernidade, já que seguindo a ótica nietzschiana acerca da filosofia, ela seria a “interpretação profunda dos problemas eternamente iguais” (NIETZSCHE, 2012: 150)

Vernant também defende a ideia de que o trágico possui abertura para o contato com a modernidade através de suas forças e energias. Segundo ele, a tragédia “coloca questões sobre o homem, sua natureza, sua problemática (...) não terminamos de colocá-las”. (VERNANT, 2009: 374). Em relação ao pensamento de Nietzsche, acreditamos que o seu movimento de transposição do dionisíaco em páthos filosófico (NIETZSCHE, 2008: 61 e 62) é o próprio exemplo da abertura de contato com a antiguidade.

Gostaríamos de apresentar um exemplo de como o conceito de trágico foi traba-lhado em sala de aula a partir da história de Édipo Rei, escrita por Sófocles no século V a.C. A primeira encenação provavelmente foi em 430. Voltamos um pouco nos antecedentes da lenda em que Laio, rei de Tebas, casa-se com Jocasta. Ele vai a Delfos consultar o oráculo sobre o que fazer para conseguir ter um filho com a rainha. O orá-culo afirma que “se tiveres um filho, ele te matará e se deitará com a mãe” (VERNANT, 2000: 165). Laio fica apavorado, mas acaba tendo um filho com Jocasta após ter rela-ções com a rainha numa noite de embriaguez, seu nome é Édipo. Eles tentam livrar-se

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da criança entregando-a a um pastor que recebe ordens de deixá-la no monte Cíteron. Ele acaba hesitando, e dá o menino a um pastor de Corinto, que o leva como presente ao rei Pólibo e à sua rainha Peribeia. O filho adotivo cresce assediado pela inveja dos nascidos em Corinto, e num certo dia sofre a insinuação de que não era filho legítimo do rei.

Como Pólibo não lhe convence totalmente Édipo vai a Delfos consultar-se com o oráculo acerca de sua verdadeira genealogia. O oráculo apenas afirmou que ele iria ma-tar o próprio pai e casar-se com a mãe. Desesperado Édipo foge de Corinto para fugir da sentença. Dirigindo-se à Tebas encontra no meio do caminho a carruagem de Laio, que se dirigia a Delfos para consultar o oráculo. Ao ser atacado Édipo revida e mata Laio, seu pai, e quase todos na carruagem, com exceção de uma pessoa. Chegando a Tebas livra a cidade do monstro, uma esfinge que dava enigmas para os habitantes, que se não conseguissem decifrá-los eram devorados. Ao decifrar o enigma proposto pela Esfinge Édipo cai nas graças da cidade tornando-se rei no lugar de Laio.

A peça de Sófocles tem início no palácio real já com Édipo na condição de rei. A cidade encontrava-se assolada por uma terrível peste, e após consulta ao oráculo, este diz que somente com a vingança da morte de Laio a cidade voltaria aos dias de nor-malidade e bonança. Édipo promete buscar o culpado a qualquer custo iniciando uma investigação que culminará com o esclarecimento do que ocorreu com o rei assassina-do, e com a revelação de que Édipo era o verdadeiro assassino de Laio. Além disso, vem à tona a verdade de que ele cometeu incesto ao casar-se com a própria mãe, a rainha Jocasta, e ter quatro filhos com ela.

Após trabalharmos com a história, e alguns fragmentos da peça de Sófocles fizemos uma atividade dividida em grupos. Nosso exercício teve como origem o livro introdu-ção à tragédia de sófocles, de Nietzsche, publicado postumamente, e que se constitui das aulas do jovem professor de filologia da Universidade da Basileia, proferidas em 1870. Nietzsche sugere uma “comparação entre a antiga forma da tragédia e a moder-na” (NIETZSCHE, 2014:3). Ele parte da ideia de que os modernos não entendem a tragédia grega, e Édipo é o grande modelo apresentado pelo pensador alemão, porque eles buscam no destino trágico uma culpa moral que justifique um tipo de perspectiva inexistente entre os gregos da época das tragédias. Fazem um julgamento moral a partir da associação direta entre culpa e castigo, em que “o sentimento ao assistir a uma tragédia é aparentado ao que temos diante do tribunal” (NIETZSCHE, 2014: 4).

A partir desse diagnóstico de Nietzsche sobre a maneira moderna de encarar o trágico, foi elaborado um exercício que teve como objetivo avaliar em que medida esse problema moral moderno poderia estar presente na sala de aula. Foi criada uma situa-ção conjectural que é o julgamento de Édipo a ser feito pela turma.

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Em um coletivo com vinte e cinco alunos dividiu-se a turma em dois grupos de quatro pessoas. Um grupo defenderia a inocência de Édipo, e o outro a sua culpa moral pelo assassinato do pai, e pelo incesto da mãe. O resultado da atividade foi o surgi-mento da perspectiva moral de buscar a relação direta entre sofrimento e culpa entre os acusadores de Édipo. O grupo que o defendeu buscou livrá-lo da culpa por algo que ele não foi o responsável direto, mas sim o oráculo. De qualquer modo, o mais interes-sante é que depois das intervenções de cada grupo, com cada um tendo cerca de quinze minutos para a fala, foi feita uma votação com o restante da turma para saber qual das duas sentenças seria declarada vencedora. A primeira venceu com pouca margem de di-ferença. O fundamental foi perceber como as questões colocadas por Nietzsche apare-ceram no âmbito da sala de aula, fundamentalmente os problemas referentes à moral e suas implicações no âmbito do cenário cultural em que nossos alunos estão envolvidos.

CONSIdERAÇõES FINAIS

A experiência de trabalhar com o conceito de trágico desde o início do ano letivo de 2015 tem possibilitado momentos de intensos debates em sala de aula. O que talvez explique a carga de intensidade é o alcance da perspectiva trágica que apresenta o ho-mem como problemático dentro da existência.

A despeito da imensa dificuldade em empregar o conceito de trágico na sala de aula, o que temos percebido é a abertura para a provocação de que enfrentar o que é problemático na vida não significa rumar para o niilismo, ou para o desespero estéril diante do mundo. Indubitavelmente, voltar à tragédia grega causa desconforto, e por isso surge o risco de fechamento do outro para confrontar-se com as questões surgidas na temática proposta. Por outro lado, esse retorno pode provocar o deslocamento do outro de sua zona de conforto, ou seja, desalojar o indivíduo das suas verdades absolu-tas e petrificadas.

Uma das grandes dificuldades em trabalhar na sala de aula essa questão é a percep-ção corrente de que a visão trágica é uma ponte direta para o pessimismo estéril, ou mesmo uma porta aberta para a ideia de que se trata de assunto próprio de quem vive apenas no gozo do sofrimento. Ao sustentarmos que a tragédia grega surgiu dos cultos e festas das dionísias, e nesse sentido, que seria uma grande contradição pensar a ideia de festa enclausurada como tristeza e sofrimento, pois a alegria e o prazer do desfrute desses eventos é um dado inquestionável, buscamos desnaturalizar certas noções perpe-tuadas e estabelecidas como verdades insuperáveis.

Nietzsche afirma que nós modernos “deixamos a terra firme e embarcamos! Queimamos a ponte – mais ainda, cortamos todo laço com a terra que ficou para trás!” (NIETZSCHE

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Apud WEBER: epígrafe). Esse problema é descomunal se pretendemos olhar o que ficou para trás, como o exemplo da tragédia grega. Essa impossibilidade de alcançar um passado tão remoto talvez seja uma aparência, já que temos a impressão de que mesmo distante da terra, o homem da modernidade ainda é humano, e isto por si só já revela algo que é enigmático, pois continuamos sendo problemáticos. Aí talvez residam nossas possibilidades de entrar em contato com as energias daquela época.

bIbLIOGRAFIA

NIETZSCHE, Friedrich. os pensadores / obras incompletas. 3ª Ed. São Paulo, Abril Editora, 1983.

-------------------------------. Além do bem e do mal. 1ª Ed. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.

------------------------------. o nascimento da Tragédia. 1ª Ed. São Paulo, Companhia das Letras, 2007.

-----------------------------. Ecce homo. 1ª Ed. São Paulo, Companhia das Letras, 2008.

-----------------------------. Escritos sobre educação. 6ª Ed. São Paulo, Edições Loyola, 2012.

---------------------------- introdução à tragédia de sófocles. 1ªEd. São Paulo, WMF Mar-tins Fontes, 2014.

SóFOCLES. A trilogia tebana. Édipo Rei. Édipo em Colono. Antígona. 1ªed. Rio de Janeiro, Zahar, 1990.

VERNANT, Jean Pierre. O universo, os deuses, os homens. 1ªed. São Paulo, Compa-nhia das Letras, 2000.

-----------------------------------. Mito e religião na Grécia antiga. 1ªed. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2006.

------------------------------------. Entre mito e política. 2ªed. São Paulo, Editora da Uni-versidade de São Paulo, 2009.

WEBER, José Fernandes. Formação (Bildung), educação e experimentação em Nietzs-che. 1ªed. Londrina, Eduel, 2011.

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ENSINO dE FILOSOFIA À LuZ dE ALGuNS ELEMENTOS bAKHTINIANOS:

uMA EXPERIÊNCIA ONLINEMiguel Angelo Castelo Gomes

os objetos não devem ser encerrados na função de apenas prolongar um órgão humano. Eles autorizam, tornam possível, sugerem, influenciam, fazem obstá-culo, entre outros efeitos que são capazes de promover. Acima de tudo, abrem um fluxo de possibilidades não imaginadas em qualquer interação, como verdadei-ros mediadores, deslocando, traduzindo e até mudando nossas intenções iniciais (cAsTANhEirA, 2008)

1- INTROduÇÃO

Bakhtin concebe a língua como uma interação verbal. Para este autor, o ser humano não pode ser entendido sem que se leve em conta as relações que o ligam ao outro. A palavra, neste sentido, não é monológica, o que garante ao dialogismo uma condição constitutiva do sentido.

O dialogismo, assim, aparece como principio interno da palavra, significando que, no discurso, um mesmo objeto está carregado de valores e definições diversos. Além disso, anterior mesmo à concretização de um determinado enunciado, e mesmo pos-teriormente, há diversos enunciados vinculados e relacionados entre si. Neste sentido, o locutor não está inaugurando um discurso completamente novo, na medida em que qualquer palavra é retirada de outros enunciados.

Seja como for, em Bakhtin, o discurso é vivo, enquanto modo social, o que exige sua percepção, em aspectos contraditórios, enquanto realidades linguísticas múltiplas que se interligam. Ele apresenta a linguagem como elemento central na vida humana. Assim, existe uma concepção de palavra enquanto material da linguagem interior e da consciência, também como elemento comunicacional relevante no cotidiano, presente em qualquer criação ideológica, em todos os atos de compreensão e de interpretação.

O mesmo autor sinaliza para o sentido ideológico da palavra, relacionando-a comple-tamente ao contexto, o que indica que ela traz em si uma gama enorme de significados construídos socialmente. Ela, a palavra, então, é, em última instância, também polissêmica e plural, tornando a história viva e presente, por carregar em si diversas perspectivas ideo-lógicas que a constituem. Já a enunciação aparece como produto do ato da fala, sendo de natureza social e condicionada pelo contexto mais imediato ou meio social mais amplo.

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O fórum, em EAD, permite, a partir da mediação do monitor, a fomentação de ele-mentos concordantes e discordantes nas posições assumidas pelos estudantes. Tais con-flitos deixam transparecer, igualmente, a natureza social, política, cultural e histórica da linguagem, dado que um pretenso posicionamento tido por estritamente individual traduz, de fato, a história de um determinado sujeito linguístico, imerso em uma his-tória específica, com alguns repertórios, dentre outros aspectos, que aparece atualizada mediante uma mensagem.

A mediação dialógica, através da monitoria, permite aos alunos, de maneira efetiva, assumirem tais diferenças de posicionamentos, uma vez que a própria percepção destes embates ideológicos, atualizados no diálogo, é mais interessante de ser promovida pelo monitor ao estudante, do que uma simples aferição de certo ou errado, numa dada questão. Isto se torna extremamente relevante, de maneira especial, no âmbito da expe-riência filosófica, que privilegia, dentre outras coisas, a desnaturalização de construções do pensamento tidas como absolutas.

Desta forma, o fórum em um espaço EAD aparece como meio de incentivar a for-mação de sujeitos dialógicos, que construam um diálogo mais efetivo com as diferenças e com os distintos posicionamentos.

1.1 - Ead e análise do discurso

No entanto, também o próprio ensino à distância pode ser concebido a partir de um processo discursivo. Neste sentido, as políticas afirmativas aparecem simultanea-mente com outros signos do contemporâneo como, por exemplo, o signo da corporei-dade que, em EAD, assim como tempo e espaço, são reconfigurados, pelo uso intenso das novas tecnologias. O texto (seja impresso, digital ou hipertextual), assim, assume o lugar do corpo na Educação à distância.

Falo de enunciação, discurso, emissão, recepção, condições de produção textual e formações discursivas. Todos inerentes a qualquer processo que se pretenda dialógi-co como o processo de construção de conhecimentos, portanto de significados, como o da educação. Na EaD, é condição sem a qual a interação autor/leitor não se estabelece. (possAri, 2009)

A corporificação do texto enquanto signo-linguístico, não verbal ou hipertextual -, vai variar de acordo com as relações estabelecidas entre as condições de produção (intenção do autor, sentidos pretendidos) e, de modo especial, no texto escrito (de forma impressa ou voltado para a WEB) a ser percebido como acontecimento discursivo, numa unidade de sentidos, ligado à historicidade, em suma, com a intertextualidade e a memória discursiva.

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Entre o professor/produtor/autor e o aluno/leitor, a produção de textos estabelece uma interação, a partir de tudo aquilo que pode ser considerado texto e que configura o próprio Ensino à Distância: planejamento, projeto, gestão, prática tutorial, tecnologias, dentre outros aspectos.

Uma das características do EaD é tornar prescindível a presença no ato comu-nicativo. Aqui, o texto passa a representar o próprio corpo, mediante as mídias, que não se constituem como a única forma de se estabelecer uma relação direta com o receptor, justamente por outros fatores também atuarem na construção de efeitos de sentidos. Desta maneira, recepção é interação: o receptor não é mais concebido enquanto sujeito passivo, o que demanda um processo de mediação na experiência interativa, que não acontece, de maneira necessária, no instante mesmo do ato comunicativo.

A materialidade dialógica no processo interacional é o texto-signo, constituída em textos armazenados e que precisam de uma adequação de propósitos, de alteração dos modos como se operacionalizam e se decodificam, o que modifica a relação produtor/leitor imposta milenarmente pela centralidade discursiva do livro e da escola.

Ao instituir a dialogia, o texto tem sua função deslocada. Não possuindo mais au-tonomia, enquanto materialidade, não representa apenas o real, enquanto transmissão de conhecimento, mas é a própria condição de interação.

No Ensino à Distância, também, produção/autoria e produção/leitura demandam uma compreensão de que existe uma polifonia sobre os diversos temas debatidos. Se verdade é que o autor expressa um conjunto de vozes, igualmente o leitor possui distin-tas histórias de leituras e memórias discursivas, o que acaba por determinar uma maior polissemia na leitura.

se para um leitor determinado, idealizado, corre-se o risco de que os sentidos a serem atribuídos não coincidam com os pretendidos, como produzir textos, num processo de EAD, onde o polo leitor, representado por milhares de sujeitos-leitores, constitui-se por diferentes níveis, classes, objetivos, formação escolar e, por tanto, configura-se como um espaço de conhecimento onde a resistência ou a aceitação de significados vão se dar na arena bakhtiniana? (possAri, 2009)

O conceito de dialogismo, relativizando a autoria individual dos discursos, auxilia na compreensão da dimensão coletiva das produções de um fórum, pelo simples fato de que os discursos não pertencem ao aluno ou ao monitor, mas, na verdade, o que se dá é uma operação, em que cada um se posiciona diante de uma discussão. Estes posicionamentos refletem embates, apontando para a história mesma da construção da linguagem, que não é imparcial nem monossêmica.

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2 - dESENvOLvIMENTO

No segundo semestre de 2014, atuei como monitor do curso online de introdução à Filosofia, na PUC-Rio. Durante este período, como licenciando em Filosofia da insti-tuição, pude acompanhar mais de perto algumas das vantagens e desafios implicados na utilização das novas tecnologias da comunicação, no campo da Educação, especificamen-te ao monitorar uma turma bastante heterogênea, composta por graduandos de diversas áreas, tais como Engenharias, Administração, Psicologia e Arquitetura, dentre outras.

Monitorando este grupo, ao término do primeiro módulo do curso, durante uma discussão sobre o tema “Mitos”, solicitei aos estudantes para que postassem, no fórum, uma imagem ou foto quaisquer, desde que estas expressassem, na percepção deles, uma relação entre “Mitologia e contemporaneidade”.

Um dos alunos, desta forma, postou os seguintes texto e imagem:

“olá, neste tópico vimos sobre os mitos. Ainda em tempo apresento a minha imagem escolhida. primeira-mente, o intuito da foto era apresen-tar praticantes de uma religião que se devotam a um mito, a imagem em questão é de um judeu ortodo-xo, mas poderia ser também de um muçulmano ou de qualquer outra

religião. Escolhi o judeu porque os vemos com frequência aqui mesmo no rio de Janeiro e consequentemente acabam por se “destoar” do cenário com suas roupas, chapéus, barbas e ca-belo, diferentemente de judeus que utilizam o quipá ou não. perdão se ofendi algum judeu, não era a intenção, confesso ser completamente ignorante quanto ao assunto.A razão pela qual escolhi a foto é apresentar uma parcela da população que mesmo durante o século XXi se apega a antigas tradições e práticas, como as dos judeus ortodoxos. Notamos que a secularização para alguns não se fez tão presente, justamente pelo apego à tradição e ao mito. No que diz respeito ao mito, sabemos que estes indivíduos se apegam ao que é escrito no Torá, assim como regem suas vidas com base no mesmo”.

A partir desta postagem, a interação com o estudante se desenvolveu da seguinte forma:

“oi, Felipe, bacana a imagem que você escolheu. realmente, estamos tão imersos em nossos hábitos ocidentais pós-modernos que, por vezes, podemos esquecer-nos que há, de fato, outros

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mundos e outras possibilidades, muitas vezes, bem à nossa volta. Talvez a figura de um judeu com seus trajes típicos e sua crença num Deus metafísico, em pleno século XXi, num ônibus contendo outras pessoas, cada qual ‘fechada’ em seu universo particular, possa nos causar um ‘espanto’ inicial, que conduza à reflexão: existem outras perspectivas de se conceber a realidade, além da minha? Neste caso, o judeu possui suas crenças e seus mitos. No entanto, provavelmente, muitos ao redor deste judeu, dentro do ônibus, ali estão justamente por cre-rem, de certa forma, também na força de outros mitos, como: trabalho, progresso, ciência, tecnologia, dentre outros. cada um destes aspectos humanos possuem seus mitos, igualmente criados na cultura ocidental. Um abraço!”

Já cursando o mestrado em ‘Filosofia e Ensino’ (CEFET-Rio), decidi refletir sobre esta experiência de monitoria, vivenciada na PUC-Rio, agora, mediante análise discur-siva dos dados.

2.1 - Análise discursiva dos dados

2.1.1 - A imagem

Inicialmente, não nos é possível identificar a origem do local em que a foto foi tirada. No entanto, após um olhar mais atento, percebe-se, pelo letreiro invertido no ônibus, que se trata de um país que não o Brasil. Ademais, além dos trajes tradicionais do passageiro judeu, chama a atenção o aspecto fisionômico dos outros passageiros daquele transporte público, provocando a reflexão de que, muito provavelmente, cada um deles estava ali se deslocando para suas atividades diárias, sem notar que, tal como o crente judeu, também eles estavam impulsionados por mitos, mesmo que distintos daquele.

2.1.2 - A postagem do aluno

A palavra ‘mito’ é carregada de conceitos e compreensões diversas. Para este tra-balho, a relação imediata estabelecida pelo aluno entre a palavra ‘mito’ e a palavra ‘religião’ foi destacada, como se unívocos em equivalência fossem os significados de ambos. A liberdade de escolha do aluno aparece no trecho ‘minha imagem escolhida’. Ou seja, não necessariamente poderia se dar a relação mito e religião, nesta postagem específica do fórum, especialmente se for levado em conta que esta discussão não surgiu em nenhuma das postagens anteriormente feitas.

O discurso moderno e positivista pretendia enxergar a realidade social sob a pers-pectiva evolucionista, em que a ciência seria o ápice maior atingido pelo corpo social.

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O que o aluno fez não foi apenas servir-se desta palavra, enunciando-a. Ele permitiu, todavia, que viesse à tona uma voz discursiva de fundo moderno. Como enunciador, ele parece se espantar pelo fato de diferenças como estão correrem igualmente no Rio de Janeiro, independente de onde o episódio efetivamente tenha se dado. Isto aparece quando ele diz: ‘escolhi o judeu porque os vemos com frequência aqui mesmo no rio de Janeiro’.

Além disto, ele parece possuir a compreensão de que sua forma de pensar é a única existente, especialmente nos trechos: “intuito da foto era apresentar praticantes de uma religião que se devotam a um mito” e “a imagem em questão é de um judeu ortodoxo, mas poderia ser também de um muçulmano ou de qualquer outra re-ligião”. O uso que ele faz, portanto, da palavra ‘mito’, é monossêmica, ao menos, no entendimento do aluno.

Outro recurso utilizado pelo aluno foi o de se desculpar por algum mal entendido. A frase por ele utilizada, “perdão se ofendi algum judeu, não era a intenção, confesso ser completamente ignorante quanto ao assunto”, denota ao que me parece, uma in-tuição de que o tema tem outros contornos para além dos expressados em sua frase, mas que, no entanto, não aparecem no texto, por ignorância completa. Esta intuição abre a perspectiva de, no diálogo com o monitor, se estabelecer uma compreensão maior do caráter dialógico da comunicação, tal como apontado na breve reflexão teórica apresen-tada no início deste trabalho.

2.1.3 - A resposta do monitor

No processo de monitoria, a atitude privilegiada foi a de tentar fazer o interlocutor perceber que todos se encontram imersos em um contexto mais amplo, contexto este que produz nossa forma de pensar e de falar, tal como refletido por Bakhtin. Desta feita, a frase ‘imersos em nossos hábitos ocidentais pós-modernos’ teve a intenção de fazê-lo, num primeiro momento, dar-se conta de que produzimos nossos discursos sempre de algum lugar específico, ou seja, de que estes não se dão num vazio ou numa realidade universal de compreensão de sentido. Pelo contrário, a utilização da palavra ‘mito’ pelo aluno se deu num contexto específico, fazendo ecoar uma voz de fundo moderna, mas que pode se abrir ao diálogo com diversas outras vozes, até mesmo por que é intrínseca à palavra ‘mito’ e a qualquer palavra este dado.

Assim, o trecho ‘há, de fato, outros mundos e outras possibilidades, muitas vezes, bem a nossa volta’ foi um recurso utilizado pelo monitor, com o objetivo de apontar a multiplicidade de vozes existentes em nosso cotidiano e em nós mesmos, sem que, na maioria das vezes, nos demos conta disto.

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O ‘espanto’ inicial do aluno, com o judeu e seus trajes para nós exóticos, poderia ser convertido num espanto, agora provocado com a conscientização de que o olhar dele havia construído, ao menos sobre aquela imagem, um silêncio sobre todos os atores e personagens envolvidos no registro fotográfico. Uma questão filosófica bastante interes-sante que poderia se desenrolar deste ponto, num diálogo com o aluno, seria: Por que a grande maioria de nós possui este ‘silêncio do olhar’?

A experiência filosófica surge a partir da experiência com o espanto. Thauma é uma palavra grega que define isto. Então, a partir daquele instante, achei interessante con-duzir minha resposta no sentido de indicar que também ele, e todos nós, nos movemos a partir, também de mitos: ‘Existem outras perspectivas de se conceber a realidade, além da minha? Neste caso, o judeu possui suas crenças e seus mitos. Assim como o ocidente’.

Como se trata de um espaço em que outros elementos do ato comunicativo não se fazem presentes, como gestos, entonação de voz, dentre outros, o recurso da modali-zação aparece como elemento importante no diálogo tutor-aluno. Isto ficou explicito na parte do texto em que se diz: “muito provavelmente”. Esta mesma expressão não seria necessária, caso fosse uma aula presencial. Porém, como se tratava de um primeiro diálogo mais direto com o aluno, e desconhecendo maiores informações do mesmo, a opção privilegiou uma abordagem mais amistosa e pedagógica, em que o recurso mo-dalizador mostrou-se fundamental.

3- CONCLuSÃO

O atual contexto da Educação se depara com uma nova configuração existencial dos diversos sujeitos, em que a tecnologia aparece como elemento determinante na construção dos diversos saberes. A geração nascida após a explosão tecnológica, ocor-rida a partir do início da década de 90 do século xx, possui diferenças marcantes, se comparada às gerações anteriores. Se antes a verticalização do conhecimento marcava as relações estabelecidas na escola e na sociedade, agora a horizontalidade passa a ser uma característica das mais relevantes na construção do conhecimento. Significa dizer que a escola, tal como atualmente, com seus currículos fechados, sua centralidade no professor e sua concentração em um determinado espaço institucional físico, acaba por não dialogar eficazmente com uma juventude já acostumada, desde a infância, a surfar pelas redes da internet. A multiplicidade de informações disponíveis e o fácil acesso ao conhecimento retira, por assim dizer, da escola e do professor, o caráter de exclu-sividade, enquanto ‘fonte’ do saber, à população em geral, o que desafia-nos por uma busca de significação dos novos espaços e saberes, mais condizentes com a mentalidade interativa e tecnológica da maioria dos alunos.

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A perspectiva bakhtiniana que nos serviu de fio condutor ao longo deste ensaio ajuda-nos a pensar, assim, uma cartilha com elementos pedagógico-filosóficos, que dia-logue com esta perspectiva, voltada aos professores de Filosofia que, em sua prática de sala de aula, desejem incluir a tecnologia da informação e comunicação como atividade recorrente junto aos alunos. Isto por que ferramentas como o whatsaap, utilizadas majoritariamente entre os estudantes de todas as classes sociais, servem de suporte para replicação de experiência semelhante à discutida neste trabalho, visando contri-buir com a prática docente num contexto de poucos tempos de aula semanais, estrutura escassa, além de falta de material formativo na área.

4- bIbLIOGRAFIA

BAkHTIN, M. M. Estética da criação verbal. 5. ed. Trad. P. Bezerra. São Paulo: Mar-tins Fontes, 2010.

CAMPANER, Sônia. Filosofia, ensinar e aprender. São Paulo: Livraria Saraiva, 2012.

COSTA, Leandro Demenciano. O que os jogos de entretenimento têm que os educa-tivos não têm: 7 princípios para projetar jogos educativos eficientes. Teresópolis: Ed. Novas Idéias; Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2010.

DALBOSCO, Cláudio Almir. Pedagogia Filosófica: cercanias de um diálogo. São Paulo: Paulinas, 2007.

FERRARIS, Maurizio. Dove sei? Ontologia del telefonino. Milano: Tascabili Bompia-ni, 2005.

FIORIN, José Luiz de. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: ática, 2006

GHEDIN, Evandro. Ensino de Filosofia no Ensino Médio. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2009.

JOHN, Daniel. Educação e tecnologia num mundo globalizado. Brasília: UNESCO, 2003.

kOHAN, Walter O. (org); CERLETTI, Alejandro... (et al.). Filosofia: caminhos para o seu ensino. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.

MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

133

MAYER, Sérgio. Filosofia com jovens: em busca da amizade com a sabedoria. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

POSSARI, Lucia Helena Vendrúsculo. Material Didático para Ead: Processo de Produ-ção. Cuiabá: EDUFMT, 2009.

SOUSA, Antonio Bonifácio R. de. Filosofia prática e a prática da filosofia: guia de es-tudo para o ensino médio. São Paulo: Paulus, 2011.

TELES, Maria Luiza Silveira. Filosofia para jovens: uma iniciação à filosofia. 19. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

TOMAZETTI, Elisete M. (org). Filosofia no Ensino Médio: experiências com cinema, teatro, leitura e escrita a partir do PIBID

OuTROS ENSAIOSTextos dos Mestrandos

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A MENINA E O MuRuCuTuTu: uMA POSSívEL HISTóRIA SObRE A AMIZAdE vIRTuOSA

Anne Caroline Bessa Lima da Silva

1. A AMIZAdE EM ARISTóTELES

Em Ética a Nicômaco, Aristóteles discorre sobre a amizade e os diferentes tipos de amizade que observa e conclui que esta só é possível entre homens bons, quer seja a amizade com outra pessoa, quer seja a que um homem tem para consigo mesmo. Aristóteles assim crê na amizade fundada em sentimentos que somente o homem bom pode cultivar: fazer o bem para outras pessoas, fazer o bem para si mesmo buscando as melhores virtudes. O homem bom, amigo de si mesmo e de outros homens bons, “(...) deseja viver consigo mesmo, e o faz com prazer, já que se compraz na recordação de seus atos passados (...)”18 Ainda nessa linha, o homem bom sempre procede para com os amigos da mesma forma que age em relação a si mesmo, pois reconhece no amigo um semelhante a si mesmo.

Por oposição, outro princípio de Aristóteles é o de que o homem mau não pode ser amigo nem de outros nem de si mesmo. Isto ocorre porque homens maus e pessoas inferiores não são capazes de escolher o que é melhor para elas mesmas. Estes buscam companhia para esquecer seus atos ruins e porque acreditam que estando acompanha-dos não cometerão outros atos ruins. Não se sentem úteis e não possuem nenhuma vir-tude de que se orgulhar, por isso não se amam e, como não se amam, não são capazes, tampouco, de amar outras pessoas. Essa é uma postura que devemos evitar.

A benevolência não é uma espécie de amizade, uma vez que podemos ser benevo-lentes com qualquer um, enquanto a amizade implica intimidade. A partir da bene-volência pode-se chegar à amizade, mas para isso é preciso, além de intimidade, sentir falta e ansiar pela presença do amigo. E, se a convivência permitir, a benevolência pode virar amizade, porém não a amizade por prazer ou a utilitarista, mas a uma amizade por virtude, porque a benevolência é uma virtude.

A unanimidade também não é uma amizade, pois unanimidade é quando os ho-mens têm a mesma opinião a respeito de algo que é do interesse deles. “É, portanto, a respeito das coisas a fazer que se diz que as pessoas são unânimes;”19 A unanimidade se-ria uma amizade política, entre homens bons que desejam em comum “o que é justo e vantajoso”. Novamente o homem mau não é capaz nem mesmo desse tipo de amizade,

18 ARISTóTELES, Ética a Nicômaco, capítulo 4, 1166a.19 IDEM, capítulo 6, 1167a.

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pois ele não é capaz de ser unânime com ninguém e deseja somente para si as maiores vantagens e os melhores bens.

Os benfeitores também não são amigos de quem beneficiam, pois, seus interesses nas pessoas a quem beneficiam é de que elas demonstrem gratidão. A relação entre estes se dá baseada em interesses e não em relações de afinidade ou de qualquer sen-timento amistoso.

O amor a si próprio pode ser visto como uma forma de amizade, desde que sob a perspectiva aristotélica de homem bom, posto que o homem amigo de si mesmo não é o homem egoísta, que deseja somente para si todas as vantagens. Este homem que busca somente as riquezas e os prazeres corporais não pode ser considerado amigo de si porque não busca para si, verdadeiramente, as melhores coisas. Este é irracional e digno de censura. O verdadeiro amigo de si busca agir com justiça e temperança, aumentando suas virtudes e sua nobreza. O homem bom é amigo de si e obedece à razão. Esse “amigo de si” é louvável e com sua prática de virtudes faz bem a si mesmo e aos seus semelhantes.

O homem bom, que é amigo de si, precisa de outros amigos? De que tipo de amigos? Os amigos políticos? Os conseguidos por benevolência ou benfeitoria? Se o homem bom é feliz, para que necessita de amigos?

O homem bom precisa de amigos primeiro porque é mais nobre fazer o bem a amigos do que a desconhecidos, opina Aristóteles. E nesse caso ele precisa de amigos na fartura para que possa agir como benfeitor, e precisa de amigos em tempos difíceis, para que possam agir de forma virtuosa com ele ao suprir suas necessidades.

Aristóteles destaca três tipos de amizade: a prazerosa, a útil e a virtuosa.A amizade útil baseia-se na utilidade que um amigo tem para o outro. Assim, são

amigos não por que amam um ao outro, mas porque deste relacionamento cada uma das partes tira algum proveito. Este é o caso, por exemplo, da hospitalidade.

A amizade somente prazerosa é a que proporciona convívio com pessoas agradáveis, com quem se participa de jogos e festas, por exemplo. Elas duram pouco e são comuns aos jovens.

A melhor amizade, a mais duradoura, é a virtuosa. Nesta, os amigos são amigos porque desejam o bem um do outro. Ambos são homens bons e virtuosos e a amizade durará tanto quanto durar a virtude de ambos.

Ter muitos amigos não é próprio do homem bom. Ter muitos bons amigos exigi-ria muito tempo e dedicação, diz Aristóteles, pois somente o convívio põe a prova os bons amigos. Ter muitos amigos por utilidade acabaria também exigindo muito temo e dedicação pois é necessário que as duas partes sejam vantajosas uma para a outra e, para ter muitos amigos que tragam vantagens, é preciso também ser útil para muitos

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outros, o que demanda tempo e esforço. E o que tem muitos amigos por prazer deve ser alguém que está sempre envolvido em jogos, festas e situações semelhantes. Alguém assim, que se dedique tanto ao prazer será, consequentemente, alguém que não dedica tempo suficiente aos outros afazeres. Portanto, o homem bom e virtuoso, amigos de si mesmo e das virtudes, deve procurar o equilíbrio também nas amizades, mesmo que elas sejam motivadas por bons sentimentos.

2. O CASO dA MENINA quE FICOu AMIGA dO MuRuCuTuTu, A CORuJA GRANdE dA NOITE

Marcos Bagno, escritor brasileiro, publicou um livro intitulado “Murucututu, a coruja grande da noite”. Sobre a inspiração para o livro, o autor explica:

“Em algumas culturas indígenas brasileiras, as mães costumam cantar para a co-ruja murucututu pedindo que ela traga o sono para as crianças que vão dormir. por isso ela também é chamada de “Mãe do sono”. Existe até uma cantiguinha que diz: Murucututu, da beira do telhado, leva esse menino, que não quer ficar calado. ”20

O livro conta as aventuras de uma menina de algum lugar do interior do Brasil. Ela mora com uma avó muito religiosa, católica, que costumava contar histórias. “Lendas cheias de bichos maus (...)”, entre tantos bichos, um dia a avó medrosa contou a histó-ria do Murucututu. A vó explica:

“o Murucututu é a coruja grande da noite. É mais que grande, enorme. seu gemido ecoa pela noite, Murucututu, arrepiando os corações de quem se atreve a escutar. É a coruja mãe do sono. criança que não dorme e teima em ficar acordada até tarde, vem o Murucututu e pega. Agarra com as unhas longas e finas, leva para bem alto no céu escuro para depois deixar cair, cair, cair até se espatifar no chão, plaft, feito jaca madura que despenca do galho e se esparrama, fedida e nojenta. ”21

A avó acredita, mas a menina considera tudo bobagem. Vai que a avó faz um bolo para dar de presente a uma vizinha. Deixa o bolo sobre a mesa e vão dormir. A menina não dorme porque sonha com o bolo. Levanta no meio da noite e come mais da meta-de. quando a avó, pela manhã, encontra o bolo assim, faltando metade, a menina diz que foi o Murucututu, ela mesma viu, durante a noite, quando a corujona entrou na cozinha e comeu o bolo. A avó, com medo, enterra o que sobrou e se benze.

20 BAGNO, Marcos. Murucututu, a coruja grande da noite. São Paulo: ática, 2005.21 Idem, p.8

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O tempo passa e a avó ganha da vizinha um pote de goiabas em calda. A garotinha não consegue dormir pensando no doce e acaba levantando no meio da noite para, escondida, devorá-lo. O pote escorrega e cai no chão da cozinha. Sem ter o que fazer, a menina volta a dormir já pensando no que vai dizer para a avó. Novamente ela culpa Murucututu e a avó, medrosinha, lava todo o chão e vai rezar com medo da corujona.

Passa o tempo, o caso do doce fica esquecido, a avó faz uma rosca doce para dar de presente ao padre. Outra vez a menina não dorme pensando no doce. Mais uma noite ela se levanta e começa a comer a guloseima que a avó fez. Dessa vez, entretanto, ela recebe a visita da coruja.

“E a sombra aumenta e cresce até que pela porta entra, do tamanho de um homem, a grande ave descomunal, a coruja maior do mundo, o Murucututu, de orelhas pretas e papo branco, penas amareladas e linhas escuras pelas costas. Tem o bico curto e curvo, os olhos arregalados e grandes, bolas amarelas, lâmpadas de fogo.”22

Murucututu encanta a menina, que por não ter medo, é convidada a dar um pas-seio em suas costas. Pela noite adentro ela vê rios, florestas, casas. O passeio acaba e a deslumbrada menina vai dormir. Ao acordar já não tem mais medo de dizer a avó a verdade, que foi ela quem comeu o doce que era para o padre. A avó nem se zanga. O tempo passa, a menina cresce, corajosa. Envelhece, senhora de um conhecimento intui-tivo que adivinha mistérios e segredos. E quando o momento chega, vai até a floresta, no meio da noite, para o último voo nas costas de sua agora amiga coruja.

que tipo de amizade a menina fez? Uma amizade por utilidade? Essa talvez tenha sido a primeira, quando era útil para a personagem colocar a culpa de tudo que fazia escondido na coruja Murucututu. Mas, e para a coruja, poderia ter alguma utilidade manter essa “amizade”? Talvez somente a de ser lembrada sempre que a menina invo-cava seu nome para justificar seus malfeitos. Se assim acreditarmos, podemos dizer que o primeiro vínculo de amizade foi baseado em um personagem ser útil ao outro (na perspectiva de Aristóteles). Ainda não há um vínculo real de amizade, posto que os personagens nem mesmo se encontraram.

Chega o dia em que o encontro acontece e Murucututu e a menina, ao estabe-lecerem uma conversa e passarem algum tempo juntos, vivenciam um outro tipo de amizade. Pode-se ver, a princípio, uma amizade por prazer se for destacado o passeio que a personagem faz nas costas da grande coruja. O passeio decerto foi incrível, pois o autor escreve que, ao final, “a menina devolve os pés ao chão, a ca-beça em maresia. 23” E que ela “(...) guardou para sempre nos porões da saudade a

22 BAGNO, Marcos. Murucututu, a coruja grande da noite. São Paulo: ática, 2005. P.2423 Idem, p. 32

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memória daquele voo.”24 Uma amizade em que a companhia de um é agradável ao outro e o tempo que passam juntos é usado para proporcionar prazer e alegria. Essa espécie de ami-zade é de tal natureza que mesmo os maus a podem ter, e um homem bom pode ter com um homem mau, afirma Aristóteles, pois sua motivação não se baseia nas virtudes um do outro.

A amizade entre a menina e o Murucututu pode ser vista como útil ou prazerosa, porém algo inesperado acontece: ambos nutrem admiração um pelo outro. A menina se admira da beleza da coruja, a coruja se admira da coragem da menina em lhe enfrentar. “E o Murucututu diz assim: a coragem é grande virtude, menina. Se não tens medo, vem comigo e te mostrarei da noite os mistérios. ”25.

Surge, do encontro, uma amizade baseada na admiração que um tem pelo outro, não de seus defeitos, mas de suas virtudes. A história narra, por fim, a construção de uma duradoura amizade, que vai perdurar por toda a vida da menina. Baseada na admi-ração mútua pelo caráter um do outro, e na possibilidade de aprendizagem. Murucu-tutu sentiu-se admirado por sua beleza (e não temido) e ensinou a menina os mistérios da noite. Ela também aprendeu sobre ser corajosa, sobre falar a verdade.

“Uma amizade assim, como seria de se esperar, é permanente, visto que eles encon-tram um no outro todas as qualidades que um amigo deve possuir. (...). Essa espé-cie de amizade, então é perfeita, tanto no que se refere à duração quanto a todos os outros aspectos e nela cada um recebe do outro, em todos os sentidos, o mesmo que dá, ou algo de semelhante; e é isso que deve ocorrer entre amigos.” 26

De dois personagens improváveis surge uma amizade pautada no bom caráter e no respeito recíproco.

CONSIdERAÇõES FINAIS

O trabalho do professor nas séries inclui motivar os estudantes a desenvolverem o gosto pela leitura27. Também é preciso trabalhar leituras que tragam o co-nhecimento indígena, considerado matriz da cultura brasileira28. Marcos Bagno traz essas duas possibilida-des numa história que fala de uma lenda do universo infantil. A história pode ser contada destacando nesse

24 Idem, p. 3625 BAGNO, Marcos. Murucututu, a coruja grande da noite. São Paulo: ática, 2005. P.2426 ARISTóTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2015. P.167-168.27 BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: Língua Portuguesa. Brasília: Secretaria da Educação Fundamental, 2001. P. 3028 Lei 11.645 de 10 de março de 2008.

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universo infantil, a cultura indígena que se costurou à cultura rural do Brasil. E pode ser vista do ponto de vista da ética, fugindo, porém, do padrão bem-mal, certo-errado. O foco não precisa ser o que a personagem fez de errado, pode deslocar-se para a for-ma como se constrói uma amizade baseada no respeito e na admiração, no que cada personagem possui de admirável. A filosofia de Aristóteles nos permite enxergar um potencial novo nos antigos mitos, e trazer para a sala de aula um tema sempre atual: a boa amizade. Mesmo sem ler “Ética a Nicômaco”, as crianças podem refletir sobre o mesmo tema que motivou o filósofo grego, século atrás.

REFERÊNCIAS:

ARISTóTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2015. P.167-168.

BAGNO, Marcos. Murucututu, a coruja grande da noite. São Paulo: ática, 2005. P.24

BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: Língua Portuguesa. Brasília: Secretaria da Educação Fundamental, 2001. P. 30

BRASIL. Lei 11.645 de 10 de março de 2008.

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REPENSANdO PARAdIGMAS EM buSCA dE uMA dIdÁTICA FILOSóFICA29

Fabio Martins de Sousa Lindoso

1. INTROduÇÃO

A problemática central do ensino de filosofia em nosso país se inscreveu até deter-minado momento no âmbito da admissão nos currículos escolares e a partir de 2006, com a obrigatoriedade, esta problemática começou a mudar de foco, o cerne da questão passou a ser o aperfeiçoamento do ensino de filosofia. Esta busca pelo aprimoramento do ensino de filosofia tem se revelado uma caminhada cheia de obstáculos, onde, jamais se pode prescindir a natureza do saber filosófico. É aqui, onde o professor é convidado a problematizar a sua prática, a ter uma atitude filosófica quanto a sua existência em que uma das dimensões é ser professor de filosofia.

