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Capitulo 3 do Livro Diferentes Desiguais e Desconectados Mapas da Interculturalidade de Nestor Garcia Canclini. O capítulo é sobre como Clifford Geertz e Pierre Bourdieu chegaram ao exílio.
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A universidade, o shopp;ng e os meios de comunicação
A comparação entre estas três entidades é estimulante paraelaborar algumas encruzilhadas das ciências sociais desenvolvidas
no capíttito anterior. Seria preciso estudar, por exemplo, os m:.\..•crocentros comerciais e os meios de comunicação como cenários
em que se manifesta com nitidez o predomínio do privado sobrco público, em contraste com a universidade, talvez o último lugarem que o público ainda prevaleça sobre o privado. Ou comparar'o shoppin.ge os meios de comunicação, instâncias que representama reorganização audiovisual e espetacularizada dos bens c d:l'mensagens, com a universidade, que permanece como bastião no
qual os conceitos ainda submetem as imagens e as disquisiçõC!I$racionais se impõem ao pensamento analógico e metafórico.(Pense-se na resistência a que os organismos de difusão universi.tários transcendam os círculos de alta cultura e se insiram na co
municação de massas.)
Apesar do caráter atraente destas investigações possíveis,aqui me interessa, antes, enfrentar alguns dilemas do trabalhocientífico, confrontando-o com o que poderíamos chamar de
"epistemologia" implícita dos shoppings e dos meios de comunicação. Ocorreu-me esta relação ao deparar com o livro no qualum dos maiores arquitetos contemporâneos, Ken KoolhaáS, fazum balanço das suas tarefas: intitulou-o S, M, L, XL. Koolhaas
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411••
GEERTZAO. Exíuo
CUFFORDCH EGARAM
3. SOBRE COMO
PIERRE BOURDIEUE
sustenta que os urbanistas devem trabalhar simultaneamente emtodas as escalas e mostra como, na sua investigação urbana, articula
os objetos small, medium, large e extralarge. Sem dúvida, este é umdos problemas não resolvidos das ciências sociais, que os shoppings
e os meiC:sde comunicação tratam com bastante eficácia. Outra ha
bilidade dos centros comerciais, sobretudo as lojas de departamen
tos, é a oferta de equipamento doméstico ao lado de bens de usopúblico e urbano, bem como aparelhos eletrônicos - rádios, televisores, equipamentos de som e computadores -, para conectar-nos àinformação e ao entretenimento transnacionais. Uma terceira carac
terística dos shoppingsé sua multiculturalidade: combinam produtosnacionais e estrangeiros, de diversos continentes, de origem industrial e artesanal, usando astutamente esta flexibilidade para enfatizara cultura n6rdica durante o Natal, a iconografia tropical durante
o verão e, quando as variações da moda o requerem, qualquer outraregião. '
Em vez disso, as universidadei se assemelham mais à distri
buição compartimentada do tradicional comérCio v·arejista. Nossosdepartamentos não parecem pertencer à mesma instituição: se alguém
vai ao departamento de antropologia, ~6conseguirá o que correspondeàs culturas domésticas e locais; se se matricula em sociologia e eco
nomia, encontrará informação sobre as grandes tendências do mundo.Estas regiões do conhecimento exigem tal fidelidade que não se vêcom bons olhos o "consumidor" - por exemplo, um estudante de
p6s-graduação - que comece a relacionar-se com vários departamentosao mesmo tempo.
Há uns poucos anos, alguns programas transdisciplinares e
multiculturais de investigação enfrentam as novas exigências do s~ber. São, sobretudo, os autores que trabalham em distintas escalasdo conhecimento, com instrumentos de diferente alcance e em so
ciedades diversas, aqueles que mais ajudam a entrever como poderiam,ser as universidades, que, neste sentido, se pareceriam, mais com osshoppings e os meios de comunicação. Por certo, é preciso dizer que
estes dois tipos de atores têm uma "epistemologia" demasiadosimples, cujas regras se limitam a justapor objetos de distintas escalas e funções ou a seguir com oportunismo as variações multicultu
rais, sem problematizar quase nunca a sistemática globalizadora dosmercados. As diferenças que o local faz persistir dentro do glohalou os conflitos derivados da multiculturalidade são dissin1l1hdnM
sob a fácil reconciliação de um consumo supostamente IIl1iV{,I'~1I1.com operações tão elementares quanto usar o controle relllOlo pnrlisintonizar canais de diferentes nacionalidades.
Vou reunir neste capítulo algumas experiências de deI) IilJlllIsociais que, depois de trabalhar um bom tempo s6 com o .flllá// t111
o extralarge, e com os instrumentos legitimados pela sua discipli'lll.interessaram-se' por outros campos, admitiram perguntas s(.)hrc os
processos~migrat6rios ou a interculturalidade gerada pelos meios d<.'comunicação. Conscientes de que não bastava justapor ohjctos <,'
práticas sociais, tiveram de se perguntar cO,mofazer coexist ir eSI 1':1tégias de conhecimento e de vida diferentes. Construfram conceitos e instrumen~os para examinar novos objetos transdisciplinares,e transculturais'e, às vezes, s6 propuseram novas metáforas que insi-nuam por Ol"ldepoderíamos avançar. Vou me referir mais detidamente aos processos de dois autores: como Clifford Geertz deixoude concentrar-se no conhecimento local para interessar-se por colageps
interculturais e o que aconteceu a Pierre Bourdieu quando quis provar sua teoria dos campos' e da distinção sociocultural no estudoda televisão.
