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14 Cógito Salvador • n.11 p. 14 -19 Outubro. 2010 Campo do poder, segundo Pierre Bourdieu. Unitermos: poder; campo; produção cultural; espaço social; lutas concorrenciais. Resumo Pretendo apresentar, neste trabalho, algumas pistas da complexa rede teórica de Pierre Bourdieu sobre o poder, o qual está sempre presente e imiscuído nos campos de produção intelectual, científica e artística (campo cultural). Para este sociólogo francês, as relações de poder, explícitas ou implícitas, conscientes ou inconscientes, permeiam todas as relações humanas, em todos os campos que fazem parte do espaço social. Para tanto, tentarei dar uma idéia de sua teoria dos campos, que constituem a pluralidade dos mundos possíveis no espaço social em que vivemos, com suas lógicas e com suas leis próprias de funcionamento, apesar de suas especificidades. Mas há invariantes, ou homologias, na estrutura de todos os campos: as lutas concorrenciais, ou seja, a luta pelo poder, que não é o poder político. No campo cultural, o poder diz respeito à disputa pela autoridade, pela legitimidade, pela autenticidade e pelo domínio dos signos, dos sentidos, das interpretações. *Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico da Bahia, Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA) e Doutora em Ciências Sociais (UFBA). Campo do poder, segundo Pierre Bourdieu. Denise Maria de Oliveira Lima* Bourdieu inicia seu trabalho intitulado Campo de poder, cam- po intelectual com uma epígrafe em que cita Proust ( Sodoma e Gomorra): "As teorias e as es- colas, como os micróbios e os glóbulos, se devoram entre si e com sua luta asseguram a con- tinuidade da vida" (BOURDIEU, 1983, p. 8). O conceito de campo inte- lectual marca uma ruptura na sociologia da cultura: foi construído por Pierre Bourdieu (1930-2002) a partir de suas in- vestigações sobre o sistema escolar francês, a formação das elites intelectuais, a percepção artística e as formas de consu- mo estético e, principalmente, sobre o processo de autonomização do campo literá- rio, modelo inicial de seu pensa- mento sobre a autonomia relati- va dos campos. O campo intelectual, campo de produção de bens simbólicos, dentre outros campos do espa- ço social, permite compreender um autor ou uma obra, ou ainda, uma formação cultural, em ter- mos que transcendem a visão substancialista, não relacional (a que considera o autor ou a obra em si mesma) bem como a vi- são estruturalista (a que consi- dera apenas os determinantes sociais da produção). Bourdieu sustenta que um criador e sua obra são determi- nados pelo sistema das relações sociais, nas quais a criação se realiza, como um ato de comu- nicação e pela posição que o cri- ador ocupa na estrutura do cam- po intelectual - este irredutível a um simples agregado de agen- tes ou instituições isoladas. O campo intelectual, ao modo do campo magnético, constitui um sistema de linhas de força: os agentes e instituições estão em uma relação de forças que se opõem e se agregam, em sua estrutura específica, em um lu- gar e momento dados no tempo. Cada um deles (agentes e instituições) está determinado por sua pertença a este campo, ou seja, à posição particular que ocupa, em especial a um tipo determinado de participação no campo cultural como sistema de relações entre os temas e os problemas e, por isso, a um tipo determinado de inconsciente cultural. O seu poder no campo não pode definir-se independen- temente de sua posição no cam- po. Tal enfoque só tem funda- mento na medida em que o cam- po intelectual (e por isso, o cam- po cultural) esteja dotado de

Campo Do Poder Segundo Pierre Bourdieu

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Campo do poder

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  • 14 Cgito Salvador n.11 p. 14 -19 Outubro. 2010

    Campo do poder, segundo Pierre Bourdieu.

    Unitermos: poder; campo; produocultural; espao social; lutasconcorrenciais.

    ResumoPretendo apresentar, neste trabalho,algumas pistas da complexa redeterica de Pierre Bourdieu sobre opoder, o qual est sempre presente eimiscudo nos campos de produointelectual, cientfica e artstica(campo cultural). Para este socilogofrancs, as relaes de poder,explcitas ou implcitas, conscientesou inconscientes, permeiam todas asrelaes humanas, em todos oscampos que fazem parte do espaosocial.