Em face das peculiaridades do saber filosófico, perguntamo-nos se a filosofia pode ser arrolada em conjunto com as outras disciplinas obedecendo aos mesmos critérios didáticos das demais ou mesmo se o seu ensino pode ser entregue à competência de outros profissionais da educação que não os filósofos, neste aspecto: - tanto co-gitamos as possibilidades de uma didática filosófica, já que o que se pretende neste fazer filosófico não é um mero repasse de conteúdos, não é um ensinar a história da filosofia, mas ensinar a filosofar, obviamente que, para tanto, não se possa abrir mão de conhecimentos filosóficos; quando reconhecemos o ensino de filosofia como um problema filosófico, um problema a ser pensado a partir dos símbolos da Filosofia em sua diversidade polissêmica. Isto não significa que deveríamos nos dispor das teorias da educação, mas, em vez disso, acentuar as contingências entre a filosofia e a educa-ção e pensar possibilidades para que o ensino de filosofia aconteça em concordância com a própria Filosofia.

Com efeito, o ensino de filosofia quando passa a visar em si uma práxis não pode mais ser tomado como um espaço de reprodução do conhecimento filosófico, mas como um espaço de experiência filosófica, onde genuinamente se faz filosofia. Nesta perspectiva, o professor é filósofo e seus alunos são aprendizes de filósofo, porém para que os alunos possam filosofar é imprescindível que o professor seja filósofo, filósofo no sentido mesmo de quem pergunta, de quem ama a busca pela sabedoria30; filósofo

29 Texto original publicado nos CADERNOS DE EDUCAÇÃO DA REDE NOTRE DAME.30 HORN, 2009, p. 95

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capaz de problematizar a sua prática, filósofo capaz de instaurar a experiência filosófica nas suas aulas através de uma didática igualmente filosófica.

2. O duALISMO ENTRE ENSINO E FILOSOFIA COMO ObSTÁCuLO PARA A dIdÁTICA FILOSóFICA.

Reconhecida sua existência, obstáculos para um ensino filosófico têm sido fortaleci-dos pelos próprios professores de filosofia, outros pelos cursos de formação em filosofia, e ainda outros por aqueles que preferem pensar a atividade filosófica como algo desagre-gado da educação. Tais obstáculos conforme nos aponta Silveira (2005) são pertinentes a um dualismo entre ensino e filosofia, entre filósofo e educador, entre professor e pesquisador e ainda, entre formação acadêmica e atuação docente:

O ensino da filosofia tem peculiaridades que a diferenciam do ensino de ou-tras disciplinas. Essas peculiaridades surgem do fato de que não há uma nítida separação entre ensinar filosofia e fazer filosofia. O professor ensina filosofia, filosofando. Embora estas peculiaridades se tornem mais transparentes na prá-tica docente, elas têm igualmente uma relação com a formação inicial [aca-dêmica], aquele período em que o futuro professor entra em contato com a filosofia, com a história da filosofia, com as teorias filosóficas. Os professores, hoje atuantes em filosofia no Ensino Médio, reclamam e com razão, da sua formação inicial que desconsiderou as peculiaridades do ensino da filosofia no nível médio, assim como passou ao largo dos desafios de ensinar filoso-fia numa realidade cada vez mais apegada ao utilitarismo, ao pragmatismo. (SILVEIRA, 2005, p.02, grifo nosso)

Longe de qualquer preciosismo na interpretação do texto de Silveira, cremos que as peculiaridades da filosofia não constituem necessariamente um agravante ao dualis-mo observado. Na verdade, certas peculiaridades são compreendidas pelo professor de filosofia [ou pelo filósofo] na sua vivência com a Filosofia e reforçam a idéia de que a disciplina não se iguala às outras disciplinas e isto merece importância no sentido de a disciplina filosófica não pode ser inserida no mesmo tratamento das demais. Entre-tanto Silveira nos desperta para o sentido de que ensinar filosofia é praticar filosofia, é fazer filosofia e o dualismo provém, obviamente, do fato de não atentarmos para isso e legitimarmos aí uma cisão. Entenderemos melhor esse dualismo nos servindo do pen-samento de Gimeno Sacristán:

[...] a prática é que fazem os professores, a teoria é o que fazem os filósofos, os pensadores e os pesquisadores da educação. Essa suposição é claramente errônea: nem os primeiros são donos ou criadores de toda prática, nem os

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segundos o são de todo o conhecimento que orienta a educação. (SACRIS-TAN apud SILVEIRA, 2005, p. 21)

Guilhermo Obiols (2002), nesta mesma perspectiva, nos aponta também que há um conflito entre a Filosofia e seu ensino:

A relação entre a filosofia e seu ensino é bastante conflituosa. Inicialmente po-demos conceber que há uma atividade filosófica ou uma atividade do filósofo que, seja como for que se entenda, parece que pode ser considerada alheia ao ensino. Fazer filosofia ou produzir filosofia seria uma atividade marcadamente individual e o ensino de filosofia, ao contrário, supõe uma exposição pública. Seria o ensino apenas um meio de vida do filósofo? A atividade filosófica seria pre-judicada pelo ensino? Estas são algumas interrogações que nos colocamos. (p.89)

Evidente que a atividade filosófica não deve se reduzir somente ao ensino, contudo, consideramos que esse antagonismo filosofia-ensino leva-nos a um retrocesso no que concerne ao aperfeiçoamento da prática pedagógica em filosofia e prejudica a busca por métodos e técnicas de ensino que visam ao aluno o pensar correto e autônomo31. Esse dualismo, além de incoerente, tolhe as possibilidades de uma didática filosófica e se fortalece quando a filosofia se nega a pensar uma didática própria, a construir uma metodologia adequada a seu ensino e a definir seus objetivos enquanto com-ponente curricular32.

Se recorrermos à história da filosofia, perceberemos inúmeros exemplos de envol-vimento dos filósofos com o ensino: Platão não separou o ensino da filosofia, em sua filosofia ele institui bases que podem ser utilizadas para se pensar uma metodologia do ensino geral e um ensino de filosofia. Na filosofia moderna, kant e Hegel nos delineiam as possibilidades didáticas em filosofia. Um ensino de filosofia vem sendo pensado há séculos e todos os filósofos supracitados consideraram “o ensino filosófico como uma atividade formativa, educativa, e ao trabalho com ensino como uma instância do filo-sofar” (OBIOLS, 2002, p. 95).

3. A POSSIbILIdAdE dIdÁTICA NO CERNE dA quESTÃO: O ENSINO dE FILOSOFIA COMO PRObLEMA FILOSóFICO.

O primeiro passo para lograrmos uma didática filosófica é admitirmos esta neces-sidade. Para tanto, é preciso nos [re]apropriamos da nossa tarefa pedagógica, pois o interesse em resolver os impasses do ensino de filosofia em busca do seu aprimoramento

31 Cf. GONÇALVES, 2006, p. 02.32 Cf. GONÇALVES, op. cit., p. 13.

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não é dos educadores33, mas especificamente dos professores de filosofia, dos filósofos, já que o ensino é algo que mobiliza a contingência entre o filósofo e o seu ofício de professor34. Deste modo, a questão do ensino de filosofia será tomada como um pro-blema filosófico na medida em que a filosofia reconhece a necessidade de pensar o seu processo de ensino.

Para Alejandro Cerletti (2003), a Filosofia precisa filosofar sobre seu processo de ensino, mas para tanto é necessário

[...] trazer o ensino para o terreno da Filosofia, isto é, fazer filosofia do ensino filosófico, o que nos permitirá quebrar a tradicional dualidade: didática por um lado, filosofia pelo outro, como se fossem terrenos independentes; rompe-se também a idéia de aplicação de uma suposta didática geral [...] à filosofia [...] todos sabemos que no caso da filosofia isto não é nada fácil. (p.65, passim).

O que Cerletti quer dizer com “nada fácil” é que as técnicas de ensino-aprendizagem em filosofia devem ser criadas pela própria Filosofia ou, como é o caso, pelos profes-sores, partindo do pressuposto de que uma didática geral perdeu sua aplicabilidade na atual conjuntura em que a filosofia se apresenta.

O ensino de filosofia é um problema que precisa ser pensado como problema filo-sófico e, é algo que urge em ser realizado já que essa habilidade tem sido expropriada da Filosofia para ser radicada no campo do saber pedagógico, passando a pedagogia a ser provedora de métodos e caminhos a serem seguidos na tarefa de ensinar a filosofar, é o que nos aponta Rodrigo Gelamo (2007, p, 06):

[...] o problema acerca do ensino filosófico foi expropriado da própria vida cotidiana do professor-filósofo na contemporaneidade e, o lugar vazio foi ocu-pado pela recusa em pensar essa prática ou a busca - motivada pela defasagem em uma inflexão sobre o si e o sobre o seu fazer em sala de aula – de temas que fossem importantes para serem ensinados ou da importância de se ensinar a filosofia. Esse lugar no qual o filósofo se coloca é um lugar comum na qual a sua formação, muitas vezes cristalizada, propicia conforto intelectual para exercer uma ocupação de professor.

Isto ocorre pelo dualismo preexistente, do qual já nos referimos: o professor de filosofia não problematiza sua atividade docente, muitas vezes ele não se sente moti-vado pelos problemas da prática, restringindo-se às questões de ordem mais gerais da filosofia, o que se deve com maior frequência a sua formação acadêmica, onde o ensino

33 Tome-se por: pedagogos, pensadores e gestores da educação.34 Cf. GELAMO, 2007, p. 245

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de filosofia não é um problema filosófico, mas algo que, enquanto ensino, caberá ser discutido na esfera da pedagogia.

Cerletti (2004, p. 19) ratifica que o problema do ensino de filosofia não é um pro-blema pedagógico, mas uma questão filosófica: “Nesse sentido, a questão de ensinar filosofia começa a ser vista como um problema propriamente filosófico [...] e não uma questão exclusivamente pedagógica”. O que é igualmente observado em Márcio Danelon (2004, p. 01):

[...] acreditamos importante pensar o ensino de filosofia desde um olhar da própria filosofia. Em outras palavras, pensar filosoficamente o ensino de filo-sofia é pensar com o saber filosófico o problema de seu ensino. Sublinhamos, nesse caso, que o ensino de filosofia tenha como modus operandi problemas filosóficos, ou seja, problemas que encontrem na historiografia filosófica pen-sadores clássicos como interlocutores privilegiados para a abordagem filosófica desses problemas.

Pensar a filosofia no Ensino Médio com ferramentas próprias não implica neces-sariamente nos desfazermos dos teóricos da educação, mas problematizar e conceituar essa experiência a partir de símbolos filosóficos, reconhecendo a interação entre a fi-losofia e a educação, trilhando o caminho de possibilidades didáticas deixadas pelos filósofos desde a antiguidade até a contemporaneidade.

Cerletti parece dar cabo ao dualismo e a impossibilidade didática, afirmando que o preconceito em torno do ensino de filosofia decorre do fato que o próprio ensino de filosofia não é considerado por muitos filósofos como um tema filosófico e este precon-ceito tende a ser dirimido quando pensamos o ensino de filosofia, dentro da própria filosofia, daí é possível conceber uma didática filosófica e esta didática, por sua vez, se tornará para a filosofia uma condição de possibilidade para seu ensino.

Se pensarmos, então, a didática da filosofia em sentido mais amplo, como um ensino filosófico da filosofia, talvez possamos superar aquela polaridade reco-nhecendo dois caminhos: por um lado, a filosofia pensará as condições de sua própria didática e, por outro lado a didática especial poderá gerar estratégias específicas inéditas para ensinar filosofia. Com esse movimento procuro recor-rer às características próprias da atitude filosófica (a exploração de suas pró-prias condições e pressupostos) para fundamentar depois que o ensino deveria ser considerado como um domínio autêntico da filosofia e, portanto, também a exploração de suas condições. (CERLETTI, 2003, p.67)

Até o momento tratamos de possibilidades didáticas, de direções a seguir, de cami-nhos traçados por grandes expoentes da Filosofia ao longo da sua história, tais direções

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constituíram-se em métodos, em paradigmas pelos quais hoje tentamos conduzir o ensino de filosofia; foi necessário que [re]conhecêssemos o caráter pedagógico da filo-sofia de modo que ela pudesse pensar o seu ensino, do mesmo modo como inserimos essa tarefa no cerne de um problema filosófico, mas não afirmamos a existência de uma didática filosófica; tudo que sabemos até aqui é que existem possibilidades e necessida-des didáticas. A partir desta premissa, nos questionamos: como a didática filosófica se torna efetivamente possível? O que a torna realmente necessária? Cerletti alerta para a incompatibilidade de uma didática geral e o ensino de filosofia. Por quê?

3.1 uma didática da filosofia é realmente possível?

O autor francês André Perrin (2009) em seu artigo “Une didactique da la philoso-phie est-elle possible?35” nos afirma que uma didática da filosofia é possível à medida em que esta didática é enquanto método, capaz de transmitir o saber filosófico de acordo com a ordem ou a lógica concernente a sua natureza própria, de acordo com a sua es-pecificidade. Isto se aplica a qualquer campo do saber, já que as didáticas de um modo geral facilitariam o ensino/aprendizagem de um conhecimento determinado, o que as diferencia é a especificidade do saber, isto é, aquilo que determina esse saber específi-co. Para Perrin, uma didática da filosofia pressupõe a existência de um conhecimento filosófico determinado, o que nos remeteria a uma análise mais profunda sobre como a filosofia se constitui um saber e o que torna o seu saber específico em oposição aos demais (PERRIN, 1994, p.97-98)

Partindo do pressuposto que “les didactiques concernent, elles, l’art ou la manière d’enseigner les notions propres à chaque discipline”36, Perrin recorre a origem etimológica do termo filosofia que no sentido pitagórico, significa amor a sabedoria. Este signifi-cado por si só já é suficiente para atrair atenção necessária sobre o paradoxo de uma didática filosófica, e sobre isto o autor considera: se aquilo que é próprio de todo saber é transmissível por ensino, poder-se-ia conceber em filosofia um método que permitis-se transmitir o amor, o desejo ou a busca pelo saber que lhe são próprias? (PERRIN, 1994, p.98) Nesta mesma perspectiva Cerletti (2004) nos diz que:

Desde Sócrates, ensinar filosofia é ensinar uma ausência (ou talvez, uma im-possibilidade). É possível “mostrar” como outros “amaram” a sabedoria ou o que fizeram deste desejo ou deste amor. Porém, evidentemente não é possível ensinar a “amar” a sabedoria, como certamente, não é possível ensinar a

35 É possível uma didática da filosofia? 36 As didáticas concernem na arte ou maneira de ensinar as noções próprias de cada disciplina. (CORNU; VERGNIOUx apud PERRIN, 1994, p. 98, tradução nossa)

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apaixonar-se. Isso nos conduz a uma situação paradoxal: o essencial da filoso-fia é, constitutivamente, inensinável [...] (p.28-29)

Se partirmos deste pressuposto naufragaremos em nossa busca e concluiremos que uma didática da filosofia não é possível, a menos que haja um método pelo qual gal-garemos ensinar o amor à sabedoria. Retomando o pensamento de Perrin, o sentindo etimológico da filosofia nos conduz àquilo que ela não é – um conhecimento pronto –, mas que se coloca em busca desse saber, o que requer desejo de saber. Então, o filósofo, por sua vez, “é aquele que busca o saber, mas que tem consciência de ainda não o ter encontrado, de não possuí-lo, de estar distante dele. A filosofia se define deste modo mais pela busca do que pela posse do saber” (MARCONDES, 2004, p.55). Ora, se a Filosofia não é a posse do saber, a especificidade do seu ensino estaria no fato da disci-plina não contar com conteúdos ou objetos de investigação propriamente ditos, mas apenas com a possibilidade de conhecê-los?37.

Reforçando essa ideia, em Perrin, fica claro que

a filosofia não é ciência, nem opinião. Em oposição à opinião ela é saber; po-rém ao contrário dos saberes científicos transpostos em disciplinas escolares, ela não é um saber determinado, não possuindo nem método, nem objeto determinados38 (PERRIN, op. cit., p.99, tradução nossa).

Perrin nos afirma que esta especificidade é que diferencia a filosofia das demais dis-ciplinas e sua didática não poderá jamais ser tomada da mesma maneira como ocorre às ciências positivas. Se a filosofia não possui um objeto determinado, e se a didática é transmissão do saber em conformidade com aquilo que é determinante ao objeto desse saber, o que determina o saber filosófico? Uma didática filosófica constitui-se então numa pretensão à medida que supõe da filosofia um objeto determinado. Nos encon-trarmos diante de uma aporia?

Perrin nos indica que a possibilidade didática da filosofia percorre as entrelinhas da-quilo que é ou não filosófico em termos de ensino, por exemplo, temos que a filosofia é pensamento reflexivo, e por isso tomamos o seu ensino como prática da reflexão, porém nos esquecemos de que a reflexão não é característica unicamente da filosofia: é preciso refletir para se aprender geografia, biologia ou tão simplesmente para se decidir se à noite sairemos ao cinema ou ao teatro. Temos que o ensinar filosofia desenvolve a criticidade, porém segundo Perrin, um espírito crítico pode ser tão bem obtido e desenvolvido

37 Cf. WEIPPERT, 2007, p. 9438 « La philosophie n’est donc ni science, ni opinion. Par opposition à l’opinion, elle est savoir; mais à la différence des savoirs scientifiques transposés scolairement en disciplines, elle n’est pas un savoir déter-miné, n’ayant ni méthode, ni objet déterminés ».

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pelos estudos históricos, assim como pela arte, em sentido diferente, exercer-se-á uma função crítica na sociedade. Tomamos também que o rigor e a coerência são próprios do pensamento filosófico, porém tão quanto à filosofia, a matemática os reivindica para si. O que é então próprio à filosofia?

Perrin aponta para aquilo que nos é notório, que a filosofia reúne em si todas estas características de reflexão, crítica, rigor e coerência a fim de possuir a unidade siste-mática do saber. Nenhuma delas é isoladamente característica filosófica, mas o serão se reunidas na filosofia, e é somente na filosofia onde elas se encontram juntas e or-ganicamente ligadas (Ibidem, p. 100). Neste sentido, é próprio à filosofia a unidade sistemática do saber, não sendo um saber constituído, mas um saber constituinte no dinamismo do saber em si mesmo. Resta, contudo saber onde se encontra este saber constituinte, se se pretende ensiná-lo – propõe o autor (Ibidem, p.101). Será que po-deremos aplicar aos nossos alunos todos os textos e todas as obras filosóficas de modo a trabalhar as características da filosofia como saber constituinte? Obviamente que não, um texto é filosófico, mas não dispõe em si obrigatoriamente de todas as características que o determinam como filosófico.

Em Perrin, nos aproximamos novamente do conceito kantiano, o de que só é pos-sível aprender a filosofar, “[...] ou seja, exercitar o talento da razão, fazendo-a seguir os seus próprios universais em certas tentativas filosóficas já existentes”39 e do pensamento hegeliano40 de que:

[...] por mais diversas que sejam as filosofias, uma coisa têm sempre de comum: o serem filosofias. Por conseguinte, quem tiver estudado e compreendido uma filosofia, contanto que seja filosofia, por isso mesmo compreendeu a filosofia. Aquela maneira enganadora de raciocinar que somente olha a diversidade, por aversão e medo do particular no qual só se atua o universal, não conseguirá nunca captar e reconhecer esta universalidade. Eu equiparo tal maneira de raciocinar a um doente a quem o médico tivesse aconselhado a comer fruta, e que tivesse diante de si cerejas, ameixas, uvas, mas que por pedantismo se re-cusasse a tomá-las pela simples razão de que nada do que lhe tinham oferecido era fruta, senão cerejas, ameixas ou uvas. (HEGEL, 1980, p. 333-334)

Assim, ao contrastar kant e Hegel, Perrin concordará que é possível uma didática do filosofar considerando que é próprio da filosofia exercer o talento da razão em se

39 « [...] c'est-à-dire à exercer le talent de la raison dans l'application de ses principes généraux à certaines tentatives qui se présentent ». kANT, 1944, p. 561 apud PERRIN, 1994, p. 102 (tradução nossa).40 « [...] celui qui refuserait chaque philosophie sous prétexte qu'elle n'est pas la Philosophie ne goûte-rait pas plus à la philosophie que ne goûterait au fruit celui qui refuserait cerises, prunes et raisins sous prétexte que chacun d'entre eux n'est jamais qu'un fruit, aucun le Fruit » HEGEL, 1954, p.35 apud PERRIN, 1994, p.102

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refletindo de modo crítico a partir das filosofias nas quais se desenvolveu historicamen-te a ideia de filosofia (PERRIN, 1994, p.102) e no mais o autor acrescenta: “eis o que pode se aprender e eis o que deve ser ensinado”41.

3.2 didática filosófica versus didática geral

Discorremos até aqui sobre duas concepções de ensino de filosofia, uma que descre-ve a filosofia como busca e não como um saber pronto e acabado, e outra concepção de caráter histórico, mas que não se opõe necessariamente a anterior, onde a filosofia é o estudo das obras de importantes filósofos inscritos na tradição filosófica42. Considera-mos ambas serem importantes para o ensino de filosofia tanto quanto é prudente que a programação de filosofia para o Ensino Médio procure conciliar História da Filosofia com prática do filosofar43. Ainda assim, é bastante complexo decidir por esta ou aquela linha de conteúdos quando o que se quer, a partir das diretrizes nacionais, é um ensino de filosofia pelo qual o jovem desenvolva a capacidade de refletir sobre a realidade e problematizá-la. Neste ponto, a didática da filosofia se insere como método em que os conteúdos possam viabilizar a atividade do filosofar. Uma didática especial é necessária para que concretize a ensinabilidade da filosofia44, o que não se pode é deixar que a escolha de métodos e conteúdos dependa unicamente do bom senso dos professores.

Reconhecendo a iminente descaracterização do ensino de filosofia, reiteramos que uma didática especial é necessária no sentido em que o autor português João Boavida, considera: “se não definirmos um modo apropriado para o seu ensino, corremos o risco de a ver ensinada como qualquer outro domínio, de a ver tratada de um modo que, na realidade não a respeita, nem a preserva” (1991, p.5). Ora se entendemos que uma didática especial à Filosofia é necessária como um modo apropriado ao seu ensino face a sua especificidade e como condição para que o ensino de filosofia não se descaracterize, o que podemos inferir sobre a didática geral? Sobre isto, Sílvio Gallo afirma que:

O ensino de filosofia não pode ser abarcado por uma didática geral, não pode ser equacionado unicamente como uma questão pedagógica porque há algo de espe-cífico na filosofia. Há algo que faz com que a Filosofia seja Filosofia, e não ciência, e não religião, e não opinião, e é esse algo que faz com que o ensino de Filosofia careça também de um tratamento filosófico, de uma didática específica, para além de toda e qualquer questão estritamente pedagógica. (GALLO, 2002, p.203)

41 « C’est cela qui peut s’apprendre et c’est cela qui doit être enseigné ». PERRIN, op. cit., p. 102. (tradução nossa)42 Cf. MARCONDES, 2004, p. 64.43 Cf. GONÇALVES, 2006, p. 04.44 Cf. GONÇALVES, op. cit., 13.

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Sem dúvidas, atestamos que a disciplina de filosofia é específica em relação às outras disciplinas e que uma didática filosófica se insere no âmbito desta especificidade, res-peitando a natureza do conhecimento filosófico, mas o que há para que a didática geral não seja suficiente à filosofia?

Entendemos didática de um modo geral, enquanto direcionamento da prática do ensino e da aprendizagem que serve de elemento articulador entre as proposições teó-ricas e a prática escolar propriamente dita e se existe um elemento que articula o saber filosófico e seu ensino na escola, é porque existe uma didática para a filosofia45. Ora se a didática da filosofia conceitualmente segue o mesmo caminho da didática geral, o que torna a didática da filosofia filosófica e não geral? O que garante que numa didática filosófica não se cometa os mesmos erros na articulação entre teoria e prática? Barbosa (2008) e Tomazzeti (2002) citando Ghiraldelli Júnior nos afirmam que o problema da didática para o ensino da filosofia é o mesmo que o da didática geral, isto é, “estabelecer o limite entre o que está sendo organizado de maneira a ser melhor aprendido pelo es-tudante, e o assunto propriamente dito, como ele aparece classicamente na história do conhecimento” (2002, p. 32)

Cerlletti preocupa-se em estabelecer aqui uma cisão, abordando a questão do ensino de filosofia como um problema filosófico de modo que a didática filosófica não seja condenada a ser meramente um conjunto de técnicas facilitadoras da compreensão de alguns conteúdos filosóficos (2004, p.20), diferenciando-se, portanto da didática geral. Cerletti afirma ainda que pensar uma didática filosófica suplanta a contraposição entre se produzir e reproduzir filosofia, do mesmo modo que o ensino de filosofia pensado sob competências filosóficas é como já vimos, causa e conseqüência da superação do dualismo incoerente entre pesqui-sadores e filósofos versus “aprendizes” ou estudantes de filosofia, entre escola e academia; de um lado o lugar onde se produz filosofia e de outro o lugar onde se reproduz filosofia, e onde o professor é protagonista principal na superação deste dualismo, tornando-se por sua vez um mediador entre os dois mundos (CERLETTI, op. cit., p. 20).

Cerletti admite haver uma estrutura pedagógica que sustenta esta contraposição, sendo, portanto necessário à superação deste paradigma, uma reconceitualização didá-tica, onde o professor mediador no âmbito de uma didática especial possa aproximar os dois mundos e transformar aprendizes em filósofos sem que para isso os alunos devam necessariamente fazer uma graduação em filosofia, mas serão filósofos a medida em que pratiquem a atividade do filosofar.

O objetivo final de todo professor de filosofia deverá ser fazer de seus alunos, em alguma medida filósofos. Em virtude disso, deverá tentar promover neles

45 Cf. BARBOSA, 2008, p.136-137.

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uma atitude filosófica, já que será ela que, eventualmente dará lugar ao desejo de filosofar. (CERLETTI, 2009, p. 81, grifo do autor)

Podemos, a partir deste ponto, inferir sem riscos que a didática geral seja a estrutura pedagógica que sustenta esta contraposição. A questão parece se tornar mais clara quando analisamos as tendências dominantes no ensino de filosofia na atualidade.

Conforme Barbosa (2008), uma dessas tendências organiza o processo ensino--aprendizagem tomando a História da Filosofia como centro desse processo, onde o professor acaba por fazer dessa história o próprio conteúdo das aulas de filosofia (p.137). Barbosa citando a professora Elisete Tomazetti, nos aponta para o fato de que devido esta situação e outros problemas que enfrenta a filosofia no âmbito escolar, quando os alunos do Ensino Médio chegam ao Ensino Superior em alguma aula de Filosofia, quando indagados sobre o que pensam e/ou estudaram sobre Filosofia no ensino médio são unânimes em afirmar que estudaram Sócrates, Platão e Aristóteles, que a Filosofia é o estudo “daqueles homens” e/ou também, é o estudo do Ser (Tomazetti, 2002, p.71).

Em contraponto a esta situação Barbosa citando Desidério Murcho (2002), considera que aluno é impedido de aprender “a discutir idéias filosóficas, a rever as suas posições, a ter em consideração contra-argumentos e contra-exemplos [...] a ver alternativas” e sentirá “difi-culdade de defender as suas idéias” (MURCHO, p. 17, passim). Destarte, podemos afirmar que um ensino que reduza filosofia a sua história pode ser comparado a uma situação em que o professor de física ou de matemática limite o conteúdo das aulas à história da física ou a história da matemática46. Como os alunos resolveriam a partir das suas fórmulas, os problemas da gravidade, calor ou velocidade? Ou como representariam as funções no plano cartesiano?

Assim o ensino de filosofia que toma a história da filosofia como centro, parte de uma didática ou estrutura pedagógica que sustenta esta contraposição, posto que ensi-nar filosofia não consiste em um repasse de conteúdos, mas o professor como mediador entre o mundo dos filósofos e o mundo dos aprendizes

[...] é aquele que dialoga com os filósofos, com a história da filosofia e, claro, com os alunos, fazendo da aula de filosofia algo essencialmente produtivo. Portanto, a filosofia não é [nem poderia ser] produzida numa parte e ensinada noutra, ela é sempre produzida e ensinada ao mesmo tempo. (GALLO & kOHAN, 2000, p.182, grifo nosso)

O contrário disto que é proposto por Gallo e kohan se identifica com a estrutura pedagógica que sustenta o ensino de filosofia no Ensino Médio como uma reprodução daquilo que é produzido pelos filósofos ao longo da história da Filosofia.

46 Cf. BARBOSA, 2008, p. 137.

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A postura docente que toma a história da filosofia como centro, acaba iden-tificando-se com o conjunto de características pedagógicas que dominaram o cenário educacional brasileiro iniciado pelos jesuítas, ao qual normalmente denominamos pedagogia tradicional. Para essa pedagogia, a didática [...] é compreendida como um conjunto de regras técnicas, sendo a atividade do-cente totalmente dissociada das questões políticas. (BARBOSA, 2008, 136)

Segundo Libâneo (1994, p. 61), a pedagogia tradicional se caracteriza pelas “con-cepções de educação onde prepondera a ação de agentes externos na formação do alu-no, o primado do objeto de conhecimento, a transmissão do saber constituído na tradi-ção e nas grandes verdades acumuladas pela humanidade”. Nessa abordagem, segundo Barbosa, considera-se o educando como um receptáculo vazio a ser preenchido com os conhecimentos da história da filosofia acumulados pelas gerações adultas e repassados ao aluno como verdades inquestionáveis (2008, p.137).

Acrescentamos também, que no modelo pedagógico tradicional, os conteúdos são separados da experiência do aluno e das realidades sociais, valendo pelo valor intelectu-al, sendo este um motivo pelo qual esta pedagogia é criticada como intelectualista e, às vezes, como enciclopedista47.

Devido a estas mesmas críticas a pedagogia tradicional no decorrer dos anos, cedeu espaço para que em seu lugar fosse adotado um outro modelo pedagógico; um modelo pedagógico – como querem os educadores – renovado. A esta pedagogia denominamos de pedagogia escolanovista e a ela identificamos outra tendência dominante no ensino da filosofia, caracterizada pelo ensinar a filosofar dissociada dos conteúdos filosóficos, ou pautada em temas filosóficos, que não requerem necessariamente uma compreensão cronológica para situar os fatos filosóficos. Nesta tendência de ensino, o aluno deve ser autônomo para filosofar, bem como “a proposta dessa pedagogia é desenvolver uma educação centrada no aluno, uma educação que lhe permita ser o que realmente é, onde o professor deve ‘ausentar-se’ para abrir espaço ao livre crescimento pessoal do educando”. (BARBOSA, 2008, p. 137)

Segundo Demerval Saviani (1991, p. 20, passim), a pedagogia da escola nova des-locou “o eixo da questão pedagógica do intelecto para o sentimento; do aspecto lógico para o psicológico; [...] do professor para o aluno; [...] da disciplina para a esponta-neidade; do diretivismo para o não diretivismo” Se a pedagogia tradicional se apega demasiado aos conteúdos e sobrecarrega o professor de responsabilidade no processo ensino/aprendizagem, a postura docente no escolanovismo é sem dúvida perigosa, já que transfere a responsabilidade de aprender ao aluno, sendo não-diretivos os fatores decisivos desse processo, isto implica dizer que a aprendizagem depende da esponta-

47 Cf. LIBâNEO, 1986 apud BARBOSA, 2008, p. 137

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neidade do aluno e o professor deve ser um orientador que despertará no aluno o seu desejo em aprender. Perguntamo-nos se isto de fato acontece?

O dano desta pedagogia está no fato de que

[...] a não-diretividade abandona os alunos a seus próprios desejos, como se eles tivessem uma tendência espontânea a alcançar os objetivos esperados da educação. [...] As tendências espontâneas e naturais não são ‘naturais’, antes são tributárias das condições de vida e do meio. (LIBâNEO, 1986, p.41-42).

Conforme observado em Barbosa (2008), esta postura docente tende a descaracte-rizar o ensino de filosofia, pois

propicia as condições necessárias para o surgimento de um tipo de postura docente que, apesar de privilegiar uma abordagem temática para o ensino de filosofia, também permite o surgimento de condições favoráveis para uma banalização desses temas. Na tentativa de fugir a qualquer referência à história da filosofia — seja como conteúdo, seja como referência para o estudo de temas — alguns professores assumem a postura não-diretiva, delegando aos alunos a responsabilidade pela escolha dos temas a serem discutidos nas aulas de filosofia (p.137)

Não queremos com isto tolher a didática escolanovista, mas diante dos fatos, cabe--nos apontar as discrepâncias das estruturas pedagógicas e as respectivas tendências do ensino de filosofia. Assim, por exemplo, ao se trabalhar com temas do cotidiano dos alunos adolescentes do Ensino Médio, deve-se optar por aqueles que lhes despertam mais interesse e que, consequentemente, são mais facilmente assimilados, quais sejam: corpo, amor, drogas e etc. O professor ao aplicar tais conteúdos situados em eixos te-máticos (Ética, Antropologia filosófica, etc.), deve, recorrendo à história da Filosofia, problematizar sua prática, questionando o por quê e o para quê, afim de que tais temas tenham sentido filosófico na vida do aluno. Esses conteúdos, no entanto, “não podem ser vistos como num mosaico de filósofos e ideias, e sim como problemas recorrentes dentro da História da Filosofia, a partir de temas de interesse geral” (HORN, 2009, p. 94).

Se não queremos que o ensino de filosofia seja um mero repasse de conteúdos históricos, nem tampouco queremos também provocar debates acéfalos, o professor deve ser persona-gem principal no contexto de uma didática filosófica do contrário estaremos provocando o desvirtuamento e a banalização da filosofia, devemos, conforme considera Tomazetti (2002, p. 72, passim): “tratar filosoficamente determinados temas, articulando-os com questões filosóficas” o que, contudo “pode ser muito difícil para um professor que não tome para si mesmo a filosofia como um exercício de reflexão constante”.

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Tanto na abordagem didática, que toma a história da filosofia de modo dogmático, quanto na que trabalha com temas banalizados, a prática pedagógica pode acabar sen-do vista apenas em função dos condicionantes internos do processo ensino-aprendiza-gem48 isto condenaria a didática filosófica a não apresentar nada de peculiar que a torne diferente de uma didática geral.

Uma didática filosófica deve sustentar a crítica à oposição produção/reprodução, deixando de ser um conjunto de métodos para se encontrar a forma prática de trans-mitir saberes institucionalizados, para um meio de tornar a aula de filosofia um espaço de criação49; esta didática especial o deve garantir o dinamismo do saber filosófico, deve promover meios para que os alunos sejam despertados para o desejo de saber, que não se contentem com um saber pronto, mas que numa atitude sempre filosófica, questio-nem e problematizem.

O ensino que se pretende filosófico deve ter a didática especial em si como parte necessária, possível e indissociável. Porém sabemos que na prática isto é difícil, prin-cipalmente quando a dificuldade do professor é somada a uma série de problemas da realidade escolar, porém ainda que não se disponha de um sistema didático concreto no ensino de filosofia, Cerlleti nos proporciona uma base:

Seria difícil dizer que uma seqüência determinada de passos didáticos pudesse conduzir finalmente a filosofar. O que é possível delinear é um esquema míni-mo de operatividade que reflita de maneira coerente as características assinala-das (o professor como filósofo, a pergunta filosófica como pergunta didática, o “quê” fundido ao “como”, o convite a pensar) (CERLETTI, 2004, p. 39)

Com efeito, uma didática filosófica é condição inexorável para que o ensino de filosofia seja filosófico. Mas o que vem a ser necessariamente um ensino filosófico? Ou ainda, por que um ensino filosófico? Antes de partirmos para aquilo que nos dizem os autores sobre o assunto, tentaremos grosso modo definir o que seria o ensino filosófico, tomando por base o que até aqui temos nos preocupado em discorrer.

O ensino filosófico é aquele que por via de uma didática especial50 insere a disci-plina de filosofia numa práxis51, num fazer filosófico entre professor, aluno e o saber filosófico, de modo a se obter resultados significativos. Neste ensino, percebemos que o professor é um mediador no processo de ensino-aprendizagem, traduzindo o conhe-cimento filosófico aos seus alunos, a quem este professor despertará para uma atitude filosófica; o professor através da didática filosófica propiciará aos alunos o questiona-

48 Cf. BARBOSA, 2008, p. 138.49 Cf. ASPIS, 2004, p. 315.50 Cf. CERLETTI, 2003, p. 67.51 Cf. PECHULA, 2005, p. 489.

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mento e a problematização constante dos conteúdos filosóficos, de modo que o assunto abordado em sala de aula possa ter sentido na vida cotidiana do aluno, fazendo com isto, o uso autônomo da razão. No entanto, o filosofar, nos adverte Cerletti, dependerá de uma decisão do aluno:

Ainda que se possam fazer muitas coisas para que se filosofe em sala de aula (ou se estabeleça um diálogo filosófico) nada o garante. Filosofar depende, em última instância, de uma decisão subjetiva, e não apenas em relação ao querer ser filósofo, mas porque supõe colocar em ato um pensamento e isto implica a novidade de quem o tenta. Não há planejamento de aula que possa dar conta da irupção do pensamento do outro. (CERLETTI, 2009, p. 81)

Noutro aspecto, este ensino passa a ser filosófico quando deixa de ser um mero repasse de conteúdos históricos da filosofia e, através da reflexão sobre esses conteúdos recria na perspectiva do educando meios para a compreensão de sua existência, isto é, que o aluno se aproprie da filosofia como ferramenta para a ressignificação de sua expe-riência existencial52. Igualmente o ensino passa a ser filosófico quando conduz o aluno a uma atitude filosófica ao uso consciente e responsável da razão, a filosofar sobre os temas debatidos em sala de aula, transcendendo o seu questionamento além do âmbito escolar, conferindo a filosofia um sentido prático53 em sua vida cotidiana.

O ensino de filosofia torna-se filosófico, a partir do momento em que o pensamos como problema filosófico, trazendo para o terreno da filosofia a reflexão sobre métodos e técnicas do seu ensino54, maximizando a contingência entre o ofício de professor e o de filósofo. O professor de filosofia passa também a ser protagonista principal da ação que consiste em refletir com ferramentas próprias os paradigmas a seguir na sua prática. Tal atitude é uma busca por estratégias pedagógicas que garantirão ao ensino o dinamismo do saber filosófico. Outrossim, esta atitude docente em pensar o ensino evita sua banalização e resultará, como queremos, no aprimoramento da sua prática e na legitimidade da filosofia enquanto disciplina imprescindível à formação humana que queremos com o Ensino Médio.

4. CONCLuSÃO

O ensino que se pretende filosófico parece ser um desafio em face de tantas incon-gruências presentes na relação entre a filosofia e o âmbito escolar. Este é antes de tudo um ensino responsável que exige no mínimo uma atitude docente compromissada, já

52 Cf. SEVERINO, 2002, p. 189.53 O sentido prático aqui se opõe ao sentido meramente utilitarista e pragmático;54 Cf. CERLETTI, 2003, p. 65.

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que o filosofar não é algo de fácil acesso para indivíduos que em sua maioria nunca tiveram nenhum contato com a filosofia.

O professor ao se debruçar sobre a tarefa de levar o aluno a filosofar, deve considerar sempre que o saber filosófico é rigoroso, metódico, crítico e reflexivo e, assim sendo, deve garantir que o aluno se aproprie de tais características no ato de filosofar, sob pena de que isto não se torne mera abstração.

O ensino de filosofia tem suscitado várias discussões ao longo dos anos o que cul-minou na preocupação de muitos profissionais em repensarem suas práticas de ensino. Mas diante dos fatos é difícil não admitir que o ensino de filosofia vinha se realizando na perspectiva do “tanto faz”, do amadorismo de muitos professores, do bom senso de outros na escolha de conteúdos, na definição de práticas didáticas, etc. Muito se tem falado em emancipação do jovem, em formação de indivíduos críticos, em educar para a cidadania. Será que a filosofia tem cumprido a missão de que está incumbida? E, se não está cumprindo, como fazer cumprir?

A resposta para esse questionamento é melhor delineada, quando entendemos a disciplina de filosofia enquanto práxis, isto é, prática reflexiva, como uma filosofia vi-vificante que pode ser construída a partir das aflições humanas, da insatisfação com a ordem vigente da vida como ela se nos aparece. Significa dizer que a filosofia cumpre a sua missão como disciplina se o seu ensino se der de maneira filosófica, obedecendo a essência do saber filosófico que se caracteriza pela busca e não pela posse do saber e, igualmente o ensino filosófico de filosofia deve imprimir na perspectiva do aluno esta busca.

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A CONSTRuÇÃO dA IdEIA dE HOMEM E O dESENvOLvIMENTO dA PAIdEIA GREGA

Um silêncio de torturas E gritos de maldição 

Um silêncio de fraturas A se arrastarem no chão. E o operário ouviu a voz 

De todos os seus irmãos os seus irmãos que morreram 

por outros que viverão. Uma esperança sincera cresceu no seu coração 

E dentro da tarde mansa Agigantou-se a razão 

De um homem pobre e esquecido razão porém que fizera Em operário construído 

o operário em construção.Operário em construção – vinicius de Morais

Humberto do Valle Amorim

A EPOPÉIA COMO LOCuS dA PAIdÉIA: A FORMAÇÃO dA ARISTOCRACIA GuERREIRA

O período clássico do pensamento grego (séculos V e IV a.C.) constitui o ponto alto desta civilização. É neste momento que as produções artísticas, literárias e filo-sóficas ganham as características fundamentais que influenciam até os dias de hoje a cultura do mundo ocidental.

A Educação na Grécia antiga tinha inegavelmente um caráter de classe, isto é, estava reservada aos espíritos mais preparados para as atividades nobres, tais como governar e filosofar. às classes menos favorecidas era reservado atividades mais duras e pesadas. Trata-se do trabalho produtivo como a agricultura, o artesanato, a criação de animais, etc. Assim pedagogo e historiador da educação Mario. A. Manacorda, descreve a gênese dos processos educativos na Grécia:

Na Grécia encontraremos, embora com características diferentes, aspectos da educação do antigo Egito, que nos foram transmitidos e interpretados por

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autores gregos: Heródoto, Platão, Diodoro da Sicília. Encontraremos antes de tudo, a separação dos processos educativos segundo as classes sociais, porém menos rígida e com um evidente desenvolvimento para formas de democracia educativa. Para as classes governantes uma escola, isto é, um processo de edu-cação separado, visando preparar para as tarefas do poder, que são o “pensar” ou o “falar” (isto é, a política) e o fazer a esta inerente (isto é, as armas); para os produtores governados nenhuma escola inicialmente, mas só um treina-mento no trabalho, cujas as modalidades, que foram mostradas por Platão, são destinadas a permanecer imutáveis durante milênios: observar e imitar a atividade dos adultos no trabalho, vivendo como eles. Para as classes excluídas e oprimidas, sem arte nem parte, nenhuma escola e nenhum treinamento, mas, em modo e graus diferentes, a mesma aculturação que descende do alto para as classes subalternas. MANACORdA, M.A. História da Educação da Antiguidade aos nossos dias. 13º. Rio de janeiro. 2010. p 58)

Ainda segundo Manacorda, a próprio distinção de classe expressa pela relação do-minante e dominado que ainda impera em nossa cultura e sociedade, “tem origem na escola pitagórica, Arquitas de Taranto escreve: toda sociedade é formada de dominante e do-minados: por isto, como terceiro elemento intervém a lei”. (MANACORdA, M.A. Histó-ria da Educação da Antiguidade aos nossos dias. 13º. Rio de janeiro. 2010. p 58).