Analisar estes dois autores servirá para formular o problema, '
da subjetividade e da objetividade do conhecimento em relação àsconfigurações institucionais. Como se sabe, uma das diferenças entre a gnosiologia moderna e a epistemologia contemporânea é que,no pensamento moderno, a tensão entre racionalistas e empiristas,inclusive depois da reelaboração kantiana, concentra-se na prioridadedo sujeito individual ou na existência independente dos objetos (a
realidade, o mundo) na geração do conhecimento. Desde'o sé,culo
106 MAPAS SOBRE COMO CLIFFORO GEERTZ E PIERRE •• _ 1'07
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109SOBRE COMO CLIFFORD GEERTZ E PIERRE •••
Clifford Geertz: do conhecimento local ao intercultural
No fipal da década de 1980, Geertzcaracterizou assim a::
oscilações dos antropólogos: são pessoas que alcançam legitimidadeao demonstrar "ter estado lá", entre os Índios, os outros distante:!.
mas escrevem, ensinam e organizam o que estudam para os <lUC"("r.
tão aqui", nas universidades, nos congressos, nos sistemas (k revi::1 ali
e de prestígio acadêmico. Esta brecha entre o lugar em quc ViVl"111
os objetos de estudo e o lugar onde são representados coloca a 1111('''
tão da interculturalidade no riúcleo do trabalho antropolc.'lf:l.ku.embora durante muito tempo as incertezas e os conflitos CIIt rc 11111
bas as instâncias tenham sido postos de lado. Várias corrclI tcs I'.".modernas limitaram o problema ao cenário da escrita, como ~c IIC
tratasse apenas de desconstruir as astúcias textuais com as qU:1is liC
simula que a antropologia não é nada além de uma representaç!1n
realista do que existe (Geertz, 1989; Clifford e Marcus, 1991).
Meu interesse é destacar que a crítica simultaneamente tex
tual e institucional de Geertz esteve associada, naqueles mesmo::anos (dá década de 1960 à de 1980), a uma reformulação do quc
ele considerava que deveria ser o objeto de estudo dos antropólogos.
Em A interpretação das culturas, defendia uma descrição "microscópica" não "da aldeia", mas "na aldeia", e limitava o trabalho teórico à elaboração conc~itual dos imediatismos com que cada grupo
Vou falar destes espaços e circuitos como formações metains
titucionais; em sentido semelhante ao que Raymond Williams deuà expressão "formações" para designar algo que está mais além dasinstituições consolidadas e estruturadas, algo que pode abarcar complexos de instituições, redes e movi'mentos em formação pouco institucionalizados. Williams referia-se às formações para identificarmovimentos mais amplos; por exemplo, tendências literárias, artísticas, filosóficas e científicas - vanguardas, movimentos culturaise políticos de migrantes, estudos culturais - que condicionam osmodos de gerar conhecimentos (Williams, 1980 e 1997).
M A P A S108
XIX, Marx e Nietzsche, e o desenvolvimento posterior das ciências
sociais, tornaram evidente que entre sujeito e objeto existem mediaçõ~institucionais que condicionam os modos de existência do sujeitoe dos objetos, assim como aquilo que sucede entre eles. Tornou
se importante, então, para dessubjetivar ou desideologizar os sabe
res, libertar o processo de conhecimento da tutela religiosa - portan
to, eclesiástica - e política - portanto, partidária -, de modo quea universidade adquiriu autonomia como espaço institucional no
qual as ciências podiam desenvolver-se sem as coações de quemacredita em verdades reveladas ou na superioridade da consciência
de classe. Este avanço não resolveu definitivamente a independência do conhecimento científico. Apareceram novos condicionamen
tos "extern()s" - o mercado, os meios de comunicação _ e descobriu
se que a própria estrutura universitária, suas disputas pelo poderacadêmico e a pressão de influências externas que nela se refrangemtambém influem nos temas e programas de investigação; nos usosc inscrições institucionais dos conhecimentos.
Quando um investigador trabalha num iabo~atório privadoou escreve freqüentemente-para revistas, rádio e t~levisão, e ao mes
mo tempo continua suas atividades .p.auniversidade, qual é seu campo principal de experiência, como se articulam os controles mercan
tis e políticos com os da vida acadêmica? É ingênuo pensar que oscondicionamentos do mercado, da política e dos meios de comunicação são,mera ideologia, enquanto a universidade daria um contexto
asséptico à busca da verdade. Tornou-se visível o quanto existe de
mercado e política na vida universitári~; há análises de congressos
científicos, revistas e outros sistemas de seleção e consagração inte~lectual, em número suficiente para apontar analogias entre os espaços"propriamente" acadêmicos e aqueles c~ja lógica primordial não éa produção de conhecimento. O que diferencia a universidade de
, outras instituições não é a inexistência de condicionamentos extracientíficos, mas a preocupàção de tornar explícitos estes condicio
namentos, desconstruÍ-los e controlar a influência que em outrasinstituições e em outros discursos fica escondida.