    Para tanto, tentarei dar uma idia desua teoria dos campos, queconstituem a pluralidade dos mundospossveis no espao social em quevivemos, com suas lgicas e comsuas leis prprias de funcionamento,apesar de suas especificidades. Mash invariantes, ou homologias, naestrutura de todos os campos: aslutas concorrenciais, ou seja, a lutapelo poder, que no o poder poltico.No campo cultural, o poder diz respeito disputa pela autoridade, pelalegitimidade, pela autenticidade e pelodomnio dos signos, dos sentidos, dasinterpretaes.

    *Psicanalista, membro do Crculo Psicanalticoda Bahia, Mestre em Comunicao e CulturaContemporneas (UFBA) e Doutora emCincias Sociais (UFBA).

    Campo do poder, segundo Pierre Bourdieu.

    Denise Maria de Oliveira Lima*

    Bourdieu inicia seu trabalhointitulado Campo de poder, cam-po intelectual com uma epgrafeem que cita Proust (Sodoma eGomorra): "As teorias e as es-colas, como os micrbios e osglbulos, se devoram entre si ecom sua luta asseguram a con-tinuidade da vida" (BOURDIEU,1983, p. 8).

    O conceito de campo inte-lectual marca uma ruptura nasociologia da cultura: foiconstrudo por Pierre Bourdieu(1930-2002) a partir de suas in-vestigaes sobre o sistemaescolar francs, a formao daselites intelectuais, a percepoartstica e as formas de consu-mo esttico e, principalmente,sobre o processo deautonomizao do campo liter-rio, modelo inicial de seu pensa-mento sobre a autonomia relati-va dos campos.

    O campo intelectual, campode produo de bens simblicos,dentre outros campos do espa-o social, permite compreenderum autor ou uma obra, ou ainda,uma formao cultural, em ter-mos que transcendem a visosubstancialista, no relacional (aque considera o autor ou a obraem si mesma) bem como a vi-so estruturalista (a que consi-dera apenas os determinantes

    sociais da produo).Bourdieu sustenta que um

    criador e sua obra so determi-nados pelo sistema das relaessociais, nas quais a criao serealiza, como um ato de comu-nicao e pela posio que o cri-ador ocupa na estrutura do cam-po intelectual - este irredutvel aum simples agregado de agen-tes ou instituies isoladas. Ocampo intelectual, ao modo docampo magntico, constitui umsistema de linhas de fora: osagentes e instituies esto emuma relao de foras que seopem e se agregam, em suaestrutura especfica, em um lu-gar e momento dados no tempo.

    Cada um deles (agentes einstituies) est determinadopor sua pertena a este campo,ou seja, posio particular queocupa, em especial a um tipodeterminado de participao nocampo cultural como sistema derelaes entre os temas e osproblemas e, por isso, a um tipodeterminado de inconscientecultural. O seu poder no campono pode definir-se independen-temente de sua posio no cam-po.

    Tal enfoque s tem funda-mento na medida em que o cam-po intelectual (e por isso, o cam-po cultural) esteja dotado de

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    uma autonomia relativa, ou seja,que tenha se constitudo, por umprocesso de autonomizao, emum sistema regido por leis pr-prias.

    A histria da vida intelectualse definiu por oposio ao podereconmico, ao poder poltico e aopoder religioso, ou seja, a todasas instncias que podiam pre-tender legislar, em matria decultura, em nome do poder deuma autoridade que no fosseintelectual. Dominada durantetoda a idade clssica, por umainstncia de legitimidade exteri-or, a vida intelectual se organi-zou progressivamente em umcampo intelectual, medida queos criadores se libertaram, eco-nmica e socialmente, da tutelada aristocracia e da igreja e deseus valores ticos e estticos.E tambm medida que foramaparecendo instncias de con-sagrao e reconhecimento pro-priamente intelectuais, as quaiscumprem a funo de legitimida-de cultural (mesmo quando osprodutores ficam subordinadoss restries econmicas e so-ciais que pesam sobre a vida in-telectual).

    Assim, medida que semultiplicam e se diferenciam asinstncias de consagrao inte-lectual e artstica, tais como asescolas, as academias, os sa-les, as associaes cientficase culturais, e, tambm, as ins-tncias de difuso cultural, taiscomo as editoras, a imprensa,os museus etc., e tambm medida que o pblico se esten-de e se diversifica, o campo in-telectual torna-se um sistemacada vez mais complexo e maisindependente das influnciasexternas.