Assim, a primeira importante observação a ser feita é a de que a Paidéia, entendida como a formação integral do homem em seu sentido próprio e essencialista (formação integral do homem) constitui uma idealização, isto é, a construção de um “modelo ideal de homem”. Na introdução de seu livro, Paidéia a Formação do Homem Grego, Werner Jaeger observa que a ideia formativa de ser humano em sua essência não nasce na esfera do sensível, do mutável, não tem sua origem no individual, senão que, tem sua origem, nas palavras do autor “(...) no suposto eu autônomo, ergue-se o homem como ideia, (...) ora, o homem considerado na sua ideia, significa a imagem do homem genérico na sua validade universal e normativa”. (Werner, Jaeger. Paideia a formação do homem gre-go. São Paulo: Martins Fontes. 1994. p 14-15).

E, para além da construção da ideia de homem ideal, característica fundamental em quase todo pensamento filosófico grego, acrescenta-se o aspecto classista e excludente desse processo de formação ideal como já ressaltado por Manacorda. Assim, a Paideia era a formação integral do homem grego livre, cidadão e aristocrático.

É interessante perceber que esses traços característicos da educação, da formação e da cultura grega já estão presentes num período pré-filosóficas ou, como entende Wer-ner Jaeger, no período em que o mito ainda não havia recebido da filosofia uma forma lógica, ou seja, ainda fortemente marcado pelas narrativas cosmogônicas. Para Jaeger, “(...) a história e a filosofia nasceram e se desenvolveram diretamente das ideias relativas a

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concepção de mundo contidas na epopeia (...) a epopeia é a raiz de toda a formação superior na Grécia”. (Werner, Jaeger. Paideia a formação do homem grego. São Paulo: Mar-tins Fontes. 1994. p 70).

No que diz respeito a discussão em torno das rupturas e continuidades entre Mito e Filosofia nos parece muito feliz e rigorosa a posição adotada pelo helenista J.P. VER-NANT, expressa no trecho a seguir:

Já não se trata de encontrar na filosofia o antigo, mas de destacar o verdadei-ramente novo: aquilo que faz, precisamente, com que a filosofia deixe de ser mito para ser filosofia. Cumpre, por conseguinte, definir a mutação mental de que a primeira filosofia grega dá testemunho, precisar sua natureza, sua amplitude, seus limites, suas condições históricas. (vernant, P. in Magalhaes vilhena. 1958. p 82).

Logo, de acordo com o entendimento de Vernant, nos parece que as filosofias de Sócrates, dos Sofistas, de Platão e de Aristóteles constituíram uma nova forma de se pensar o ideal ou modelo perfeito de homem e a Paideia ou formação necessária para se alcançar tal ideal agora profundamente racionalizado.

Portanto, sob a égide da tradição mitológica o ideal de homem na Grécia terá sua expressão máxima nas obras Homéricas (nas epopeias). Ao se refletir sobre o ideal de homem no período arcaico só se pode começar por Homero, “o educador de toda Grécia”, como afirmava Platão.

No período em que a aristocracia guerreira se impôs econômica, militar e cultu-ralmente as epopeias de Homero eram as fontes privilegiadas para educar e formar de forma integral os sujeitos oriundos das classes dominantes. Segundo Manacorda, “os indivíduos das classes dominantes são guerreiros na juventude e políticos na velhice, de que é exemplo o velho Nestor, que, embora não combata, está sempre presente no campo de bata-lha, dando conselhos e sendo obedecido. (MANACORdA, M.A. História da Educação da Antiguidade aos nossos dias. 13º. Rio de janeiro. Cortez editora. 2010. p 59.)

Neste período em que as epopeias constituem as fontes mais importantes para a formação política, moral, ética e intelectual do homem grego, o conceito de virtude (ARETÉ55), entendido como força, coragem, beleza, assume grande importância, uma

55 Mérito ou qualidade nos quais alguém é o mais excelente; excelência do corpo; excelência da alma e da inteligência. Virtude é a sua tradução costumeira porque foi traduzida para o latim por virtus, que significa, inicialmente, força e coragem e só depois, excelência e mérito moral e intelectual. A areté indica um conjunto de valores (físicos, psíquicos, morais, éticos, políticos) que forma um ideal de excelência e de valor humano para os membros da sociedade, orientando o modo como devem ser educados e as instituições sociais nas quais esses valores se realizam. A areté se refere à formação do àristos: o melhor, o mais nobre, o homem ideal. (CHAuI, MARILENA. Iniciação à História da Filosofia. São Paulo. Companhia das letras. 2002. P 495.)

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vez que, eram esses os valores de uma sociedade aristocrática que justificavam os privi-légios dos de origem divina.

Assim o modelo era estabelecido pelas feitos e façanhas dos heróis, dando assim, as epopeias uma força idealizadora de caráter educativo onde o herói é o modelo e refe-rência para toda uma geração de jovens nobres. Ao cantar as ações dos deuses e heróis estava-se, ao mesmo tempo, transmitindo os valores e costumes que orientavam a vida em sociedade. Durante séculos Telêmaco e Aquiles foram, por exemplo, modelos de excelência moral e física.

Nesse sentido, vejamos como Werner Jaeger descreve a relação entre as epopeias e a formação do homem grego:

(...). As formas de expressão poética de origem privada e cultural pouco tem a ver com educação. Em contrapartida, os cantos heroicos orientam-se para cria-ção de modelos heroicos por força de sua própria essência idealizadora. O seu significado educativo situa-se a grande distância daquele dos gêneros poéticos, pois reflete objetivamente a vida inteira e apresenta o homem na sua luta contra o destino e em prol da consecução de um objetivo elevado. A didática e a elegia seguem os passos da épica e aproximam-se dela pela forma. Dela recebem o es-pirito educador que passa mais a outros gêneros (...). (Werner, Jaeger. Paideia a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes. 1994. p 70).

OS SOFISTAS: A FORMAÇÃO dO HOMEM POLíTICO

No período clássico do pensamento grego podemos perceber algumas significativas mudanças nas concepções de homem e de formação integral deste, (a Paideia), onde os feitos heroicos narrados nas epopeias cedem lugar a uma progressiva laicização e racionalização do pensamento momento em a filosofia terá grande importância, como já indicava Vernant.

Os novos mestres e formadores da juventude abastada eram os sofistas, espécie de sábios itinerantes que vinham de todas as partes do mundo grego até Atenas, agora, grande centro econômico e cultural da Grécia.

A palavra sofista não tinha, originalmente, o conteúdo pejorativo que lhe impôs Platão e Aristóteles. Na realidade os sofistas eram filósofos e educadores muito bem reputados nas cidades gregas graças aos seus conhecimentos de dialética, gramatica e, fundamentalmente de retorica, disciplinas básicas para o exercício da democracia sele-tiva que vigorava em Atenas naquele período.

Doravante, se para os primeiros filósofos gregos o grande problema a ser resolvido pela filosofia dizia respeito as origens do homem e do universo (a questão da Physis), os sofistas como Protágoras e Górgias estavam interessados em realizar uma reflexão sobre

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as questões de caráter eminentemente antropológicas como a moral, a ética, o conheci-mento e fundamentalmente, a política.

Mas, na realidade, o ensinavam os sofistas? que importância tinham no contexto histó-rico da democracia ateniense? E, mais importante, que tipo de homens buscavam formar?

Para buscar respostas as questões colocadas acima devemos primeiro realizar um es-forço no sentido de entender a concepção de conhecimento defendida pelos sofistas tão bem ilustrada pela frase de Protágoras, um dos mais importantes sofistas, “o homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são por aquilo que são e daquelas que não são por aquilo que não são.” (Platão. Teeteto l 52ª).

Por meio desse conhecido fragmento atribuído a Protágoras por Platão podemos apreender os dois elementos filosóficos centrais do pensamento de Protágoras que a grosso modo também podemos estender aos demais sofistas, o humanismo e o relati-vismo que influenciam de forma determinante na concepção sofista de formação do homem (na Paideia sofista).

Ao atribuir centralidade ao homem no processo de conhecimento Protágoras parece acreditar que só podemos construir algum tipo de explicação gnosiológica sobre a reali-dade a partir de seus aspectos sensíveis ou fenomenais sem qualquer tipo de recursos a tipos ideais (ideias) ou a seres sobrenaturais. Do que podemos concluir que para Protá-goras e para os sofistas de uma forma geral nosso conhecimento é puramente sensorial e, por isso mesmo, deve variar de acordo com algumas circunstâncias impostas pelo meio natural e por nossas relações sociais. Assim Guthrie descreve esse entendimento:

Virando Parmênides de cabaça para baixo, Górgias afirmou que nada existe (ou é real), que, se existisse, não poderíamos conhecê-lo, e, se pudéssemos conhecê--lo, não poderíamos comunicá-lo a outrem. A base filosófica é a mesma que a do dito de Protágoras: “ o que parece a cada um é na medida que lhe interessa. (GuTHRIE. W. K. C. Os Sofistas. São Paulo: Paulus. 1995. p 171.).

Podemos, então, afirmar que esta concepção gnosiológica e ontológica expressa nas palavras dos principais sofistas está diretamente relacionada ou subjaz a visão política e social vigente na época onde o Logos se apresenta por meio do recurso a dialética e da retorica nos debates na ágora buscando a persuasão e um certo consenso mesmo que provisório e relativo ao interesse de cada um.

Nos debates nas assembleias partia-se do princípio básico de que ninguém detinha a verdade em seu sentido completo e absoluto, o que era impossível, uma vez que esta não existe. No entanto, como cada um dos indivíduos envolvidos nos debates tinha suas razões e opiniões este era o pano de fundo para a superação da diferença e da cons-trução de consensos. Estes eram, assim, os objetivos da retorica e da dialética.

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Dessa forma, os sofistas são a expressão mais acabada dos mestres que tomaram como tarefa social e política a formação de um tipo especifico de homem, o homem político composto por uma elite. Este deveria ser o responsável pela defesa da ideia de democracia, por garantir a participação popular nos destinos da coletividade, a sobe-rania do povo (demos), a coesão da polis e, prioritariamente, a formação de uma elite dirigente. Passa-se do modelo heroico e guerreiro para o modelo político que domina a arte da oratória (política por excelência).

Assim o pedagogo e historiador da educação na antiguidade Henri-Irénée Marrou descreve o papel dos sofistas na formação do homem político como modelo de cidadão:

O problema que eles tentaram e conseguiram resolver, problema alias muito geral, é o da formação do homem político. Em seu tempo, era esse o proble-ma que exigia solução mais urgente. Após a crise da tirania, no sexto século, vemos a maioria das cidades gregas, e, sobretudo a democracia de Atenas, animarem-se de intensa vida política: o exercício do poder, a gestão dos ne-gócios públicos tornam-se a ocupação fundamental, a atividade mais nobre e mais apreciada do homem grego, o supremo objetivo ofertado a sua à sua ambição. Trata-se sempre, para ele, de sobrepujar, de mostrar-se superior e eficaz; todavia, não é mais no domínio do esporte e da vida elegante que seu valor busca-se patentear-se; é na ação política, que, doravante encarna-se. Os sofistas põem seu ensino a serviço desse novo ideal, da política: equipar o espirito do cidadão para a carreira de homem de estado, formar a persona-lidade do futuro dirigente da cidade, tal é o programa que eles concebem. (MARROu. Henri-Irénée. História da Educação na Antiguidade. EPu. São Paulo. 1999. p 83.)

É, portanto, inegável a grande contribuição dos sofistas na construção de uma con-cepção ideal de homem político por meio de uma severa crítica e da superação dos privilégios da antiga educação segundo a qual a Areté só era viável aqueles que tinham “sangue divino”. Além dessa magnifica contribuição é necessário ainda ressaltar, como afirma W. Jaeger: [...] “os sofistas constituem um fenômeno do mais alto significado na história da educação. É com eles que a paidéia, no sentido de uma teoria consciente da edu-cação, entra no mundo e recebe um fundamento racional [...]”. (Werner, Jaeger. Paideia a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes. 1994. p 384).

PLATÃO E A PAIdÉIA dOS FILóSOFOS

Aristócles, mais conhecido por seu apelido, Platão, é sem dúvida um dos mais im-portantes filósofos de toda história da filosofia ao ponto de Alfred North Whitehead

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(1861- 1947) sentenciar que “toda a filosofia ocidental não passa de notas de rodapé das páginas de platão”. Ateniense de família aristocrática, Platão foi discípulo de Sócrates e profundamente influenciado pelo pensamento de seu mestre. No entanto, criou um pensamento filosófico de grande originalidade que, se não deu conta de todos os pro-blemas suscitados pela filosofia como sugere Whitehead, marcou de forma indelével toda a história da filosofia posterior.

Para que possamos compreender a concepção de homem e consequentemente a sua proposta de formação (Paidéia) deste homem é mister associa-lo ao seu projeto filosó-fico como um todo que engloba uma ética, uma estética, uma gnosiologia, mas que é acima de tudo a político como veremos a seguir.

Platão é um crítico ferrenho da democracia ateniense onde eram considerados cida-dãos somente os homens livres nascidos na polis. No entendimento do filósofo vários fatores contribuíam para a falência desse sistema de governo como a baixa frequência de pessoas que estavam mais interessadas em cuidar de seus negócios privados, os sorteios aleatórios para escolha dos representantes e preenchimento de cargos importantes e, fundamentalmente o predomínio da oratória dos sofistas, que, hábeis na arte da argu-mentação e da persuasão faziam prevalecer seus interesses instituindo-os como verdade. Para Platão, o modelo espartano, calcado numa aristocracia militar era muito mais favorável a instituição da ordem pois estava livre das incertezas de um sistema demo-crático como o ateniense.

Platão escreve várias obras de caráter político como o político, As Leis, mas é sem dúvi-da, na república onde ele apresenta de forma mais elaborada sua teoria política fundada na descrição de um Estado Ideal (kALLIPOLIS ou bela cidade) e na elaboração de uma Paidéia que propõe a formação do homem segundo sua classe social cooperando afim de satisfazer suas necessidades materiais. Nesse sentido estão interligados na sua teoria os ideais ou modelos de cidade e homem que deveria formar um todo orgânico.

Outro ponto importante do pensamento platônico e que terá importante repercus-são em sua idealização de formação do homem e da cidade ideal é a articulação, em seu pensamento, da teoria do conhecimento e da teoria política que aparece de forma mais acabada nos livros do texto da República, mais especificamente no livro VII, o Mito da Caverna.

Como parte de sua herança socrática e de crítica a sofistica e a toda tradição mobilista, Platão recusa os sentidos como fonte de conhecimento seguro. Segundo o professor José Américo Mota Peçanha, Platão reconhece:

Permanecer no nível das sensações é tornar impossível a construção de um conhecimento seguro e estável, é ficar fatalmente preso nas malhas do relati-vismo de sofistas como Protágoras de Abdera. De fato, as sensações fornecem

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apenas evidencias momentâneas e individuais. Um conhecimento baseado so-mente nas sensações é um conhecimento daquilo que aparece a cada pessoa, no momento em que aparece como tal. (AMERICO. M.P. Jose. Platão e as ideias, in Curso de Filosofia, org. Antônio Resende. 13º edição. Rio de janeiro. Zahar. 2005. p 58).

Mais do que uma crítica violenta a concepção sofista do conhecimento, podemos compreender a rejeição platônica ao conhecimento sensível como uma reprovação da própria forma de fazer política na Atenas de então. A crítica ao conhecimento sensível é também a crítica ao relativismo, a imposição dos interesses particulares e ao prevale-cimento da opinião sobre a verdade reinante nos debates das assembleis democrática. A assembleia é, para Platão o império da doxa sobre a alethéia. Portanto uma nova educação, uma nova polis e um novo tipo de homem passam, antes de mais nada, por uma nova fundamentação do conhecimento.

Não pretendemos fazer uma longa exposição da teoria do conhecimento de Platão. Em linhas gerais, Platão apresenta a teoria das ideias (o dualismo platônico) como al-ternativa ao ceticismo dos sofistas.

É no Teeteto (diálogo) que Platão vai tratar mais especificamente da questão do conhecimento e analisar criticamente as teorias cosmológicas da época e, partindo da necessidade de se buscar a ideia como essência verdadeira das coisas56 ele chega à con-clusão de que nenhuma delas pode ser tomada como verdadeira, ou pelo menos como totalmente verdadeiras.

A distinção entre opinião e verdade (via da opinião e via da verdade) apanhada de Parmênides é a base da Teoria do Conhecimento platônica e a Dialética é o instrumen-to para a ascensão do sensível ao inteligível.

Em sua Teoria do Conhecimento Platão estabelece a existência de dois mundos dis-tintos entre si mais que se relacionam como verdade (ideia) e cópia imperfeita (objetos sensíveis). No livro VII da República, há uma exposição clássica da gnosiologia platônica.

Ainda na República dando continuidade a exposição de sua Teoria do Conheci-mento, Platão apresenta os graus ou modos de conhecimento que correspondem ao mundo sensível ou ao mundo inteligível. Nóesis ou episteme e diánoia ou raciocínio dedutivo compreende os modos de conhecimento dos objetos do mundo inteligível eîdos (ideias) e tá mathéma (objetos matemáticos) respectivamente. Já a doxa ou a opinião e a eikasia (ou simulacros) compreendem os modos de conhecimento dos objetos do mundo sensível, zóa (coisas visíveis ou vivas) e eícones (ou imagens res-pectivamente). Para Platão estes modos ou graus de conhecimento estão dispostos de forma hierárquica e para ascendermos da forma mais precária do conhecimento sensível,

56 Teoria platônica das Idéias.

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a eikasia, a forma mais perfeita do conhecimento inteligível, a noésis ou episteme de-vemos nos submeter à Dialética. O objetivo da Dialética é nos conduzir, a partir das descobertas das contradições existentes em um determinado grau de conhecimento inferior (da eikasia a doxa) ao grau seguinte no caso dos graus que compõem o mundo sensível. Em relação aos modos de conhecimentos superiores, isto é, os que compõem o mundo inteligível. Sua tarefa é a de possibilitar a alma à superação das hipóteses re-lativas a diánoia, colocando-a a contemplar as ideias ou formas (noésis) como no caso do mito da caverna onde a personagem abandona as sombras para contemplar a luz (a ideia do bem, ou a ideia suprema). “É a saída da caverna”.57

Assim podemos apresentar a dimensão política do mito da Caverna. Os indivíduos acorrentados são a representação da maioria das pessoas da polis. Presos aos sentidos dominados pelas paixões enxergam apenas as aparências das coisas não tendo, portanto, a capacidade de intervir de forma coerente no destino da cidade.

O prisioneiro que se liberta dos grilhões é o modelo de filósofo. Aquele capaz de alcançar o verdadeiro conhecimento (a episteme), é a representação daquele que, se utilizando da razão consegue ultrapassar as barreiras do mundo sensível alcançando, assim o mundo inteligível (a verdade). Ora, a este que rompeu as barreiras da ilusão dos sentidos deve ser garantido o direito de influenciar os que ainda se encontram na escuridão. Ao sábio deve ser consagrado a elevada função da ação política. Eis, então, as dimensões política e pedagógica da alegoria de Platão. Vejamos como, Marrou con-sidera essa questão:

A obra pedagógica de Platão ultrapassou em muito, em importância histórica, o papel político que ele lhe havia designado. Opondo-se ao pragmatismo dos sofistas, demasiados apegados à eficácia imediata, Platão edifica todo o seu sistema educacional sobre a noção profunda de verdade, sobre a conquista da verdade pela ciência racional. (MARROu. Henri-Irénée. História da Edu-cação na Antiguidade. EPu. São Paulo. 1999. p 110.)

A utopia platônica expressa, assim, um retorno ao modelo aristocrático de poder, livre do modelo heroico das epopeias homéricas, em oposição a democracia vigente. Ao desconfiar das decisões do cidadão comum (do homem político dos sofistas) incapaz de conhecer a ciência política, pois está preso no reino da doxa, Platão propõe, por meio de uma Paidéia especifica e limitada a um pequeno grupo, a formação de um novo modelo de homem (o sábio, responsável pelos destinos da polis) e a sofocraria (etimo-logicamente, “poder dos sábios”) como forma perfeita de governo, e, termina dizendo: “é preciso que os filósofos se tornem reis, ou que os reis se tornem filósofos”.

57 O Mito da Caverna, Livro VII da República de Platão.

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A tarefa última da Paidéia platônica, entendida como parte importante do seu pro-jeto político, é, portanto, formar o homem ideal, ou, o governante ideal:

O verdadeiro homem de estado, este dirigente, este Rei ideal que urge plas-mar, distinguir-se-á de todas as suas contrafações por possuir a ciência, a ci-ência crítica e direta do comando, o sentido técnico que, no grego de Platão, reveste a palavra, a saber, o de ciência verdadeira, fundada em razões, por oposição à opinião vulgar. (MARROu. Henri-Irénée. História da Educação na Antiguidade. EPu. São Paulo. 1999. p 110.)

CONSIdERAÇõES FINAIS

Revisitar o passado da filosofia com a perspectiva e proposito de refletir filosofica-mente sobre o nosso tempo constitui uma das grandes tarefas do professor de filosofia independente de sua filiação teórica e ideológica. Neste pequeno trabalho buscamos analisar de que forma e sob que aspectos o pensamento grego, desde sua forma pré--filosófica (com as epopeias homéricas) até sua maior expressão em Platão buscou se apoiar, quase sempre, em idealizações ou construções de modelos (do homem ideal, da cidade ideal, do sistema político ideal). Será que tal característica é ainda dominante no pensamento filosófico ocidental? Tal questão, nos parece, deve ser objeto de um novo trabalho.

O que nos parece claro no momento é o fato de que existe em torno da filosofia e, por conseguinte, de seu ensino e aprendizagem, uma falsa percepção (quase que uma áurea) de esta estabelece necessariamente uma relação de crítica com a realidade em que é obrigatoriamente forjada, o que me parece um esgano, pois, na realidade, em vários momentos ela constitui parte do aparato de reprodução de uma determinada ordem, prática, como no caso dos sofistas, ou a idealização de uma reação conservadora, como no caso de Platão.

É importante ainda ressaltar que tal entendimento não pressupõe o banimento de tais pensadores dos currículos propostos para a área. Pressupõe tão somente que, uma abordagem da história da filosofia não é, em hipótese alguma, algo desinteressado como uma narrativa enciclopédica sobre a vida e obras dos filósofos ilustres, senão que, deve pressupor sempre uma suspeita, um ato do pensamento. O enfrentamento com a tradi-ção deve pressupor o estranhamento como condição de validade, sob pena de já nascer morto e sem sentido. Para Cerletti:

[...] o filosofar – ou seja, a filosofia em ato – vai além desse plano de simples repetição. Um ensino de filosofia é filosófico na medida em que aqueles sabe-res são revisados no contexto da sala de aula. Isto é, quando se filosofa a partir

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deles ou com eles e não quanto somente se os repete (histórica ou filologi-camente). (CERLETTI, Alejandro. O ensino de filosofia como problema filosófico. belo horizonte. Autentica. 2008. p 34.).

Assim, no nosso entendimento, são quatro os eixos de uma abordagem crítica sobre a história da filosofia no ensino médio:

1. sensibilização ou estranhamento;2. problematização ou identificação do problema;3. investigação ou utilização da literatura (a tradição filosófica);4. conceituação ou recriação de conceitos como ato e produto do pensamento.

REFERÊNCIAS

AMÉRICO. M.P. José. Platão e as ideias, in Curso de Filosofia, org. Antônio Resende. 13º edição. Rio de janeiro. Zahar. 2005.

CERLETTI, Alejandro. O ensino de filosofia como problema filosófico. Belo hori-zonte. Autentica. 2008.

CHAuI, MARILENA. Iniciação à História da Filosofia. São Paulo. Companhia das letras. 2002.

GuTHRIE. W. k. C. Os Sofistas. São Paulo: Paulus. 1995.

MANACORdA, M.A. História da Educação da Antiguidade aos nossos dias. 13º. Rio de janeiro. Cortez editora. 2010.

MARROu. Henri-Irénée. História da Educação na Antiguidade. EPU. São Paulo. 1999.

vILHENA, V. M. Panorama do Pensamento Filosófico. Lisboa, Cosmos, 1958.

WERNER, Jaeger. Paideia a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes. 1994.

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O CONCEITO MARXIANO dE ALIENAÇÃO E SuA CONTRIbuIÇÃO PARA O PLENO

dESENvOLvIMENTO dO ALuNOLeonardo Berbat de Brito

Palavras-chave: Educação; Alienação; karl Marx.

1 INTROduÇÃO

A Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional (LDB), de 1996, reforça a obri-gação do Estado de assegurar e ofertar educação ao povo brasileiro, além de ressaltar o direito que este povo tem ao ensino.

A mesma lei traz em seu escopo, ainda, a preocupação com a dimensão ética e crítica do indivíduo, pois salienta que um dos objetivos primordiais da educação deve ser o desenvolvimento integral do ser humano, para sua consequente atuação cidadã. Ademais, a LDB põe em relevo a obrigatoriedade, por parte do Estado, de oferecer, junto ao conjunto de disciplinas que compõem o ensino médio, a Filosofia. Infere-se, pois, que a Filosofia também tem a função de proporcionar o crescimento pessoal aos alunos e estimulá-los à prática da cidadania.

Isto posto, propomos neste trabalho a discussão em torno de uma questão, qual seja: já que a Filosofia faz parte, de acordo com a LDB, do corpo de disciplinas cuja incumbência é permitir ao educando o pleno crescimento e conceder-lhe um conteúdo que o induza à ação da cidadania, haveria algum autor e/ou tema filosófico, especifi-camente falando, que seria de grande valor para que a recomendação da lei brasileira, acima descrita, fosse atendida?

Nossa resposta é positiva, e compreende o conceito de alienação, segundo exposto pelo pensador alemão karl Marx. Desse modo, num primeiro momento, o artigo tra-tará da LDB, particularmente dos objetivos da educação relacionados à obrigatoriedade do ensino de Filosofia. Na segunda parte, será abordada a noção de alienação, pela perspectiva da filosofia marxiana. Como fundamentação teórica para a elaboração do trabalho, utilizamos algumas obras do próprio karl Marx, além dos escritos produzidos por estudiosos como Denis Collin, Terry Eagleton, Leandro konder, Henri Lefebvre e Marilena Chauí, entre outros.

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2 A Ldb, O PLENO CRESCIMENTO dO ALuNO E O ENSINO dE FILOSOFIA

A educação, inquestionavelmente, é um dos maiores bens a que o ser humano deve ter seu acesso garantido. O contato do sujeito com a educação e sua participação na dinâmica do ensino-aprendizagem são essenciais para sua maturidade e atuação respon-sável na sociedade. Como bem disse o educador Moaci Alves Carneiro:

Educação é mais do que conhecimento. Este compacta-se, muitas vezes, em uma dimensão formal, instrumental e metodológica, enquanto aquela, com-prometida com a qualidade não apenas formal, mas também política da cidadania, busca a formação do sujeito histórico como identidade madura, qualificada socialmente e crítica e participativa politicamente (CARNEIRO, 2010, p.36).

Portanto, ao se impedir ou se negar a alguém a posse desse bem, se está, conse-quentemente, promovendo sua diminuição e empobrecimento, enquanto ser humano. Apesar da importância capital da educação, chama-se atenção para o que José Silvério Baia Horta escreveu:

Assim, a vida, a liberdade, a igualdade, a propriedade privada e a segurança ju-rídica foram os primeiros direitos reconhecidos, proclamados e protegidos. A educação, por sua vez, apesar de sua grande importância, incorporou-se com grande atraso ao seleto grupo dos direitos humanos, por meio de um processo lento, ambíguo e contraditório (HORTA, 1998, p.6).

É somente a partir do século xVIII, portanto tardiamente, que surgirá a noção de educação como um dever do Estado para com os cidadãos. Conquanto esta idéia já tenha se mostrado um destacado avanço social, a ação decisiva, visando assegurá-la, ocorre quando a educação adquire o status de direito público subjetivo:

Tal direito diz do poder de ação que a pessoa possui de proteger ou defender um bem considerado inalienável e ao mesmo tempo legalmente reconhecido. Daí decorre a faculdade, por parte da pessoa, de exigir a defesa ou proteção do mesmo direito da parte do sujeito responsável (ibid., p.8).

Assim, é imprescindível que, a fim de que os indivíduos possam, efetivamente, usu-fruir dos direitos sociais, como o acesso à educação, o Estado assuma a prerrogativa que lhe cabe e garanta esses benefícios, por meio de medidas jurídicas e do estabelecimento de políticas públicas eficientes.

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Nesse ínterim, enfatizamos, no cenário político-social do Brasil, a relevância da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da educação nacional (Lei n°. 9.394, de 20 de Dezembro de 1996), que, conforme o próprio nome indica, é a lei que dispõe sobre a organização do sistema educacional brasileiro. Entre outras medidas, esta lei prescreve o direito à educação, por parte do cidadão brasileiro, e o dever de garanti-la e oferecê-la, por parte do Estado.

A propósito, salientamos neste trabalho, de modo especial, o artigo 2° da LDB, notadamente o trecho que afirma ser finalidade da educação “o pleno desenvolvimento do educando”, como também “seu preparo para o exercício da cidadania”. Ainda, é válido frisar que o artigo 36° desta legislação, seção IV, determina que a Filosofia seja incluída como disciplina obrigatória “em todas as séries do ensino médio”. Depreende--se, pois, que a mais alta lei brasileira referente à educação reconhece que a Filosofia tem um papel considerável a desempenhar junto aos estudantes, sendo um dos saberes responsáveis por fomentar-lhes a participação cidadã e a maturidade pessoal.

Na esteira dessa linha de pensamento, acreditamos que a crítica tecida pelo filóso-fo karl Marx ao regime de produção capitalista, modelo vigente em nossos dias, em particular a análise que ele se propôs realizar do fenômeno da alienação, responde efi-cazmente às recomendações da LDB acima aludidas. Na sequência, tal noção marxiana será examinada.

3 O CONCEITO MARXIANO dE ALIENAÇÃO

karl Marx (1818-1883) notabilizou-se por empreender uma análise aguda e uma crítica substancial ao sistema econômico capitalista, com suas implicações e desdobra-mentos nos campos político e social.

Ao investigar o modo de produção próprio do capitalismo, Marx identificou nele uma característica sui generis, a saber, a existência duma divisão clara entre os possuido-res dos meios de produção e as forças produtivas. Em outras palavras, as matérias-pri-mas, as condições e os instrumentos do trabalho encontram-se totalmente dissociados do próprio trabalho. O pensador alemão declarou que “é tendência constante e lei de desenvolvimento do regime capitalista de produção estabelecer um divórcio cada vez mais profundo entre os meios de produção e o trabalho” (MARx, 1980, p.100).

Isso significa que, de um lado, estão os proprietários do capital, a classe burguesa, que detém o controle absoluto das referidas condições e ferramentas do trabalho e, de outro lado, amontoa-se a grande massa proletária, isto é, a classe dos trabalhadores as-salariados que, alijados da propriedade privada e sem qualquer participação nos meios de produção, têm somente a força do seu trabalho a oferecer ao capitalista:

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O assalariado (ou antes, a classe dos assalariados) se encontra privado dos meios de produção e separados dele, mesmo que execute uma função essencial no processo do trabalho social e, assim, não tem outro recurso senão o de ven-der ao capitalista a sua força de trabalho (LEFEBVRE, 2013, p.88).

De acordo com Marx, desse esquema inerente ao sistema capitalista, desigual e excludente por natureza, resultam efeitos altamente nocivos para a classe trabalhadora. Entre estes, distingue-se o fenômeno da alienação.

Na formulação de seu conceito de alienação, Marx sofreu forte influência do tam-bém filósofo alemão Ludwig Feuerbach (1804-1872), que se tornou célebre por seus estudos sobre a religião. Para Feuerbach, com o intuito de dar sentido à realidade e explicar a vida, o mundo e si mesmo, o ser humano cria um ente todo-poderoso, onis-ciente, perfeito e transcendente, dotado dos mais belos atributos, como amor, justiça e verdade, em seus graus supremos.

Paulatinamente, os homens se voltam para adorar este ser e louvá-lo como seu criador, esquecendo-se de que foram eles próprios que o criaram. Feuerbach chama de alienação tal atitude, visto que o ser humano não se reconhece no outro que é fruto de sua invenção:

A alienação é o fenômeno pelo qual os homens criam ou produzem alguma coisa, dão independência a essa criatura como se ela existisse por si mesma e em si mesma, não se reconhecem na obra que criaram e deixam-se governar por ela, fazendo-a um ser outro, separado dos homens, superior a eles e com poder sobre eles (CHAUÍ, 2013, p.167).

Enquanto Feuerbach dedicou-se à análise da alienação no âmbito religioso, Marx centrou-se mais na alienação sob a perspectiva econômico-social. Assim, no pensa-mento marxiano, a alienação é resultado direto da divisão de classes sociais, em que a burguesia, como detentora particular dos meios de produção, sustenta-se através do domínio sobre a classe trabalhadora, que é inteiramente expropriada do capital.

Cumpre salientar que o capitalismo diferencia-se dos demais modos de produção anteriores a ele, por apresentar uma marca distintiva, inexistente naqueles, a saber: o lucro. Com efeito, esses outros modos de produção forneciam riquezas às classes do-minantes, e asseguravam-lhes a conservação de seu patrimônio, sem, entretanto, mul-tiplicá-lo, isto é, sem prover lucro. Se quisessem crescimento financeiro e patrimonial, teriam de obtê-los por meio do saque e da pilhagem dos bens alheios.

O capitalismo, por sua vez, apresenta a singularidade, em comparação aos modos de produção que lhe antecederam historicamente, de fundamentar-se na produção de

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mercadorias, ou, para sermos mais precisos, de fazer com que seus produtos assumam a forma de mercadorias:

... O regime capitalista de produção (...) cria seus produtos com o caráter de mercadorias. Mas o fato de produzir mercadorias não o distingue de outros sistemas de produção; o que o distingue é a circunstância de que, nele, o fato de seus produtos serem mercadorias constitui seu caráter predominante e de-terminante (MARx, 1980, p.76).

Baseando-se na produção de mercadorias, o modo de produção capitalista possui a espantosa capacidade de conceder aos proprietários privados o crescimento exponencial de suas riquezas: “A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura--se em ‘imensa acumulação de mercadorias’, e a mercadoria, isoladamente considerada, é a forma elementar dessa riqueza” (MARx, 2014, p.57). Isto se explica pelo fato de a mercadoria ser produzida tendo como finalidade não seu valor de uso, mas seu valor de troca, ou seja, o preço que receberá e pelo qual será comercializada e vendida no mercado.

O referido valor é estipulado tomando-se por base o tempo socialmente despendi-do para a produção da mercadoria, levando-se em consideração, portanto, as horas de trabalho necessárias para o operário fabricá-la. Desse processo é calculado seu salário, a quantia que lhe é paga pelo capitalista, em troca da venda do único bem que possui, qual seja, sua força de trabalho.

Segue-se, então, que o trabalhador é contratado pelo proprietário privado, com o objetivo de produzir certa mercadoria em determinada quantidade de horas, e por essa atividade ganhará seu salário. Todavia, nesse ínterim, Marx denuncia uma prática ne-fasta adotada pelo dono do capital. Exemplifiquemos: para a confecção de um produto, o trabalhador gasta, digamos, quatro horas por dia, e é daí que seu salário é calculado. Porém, como sua jornada de trabalho é bem maior que as quatro horas consumidas (estabeleçamos que seja de oito horas diárias), ele permanece muito mais tempo à dis-posição do capitalista e, consequentemente, trabalha mais e produz duas vezes mais o número de mercadorias. No entanto, o salário que recebe é referente apenas às quatro horas, e não às oito horas despendidas no serviço.

Infere-se, pois, que ocorre um trabalho excedente, não pago ao trabalhador, e que seu salário não é, efetivamente, correspondente à totalidade das horas traba-lhadas. Este trabalho extra, chamado por Marx de mais-valia, é apropriado pelo capitalista e direcionado para a produção de uma quantidade mais elevada de mercadorias, contribuindo, assim, para a expansão e acúmulo do seu capital. Um professor brasileiro comentou:

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O trabalhador adianta ao capitalista o uso da sua força de trabalho e só depois de tê-la aproveitado é que o capitalista lhe paga um salário. O capitalista cal-cula os gastos com a conservação e a renovação das suas máquinas, calcula os salários e calcula o valor que a mercadoria produzida em sua fábrica poderá ter no mercado. Descontada do valor do produto a parte que o capitalista paga ao operário sob a forma de salário, o que sobra é a mais-valia. Ao comprar a força de trabalho do operário, o capitalista sabe que está pagando menos que o valor que ela vai produzir (kONDER, 1999, p.118-119).

Basicamente, é esse expediente que explica o fenômeno do lucro no capitalismo, e o porquê de Marx ter destacado, como uma das mais marcantes particularidades deste siste-ma econômico, a exploração sofrida pelo trabalhador. Como observou Battista Mondin:

Obviamente o capitalista ganhará tanto mais quanto mais conseguir fazer o trabalhador trabalhar além do tempo correspondente ao salário. Todo o segredo da produção capitalista consiste em tornar maximamente produtivo o traba-lho do operário e em manter o mais baixo possível a retribuição do salário. E dado que os capitalistas ganham somente produzindo, procuram intensificar o mais possível o processo de produção para venderem mais e assim aumenta-rem o lucro (MONDIN, 2008, p.119).

Portanto, ao revelar a condição de explorado e espoliado a que é submetido o proletariado, karl Marx termina por expor o processo de alienação que o envolve com-pletamente. De fato, o termo alienação vem “do latim alienare, ‘afastar’; alienus, ‘que pertence a um outro’; alius, ‘outro’. Portanto, alienar, sob determinado aspecto, é tornar alheio, transferir para outro o que é seu” (ARANHA; MARTINS, 2009, p.70).

Nesse sentido, o trabalhador, incorporado à mecânica do capital, diariamente dedi-ca-se ao labor, esgota sua energia e confecciona um determinado produto. Entretanto, tão logo este é finalizado, o trabalhador entrega-o ao capitalista. Tem-se, então, que aquilo pelo qual gastou seu tempo e vigor não é seu, mas de outro, que o produto do seu trabalho não lhe pertence, pois é do dono do capital, que a posse da mercadoria lhe escapa às mãos e o resultado do seu esforço não é, de fato, dele mesmo. Marx assim o diz:

Finalmente, a externalidade do trabalho aparece para o trabalhador como se o trabalho não fosse seu próprio, mas de um outro, como se o trabalho não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro (MARx, 2010, p.83).

Exatamente por esse motivo o proletariado é considerado alienado, pois além de fabricar para outro, tem o seu salário e suas horas de trabalho estabelecidos por outro.

178

Em suma, o trabalhador não tem qualquer poder de decisão sobre o produto do seu trabalho, não exerce nenhum controle sobre a finalidade do que é produzido e é, a todo instante, governado por outro, e não por si mesmo.

Ademais, como o sistema econômico capitalista opera segundo a lógica da produção de mercadorias, o fenômeno da alienação se avoluma e ganha contornos assustadores, ao promover a degradante transformação dos indivíduos em meros produtos do capital:

Neste sistema, o trabalhador, que não possui nada além de sua capacidade de trabalho (ou força de trabalho), é forçado a vender tal capacidade ao proprie-tário do capital, que então o emprega para seu próprio lucro. Os seres huma-nos em si mesmos são convertidos em mercadorias substituíveis no mercado (EAGLETON, 1999, p.40-41).

Em outras palavras, Marx alerta para o fato de que, quando o trabalhador vende sua força de trabalho ao proprietário privado, ele está, automaticamente, sendo rebaixado ao status de uma mercadoria, pois assim como toda mercadoria tem seu valor calculado, para depois receber um preço, o trabalhador também é submetido à mesma dinâmica, visto que como qualquer outro produto, ele tem um preço, a saber, seu salário, que é fixado de acordo com o valor das horas gastas no serviço:

Estes trabalhadores, que precisam vender a si próprios aos poucos, são uma mercadoria como qualquer outro artigo do comércio e são, por consequência, expostos a todas as vicissitudes da competição, a todas as flutuações do mer-cado (MARx, 1998, p.19).

Logo, o sujeito se torna somente uma mercadoria que fabrica mercadorias, uma simples coisa produtora de outras coisas. Conforme atestado pelo filósofo alemão:

O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais merca-dorias cria. Com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somen-te mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral (MARx, 2010, p.80).

Pelo fenômeno capitalista da alienação, constata-se que é deflagrado um processo danoso para o trabalhador, visto que este é “coisificado”, ou seja, reduzido à condição de coisa, diminuído em sua humanidade. Em outras palavras, o ser humano é, ine-gavelmente, desumanizado: “A produção produz o homem não somente como uma mercadoria, a mercadoria humana, o homem na determinação de mercadoria; ela o

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produz, nesta determinação respectiva, precisamente como um ser desumanizado...” (ibid., p.92-93).

Nesse contexto, é útil recorrermos à esclarecedora definição de alienação em karl Marx, proposta pelos professores Hilton Japiassú e Danilo Marcondes: “Situação eco-nômica de dependência do proletário relativamente ao capitalista, na qual o operá-rio vende sua força de trabalho como mercadoria, tornando-se escravo” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006, p.6).

Finalizando, deixamos as palavras de um comentador da obra marxiana, numa es-pécie de testemunho pessoal, referindo-se a algumas particularidades censuráveis do modo de produção capitalista:

Ao acumular a maior riqueza que a história jamais presenciou, a classe capi-talista o fez no contexto de relações sociais que deixaram a maioria de seus subordinados faminta, desventurada e oprimida. Também fez surgir uma ordem social em que, nos antagonismos do mercado, cada indivíduo é contraposto a outro – em que a agressão, a dominação, a rivalidade e a exploração imperia-lista são a ordem do dia, em vez da cooperação e da camaradagem. A história do capitalismo é a história do individualismo possessivo, em que cada ser humano pertencente a si próprio é isolado dos outros em seu espaço solip-sista, vendo seus semelhantes apenas como instrumentos a serem usados para promover seus apetites (EAGLETON, 1999, p.43-44).

CONSIdERAÇõES FINAIS

Como já delineado no corpo deste artigo, estamos imbuídos da crença de que a exposição do conceito marxiano de alienação, no ambiente do ensino filosófico em sala de aula, pode descortinar novos horizontes para o educando, levando-o ao desenvolvi-mento da consciência crítica e à leitura mais reflexiva da realidade que o envolve.

Isso contribuirá para seu pleno crescimento e exercício da cidadania, como prevê a LDB, pois o aluno poderá compreender que a maior parcela da população engrossa a classe desprovida dos meios de produção e é absolutamente divorciada da propriedade privada, enquanto uma minoria social elitizada detém o privilégio quanto à exclusivi-dade da posse do capital.

O aluno também poderá chegar ao entendimento de que, no modelo econômico capitalista, a produção de mercadorias ocupa um dos postos mais proeminentes. Inclu-sive, o próprio trabalhador é tratado como um produto qualquer, já que, como toda mercadoria, ele igualmente recebe um preço, que é o seu salário. Porém, o valor do salário é calculado tomando-se por base somente algumas horas diárias despendidas, e não o total de horas reais por ele trabalhadas.