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estabelece sua lógica interna (1987 [1973], capo 1). Dez anos de
pois, na introdução ao livro Conhecimento local, qualificava as pretensões de construir uma teoria social geral como vazias, "própriasde um megalômano" (1994 [1983], p. 12). Tal como outros antro
pólogos, focava seus estudos em casos particulares - a rinha de galosem Bali, as histórias religiosas em Java e no Marrocos -, para, emseguida, tentar relações analógicas não com a finalidade de extrairregularidades abstratas de aplicação universal, mas compreensõesdos pontos de vista dos nativos que permitam conversar com eles,
"perceber uma alusão, captar uma brincadeira" e interpretar tudoisto para que seja entendido pelos outros (Geertz, 1994, p. 90).
É difícil estabelecer leis universais que fixem relações entre
causas e efeitos, prever o destino de forças subjetivas e objetivas,bem como codificar suas funções, quando os comportamentos so
ciais são vistos como jogos nos quais a ordem inclui arbitrariedadesradicais: a etiqueta, a diplomacia, o crfme, as finanças, a publicidade "concebem-se como 'jogos informativos' - estruturas labirínti-,
cas de jogadores, equipes, movimentos, posições, estados de infor-mação, jogadas e conseqüências, nas qu'ais só prosperam 'os bons
jogadores', os capazes de dissimular em todas as c.casiões" (ibid.,p. 37). Ou as condutas só se concebem como dramas ritualizados,em que as disputas por status, poder ou autoridade são geridas me
diante encenações públicas. A instabilidade que experimentam ospensamentos, os sentimentos e as condutas interpretadas comojogos e como teatro não permite explicar os sujeitos sob determina
ções de estruturas institucionalizadas, muito menos esperar que taisdeterminações sejam generalizadas a todas as sociedades.
Nem por isso Geertz deixou de se perguntar sobre a compatibilidade entre as culturas. Apesar de sustentar que aquilo que cadapovo considera religião, arte ou senso comum "varia radicalmente
de um lugar e de uma época para outra, de modo que não podemoster esperanças de encoritrar alguma constante definidora", tentou
encontrar denominadores comuns entre algumas culturas que não
violentassem nem ignorassem suas diferenças (ibid., p. 106). Assim,
por· exemplo, julgou que o senso comum tinha propriedadessemelhantes em sociedades distintas: naturalidade, praticidade,
transparência, autenticidade e acessibilidade (ibid., capo 4)..Também perguntou se a noção ocidental de arte seria legiti-
mamente aplicável, ao mesmo tempo, a diferentes culturas arcaicase a diferentes culturas modernas: não há um sentido universal da
beleza, afirma Geertz, e sim certas atividades "delineadas em toda
parte para demonstrar que as idéias são visíveis, audíveis e - se fornecessário cunhar uma palavra neste ponto - tangíveis, que podem
ser projetadas em formas nas quais os sentidos e, por meio dos sentidos, as emoções podem aplicar-se reflexivamente". O que estas atividades tão dispersas têm em comum? Quando distintas sociedades. - ..as experImentam, permitem
(...) às pessoas, diante das artes exóticas, responder,
ou não, com algo mais do que um mero sentimentalismo etnocêntrico, na ausência de um conhecimen
to do que aquelas artes são ou de uma compreensãoda cultura na qual se originam. (O uso ocidental
de motivos "primitivos", à parte seu indiscutívelvalor em si mesmo, só acentuou isto: estou conven
cido de que muitas pessoas contemplam a esculturaafricana como uma derivação de Picasso e escutam
a música javanesa como se fosse composta por um
Debussy ruidoso.) (Ibid., p. 145-146)
Não vou discutir agora se são verificáveis as propriedadesatribuídas por Geertz a um senso comum intercultural transistórico.Antecipo que seria difícil avalizar a existência destas característicasno Ocidente moderno, se levarmos em conta a refutação da psicanálise
ede Antonio Gramsci à suposta transparência do sentido comum,
ou, em relação às sociedades arcaicas, se pensarmos que um modo
pelo qual os antropólogos designam o senso comum é como pensamento selvagem e admitirmos o que Lévi-Strauss afirma sobre sua
111SOBRE COMO CLIFFORD GEERTZ E PIERRE •••M A P. A S110
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113SOBRE COMO CLIFFORD GEERTZ E PIERRE •••
da lingüística, da informática e da psicologia do conhecimento,crêem que se possa reconstituir uma concepção funcionalista da
mente a partir da qual se estabeleçam verdades universais. O preço
pago por ambas estas fugas das dificuldades relativistas - explicaGeertz - "é a desconstrução da alteridade" (I 996a, p. 122).