    Weber (2004), de cuja obra

    Bourdieu se apropriou, entre ou-tros tantos pensadores, para for-mular os seus conceitos, tratadesse assunto: seu conceito desecularizao diz respeito aosprocessos de autonomia pro-gressiva do campo da cincia eda arte em relao aos cnonesreligiosos, dominantes por scu-los.

    Mas o que vem a ser essecampo do poder que permeiatodos os outros campos? No o poder poltico!

    Temos que nos remeter aoconceito de "campo" para depoiscompreender o que esse po-der do qual no h possibilidadede escapar.

    J apresentei um trabalhosobre a teoria dos campos, emBourdieu, e a psicanl ise,intitulado "Uma abordagem soci-olgica para a constituio,legitimao e autonomizao dapsicanlise como um campo",que foi publicado num livro orga-nizado por Anglia Teixeira,Especificidades da tica da psi-canlise, em 2005.

    um trabalho to maantequanto interessante, fundamen-tado, entre outros textos deBourdieu, por sua Regras da arte- Gnese e estrutura do campoliterrio (1992), em que ele ana-lisa um romance de Flaubert,Educao sentimental , paramostrar como o campo da lite-ratura foi ganhando sua autono-mia relativa. Autonomia em rela-o aos cnones da aristocraciae da igreja. Relativa porque ain-da depende do campo do poder.

    A teoria dos campos diz res-peito pluralidade dos aspectosque constitui a realidade do mun-do social, a pluralidade dos mun-dos, pluralidade das lgicas quecorrespondem aos diferentes

    mundos, aos diferentes camposcomo lugares onde se constro-em sentidos comuns. DizBourdieu:

    Compreender a gnese social deum campo e apreender aquiloque faz a necessidade especfi-ca da crena que o sustenta, dojogo de linguagem que nele sejoga, das coisas materiais e sim-blicas em jogo que nele se ge-ram, explicar, tornar necess-rio, subtrair ao absurdo doarbitrrio e do no motivado osatos dos produtores e as obraspor eles produzidas (BOURDIEU,1998, p. 69. Grifo da autora).

    Conceito bsico na obra deBourdieu, o campo o espaode prticas* especficas, relati-vamente autnomo, dotado deuma histria prpria; caracteri-zado por um espao de poss-veis, que tende a orientar a bus-ca dos agentes, definindo umuniverso de problemas, de refe-rncias, de marcas intelectuais- todo um sistema de coordena-das, relacionadas umas com asoutras, que preciso ter emmente ( no quer dizer na cons-cincia) para se entrar no jogo.Entrar no jogo manejar essesistema de coordenadas.

    O campo estruturado pe-las relaes objetivas entre asposies ocupadas pelos agen-tes e instituies, que determi-nam a forma de suas interaes;o que configura um campo soas posies, as lutasconcorrenciais e os interesses.

    no horizonte particular dessasrelaes de fora especficas, ede lutas que tem por objetivoconserv-las ou transform-las,

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    que se engendram as estratgi-as dos produtores, a forma dearte que defendem, as alianasque estabelecem, as escolasque fundam e isso por meio dosinteresses especficos que a sodeterminados (BOURDIEU,1996, p. 61).

    Um campo faz parte do es-pao social - e, portanto, tomadele as suas caractersticas -conceito que Bourdieu descrevecomo espao de posies dosagentes e das instituies quenele esto situados, que, a de-pender do peso e do volume glo-bal dos capitais que possuem,so distribudas em posiesdominadas e dominantes. Osmais importantes em nossa cul-tura: o capital econmico, o ca-pital simblico e o capital cultu-ral.

    A par das propriedades es-pecficas de cada campo - da li-teratura, da filosofia, da cinciae da psicanlise - existe tambmuma homologia, tanto estruturalquanto de funcionamento, nosentido de invariantes, de lgicasde constituio e de transforma-o comuns a todos os campos.

    O campo sempre caracte-rizado pelas lutas concorrenciaisentre os agentes, em torno deinteresses especf icos. Porexemplo, no campo da cincia aslutas concorrenciais acontecemem torno da autoridade cientfi-ca; no campo da arte, em tornoda legitimidade (ou autenticida-de) dos produtos artsticos; nocampo da psicanlise, em tornoda autoridade psicanaltica (ouseja, quem tem autoridade parafalar da psicanlise, para serpsicanalista) - que foi delegada,inicialmente pela autoridade mai-or, Freud, e, depois, por seus dis-cpulos e as instituies que cri-aram, os quais fizeram parte da

    histria da constituio dessecampo.