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Portanto, o trabalhador produz muito mais do que a quantia correspondente ao seu salário. Tal expediente é denominado mais-valia, o qual proporcionará o lucro crescen-te ao capitalista. O aluno terá, assim, a possibilidade de perceber a exploração a que é submetida a maior parte da sociedade em que está inserido.

Ademais, poderá entender que o trabalhador gasta sua energia confeccionando pro-dutos que não são, efetivamente, seus, mas são de outro, a saber, do dono do capital. Logo, tudo o que produz é transferido para mãos alheias. Nesse caso específico, o tra-balhador é, como descrito por Marx, um alienado.

Em síntese, ao alcançar a compreensão desses aspectos concernentes ao conceito marxiano de alienação, o aluno poderá transcender os limites da teoria e avançar para a prática e, então, como autêntico ator político, se engajar na luta pela superação das injustiças efetuadas pelo capitalismo, propondo e, quiçá, participando da construção de novos modelos de interação econômica, política e social entre os seres humanos, que sejam mais justos, éticos e igualitários.

REFERÊNCIAS bIbLIOGRÁFICAS

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: in-trodução à Filosofia. 4ed. São Paulo: Moderna, 2009.

CARNEIRO, Moaci Alves. LDB fácil: leitura crítico-compreensiva, artigo a artigo. 17ed. Petrópolis: Vozes, 2010.

CHAUÍ, Marilena. iniciação à Filosofia. 2ed. São Paulo: ática, 2014.

COLLIN, Denis. compreender Marx. 3ed. Petrópolis: Vozes, 2010.

EAGLETON, Terry. Marx e a liberdade. São Paulo: Editora UNESP, 1999. (Coleção Grandes Filósofos)

HORTA, José Silvério Baia. Direito à educação e obrigatoriedade escolar. Disponível em: www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/direito-à-educação-e-obrigatoriedade-escolar. Acesso em: 18 nov. 2015.

JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. 4ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

kONDER, Leandro. Marx: vida e obra. 7ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

LEFEBVRE, Henri. Marxismo. Porto Alegre: L&PM, 2013.

181

MARx, karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010.

_______. o capital: crítica da economia política. Livro I. Vol. 1. 33 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

_______. sociologia (org. Octavio Ianni). 2ed. São Paulo: ática, 1980.

MARx, karl; ENGELS, Friedrich. o manifesto comunista. 10ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

MONDIN, Battista. curso de Filosofia. 10ed. São Paulo: Paulus, 2008. 3v.

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uM ESTudO SObRE EvASÃO NA TuRMA 2 dA 3ª EdIÇÃO dO CuRSO dE ESPECIALIZAÇÃO

EM EduCAÇÃO TECNOLóGICA NO POLO dE vOLTA REdONdA

Rafael Alvarenga58

Palavras-chave: Evasão; Educação a Distância;

INTROduÇÃO

Tanto a matrícula quanto o ingresso no curso de Especialização em Educação Tec-nológica do CEFET-Rio, foram possíveis, à época, em razão da acessibilidade on line. Um curso EAD era uma solução para a continuação da formação profissional. Porém, logo se transformou em desafio, porque com características diferentes do ensino pre-sencial. Ora, participar de FóRUNS e de chats em tempo real, produzir Wikis on line e enviar, através da plataforma Moodle, tarefas sobre as reflexões propostas pelo tutor a cada aula, além de frequentar encontros presenciais e fazer provas discursivas se concre-tizava como uma experiência nova.

Era a 3ª edição do curso oferecido no polo de Volta Redonda no ano de 2012. No total 50 discentes foram divididos em dois grupos: TURMA 1 e TURMA 2, cada qual com um tutor a distância específico, entretanto submetida às mesmas atividades, programação e regras. No meu caso, participei como cursista da TURMA 2, que nesse artigo, representa o cenário onde a problemática da evasão se desenrolou. No entanto, como mostrar o resultado de um processo que gerou a evasão? Tal pergunta, que tanto incomodou, é o objetivo geral desse trabalho.

A evasão fez com que apenas 12 dos 25 egressos concluíssem os seis MóDULOS do curso. Os motivos que os teriam levado a desistência perpassam hipóteses como: falta de motivação; falta de tempo em razão do trabalho em unidades escolares; crença de que um curso a distância é mais fácil – como relatavam os colegas nos primeiros encontros; difi-culdades quanto a uma boa acessibilidade à plataforma Moodle; escolha por deixar as tare-fas para a última hora, o que gerava atrasos, ausências e reprovações; o não estabelecimen-to de uma boa relação com o tutor à distância. Esses pontos representavam condições de possibilidade para que o egresso se sentisse desmotivado quanto ao curso e assim evadisse.

58 Mestrando em filosofia CEFET-RIO, especialista em Educação Tecnológica CEFET-RIO, graduado em filosofia UFRJ, professor de filosofia SEEDUC-RJ.

183

Em todo caso, não se pode, nem se pretende aqui, afirmar com precisão quais fo-ram os motivos que levaram cada um dos estudantes à evasão. Pois para tanto, deveria entrevistá-los individualmente. Sendo assim, esse artigo se propôs a fazer um levanta-mento de quantos estudantes evadiram do curso ao longo dos seus seis MóDULOS. Buscando, desse modo, mostrar o resultado de um processo que culminou em evasão na Turma 2.

Para o desenvolvimento do trabalho o autor lançou mão de uma metodologia qua-li-quantitativa. Houve, por conseguinte, o estudo da evasão a partir da vivência em uma realidade: a TURMA 2, onde fui aluno. Sendo assim, pautou-se em relatar algu-mas das experiências vivenciadas no próprio curso, que, neste caso, se apresenta como objeto empírico observado. De modo a auxiliar o relato feito foram extraídos dados do curso para criação de tabelas que mostraram a participação dos cursistas nos FóRUNS propostos. Portanto, a vivência pessoal do autor, a observação do desempenho de seus colegas, e do seu inclusive, no curso que deu origem a este trabalho, servem não somen-te de evidência empírica, mas também como motivação para sua realização.

1. O CuRSO NO POLO dE vOLTA REdONdA

O curso de Especialização em Educação Tecnológica na modalidade semipresencial foi apresentado aos alunos com uma estrutura dividida em seis MóDULOS cujo mate-rial nos foi oferecido através de apostilas impressas. No entanto, além disso, as mesmas também ficavam disponíveis como arquivo digital na plataforma virtual Moodle onde o curso se desenvolveu. Com relação aos MóDULOS, são divididos da seguinte manei-ra: MóDULO 1: EDUCAÇÃO TECNOLóGICA, então composto por 12 AULAS, a partir das quais foram realizadas 6 atividades avaliativas. MóDULO 2: TECNOLO-GIAS DA INFORMAÇÃO E DA COMUNICAÇÃO – TIC, este composto por 10 AULAS e 4 atividades. MóDULO 3: CIêNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE, com 9 AULAS e 4 atividades. MóDULO 4: DIDáTICA, com 5 AULAS e 2 ativi-dades. MóDULO 5: CURRÍCULO E AVALIAÇÃO, com 5 AULAS e 3 atividades. MóDULO 6: METODOLOGIA DA PESqUISA, com 8 AULAS e 3 atividades.

As atividades eram tarefas reflexivas, na maioria das vezes individuais, que neces-sitavam de postagem na plataforma Moodle até uma data limite. Representando uma forma de avaliação a distância, já que o cursista não precisava se encontrar pessoalmente com o tutor, além de sintetizar um conteúdo trabalhado. Sobre isso, declara Matos:

[...] haja vista que as dúvidas surgirão por conta da leitura das aulas, e, no final, o aluno terá de fazer um exercício. O exercício marca o fim de tempo de estudo de uma determinada aula. Assim, se o estudo se finda, as discussões

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sobre esse assunto, salvo exceções, acabam por perder forças e também termi-nam. (MATOS, 2011, p. 46).

O exercício citado por Matos como algo que o discente tem que fazer, diz respeito à atividade. à reflexão feita de modo a finalizar uma discussão que se desencadeava nos FóRUNS que, a partir desse modelo, eram abertos de acordo com a quantidade de AULAS específicas de cada MóDULO. Por exemplo, o MóDULO 1 então dividido em 12 AULAS, apresentou a necessidade dos cursistas participarem de 12 FóRUNS.

Sendo assim, além do envio de trabalhos a participação nas discussões dos Fó-RUNS era fundamental para a avaliação, já que nele se encontravam, escreviam suas dúvidas e opiniões e, quando fosse conveniente, o tutor esclarecia alguma questão le-vantada. Aos poucos os FóRUNS se transformaram em aliados dos cursistas, pois neles se encontravam e na medida em que eles próprios os compunham a partir de seus posts, os FóRUNS foram, pouco a pouco, se transformando em material didático do curso, no entanto, neste caso, um material produzido pelos cursistas. Já o acesso ao material era permitido por tempo indeterminado em razão do FóRUM, mesmo após o término da aula, não ser fechado. Para maior esclarecimento sobre essa questão, explica Matos:

Os fóruns são espaços virtuais de interação assíncrona, que, em tese, deveriam ser abertos somente um por vez (referente a uma determinada aula) no espaço limite de duração do tempo de estudo de uma aula. Cabe mencionar que a discussão pode não ter hora marcada, mas tem prazo, e o prazo é o limite para estudo de cada aula. Assim há uma durabilidade da discussão, pois as pessoas migram entre as discussões abandonando umas para entrarem em outras. (MATOS, 2011, p. 50).

Matos se refere aqui ao fato da discussão não ter hora marcada, mas ter prazo. Ora, esse tempo determinado se refere a um período de avaliação. Pois mesmo após o tér-mino da AULA, o FóRUM podia ser acessado. Se não fosse mais a título de avaliação era, então, como material didático, para consulta; ou mesmo como forma de revisar discussões anteriores de modo a auxiliar em uma atividade mais atual.

Durante o curso houve também atividades através de chats. que, quando oferecido, de início gerou a ansiedade de poder conversar em tempo real com os colegas e os tu-tores. E mesmo não sendo um encontro presencial, havia a condição de uma conversa ser realizada em tempo real, ainda que com os interlocutores em lugares diferentes. A experiência com o chat foi interessante em razão de agrupar toda Turma – ou quase toda – online ao mesmo tempo. Sobre o chat, cito Matos:

Os chats são espaços virtuais de encontro em tempo real. Para tanto, um en-contro marcado é necessário, pois todos os participantes têm de estar online

185

simultaneamente. O chat é como se fosse uma conversa coletiva (escrita) elen-cada por turnos, embora duas pessoas possam enviar uma mensagem cada um ao mesmo tempo, mas o sistema apresentará uma depois da outra, de acordo com os critérios escolhidos pelo programa gerenciador. A técnica é interessan-te, uma vez que muita gente pode participar e ter uma resposta às questões levantadas de forma quase imediata, se comparada com os fóruns. (MATOS, 2011, p. 63).

Neste caso, o fato da turma estar junta, ao mesmo tempo em um ambiente virtual, foi o grande estímulo para participação porque simulava os encontros presenciais, onde dúvidas e informações eram compartilhadas coletivamente. Essas atividades, ainda que de interação virtual, fizeram a turma ganhar a denominação de “nossa turma”. Foi a partir do ambiente virtual que ela se fez. E foi através dos encontros presenciais que os laços se reforçaram possibilitando o reconhecimento daquele que já era nosso colega, mas para o qual faltava um rosto real. Foram esses discentes, inclusive, que formaram o grupo que frequentou os encontros presenciais e que aprenderam a dividir dúvidas nos FóRUNS.

2. ObSERvANdO A EvASÃO

Mesmo com a formação de uma turma, onde as relações se estabeleciam de modo colaborativo, a evasão deixou marcas. O que surpreendia, era vê-la caminhar de forma silenciosa. Haja vista, os cursistas da TURMA 2, como foi o meu caso, não saberem quem deles concluiu o curso. Ao longo dos 6 MóDULOS foi formada uma turma que, no entanto, se dispersou a partir do momento em que cada um passou a se dedicar ao seu trabalho monográfico. Sobre isso, cabe aqui trazer à tona a pergunta central desse artigo: como mostrar o resultado de um processo que gerou a evasão? Pois a evasão se apresentava também na 1ª edição do curso de Educação Tecnológica como mostra a seguinte tabela:

Curso de Especialização em Educação Tecnológica

Egressos Egressos que concluíram os MóduLOS.

Egressos concluintes dos

MóduLOS que defenderam

monografia

Evadidos

1ª EdiçãoVolta Redonda

50 - 23 27

3ª EdiçãoVolta Redonda

50 35 15

TABELA II. 1: Dados sobre evasão na 3ª Turma do curso de Especialização em Edu-cação Tecnológica oferecida pelo CEFET-Rio no polo de Volta Redonda.59

59 A Tabela II.1 foi montada a partir de dados fornecidos pela professora Mestre Regina Fátima Teixeira Silva.

186

Observando os dados da 1º edição, lê-se que mais da metade dos egressos evadi-ram. Com relação à 3ª edição o fato de 35 cursistas concluírem os MóDULOS deve ser olhado com cautela já que eles não podem ser enquadrados como concluintes dos MóDULOS e da monografia. Pois, na medida em que o curso de Especialização em Educação Tecnológica foi se desenrolando pôde-se perceber, mesmo através do am-biente virtual da plataforma Moodle, que os discentes envolvidos de forma constante nas discussões propostas durante os FóRUNS foram diminuindo. O que levantava a suspeita da evasão. Neste caso, aquele que rareava sua presença na plataforma, enfren-tava, ora o problema de sofrer uma avaliação negativa por parte do tutor, ora o terrível distanciamento dos colegas de curso e turma, que, o poderiam ajudar tanto no que diz respeito ao processo de aprendizagem como também no sentido motivacional. Pois, embora cada cursista estudasse em um lugar isolado do outro, ele não aprendia somen-te sozinho. Suas dúvidas, e até mesmo o comentário de um colega em um FóRUM, ajudava na compreensão de um assunto, na realização de uma tarefa. Sobre isso salienta Belloni:

O aprendiz atualizado é um mito, e muitos estudantes encontram dificuldades para responderem às exigências de autonomia em sua aprendizagem, dificul-dade de gestão do tempo, de planejamento e de auto direção colocados pela aprendizagem autônoma. (BELLONI, 2003, p. 76).

O motivo particular que afastava cada discente do curso essa pesquisa não teve co-nhecimento. Porém ficava claro que uma vez distante das discussões ampliavam-se as dificuldades de conseguir, porque de forma isolada, sucesso nas atividades propostas.

3. A PARTICIPAÇÃO NOS FóRuNS

Na TURMA 2, já ao término do MóDULO 3, alguns cursistas não participavam mais das discussões nos FóRUNS. O que, além dos encontros presenciais, era outro momento importante no curso. Entretanto, embora a ausência fosse notada, sabia-se que era questão de evasão apenas durante algum dos encontros presenciais. Tal situação pode ser acompanhada através dos seguintes dados que foram tabelados:60

60 Nas 6 Tabelas que seguem sobre participação dos alunos da Turma 2 nos FóRUNS a coluna à es-querda representa cada um dos alunos pela letra A. Já a primeira linha de cada tabela indica o número do MóDULO, bem como o número de cada FóRUM aberto. Abaixo, os números representam a quanti-dade de vezes que cada aluno acessou um determinado FóRUM de discussão.

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ALuNOS M1 - F1

M1 - F2

M1 - F3

M1 - F4

M1 - F5

M1 - F6

M1 - F7

M1 - F8

M1 - F9

M1 - F10

M1 - F11

M1 - F12

A1 1 1 2 4 2 1 1A2 1 1 1 1 1 1 1A3 1 1 1 2 1 1 1 1A4 1 1 3 1 1 1 2 2A5 3 3 3 3A6 2 1 1 1 2 1 1 4 1 8A7 7 8 4 3 1 1 1 1 4A8 3 3 1 1A9 2 1 1 1 1 2 1 1 1 3A10 6 6 5 12 5 3 3 6 1 6 2 6A11 3 2 1 2 1 1 1 1A12 1 1 1A13 3 3 4 3 1 3 2A14 1 2 2 1A15 1 1 2 3 1 2 2 1 2 2 1 5A16 3 3 3 2 1 1 1 3 2 2 5A17 4 1 1 5A18 7 1 3 1 1 2 2 16A19 2A20 7 7 10 7 6 1 1 4 7 4 3 12A21 1A22 14 12 6 2 1 3 3 1 6 1 2 6A23 2 2 3A24 1 1 1 1

Tabela III.1: Participação dos alunos da TURMA 2 nos FóRUNS do MóDULO 1.

Através da Tabela III.1 percebe-se que os cursistas (A5, A8, A12, A17, A19, A21, A23, A24) da TURMA 2, não tiveram, ao longo dos FóRUNS do MóDULO 1, assiduidade no que diz respeito às suas participações, ora, fator importante para per-manência no curso. Isso significa que, neste quesito, já não obtiveram a nota 7,0, nesta atividade, o que era necessário para aprovação. Com relação a isso uma primeira obser-vação da situação dos cursistas deve ser feita a partir da próxima tabela:

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ALuNOS M2 - F1

M2 - F2

M2 - F3

M2 - F4

M2 - F5

M2 - F6

M2 - F7

M2 - F8

M2 - F9

M2 - F10

A1 1 1 1 1A2 1 1 2 1A3A4 1 4 2A5 3 2A6 1A7 1 1 1 3 2A8 1 1 3 4 1A9 2 1 2 1A10 3 4 9 1 5A11 2 1 2 1 1A12A13 1 1 2 1A14 1 1 1 1A15 2 1 3 5 1 2A16 2 1 1A17 2 1A18 2 3 1 4A19 1A20 3 2 6 9 6 1A21A22 4 5 8 15 2 2A23 2 2A24 1 1 2 1

Tabela. III.2: Participação dos alunos da TURMA 2 nos FóRUNS do MóDULO 2.

Ao término do MóDULO 2, de acordo com a Tabela.III.2, os cursistas (A3, A12 e A21) da TURMA 2 já se haviam silenciado nos FóRUNS. Mas o problema não circundava apenas esses poucos casos, pois a Tabela também aponta para o fato de 16 discentes da TURMA não ter participado sequer da metade dos FóRUNS propostos. Ora, sendo assim, é claro que suas avaliações ficavam prejudicadas. Neste caso, observa--se que, já nos dois primeiros MóDULOS do curso, mais da metade da TURMA 2, tinha sua continuidade no mesmo correndo risco. No entanto, não se pode ainda afirmar que esses mesmos cursistas foram aqueles que não participaram dos encontros presenciais. Entretanto, se eles também não participaram desses encontros, sua perma-nência no curso estaria sim, muito perto do fim.

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De modo a continuar observando a participação dos cursistas da TURMA 2, a próxima Tabela ajuda a visualizar o que acontecia com eles na metade do curso, ou seja, durante o MóDULO 3.

ALuNOS M3 - F1

M3 - F2

M3 - F3

M3 - F4

M3 - F5

M3 - F6

M3 - F7

M3 - F8

M3 - F9

A1 2 1 3A2A3 2A4 1A5A6A7 3 3 1 1 4 1 3A8 2 1 2 5 9 1 1A9 1 1 1 2 4 1 1A10 4 3 5 3 5 9 3 3A11 3 1 2 3 1 1A12A13 2 1 2 2A14A15 4 3 4 2 4 1 2 2 2A16A17 3 1A18 1 6 1 3A19A20 6 3 2 2 7 1 3 5 5A21A22 1 1A23A24 9 4 2 6 5

Tabela. III.3: Participação dos alunos da TURMA 2 nos FóRUNS do MóDULO 3.

De acordo com a presença nos FóRUNS, apresentada pela Tabela. III.3, 8 cursistas dos 25 que inicialmente formavam a TURMA 2, já não participaram de nenhuma dis-cussão durante o MóDULO 3. Ou seja, um terço da TURMA 2 não era mais ativa na produção de suas atividades. Em todo caso, não é tarefa fácil identificar com exatidão o que os levou a evasão. qual teria sido o motivo capital para esse fracasso escolar? No que diz respeito aos dados apresentados, os cursistas, cuja participação no MóDULO 2 já fora inconstante, estavam, correndo sério risco de serem evadidos uma vez que

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haviam, de alguma forma, se ausentado do curso pela não participação nos FóRUNS. Embora já significativa até o MóDULO 3, a evasão não havia se afastado do curso. É o que mostra a Tabela seguinte com dados referentes ao MóDULO 4.

ALuNOS M4 - F1

M4 - F2

M4 - F3

M4 - F4

M4 - F5

A1A2A3A4A5A6A7 1 1 2 1A8 6 6 5 4 1A9 2 2 2 1A10 6 6 2 1 2A11 1 1A12A13 2 1A14A15 3 3 1 3A16A17 4 1A18 3 3 2A19A20 8 8 7 1 4A21A22A23A24 3 3 2 1 1

Tabela. III.4: Participação dos alunos da TURMA 2 nos FóRUNS do MóDULO 4.

Ao fim do MóDULO 4 o que mostra a Tabela. III.4, é que 13 dos 25 cursistas não mais participava das atividades nos FóRUNS. Isso significa que o número havia crescido com relação ao MóDULO anterior. Ou seja, mais cursistas se au-sentavam das discussões dos FóRUNS mesmo com o curso se aproximando dos últimos MóDULOS.

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ALuNOS M5 - F1

M5 - F2

M5 - F3

M5 - F4

M5 - F5

A1 1A2A3A4A5A6A7 1 1 1A8 1 2 1 6A9 1 4 2 2A10 3 3 1 5 1A11 1 2A12A13 1 1A14A15 1 2 1 4 1A16A17A18 2 1 2A19A20 3 5 3 3 2A21A22A23A24 4 1 1

Tabela. III.5: Participação dos alunos da TURMA 2 nos FóRUNS do MóDULO 5.

Como se observa, os cursistas que haviam alcançado o MóDULO 5, formavam o grupo da TURMA 2 que finalizaria os MóDULOS. Notando a participação deles desse jeito é possível dizer que os FóRUNS foram momentos e locais que ajudaram na permanência em um curso na modalidade EAD.

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ALuNOS M6 - F1

M6 - F2

M6 - F3

M6 - F4

M6 - F5

M6 - F6

M6 - F7

A1 2A2A3A4A5A6A7 1 1 1 2 4A8 1 2 1 1 1 1A9 1 2 4 2 1 3A10 4 5 1 2 4A11 1 1 1A12A13 1 1 2 1A14A15 2 2 1 1 4 4A16A17 3 1 1 1A18 1 1 3 3A19A20 5 3 6 3 7 6A21A22A23A24 3 2 1 2

Tabela. III.6: Participação dos alunos da TURMA 2 nos FóRUNS do MóDULO 6.

A Tabela. III.6, mostra o resultado da participação dos cursistas da TURMA 2 no último MóDULO do curso. Ou seja, 13 dos 25 egressos não estavam participando das discussões nos FóRUNS anteriores e provavelmente estava evadida. Entretanto o cursista A18, embora não tivesse participado de 3 dos 7 FóRUNS no MóDULO, e inclusive das discussões do MóDULO anterior, estava de volta e foi, inclusive, parti-cipativo no MóDULO 6.

Dessa forma, com relação à participação nos FóRUNS, contabiliza-se 13 cursistas evadidos da TURMA 2 durante os 6 MóDULOS. Um deles (A1) participou apenas uma vez no primeiro FóRUM do MóDULO 6, e por isso sua situação deixa dúvidas. O que significa que 11 dos egressos seguiram para a etapa de produção da monografia.

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Os cursistas, então, iam ficando pelo caminho durante os MóDULOS. Havia, portan-to, no curso, necessidade de uma reflexão sobre o que fazer visando à diminuição desse quantitativo de evadidos de maneira precoce.

CONSIdERAÇÃO FINAL

quanto à pergunta que norteia o presente trabalho, ou seja, como mostrar o resul-tado de um processo que gerou a evasão? É oferecida a seguinte resposta: a partir da exposição das seis tabelas que mostram o quantitativo de participação dos cursistas em cada um dos FóRUNS dos 6 MóDULOS do Curso de Especialização em Educação Tecnológica, fica evidente a presença da evasão na Turma 2. Ora, os números mostram o resultado de um processo que fez uma turma de especialização chegar à fase de pro-dução da monografia com apenas 11 de seus 25 egressos.

Já os motivos que levaram os estudantes a evadirem são pontos que não se pode saber sem uma pesquisa individual. Haja vista, o fato de que um único fator (como a falta de tempo em razão do excesso de trabalho) pode ser o motivo de um caso. Mas, por outro lado, a relação entre dois ou mais fatores (crença de que um curso a distância é mais fácil e não prioridade dada à realização das tarefas) pode ter sido o motivo em outro caso específico.

Na TURMA 2, a não participação nos FóRUNS virtuais de discussão abertos pelo tutor - detectada e acompanhada pelas tabelas elaboradas por esse autor - apontaram para a existência da evasão. Pois, se a participação nos FóRUNS era critério de avalia-ção do curso, quem não participava ficava na iminência da reprovação.

Como mostraram as tabelas, 8 egressos na metade do curso (MóDULO 3) tinham chances de estarem evadidos, porque não participavam dos FóRUNS. Pois a ausência nesses espaços virtuais de discussão apareceu como fator capaz de indicar quem tinha mais ou menos chance de engrossar os números da evasão na Turma 2, da 3ª edição do curso de Especialização em Educação Tecnológica no polo de Volta Redonda em 2012.

REFERÊNCIAS bIbLIOGRÁFICAS:

BELLONI, Maria Luiza. Educação a distância. Campinas 4º Edição: Autores Asso-ciados, 2006.

BRANDâO, Carlos Rodrigues. O que é Educação. São Paulo. Ed. Brasiliense, 8ª Edição, 1983.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro Ed. Paz e Terra, 1988.

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MAIA, C.; MATTAR, J. AbC da Ead: a educação a distância hoje. São Paulo: Pear-son Prentice Hall, 2007.

MATOS, Marcelo B. Interações em fóruns de discussão online: notas para repensar as relações organizacionais no curso de especialização do CEFET/RJ. Dissertação (Mestrado em Tecnologia) – CEFET/RJ - Rio de Janeiro, 2012.

NETTO, Carla et al. A evasão na EAd: Investigando causas, propondo estratégias. PUCRS. Disponível em: http://www.alfaguia.org/www-alfa/images/ponencias/clabe-sII/LT_1/ponencia_completa_26.pdf Acesso em: 22 de agosto de 2014.

TOMOTAkE, Maria Elisa et al. Evasão na educação a distância: Identificando cau-sas e propondo estratégias de prevenção. São Paulo. ABED. 2008. Disponível em: http://www.abed.org.br/congresso2008/tc/511200845607PM.pdf> Acesso em: 01 de maio de 2014.

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O vALE dA ESTRANHEZAShirlei Massapust

Palavras chave: transhumanismo, uncanny valley, zumbis, bonecos.

O conceito do vale da estranheza (em inglês uncanny valley, derivado do japonês 不気味の谷現象) é uma hipótese introduzida em 1970 pelo professor de robótica Masahiro Mori, em artigo do periódico científico Energy, 7(4), p 33-35. Testes labora-toriais demonstraram que a resposta emocional positiva e empática dos voluntários que observaram robôs e figuras humanas numa tela cresceu proporcionalmente em relação ao grau de realismo das imagens até certo ponto em que a resposta rapidamente se transformou numa forte repulsa.

A maioria dos voluntários nos testes de Masahiro Mori julgou preferível assistir atores representando papéis a ver bunraku (文楽), que é um teatro de marionetes. Mesmo assim lhes pareceu mais agradável ver bunraku do que observar mãos protéticas ou zumbis cinematográficos.

Pois bem, assumindo as premissas de que 1) atores sadios fornecem imagens agradá-veis à vista e 2) o zumbi fictício é o objeto mais repulsivo do mundo; nós nos deparamos com um problema de ordem lógica: Por que existe audiência para filmes de zumbis? Por que filmes trash, gibis de terror e outras artes propositadamente planejadas para causar asco comumente se traduzem num grande sucesso mercadológico? Em suma, por que a estreia simultânea de Dawn of the Dead e The passion of the christ no fim de semana, dias 20 e 21 de março de 2004, gerou diferença de 5,2% a mais na renda da bilheteria duma revisão dum clássico de George Romero, dirigida por Zack Snyder, ainda que emparelhado contra o prestígio de Mel Gibson e o carisma de Jesus?61

61 BORGO, Érico. “Bilheteria USA: Madrugada dos Mortos”. Publicado no portal de notícias Omelete, dia 22/03/2004, a meia noite. URL: <http://omelete.uol.com.br/filmes/noticia/bilheteria-usa-imadru-gada-dos-mortosi/>

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Gráfico de Masahiro Mori, ilustrando o “vale da estranheza”.

Comparemos o quadro de audiência de duas séries norte-americanas contemporâ-neas, conforme divulgado pelo site de cinema AdoroCinema62, que compilou cálculos realizados por emissoras desejosas de dar publicidade ao número de espectadores por episódio em média, considerando somente a primeira transmissão nos EUA. Uma de-las, The Walkind Dead (2010-2016), exibida pela AMC, fala sobre a difícil adaptação dos seres humanos a condições extremadas de violência e subsistência durante o apocalipse zumbi. A outra, Glee (2009-2015), exibida pela FOx, contem jovens atores engajados numa equipe de canto e dança transmitindo mensagens motivacionais, com fartos exemplos de superação. Ambas as séries contém diversidade étnica:

Audiência de The Walkind Dead Audiência de Glee1ª temporada 5,2 milhões 1ª temporada 9,2 milhões2ª temporada 6,9 milhões 2ª temporada 11,6 milhões3ª temporada 10,7 milhões 3ª temporada 7,3 milhões

62 quadro de audiência de Glee no site AdoroCinema atualizado conforme a evolução do seriado, consultado em 07/04/2016 às 16h. URL:<http://www.adorocinema.com/series/serie-4114/audiencias/> quadro de audiência de The Walking Deadno site AdoroCinema atualizado conforme a evolução do seriado, igualmente consultado em 07/04/2016 às 16h:05. URL:<http://www.adorocinema.com/series/serie-7330/audiencias/>

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4ª temporada 13,3 milhões 4ª temporada 5,9 milhões5ª temporada 14,3 milhões 5ª temporada 3,3 milhões6ª temporada 13,3 milhões 6ª temporada 2 milhões

Cálculos matemáticos demonstram que a audiência do bom exemplo caiu enquan-to a dos zumbis cresceu até superar o marco inicial de estreia do drama musical. Glee não terá uma sétima temporada. The Walkind Dead, por sua vez, não tem prazo para terminar e o gibi no qual a sétima temporada será baseada já está disponível em jorna-leiros. Isto está acontecendo numa época em que as meninas ocidentais preferem ver shrek (2001), como Treinar o seu Dragão (2003), Valente (2012), crepúsculo (2008-2012), etc., em detrimento de velhos clássicos sobre o casamento de donzelas virgens!

Por que tanta gente gosta de sentir estranheza, medo e asco? Existem benefícios bio-lógicos ou sociais neste ato? Estudos com tomógrafo e eletroencefalograma, realizados por Thierry Chaminade e Ayse Saygin da University College London, acusaram picos de atividade no córtex parietal durante a sensação de estranheza causada pela visão de robôs e figuras humanas.

O córtex parietal é uma área do cérebro repleta do que os neurologistas chamam de neurônios espelho, responsáveis pelo sentimento de empatia. Neurônios espelho são capazes de analisar cenas e interpretar as intenções dos outros. Eles nos permitem cap-tar a intenção alheia não por meio do raciocínio conceitual, mas pela simulação direta (sentindo e não pensando).

Você automaticamente simula a ação em pensamento quando vê a representação de uma ação. Circuitos cerebrais o inibem de se mover, mas você entende ações alheias porque reconhece um padrão dessa ação baseado nos seus próprios movimentos. Em resumo, ao ver a ação de outra pessoa nós conseguimos interpretar suas intenções. O cérebro parece associar a visão de movimentos alheios ao planejamento de seus pró-prios movimentos. É por isso que um monte de gente começa a bocejar e até mesmo a vomitar quando vê alguém bocejando ou vomitando. Também é por isso que certas pessoas desejam “virar vampiro” vendo filmes de vampiro e depois riem de si mesmas ou passam a achar que bifes de carne mal passada são mais gostosos.

O vale da estranheza é efeito de um bug no cérebro humano. Graças a uma fun-ção latente dos neurônios espelho, a quase realidade de um robô ou filme 3D ou etc. obriga nossa percepção a ignorar a faculdade da razão, identificar a representação como pessoa e reagir com estranhamento. O seu corpo sente que um boneco com aparência extremamente realista de um bebê é uma criança morta porque o objeto inanimado não se mexe, não respira, não parece vivo. qualquer imperfeição causa uma quebra de expectativa e faz a coisa estranhada parecer oferecer perigo de contágio de doenças, etc.

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Você é um animal mamífero da espécie homo sapiens. Mesmo sabendo o que é um boneco, uma estátua, uma pareidolia, etc., o seu instinto animal eventualmente pode interpretar uma figura de olhar fixo e brilhante como um ser vivo apresentando o comportamento típico duma criatura que quer te comer, tal como um leão de tocaia esperando a gazela passar. Contudo, as mesmas células que te assustam aumentam a empatia por algo ou alguém depois que o observador reconhece o engano e racionaliza sobre a ausência de perigo. Sendo assim a exposição ao estranhamento pode ser mani-pulada para educar telespectadores no sentido de repudiar qualquer coisa que exale a energia pesada do fundamentalismo, eugenia e xenofobia.

A ciência não poderia descrever melhor do que a vivência a esta empatia pelo exó-tico ou macabro; que o psiquiatra Fredric Wertham logrou chamar de “sedução da inocência”, quando ele quase descobriu o segundo efeito colateral do fenômeno do vale da estranheza: A atração pela repulsão.

Acontece que as cobaias humanas que participaram voluntariamente dos experi-mentos de Masahiro Mori nunca retornaram aos laboratórios apos o término da pes-quisa, mas o mundo é um enorme laboratório onde a natureza joga dados aleatórios e a vivência gera desfechos contrários à expectativa.

Por que 12,79 milhões de telespectadores norte-americanos assistiram à estreia do episódio “knots Untie” da 6ª temporada de The Walking Dead em horário sobrepos-to à exibição da cerimônia do Oscar 2016, a despeito da importância da entrega dos prêmios pela Academy of Motion Picture Arts and Sciences para a sétima arte? Isto aconteceu porque pessoas tem livre arbítrio. Sem nenhuma obrigação moral e cívica, natural e necessária, de ver filme de Jesus na páscoa ou o oscar, muitos optaram por fazer outra coisa.

Seguindo a lógica do efeito reverso presumo que se algum dia os atletas paraolímpi-cos chegarem a virar ciborgues de alta tecnologia, semelhantes ao fictício Robocop, as pessoas irão lotar as arquibancadas, preferindo investir em modalidades variantes e não no espetáculo standard das olimpíadas.

Hoje em dia existem colecionadores de bonecos reunidos em fóruns e clubes sociais dedicados ao hobby onde continuam a fornecer testemunhos por prazo indetermina-do... Nessas mídias alternativas existem inúmeros exemplos semelhantes ao de Moira, residente em Ontário, Canadá. Na primeira vez que viu Barbara, uma escultura arti-culada de mulher inseto fabricada pela micro empresa sul coreana Doll Chateau, ela detestou-a por ser uma monstruosidade exótica. Contudo a imagem não saiu de sua mente até que Moira descobriu que desejava a boneca pela excentricidade do molde.

I’ve noticed a lot of people are creeped out by Doll Chateau. I used to be terrified of them, but I noticed something: Fear and Love are almost interchangeable

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feelings in the human mind. I was simply terrified of the Barbara. She was so oddly different. I wondered why anyone would want something like her? Then I noticed myself looking at her more and more... And I realized I wasn’t creeped out by her, I LOVE her! So I guess that’s the idea of exposing yourself to something so often it changes your opinion.63(Testemunho postado por Moira no fórum Den of Angels, dia 10/04/2014).

Existe um lado bom na estranheza porque o sujeito reeduca seu cérebro ao raciona-lizar a situação e entender que um medo é infundado. Brincar com aranhas de plástico no Dia das Bruxas é uma ótima motivação para perder o medo de limpar teias de ara-nha em casa. A ficção e a representação ajudam mais crianças a entender a constituição de um esqueleto do que duros choques de realidade. É possível adquirir tolerância ao nojo vendo filmes de zumbis e possivelmente auferir aptidão para prestar primeiros so-corros a pessoas feridas sem desmaiar ou enjoar vendo sangue. Afinal, ninguém jamais será um bom médico se não for capaz de rir duma revista em quadrinho de terror.

A experiência de Masahiro Mori, revista e anotada por outros, indica que o cé-rebro emite o mesmo impulso de estranhamento diante de acidentados amputados (com implantes de próteses), bem como ao ver adeptos da filosofia do transhumanismo ostentando modificações corporais (piercing, tatuagem, etc.) e ninguém precisa ler ar-tigos acadêmicos para saber como os idosos sofrem com o preconceito dos que ainda estranham o uso de dentaduras.

O vale da estranheza é literalmente um preconceito instintivo dirigido contra figu-ras humanas que não se ofendem e podem nos ajudar a superar uma falha biológica ou educacional, nos acostumando com imagens estranhas até sermos capazes de reagir de forma adequada diante de situações reais.

Talvez um dos exemplos mais positivos de uso da arte escatológica com bonecos seja a série The Nutshell Studies of Unexplained Death, composta de dezoito dioramas re-presentativos de cenas de crimes, criados por Frances Glessner Lee para o treinamento de peritos em investigação forense. Os “mortos” ocupantes de maquetes em escala 1:12 incluem prostitutas e vítimas de violência doméstica. A missão do estudante é realizar o exame do corpo de delito. Estes cenários ficaram expostos no departamento de medi-cina legal de Harvard de 1945 até 1966, quando foram enviados ao Maryland Medical Examiner’s Office in Baltimore onde são usados em seminários até hoje.

63 Tradução: “Tenho visto muitas pessoas assustadas pelos bonecos da Doll Chateau. Eles costumavam me aterrorizar, contudo compreendi uma coisa: O medo e o amor são, sobretudo, sentimentos intercam-biáveis na mente humana. Eu estive simplesmente aterrorizada pela boneca Bárbara. Ela era tão esqui-sitamente diferente... Então percebi que eu não estava assustada por ela. EU AMO ela! Então suponho que a ideia de expor-se a alguma coisa muitas vezes te faz mudar de opinião”. (Testemunho postado por Moira no fórum Den of Angels, dia 10/04/2014).

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CONSIdERAÇõES FINAIS:

O zumbi estereotipado que conhecemos não é um mito nem uma lenda existente desde os primórdios da História. O modelo genérico foi idealizado pelo diretor George Romero, em 1968, na intenção de desvincular o conceito de “zumbi” da abordagem mágico-religiosa haitiana, abolindo o viés racista das produções cinematográficas ante-riores. Sua ideia deu tão certo que ninguém nunca mais pensou em culpar um negro pelo fim do mundo.

Os exemplos de produções bem sucedidas são inúmeros, iniciando pela trilogia de George Romero, passando pelo famoso videoclipe Thriller (1982) de Michael Jackson – com participação especial de Vincent Price – e pela franquia japonesa resident Evil que vem problematizando a questão da bioética em inúmeros produtos – especialmente jogos e filmes – desde 1996 até hoje.

A maioria das abordagens vinculam questões acessórias de ontologia, ética e bioéti-ca ao mero entretenimento. Isto é feito espontaneamente pelos autores e tem sido bem recepcionado pelo público. A canção Zombie (1994), escrita por Dolores O’Riordan, gravada pela banda irlandesa The Cranberries, abriu os olhos dos fãs de rock alterna-tivo para os conflitos armados envolvendo a questão protestante na Irlanda do Norte. quando atingiu o primeiro lugar nas paradas de sucesso de vários países – como Aus-trália, Bélgica, Dinamarca, Alemanha e Brasil – isto certamente tocou lá diante dos próprios soldados sabedores de que o rádio cantava perante o mundo, sobre eles e para eles: “What’s in your head? Zombie! Zombie! Zombie!”

Embora o estereótipo não seja uma metáfora, isto funciona como tal. Os fãs que promovem a Zombie Walk64 se referem ao conceito como mito futuro, por vir, devir, porque todo ano a mídia anuncia uma epidemia de ebola, mal da vaca louca, zica vírus, chikungunya ou qualquer peste inédita e estranha. Logo, talvez exista probabilidade de acontecer uma pandemia de origem natural ou estourar uma guerra química bastante parecida com o apocalipse zumbi.

Ultima ratio, o zumbi traduz uma forma de protestar contra a falência moral dos protestos que brotam nas grandes cidades onde multidões atendem ao chamado de terceiros desconhecidos para aglomerarem-se sem propósitos bem definidos – sem nem ao menos saber o que os organizadores do evento estão reivindicando (e a massa de manobra está endossando) – numa quase tentativa de canibalizar a própria espécie devorando os direitos humanos.

64 Zombie Walk é uma passeata ou evento underground composta por um grande número de pessoas fantasiadas de zumbis. Caminhando por grandes centros urbanos, os participantes organizam uma rota através das ruas da cidade, passando por shoppings, parques e outros locais com grande público. O even-to é promovido via internet ou através de flyers, cartazes etc.

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REFERÊNCIAS bIbLIOGRÁFICAS:

BUSH, Erin N. PhD. “The Nutshell Studies of Unexplained Death”. Em: Death in Diorama. Acessada em 07/04/2016. URL: <http://www.deathindiorama.com/>

JENTSCH, Ernst. “Zur Psychologie des Unheimlichen”. Em: psychiatrisch-Neurolo-gischeWochenschrift 8.22 (25 Aug. 1906), p 195-98 e 8.23 (1Sept. 1906), p 203-05. E na edição online do site da The Boundary Language Project, acessada em 07/04/2016. URL: <http://www.art3idea.psu.edu/locus/Jentsch_uncanny.pdf >

MORI, Masahiro. “Bukimi no tani (不気味の谷): Theuncannyvalley”. Em: Energy, 7(4), 1970, p 33–35. E tradução para inglês de karl F. MacDorman e Takashi Mina-to publicada no site do Dublin instituteof Technology, acessada em 07/04/2016.URL: <http://www.comp.dit.ie/dgordon/Courses/CaseStudies/CaseStudy3d.pdf >

SAYGIN, Ayse Pinar; CHAMINADE, Thierry; ISHIGURO, Hiroshi; DRIVER, Jon & FRITH, Chris. “The thing that should not be: predictive coding and the uncan-ny valley in perceiving human and humanoid robot actions”. Em: SCAN (2012) 7, p 413-422. E na edição online do site da University of California – Department of Cognitive Science. URL: <http://www.cogsci.ucsd.edu/media/publications/Saygin_SCAN_2012.pdf>

Textos dos Professores

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APONTAMENTOS SObRE “uM uNICóRNIO PASSEIA PELA SALA dE AuLA Ou COMO TRANSFORMAR uM

vILÃO EM HERóI”Oazinguito Ferreira da Silveira Filho

CONSIdERAÇõES INICIAIS

“Le monde ne sera pas détruit par ceux qui font le mal, mais par ceux qui les regardent sans rien faire.”65

(Albert Einstein)

“The Porcelain Unicorn” é um drama histórico, que possuí como base para sua narrativa as histórias que foram contadas ao diretor norte-americano keegan Wilcox, quando criança, por seu avô que participou da Segunda Grande Guerra. Wilcox afirmou em entrevista que se inspirou nas memórias de seu avô e em suas experiências, além do desejo de expressar uma narrativa clássica, como a encontrada no romance de Joseph Conrad66 do qual é admirador e onde segundo entrevista, “[...] o protagonista rasteja na escuridão para encontrar a luz.”