Chegamos assim à necessidade de dar conta de um mundo
no qual a diversidade não está só em terras longínquas, mas aquimesmo, "nas atitudes dos japoneses na hora de negociar", na migraçãode culinárias, roupas, móveis e 'decoração que chegam ao nosso
bairro, "quando é absolutamente provável que a pessoa com quemnos encontramos na loja de alimentos importados" provenha tanto da Coréia quanto de Iowa; na loja dos correios, ela pode vir da
Argélia ou de Auvernes; no banco, de Mumbai ou de Liverpool.S . _ .. lhequer as paIsagens ruraIS, em que as seme anças costumam estarmais protegidas, "estão imunes: granjeirosmexicanos no Sudoes
te, pescadores vietnamitas ao longo da costa do Golfo, médicosiranianos no Meio Oeste" (ibid., p. 90),
Geertz pr<?p<;>eentender e~tescruzamentos interculturais COI1I
uma no'va narrativa construída a partir da metáfora da colagcm. P~I
ra viver nesta época de mesclas, estamos obrigados a pensar II~Idiversidade sem edulcorar o que continuará alheio a nós "COIII
vácuas cantilenas acerca da humanidade comum, sem clt:s:triv:\-fo
com a indiferença do 'cada-qual-do-seu-jeito' nem subcsrilld-Iu,rotulando-o de encantador" (ibid., p. 91-92). Trata-se, eJII ~;lIllln,de não nos instalarmos nas auto certezas da nossa própria clIllllJ'n
nem nas convic<yões dos excluídos (indígenas, feministas, jClV(."'lli
etc.) que adotamos como nossa nova casa por generosidade 11I;li
tante. Não é isto o que se espera de uma disciplina como :t :1111 1'\\
pologia, construída por meio de viagens laboriosas pelo mundo. Di'!.Geertz: "Se o que queríamos eram verdades domésticas, deveríalllo~:ter ficado em casa" (ibid., p. 124).
Com efeito, a trajetória da antropologia é a de um grupo deocidentais que decidiram estudar a partir do lugar do outro e·foram
MAPAS
sistematicidadé. Tampouco parece aplicável a toda a arte ocidental
moderna a tese de que as práticas consideradas artísticas são aquelasdelineadas para demonstrar que as idéias são visíveis, audíveis e tan
gíveis: nem a arte abstrata nem outras vanguardas caberiam em tal
definição. Mas me detenho, para nossos fins, no fato de que Geertzbuscou nesta etapa configurar algum tipo de convergência entre cul
turas, mantendo energicamente sua diversidade e compartimentalização. A incisiva observação de que o que cada sociedade enten
de por arte é o que lhe permite interessar-se pela arte dos outros,ainda que seja para compreendê-Ia tão mal como quando observamosesculturas africanas a partir do que sabemos de Picasso, acentua asdiferenças e a incomensurabilidade, reduz o comum a uma coincidência formal de experiências baseada em mal-entendidos.
Algo distinto 'acontece nos textos da última década, quandoGccrtz critica os antropólogos que concentram os estudos em "tota
lidades soCiais absorvidas em si mesn;ias" (I996b, p. 84), nas "próprias classificações que nos separam dos outros", obcecados por "defender a integridade do grupo ou manter a lealdade a ele"; "A etno
grafia é, ou deveria ser, uma disciplina capacitadora. Isto porquecapacita, quando o faz, a um contato frutífero com uma subjetividade variante". Os relatos e os cenários que o antropólogo comunica
não têm por finalidade oferecer "uma revisão autocomplacente e
aceitável" (ibid., p. 87), mas permitir "ver-nos, tanto a nós mesmosquanto a qualquer outro, lançados num mundo pleno de indeléveis
estranhezas, das quais não podemos livrar-nos (ibid., p. 88). Porisso, no seu texto de 1994, "Antianti-relativismo", dedica-se a des
mantelar a sociobiologia e o neo-racionalismo, que, em vez de en
frentar as novas complicações da diversidade, preferem refugiar-se.na busca de uma natureza humana descontextualizada. A sociobio
logia, apoiada nos avanços da genética e da ·teoria da' evolução,pretende encontrar constantes naturais que estabeleceriam critérios
de normalidade aplicáveis às distintas culturas, de modo que converteo resto em "desvio". Os neo~evolucionistas, a partir de destobertas
112
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II
114 MAPAS
descobrindo o que significava não falar a partir da sua casa. Nos
últimos anos, alguns antropólogos observaram que muitos deleshaviam reinstalado sua moradia em certas fortalezas do Ocidente,
como as universidades, os museus ou os escritórios dos ministérios
de Relações Exteriores. Os textos, as cátedras ou os informes para
os serviços de segurança eram também suas residências entrincheiradas. Não foi só a crítica aos textos e às instituições acadêmicas
e museológicas que desconstruiu estes recintos preservados. Se oquestionamento se amplia, é porque as migrações de bens e mensagens, do Terceiro Mundo para o Primeiro, do campo para a cidade,
das selvas indígenas para os centros de poder e conhecimento,encheram de alteridade e de incerteza as casas dos antropólogos edos demais cientistas.