    O caso da psicanlise podeser considerado sui generis, por-que foi uma inveno sem pre-cedentes, e, portanto, fundadainicialmente sobre uma nicaautoridade, a de Freud. Poder-se-ia dizer que a psicanlise jnasceu com relativa autonomia,pois, desde seu incio, encontra-va-se independente com relao medicina, ao estado, s univer-sidades e... por completo domercado e da moral vigente dapoca.

    Essas lutas concorrenciaisocorrem tanto no interior de cadacampo como externamente, emrelao a outros campos. Quan-do se fala de luta, de diviso emcampos antagnicos, de jogo,quer-se dizer a relao a umpoder. O campo estruturado apartir das relaes de poder, quese traduz em uma oposio deforas, distribudas entre posi-es dominantes e posiesdominadas, segundo o capitalsimblico, econmico e culturaldos agentes e instituies.

    O campo de poder, que nose confunde com o campo pol-tico, o espao de relaes defora entre os diferentes tipos decapital ou entre os agentes pro-vidos de um dos diferentes tiposde capital para poderem dominaro campo. No caso da psicanli-se, dois tipos de capital se tmem conta, principalmente: o cul-tural e o simblico. O capitaleconmico dos agentes e insti-tuies, embora possa ter algumpeso, no tem nenhuma relevn-cia no campo da psicanlise.

    A depender da posio queocupam na estrutura do campo,ou seja, na distribuio do capi-tal simblico especfico, os agen-tes usam de estratgias, que sotomadas de posio, que podemser de legitimao (conservao)

    ou de subverso, estas em con-fronto permanente com as for-as de conservao - o que noimplica em mudanas dos prin-cpios de poder que estruturamum campo. Poderamos dizerque Lacan, dotado de capital sim-blico e cultural significativo,subverteu as regras do jogo, atento dominadas pela IPA, e foiseguido por seus discpulos, empermanentes lutasconcorrenciais pela legitimidadede seu legado.

    Perpetuar ou subverter asregras do jogo, atravs das es-tratgias dos agentes, uma ten-dncia que passa pela mediaode seus habitus. Habitus umanoo primordial na sociologiade Bourdieu, que diz respeitoaos sistemas de percepo, deapreciao, de gosto, ou comoprincpios de classificao incor-porados pelos agentes a partirdas estruturas sociais presentesem um momento dado, em umlugar dado, que vo orient-losem suas aes.

    Essas estratgias tambmdependem do espao de possi-bilidades herdado de lutas ante-riores (histria do campo) quetende a definir os espaos detomadas de posio possveis eorientar assim a busca de solu-es e, consequentemente, aevoluo da produo do cam-po.

    Vemos que a relao entreas posies e as tomadas deposio nada tem de uma deter-minao mecnica: cada produ-tor, artista, psicanalista, cientis-ta, constri seu prprio projetocriador em funo da sua per-cepo das possibilidades dis-ponveis, oferecidas pelas cate-gorias de percepo eapreciao inscritas em seuhabitus. Segundo Bourdieu,

    [...] para resumir em poucas fra-

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    ses uma teoria complexa, eu di-ria que cada autor, enquanto ocu-pa uma posio no espao, isto, em um campo de foras [...]s existe e subsiste sob as limi-taes estruturadas do campo;mas ele tambm afirma a distn-cia diferencial constitutiva de suaposio, seu ponto de vista, en-tendido como vista a partir deum ponto (BOURDIEU, 1996, p.64).

    O campo estabelece as mo-dalidades de consagrao e re-conhecimento, o que conferesua relativa autonomia - os cri-trios no so impostos de fora,pelo estado ou pelo mercado, porexemplo, mas so constitudosa partir de dentro, o que permiteque se regule a si mesmo.1

    O processo de autonomizaodo campo resultado de um len-to trabalho de "alquimia" histri-ca; atravs da anlise da hist-ria do campo que se obtm aanlise de sua legtima existn-cia. No caso da psicanlise,pode-se analisar o que teoriapsicanaltica e o que no teo-ria psicanaltica somente a partirdo processo de autonomizao docampo de produo da psican-lise que, como vemos, se refereao seu desenvolvimento histri-co, com suas dissidncias, rup-turas, enfim, lutas concorrenciais,oposio de foras, jogos depoder.