Sumariando o roteiro do curta: um homem idoso que seencontra em luta com suas memórias de 1943 na Alemanha, época na qual foi membro da Organização Juventude Hitlerista, contando com seus doze anos de idade, quando acompanhado de compa-nheiros da organização arrombou a janela de uma alfaitaria de judeus que se encontrava abandonada descobrindo escondida em um armário com alçapão na parede uma jovem judia, da mesma idade, fugitiva, que assustada procurava se esconder das tropas de as-salto nazistas. Seu breve encontro, em situação de perigo, o conduz à ocorrência de um momento, compartilhado com ternura pela lembrança do breve encontro que forjou uma relação especial entre ambos em seu reencontro já com idade mais avançada.

O filme evoca, em apenas três minutos de projeção, uma forte mensagem de crença e convicção no espírito humano que caminharia para triunfar sobre o trauma de eventos tão catastróficos como o do holocausto. Uma narrativa de singular expressão emocional que aponta para a superação da tragédia pela imagem de pureza da jovem acuada com

65 O mundo não será destruído por aqueles que praticam o mal, mas por aqueles que assistem e nada fazem. Abrahão, J. R. R., Filosofia do Combate: Os Fundamentos do Confronto Individual, Supervirtual, p.5, in http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/filoscombate.pdf><Acessado em 23/06/2013;66 O Coração das Trevas. Romance onde ocorre enfrentamento ente o objeto colonizador e tanto de sua relação como reação com o dominado, no cenário do século xIx. Para Said, uma proposta de discussão entre o ideal colonizador e o real colonizado, apresentando formas de resistência, Said (2003, p.55).

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seu impotente unicórnio de porcelana ofertado ao garoto como se fosse um “totem sagrado”, que posteriormente o observa quebrado, destruido em sua representatividade pela opressividade e truculência doscomponentes da SS, mas que foi reconduzido ao futuro da projeção filmográfica, restaurado pelo jovem já tranformado em idoso, acua-do pelo tempo e pela angústia.

Nestes registrados três minutos de duração, o curta-metragem apresenta a autentici-dade do mais genuíno dos valores humanos que cruzam com força e verdade o tempo, situando-se acima das ideologias estigmatizantes do passado, que são superadas pela memória personificada na lembrança de um único momento. Uma história condensa-da de um estreito relacionamento forjado durante o período de guerra em um encontro que de tão fugaz reconstitui o célebre quadro medieval da pureza e da superação das dificuldades com a vitória da justiça e da generosidade, assim como das forças que triunfam comportando valores morais e etéreos.

Cinco anos de experiências foram fundamentais e suficientes para que fossem promovidas alterações e testagens para esta prática pedagógica com a utilização da es-trutura tecnológica. Caso o docente não estivesse convencido de que realizaria um ato significativo na relação ensino/aprendizagem, não haveria razão para a promoção do laboratório autorizado institucionalmente pela gestora do estabelecimento em concor-dância com a SEEDUC.

Observações também foram realizadas quanto ao cenário cultural cotidiano pre-sente nos estudantes, tomando como base os estudos de Catani, visando aproximar-se do universo vivenciado por estes e apresentado tanto nas salas de aula como em seu cotidiano, o que favorece a adequação do laboratório.

A opção por uma pesquisa-ação é a de procurar ultrapassar o discurso e oferecer uma vivência sobre a proposta experimentada e que se descortinou com a realização do laboratório em salas de aula do estabelecimento educacional como sendo um paradigma emergente na inovação da prática pedagógica e inovadora da produção de conhecimen-to em sala de aula.

Nossa preocupação temática, ou cuja denominação teórica assinala como problema teórico, consistia na utilização da dupla celular/bluetooth como ferramenta inovadora na prática educacional, possuindo como alicerce didático para sua concretização no laboratório um veículo pedagógico também inovador da assistência educativa e extre-mamente reflexivo na própria sala de aula como o curta-metragem, cuja ancoragem curricular se apresentou como extremamente apropriada para a ocasião da abordagem.

A realização do laboratório constituiu-se em um instrumento de grande eficiência para o desenvolvimento profissional a partir do momento em que se encontra com seus interesses reservados na prática que podem conduzi-lo a “[...] um resultado específico

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e imediato no contexto do ensino-aprendizagem.” (Cf. WALLACE, M, in ENGEL, p.183). Outro detalhe revelado por Engel é o de que a pesquisa-ação pode ser apli-cada em qualquer ambiente de interaçãosocial, além da área educacional. Muitos dos critérios ou caracteristicas adotados por Engel encontram-se presentes na realização deste laboratório, tais como: a superação entre sujeito e objeto de pesquisa; utilização dos dados; observar o problema a partir das pessoas envolvidas; relevância prática dos resultados; auto-avaliação; demonstração do caracter cíclico da própria pesquisa-ação.

ANTECEdENTES CINEMATOGRÁFICOS E PEdAGóGICOS dA dENÚNCIA IdEOLóGICA

Podemos assinalar que o processo de denúncia por via cinematográfica sobre as condições dos judeus na Europa já se apresentara durante os anos trinta, portanto, bem antes da declaração da Segunda Guerra Mundial e também anteriormente ao estabelecimento da movimentação para os campos de concentração. Isto em um filme que denunciava o antissemitismo presente no nazismo,que invadia o cenário alemão e tomava o poder não somente do Estado como da sociedade. A referência se processa a “The Wandering Jew” (1933) de George Roland67, uma película norte-americana, em idiche68, característica da denúncia dos conflitos e do risco que já ocorrera na Europa e não eram consideradas pelas demais nações, principalmente as com maior influência no contexto de época, como o casoda França e da Inglaterra.

Por outro lado, a obra de Roland, um drama-denúncia, não pode ser classificado como sendo um filme de cunho educativo, pois a perspectiva considerada como de “educação e emancipação”, ou de uma “educação contra a barbárie”, somente se pro-cessou oficialmente a partir de Theodor Adorno, com a publicação de suas entrevistas radiofônicas (1959), que foram reunidas em um livro (1962), mas já se encontrando configuradas as mesmas intenções, alguns anos antes com o lançamento do expressi-vo “Nuit et Brouillard” (Noite e Neblina), de Alain Resnais69, documentário de 32

67 "O judeu errante" (Der vandernderYid) de 1933, dirigido por George Roland.Situado em Berlim, em 1933, o filme conta dos problemas enfrentados pelos judeus alemães após a ascensão de Hitler ao poder, através da história de um artista judeu e professor, Arthur Levi. Depois de acabada sua nova pintura, The Wanderer Eterno, Levi é rejeitado pela academia sendo demitido de seu cargo, sua noiva alemã o abandona. A figura de seu pai, modelo para o quadro, a poucos passos da pintu-ra impede Levi de destruir o seu trabalho antes dos nazistas. Imagens de noticiários e cenas de filmes an-teriores são usadas para rever as dificuldades judaicas e a condição de perseverança ao longo dos séculos.Waltham, MA :National Center for Jewish Film (2006)http://www.worldcat.org/title/wandering-jew-der-vandernder-yid/oclc/74670730?referer=di&ht=edition68 Patrocinada por grupos sionistas norte-americanos.69 “Nuit et Broillard” ocorreu a partir de uma solicitação do "Comité d’histoire de la Seconde Guerre mondiale pour le dixième anniversaire de lalibération des camps de concentration.", composta por his-toriadores que trabalhavam com os arquivos franceses.

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minutos (1955), que possuia por temática a ocorrência do holocausto nos campos de concentração criados pelos nazistas.

quanto a estas considerações sobre o “processo denúncia” nos voltamos para Cris-tiane Nova (1997) que reafirma as mesmas posições de Marc Ferro ao considerar o fato de que não se deve procurar em um filme a “verdade histórica objetiva”.

Primeiramente, devem ser analisados os fatos históricos apresentados pelo fil-me: são provados pela historiografia escrita? São eles inventados pelo autor? Inteiramente? Com que critérios? [...] Depois, deve se buscar apreender a con-cepção das interpretações que ele apresenta sobre o acontecimento retratado.

O Unicornio de Porcelana, apresenta-se como uma película que foge aos padrões convencionais dos demais dramas históricos que abordam o holocausto, películas que foram apresentadas nas últimas décadas abordando o tema, mas inserindo-se no plano mercadológico onde as produções realizadas voltam-se para o sucesso comercial e alcan-çam a escala de produção industrial. O curta-metragem de keegan Wilcox destinou-se integralmente para um festival que se constituiu em novidade tanto por sua forma de realização como em sua concepção e que ultimou coma consequente distribuição gra-tuita pelas redes de comunicação da própria internet, como o foi pelo próprio YouTube, organizador, contrariando os princípios mercadológicos que regulam a distribuição de obras. Mas, que amplia sua possibilidade de exibição e de assistência, sem contar com as possibilidades de distribuição alternativas idealizadas pelas TICs ou por mensagens em aplicativos. Poderíamos considerar como uma verdadeira “obra de arte”, liberada em seu processo de circulação e exibição na sociedade o que extrapola conceitos e direitos consagrados a produções.

Este curta-metragem ocorre em momento onde casos de barbárie se multiplicam pelo mundo, que encontra-se acometido não somente de seus conflitos regionais, apre-sentando ondas genocidas que surgem em constantes denúncias pelas associações de defesa dos direitos humanos, assim como em um momento onde transcorre o recrudes-cimento dos radicalismos extremistas, principalmente os que se apresentam contrários aos imigrantes nas mais diversas regiões do mundo, assim como pelo recrudescimento das direitas europeias e dos grupos de neo-nazismo sustentados pelos movimentos Skinheads.Deve-se considerar também a presençados demais movimentos de barbárie que ocorrem nos centros urbanos, como os registrados em escolas e também como os que se processam em comunidades pobres de metrópoles brasileiras.

Portanto, caracteristicamente uma obra que mesmo trabalhando com a denúncia não abdicava do prin-cípio educativo, sendo realizada duas décadas após a infrutífera denúncia do cinema norte-americano e registrada após a ocorrência da barbárie.

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O uNICóRNIO E A EduCAÇÃO EMANCIPAdA

O nascimento da proposta de Theodor Adorno sobre a Educação Emancipadora pode situar-se exatamente uma década após o movimento cinematográfico que possuiu a mesma intenção de sustentar a bandeira de “Auschwitz Nunca Mais”.

Em 1954, o grupo editorial francês Hachette publicou livro contendo relatos de testemunhas da deportação dos judeus na França. Meses após a publicação uma expo-sição representativa desta temática foi organizada no Institut Pédagogique National, de Paris e na mesma época os historiadores Henri Michel e Olga Wormser, membros do Comitê de História da Segunda Guerra Mundial, encaminharam uma proposta para a realização de um filme relacionado ao contexto histórico do tema da exposição oficial objetivando celebrar o décimo aniversário de libertação dos campos e da França. Assim, o documentário de Alain Resnais foi organizado procurando essencialmente promover atividades educacionais que objetivassem a libertação não somente das sociedades assim como sua emancipação, visando que estas não se tornem reféns de estados totalitários.

Contrariamente à “Nuvem e Neblina”, um longo documentário comemorativo da libertação, “Unicórnio de Porcelana”, curta-metragem, foi apresentado no Festival de Veneza, sendo sua história vinculada a uma reação relacionada à situação de uma década de recrudescimento dos movimentos neonazistas na Europa e luta contra o preconceito aos imigrantes na contemporaneidade.

Com a sequência de festivais de curta-metragem que se processaram na Europa, em 2011 se formou o YourFilm Festival, promovido pelo YouTube, sob a orientação de Ridley Scott, concorrendo para exibição de centenas de curtas, quando após avaliação e seleção final. Foram apresentados dez produções vitoriosas e as mesmas exibidas no Festival de Cinema de Veneza.

O festival do YouTube, contou com a realização tanto de Scott como de Michael Fassbender, que representaram a Scott FreeProductions. Porém, originalmente o interesse de Ridley Scott, prendeu-se ao festival de cinema Philips, “Tell it Your Way Compe-tition” (2010), onde foi membro do júri e anunciou como vencedor keegan Wilcox e seu “PorcelainUnicorn”, que segundo Scott possuía “uma narrativa muito forte” e uma história que foi completamente executada em apenas três minutos.

quando das inscrições para o festival da Philips de 2010, os diretores foram obri-gados a seguir o diálogo de seis linhas exatas dos filmes “ParallelLines”, e a presença da temática do unicórnio nas histórias como ficou determinado.

Observe-se que o modo de ver o curta de Wilcox, pode ser assumido como um procedimento pedagógico por sua estrutura, podendo sustentar-se nos estudos de edu-cação emancipadora.

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A ESSENCIALIdAdE SIMbóLICA PRESENTE NO uNICóRNIO dE PORCELANA

Tania Dauster (2006)70 é categórica ao afirmar que o cinema fornece uma experi-ência de alteridade (p.8), com um desfile de sociedades, costumes e cenários que geram perplexidade cultural e transformam o modo de ver dos espectadores.

Passamos a interrogar as relações possíveis entre indivíduos e sociedade. Como as que observamos na casa invadida de “Unicórnio de Porcelana” onde descobrimos o universo de uma alfaiataria de judeus, como as inúmeras que se apresentavam nas ruas de Berlim nas décadas de 20/30 do século xx uma verdadeira metrópole cultural. Principalmente as alfaiatarias e tinturarias que se localizavam nos bairros de kreuzberg e Mitte, segundo pesquisas de kreutz Christoph Müller (2012) para organização de um banco de dados de comerciantes judeus em Berlim nas primeiras décadas do século xx.

O cenário de um artesão judeu que alcança diversas suposições pela apresentação ofe-recida pelo curta-metragem, a de que houvesse sido deslocado para um campo de concen-tração, como os sub-campos de Sachsenhausen que se localizavam a trinta quiilômetros de Berlim; ou mesmo que se encontraria preso ou assassinado, tendo escondido quem sabe, sua filha no armário da mesma alfaiataria; que provavelmente também já houvesse sido alvo da “Noite de Cristal”. Uma menina escondida comendo furtivamente farelos de pão embolorado como o que fora encontrado pelo agente SS em sua mesa.

A alfaiataria era um universo cultural de prestígio na sociedade europeia das primei-ras décadas do século, segundo Eike Geisel (1991), os judeus convergiam para Scheu-nenviertel, onde se encontrava o grande grupo de judeus emigrados, uma espécie de “Suíça judia” (p.57).

A partir das constatações e observações que podemos alcançar pelo curta-metra-gem, passamos a exercer uma nova forma de interpretação, tão diferente que desfila aos nossos olhos, onde o diferente encontra-se acuado e oprimido, subjugado, e nos leva a “[...] ultrapassar nossas arraigadas posturas etnocêntricas e avaliações preconceituosas” (DAUSTER, 2006, p.8).

Observamos que a problemática da cultura, como diria Dauster (p.09), brota do contraste estabelecido entre o eu e o outro, nos conduzindo a interpretação das diferen-ças culturais entre os grupos que se apresentam em “Unicórnio de Porcelana”. Como no caso da menina judia em contraste com a da imposição revelada pelo garoto repre-sentante da Juventude Hitlerista. Eles não se expressam como classes, mas como grupos onde cada qual representa o dominado e o dominador, tornando no futuro presente no

70 Prefácio da obra: TEIxEIRA, Inês A.de C; LOPES, José de Souza Miguel. A Diversidade cultural Vai ao cinema. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

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curta a possibilidade da convivência plural, apesar da forte presença na memória dos preconceitos e da opressão vividos.

Irreal seria a materialização de um personagem de característica lendárias em uma sala de aula como o Unicórnio, mas, apesar do fato dos jovens “brincarem” na atualidade com sistemas holográficos como meios de representação em algumas escolas privadas, pode-se observar que, a imagem do Unicórnio, um ser que habita o imaginário dos indivíduos, portando um longo chifre espiralado e torcido na ponta, refletindo sua denominação originária do latim, é a possibilidade de representação da resistência ofe-recida pelo curta. Chega a ser de fato surreal mesmo pela presença de sua abordagem pelas atividades escolares.

O filme de Wilcox transformou-se em um conto narrado cinematograficamente, cujo destaque segundo Roig pelo Educa-Tube (Roig, 2012), é extremamente sensível e apresenta um plano comovente de “[...] como um encontro traumático de guerra inspira um homem na vida adulta.” Segundo Roig, o diretor do filme afirmou que se inspirou nas histórias de guerra contadas por seu avô.

Roig, assinala que Wilcox, um jovem diretor e produtor de cinema, possui a pro-priedade de narrar de forma delicada os “[...] horrores vividos durante a II Guerra Mundial na Alemanha nazista, e que fala de temas de profunda complexidade com rara beleza e delicadeza: nazismo, opressão, intolerância, redenção, memória, esquecimen-to, reencontros, perdas e ganhos.”

Roig avança em suas considerações ao avaliar que a memória do ocorrido transmi-tido pela película, pode apresentar-se como o unicórnio de porcelana “[...] quebrado, esmagado, tornado quase pó.”, porém para alguns, pode ser restaurada mesmo que apresente as marcas do tempo e de suas ações como “[...] suas fissuras, partes que fal-tam[...]”, em um modo de superação do ocorrido para procurar um mundo melhor. Roig avalia que sem a memória do fato, estaríamos condenados a repetir os mesmos er-ros sem refletirmos e extrairmos lições, aprendizagens e não chegarmos ao crescimento.

Realmente, a pureza presente na jovem e seu unicórnio, assim como posteriormente na entrega do mesmo unicórnio reconstituído pelo senhor, outrora um menino, à se-nhora idosa, menina do passado, reflete a tentativa de superação do fato pela presença da memória. Superação do momento de horror estabelecido pela opressão nazifascista das tropas de Hitler, pela presença da juventude hitlerista “domesticada” pelas ideolo-gias e pelo terror físico da opressão.

O curta-metragem de Wilcox procura apresentar com excelência o imperativo da dominação que se encontra presente pelo princípio da exclusão, da qual os judeus tornaram-se vítimas.

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O LAbORATóRIO PEdAGóGICO NO COLÉGIO E. d. PEdRO II dE PETRóPOLIS

Para o docente foi extremamente prazeroso trabalhar com o curta em sala de aula, principalmente quanto ao livre regime de distribuição e sua assistência individual, mas que logo se transformou em uma “cooperativa pedagógica” objetivando a observação dos detalhes presentes nas cenas e contribuindo para o trabalho que se processou com a análise, avaliação e reflexão, assim como para compreensão dos conteúdos curricu-lares da área de história, cuja contextualização preponderava, mas que reproduziam abordagens que poderiam ser trabalhadas em filosofia, sociologia e geografia, de forma multidisciplinar caso ocorressem espaços temporais comparativos, para um convite aos demais docentes das respectivas disciplinas – o que ficou para outra oportunidade. Cla-ro, sem contarmos com a proposta de língua portuguesa que poderia criar elos com a linguagem tanto simbólica como cinematográfica apresentada.

Não se apresentou como competência do estudo a realização de uma crítica ao conteúdo a ser abordado pelo professor no primeiro bimestre em História Geral, mas alguns comentários podem ser tecidos, principalmente sobre o qual se apresenta de certo modo desconexo e isolado na passagem dos tópicos exigidos pelo currículo, se-cundando ao de História do Brasil, República Velha, exigindo assim do professor uma completa contextualização do tema “Guerras Mundiais no século xx”, principalmente quanto às habilidades e competências exigidas que se encontrem solitárias na proposta:

- Identificar os significados geo-históricos das relações de poder entre as nações;- Discutir o genocídio no contexto das Guerras Mundiais: o Holocausto e as minorias dissidentes;- Compreender os conceitos de Fascismo e Nazismo.

Mesmo sendo considerado que a etapa final de História Geral no segundo ano do Ensino Médio exige a compreensão de conceitos sobre “Imperialismo”, observamos que existe a necessidade de relacionamento entre os tópicos, que passam por uma re-visão que o programa nem o tempo consideram. Todo currículo deve ser alinhado às exigências de um contexto educacional o qual se encontra vinculado ao social, assim sendo, mesmo que estes se encontrem de acordo com os PCNs, pode ser observada a presença de distinções e desconexões quanto à formulação do que se denomina de “Currículo Mínimo”.

Mas, mesmo neste quadro de comportamento curricular, procura-se fornecer as condições necessárias ao desenvolvimento da temática a ser abordada, por ser meta do planejamento educativo, e exigência de suas aplicações pelo ponto de vista dos organi-

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zadores do SEEDUC e que atende as suas necessidades ideológicas, como se confirma pelas ideias de Michael Apple (1997), na qual o currículo sempre se apresenta como “produto de uma seleção”. Mas não evita que possamos estabelecer uma maior crítica sobre o produto curricular proposto.

Observamos ainda que o ideológico se faz apresentar em suas funções quando ainda no segundo bimestre são exigidos dos terceiros anos conhecimentos e análise dos ciclos revolucionários, tanto o russo como o cubano, desconexos das exigências anteriores, já que um é integrado ao mesmo em seu quadro de consequências e o outro encontra-se distante da contextualização do plano histórico social. Nesta nova oportunidade apro-veitamos para incluir, pelos mesmos procedimentos, documentários com duração de quatro minutos ilustrativos sobre os movimentos assinalados71.

O laboratório se iniciou por uma clara exposição dos objetivos da exibição em sala de aula, principalmente sob a forma tão diferenciada de apresentação do curta-metra-gem, que se aproveitada configuração presente do celular como ferramenta de exibição disponível a nível tanto individual como coletivo na turma, provendo novas possibili-dades de exibições em demais ocasiões, assim como novas assistências que conduzem a que ocorram reflexões necessárias a este trabalho.

Na oportunidade justificou-se a disponibilização por intermédio do Bluetooth, meio pelo qual já transcorrem quatro anos de experiências realizadas na área de história na mesma instituição escolar, tanto para distribuição de apostilas e textos auxiliares, como para receber tarefas realizadas imediatamente em sala de aula, já que a denomina-ção do celular poderia ser ajustada para o nome do aluno no processo de identificação quanto à entrega de trabalhos que seriam arquivados no celular do professor.

Neste caso aproveitou-se da oportunidade para promover um histórico das vantagens didático-pedagógicas da utilização do sistema Bluetooth em sala de aula e confirmando o que a TIC com sua experiência em inúmeros centros vem fornecendo como realidade do celular e do Bluetooth funcionar como preciosa ferramenta didática para a aprendi-zagem de conteúdos de diversas disciplinas.

Observação importante a ser compartilhada com os alunos é a clássica nota de Moço (2010) destacada dos estudos de Marcos Napolitano, de que qualquer que seja o meio de oferta ou exibição da película, não pode de forma alguma descaracterizar a

71 Capítulos do seriado Testemunha da História (2001), narrado por Boris Casoy, originalmente produ-zido pela BBC, British Pathé e a Rede Record (220 minutos de produção). Documentário que procurou dividir o tema Século xx por décadas compactadas em cinco capítulos e posteriormente composto pelos fatos e acontecimentos mais importantes ocorridos em cada década, com capítulo e data. Ilustrado a partir de fotos ou imagens, composto por cenas de cine jornais ou mesmo de jornais de TV, fragmentado abordando a maioria dos acontecimentos da história o que lhes fornece a característica de curtas-metragens que podem ser melhor trabalhados didaticamente ao ser exibidos.

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importância do cinema como um objeto cultural, o que pode reafirmar a importância do laboratório.

Drama, ficção ou documentário, curta ou longa-metragem, como afirma Moço, são inúmeras as opções de trabalho sendo possível utilizar-se um imenso conhecimento sobre o uso dos filmes e que se encontram sistematizados em inúmeros trabalhos e publicações.

quando da realização do laboratório, aproveitou-se a oportunidade dos conteúdos curriculares de História procurando auxiliar na compreensão destes, principalmente quanto pela exposição pedagógica do período entre guerras mundiais como já citado, desenvolvendo a abordagem da origem e evolução dos totalitarismos neste período do século xx. A exposição deteve-se no processo de execução do holocausto pelo nazismo e de sua política de “purificação das raças”, abordando a questão da criação dos campos de concentração e extermínio como o de Auschwitz, clássica abordagem referenciada em todos os trabalhos que seguem a teoria de Adorno quanto ao processo de conscien-tização na elaboração de uma Educação Emancipada.

Anterior aos movimentos de distribuição e assistência, procuramos também dis-correr sobre as questões técnicas do curta-metragem, tais como o diretor, seu histórico, sua entrevista, o trabalho com atores amadores, a equipe, o processo de premiação no festival do YouTube, a condição de distribuição gratuita pela internet, assim como de sua apresentação no Festival de Cannes.

Além dos vários e diversificados significados que já discorremos e dos presentes no mundo religioso e no universo mitológico que tão bem nossos jovens conhecem e con-templam na atualidade e os conduz a render presença em uma literatura juvenil, que de tão especializada já ganhou o universo do set de filmagens, a partir do magnífico “A Lenda”, de Ridley Scott72 (1986). Obra cinematográfica que o apresenta de forma sedu-tora, e onde o ser selvagem torna-se domesticável apenas para uma donzela de coração puro. Ser lendário muito rápido, forte, que habita jardins.

Trabalhadas as proposições emocionais que marcam consideravelmente a assistên-cia de apenas três minutos, com um conteúdo pleno para abordagem contextual e sim-bólica. Focado o tema estudado, como também o ambiente sociocultural da época em que o mesmo se desenvolve e sua presença na abordagem, assim como a liberdade que foi estabelecida para que se assistisse o mesmo e compartilhassem isoladamente ou em grupo o curta-metragem, diferentemente de uma assistência clássica como a realizada em um cinema; assim como o compartilhamento das reflexões que ocorreram em sua maioria em dupla ou trio, e que contribuíram para a reflexão maior presente no debate

72 Diretor de filmes como "BladRunner: O caçador de androides” e "Thelma e Louise", que vinte e quatro anos depois do lançamento de “A Lenda” inspirado pela contextualização de suas pesquisas, e convidado para o festival de curta-metragem, elegeu o unicórnio como temática central.

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que se seguiu com a mediação do professor, facilitando assim o trabalho pedagógico que poderá ser desenvolvido posteriormente.

Por isso, cada filme pode, perfeitamente, conter em si sentidos diversos e mes-mo conflitantes, pois como afirma Pierre Sorlin, “o sentido fílmico não é uma significação inerente ao filme, mas são as hipóteses de investigação que permi-tem revelar certos conjuntos significantes. (NOVA, p.11)”

Durante o debate, o professor aproveitou para realizar indicações de leitura de fragmentos de textos de diversos historiadores e de assistência de inúmeros filmes re-lacionados com o tema, promovendo o destaque para obras anteriormente citadas, de documentários considerados clássicos, como o de Alain Resnais “Nuvem e Neblina” (1955) e o de Peter Cohen, “Arquitetura da Destruição” (1982).

O primeiro, um documentário que alterna imagens entre o passado recente e hor-rendo do cotidiano do Holocausto e o tempo presente e crítico da produção, dez anos após o final das II Guerra. A obra é apresentada com imagens em preto e branco e a cores. A primeira parte de “Nuit et Brouillard” apresenta as ruínas de Auschwitz, en-quanto o narrador Michel Bouquet descreve em um andamento lírico a ascensão da ideologia nazista. O filme continua com metáforas indigestas da vida em Schutzstaffel, dos prisioneiros famintos nos campos. O narrador prossegue, abordando o sadismo infligido aos presos condenados, incluindo tortura, amputações inúteis, experimentos médicos e científicos, execuções e prostituição brutal das judias, que eram alimentadas para ficarem fornidas e serem violadas. O próximo assunto é mostrado completamente em preto e branco e mostra imagens das câmaras de gás, fornos e pilhas de corpos. O tema final do filme retrata a libertação do país, a descoberta do horror nos campos de concentração e o sofrimento causado pelo Holocausto, assim como a responsabilidade legada às gerações futuras.

Já o segundo documentário apresenta, de maneira clara, como a propaganda e a mídia tornaram-se um poderoso instrumento de dominação, quando bem aplicada e combinada com técnicas adequadas. Hitler detinha conhecimentos estratégicos de mí-dia e os utilizava de forma impressionantemente para conseguir seus objetivos. Mídia e técnicas de persuasão conduziram os alemães ao convencimento de que os judeus não poderiam estar em ascensão financeira, morando em casas bonitas, enquanto os alemães puros, de raça superior ficavam por baixo, morando em casebres.

Na experiência pedagógica desenvolvida no Colégio Estadual D. Pedro II de Petrópolis, com suas turmas de terceiro ano do ensino médio, ocorreu a quebra de dois costumes comuns às exibições cinematográficas tradicionais, ou mesmo as que se estabelecem de forma comum nas salas de vídeo presenciais nas escolas, no primeiro,

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“O cinema acontece, preferencialmente, em salas escuras; imagens precisam de um foco de luz para iluminarem-se em telas claras.” (p.5). Com o laboratório procurou-se se contrapor ao tradicional e foi apresentado em uma sala de aula, sem compromisso de horário; quanto ao segundo mito, sem compromisso de exibição para o conjunto das “grandes massas” (p.5). Mas neste laboratório ocorreu individualmente ou em pequeno grupo, oferecido aos alunos dentro de suas disponibilidades, distribuídos de forma não comercial, mas sim pelo Bluetooth, mais precisamente pelos celulares, desmistificando também o caso das telas grandes e passando em telas pequenas.

Neste caso a sensibilidade ao apreciar por suas possibilidades pode transformá-lo em um veículo artístico, democrático, socializável e reflexivo, por uma “dimensão da experiência humana que transcende os limites da inteligibilidade apenas racional.” Como afirma Coutinho (p.6), “Arte evoca, antes de tudo, a emoção”, e a pequena película possui este comportamento, o de uma obra de arte ao alcance de todos pois se alonga pelos nossos sentidos e nos conduz a compartilhar com os demais a emoção percebida, assim como possibilita a construção de subjetividades por mais incrível que possa parecer em uma sala de aula e por intermédio de um celular.

Favorece a permuta de experiências entre os alunos, possibilita um enriquecimento cognitivo como nenhuma outra proposta pedagógica poderia oferecer, um exercício de sensibilidades e conhecimento contextualizado em um tempo histórico oferecido pelos currículos educacionais da própria disciplina.

A experiência pode se ampliar a partir do momento que fornecida as ferramentas apropriadas os alunos aprendem a enxergar. Como afirma Coutinho, a sala de aula é um “[...]espaço de troca e de construção coletiva de sentidos.” (p.6), assim, o bluetooth, a nosso ver, facilitou esta empreitada, submetendo a todos a possibilidade de verificar quantas vezes considerar a mensagem estabelecida, discutir e permutar experiências.

Coutinho (2009) afirma “filmes em salas de aula precisam ser vistos com atenção”. Sendo neste caso o de um curta e presente em um celular, favoreceria esta forma “ego-ísta” de assisti-lo, “saboreá-lo” em todas as suas possibilidades sensitivas, inclusive a de ser ouvido com a máxima atenção pelo fone, possibilitando a construção de outros sen-tidos. Porém, verificamos que muitos dos alunos o assistiram em dupla aproveitando para a formação de conceitos.

Sua apresentação na escola contribuiu não somente para a veiculação de conteúdos culturais, mas também para a construção de propostas de reflexão e análise das imagens ex-postas. Principalmente pelo fato do curso em que foi exibido, seriado regular, se diferenciar do curso técnico especifico de produção de imagens que no próprio Colégio ocorre.

O Unicórnio, não sendo demais repetir, é um drama, mesmo que com rápida apresentação, e que apresenta uma expressão contextualizada de um acontecimento

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histórico que pode facilmente conduzir a avaliação de conceitos; um drama que pode estabelecer uma reflexão sobre os valores humanos e sociais, principalmente os de con-teúdo ético e moral. Enfim, o curta traduz uma realidade, que mesmo expressa em um cenário de ficção, expressa uma proposta de cotidiano que pode ter acontecido e que traduz como comum aos demais cotidianos vividos, mesmo que apresente o “ponto de vista de um diretor”, a “visão de seu realizador” (COUTINHO, 2009, p.7).

Algumas polêmicas se apresentaram, principalmente a partir da contextualização conceitual em sala de aula do que se apresentava como “juventude hitlerista”, onde inúmeros alunos afirmaram que os jovens não eram responsáveis pelo processo de ma-nipulação e dominação predominante na época, mas que a conscientização apresentada pelo jovem e sua compaixão foram sinônimos de que os princípios de formação básica e familiar sempre prevalecem nos valores que são adquiridos.

O “Unicórnio de Porcelana” não “extrapola os currículos”, obedece a expressão estabelecida de um espaço-tempo por apresentar certo momento na história da socie-dade, já que se insere também na construção pedagógica de uma “história do tempo presente”, visto que traduz o estudo comparativo do totalitarismo em um tempo onde se apresentam as “novas direitas”, conforme a tese de Da Silva defendida a partir do LATHTEMP, Laboratório de Estudos do Tempo Presente da UFRJ.

Coutinho ainda afirma que o filme desde que escolhido pelo professor procura construir sempre novos sentidos, mas nunca se fechando e possibilitando que se pro-cessem ciclicamente outros sentidos e linguagens (p.8). Cabe então ao professor situar o filme conferindo a ele um sentido próprio e não distante da proposta curricular com isto integrando o mesmo às suas atividades pedagógicas. Porém o mais importante, segundo Coutinho, é o de “vivificar o tempo de todos e o de cada um” (p. 7), possi-bilitando a avaliação da abordagem temática presente na proposta ideológica que se encontra contida na película.

CONSIdERAÇõES FINAIS

Considero que o curta-metragem surpreendentemente cumpriu os objetivos almejados pelo projeto na instituição, principalmente no laboratório efetuado nas turmas do terceiro ano do Ensino Médio do Colégio, promovendo de modo espantoso sua mensagem pelos demais alunos do próprio estabelecimento, já que sua distribuição se propagou por turmas e alunos que não se encontravam presentes no laboratório, mas que demonstraram interesse em compartilhar o conhecimento que as turmas do laboratório realizavam.

A propagação do curta, assim como da mensagem, cujo retorno se realizou por in-termédio de reflexões realizadas em conjunto pelos estudantes apontou não somente para

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a socialização na etapa de contextualização pedagógica das atividades, como também pela forte presença de analise nos textos da mensagem predominante, da necessidade de uma educação emancipadora que procure evitar no seio da sociedade os acontecimen-tos que cotidianamente são veiculados pela mídia televisiva, apresentando a barbárie como uma ação banal presente nas cidades, o que fortalece os princípios fundamentais de Adorno que abordamos.

O curta demonstrou ser uma ferramenta oportuna para utilização durante as aulas e com operacionalidade pedagógica não somente para complementação do trabalho curricular de disciplinas, como também para concretização dos postulados didáticos a ser executado pelos próprios estudantes, fato já comprovado por inúmeros ensaios publicados.

Outra revelação considerável no projeto foi a presença em todas as turmas, mesmo se tratando de uma escola pública, de celulares com tecnologias modernas capazes de transmissão como de exibição de curtas-metragens e documentários reforçando as pro-postas das TICs e demonstrando que não seriam necessários, nestes casos específicos, aparelhos sofisticados ou de laboratórios de informática, ou mesmo de salas especiais para exibição, tornando oportunas as probabilidades pedagógicas no decorrer das aulas sem prejuízo de sua evolução ou de movimentação pela escola por parte dos alunos, o que fatalmente poderia prejudicar as demais turmas em seu trânsito.

O Bluetooth demonstrou também a operacionalidade em sala de aula para o cum-primento de tarefas e empreendimentos como o de propagação de vídeos e documen-tários, assim como para a geração de textos, apostilas e outras produções realizadas pelo professor que possibilitam um maior contato com a produção de conhecimento mediada aos alunos após a contextualização de suas reflexões e a expansão de sua dialo-gicidade que apresentou uma imensa interação e permuta de informações.

Não poderíamos também deixar de registrar a excelência do curta-metragem de Wilcox keegan como um material apropriado para desempenho pedagógico nas inú-meras áreas do conhecimento que poderiam ser avaliados, como de sociologia, filosofia, religião, literatura, entre outras. Aponta também para a carência na produção de pelí-culas como esta para aproveitamento pedagógico em sala de aula sob o mesmo sistema, o que consideravelmente elevaria a compreensão didática das disciplinas, assim como facilitaria a exposição dos docentes durante suas aulas.

Por outro lado com o curta-metragem constatou-se a transmissão de princípios que são a base do método educacional de Adorno, apresenta um significado diferente para o aprendizado, pois estabelece o princípio de reconhecimento da diferença presente no drama ficcional e de como a conscientização deste processo torna-se importante para o desenvolvimento do indivíduo e da sociedade ao lutar contra a dominação e o pre-

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conceito que se encontram condicionados na alienação, ou mesmo na consideração de banalização dos eventos, fato tão comum na contemporaneidade.

Auxilia no processo de desenvolvimento da autoestima, firma o respeito pelas et-nias, pelas diferenças sociais, por sua cultura, por sua organização familiar, sua lingua-gem, também por suas predileções, que tanto a sociedade geralmente estigmatiza as considerando como inferiores.

A educação emancipada apresenta este nível de consciência e de valorização de princípios de universalização, combate a discriminação que se encontra presente na dominação cultural dos grupos sociais principalmente por intermédio do preconceito, e constrói uma realidade de valorização não somente de planos culturais mas também dos valores étnicos. Neste caso observamos que o curta-metragem “dialoga” não somente com a turma, mas por intermédio dela com a própria escola no seu contato e na expansão das suas ideias. Estimula não somente o combate aos elementos que atentam contra as diferenças, mas também contra sua própria cultura promovendo uma maior autoestima.

Seria preciso tornar conscientes neles os mecanismos que provocam neles pró-prios o preconceito racial. A elaboração do passado como esclarecimento é essencialmente uma tal inflexão em direção ao sujeito, reforçando a sua auto-consciência e, por esta via, também o seu eu. (Adorno, 2003, p.47)

A atividade pedagógica desenvolvida neste laboratório passa a interagir com os alunos, mantendo contato com a realidade cultural dos mesmos e despertando sua consciência para o desenvolvimento promovendo um maior rendimento escolar a par-tir do resgate de suas condições.

A cultura do aluno também é a cultura da escola, se desejamos transformar a edu-cação devemos reconhecer as condições deste plano cultural que se apresenta no coti-diano do trabalho educacional. A presença do celular, que deixa a esfera da restrição para se enquadrar na área das ferramentas pedagógicas é consagrar elementos da cultura contemporânea do aluno e de seu habitat cotidiano que passam a integrar o processo pedagógico do universo da sala de aula, acrescentado pelo Bluetooth e pelo sistema de projeção combinada.

Mamede e Duarte ressaltam o fato de Breton destacar que entre os estudiosos da importância dos novos recursos tecnológicos se encontrarem grupos para os quais é importante reconhecer e aproveitar as vivências dos alunos com as “[...] tecnologias que estão para além do espaço escolar, no sentido de desenvolver eficientes práticas pedagó-gicas.” (p. 770), como o caso estudado da dobradinha celular/Bluetooth.

Segundo as citadas autoras as TICs são capazes de promover informação, comunicação, interação, colaboração e, em consequência disso, de construir novos conhecimentos,

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saberes pedagógico. Destacando-se para tal principalmente o processo de interação que é conceituada como a ação recíproca de duas ou mais pessoas, conjunto das ações e relações entre os membros de um grupo ou entre grupos de uma comunidade como a educacional, onde se pressupõe a existência de diálogo, mas que nem sempre este resulta em efetiva colaboração, sendo fatores encontrados no processo de realização do laboratório escolar.

O laboratório realizado reafirmou todos os pressupostos levantados pelos autores mencionados além de confirmar a teoria do “paradigma inovador” de Behrens e apon-tar para a presença fundamental e diferenciada do curta-metragem em sala de aula com livre exibição e espaço para troca de informações entre os estudantes e o docente, assim como de estreitar o trajeto que conduz a necessidade de exercícios pedagógicos de refle-xão no Ensino Médio público, considerando o celular, assim como seu “companheiro” o Bluetooth como realidades de “portabilidade pedagógica” na atualidade escolar.

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A EXPERIÊNCIA dE PROduÇÃO dE JOGOS NO ENSINO dE FILOSOFIA

Autoras: Bárbara Martins Gomes; Taís Silva Pereira

Palavras-chave: Jogos, Filosofia, Ensino.

INTROduÇÃO

A volta da obrigatoriedade no ensino de filosofia enquanto disciplina, junto com a sociologia, é recente através da Lei 11.604/08. Até então, como observou GALLO (2009) a trajetória da inserção da disciplina no currículo escolar foi historicamente inconstante, apesar de se apresentar já com missão jesuítica no Brasil (CARTOLANO, 1985). O vácuo que perdurou entre a ditadura e início deste século tornou escassos os materiais didáticos, a despeito de algumas publicações voltadas para o seu ensino. Nes-te sentido, o retorno da filosofia nos currículos nacionais, trouxe consigo o desafio de repensá-la no ensino médio nas épocas atuais, envolvendo discussões sobre a produção didática que almejamos para a formação integral dos estudantes.

O projeto de extensão “A Filosofia na Construção de Jogos” nasceu de questões concernentes à prática de sala de aula e dizia respeito às possibilidades de uso de mate-riais instrucionais que fossem além da utilização do livro didático. Ele foi desenvolvido em conjunto com os alunos do ensino médio integrado ao técnico do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca - Campus de Nova Iguaçu, no Es-tado do Rio de Janeiro. O projeto tinha como objetivo a elaboração conjunta de jogos, entre docente e alunos, que posteriormente pudessem ser utilizados por demais profes-sores de filosofia como recurso didático no ensino de filosofia. Mas, também poderia estar destinado a aproximar questões filosóficas do grupo em geral, uma vez que sua culminância se dava na apresentação do jogo pronto na Semana de Extensão, da qual a instituição escolar participa todos os anos.