Tampouco o museu pode ser nossa casa, porque não há coleções consolidadas de objetos nem de saberes,' dizem os autores
pós-modernos'. James Clifford, que/também utiliza a metáfora dacolagem, sustenta que, numa época na qual os indivíduos e os gru
pos não reproduzem tradições contínuas, mas "improvisam realiza
ções locais a partir de passados (re)c,olecionados, recorrendo a meios,símbolos e linguagens estrangeiras" (Clifford, 1995, p. 30), "a identidade é conjuntural, não essencial" (ibid., p. 26).
Segundo Renato Rosaldo, a tarefa de exibir a identidade mais do que como uma operação museográfica - deve ser feita comose se tratasse de um bazar, no qual o antropólogo não trabalha com
objetos novos ou autênticos, mas com objetos usados, e aceita que
os usos formam parte do seu valor. Por que escolher a metáfora dobazar em vez daquela do shoppinff. Entendo o caráter da pouca sole
nidade, do caráter cotidiano e familiar do bazar. Mas me pergunto
se não deveríamos reunir as duas imagens, em oposição ao museu,para evitar a tendência dos antropólogos de preferir as formas pobres, à beira do desuso, o que é de segunda mão ou do Terceiro
Mundo, com o risco de ficarmos sem nada para dizer a quem participa da moderna integração multicultural dos mercados.
SOBRE COMO CLIFFORD GEERTZ E PIERRE •••
Cabe uma última referência a outro antropólogo que trabalhaesta reestruturação da disciplina numa linha convergente com a deClifford Geertz. Penso em Marc Augé quando sugere estender o
trabalho antropológico aos não-lugares da globalização: os shoppings,
os aeroportos, as auto-estradas. Nestes circuitos - mais do que lugares -, aprendemos a conhecer os bens, as mensagens e as pessoasque transitam sem pátrias a contê-Ios. A viagem é, agora, mais uma
condição de vida das culturas do que a tarefa que distinguc oantropólogo.
Tanto Geertz quanto estes outros antropólogos dedaram-s<.:insatisfeitos com a localização exclusivamente comunitária do trabalho
antropológico e com a redução das relações entre culturas aos termosclássicos da interetnicidade, à justaposição ou ao encontro ocasional
entre socie~des distintas. O atual pensamento antropológico temse ocupado de formas transnacionais de interculturalidade: a aspiração de Guillermo Bonfil, que citamos, de converter o transnacional
em objeto etnográfico vem sendo realizada, entre outros, por Arjun
Appadurai, UlfHannerz, Gustavo Lins Ribeiro e Renato Ortiz. Masainda estamos nos umbrais de uma reformulação epistemológica dadisciplina, de modo que não podemos estabelecer critérios universaisde validação do conhecimento baseados numa racionalidade
interculturalmente compartilhada. Este desafio tampouco é respondido por outras disciplinas de acordo som as condições presentesda globalização. Para todos contÍ{lUaa ser uma questão não resolvida
trabalhar com as compatibilidades e incompatibilidades emergentesnos processos de integração regional e transnacional.
Pierre Bourdieu: o sociólogo na televisão
Em meio à desintegração paradigmática e às escassas aspirações totalizadoras que caracterizam as atuais ciências sociais, restam
poucos autores, no sentido dado por Geertz a esta expressão,
(...) fundadores de discursividade, estudiosos·que,ao mesmo tempo, .assinaram suas obras com certa
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MAPAS
determinação e construíram teatros da linguagemnos quais toda uma série de outros, de maneiramais ou menos convincente, atuou, ainda atua esem dúvida continuará a atuar durante algum tempo.(Geertz, 1989, p. 30-31)
Ele atribui esta estatura de autores a Claude Lévi-Strauss,
Edward Evans-Pritchard, Bronislaw Malinowski e Ruth Benedict.
A vastíssima obra de Bourdieu faz com que mereça, tanto quanto
Lévi-Strauss, a denominação de furidador, e, no meu modo de ver,
mais do que os outros antropólogos estudados por Geertz. Bourdieu
renovou a problemática teórica e o conhecimento empírico da antropologia, sociologia da educação, cultura, ciência política e filo
sofia. Pôs à prova ,seu sistema teórico em estudos sobre o campesinato, as classes sociais. urbanas, o sistema escolar e universitário, o
descmprego, o direito, a ciência, a literatura e a arte, o pa,rentesco,a linguagem, a habitação, os intelec;tuais e o Estado.f
Durante muito tempo, parec~u-me estranho 'que uma obradedicada, de forma quase exaustiva, 'a esmiuçar a modernidade mal
se ocupasse destes atores centrais que são as indllstrias culturais ouos meios de comunicação de massa~. Sua atenção a campos simbólicos muito diversos concentrou-se na cultura de elite - salvo o
artigo "Sociologia da mitologia e mitologia da sociologia", de 1963,no qual, junto com Jean-Claude Passeron, criticou os estudos "mi
diológicos" da época, a investigação s?bre a fotografia, feita comoutros sociólogos em 1965, e um extenso artigo de 1973, "O mercado dos bens simbólicos", no qual "o campo da grande produção",
.ou seja, as indústrias culturais, é caracterizado em grandes linhascomo oposto ao da "produção restrita" (Bourdieu retoma este te~toe o atualiza num capítulo de As regras da arte, de 1992).