    A anlise das relaes entreo campo literrio (etc.)2 e o cam-po do poder, que acentua as for-mas, abertas ou ocultas, e osefeitos, diretos ou indiretos, dadependncia, constitui um dosefeitos maiores do funcionamen-to do campo literrio (etc.) comocampo:

    No h dvida que a indignaomoral contra todas as formas desubmisso aos poderes ou aomercado [...] desempenhou um

    papel determinante [...] na resis-tncia cotidiana que conduziu afirmao progressiva da autono-mia dos escritores; certo que,na fase herica da conquista daautonomia, a ruptura tica sem-pre, como bem se v emBaudelaire, uma dimenso fun-damental de todas as rupturasestticas (BOURDIEU, 1992, p.106. Traduo da autora).

    Os critrios de autenticida-de do produto cultural so base-ados no desinteresse econmi-co: ato puro de qualquerdeterminao que no seja a in-teno esttica (etc.). O que nosignifica que a no exista umalgica econmica, uma ausnciatotal de contrapartida financeira,mesmo porque os lucros simb-licos (prestgio, por exemplo) sosuscetveis de serem converti-dos em lucros econmicos.

    Segundo o princpio dehierarquizao externa, o crit-rio de xito medido pelos ndi-ces de sucesso comercial e denotoriedade social - a includasas regras do mercado. Tal prin-cpio rege a produo da inds-tria cultural.

    Segundo o princpio dehierarquizao interna, o grau deconsagrao medido pela noconcesso demanda do gran-de pblico, o desprezo pelassanes do mercado: os artis-tas, bem como os psicanalistas,so reconhecidos pelos seuspares.

    O grau de independncia oude subordinao constitui o indi-cador mais claro da posio ocu-pada no campo: aqueles quepretendem independncia spodem consegui-la construindoo campo, revolucionando o mun-do da arte (etc.) indiferente sdemandas da poltica, da econo-mia e da moral vigente, ou seja,reconhecendo apenas as nor-mas especficas da arte etc.

    1O recurso teoria da autonomizao dos campos muito til para se pensar a questo daregulamentao da Psicanlise no Brasil, nosentido de que as instituies psicanalticas tmsuas prprias regras (de ingresso, formao etc.)as quais teriam apenas que ser transformadasem leis.

    2 Os "etcs." que aparecem, algumas vezes,

    depois do "campo literrio" diz respeito a todosos outros campos, inclusive o campo dapsicanlise.

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    Bourdieu faz uma interes-santssima anlise de Flaubert esua Educao sentimental, nolivro que citei antes, para mos-trar como a literatura foi se cons-tituindo como um campo inde-pendente e relat ivamenteautnomo.

    Ele traz, em seu texto Cam-po de poder, campo intelectual,a ttulo de ilustrao da posiodo criador no espao social, AlainRobbe-Grillet, escritor e cineas-ta francs (O ano passado emMarienbad) associado ao movi-mento do nouveau Roman ;Alexander Pope, Chaucer,Shakespeare, Byron, Shelley,Keats, Valery e, no campo damsica, Debussy, Wagner e ojazz, para analisar os diferentessubcampos da arte e sua rela-o com o campo de poder.

    Menciono rapidamente tudoisso para instigar aqueles quetm interesse em se aprofundarna rede terica de Bourdieu eem seu conceito de campo dopoder, com profundas, comple-xas e diversssimas implicaesno campo intelectual.

    Fiquei intrigada com o termo"inconsciente cultural", que fazparte da rede sobredeterminadade conceitos de Bourdieu paratratar das determinaes docampo intelectual, ou seja, porque uma obra aparece e outrano, por que uma obra que apa-rece sobrevive e outra no, nointrincado mundo social - espa-o social - composto por vriostipos de pblico, de difuso paracada pblico etc.

    Diz Bourdieu que o intelec-tual est situado histrica e so-cialmente - j que faz parte deum campo intelectual, por refe-rncia ao qual seu projeto cria-dor se define e se integra, - namedida em que contempor-neo daqueles com quem se co-munica e a quem dirige a sua

    obra, recorrendo a todo um c-digo que tem em comum comeles: temas, problemas, formasde raciocinar, formas de percep-o etc. Suas eleies intelec-tuais ou artsticas, conscientese inconscientes, esto sempreorientadas por sua cultura e seugosto, ou seja, interiorizaesdos valores de uma sociedade,de uma poca e de uma classe.