Toda a abordagem teve em vista o horizonte da prática filosófica. Um jogo me-ramente historiográfico não nos aproximaria de seu âmbito, uma vez que o acúmulo deste tipo de informação não concerne necessariamente à filosofia, mas à história do pensamento ocidental. Ao mesmo tempo não foi nossa intenção excluir o aspecto in-vestigativo da filosofia, em que o sujeito, por uma vontade que lhe é própria, possa perguntar, questionar e confrontar conforme sua necessidade. Simultaneamente, pro-curamos não dar um caráter estritamente científico ao jogo, pois, apesar de não ser possível nossa afirmação de que a filosofia é acientífica, tendo em face seu caráter por

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vezes investigativo, podemos afirmar que a filosofia extrapola os limites da ciência, que, sim, nasce em seu leito, mas não pode colocar-se como determinante daquilo que é sua origem. Tal asserção é vista em Heidegger, quando este afirma que:

Portanto, se dizemos que a filosofia não é nenhuma ciência, e se a ciência não é a ideia ou o ideal a partir do qual a filosofia pode e deve ser medida, então a tese que recusa à filosofia o caráter de ciência não pode afirmar sem dificul-dades que a filosofia está tomada por uma falta de cientificidade. Se algo não pode e não deve ser ciência, então a falta de cientificidade não lhe pode ser imputada como uma falha grave. Já ouvimos, porém, o seguinte: a afirmação de que a “filosofia não é ciência” não diz que ela é acientífica; se é que acientí-fico significa chocar-se com as normas e métodos da ciência. (HEIDEGGER, 2009, p.17)

De forma análoga, Wittgenstein nos aponta: “A Filosofia não é uma teoria, mas uma atividade. Um trabalho filosófico consiste essencialmente em elucidações”. (WIT-TGENSTEIN, 1968, p.76). Assim, para que haja ao menos o vislumbre da filosofia é necessário o estar em curso, estar a caminho - construir um caminho. E, o construir é sempre a partir de nós, do que somos. Construir um caminho é por-se em caminho e permitir assim um encontro, uma relação com as demais coisas. Deste modo impõe-se aqui novamente uma divergência, talvez a maior, entre ciência e filosofia. Enquanto a ciência por vezes perde-se na técnica e trata com aquilo que não tem proximidade com o homem, a filosofia trata do que concerne ao próprio do homem. O caminho da filosofia é, nessa medida, uma busca por si mesmo, e isto, buscar a si mesmo, significa empreender uma tentativa de compreender e aproximar-se - chegar onde já se está - do seu modo de ser em meio às relações com o real. Em outras palavras, a filosofia aponta para a atividade do pensar, algo que fazemos de forma mais ou menos sistematizada. Ao fim e ao cabo, a prática filosófica é perguntar por si mesmo a partir de um rigor que lhe é próprio.

Com esses pontos ao nosso horizonte é honesto perguntar se existe real possibilida-de do ensino da filosofia, do estar em curso o filosofar. A filosofia é uma possibilidade humana, mas não existe uma fórmula ou método específico de como filosofar. Como dissemos, é necessário por-se em caminho, colocar a si mesmo em caminho, e isto é algo que diz respeito somente ao indivíduo – o que não significa um solipsismo, uma vez que já falamos de um lugar compartilhado. Poderíamos em nossos jogos realizar um imenso esforço para abordar sistematicamente sua historiografia: suas escolas e sis-temas, as principais questões ao longo dos séculos, os gêneros textuais utilizados pelos filósofos em seus escritos e tudo que pudesse contribuir para uma ampla visão histo-riográfica da filosofia. Ainda assim, não conseguiríamos uma aproximação da atividade

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filosófica, e isto porque a filosofia, como nos apontou Wittgenstein, é uma atividade, não uma teoria. à filosofia não basta o acúmulo e sistematização de informações. É necessário, como dizemos, o estar a caminho e construir um caminho, tendo sempre em vista que construir é também destruir e, partindo de Wittgenstein em relação à elucidação, colocamos que estar a caminho é também sempre elucidar: fazer ver a si mesmo. Desta forma, não abandonamos a história da tradição filosófica, mas partimos dela para pensarmos o momento presente. De certo modo, o que pretende-se com a elaboração de jogos é um exercício de articulação entre os problemas com os quais nos deparamos com uma tradição de pensamento que fornece o solo a partir do qual nossos questionamentos acerca de nós mesmos e do mundo faz sentido.

Os jogos produzidos em três anos tiveram o intuito de levantar questões para serem refletidas. É preciso ressaltar que não se buscou resolvê-las, mas apenas fazê-las apare-cerem ao estudante, em uma atividade que busca aproximar-se do curso da filosofia. E esta busca, por seu turno, não pode ser, pelo menos no momento escolar, um exercício isolado. Antes, ele já pressupõe um espaço compartilhado de atuação, no qual os agen-tes praticam o uso argumentativo para se definir neste processo. Este caráter dialógico, ou melhor, intersubjetivo, consiste no desenvolvimento da capacidade de oferecer e receber razões acerca de um determinado tema, constituindo espaços comuns de com-preensão, tal como aponta o filósofo Charles Taylor:

Podemos falar de ‘espaço comum’ quando as pessoas se reúnem num ato concentrado para algum propósito, seja ele o ritual, a fruição de um jogo, a conversação, a celebração de um evento importante. Seu foco é comum, em vez de meramente convergente, por ser parte daquilo que é comumente compreendido, que as pessoas estão presentes com vistas ao objeto comum, ou propósito comum, juntas, em vez de cada pessoa simplesmente estar, a partir de si mesma, preocupada com a mesma coisa (TAYLOR, 2000. p. 280).

O processo de construção do jogo abriu um espaço de interação entre os membros do projeto, ultrapassando a mera transmissão do conteúdo. A professora, enquanto me-diadora, alertava para as conexões possíveis na discussão, sendo mais uma participante do grupo de estudos e da formulação do material didático. E, assim, como na passagem supracitada, isto possibilitou a articulação visando o propósito comum: a elaboração e a prática do jogo, não podendo, portanto, ser concebido como somatório de partes isoladas. Esta diferença precisa sublinhada. Enquanto projeto comum, não havia uma preocupação convergente, tal como fazer um bom trabalho com a finalidade de receber uma nota final satisfatória. Neste sentido, a motivação não é necessariamente a ativida-de e o caminho percorrido, mas de forma especial aquilo que esta atividade pode gerar.

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Ao contrário, quando Taylor enfatiza um “espaço comum”, há uma suposição que a atividade é compartilhada de forma profunda, ou seja, ela nos constitui na medida em que realizamos, junto. Sem a pressão de garantir o aval com base em um parâmetro externo – a nota – o percurso é enfatizado.

Com efeito, de forma análoga é a própria atividade de jogar. quando os partici-pantes estão imersos em qualquer atividade lúdica, a finalidade da estratégia e da ação refere-se à própria execução do jogo, e não outro fim externo (ao jogar, estamos imersos em seu caminho, até porque ganhar ou perder é apenas um momento desta atividade e só faz sentido por meio de suas regras implícitas próprias). Neste sentido, o recurso ao jogo é duplamente proveitoso: ao mesmo tempo em que possui um caráter lúdico, também nos mostra que já sempre nos movimentamos a partir de um espaço comum. Sobre o primeiro aspecto, elucida Huizinga:

o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da ‘vida quotidiana’(HUIZINGA, 2014. p. 33).

Na medida em que é uma ocupação voluntária com regras livremente consenti-das, o jogo permite a atuação autônoma dos participantes que estão em igualdade de condições. Ao mesmo tempo, a liberdade do agir está restrita aos limites de tempo e espaço, bem com às regras existentes, isto é, parte de um solo comum para compreensão das jogadas. As regras mais do que estabelecer os limites do permis-sível, delimitam também as possibilidades dentro deste universo. E, acompanhada deste mundo comum que se abre aos jogadores, está o caráter estético da atividade porque depende da motivação - tensa e prazerosa - da atividade de jogar. O propó-sito é comum, corroborando a afirmação de Taylor, e diferente da temporalidade comum. Isto significa que o jogo nos retira do cotidiano, tal como a atividade filosófica enquanto um distanciar-se daquilo que nos parece evidente, nos levando ao segundo aspecto.

Ao tomar a atividade do jogo como um contexto específico de sentido para com-preensão comum, estamos também avaliando o próprio processo de busca concernente à prática filosófica. Apesar de serem diferentes quanto ao término - o jogo possui um fim, um meta, enquanto a filosofia tem por meta uma busca que pode levar toda a exis-tência - ambos partem da ideia de que nossa orientação depende de um solo comum a todos os participantes. Assim, o trabalho conceitual também depende de conexões com uma tradição de pensamento - uma apropriação - a partir daquilo que nos nutre como

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pessoas. E é neste sentido em que a utilização de jogos torna-se proveitosa para o ensino de filosofia enquanto busca pelo que é próprio de nós mesmos.

MATERIAL E METOdOLOGIA

As atividades do projeto se estendiam durante todo o ano letivo e tinham sua cul-minância com a apresentação do jogo produzido na Semana Nacional de Extensão, da qual o CEFET-RJ faz parte. O processo foi feito no espaço escolar da instituição em oito etapas, assim definidas.

1) Definição do tema do jogo, na forma de um problema filosófico, que pudesse ser de interesse do público em geral. Igualmente, neste momento o grupo entrava em acordo sobre o formato de jogo mais apropriado para a apresentação e sua utilização para fins didáticos, levando-se em consideração a interação contínua dos jogadores.2) Levantamento bibliográfico, mediado pela professora, para que o tema a ser aborda-do no jogo fosse estudado e discutido pelo grupo. Esta pesquisa levava em consideração a aproximação entre o pensamento herdado da tradição e nosso cotidiano.3) Leitura e discussão das referências acordadas. Este é o momento de reflexão sobre os conceitos e os problemas centrais do tema escolhido para serem transpostos ao jogo.4) Tradução dos textos escritos na linguagem das regras do jogo estabelecido, ou seja, a produção do manual. É ele que delimita a atuação dos jogadores, com base nos con-ceitos e problemas estudados.5) Uma vez o manual esteja devidamente revisado, inicia-se a construção do material do jogo - que pode ser de tabuleiro, RPG, cartas, etc.6) Testes de jogabilidade realizados pelo grupo do projeto e, eventualmente, com participantes convidados. Este é o momento para revisar possíveis dificuldades para o andamento do jogo.7) Apresentação do produto didático na Semana de Extensão. Os jogos são abertos ao público e mediados por todos os participantes do projeto.8) Avaliação do processo e eventuais revisões. As reuniões posteriores à apresentação do projeto consistem no levantamento de experiência de participação do processo e avaliação sobre possíveis modificações ou refinamento, com base na recepção do jogo pela comunidade escolar.

RESuLTAdOS E dISCuSSõES

Durante os três anos em que o projeto esteve em curso, foram produzidos três jo-gos: Filostecas, Mitologias e Em busca da Justiça.

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O primeiro, Filostecas, abordava aspectos de introdução à filosofia. A ideia, que partiu dos membros do projeto, era de fazer uma aproximação das questões filosóficas à vida da comunidade escolar, distanciando-se da noção de que a filosofia é uma discipli-na difícil e para poucos. Foi confeccionado um jogo de tabuleiro com peças móveis que representavam quatro perguntas orientadoras: “quem sou eu?”; “O que é importante na vida?”; “Como agir na vida?”; “que critérios tenho para afirmar o que é impor-tante?”. O objetivo do jogo era percorrer o caminho da experiência filosófica (através das peças do tabuleiro, representadas pelas perguntas) a partir de respostas dadas por filósofos da tradição, tais como: Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, kant, Nietzsche, Arendt e Sartre

O segundo, Mitologias, foi feito em forma de RPG (role-playing game), em uma tentativa de utilizar a esfera autônoma do jogo para tratar do mito. Os participantes permaneciam no jogo em grupo e podiam interagir entre si no percurso. De forma nar-rada, abordava concepções míticas grega, egípcia, nórdica, ioruba e dos índios Araweté. O principal objetivo era entrever até que ponto nossas orientações de pensamento já repousam em determinadas bases. Para isso, os jogadores eram desafiados a pensarem dentro do quadro de orientações de modos de vida profundamente diferentes, em meio à apresentação de tarefas que surgiam no percurso.

E o terceiro, Em busca da Justiça, foi produzido em forma de jogo de cartas. O grupo selecionou notícias de jornal que pudessem apresentar dilemas éticos aos jogado-res, de forma que estes tivessem a possibilidade de utilizar diversas bases para justificar se o rumo da história apresentada na notícia seria justo ou não. Se em duas rodadas o jogador escolhesse bases diferentes para justificar as ações, ele caía em uma zona de perigo, de onde poderia sair apenas após responder o razão pela qual ele decidiu uti-lizar bases diferentes para justificar se a ação era justa ou injusta e se esse uso poderia apresentar algum problema. Os jogadores poderiam ajudá-lo a sair da Zona de Perigo e também poderiam desafiar-se a cada dilema da rodada.

Primeiramente, é necessário voltar-se para avaliação da própria produção do jogo e ela é, de início, bastante proveitosa. A colaboração na produção de jogos envolve mais do que um estudo sistematizado sobre textos filósofos apresentados. Como as decisões precisam ser acordadas por todos os envolvidos, cada participante precisa estar motiva-do a receber e oferecer razões que justifiquem o cumprimento das tarefas e as reflexões propostas, apontando para o exercício de descentramento e escuta do outro. Nem sem-pre decisões são unânimes, mas elas podem passar por um processo de acordo sobre o que queremos enquanto grupo.

Outro ponto importante e que deve ser salientado é o aprofundamento do que cha-mamos ao longo do texto de “tradução”. O momento da tradução, seguindo a de-

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finição de Porta (2014) é possibilidade de tornar o texto compreensível aos demais, ou seja, torná-lo comensurável, diferentemente, portanto, de reprodução literal do texto. Segundo o autor, a tradução aponta para a efetiva apropriação dos problemas filosófi-cos. No projeto, os participantes possuem duas principais referências textuais (mas, não únicas), a saber: o texto filosófico e o manual do jogo. O texto filosófico supõe um lida específica de leitura que os alunos vão conquistando ao longo de sua formação no ensino médio. A leitura rigorosa, sujeita a interpretações divergentes, a identificação conceitual e sua relação com o tempo do texto e o tempo do leitor, em geral já são promovidas nas au-las de filosofia e podemos pensar, inclusive, em traduções orais e textuais (na forma de res-postas a perguntas oferecidas pelo professor, ou na escrita de textos autorais dos alunos). Todavia, para o projeto há uma tradução da ordem das regras do jogo, não propriamente do discurso oral e textual. Transformar ideias centrais em códigos de orientação para o bom andamento do jogo (o sucesso de sua jogabilidade) depende do exercício de deli-mitação e coerência, propício tanto para atividade filosófica quanto para outros campos do saber. Por fim, a participação de “A filosofia na construção de jogos” requer do grupo (docentes e alunos) a constante avaliação dos passos dados: seja da produção do material, seja da avaliação de si e dos outros no processo, seja da experiência de apresentar o jogo enquanto material didático para a comunidade escolar.

Em segundo lugar, a interação entre os jogadores foi uma característica buscada na atividade de jogar. Procuramos ter sempre em vista a possibilidade dos participantes levantarem entre si questões acerca do tema e também desenvolverem uma visão geral sobre ele. Para isso, em nossos jogos, sempre criamos situações de confronto com po-sicionamentos diferentes aos do jogador, sejam eles dos outros jogadores, personagens do jogo ou filósofos que os desenvolveram ao longo da história da filosofia. Entretanto, para que essa manobra fosse efetiva, era preciso de uma participação ativa dos alunos. Era preciso que eles jogassem por vontade própria e não apenas por obrigação, pois sem isso não estariam no jogo, pois, “antes de mais nada, o jogo é uma atividade voluntária. Sujeito a ordens, deixa de ser jogo, podendo no máximo ser uma imitação forçada”. (HUIZINGA, 2014, p. 10). Na Semana de Extensão, onde foram apresentados os jogos, houve uma resposta muito positiva da comunidade escolar, que interagiu e se di-vertiu com o jogo, mantendo ainda o caráter de seriedade que Huizinga nos apresenta como sendo característico desta atividade. Ao jogar, os participantes tiveram um en-volvimento perceptível com a atividade, e até mesmo curioso, de modo que inúmeras vezes deixavam de lado a questão estratégica e concentravam sua atenção ao debate e aos desafios propostos pelos demais participantes. Portanto, o jogo pode ser uma ótima alternativa de aproximação dos alunos com questões filosóficas, indo além dos tradicio-nais materiais didáticos utilizados nas escolas.

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CONCLuSÃO

A experiência de produção de jogos no ensino da filosofia nos apresenta uma pers-pectiva nova acerca da abordagem utilizada nesta área e nos aponta novos caminhos a serem trilhados, onde há maior autonomia e envolvimento dos alunos, aumentando as possibilidades de que eles coloquem a si mesmos a caminho. Também nos confronta com novas possibilidades de apropriação do conteúdo do currículo da disciplina de filosofia que não esteja restrito a sua própria história.

Ademais, a expectativa futura é que os jogos produzidos façam parte de um banco de material didático, disponíveis para docentes e o público em geral, de forma aberta, isto é, passível de contribuições e reformulações. Afinal, próprios à experiência filo-sófica e atividade de jogar é a possibilidade de refinamento e mudança das formas de orientação tendo em vista a prática diária. Se as regras do vôlei foram modificadas para solucionar mais satisfatoriamente o andamento do próprio jogo, nossas traduções fi-losóficas também abrem a possibilidade de novas soluções para o que somos em nossa relação com o mundo. No ensino, não pode ser diferente.

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CuRRICuLO EM AÇÃO: ENSINAGENS E APRENdIZAGENS CONJuNTAS

Patricia Maneschy (UVA)Sonia Regina Mendes dos Santos (UERJ/ UNIGRANRIO)

Palavras-chave: Aprendizagem. Ensino. Docência. Conhecimento. Currículo.

INTROduÇÃO

O universo das práticas educacionais podem constituir e criar trajetórias e signi-ficações curriculares no sentido de possibilitar novo sentido à formação dos sujeitos envolvidos, bem como estabelecer novas culturas curriculares em questão. Busca-se a formação que não somente seja a desejada, mas a possível e mediada pela apropriação do saber conferido ao exercício da cidadania. A investigação ocorre em uma universidade no curso de Pedagogia com objetivo de formar professores mais críticos em relação ao seu trabalho docente, olhando o currículo de forma investigativa da prática com os alunos e com os movimentos das ações de ensino e aprendizagem.

A metodologia utilizada foi a etnografia, registrando os momentos da prática edu-cativa, as sequências didáticas utilizadas pelos sujeitos professores e alunos, ou seja, o ato educativo como lócus investigativo que envolve a cultura dos ensinantes e apren-dentes em um único contexto de relações que situam a formação dos mesmos no coti-diano escolar e corporificam o currículo.

A relevância deste estudo ocorreu concomitante à investigação visto que em sua trajetória trouxe a desacomodação dos futuros professores em formação em busca de compreender as práticas diferenciadas que estavam sendo utilizadas, instigando assim a busca pela compreensão dos valores teórico-práticos que fundamentam a efetivação da ensinagem e da aprendizagem. Desta forma acredita-se que se possa contribuir com a socialização da experiência ajudando aos professores a reverem e ressignificarem suas práticas educativas, de forma a oportunizar pensar e agir na construção de outro sentido cultural ao currículo que se possui em cada curso nas universidades.

1. O PENSAMENTO TEóRICO E A uNIvERSIdAdE

A intencionalidade docente não é mera correspondência entre o que o aluno deseja e o que o professor espera alcançar em seus objetivos de aprendizagem. Há uma correspondên-cia que nem sempre se desenha comum no ambiente escolar. Como intencionalidade

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não é tão fácil de ser compreendido por docente, o trabalho pedagógico fica totalmente comprometido pelo desconhecimento da ação correspondente ao que se deve propor e realizar. A intencionalidade pode ser perdida no meio das aulas e das vontades e das práticas elaboradas pelos professores ao pensar uma aprendizagem em sala de aula.

Para Morandi (2008, p. 15) “... a educabilidade, como lógica e como finalidade de pertencimento, é uma característica do ser humano. A cultura tem independe da dis-posição intencional de ensinar o outro; pode-se, portanto, falar de “ensinabilidade” do indivíduo”, então educar não depende somente da ação docente realizando as práticas curriculares propostas em um desenho unívoco de matriz, com costumamos fazer nas nossas universidades e faculdades, mas sim de um componente intencional.

Objeto esse que é incontrolável, seja por qualquer alternativa de realização de matriz curricular, mesmo as mais modernas, tendo em vista desenvolvimento de competências e habilidades. Mas do que estamos falando?

Falamos de um componente que estruturado pode ser bem trabalhado pelo pro-fessor e lhe auxilie uma prática mais segura e mais contextualizada com a proposta de formação do seu curso de graduação.

Para Ferraço (2011), quando se refere ao currículo e ao docente como uma relação além das representações dos conhecimentos das áreas associadas e dispostas em uma suposta “grade” de disciplinas que deveriam acontecer a partir dos seus conhecimentos fechados e sem comunicar-se com os demais conhecimentos das outras áreas. Desta for-ma escreve que para se conhecer se almeja um rigor onde a racionalidade científica seja como um legítimo e verdadeiro modo de produzir conhecimentos e uma razão abstrata pode ter a pretensão de construir verdades não históricas e universais, mas que tem a pretensão de construir verdades não históricas, retóricas e isoladas que corre o risco de empobrecerem o pensamento. E deste movimento pode se chegar à palavra domesticar. Não desejamos essas ações e significações para os nossos currículos, mas sim uma aposta em um rigor ético e político que pode ser via um reconhecimento da tradição científica sim, mas em um desejo de cobrir e descobrir melhor a vida e as coerências inerentes à mesma, e ao que se deseja alcançar por meio da educabilidade, o entendimento das dife-renças e a potencialidade das investigações, via formação proposta em um currículo que desafia o status e os direcionamentos que fogem do propósito da formação do estudante.

Para Lopes e Macedo (2011 cita TANNER, 1975, p. 45),

O currículo é definido como as experiências de aprendizagem planejadas e guiadas e os resultados de aprendizagens não desejados formulados através da reconstrução sistemática do conhecimento e da experiência sob os auspícios desloca para o crescimento contínuo de deliberando da competência pessoal e social do aluno? (2011, p. 20).

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Se o currículo é definido além dos conhecimentos formais, então será uma outra perspectiva de trabalho universitário a ser considerado nesse alargamento da prática do ensino e da aprendizagem que representam, diretamente, as políticas para as uni-versidades, os modos como desejam que haja um projeto instituído pedagogicamente coerente com as diretrizes legais e formais do ensino e suas modalidade, e ainda que o aluno seja preparado para inserção social e pessoal no âmbito do mercado.

Creio que a natureza da universidade não poderia encontrar um aporte teórico--prático se não fosse o lugar da experimentação e das descobertas, das contradições para desafiar o pensamento do homem e suas trajetórias histórico-sociais, desenhando caminhos antropológicos na teia de alunos e professores que se inscrevem no dia a dia das vivências dos conhecimentos.

A crise epistemológica, filosófico-antropológica na universidade continua em bus-car compreender como podemos lidar com diferentes públicos e com diferenças de conhecimento dentro das salas de aula brasileiras, na qual tantos projetos nascem sem discussão social e descolocados das realidades institucionais. Nesta perspectiva vivencia-mos as dualidades costumeiras em nossas universidades, convivendo com pensamentos de naturezas diversas e creio, possibilitando a riqueza de inovar. Assim encontramos pensamentos divergentes.

As discussões perpassam por questionar dos processos político-econômicos que le-varam a universidade a um lugar de questionamento da sua própria identidade quando da inferência direta à duas perspectivas: uma sob a capacidade de corresponder so-mente aos ditames dos mercados e das apostas em valores de menos reconhecimento da educação humanista e permanecem as denúncias aos seus objetos constitutivos nas sociedades pós-modernas, por outro lado, reconhecer que a sociedade em modificação em todas as áreas que a constituem precisa de conhecimentos de uma natureza mais complexa e reconhecem que há possibilidades de elaborar outras discussões e que as mesmas devem ser cientificamente colocadas com clareza e experimentação recorrendo as inclusões para uma sociedade diferenciada. Bento (2014) tece uma discussão inte-ressante ao trazer a crítica aos caminhos da universidade pelo legado que perde da ideia de homem, e diz:

A história da Humanidade mostra-nos um horripilante estendal de crimes e ignomínias que abalam, sem cessar, a confiança na ideia e no projeto de Homem. Mesmo na ciência podemos observar fundamentalismos. A crise ecológica, tal como a depressão econômica, que estamos a viver, são em parte, exemplos in-contornáveis e manifestos de fundamentalismos científicos, ligados a modelos e teorias de gestão, de controlo, intervenção e modificação da natureza e da sociedade. (p. 78)

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Embora muitos acreditem que a universidade não cumpre mais seu papel a natureza da mesma não se perdeu, pois continua reflexionando sobre conhecimentos e forma-ção, e trazendo discussões que nos desafiam a questionar o status quo da epistemologia e dos arcabouços contextuais para outras e outras formas e paradigmas organizativos sociais. Em concordância ao crescimento da universidade como lócus que se refaz, con-cordando com o Souza Santos (2014, p. 163),

A relativa liberdade em face ao estereótipo de cientista ajudou-e a criar a ‘persona’ mais adequada aos objetivos da minha investigação. Passe a ter um respeito menos que moderado pelas regras da ciência convencional, especial-mente por aquelas que atulhavam os manuais sobre observação participante, o método de investigação empírica que eu estava a adotar. Cheguei à conclusão de que só violando as regras poderia entender a realidade social e que quanto maior fosse a violação, mais profunda seria a compreensão.

É neste contexto de dualidades epistemológicas que a universidade não para de produzir conhecimentos, e acessar o mesmo é papel fundamental nas salas de aula, laboratórios, bibliotecas e todos os cantos que podemos elaborar novos experimentos.

A partir deste contexto pesquisa-se a sala de aula e o cotidiano da organização do processo de ensino e aprendizagem que são capazes de desafiar a capacidade da ciência de se reformular para esse nosso novo mundo internacionalizado e desfigurado de con-ceitos rígidos.

Compreendendo a ciência elaborada na universidade como espaço-tempo de ou-tros conhecimentos e não novos conhecimentos, traz-se neste texto a pesquisa realizada em salas de aula como objeto de estudo para a formação de professores do próprio curso de formação de professores, e os conhecimentos como interface do saber pensar, do saber articular a práxis sob condição de ciência produzida pelo docente em seu campo efetivo de atuação.

2. A AbORdAGEM CuRRICuLAR AdOTAdA E A INvESTIGAÇÃO

O currículo por competências foi uma decisão, sabemos, por uma escolha da política nacional e nos cabe refletir e questionar os meandros da mesma em função da sociedade que desejamos, mas não significa que deveremos para processos de ensino-aprendizagem, simplesmente porque os que são formados devem manter a reflexão e a ação junto à essa sociedade para que possam cumprir outra real política e sociedades diferentes.

Com esse aporte conceptivo buscou-se no curso de formação de professores na gradua-ção e nas pós-graduações estrito sensu adotar uma postura questionadora e irreverente aos conhecimentos já testados. Nas últimas propostas formativas, encontramos os di-

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recionamentos para abordar nos currículos por competências uma cultura educativa pautada na realização de metodologias ativas.

Justificadas são por apresentar um contexto significativo voltado para a exploração de tecnologias em sala de aula que usem meios das mídias interativas e das discussões em conjunto como uma ação de aprendizagem mais próxima as realidades dos novos postos de trabalho e da necessidade de reflexão sobre o próprio trabalho.

As grandes mudanças educativas não estão no uso somente de aparelhagem, cer-tamente envolve o uso das aparelhagens e o como serão encaminhadas para aprendi-zagem. A partir, então, tomou-se por base dois conceitos para ação educativa em sala de aula: o conhecimento apreendido como conceito significado e contextualizado, e, a compreensão da aquisição do conhecimento deve ser demonstrada para saber se houve transposição didática e transferência do conhecimento para toda e qualquer ação que o aluno venha a aplicar na vida profissional. Essas duas premissas fundamentadas na compreensão de que um currículo por competências não necessariamente é em sua natureza alienante73 mas que pode ser trabalhado de forma a elaborar problematizações tendo por base um projeto que impulsione a pesquisa, a busca pela referência teórica, a descoberta de um conhecimento desconhecido, o encontro com outras áreas de conhe-cimento que não a sua específica. O currículo por competência pode trazer o desafio do que não se sabe e necessita para complementar a estrutura sobre o conhecimento estudado, ou seja, desestabilizar o raso conhecimento empírico para trazer o científico para uma realidade mais adequada e inferida diretamente na prática da aprendizagem. O fazer ganha uma dimensão reflexionada, transdisciplinarizada (navegar por outras áreas do conhecimento que precise para solução de um problema) e compreensiva, sendo construído o critério de cientificidade e um currículo próximo da ação profissional, e como preconiza esse tipo de currículo, a vivência da inovação foi contemplada, mas não necessariamente com uso específico da tecnologia em mídias, mas da tecnologia intelectual em criação de novos conceitos e novos caminhos metodológicos para se apreender conhecimentos. Isso é uma inovação tecnológica sob o ponto de vista que se desestabiliza o status sobre determinado conhecimento trabalhado.

O currículo por competências pode ser elaborado de forma a levar o aluno a fazer percursos de aprendizagem que seja do seu interesse, e neste momento a aprendizagem

73 Compreendendo o currículo das competências em duas épocas marcantes – 60 e 70, no Brasil, carac-terizado para um país que investia em desenvolvimento; e um currículo atual - 2000, no Brasil propõem ampliar a significação dos conhecimentos para atender a uma realidade mais próxima à profissão, e que com todas as limitações que podem ocorrer nesse percurso, que não garantem um currículo inovador ou pode voltar ao fazer da pedagogia tradicional, se integra ao conhecimento quando articulado de forma reflexiva e pode trazer ao aluno mais escolhas do que limitações profissionais.

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em sala de aula deve encontrar um ambiente mais pesquisador e mais comprometedor do conhecimento que fará diferença na prática.

Então fizemos a seguinte experiência vivenciando esse “paradigma” curricular e atendendo a proposta da universidade e dos alunos em questão.

Preciso, eu, ensinar como elaborar um plano de aula, e na qual eu queria enfatizar as concepções e os métodos aplicados, que orientam as escolhas das ações didáticas, para alunos dos cursos de história, letras e biologia que visitam o curso de pedagogia na disciplina de didática. Elaborei uma sequencia didática de três aulas em que ao final estariam capacitados a realizar essa tarefa. Aulas descritas e comentadas no percurso da investigação sobre essa experiência formativa: Iniciamos com um suporte teórico conceptivo conceitual e procedimental. A ação foi: a leitura a priori não ocorreu, de-veriam pesquisar o tema e trazer questões de qualquer natureza sobre o assunto, mas destacando o olhar sobre a questão polêmica: ensinar exige postura ativa do aluno e do professor, então devemos organizar a sala de aula e o plano se aula adequado, então depende do professor os alunos aprenderem. Pronto estava posta uma afirmativa que deveria ser confirmada ou não. Nesta aula, teve início com uma sensibilização a partir três desenhos no quadro sobre a tipologia da sala de aula e as epistemologias do pen-samento pedagógico. E trouxemos as questões dos alunos e fomos colocando em cada círculo as ações que poderiam ser adequadas a cada modelo de aprender em sala de aula. A discussão foi sendo elaborada pelos alunos a partir das perguntas que iram fazendo e tendo como diálogo a problematização e o retorno a pergunta da forma em que o aluno deveria pensar e devolver a resposta. Não foi fornecida em nenhum momento as respos-tas, houve somente espaço para que pensassem entre si as perguntas e a elaboração das respostas. A partir daí colocamos em cada modelo as posturas do aluno, do professor e do conhecimento como identidades das relações que organizavam o modelo da sala de aula. Os alunos nunca tinham percebido que a circularidade do conhecimento é o ator da ação de aprendizagem e não o conteúdo transmitido pelo professor. O conteúdo passou a ser suporte para aprender, essa foi a primeira compreensão para construção do Plano de aula. A partir daí afirmamos que um plano de aula só era possível se o conhe-cimento fosse trabalhado em suas partes em grau de compreensão como foi feito nessa aula. E comentei a nossa experiência dizendo que ela fazia parte de uma sequencia de aulas, e esta era a primeira. Então há sempre uma proposta de conhecimento que deve ser trabalhada com uma organização de sala de aula e do conteúdo a ser estudado. A aula foi encerrada com um conjunto de categorias que deveriam constar no Plano de aula. Solicitou-se que fizessem o plano de aula, a partir de uma referência de um texto de estudos e os fundamentos da aula realizada. Na aula seguinte, a maioria da turma não tinha feito a tarefa. Fui ao quadro e desenhei um modelo de Plano de aula, e pedi que

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fizessem naquele momento em grupo de até 05 componentes no tempo de 15 minutos. Retomamos a aula com a seguinte questão: será que o aluno vai aprender “de verdade”, vai compreender os conhecimentos trabalhados, a partir dos planos de aula elaborados? Cada componente do plano de aula foi então analisado: alunos discutiam entre si e davam exemplos das suas vivências em sala de aula tanto da ação docente como da ação discente. Relatavam como conseguiam aprender melhor, criando métodos próprios a partir do modo como o cada professor tecia um determinado tipo de aula. E discutiram então: objetivos, como deveriam ser feitos, os procedimentos docentes e discentes duran-te a aula com relação desde as posturas com o conhecimento e com a forma de aprender (metodologias) como as posturas na relação com ao mesmo e com o docente e os demais colegas, abordou-se então os aspectos estéticos e éticos. Falamos de conhecimentos cien-tíficos, ou seja, como os conteúdos (teóricos e procedimentais) deveriam ser abordados e quais deveriam ser em função dos planos de aula que haviam construído.

Aqui percebe-se a dificuldade do professor em organizar a sequencia de aulas para que o aluno compreenda e quais seriam os melhores mecanismos para transmitir e fazer com que o conhecimento se torne compreendido pelo aluno. Foi preciso abordar os conhecimentos advindos da psicologia da aprendizagem, de transposição didática, de avaliação, da didática, em especial, sobre os objetivos adequados ao desenvolvimento do pensamento, os recursos de desestabilização e estabilização, o uso de dinâmicas e de técnicas avaliativas para a condução das aulas em sequencias. Emergiram também temas como a relação família-escola, as atitudes do professor e da escola como lócus para esse modelo de ensino aprendizagem.

Nesse ponto os alunos já estavam perguntando quais autores deveriam ler para fun-damentar e aprender mais sobre o assunto. Encerramos esta aula com mais um quadro cheio de referências teóricas e vídeos sobre estudos da prática docente. E a tarefa para próxima aula deveria ser a apresentação de outro plano de aula, elaborado em grupo e a apresentação para turma, de forma consistente e comentada, explicativa das ações do aluno para apreender conhecimentos e da ação do professor para conduzir o momento da aprendizagem, por meio de um “paradigma” de interação em que a mobilização da cognição fosse o mote da significação fundante do movimento da aprendizagem. E a teoria deveria estar presente para ser comentada e mesmo interrogada.

A aparelhagem utilizada sob forma de tecnologia explicita computador, data show, etc. apareceu na terceira aula como suporte, e até mesmo, alguns grupos pediram que os colegas acessassem pelo celular alguns autores, vídeos, comentários sobre aulas inte-rativas. Mas o grande diferencial que pude ler nesta experiência não foi o uso imediato de organização somente de “paradigmas” de uma organização de sala de aula, mas de uma aprendizagem efetiva. É claro que gostaria de trabalhar mais esta sala de aula,

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inclusive, propondo que os alunos utilizassem da cultura maker74 para elaborar ativida-des práticas para aprendizagem dos alunos, por meio dos planos de aula, aplicáveis em história, letras e biologia. Infelizmente, não conseguimos chegar nesta parte. Mas have-rá oportunidades, sempre, de se chegar ao conhecimento de forma mais “profunda” em nossas aulas, desafiando o velho modelo de leiam primeiro para saber depois a partir dos comentários que vou fazer em sala de aula! Como dizem a maioria dos meus colegas no ensino superior. E, repetem e repetem, o aluno tem que ler senão não sabe do que estou falando. Sim, a leitura fará com que a aprendizagem tenha coerência e clareza para pensar os novos instrumentos, mas não garantem aprendizagem efetiva sozinhas. É preciso desestabilizar o que já trazemos de conhecimentos sobre a sala de aula de uma maneira em que as ações se afastam dos discursos docentes.

3. CONSIdERAÇõES FINAIS

Christensen (2009, p. vi), quando fala da inovação em sala de aula se refere em rupturas como “... um poderoso conjunto de teorias que descreve como as pessoas in-teragem e reagem, as origens dos comportamentos e como as culturas organizacionais se formam e influenciam decisões...” e na prática as escolas vêm tentando lutar para progredir na resolução de seus problemas nos processos de ensino e aprendizagem. Não se refere somente ao uso das tecnologias para “dar” aulas, mas para criarmos ou-tros modos de tornar o conhecimento significativo usando de outros contextos, como por exemplo, a sala de aula invertida, e não necessariamente fazer uso da aparelha-gem tecnológica, mas usar da tecnologia em processos criativo-cognitivos. Foi o que tentamos perceber nessa experiência, que em verdade o que traz de inovação? Penso que já fazíamos muito isso, mas não se pensava que a cognição deveria ser o mote da significação elaborada como método pelo próprio aluno. Isso porque ficamos sé-culos tentando demonstrar por muitas teorias pedagógicas que os alunos precisam aprender conteúdos e estes podem ser interiorizados com comportamento formal sobre os meandros da ciência única e absoluta. Mais do que nunca a subjetividade humana avança percebendo que a tecnologia deve sim ser usada, mas com postura de reparável informação e a responsabilização é humana na forma de reconhecimento de si mesma inferindo sobre a sociedade que usa essa tecnologia pelo modo que lhe for necessária. Mas quantos autores sobre isso? Muitos durante as últimas décadas. Porém, o que retoma de inovador então, perguntariam os pedagogos que estão muito incomodados com a questão?

74 Denomina-se Cultura Maker o movimento do fazer. Aprender fazendo, executar para tornar conhe-cido. Experimentar.

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E sobre esse tema, apresenta-se algumas considerações: há “um quê” de compre-ender a posição do aluno como interlocutor não como um a mais dos atores no seu processo de aprender, não bastando enfatizar a “boa relação” professor-aluno, tratando-o como amigo nessa escolarização, não é isso, mas de tornar real a premissa da aprendi-zagem uma área de efetiva e real troca de reflexão sobre os conhecimentos que estão sendo elaborados em um clima de tranquilidade em que o conhecimento e a ciência se descrevem em constante produção, produto e mutação.

Tomando Christensen (2009, vi) como referência para pensar a frase que disse, “Classe é também o ambiente em que a maioria das nossas experiências em educação toma forma.”. Será preciso rever o modo como conduzimos as aprendizagens, sim, mas não sabemos quais caminhos muito bem tomar. Uma vez uma colega fez uma ativida-de em sala de aula em que tampou os olhos dos alunos para que pudessem perceber o espaço e a ausência da nossa interação com o mesmo. Uma aluna se negou a vendar os olhos e disse que não precisava desta dinâmica. E a professora ficou sem ação, não sa-bendo o que retrucar associou a forma de avaliação, recorreu em erro por estar alocando o processo de aprendizagem sob o viés da punição. E a aluna retrucou então, me diga sob qual critério está fazendo essa avaliação, e então a professora não soube responder. Sim, é uma questão técnica também porque deveria ter preparado a aula prevendo to-dos os aspectos, mas não teria, mesmo assim, garantias de que sua inversão de métodos pode ocorrer em modos de assistir a diferentes pensamentos em sala de aula. De qual-quer forma não estamos sujeitos a perfeição, ainda bem! Mas precisamos pensar que os conceitos estão por serem aprimorados. Nesta perspectiva confundimos modelos pedagógicos e não conseguimos realmente ultrapassar a disciplinaridade estrutural, por exemplo, como nos apresenta Christensen (2009, 177),

Se realmente pretendermos começar a transmitir conhecimentos aos alunos de maneira que corresponda a como suas mentes são ligadas para aprender, isto significa que a ciência da avaliação precisará passar por significativa evolução. Se quisermos ensinar química de maneira diferente a pessoas [...] que tem dificuldades com matemática e química, ensinadas se maneira convencional, mas, ao mesmo tempo, são abençoadas com inteligência corporal sinestésica, teremos de descobrir maneiras de comparar seu domínio, de um conjunto de material, com a habilidade demonstrada por alguém cuja inteligência se manifesta no reino da lógica e matemática.

Nessa densidade de mudanças na área educativa, há uma linha de pensamento fi-losófico que fundamenta as reflexões no cotidiano das experiências docentes e vem estabelecendo aportes mais coerentes com propostas para mudanças curriculares no ensino superior. Trata-se de pensar que a organização do pensamento que funda nossas

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concepções estão na interpretação, e diretamente relaciona-se a cognição das represen-tações que construímos para organizar esquemas mentais e de comportamento. Lidar com a linguagem que penetra em campos antes não permitidos, e que fundam o tratamento do sentido por sua inexatidão, trazendo para a ciência o pertencimento de lidar com noções fundamentais de forma inexata, e o rigor dos conceitos são insuficientes colocando-os em uma zona, muitas vezes de bifurcação. Para Deleuze (2010, p. 43),

A questão não é de modo algum constituir uma falsa unidade que ninguém deseja. Aqui também a questão é o quanto o trabalho de cada um pode pro-duzir conveniências inesperadas, e novas consequências, e revezamentos para cada um. Ninguém deveria ter privilégio a esse respeito, nem a filosofia, nem a ciência, nem a arte ou a literatura.

Para as universidades, docentes, alunos e gestores, fica um desafio enorme de cons-truir currículos que ultrapassem os cânones da ciência, mas de todo estamos conver-sando muito com todas esses ideias que permeiam o momento histórico, social, eco-nômico e político que visitamos todos os dias nos veículos informativos, e, não sei, mas podemos pensar em um novo trajeto, como nos diz Moran (2007), a inovação está presente em condição “... contínua, presente, aberta e compartilhada entre todos: gestores, professores, alunos e comunidade.”

Os currículos das instituições inovadoras são transdisciplinares, integram áreas de conhecimento de várias formas (sem disciplinas ou com só algumas), são holísticos, com uma visão humanista, sustentável e de competências amplas. Há uma grande integração de áreas, projetos, problemas, com menos (ou sem) disciplinas com foco na aplicação criativa dos conhecimentos em diferentes situações e contextos. Os currículos são suficientemente flexíveis para que os alunos possam perso-nalizar seu percurso, total ou parcialmente, de acordo com suas necessidades, expectativas e estilos de aprendizagem e também para prever projetos e ati-vidades significativos de grupo, articulando a prática e a teoria. (MORAN, 2007, p. 146).

A experiência não é fácil, pois se constitui de vários aspectos sobre a prática da insti-tucionalização e da escolarização no ensino superior. Mas a capacidade das mesmas não pode ser subestimada e sim, buscar a aproximação para que a sociedade seja beneficiada com a capacidade dos sujeitos formados e a sociedade em possibilidade de constante mutação agregando valor a esse sujeito que a constrói.

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REFERÊNCIAS

BENTO, Jorge Olímpio. Por uma univerCidade anticonformista. Belo Horizonte: Instituto Casa da Educação Física. Unicamp e Fórum Pensamento Estratégico – PEN-SES, 2014.

CASIMIRO, Alice; MACEDO. Teorias de currículo. São Paulo: Cortez, 20111. Apoio: Faperj.

CHRISTENSEN. Clayton M. Inovação na sala de aula: como a inovação de ruptura muda a forma de aprender. Tradução Raul Rubenich. Porto Alegre: Bookman, 2009.

DELEUZE, Gilles. Conversações 1972-1990. 2 ed. Tradução Peter Pás Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2010. (Coleção TRANS).

FERRAÇO, Carlos Eduardo. Currículo e educação básica: por entre redes de conhe-cimentos, imagens, narrativas, experiências e devires. Rio de Janeiro: Rovelle, 2011.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O direito dos oprimidos: sociologia crítica do direi-to, parte 1. São Paulo: Cortez, 2014.