Nos seus estudos sobre a moda, sobre o esporte, no enciclopédico exame das práticas estéticas da sociedade francesa realizadoem A distinção - no qual em apenas seis páginas faz referências de
passagem sobre a televisão -, em nenhum deles se ocup~y/da orga-
SOBRE COMO CLIFFORD GEERTZ E PIERRE ••• 117
nização industrial ~a cultura de massas. Como vimos antes, isto fezcom que as afirmações contidas nos seus trabalhos sobre a popularização da arte e sobre os gostos populares fossem refutadas porvários críticos como juízos aristocratizantes (Grignon-Passeron) e
Bourdieu só conseguisse articular defesas teoricistas. Talvez o mais
sério é que a ausência das indústrias culturais e dos processos decomunicação de massas distorçam o papel que desempenham outrosatores sociais - a escola e a família - dentro de uma teoria da re
produção social que ignora o lugar das formas pós'-escolares e pósfamiliares de socialização. Como é que se pode reduzir - numa conferência dada em 1989!- "a reprodução da estrutura da distribuição
do capital cultural" ao que sucede unicamente na "relação entre as
estratégias das famílias e a lógica específica da instituição escola.'"(Bourdieu, 1997)? E em alguns pouquíssimos parágrafos de texlO$
e entrevistas, até mesmo mais recentes, só se ocupou do papel d.•televisão como auxiliar do ensino escolarizado (ibid., p. 137 e I()7).
Por isso, a aparição do artigo "A influência do jornalisll1l." .de Bourdieu, em 1994 (publicado em Bourdieu, 1996), e suas COII
ferências Sobre a televisão, transmitidas por este meio em março de
1996, geraram grande expectativa. Bourdieu escolheu como cixoorganizador da sua análise a noção de "campo jornalístico". ApliCouliteralmente a noção de campo, usada ao longo da sua obra para
analisar a religião, a literatura, a política e outros âmbitos: repetiuque "um campo é um espaço social estruturado, um campo de forças - no qual há dominantes e dominados, relações constantes,
permanentes, de desigualdade que se exercem no interior deste. .
espaço - que é também um campo de lutas para transformar Oll
conservar este campo de forças" (ibid., p. 46). Resolve cada um dos
problemas formulados em relação à televisão, fazendo funcionar suateoria dos campos: "Se quero saber, hoje, o que vai dizer ou escrever
tal jornalista, o que julgará evidente ou impensável, natural ouindigno dele, é necessário que eu saiba a posição que ele ocupa neste
espaço,ou seja, o poder específico que seu órgão de imprensa detém
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e que se mede, entre outros índices, pelo seu peso econômico, se
gundo sua participação no mercado, mas também pelo seu pesosimbólico, mais difícil de quantificar" (ibid., p. 46-47).
Esclarece que, no início da televisão, "nos anos 1950", os participantes deste meio sofriam múltiplas dependências: dos poderes políticos, do prestígio de outras áreas da cultura, das forçaseconômicas e das subvenções estatais. Mas, com o passar dos anos,"a relação se inverteu completamente e a televisão tende a se tornar
dominante, econômica e simbolicamente, no campo jornalístico"
(ibid., p. 47). Na França de meados do século XX, o jornalismoescrito estabelecia as regras do jogo, e, dentro da imprensa, o Le
Monde. Na oposição entre os diários que fornecem news, comoFrance Soir, e os que oferecem views, como Le Monde, este se achava
bem colocado porque sua ampla tiragem lhe permitia oferecer in-'formação comentada e, ao mesmo tempo, contar com suficiente
publicidade para ser independente.l)Ta atualidade, a televisão - queoptou pelo modelo da informação rápida e superficial - impõe aoconjunto do campo jornalístico a tendência a 'apelar mais aos sentimentos do que "às estruturas mentais do púb.lico" e converte aampliação da audiência no modo de legitimação generalizado (ibid.,
p. 52). Em seguida, os jornais e as revistas - para compet'ir com
a rdevisão - adotam o estilo talk show, o exibicionismo de experiências domésticas, como se a luta pelo rating só pudesse ser ganhaapelando ao voyeurismo dos espectadores e dos leitores. O cresci
mento do poder simbólico da televisão obriga o resto do campo jornalístico a buscar "o sensacional, o espetacular, o extraordinário",
antes relegado aos diários esportivos e policiais (ibid., p. 58). Agora, prevalecem os aspectos superficiais da vida política ou o queprovoca curiosidade (catástrofes naturais, acidentes, incêndios), o
que "não requer nenhuma competência específica prévia". A lógica comercial impõe seu peso à televisão, a televisão à imprensa, incluindo os jornalistas mais "puros", e isto arrasta até mesmo os cam
pos culturais que eram mais autônomos, como a literatura, a filosofia e a ciência. Assim aparecem os fast thinkers da televisão, his-
118 MAPASSOBRE COMO CLIFFORD GEERTZ E PIERRE •••
toriadores convertidos em jornalistas, "autores de dicionários ou
de balanços do pensamento contemporâneo diante do gravador"(ibid., p. 68).