    Diz ele, a respeito do criador,em sntese: a cultura que incor-pora - sem sab-lo - em suascriaes, constitui a condio depossibilidade da concretizaode uma inteno artstica (ou ci-entfica) em uma obra, pela mes-ma razo que a lngua como "te-souro comum" a condio daformulao da palavra. So osgostos, as formas de pensar, asformas de lgica, os traosestilsticos, a tonalidade de hu-mor que colore as expressesde uma poca, que contm asmarcas do campo cultural.

    Em outras palavras, os quese apropriam de um pensamen-to, pensando que o seu prprio,esto, na verdade, imersos emum inconsciente cultural de umapoca, de um sentido comumque faz possveis os sentidosespecficos nos quais se expres-sa. A relao que o intelectualsustenta com a escola e comseu passado escolar tem umpeso determinante no sistemade suas eleies intelectuais in-conscientes. E ficam predispos-tos a manter com seus iguaisuma cumplicidade, com os quaiscompartilham lugares comuns,no somente um discurso e lin-guagem comuns, mas tambmcampos de encontro e de enten-dimento, problemas comuns eformas comuns de abordar es-ses problemas comuns.

    Se podem ou no estar emdesacordo sobre os objetos emtorno dos quais disputam, ao

    menos esto de acordo em dis-putar em torno dos mesmos ob-jetos.

    As operaes intelectuais -que no so conscientementeapreendidas e controladas - soadvindas de sua sociedade e desua poca, ou seja, do inconsci-ente cultural historicamente da-tado e situado.

    O que falei hoje para vocs resultado de uma sntese dopensamento (e do estilo) deBourdieu ou convite... melhorconvite, para apresentar - e ins-tigar para - a sua complexa redeterica sobre o espao socialem que vivemos, os campos quedele fazem parte, e seu concei-to de poder, que tudo permeia!

    Na verdade, a dimenso so-cial do indivduo que produz suasobras deve ser articulada com adimenso psquica, singular, es-tudada pela psicanlise. Dilogonecessrio entre a psicanlise ea sociologia!

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    THE FIELD OF POWER, ACCORDING TOPIERRE BOURDIEUKey words: Power; field; culturalproduction; social space;concorrential fights.AbstractMy intention with this work is tobriefly present some hints from thecomplex theoric network from PierreBourdieu, which covers the power,which is always present andembedded on the fields ofintellectual, scientific and artisticproduction (cultural fields). For thisFrench Sociologist, power relations,explicit or implicit, conscious orunconscious, permeate all humanrelations in all fields and practicesthat are part of social space. To getthere, I intend to provide an idea ofhis fields theory, which constitute theplurality of all worlds possible in thesocial space in which we live, withtheir logic and its own laws offunctioning, although theirspecificities. But there are invariant,or homologies in the structure of allfields: the competitive struggles,namely the struggle for power, whichis not political power. In the culturalfield, the dispute concerns the powerof authority, legitimacy, authenticityand the control of signs, meaningsand interpretations.

    REFERNCIAS

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    ______. Les rgles de l'art: gense et structure du champ littraire. Paris: ditionsdu Seuil, 1992.______. Cosas dichas. Buenos Aires: Gedisa, 1988.______. Razes prticas: sobre a teoria da ao. Traduo de Mariza Corra.Campinas: Papirus, 1996.______ A Economia das Trocas Simblicas. Pref. Srgio Miceli. So Paulo:Perspectiva, 1987.______ A economia das trocas lingsticas: o que falar quer dizer. Pref. SrgioMiceli. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1996.______ Le sens pratique. Paris: Minuit, 1980.______. Raisons pratiques: sur la thorie de l'action. Paris: ditions du Seuil,1994.______. Campo de poder, campo intelectual. Buenos Aires: Folios, 1983.______ O campo cientfico. In: ORTIZ, Renato (Org.); FERNANDES, Florestan(Coord.). Pierre Bourdieu. Traduo de Paula Montero e Alcia Auzmendi. SoPaulo: tica, 1983.LIMA, Denise M. de Oliveira. Uma abordagem sociolgica para a constituio,legitimao e autonomizao da psicanlise como um campo. In: TEIXEIRA,A. (org). Especificidades da tica da psicanlise. Salvador: Associao Cient-fica Campo Psicanaltico, 2005.WEBER, M. Economia e sociedade. Vol. I. So Paulo: UnB, 2004.