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CuRRíCuLO, MÉTOdO E dIFERENÇA: O FuNdAMENTO COMO RECuSA

Danielle Bastos Lopes

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) teriam sido editados como obrigação de conteúdos a serem contemplados no Brasil inteiro, como se fossem um roteiro, sugerindo entender que essa medida poderia ser orienta-ção suficiente para assegurar a qualidade da educação para todos. (BRASIL, 2013:14)E se eu não nunca disser o que deve ser feito, não é porque eu acredito que não há nada a ser feito. Pelo contrário, é porque penso que há mil coisas para se fazer, inventar. (FOUCAULT, 1991:174)

Palavras –Chave: Currículo, método e diferença.

INTROduÇÃO:

De acordo com Bruno Latour (2013:09), “nós mesmo somos híbridos, instalados precariamente no interior de instituições científicas”. Partindo deste princípio tentarei escrever neste capítulo, um pouco do que seria pensar as relações de currículo e ensino tradicionalmente atreladas a pesquisas de Educação de forma a conversar com os au-tores e escritos filosóficos nominados “desconstrutores” da metade do século xx. No caso, adianto que entendo currículo, neste sentido, não apenas como documentos es-critos e protocolares (BALL, 1997, 2012), mas negociado face de sentidos antagônicos e de intensas disputas tantos nos cotidianos das escolas, quanto em redes organizativas internacionais/nacionais. Entre o fio cortante da Pedagogia e da Filosofia analiso como o pensamento desconstrucionista tem influenciado o campo do currículo em diálogo com noções como identidade, cultura, discurso, método de ensino, que tomou curiosa ênfase no seio da teoria curricular no Brasil a partir dos anos 1990, junto as reformas educacionais que o sucederam. Partindo deste aponte, é interessante como observado por James Clifford (2011), de que não é preciso muito para perceber que nos primeiros dois terços do século xx, este foi um século no qual intelectuais ocidentais se debruça-ram muito mais preocupados com significados que conceitualizam cultura e sociedade de semelhante modo que se retornássemos em uma máquina do tempo para o século xIx, observaríamos sua problemática centrada na preocupação com a História e o Pro-gresso no sentido evolucionário.

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Do termo latim, curriculum, alude a trajeto, percurso, pista ou circuito que um atleta percorre no tempo. Segundo Goodson (1995:07), o termo é descendente da pa-lavra currere, que significa correr em um curso de corrida ou à ordem como sequência e à mesma ordem como estrutura. Em termo inicial, diríamos que o conceito é alusivo a um conjunto de práticas e métodos educativos difuso em universidades, colégios que tomavam como norte o Modus et ordo parisienses, cujo modelo (modus) consiste em rearranjos de combinação e de subdivisão das escolas em classes com métodos de instrução individualizada. Isto é, uma sequência de ordem de alunos e disciplinas em confluência para uma sociedade ‘ordenada’. Datam do século xVI na Universidade de Glasgow (1633) os registros históricos, em que por circunstância, a palavra aparece pela primeira vez implicada nos meios educacionais, ligado à dimensão de uma ordem como estrutura, ordem como método para ser amalgamado como produto de uma lista de conteúdos lecionados. É interessante, entretanto, que apenas na maquinaria da revolução industrial norte-americana dos anos 1900, cujos desdobramentos do que e como ensinar ganham influencia entre as cátedras e colégios internos é que para muitos autores (BALL, 2012; YOUNG,1971) iniciam-se nesta faixa de tempo os estudos cur-riculares como propriamente um campo, dentro das muitas chaves – mestras como a Didática, a Avaliação dentro do limite da Educação (LOPES e MACEDO, 2011). No Brasil, o movimento Escola Nova constituiu-se o herdeiro das teorias americanas para pensar currículo e métodos a modo operandi de ensino. Ainda que neste capítulo não seja a intenção uma retomada histórica75 entre as distintas ordens, teorias e passagens que sucederam-se no campo da Educação entre as épocas é interessante, perceba o leitor, que os deslizamentos da noção de método como estrutura, método como aponte para atingir-se um objeto educativo foram utilizados para transformar uma realidade de “cultura” que tomam o ato de disciplinar e o currículo como fim.

De acordo com o curriculista mexicano Días Barriga (2014) e outros sul-ameri-canos (APODACA, 2016; DEL ALBA,1998, 2014) os sistemas educativos de modo muito indistinto na América Latina tem padecido nos últimos vinte anos de uma série Políticas de qualidade quais multiplicaram os programas de avaliação em todos as le-gislações e campos de ensino. Em face de constituir uma “cultura da avaliação” em que se degrada o termo cultura, duplicam-se ações com uma intencionalidade de indica-dores quantitativos. Um mundo de indicadores atravessa todo o sistema conduzindo a uma equação em que o termo “qualidade” “transforma-se em uma expressão vazia que esconde várias deformações na tarefa educativa” (BARRIGA, 2014:148). Os métodos para se chegar a fim desta qualidade administram-se de modo a atender os exames de

75 Sugiro, para tanto, os textos organizados em Teorias de Currículo de Alice Casimiro e Elizabeth Macedo (2011).

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larga escola, qual os mais evidentes modelos consistem nos rankings de pontuações obtidas pelos alunos na prova de ensino superior, por exemplo, seguindo um protótipo do programme for internacional student Assessment (PISA), que confere o padrão de qualidade às instituições em maioria dos países meso e sul-americanos. De forma colo-quial, Días Barriga (2014:149) tem informado que o sistema educativo sul-americano “já não requer especialistas, mas engenheiros em currículo que possam amarrar as peças de acordo com as demandas que se desprendem dos exames em larga escola.” O que, em parte, tece redes de influências e homogeneizações mais que diferenças nos sistemas curriculares, em que pese uma confluência de modos de administrar e métodos depen-dente de uma ideia de qualidade e de indicadores de avaliação.

Entre as distintas correntes teóricas que influenciam o campo da Pedagogia, instru-mentais/técnicas (BOBIT; TYLER), humanista (FREIRE), crítico-sociais (SAVIANI), de política de currículo (APLE; SILVA), de acordo com Elizabeth Macedo (2011) con-flui uma ideia comum nos documentos curriculares constituídos como parâmetros para todo país, que consiste na centralidade de um conhecimento que se encontra exterior ao indivíduo. Esse conhecimento de forma ampla e em linhas gerais, seria parte de uma “cultura” em que se insere esse mesmo aluno, de modo a constituí-lo com seus corpos em uma agenda política, crítica e democrática que é internacional. Essa agenda é híbri-da e implica distintas relações de disputas de diferentes correntes teóricas, entretanto, para a versão brasileira, a rigor, as proposições das teorias humanistas (FREIRE, 1985) e crítico-sociais marxistas (SAVIANI, 2003) tem se constituído as teorias com maior centralidade nos currículos. Uma proposição diríamos mais comum na combinação dessas duplas teorias, defende um currículo que contemple um domínio do saber his-tórico acumulado do aluno que associa tanto uma cultura local e popular, quanto um patrimônio universal –humanístico que necessita ser exercitado. De um modo geral, o indivíduo deve relacionar o seu saber prático com o conhecimento acumulado huma-no. Esse sujeito a partir de uma agenda transformadora e em vista da justiça social, se desassocia do seu censo mais acrítico a partir de uma educação emancipadora passando a atuar militantemente na sociedade (SAVIANI, 2003). Essa militância possibilitar-se--ia devido sua educação de indivíduo crítico e reflexivo.

Essa breve explicação das correntes76 humanista, crítico-social que influenciam os documentos curriculares é mais uma localização, do que, propriamente, tecer deta-lhadamente o que significa cada uma. A teoria pós-crítica, entretanto, nos anos 1990 influenciada por correntes filosóficas a exemplo da clássica obra redigida por Lyotard ([1979], 2000) “A Condição Pós-Moderna”, a expansão do conceito, nominada, a saber, como vertente “pós-crítica” no campo da Pedagogia, interrogou tanto o fundamento

76 Para um mapeamento dessas teorias sugiro ver: Macedo (2011, 2014); Lopes (2014).

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de uma noção de histórico, aluno, corpos; quanto, perturbou a própria categoria de currículo e termos como democrático, críticos entre outros segmentos comuns à noção de didática e método. O movimento pós – crítico difundiu-se em 1990, em discus-sões de identidade e noção de justiça na Educação. Como explicitou Papastergiadis (1995:09) sobre a década de 1990: “quase toda discussão sobre identidade cultural, é, hoje, uma evocação de um estado híbrido”. O movimento influenciou tanto a interro-gação do indivíduo humano e universal como tal, quanto o descentramento da noção de identidade que ocorreriam nas teorias curriculares. Tomaz Tadeu (2010 [1999]:07) em “Documentos de Identidade”, foi o primeiro a criticar o individualismo aluno--militante quando atribuímos que “nós somos, o que nossa suposta identidade define o que somos”. Relacionou as três antinomias: currículo, cultura e sociedade, discutindo que eram produções discursivas fragmentadas e também reais de uma cultura.

Em uma narrativa americanicista para esta mesma interrogação da noção de corpos, sujeitos, método e anti-método de culturas e ensino, Peter McLaren (1997,1999), afir-ma que os currículos englobam diferenças multiculturais que interrogam tanto a dife-rença, quanto a potência de identidade na historicidade. Ante a ideia de um indivíduo bipartido entre cultura local e humanística a ‘diferença’, no caso, passa a assumir uma qualidade sempre incerta e polivocal, nem sempre servindo-se do consenso ou de um conceito determinado por limites claramente marcados. A cultura de um aluno neste sentido, não constitui compreendida como uma obviedade, mas como uma política de localização. Afirmando haver uma hibridação na performatividade do sistema de clas-sificação das pessoas e dos grupos; que diferente de um indivíduo crítico e universal da teoria humanista, a cultura entende-se como marcada pelo poder da história, que tem limites que não os do indivíduo aucentrado e consciente de si. A cultura do indivíduo é situada no contexto de processo e movimento constituindo um movimento histórico.

CuRRíCuLO E dIFERENÇA

Tal qual mencionei no início, a ideia tratada de currículo, não consiste apenas nos documentos escritos e institucionais, mas em todo processo de significação, conflito e troca que atuam na escola ou nas relações com o ato de escolarizar-se (BALL, 1999, 2012, 2014). Em uma versão nominada como pós – estrutural dessa vertente, segundo, Alice Lopes “se um currículo político permanece sendo uma agenda importante, há que se constitui-lo no quadro de incertezas e de ausência de fundamentos em que é elaborado” (LOPES, 2014: 58). De acordo com Elizabeth Macedo (2011, 2014), um currículo não concebe - se como coisa, nem como um plano real a ser determinado a partir de um acordo de distintas teorias. Para a percepção de currículo como “enunciação da diferença”,

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a qual tomo neste artigo como afim, a concepção de educação constitui-se em uma perspectiva antirrealista que reconhece todos os seus significados como uma prática discursiva que se esforça para um acordo de discursos e interpretações, mas, distante de uma delimitação consensual e de ordem última de padrão e conteúdos, nunca chegarão a um acordo final consenso de uma significação. É interessante perceber, neste sentido, que termos como “currículo oculto”, formal, prescrito, diferenciado, entre outros que tentaram nominar as práticas e teorias que acontecem nas relações de ensino, já não são tão importantes no sentido de definir o que “realmente” o termo institui. O que constituirá um currículo será senão sua diferença – a diferença do aluno em relação ao professor, do ameríndio em relação ao que nominam branco, do diretor em relação ao professor. Em suma, as identidades que serão esboçadas nesse currículo são muito mais circunstanciais do que críticas e menos “humanas”, autocentradas e fixas, arriscamos dizer.

Em outras palavras, currículo e diferença interpela o termo “currículo” como um significante vazio, misturado a partir dos sentidos recebidos. De modo semelhante, embora distinto de outras teorias interculturais e críticas (MCLAREN, 1997, 1999; CANDAU, 2002, 2014) que complexificam a definição de universal; o conceito de currículo como enunciação da diferença, interroga a própria noção de identidade e de uma agenda pré-definida de projetos e de corpos de alunos; mesmo os de modelo mais crítico em que poderíamos introjetar um indivíduo transformador de uma mudança previamente delimitada. Essas noções voltamos a discutir adiante, mas, desde agora res-salto que termos como identidade e ensino são constituídos em espécie de território hí-brido (BHABHA, 2010). O desafio de uma política pós – crítica e pós -estrutural a meu ver, é criticar identidades e sua filiação e ainda assim ter de utilizá-las. Para uma literatura pós-estrutural, a ideia de um indivíduo híbrido que demanda uma sociedade igualitá-ria e com ideal de justiça dissipa-se na essência de suas categorias mais propriamente universais e ocidentais de democracia e de igualdade (ver LOPES, 2014; MACEDO, 2011, 2014). As teorias pós-críticas que colocam o conhecimento, a democracia como algo externo ao sujeito que pode promover a transformação coletiva; a ideia pós- es-trutural, defende que essas teorias definem o indivíduo de forma instrumental, como um sujeito homogêneo e transformador da nação. A perspectiva de diferenças, inter-pela tanto a centralidade desse indivíduo, quanto a ideia de justiça e de liberdade mais iluminista. No caso, a alteridade e a subjetivação de qualquer indivíduo constituem-se fora do controle e de uma agenda antecedente.

Como escreveu Edward Said (2011), na década de 1950, seríamos ainda herdeiros desse estilo segundo o qual o indivíduo é refém do conceito de nação. qual extrai sua autoridade de uma tradução supostamente concêntrica. Assim, um estilo híbrido propõe duas perspectivas para pensar as identidades: uma linear e dominadora e outra

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contrapontual e discursiva. No limite duplo dessa representação, para identificação de um ou de outro que pode ser o aluno ou o professor dentro de um ideário de nação, convergem o discurso de uma identidade nativa como figura do patrimônio histórico na forma de uma figura pátria quase homogênea e o discurso do mito, que ressignifica locais e trocas pelo hábito de narrar histórias na relação com o outro. De acordo com Derrida (2011), a respeito de identidades e a noção de cultura-objeto, essas definições constituem-se herdeiras de um fundamento euro-etno-falo-logo-cêntrico, fechado à possibilidade de conexão e de criação de uma linguagem mais criativa. A quintessência da “ordem das coisas” consiste em conceber uma origem e uma ordem para a verdade das trocas e relações, que, de sua parte, não suportam mais as clausuras de seus devires; devir-escrita, devir-cultura. Para citar Deleuze (2011), entre as culturas e suas possibi-lidades como devir, devir-animal, devir-máquina, um devir, consiste no que está fora da representação -- “na revelação do que se relaciona a uma significação que não é so-mente traduzibilidade de um significante, mas dispersa figurando um ato, uma ação. ” (DELEUZE, 2011:26) “[...] cada um destes devires, assegura a desterritorialização de um termo e a reterritorialização do outro. ” (Idem). Em suma, devires constituem o que se relaciona-se à uma significação, que não é somente traduzibilidade de uma dada coisa ou artefato; entretanto, remete à noção de movimento e de possibilidades que fecham uma identidade. Se não se marca a negação nem a privação de um sentido último à identidade ou à cultura, poderíamos dizer que perpassam entre as relações de nominação, neste sentido, “apenas devires, sempre positivos, [...] perdidos, bloqueados e mortos.” (EWALD, 2011:24).

Tornaremos a discutir tal dimensão de fluxo mais a frente, mas é importante ao leitor perceber que a noção de não fechamento para uma identidade e relações com o outro influenciaram o campo da Pedagogia de forma muito particular. Terminou instigando uma recusa por uma predefinição de agenda, tanto quanto de uma ideia de método inflexível e de currículo (PINNAR, 2011). Voltando as observações iniciais de Derrida (2011), uma inflação, um desgaste binário no pensamento filosófico do qual não se pode fugir figura um Acontecimento. Um acontecimento que constitui a “Desconstrução” de um movimento de significação. Termo herdado de Destruktion, de Heidegger e incorporado por influências da literatura de Nietzsche, Lacan e a obra freudiana, para o autor uma Deconstruction, não consiste em uma mera destruição, mas constitui uma ocorrência que acontece no mundo povoado por metamorfoses e movi-mentos que descentram desconstruindo-se mutuamente. Nossa sociedade concentra-se no descarte para outra recombinação. Uma desconstrução seria como susbtancializar para desusbitancializar o discurso no final dos termos. Aquilo, próximo com que, mi-tos ameríndios e redes de informação de grupos não ocidentais concretizam quando

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na troca de narrativas circulam nunca iguais, hibridizado por outras versões. Derrida observa que, sempre que um algo for representado no enquanto de sua origem (objeto, indivíduo, dádiva), ele perde sua singularidade no momento em que é delimitado. O pensamento desconstrutivo remete sempre “ a um trabalho do pensamento incons-ciente ‘isso se desconstrói’ e, que consiste em desfazer, sem nunca destruir [...] onde desconstruir é de certo modo resistir a tirania do Um, do logos.” (ROUDINESCO, 2004:09), neste sentido, a acepção de estrutura de qualquer conceito estará sempre se desconstruindo. Nas palavras cortantes do próprio:

“Desconstruir” a filosofia seria, assim, pensar a genealogia estrutural de seus conceitos da maneira mais fiel, mais interior, mas, ao mesmo tempo, a partir de um certo exterior, por ela inqualificável, inominável, determinar aquilo que essa história foi capaz – ao se fazer história por meio dessa repressão, de algum modo, interessada – de dissimular ou interditar. Nesse momento, produz-se – por meio dessa circulação ao mesmo tempo fiel e violenta entre o dentro e o fora da filosofia (quer dizer, do Ocidente) – um certo trabalho textual que proporciona um grande prazer (Derrida, 2001:13)

Em “Carta a um Amigo Japonês”, (1985), Derrida define o termo, cujo descons-truir é também tanto um gesto estruturalista, que assume certa problemática “[...] em todo caso, também um gesto ante-estruturalista – e o seu destino se deve a esse equí-voco” (Derrida, 2005:23-24). Trata-se de descompor estruturas linguísticas e discursi-vas de identidades fechadas para compor em outro momento uma outra significação. Em termos, uma cultura é em relação a outra; todas as identidades são incompletas e movimentam-se assimétricas em seu suposto centro de si e de origem. Em curiosa passagem, no caso do autor, ao ser indagado se haveria após o “Acontecimento” da desconstrução algum lugar para se analisar a unidade, uma vez que o esforço descons-trutor consiste em afrouxar identidades e fixações destacando as fissuras e conflitos que lhes são próprias, em extensa, mas esclarecedora entrevista transcrita por Duque Estrada (2008:16), o autor esclarece que: “não acho que tenhamos que escolher entre a unidade e multiplicidade, [...] a desconstrução tem insistido não na multiplicidade por si mesma, mas na heterogeneidade, na diferença, na dissociação que é absolutamente necessária com o outro”. Evidenciando que “evidentemente, nós precisamos de uma unidade, ou de alguma forma de reunião, de alguma configuração, [mas], pura união ou pura multiplicidade seria a morte ” (DERRIDA apud Duque Estrada, 2008). O que toca é, então, o limite desse movimento unificado, em que diz: “Para ser mais concreto tomemos o exemplo de uma pessoa ou de uma cultura, [...] a identidade de uma cultura é um modo de ser diferente dela mesma; uma pessoa é diferente dela mesma, quando

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se leva em conta essa diferença ” (Idem). Neste sentido, poderíamos definir que o Ou-tro é constituído compreendendo que a luta pela própria identidade não é exclusiva em relação à pura identidade, mas, a identidade compreendida como um movimento que se auto diferencia de si, que contém as aberturas, os devires que afetam as próprias estruturas de unidade.

Identidades são, portanto, nominadas como “artífices” como há muito vêm sen-do discutido (ANDERSON,1991; BHABHA, 2010). Neste limite, a preferência pelo “impossível”, pela meta-narrativa do contrário e dos contrastes na relação com o homem - cultura recria-se para além da totalidade e do indivíduo. Uma formulação “pós-estrutural”, ainda que este termo tenha muitos conflitos na tradução desses auto-res, apropria-se desse contato desconstrutor, em parte, não tipicamente destruidor, para instigar o falismo da “origem”, da “arqué” para que pese a não raiz. No caso do campo do currículo, a leitura pós-fundacionalista (LOPES, 2014; MACEDO, 2014) instiga um anti-método77 e falta de fundamento, interrogando o método como eficácia de um objetivo previamente decidido. Em suma, diríamos, que o pensamento desconstrutor termina por eclipsar interrogando a noção de identidade-aluno e o que lhe constitui propriamente como uma “cultura” intrínseca ou externa. A eficácia do fundamento e de conteúdos críticos como objeto determinado deixa de ser uma categoria dada e unís-sona e passa a ser vista de forma a definir menos e possibilitar outras formas de criação e devir no campo da escolarização.

CuRRíCuLO, dIFERENÇA E POLíTICA

Em contraposição, é notável que enquanto críticos mais mordentes dessa ideia nomi-nada “pós – estrutural” na Educação, está particular campo de autores marxistas e críticos. Para uma parte há uma fragilidade destas constituições que acederiam sem comprome-timento com as decisões políticas nas relações de currículo. Para Peter McLaren (1997; 1999), o termo devir corresponde um momento pós-moderno, que será senão outra coi-sa que “lúdico”, constituindo uma política inexistente ou antipolítica descomprometida com os problemas das desigualdades e miséria. Para o autor, essa perspectiva fluída pouco compromete-se diante da vulnerabilidade dos corpos e da sociedade. No Brasil, Pierucci (2000) e Marcondes Moraes (2004) acusam essa lógica dos desconstrutores de natureza antidialógica e descomprometida com o quadro social hierarquizado. Formadora de um sujeito desmobilizado e pouco ativo. De acordo com Marcondes Moraes (2004), encerra-se o humano em um mundo virtual de narrativas, também, cético à transformação.

77 O termo anti-método a qual me remeto não significa ser contra um método, entretanto, o termo complexifica relações que afirmam o método como pré-condição invariável para o ensino.

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Há, entretanto uma questão, que pouco se coloca, e que diz respeito não à noção de transformação política, mas ao seu suposto ceticismo. Elizabeth St. Pierre (2011) nos oferece um caminho de resposta. Na defesa de um campo pós-fundacional observamos a instabilidade das políticas neoliberais como relativa a esse descentramento do indiví-duo. Percebo como a autora que a quebra do self (eu), pontuado por Foucault e Deleuze na década de 1970, marcou que “nós não estamos mais lidando com uma dualidade de massa individual. Tornaram-se duos os indivíduos” (Deleuze, 1995:180). Uma massa populacional díriamos que defini-se de forma difusa e produzida por um sistema de rede. O conceito de rede convoca um rendilhado de mundos fictícios e imaginados que criam narrativas até mesmo entre o humano e as máquinas.

O homo Economicus do sistema neoliberal tornou-se fictício como dados de redes; dependente se um sistema é rastreador dos códigos de identidade. De acordo com Deleuze (1995:181), “o controle é de curta duração e muda rapidamente, mas, ao mes-mo tempo, é contínuo e ilimitado”. Um exemplo, na Pedagogia, constitui o controle de notas e pontuações acordando o alcançe das notas com os pontos para remunerar os docentes (St. PIERRE, 2011, 2013). Tupo parece tecido pelo sistema financeiro con-vertido em redes de dados que representam algumas das permeabilidades dessa relação bipartida também na Educação. Segundo Bruno Latour (2013:09), uma “rede seria o fio de Ariadne destas histórias confusas e emranhadas ”; é o meio de transporte de quem decide ser “moderno”. É consusbtancial a relação de tradução ou de rede, “mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que a noção de estrutura” (LATOUR, 2013:09). Não desenvolverei aqui o conceito de rede e rendilhados de forma detalhada (ver LATOUR, 2013; STRATHERN, 1996) entretanto, por outras coincidências, essa mesma rede fictícia de dados e identidades figura que estamos em uma dobra da per-turbação de unidade desse indivíduo.

A ideia de rede que atuaria de forma descentrada de acordo com o que nomina--se controle neoliberal, demonstra que a “ordem da coisas” estão falindo globalmente. Como sublinhou Lévi- Strauss (2012) na introdução de uma revisita à sua obra acerca do estruturalismo, a modernidade de tipo ocidental “perdeu o modelo que dera a si mesma e não ousa oferecer esse modelo aos outros”. Neste sentido, a derrocada das monarquias do Oriente Médio desde o descentramento dos partidos políticos, como as quebras das instituições da América Latina sugereriam que estamos, enfim, em uma era pós-revoluicionária (St. PINAR, 2011), pós-institucional (BOAVENTURA, 2013), se é que podemos nominar “Eras”, com uma reconfiguração de redes que tem demonstra-do a normatividade e as instituições fora do controle do indvíduo.

De acordo com Alice Lopes (2014), esses descentramentos demonstram que o processo político pode definir-se em instabilidade e provisoriedade. A ideia do pós-fundacional

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consiste em expandir o sentido político do currículo, mesmo quando questiona fun-damentos mais individuais e democráticos. No caso, uma teoria pós-fundacional não admite um centro como origem de gênero, nação, cultura e identidade, entretanto, consi-dera que o centro de uma decisão política é, por assim dizer, uma impossibilidade, todavia necessária. A necessidade de um fechamento e de suas relações com decisões políticas constituem-se de forma iminente entre as distintas culturas de ensino. Portanto, qualquer projeto curricular, nesta lógica, entende-se como “híbrido e identitariamente descentra-do” (LOPES, 2014:48). Uma desconstrução de um fundamento político, filosófico, neste sentido, ilustra o que já acontece no mundo mesmo com os esforços de teorias que ten-tam instituir uma política curricular nacional de avaliação para todo país, por exemplo. Em suma, currículo performa a relação de negociação, redefine-se a todo momento por trocas e disputas que dão sentido a decisões políticas e concepções de justiça.

Como já havia observado Biesta (2006), determinada interpretação de justiça não pode contribuir meramente para um princípio ou normatividade na Educação, conquanto não se pode, pelo menos a meu ver, se postular um conhecimento prévio sobre o que pode ser con-cebido como “democrático” no ensino. Por mais que a ideia de justiça e cultura predefina o indicativo necessário, ela indica sempre o impossível. Não há como prever a sua natureza de essência livre e vulnerável. Os projetos de intervenção da perspectiva crítica (McLAREN, 1999; SILVA, 2010) predisposto a um currículo político em que o indivíduo é o agente de uma agenda contra a injustiça, são, enfim, positivos por serem proliferadores de demandas de transformação social. Entretanto, estão distantes do devir (DELEUZE, 2004; 2011), na medida que é sempre previsível nas suas afirmações a corporeidade de um indivíduo e ideia de uma justiça universal que pode, a partir de uma agenda contra a precariedade e a barbárie transpor os limites da desigualdade, adotando modelos de currículo para tanto. É como se existissem, de acordo com essas afirmações, indivíduos capazes de controlar a normatividade da educação e justiça de um modelo ocidental.

CONCLuSÃO

Em suma, bem mais, agora nas discussões em torno de corpos e híbridos (HARA-WAY, 2015; SATRATHERN, 1996) diria que o conceito de currículo e tão logo, de “método” como figura descentrada ganha nova reconfiguração. Em muitas partes como um modelo positivo, ainda que pouco normativo. Como disse uma famosa frase de um dramaturgo irlandês “se todos os economistas fossem postos lado a lado, nunca chegariam a uma conclusão”78. De fato, muito menos pedagogos, arriscaríamos. Não se constitui associação direta entre as palavras e as coisas, sabe-se (FOUCAULT,1970). Neste

78 George Bernard Shaw dramaturgo (1856 - 1950)

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sentido, o que estrutura uma normatividade para categoria do currículo e sua relação com o método, a didática, a avaliação é diretamente relacional à invenção da categoria mesma do que pode vir a ser um currículo (MACEDO, 2014). Nesse ponto, poderíamos concluir que as definições, fluxos que perpassam as relações com o ensino, são muito mais discursivas do que reais. Entretanto, é interessante, perceber que a intenção não admiti ao discurso, portan-to, o local de pressuposto heróico que explicará toda a potencialidade de uma realidade cul-tural, parte de uma relação, que, se antes fora concedido um lugar privilegiado à estrutura, à cultura, às relativizações, atualmente conceder-se-ia ao discurso mesmo lugar normativo. De forma menos inocente, defendo, que compreender real como representação (discurso) e representação como tudo o que é limitado não significa negar as relações de poder e de discriminação, de violência com corpos dos indivíduos. A meu ver, interpelar noções dadas de justiça, identidade, democracia possibilita ir além de fronteiras para as quais, quando pensarmos na condição fictícia do discurso, estaremos, enfim, menos submissos a normati-vidades dos jogos de identidade e de violência à subjetivação do outro.

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PEquENA INTROduÇÃO AO ESTudO dA RETóRICA

Felipe Gonçalves PintoPPFEN - Cefet-RJ campus Maria da Graça

Palavras-chaves: Retórica, Lógica, Aristóteles.

APRESENTAÇÃO

O texto que apresento nesta edição dos “Chás para a Filosofia” foi elaborado e uti-lizado por mim na disciplina de Filosofia Aplicada a Negociações Internacionais para uma turma do 2° período do curso de graduação em Línguas Estrangeiras Aplicadas a Negociações Internacionais (LEANI/Cefet-RJ) com o intuito de introduzir o estudo da retórica. Ao assumir a docência da disciplina, assumia o desafio de exercitar a filosofia junto a um grupo de estudantes significativamente heterogêneo com respeito à forma-ção acadêmica, à inserção no mundo do trabalho, às expectativas e motivações que os levaram ao curso e ao contato com o ensino formal de filosofia (refiro-me ao fato de terem ou não experimentado uma aula de filosofia). Decidi tratar de dois grandes temas da filosofia ao longo da disciplina e, sem conseguir articulá-los (o que demandaria uma maior extensão da disciplina), tentei como que dividir o período em dois. Na primeira parte, trataria de exortar, promover e exercitar o debate. Na segunda, pesquisaríamos algumas teorias políticas modernas com foco no ordenamento das relações entre os estados nacionais. Tratamos dos princípios que estruturam o Extrato e Julgamento do projeto de paz perpétua de Abbé de saint-pierre (ROUSSEAU, 2003, p. 69-110) e o projeto para a paz perpétua (kANT, 2004, p. 31-87) e dialogando com as leituras de Norberto Bobbio (1984) e Michel Foucault (2008).

É daquela primeira parte que o texto que aqui apresento figurou como introdução. Após o momento introdutório, seguimos o estudo interpretando, refletindo e discu-tindo a primeira parte do Tratado da Argumentação: A Nova retórica (PERELMAN, 2005), e realizamos duas atividades de caráter avaliativo. Na primeira delas, tirando proveito do fato de a disciplina ser oferecida em um curso de Línguas Estrangeiras, pedi aos alunos que respondessem as trinta questões do philosophical health check (http://www.philosophyexperiments.com/health/). Como, ao final do teste, o sistema gera um relatório de incoerências nas respostas, solicitei que os alunos comentassem as incoe-rências apontadas pelo sistema seja para reconhecê-las e problematizar suas posições

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seja para defender com argumentos suas posições das objeções postas pelo relatório. Na segunda atividade, a turma foi dividida em dois grupos e cada um deles ficou respon-sável por organizar um debate, o que incluía delimitação do tema e da questão inicial, pesquisa, organização e realização do debate enquanto evento propriamente dito. Essa se-gunda atividade, cujos detalhes não cabem aqui, findou com uma autoavaliação coletiva.

Ao introduzir o estudo da retórica, busquei elaborar um discurso cujo rigor não o tornasse demasiadamente cansativo e desinteressante à turma, mas que pudesse, da maneira clara e coerente, expor e partilhar algumas distinções e conceitos tradicionais sobre os quais pudéssemos conversar e a partir dos quais pudéssemos prosseguir o estu-do e qualificar o exercício do debate. Fui buscar essas distinções e conceitos nas obras de Aristóteles sem pretender com essa referência iniciar, junto à turma, uma pesquisa ou estudo aprofundado sobre a filosofia aristotélica. Meu objetivo não consistia senão em tomar como mapa estelar determinado repertório conceitual construído por Aristóteles para situar, de maneira relacional e empírica, as rotas que percorríamos dali em diante. Trata-se de um texto para ser lido, mas sobretudo para ser discutido e problematizado em sala de aula.

Ao publicar este texto na coleção “Chás para a Filosofia”, sou movido pela ideia de que é saudável que nós, docentes, tornemos pública, para avaliação e uso, uma produção que, embora se distancie, por forma, finalidade e contexto, da produção tradicionalmente considerada acadêmica, com seu rigor, seu caráter inovador e seu público restrito, não é menos intelectual e importante do que ela. Saúdo, assim, a co-leção “Chás para a Filosofia” por caminhar na direção da criação de espaços oportunos à publicização e ao reconhecimento da reflexão no interior, em torno e às margens do Ensino de Filosofia!

SObRE A ARGuMENTAÇÃO

Utilizamos argumentos quando queremos, de algum modo e por um motivo qual-quer, justificar ou explicar alguma proposição, seja em pensamento para nós mesmos seja em fala para outra pessoa. O argumento não consiste, para dizer com rigor, em fatos, mas sim em um conjunto de proposições que, ainda que se refiram a fatos, ex-põem um entendimento sobre esses fatos, relacionando-os de determinado maneira. Por isso, é melhor dizer que ele pode se basear em fatos empíricos do que dizer que ele é constituído por fatos empíricos, entendendo assim que o argumento é um evento lógico (linguístico, psíquico ou cognitivo). Deve-se levar em conta que as proposições que compõem o argumento podem também precisar de justificativa, sobretudo quando aquelas sentenças não possuem o assentimento dos ouvintes ou interlocutores, isto é,

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quando eles não têm em mente a justificativa daquelas sentenças. Esse é o caso também do discurso científico.

A ciência, entendida como explicação maximamente rigorosa dos fenômenos físi-cos, deve apresentar (ou pressupor como já apresentado) todo o encadeamento expli-cativo de uma proposição como, por exemplo, “todo animal é um ser vivo dotado de sensação”. Se ela de fato é excepcionalmente rigorosa, deve dizer e justificar o que é ser vivo, o que é vida, o que é sensação e assim infinitamente...

...infinitamente?! Eis aqui um grande problema já apontado pelos filósofos gregos, principalmente por Aristóteles: uma argumentação infinita seria uma argumentação incompleta, pois estaria sempre precisando das bases que, por sua vez, sustentariam todo o edifício argumentativo científico. É preciso, então, admitir que existe um fim (ou seja, um princípio, uma arkhê) para toda argumentação. No caso da geometria, esse princípio é o ponto: a partir do ponto se explicam todos os seres geométricos (a linha, a superfície, o volume). No caso da ciência, trata-se dos princípios primeiros, como o princípio de não-contradição, o princípio de identidade e o princípio do terceiro ex-cluído, que são princípios de toda a realidade natural. Eles são considerados evidentes: apesar de poderem ser buscados e enunciados, não se pode demonstrá-los, sob o risco de se cair em uma explicação infinita.

A investigação desses princípios é, para Aristóteles, tarefa de um ramo da filosofia que ele chama de Filosofia primeira, que não trata de uma parte da realidade, mas dos princípios de toda a realidade. Posteriormente, esse ramo da filosofia veio a ser deno-minado Metafísica, uma ciência que não busca demonstrar suas afirmações últimas, mas apresentá-las em sua evidência. quando se trata não dos objetos da ciência nem das matemáticas, isto é, quando se trata de coisas que não são por necessidade, mas que podem ser assim ou assado, dependendo de escolha, decisão, vontade, deliberação, persuasão, as bases argumentativas mais pertinentes são as opiniões aceitas por toda a comunidade ou pela maior parte ou pelos mais reconhecidamente sábios, em outras palavras: as opiniões aceitas por aqueles de quem esperamos adesão ou assentimento e que, por isso, não precisam ser postas em discussão.

É claro que mesmo essas opiniões podem ser postas em discussão, mas é fundamen-tal notar que todo diálogo tem como condição algum acordo entre os participantes sobre os termos e as regras do diálogo, caso contrário temos um “bate boca” e não um diálogo nem um debate nem uma discussão. Todos vocês já devem ter experimentado o incômodo que é participar de um (falso) debate em que cada parte se refere a coisas distintas com o mesmo nome. É muito comum presenciarmos uma discussão sobre religião, por exemplo, em que uma pessoa se refere, com o termo “religião”, à crença em um ou mais deuses, outra tem em mente determinada religião em seu processo

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histórico e concreto de formação e atuação, e ainda outra considera, sob esse termo, a Igreja que frequenta. Assim, caso se venha a discutir se determinado ato é ou não justo, precisamos considerar se há acordo sobre o que é a justiça. Se não houver, cabe discutir o que é a justiça e, para isso, é preciso estar minimamente de acordo sobre o que se chama de “sociedade”, “liberdade”, “bem”. Portanto, um orador ou debatedor tem que ser capaz de visualizar com alguma clareza os limites daquilo sobre o que todos estão de acordo e onde começa o desacordo, sob o risco de falar às cegas e aos surdos...

Pois bem, como dizíamos, tanto na ciência quanto nas discussões a respeito de valores e ações é fundamental o uso de argumentos, embora por razões ligeiramente di-ferentes. O cientista busca conhecer. Conhecer cientificamente é explicar e demonstrar fenômenos, e o modo como se explica e demonstra um fenômeno é mostrando a sua causa e a relação necessária entre a causa e o causado, o que é feito pelo raciocínio cien-tífico (silogismo). Nas discussões sobre as ações (passadas, presentes e futuras), o que se busca é formar uma opinião bem fundada sobre assuntos que não admitem certeza (o que implica sempre em poder se deixar persuadir pelo outro) ou persuadir os ouvintes e interlocutores, trabalhando e partir e em vista das opiniões. Ainda que se possa fazer isso de forma não discursiva (por exemplo, por violência ou pelo dinheiro), admitamos que seja uma característica essencial da democracia a necessidade de fazê-lo por meio do discurso argumentativo. Podemos dizer, então, que o principal instrumento tanto da ciência quanto da persuasão é a linguagem.

LóGICA

“Linguagem” é um dos termos pelos quais se traduz o que os gregos antigos cha-mavam de “logos”. Além da linguagem, o termo “logos” possui uma vasta gama de acepções, como: razão, proporção, discurso, sentido, mas também coleção, reunião de elementos compondo uma totalidade. Aristóteles investigou as características e poderes da linguagem enquanto instrumento de conhecimento, de persuasão, de enunciação da realidade em um conjunto de seis tratados chamado “organon” (órgão, instrumento).

Tradicionalmente, dá-se o nome de “lógica” (estudo do logos) à análise dos usos da linguagem. A lógica trataria, assim, de como se deve dispor da linguagem (discurso, pensamento) e organizar as sentenças de acordo com os fins dados. Ela consiste em um conhecimento das formas dos raciocínios e dos argumentos. Sendo seu objeto a forma do discurso, ela é, em certo sentido, independente da matéria desses raciocínios e argu-mentos. Embora a lógica seja comumente associada ao discurso científico, se conside-rarmos sob o termo “lógica” o escopo geral do organon aristotélico, temos de admitir que ela não se restringe à ciência e menos ainda à demonstração científica. Com efeito,

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além de não poder ser reduzida a um instrumento científico, a linguagem é utilizada na própria ciência em situações em que não se trata simplesmente de demonstrar, mas de buscar causas e princípios, discutir opiniões consideradas relevantes sobre assuntos acerca dos quais não há certeza ou mesmo para refutar aqueles que não aceitam prin-cípios indemonstráveis considerados evidentes. Vale destacar a estratégia utilizada por Aristóteles ao tratar do princípio de não-contradição: contra aqueles que pretendem sustentar a existência da contradição na realidade (ou, o que dá no mesmo, os que pretendem sustentar a não existência da contradição no discurso), basta pedir para que digam, signifiquem, algo. Se dizem algo, aceitaram já o princípio de não-contradição, e se não dizem, abandonaram a discussão!

O princípio mais estável de todos é aquele a respeito do qual não há erro possível; com efeito, é necessário que um tal princípio seja, ao mesmo tem-po, o mais conhecido (pois todos se enganam sobre o que não conhecem) e independente de qualquer outro. Com efeito, o princípio que deve, necessa-riamente, ter em posse aquele que procura compreender uma coisa qualquer, não pode depender de nenhum outro princípio; e o que é necessário conhecer, para quem conhece o que quer que seja, é necessário que o conheça desde o início. que, portanto, um princípio desse gênero é, dentre todos, o mais está-vel, eis o que é evidente. Mas qual é esse princípio, nós agora podemos dizê--lo: é impossível que o mesmo, simultaneamente, pertença e não pertença ao mesmo e segundo o mesmo sentido. Pois é impossível, a quem quer que seja, sustentar que o mesmo é e não é. Pois é impossível, a quem quer que seja, sustentar que o mesmo é e não é, como alguns acreditam que Heráclito teria dito. Pois não é necessário que aquilo que alguém diz seja também sustentado por esse alguém. Se, então, não se admite que os contrários pertençam, simul-taneamente, ao mesmo e se a opinião que sustenta a contradição é, de fato, uma opinião contrária a uma mesma opinião, é evidente que é impossível que o mesmo homem sustente, simultaneamente, que o mesmo é e não é; pois as-sim ele, que está absolutamente errado quanto a essa questão, teria simultane-amente, opiniões contrárias. (ARISTóTELES, Metafísica IV, 3, grifo nosso79)

As investigações empreendidas no organon dizem respeito à relação entre lingua-gem, conceito e realidade, aos múltiplos usos da linguagem, suas finalidades, suas ma-térias e as formas mais adequadas a cada finalidade e matéria. Assim, pode-se distinguir argumentos que visam demonstrar algo a partir de premissas de argumentos que visam descobrir algo a partir de premissas; argumentos que visam conhecer e argumentos que visam persuadir; argumentos que partem de premissas verdadeiras e necessárias e

79 Para os textos aristotélicos, utilizamos as traduções de edições publicadas em língua portuguesa que fizemos constar na seção "Referências".

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argumentos que partem de premissas verossímeis (opiniões); argumentos que partem do mais universal em direção à determinação do que é mais particular e argumentos que partem de casos particulares em direção ao que é mais universal.

ARGuMENTOS

Embora as investigações do organon sejam extremamente úteis à persuasão, Aristó-teles dedica uma outra obra a essa arte, a retórica, composta por três livros. Antes de pros-seguirmos, convém distinguir, em linhas gerais, estas cinco noções: dialética, demonstra-ção, raciocínio dedutivo (silogismo), raciocínio indutivo (indução) e retórica.

Por dialética, Aristóteles entende o debate a partir de opiniões comumente aceitas. Originariamente, trata-se dos diálogos travados entre dois participantes que defendem posições contrárias e, a princípio, razoáveis, em busca da opinião verdadeira que, em geral, não é a de um nem a do outro, mas um refinamento ou uma superação de am-bas. Historicamente, o termo passa a abarcar tanto o diálogo consigo mesmo quanto os exercícios de discussão pelos quais os oradores praticam a mudança de opinião, tornando-se hábeis a sustentar uma posição ou a contrária. Ela também possui um lugar importante na produção científica aristotélica, em que para alcançar uma boa definição do que quer que seja, Aristóteles confronta as opiniões de seus antecessores, retendo o que se mostra verdadeiro e descartando o que não resiste às objeções. Embora a possibilidade de persuasão tenha sempre como condição um debate, nem todo debate se dá entre pessoas que pretendem persuadir. Como dissemos, há tanto casos em que se parte de um problema em busca de uma solução, uma definição, quanto casos em que se busca apenas exercitar a argumentação.