Os intelectuais que, em outros tempos, notoriamente na
França, desempenhavam em relação' à comunicação pública umafunção clínica, ou seja, usavam o conhecimento das leis do meio
de comunicação para combatê-Ias, agora se resignam à taref.1.cínica de "servir-se do conhecimento destas leis para tornar sllas estra
tégias mais eficientes", vale dizer, mais lucrativas (ibid., p. 68).
Nesta descrição, que concorda com tendências observadas poroutros especialistas nos meios de comunicação, percebe-se tambémo tom indignado, às vezes desesperado, do intelectual que encontrou sua fortaleza na autonomia do ·seu campo - e dedicou sua vidaa teorizá-Io para melhor defendê-Io - e agora descobre que até osâmbitos mais preservados, como a ciência e a arte, estão subordinados às forças heterônomas do mercado. Até o Centre National
de Ia Recherche Scientifique (CNRS), órgão responsável por garantir a independência do saber na França, leva cada vez mais em con
ta a consagração dada pelos meios de comunicação a estes "escritores
para não-escritores", "filósofos para não-filósofos" (ibid., p. 69).Então, Bourdieu descobre que ocupar-se da televisão é uma tarefanecessária do cientista social.
O que pode fazer com a televisão um cientista disposto a
manter a autonomia do seu ofício? Bourdieu adverte, no prefácioescrito para a publicação das suas conferências televisivas:
Para pôr em primeiro plano o essencial, ou se.:.ja, o discurso, à diferença (ou ao contrário) do quese pratica habitualmente na televisão, escolhi, deacordo com o diretor, evitar toda busca formal de
enquadramento e enfoque, bem como renunciar àsilustrações - trechos de programas, fac-sÍmiles dedocumentos, estatísticas etc. -, que, além de tomarum tempo precioso, sem dúvida turvariam a linha
1 19
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Quase todos os exemplos, tomados das práticas informativas da televisão e da imprensa, intelectualizam a problemática comunica
cional. Nunca estuda, como parte do campo, as funções lúdicas oude diversão dos meios de comunicação. Cita Raymond Williams.uma vez mas não acolhe seu exame mais sofisticado e matizado da
cultura e da comunicação, que inclui "as estruturas de sentimento"(Williams, 1980, p. 150-158). Portanto, tampouco investiga os
problemas específicos da linguagem televisiva, os tipos de interaçãoque estabelece com diversos receptores e a possibilidade de elaborarcriticamente estes vínculos.
A sociedade só aparece em Sobre a televisáocomo um conjllll
to homogêneo de espectadores, contradizendo a crítica à noção dtO(11,i
nião pública realizada por Bourdieu num texto famoso, "A 0l'illi!'lo
pública não existe" (Bourdieu, 1990, p; 239-250). Não n;conhct:(·os vários tipos de audiência ou as diferentes estratégias seguida..: p<:los meios de comunicação em relação aos diferentes deslinadrios.
Tampouco trata do papel do ombudsman, das associações de lclcspectadores, ou das complexas participações, mais ou menos simula
das e controladas, nos programas que aceitam a intervenção do Pl1
blico. Nem do papel diferente dos distintos noticiários, dos programas que parodiam outros programas de televisão ou estimulam odebate. Só analisa a desigual distribuição da palavra, a manipulaçãoda urgência, do relógio, para interromper e controlar (ibid., p. 35).
Para problematizar o lugar no qual o cientista social pode
situar-se ao falar daquilo que sua prática questiona, é útil deter-nosno que ocorreu quando Bourdieu participou, em 23 de janeiro de1996, de Arrêt sur images, um programa de televisão dedicado adebater o modo pelo qual este meio informa sobre a vida social.Bourdieu aceitou - depois de várias negativas - participar de um
programa em torno da pergunta: "A televisão pode falar dos movimentos sociais?" Como se analisariam as grandes greves ocorridasna França em dezembro de 1995 e Bourdieu expressaÚ sua adesão
a este movimento, ele pediu que sua posição não fosse mencionada
de uma exposição.que pretendia ser argumentativae demonstrativa. (Ibid., p. 6-7)
Além de negar-se a usar os recursos audiovisuais deste meio
de comunicação, dedica a metade da sua primeira conferência adesvalorizar as obras que são escritas "para assegurar convites à televisão" (ibid., p. 11) e os procedimentos midiátiéos que considera
antinômicos em relação ao trabalho intelectual: a dramatização, aespetacularização - que leva ao interesse pelo extraordinário -, "a
busca da exclusividade" e a tendência a descrever-prescr~vendo oquê e como se deve pensar (ibid., p. 18-20). Em vez disso, o soció
logo busca "tornar extraordinário o ordinário", suspender o sensocomum, porque "as produções mais altas da humanidade, as matemáticas, a poesia, a literatura, a filosofia, todas estas coisas foram
produzidas contra o equivalente da medição de audiência, contraa lógica do comércio" (ibid., p. 29).