A demonstração, em geral, se refere à prova científica discursiva de uma proposição verdadeira. Essa prova consiste em mostrar que, dadas certas premissas já devidamen-te demonstradas, uma conclusão delas se segue necessariamente. A demonstração é um raciocínio dedutivo, ou seja, parte de uma premissa universal (chamada premissa maior: Todo A é B) e de uma premissa particular (chamada premissa menor: C é A) para concluir algo diferente de ambas: C é B. Note-se que o termo responsável pela ligação necessária entre C e B (a saber, A) não aparece na conclusão, mas apenas nas premissas. Esse termo é chamado de termo médio e consiste na causa de C ser B. Algu-mas vezes80 Aristóteles divide os raciocínios dedutivos (silogismos) em demonstrações

80 "Raciocínio dedutivo (ou silogismo) é um discurso no qual, dadas certas premissas, alguma conclusão decorre delas necessariamente, diferente dessas premissas, mas nelas fundamentada. quando o raciocínio resulta de proposições primordiais e verdadeiras ou de princípios cognitivos derivados de proposições primordiais e verdadeiras, diz-se que temos uma demonstração; ao raciocínio obtido a partir de proposi-ções geralmente aceites chama-se raciocínio dialético." (ARISTóTELES, Tópicos I, 1)

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(que teria o sentido de dedução científica rigorosa) e raciocínio dialético (que trabalha com opiniões comumente aceitas), mas, apesar disso, ela é também um instrumento usado nos debates dialéticos em geral e consistem em um dos principais instrumentos de persuasão.

à demonstração, entendida como dedução por excelência, opõe-se a indução, que é “o método de raciocínio que parte de um conjunto de coisas individuais para concluir acerca da totalidade” (ARISTóTELES, Tópicos I, 12, 105a13-14). A indução se aplica ao campo do verossímil e do provável. Por isso, não há, rigorosamente, demonstração por indução. Seu uso é particularmente frequente na dialética e na persuasão sob a for-ma de exemplos e ilustrações, de modo que o orador ou debatedor lança mão de casos semelhantes para tirar também uma conclusão semelhante, muitas vezes partindo de casos passados para inferir casos futuros.

RETóRICA

Vejamos agora o que diz Aristóteles sobre a retórica:

Entendamos por retórica a capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso com o fim de persuadir. [...] Das provas de persuasão, umas são próprias da arte retórica e outras não. Chamamos provas inartísticas a todas as que não são produzidas por nós, antes já existem: provas como testemunhos, con-fissões, documentos e outras semelhantes; e provas artísticas, todas as que se podem preparar pelo método e por nós próprios. De modo que é necessário utilizar as primeiras, mas criar as segundas. [...] Persuadimos, enfim, pelo dis-curso, quando mostramos a verdade ou o que parece verdade, a partir do que é persuasivo em cada caso particular. Ora, como as provas por persuasão são obtidas por esses meios, é evidente que delas se pode servir quem for capaz de formar silogismos, e puder teorizar sobre os caracteres, sobre as virtudes e, em terceiro lugar, sobre as emoções (o que cada uma das emoções é, quais as suas qualidades, que origem têm e como se produzem). De modo que a retórica é como que um rebento da dialética e daquele saber prático a que é justo chamar de política. (ARISTóTELES, retórica I, 2, 1355b25-26; b35-39; 1356a19-27)

As provas a que se refere Aristóteles encontram-se sobretudo no grupo dos racio-cínios dedutivos (silogismos), do qual fazem parte as demonstrações científicas, mas também as demonstrações retóricas, chamadas por Aristóteles de “entimemas”. Os argumentos indutivos buscam mostrar que algo é assim com base em muitos casos semelhantes. quando se trata de um problema dialético (por exemplo, se a realidade é ou não móvel, se o ser humano é ou não livre, situação em que há elementos para

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defender uma posição ou outra posição), temos a indução clássica. No caso da retórica, em que se busca não conhecer algo, mas persuadir, a indução é denominada “exemplo”, partindo-se de casos particulares semelhantes para levar os ouvintes a sustentar, no caso em questão, opinião semelhante à que sustentam com respeitos aos demais casos. Vale lembrar que a dialética é o método de contraposição de proposições tão plausíveis quão problemáticas, pelo qual se busca ultrapassar os impasses em direção a um conheci-mento seja de natureza científica seja de natureza opinativa. Ela é, assim, de extrema importância para o orador, seja para superar impasses da discussão seja para exercitar a confrontação de opiniões, bem como para o cientista que busca examinar concepções opostas, nas quais parece haver algo verdadeiro e algo falso, para tirar delas uma con-cepção verdadeira, uma causa ou um princípio pelo qual se explicam certos fenômenos. De posse disso que seria a concepção verdadeira, cientista e orador diferem entre si na medida em que um busca demonstrar cientificamente a relação entre causa e causado e o outro busca demonstrar retoricamente seja um julgamento (nos discursos sobre o passado, chamados judiciais), um elogio/uma censura (sobre o presente, epidíticos) ou uma decisão (sobre o futuro, deliberativos). Digamos que, abstratamente, demonstrar cientificamente e demonstrar retoricamente são o mesmo, mas não podemos esquecer que não estamos no terreno das abstrações científicas (ou seja, não estamos tratando de algo meramente teórico, como se costuma dizer), mas sim no terreno bem concreto da persuasão, que, além de dizer respeito ao que pode ser assim ou assado e não ao que é assim necessariamente, depende ela mesma de condições circunstanciais (quem são os ouvintes? em que número estão? o quanto sabem? qual seu estado emotivo? em que lugar se encontram, assim por diante, e as mesmas perguntas são válidas para os oradores).

Em retórica convém não fazer deduções de muito longe, nem é necessário se-guir todos os passos: o primeiro método é obscuro por ser demasiado extenso, o segundo é pura verborreia, porque enuncia coisas evidentes. É esta a razão pela qual os oradores incultos são mais persuasivos do que os cultos diante das multidões; como dizem os poetas, os incultos são “mais inspirados pelas musas” diante da multidão. Com efeito, os primeiros enunciam as premissas comuns e gerais, os segundos baseiam-se no que sabem e no que está próximo do seu auditório. Portanto, é assim que os oradores devem falar, não tomando como ponto de partida todas as opiniões, mas só certas e determinadas, por exemplo, as dos juízes ou as daqueles que gozam de reputação; e o fato é que a coisa aparece com mais clareza a todos os ouvintes ou à maior parte deles. E não se devem tirar conclusões somente a partir das premissas necessárias, mas também das que são pertinentes a maior parte das vezes. (ARISTóTELES, retórica II, 22, 1395b23-1396a3)

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Além da argumentação propriamente dita, o orador deve, segundo Aristóteles, ob-servar dois outros fatores: a aparência do seu caráter e a disposição dos ouvintes. O primeiro diz respeito à impressão que o orador deixa no seu auditório. Ele deve parecer digno de fé e, levando em conta que a demonstração retórica precisa ser menos rigorosa e mais econômica do que a demonstração científica, é fundamental que o estilo do discurso contribua com a argumentação. Assumir uma postura descontraída demais em assuntos sérios, ou diante de um público sisudo, pode mostrar que o orador é levia-no; assim como ser sisudo demais diante de um público mais descontraído pode fazer com que ele perca a atenção dos ouvintes. As metáforas, por exemplo, podem tornar o discurso mais belo e proporcionar uma exposição mais clara do assunto, mas deve-se cuidar de utilizar imagens que sejam de conhecimento do auditório.

É comum, por exemplo, que em uma roda de conversa entre estudantes de química, faça-se uso de metáforas e imagens específicas da química. Um estudante de adminis-tração que se juntasse ao grupo poderia ficar sem entender nada ou quase nada, mesmo que o assunto fosse algo geral como relações amorosas. Convém, então, ou usar ima-gens de conhecimento geral ou conhecer bem o público para o qual se está a discursar. Além disso, cabe não exagerar nas imagens e nos floreios para não parecer um belo dis-curso vazio. Por outro lado, o orador deve saber não só adaptar seu estilo aos ouvintes, mas também transformar a disposição deles, fazer com que sintam ou deixem de sentir determinadas emoções. É evidente que isso não deve ocorrer explicitamente. Todos sabem que, quando uma pessoa está irritada, tanto mais o interlocutor torna manifesta sua calma tanto mais aumenta a irritação!

CONSIdERAÇõES FINAIS

A argumentação, o caráter e as emoções são caminhos de persuasão. O bom orador é aquele cujas performances discursivas percorrem com destreza esses caminhos. Admi-tamos que isso não é nada fácil uma vez que a retórica é uma arte que se pratica sempre em condições particulares e sobre temas e questões cuja urgência é tão contemporânea a ponto de devermos interditar a suposição de que alguém possa portar um saber cuja legitimidade não dependa da adesão oportuna de toda a comunidade ou da maior par-te ou dos mais reconhecidamente sábios. Daí que a retórica possa ser de certo modo substituída, no momento histórico em que vivemos, por tecnologias de produção de adesão como as empregadas e mobilizadas na propaganda. A avaliação dessa substitui-ção parece caber a um outro discurso que se debruce sobre a relação entre meios e fins nos modos e contextos contemporâneos de persuasão.

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REFERÊNCIAS

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______. retórica. Tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.

______. Tópicos. Tradução de J. A. Seguraro e Campos. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007.

BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de immanuel Kant. Brasília: EdUNB, 1984.

FOUCAULT, Michel. segurança, Território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

kANT, Immanuel. “Para a Paz Perpétua” in GUINSBURG, J (org.). A paz perpétua: um projeto para hoje. São Paulo: Perspectiva, 2004.

PERELMAN, Chaïm & OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a Nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. “Extrato e Julgamento do Projeto para a Paz Perpétua do Abbé de Saint-Pierre” in ROUSSEAU, Jean-Jacques. rousseau e as relações internacio-nais. Brasília: EdUNB, 2003.

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INTERdISCIPLINARIdAdE, TRANSdISCIPLINARIdAdE &

EMPREENdEdORISMO POR MEIO dE NOvAS PRÁTICAS EduCACIONAIS: CRITICAL EXPLORATION

& PROJECT-bASEd LEARNINGÚrsula Maruyama, CEFET-RJ – [email protected]

Carla Mota Silva, UCB – [email protected]érgio Anversa, UCB – [email protected]

Nélio Georgini, Curso ER – [email protected]

Palavras-chave: interdisciplinaridade, empreendedorismo, criatividade, critical exploration, project-based learning.

1. INTROduÇÃO

O papel da escola renova-se com estudos e descobertas sobre o comportamento cerebral e, nesse contexto, a nova escola é a que assume o papel de “central estimula-dora da inteligência” (ANTUNES, 2012). O empreendedorismo e inovação são temas considerados como competências indispensáveis ao profissional deste século. à medida em que o mundo se transforma a cada instante, é fundamental estar atento aos novos desafios. Por conseguinte, por meio do processo de ensino-aprendizagem são incorpo-radas ao conhecimento estas novas mudanças.

O desenvolvimento econômico brasileiro está cada vez mais dependente destes pila-res para torná-lo mais sustentável nos próximos anos. O desenvolvimento de pesquisas no âmbito de análise de competências e gestão do conhecimento apresenta a impor-tância para o seu aprofundamento na atualidade (PERRENOUD, 2002; TAkEUCHI, NONAkA, 2008; STEIL, 2011). No entanto, como desenvolver competências inova-doras em sala de aula?

Fausto (2007) e Georgini (2007), em seus trabalhos sobre a área de construção civil e argumentação em aulas de inglês com executivos, identificaram as principais influências da educação corporativa, que poderão ser facilmente observadas nos demais setores:

• Competitividade – a educação e a capacitação das pessoas aumentam o valor de mercado da organização;

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• Perpetuidade – A educação corporativa transmite a herança cultural da organiza-ção, fazendo que todos os colaboradores da empresa conheçam a cultura organiza-cional de forma integral;

• Conectividade – A existência da integração de conhecimento entre o público inter-no e externo de uma dada empresa;

• Disponibilidade – A educação corporativa oferece informações de alto nível com fácil acesso para pessoas dispersas geograficamente.

• Cidadania – a empresa como formadora de atores sociais preparados para a cons-trução e a transformação da realidade social em que estão inseridos (Responsabili-dade Social Empresarial);

• Parceria – internamente entre os líderes e/ou gestores dos processos da organização e externamente com instituições de ensino e/ou de pesquisa; e

• Sustentabilidade – a educação corporativa como fonte geradora de resultados, agre-gando valores à empresa e aos negócios.

• Argumentação – o potencial argumentativo como fonte negociadora de ações no dia-a-dia de trabalho. Colaboradores argumentativos negociam melhor seus pensa-mentos e/ou inovações.

Uma das características para assimilação e uso do conhecimento tácito é a criação de comunidades de prática que fomentam a troca de experiências e ideias no âmbito técnico, de mercado ou estratégico. A partir da proposta desta pesquisa, objetiva-se apresentar diferentes experiências com métodos de ensino, com perfis diversificados de estudantes (i.e. nível básico, médio/técnico, graduação e educação corporativa), enfoques (i.e. educação ambiental, iniciação científica, extensão e ensino de idiomas) a fim de pro-porcionar ao leitor uma ampla gama de oportunidades para atuação no campo docente.

2. INTERdISCIPLINARIdAdE & TRANSdISCIPLINARIdAdE

Refletir sobre interdisciplinaridade significa discorrer sobre “mestiçagem” (MOITA LOPES, 2006). Traz aos pesquisadores a possibilidade de lidarem consigo mesmos e com todo o ferramental proporcionado pelo ‘fazer social’ do dia-a-dia (i.e., ultrapassa as “gavetas pedagógicas” outrora impostas pelo formalismo de uma prática pedagógica ‘uno’ disciplinar). Entender-se um professor-pesquisador interdisciplinar e com práti-cas (ações) pedagógicas interdisciplinares pressupõe a aceitação de ter que lidar com o inesperado e/ou o complexo no cenário interativo de sala de aula.

Para Ivani Fazenda (2013), a busca de um saber interdisciplinar, explicita-se na in-clusão de experiência docente em seu sentido, intencionalidade e funcionalidade dife-renciando o contexto científico do profissional e do prático. Da mesma forma, a autora

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entende que “quem habita o território da interdisciplinaridade não pode prescindir dos estudos transdisciplinares”.

Num processo de ensino-aprendizagem interdisciplinar não há signos fixos, já que a construção do significado, do mundo, das pessoas e de tudo que nos cerca não é finita e sim infinita, i.e., estamos lidando primeiramente com o mundo de interações comuni-cativas mediadas pela linguagem. Comunidade escolar numa realidade interdisciplinar trazem para escola seus desejos e anseios, pontos técnicos ou não expressos por palavras. Tais palavras ganham várias possibilidades interpretativas já que “uma palavra não se refere a um objeto isolado, mas a um grupo ou classe de objetos; portanto cada palavra já é uma generalização” (VIGOTSkI apud GEORGINI, 2007, p.21).

Tudo se torna possível num cenário pedagógico transdisciplinar. Um aluno, por exemplo, de engenharia civil pode nos trazer um texto acadêmico em inglês para tirar dúvidas de uma matéria de administração de recursos de uma obra. Tal material pode ser apresentado para qualquer docente seja ele de língua inglesa, administração e/ou engenharia. Muda-se, então, o foco do cenário pedagógico, i.e., a comunidade transdis-ciplinar poderá trabalhar em grupo aquele artigo integrando seu conhecimento técnico prévio para o enriquecimento social de todos. Cada professor poderá agregar e trocar ideias sobre o texto levado, neste exemplo, pelo aluno para que haja o debate necessário entre as áreas, a interdisciplinaridade com vistas ao ensino-aprendizagem de todos.

3. EMPREENdEdORISMO

Os empreendedores são, portanto, pessoas diferenciadas: possuem motivação sin-gular, são apaixonadas pelo que fazem não se contentam em ‘ser mais um na multidão’, querem ser reconhecidas e admiradas, referenciadas e imitadas, querem deixar um lega-do. Uma vez que os empreendedores estão revolucionando o mundo, o seu comporta-mento e o próprio processo empreendedor devem ser estudados e entendidos.

O empreendedor é também reconhecido como o locus de experimentação na gera-ção de novos conhecimentos (METCALFE, 2003). Aidar apresentou em sua pesquisa que no ano de 2009, aproximadamente 30 milhões de brasileiros estavam envolvidos em algum tipo de empreendimento em estágio inicial, assim como indícios de que o empreendedorismo por necessidade está aos poucos cedendo espaço ao empreendedo-rismo por oportunidade (AIDAR, 2010).

Alguns autores (PORTER, 1991; DOLABELA, 1999; DORNELAS, 2001) acre-ditam que somente por meio da ação empreendedora será possível manter o fluxo con-tínuo de inovação, capaz de gerar vantagem competitiva para indivíduos, localidades e economias nacionais. Enquanto outros (VALE, AMâNCIO, WILkINSON, 2008)

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apresentam a proposição do empreendedor como criador de redes submetidas a graus variados de inovação.

4. PARAdIGMAS EduCACIONAIS EMERGENTES

Para Cornelius Castoriádis81 (Κορνήλιος Καστοριάδης), considerado um dos maiores expoentes da filosofia francesa do século xx, a educação pertence a práxis, considerando que “ existe na práxis um ‘por fazer’, mas esse ‘por fazer’ é específico: é precisamente o desenvolvimento da autonomia do outro ou dos outros” (CASTORIADIS, 1982, p. 94). Assim, compreende-se que na relação pedagógica, o educador e o educan-do não se constituem em objetos, mas sujeitos do seu conhecimento e da sua história (OLIVEIRA, 2016).

Morin (2012) critica no paradigma moderno de ciência a fragmentação dos saberes pela separação entre o conhecimento científico e o da humanidade, bem como entre a natureza e a cultura. Afinal, “de que serviriam todos os saberes parciais senão para formar uma configuração que responda a nossas expectativas, nossos desejos, nossas in-terrogações cognitivas”?(MORIN, 2003, p.116). Por conseguinte, em seu livro ‘Os sete saberes necessários à educação do futuro’, apresenta o que ele mesmo chama de “ins-pirações para o educador” ou os “saberes necessários a uma boa prática educacional”.

Já para Mc Laren (1997) a pedagogia crítica precisa desenvolver uma visão não reducionista da ordem social; a de ver a sociedade como uma indeterminação irredutí-vel. O campo social estará sempre aberto e nós devemos ‘explorar suas fissuras, falhas, lacunas e silêncios” (op.cit., p. 142).

Em termos Piagetianos, deve-se chegar ao mundo com os seus próprios instrumentos intelectuais e compreendê-los, assimilá-los, a si mesmos. Um educador pode familia-rizar as crianças com alguns fenômenos, de tal forma que para instigar o seu interesse, para deixá-las levantar e responder às suas próprias perguntas, para deixá-las perceber que suas ideias são importantes para que elas tenham o interesse, a habilidade e a au-toconfiança para continuar por si mesmas. Estas são as bases para o pensamento de Eleonor Duckworth (2005, 2006, 2009) que criou a abordagem critical Exploration.

O critical Exploration fornece aos alunos segurança sobre a qual eles podem avaliar de forma colaborativa as suas próprias ideias e reivindicações. Com efeito, o desafio concretizado estabelece um contexto vivencial em que os entendimentos comuns po-dem ser forjados - e não apenas entre o professor e os alunos, mas também entre os próprios estudantes.

81 Filósofo, economista e psicanalista francês, de origem grega, defensor do conceito de autonomia política (1922-1997).

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Ao invés de avaliar ideias dos alunos, o professor estimula os alunos ao engaja-mento intelectual com o desafio de acordo com os termos de um discurso acadêmico estabelecido, como a análise literária ou investigação científica. Os alunos consideram o pensamento um do outro em relação aos seus próprios pensamentos e as suas obser-vações e explorações no campo de provas materiais em curso (CAVICCHI, CHIU, MCDONNELL, 2009). As negociações complexas que se seguem de forma confiável implicitamente servem para revelar tanto a diversidade intelectual representado dentro de qualquer sala de aula como a necessidade de normas e métodos compartilhados para os entendimentos de cooperação entre os indivíduos.

O problem Based Learning (PBL) ou Aprendizagem Baseada em Problemas foi bas-tante aceita no meio acadêmico e, na atualidade é reconhecida como o que há de mais moderno no ensino superior é um método educativo surgido na Universidade de Maastrich. De forma geral, os docentes expõem um caso para estudo aos estudantes, que estabelecidos em grupos de trabalho, identificam o problema, investigam, deba-tem, interpretam e produzem possíveis justificações e soluções ou resoluções, ou reco-mendações. krajcik e Blumenfeld (2006) apresentam as principais características desta abordagem, confirmando que no PBL os estudantes se engajam de forma real, dando significado a problemas que são importantes para eles e que são bem semelhantes aos que cientistas, matemáticos, escritores e historiadores possuem em suas rotinas.

5. METOdOLOGIA

Este trabalho tem como base metodológica a pesquisa qualitativa. A pesquisa foi realizada em campo, considerando-se elementos da etnografia e da observação partici-pante (FLICk, 2004), uma vez que é utilizada a observação dos bolsistas por meio da docente responsável pela disciplina.

Além disto, adotou-se o estudo múltiplo de caso (YIN, 2008), com a contribuição individual da experiência profissional dos autores. Assim o papel do observador é justamen-te distinguir entre os processos: a ideia central é permitir que o observador investigue o processo por dentro da experiência (BURGESS, 1995), utilizando elementos da abor-dagem critical Exploration ou do project Based Learning (PBL).

6. ESTudO MÚLTIPLO dE CASO

Os casos selecionados para esta pesquisa apresentaram uma variedade de enfoques, níveis de educação (básico, médio/técnico, graduação e complementar-continuada) a fim de apresentar as diversas maneiras de proposição para aprimoramento nos métodos de ensino.

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6.1. PROJETO ‘MÃOS À HORTA’: ENSINO TRANSdICIPLINAR NA EduCAÇÃO bÁSICA

Este projeto foi desenvolvido num período de aproximadamente cinco anos, numa escola particular de classe média alta situada na Zona Oeste da cidade do Rio de Ja-neiro. A referida escola segue fundamentos religiosos católicos e atendia, até 2004, crianças e adolescentes desde a educação infantil ao ensino fundamental II. Com o propósito de atender questões dos temas transversais, especificamente ambientais, a horta foi escolhida por ser um ambiente rico de possibilidades pedagógicas, onde se pôde fazer hibridações em vários contextos Educacionais. Apesar de monocultura, em geral, com viés nutricional ou medicinal, não apresentar elementos de formação do pensamento e ações para o desenvolvimento sustentável, a horta projetada para aquela escola, de técnica orgânica, permitiu trabalhar elementos de sustentabilidade no con-texto educacional.

Nesse sentido, em sua essência, tal projeto possibilitou provocar situações relevantes para o desenvolvimento de atividades práticas em Educação Ambiental (EA), a partir de diversos fatores, atendendo aos processos de ensino e aprendizagem da escola naque-le dado momento, tais como: (1) a aceitação da comunidade escolar, (2) a facilidade de envolver várias disciplinas de forma “espiralada”, partindo da estrutura curricular e da proposta pedagógica da escola, (3) a possibilidade de ser um objeto concreto no qual trabalha-se várias visões de sociedade (agricultura convencional e agroecológica), (4) a facilidade de interação com as novas tecnologias educacionais e (5) o aproveitamento dos “lixos” orgânicos produzidos na escola.

O envolvimento da comunidade escolar foi o fator essencial, pois possibilitou aber-tura para a proposta da horta orgânica. A partir de então, o trabalho começou a fluir na criação de práticas “flexíveis” condizentes as questões da EA. O primeiro passo foi à criação de canteiros móveis construídos com matérias oriundas da vegetação local (como o bambu) e de sobras de construções e demolições, provenientes de obras da escola. Em seguida, construiu-se um minhocário e uma área de compostagem com os mesmos recursos.

O material utilizado na estrutura dos canteiros, o bambu, é um bom exemplo de atendimento a diversos aspectos na questão da EA, tais como a mobilidade, permitindo a criação e desenvolvimento de outras estruturas de canteiros, a proteção e amorte-cimento de quedas dos alunos, o que não ocorre em canteiros de alvenaria, além da abordagem de bioarquitetura.

Diante disso, o Projeto Mãos à Horta possibilitou o enriquecimento e o atendimen-to dos princípios da transversalidade enquanto eixo estruturador de novas práticas de

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Educação Ambiental no ensino formal, mostrando ser um caminho para a produção de novas experiências, contribuindo para a construção e valorização de saberes.

6.2. CRITICAL EXPLORATION NA INICIAÇÃO CIENTíFICA: INTEGRANdO ENSINO E PESquISA NO ENSINO MÉdIO TECNOLóGICO82

Este trabalho apresenta a experiência do projeto elaborado com a finalidade de pesquisar o conceito de inovação, assim como o seu processo de inovação no meio acadêmico, especialmente no âmbito da educação tecnológica. Para tanto foi desenvol-vida a metodologia Critical Exploration a perspectiva interdisciplinar na formação dos bolsistas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica no Ensino Médio (PIBIC-EM) ao longo de 18 meses83, iniciando-se no primeiro semestre de 2012. A estrutura do projeto de iniciação científica foi construída da seguinte forma:

Figura 1 – Planejamento do Programa PIBIC-EMFonte: Maruyama et al (2013)

O intuito na separação do projeto por etapas e fases é introduzir gradualmente ao aluno ao universo da pesquisa científica para que estes consigam desenvolver suas habi-lidades naturalmente sem um “choque cultural” ou imposição de ideias. O objetivo é que o ato de pesquisar seja construído ao longo do processo por meio dos diálogos entre professor e aluno, além das tarefas solicitadas pelo professor ao longo de todas as fases.

A participação do bolsista, assim como a sugestão de novas perspectivas é contínua. A comunicação é realizada abertamente e a geração de propostas de atividades é incen-

82 Baseado no artigo “CRITICAL ExPLORATION E INTERDISCIPLINARIDADE NA FORMA-ÇÃO DE JOVENS CIENTISTAS DO ENSINO TÉCNICO PROFISSIONALIZANTE: UM RE-LATO DA INICIAÇÃO CIENTÍFICA PIBIC-EM NO CEFET-RJ” (MARUYAMA, U. et al, 2013), aceito e publicado no Congresso Virtual Brasileiro de Administração, CONVIBRA 2013. Disponível em: http://www.convibra.com.br/artigo.asp?ev=16&id=666683 Embora oficialmente o programa fosse de 12 meses.

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tivada ao longo do projeto. Considerando a inexperiência do bolsista iniciante, uma linha de orientação foi criada pelo professor apenas para guiar de forma complementar o raciocínio do estudante para que este sinta segurança em adaptar-se a este novo meio.

6.2.1. Primeira Fase: Introdução à iniciação científica

O primeiro encontro foi realizado com os estudantes de forma bastante descontra-ída e informal para deixá-los confortáveis com o início do projeto. O objetivo foi apre-sentar um panorama geral e informar que o principal objetivo em relação aos bolsistas estava vinculado ao seu aprendizado, pois na “pesquisa científica não havia certo ou errado”, portanto, o importante seria o desenvolvimento do projeto, a análise de cada etapa e sua conclusão com as lições aprendidas. Para complementar a vivência dos alu-nos foram realizadas visitas externas, não necessariamente vinculadas de forma direta à pesquisa. O objetivo foi estimular o senso crítico, habilidade de construir questiona-mentos e desenvolver hipóteses. A primeira destas visitas foi realizada no Real Gabinete Português de Leitura, onde foi apresentado aos alunos como poderia ser realizada a pesquisa numa biblioteca pública.

Outro aspecto escolhido para desenvolver o grau de abstração no pensamento dos alunos ao longo do desenvolvimento de pesquisa científica, foi o contato com a arte. Para tanto, dois lugares foram visitados para instigar este diálogo com a ciência (e posteriormente com o processo de inovação): o Museu Hélio Oiticica por meio da exposição de Charles Chaplin e o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) por meio da exposição de Tarsila do Amaral.

Estas visitas contribuíram de forma significativa a um diálogo mais interdisciplinar e para desconstruir conceitos estagnados de ciência: necessários para a compreensão do processo criativo que impulsionará o desenvolvimento científico, assim com a própria invenção e inovação.

6.2.2. Segunda Fase: seminários

O seminário sobre as leituras solicitadas na fase anterior foi realizado no início do mês de junho contando como convidado o coordenador do Projeto PIBIC-EM (2012), Marco Antônio Barbosa Braga D. Sc., o qual interagiu com os estudantes contribuin-do com a motivação dos mesmos diante do desenvolvimento de seus estudos. Com a apresentação do seminário, os alunos mostraram-se mais interessados, comprometidos e maduros ante a pesquisa científica.

A partir de então, foi organizado um encontro com a professora do MIT (Massa-chussets institute of Technology), Elizabeth Cavicchi, a qual gentilmente dispôs de uma

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tarde de sua estadia no Brasil para apresentar o seu trabalho (CAVICCHI, 2011) aos alunos e dialogar sobre investigação científica. A identificação foi imediata, os bolsistas sentiram-se muito confortáveis com a professora, apesar da barreira linguística, os estu-dantes se esforçaram para falar em inglês, expor seus pensamentos, angústias científicas e ideias acerca de projetos. A professora indicou o filme “As aventuras de Hugo Cabret” para que os alunos percebessem pontos desenvolvidos no trabalho apresentado por ela.

Figura 2 – Encontros com a professora Elisabeth Cavicchi na Casa França-Brasil (2011)

Após este encontro os bolsistas foram preparados para ingressar na terceira fase do projeto, ou seja, colocar em prática as competências desenvolvidas na iniciação científica.

6.2.3. Terceira fase: implementação da pesquisa e elaboração de relatório

Na terceira fase os alunos acompanharam como facilitadores na disciplina Empre-endedorismo, referente à turma do segundo período do curso técnico de Administra-ção, ao longo de cinco meses. Uma vez por semana por aproximadamente 100 mi-nutos (dois tempos de aula), os bolsistas dedicaram ao desenvolvimento de propostas interdisciplinares, utilizando a abordagem critical Exploration com cerca de 40 alunos matriculados nesta disciplina.

As atividades eram realizadas em grupos menores, onde cada bolsista era responsá-vel por aproximadamente 13 alunos. Antes de cada aula, os bolsistas reuniam-se com a professora para discutir os pontos que seriam desenvolvidos em sala de aula e para apresentar as suas considerações sobre o desenvolvimento dos alunos envolvidos em suas respectivas equipes. A cada mês, a professora observava o desenvolvimento destes bolsistas e dos alunos que os acompanhavam. Estes tópicos eram discutidos para que o trabalho fosse desenvolvido e novas ideias sobre o conteúdo programático surgiram trans-formando-se em novas estratégias de aula. Conforme apresentado por Sennett (2009), a ideia era o retorno do contato professor-aluno, como a relação artífice-aprendiz, onde o aprendizado realizava-se ao longo do tempo por meio da observação e ação conjunta.

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A divisão do acompanhamento de iniciação científica e orientação docente por fases apresentou um resultado satisfatório na medida em que o progresso no desenvol-vimento de habilidades em competências mostrava-se mais evidente aos demais pro-fissionais que observavam os bolsistas. A atuação em sala de aula junto ao professor, liderando e respondendo por atividades direcionadas em pequenos grupos, desafiou os bolsistas a questionar os seus conhecimentos teóricos confrontando com a prática. Os relatos destes bolsistas ao final do programa corroboraram com as percepções docen-tes e ratificaram também que os elementos utilizados na formação destes estudantes comprovaram-se satisfatórios

Por meio dos relatos destes estudantes, além do resultado positivo, indica-se um potencial para que mais estudos com base epistemológica construtivista possam ser uti-lizados também no ensino técnico e de engenharia. Após quase três anos de encerrado o projeto de iniciação científica. Os bolsistas PIBIC-EM, atualmente estudam nos cursos de Administração e Economia da UFRJ e continuam mantendo contato e trocando suas experiências e reflexões epistemológicas.

6.3. MARKETING 360°: ENSINO E EXTENSÃO NA GRAduAÇÃO

O Projeto Marketing 360º, realizada na universidade UNISUAM, campus Bonsucesso, ocorreu durante o primeiro semestre de 2016, e resultou num evento final de extensão realizado pelos alunos. O objetivo do projeto foi possibili-tar gerar a experimentação e conhecimento do serviço oferecido por um cliente real, promovido pela turma e sua justificativa, dentro da perspectiva do ensino--aprendizagem foi permitir a aplicação do conhecimento adquirido na disciplina de Marketing Digital.

Como metodologia de ensino e detalhamento das atividades pedagógicas, foi utili-zada o PBL (problem Based Learning), em que os alunos foram apresentados a um case de um cliente real. O projeto foi realizado por toda a turma, de forma integrada, par-tindo da pré-definição dos objetivos estratégicos para o cliente/marca, apoiando-se na interdisciplinaridade, pois requereu a aplicação de conhecimentos adquiridos e compe-tências desenvolvidas ao longo da trajetória acadêmica do aluno em outras disciplinas já vistas nos cursos de Marketing e Publicidade

Os alunos foram desafiados então a identificar as necessidades do cliente, para em seguida, delimitar o problema e pensar a solução dentro do escopo e atividades do marketing digital. A partir daí, foram definidas as estratégias e táticas de marketing a serem desenvolvidas, com a culminância e suporte em redes sociais, para a aplicação dos fundamentos e ferramentas do marketing digital.

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A primeira etapa, de levantamento das necessidades e descrição das atividades, foi concretizada, na segunda etapa, por meio da definição de tarefas a serem desenvolvidas pelos alunos da turma, sob um planejamento desenvolvido em conjunto, contendo cronograma de implementação e indicadores de desempenho a serem atingidos (kPI). Para tal, os alunos foram organizados em células de trabalho (equipes) a partir de suas habilidades e principais competências desenvolvidas em seus cursos (Marketing e Pu-blicidade), simulando um ambiente real de trabalho semelhante ao de projetos corpo-rativos. O progresso das atividades e sua contribuição para a obtenção dos objetivos foi compartilhada por toda turma ao longo do semestre.

Figura 3 – Estudantes em atuação na execução do encontro UNISUAM (2016)

As atividades desenvolvidas em sala tiveram como culminância a realização de um evento de experimentação do serviço oferecido pelo cliente (Massoterapia Alternativa) no campus Bonsucesso da universidade UNISUAM. Assim, todas as atividades de di-vulgação em mídias digitais bem como as ferramentas de acompanhamento e mensu-ração discutidas em sala, foram aplicadas em prol da promoção da ação de marketing, que aconteceu offline (presenciais, fora da web). O que justificou o nome Marketing 360º, por tangenciar as duas dimensões: online e offline. Ao fim do semestre, além dos objetivos pedagógicos e atitudinais previstos para esta disciplina, os objetivos qualitati-vos e quantitativos do cliente também foram alcançados.

6.4 PRÁTICA PEdAGóGICA NA EduCAÇÃO CORPORATIvA: ENSINO dE LíNGuA INGLESA84

Numa sala de aula de língua inglesa, tudo literalmente pode acontecer, principalmen-te quando se trabalha com alunos no sistema one-to-one tuition (i.e., aulas particulares).

84 Baseado na dissertação de mestrado de Nélio Georgini. Dissertação de Mestrado apresentada ao Pro-grama Interdisciplinar de Linguística Aplicada, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Linguística Aplicada, 2007. Respeitou-se a escrita original baseada num relato pelo autor (em primeira pessoa).

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O caso trazido é um recorte de uma aula cujo o professor era eu (Nélio Georgini) e o aluno era um diretor de Recursos Humanos de uma empresa farmacêutica francesa (nome fictício Mário85) que acreditava não ser fluente em língua inglesa. O meu obje-tivo como professor era a construção de um processo argumentativo com o aluno que sempre se mostrava lacônico, i.e., respondia sim e não para tudo. Tal comportamento me parecia pouco motivador e como um professor-pesquisador-empreendedor trans-disciplinar me sentia desafiado a ter um plano pedagógico que pudesse fazê-lo desen-volver um potencial argumentativo (DOLZ & SCHNEUWLY, 1998) mais adequado e motivador esperado de um diretor de Recursos Humanos.

Para levar em consideração nosso desenvolvimento pedagógico calcado em nossa bagagem cultural, tive que levar em consideração o fato proposto por Bakthin (1929, p.127) de que a “realidade linguística é um processo de evolução ininterrupto, que se realiza através da interação social dos locutores”. Portanto, como mediador/responsável pelo processo educacional, tentei estabelecer um processo de reflexão abrindo-me à realidade evolutiva acerca da linguagem proposta por Bakhtin (1929).

Trago, então, um recorte de minha aula com Mário para exemplificar o quanto um professor de inglês empreendedor pode ir além de ensinar o verbo to be. O meu objetivo era tentar desestabilizar a crença na imutabilidade dos fatos passados, tal como parece ser a origem dos conceitos “fossilizados” de Mário. Meu aluno não me deixa continuar meus ensinamentos sobre o passado. Vejamos a sequência de aula n.44:

Seqüência 44

118 PROF: ok. but how do you [de-119 MáRIO: [to me- to me this is very simple. you just120 ignore the past. PAST has connections with the present and the121 future. ok? the past has a connection. there is no- there is no- we122 are all connected. we are not ……one person one day and another123 person another day. we are part of one connected system. so you124 cannot ignore- you cannot ignore the past. NOW you have to125 balance. you have to have an equilibrium. in the way- in the way126 you put a weight on something. so you cannot just overweigh the127 past without giving opportunity for the present and without giving128 a weight for the future. because things CHANge ……

Estávamos conversando, anteriormente, sobre uma situação hipotética sobre viciados em drogas. Mário se manteve firme dizendo que “é muito difícil mudar e que acha pouco possível que haja ex-viciados que possam ser bem-sucedidos”. Então, foco a situação

85 Adaptado o nome fictício para este ensaio.

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hipotética ao seu filho (i.e., crio uma situação hipotética relatando que o filho dele era o ex-viciado). Realizo, então, o recorte acima para mostrar o quanto conseguimos refletir a “liquidez” das realidades (BAUMAN, 2003).

Passado, presente e futuro se tornam a tônica desta sequência escolhida para ser analisada. Tento começar questionando Mário sobre a possibilidade que temos de mu-dança (i.e., não somos “parados” no tempo). Ele sobrepõe minha fala (a partir da linha 118) e mostra que está refletindo e tentando desestabilizar seus conceitos acerca da situação hipotética que lhe criei, mais precisamente acerca do tópico “PASSADO” que ele mesmo trouxe para nosso embate.

Ele parece ser estar desestabilizado sobre a complexidade que dera ao assunto quanto a possibilidade de mudarmos tudo, já que para ele (um engenheiro químico), tal assunto é muito simples: o passado tem conexões com o presente e com o futuro. Ele me ensina, conforme a sequência acima, que a pessoa não pode ser uma em um dia e outra no outro (cf. linhas 119-123). Constrói seu pensamento, então, dizendo que nós somos partes de um sistema conectado no qual não se pode esquecer o pas-sado (cf. linhas 123-124). Ensina, também, que tem que se balancear, tem que se ter um equilíbrio, no sentido de pesar os fatos/realidades (cf. linhas 124-125). O aluno conclui seu pensamento dizendo que não se pode dar um grande peso ao passado sem oportunizar o presente e o futuro (cf. linhas 126 –127), porque as coisas mudam (cf. linha 128).

Chamo atenção, novamente, dos leitores deste trabalho, para o fato de como minhas atitudes discursivas no processo de ensino-aprendizagem foram profícuas não somente no sentido de proporcionar aprimoramento oral com foco no gênero argumentativo, mas também desestabilizar seus conceitos “fossilizados” e, consequentemente, mudar aos poucos os seus pensamentos “negativos” acerca da possibilidade de mudança.

Observando a sequência pelo viés discursivo pedagógico transdisciplinar, posso di-zer que conseguimos desenvolver um trabalho de desenvolvimento da habilidade oral do aluno que, até então, era lacônica, ele se mantinha respondendo sim ou não para tudo que se perguntasse, inclusive, esse fora o motivo para que se contratar um pro-fessor de inglês. Percebe-se que o aluno conseguiu se comunicar além do que fazia, ou seja, ele não só falou como defendeu sua ideia. Além disso, como ganho transdiscipli-nar, observamos que ele começa a perceber que as “realidades mudam” (cf. linha 128). Mais do que o potencial argumentativo em língua inglesa, temos um ganho de melhor cidadania, já que teremos um Diretor de Recursos Humanos com a habilidade de lidar com a possibilidade de mudanças que são inerentes ao ser humano, ou seja, não somos máquinas que trabalham da mesma forma sempre.

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6.5 RESuMO dOS CASOS ESTudAdOS

A seguir, apresentamos uma síntese de nossos trabalhos como uma forma de com-preender a diversidade nas características dos objetos de nossas pesquisas em relação às propostas de métodos no ensino.

quadro 1 – Seleção do estudo de casos múltiplos para análise

CASO ENSINO ÁREA MÉTOdOMÃOS À HORTA

BáSICO PRIVADO EDUCAÇÃO AMBIENTAL

PBL

PIbIC-EM

CEFET-RJ

MÉDIO/TÉCNICO

PÚBLICO INICIAÇÃO CIENTÍFICA/ INOVAÇÃO

CRITICAL ExPLORATION

MARKETING 360°

GRADUAÇÃO PRIVADO MARkETING PBL

CuRSO ER CORPORATIVO PRIVADO LÍNGUA INGLESA

Análise do discurso (BAkHTIN, 2003)

Fonte: Elaborado pelos autores

Ao observar a variedade de

7. CONSIdERAÇõES FINAIS

É necessário que se estabeleça estratégias de ensino que estimulem os alunos a ques-tionar, que os deem oportunidades de viver os conceitos vividos em sala de aula, que quebre os padrões de ensino de vez em quando, que estimule o trabalho em grupo, a criatividade, atitudes, argumentação e liderança. O project Based Learning (PBL) é in-troduzido no âmbito acadêmico com esta finalidade: instigar os estudantes a ultrapassar os limites, a refletir para que novas portas de novas soluções sejam abertas.

Uma das vantagens de se estimular os questionamentos reside no fato de que quan-do ‘o aluno passa a questionar sobre um determinado tema’ é porque este ‘está enten-dendo o que está sendo passado’ e com consequente aumento de interesse pelo tema. Porém, não basta apenas que os alunos perguntem, o professor deve despertar a curio-sidade, a fim de que este aprendizado possa ser consolidado, tornando as aulas mais dinâmicas. A partir daí o enfoque critical Exploration, criado pela professora Eleonor Duckworth ganha força.

Ao longo do desenvolvimento desta experiência de ensino, os docentes responsáveis por cada grupo de estudantes envolvidos no processo, observou um comportamento

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proativo e receptivo às práticas realizadas. Espera-se que com a apresentação destas ini-ciativas, mais docentes sejam motivados a compartilhar suas experiências e estimular a interdisciplinaridade, a transdisciplinaridade e empreendedorismo nas suas atividades.

Agradecimentos

à professora Elizabeth Cavicchi do MIT (Massachussetts Institute of Technology) por compartilhar as suas experiências e apresentar a professora Eleonor Duckworth (Harvard University). A todos os estudantes que compuseram e contribuíram para as experiências docentes aqui relatadas. Em especial, nosso agradecimento ao professor Antônio Maurício Castanheira pelo convite à publicação deste trabalho e apoio in-comensurável ao grupo de pesquisa.

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