Há algumas páginas esplên~idas nesta argumentação; porexemplo, quando fala sobre o nexo:negativo que existe na televisão
"entre a urgência e o pensamento", Pergunta "se se pode pensar
em meio à veloddade" sem ser repetidor de idéias recebidas, que,por sua vez, foram antes recebidas por outros, porque nesta pressa do "fast-food cultural" não é possível formular o problema da re
cepção. Mas, salvo umas poucas observações incisivas, predomina,na sua análise e nas condições estilísticas que escolhe para intervirna televisão, uma recusa de usar, problematizar e, portanto, enten
der a dinâmica própria do meio e as oportunidades de pensar mediante imagens eletrônicas. Num tempo que lançou tantas pontes
entre textos e imagens, que refletiu sobre os vínculos entre imag~nspara divertir e para conhecer (da antropologia visual até ]ean-Luc
Godard e Wim Wenders), traçar um rígido cordão de isolamento
entre discursos gnosiológicos e discursos comunicacionais ou espetaculares é desconhecer a história ou consagrar o epistemocentrismo.
É sintomática a redução feita por Bourdieu, nas suas confe
rências, do campo midiático outelevisivo ao ."campo jornalístico".
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para não se pensar que a análise sociol6gica sobre o papel da televisão estava condicionada pelas suas opiniões políticas. Quando começou o programa, antes de Bourdieu expressar sua análise, a apresentadora assinalou sua posição favorável ao movimento de protesto. Bourdieu escreveu, depois do programa, um artigo em que se
queixou deste procedimento e do fato de ter sido interrompido várias vezes; disse que escolhera certas imagens da greve e depoisacrescentaram outras; afirmou que era enganoso identificar Alain
Peyrefitte como "escritor" e não como "senador" de um partido dedireita, Guy Sorman como "economista" e não como "conselhei
ro" do primeiro-ministro. Concluiu que "não se pode criticar a televisão na televisão" (Bourdieu, 1997, p. 35-36).
Num artigo de resposta, o coordenador do programa, DanielSchneiderman, observou que o mal-estar de BOl~rdieuresidia no fatode não lhe ter sido permitido controlar totalmente o desenvolvimen
to do programa. Em relação à mansira de identificar os participantes,perguntou-lhe por que deviam ser apresentados ,segundo suas posições
ideol~gicas e políticas enquanto ele não queria que se dissesse quehavia estado a favor dos grevistas. E mais: recordou-lhe que, quando
perguntado antes do programa o que deviam escrever sob seu nome,ele respondera: "Nada" (Schneiderman, 1997, p. 38-39).
A partir de que lugar fala o cientista social?A partir de um não
lugar? Bourdieu sustentou que esta era a maneira de conquistar amaior objetividade possível; Schneiderman citou Daniel Bougnonx,
professor de comunicação, que numa transmissão posterior do mesmo programa interpretou não haver melhor maneira de "dizer queem Bourdieu está Deus" (ibid., p. 39).
Um exegeta de Bourdieu, Lo"icJ. D. Wacquant, anota que,
na crítica à escola feita em A reprodução e no estudo do sistema universitário francês exposto em Homo' Academicus, o autor defendeuma "filosofia antiintelectualista da prática" (Bourdieu e Wacquant,
1995,1'.13). Acrescento que em nenhum lugar isto fica mais claro
do que no livro O sentido prdtico,no qual mostra que.a/16gica com
122 MAPAS SOBRE COMO CLIFFORD GEERTZ E PIERRE •••
que pensamos e atuamos no social, ou seja, o habitus, está arraigadano corpo, em disposições inconscientes.
Segundo Wacquant, desconstruir a posição do analista socialrequer adquirir consciência das coordenadas sociais (de classe, sexo
e etnia) do investigador, da posição que este ocupa no espaço acadêmico e, em terceiro lugar, da "parcialidade intelectualista" que f.'11.
o cientista imaginar que pode ver o mundo como um espetáculo.Parece-me que este seria o ponto de partida para - reconhecendoos distintos lugares a partir dos quais o investigador fala - poderdesconstruí-Ios, mesmo sabendo ser inútil ocultar suas posições porque, por mais que tente falar a partir de um não-lugar, nunca con
seguirá fazer do mundo um espetáculo asséptico.
Há um lugar para estudar a interculturalidade?
1. Grande parte dos dilemas teóricos e metodológicos dasciências sociais estão condensados nos itinerários destes autores. A
trajet6ria de Clifford Geertz é a de um antropólogo dedicado a
estudos de caso, ,que recusa as generalizações e a macroteoria, mastermina perguntando-se sobre as maneiras pelas quais construímosos objetos de estudo com os outros de sociedades distintas, na maisampla interculturalidade. O itinerário de Pierre Bourdieu é o de al
guém que começou trabalhando na Argélia como antrop610go, empoucos anos repetiu e expandiu seus estudos na França, construindouma macroteoria sociológica que aplicou sob forma dedutiva a objetos muito diversos, sem reconhecer suficientemente a especificidadede cada arte, da literatura, da política e das indústrias culturais.Ao primeiro continua a importar, até na sua última etapa, o caráter
dramático das interações sociais e, portanto, seu sentido indeciso,ambíguo, e as variações posicionais necessárias para captar os jogos
não previstos na codificação social; Bourdieu atacou a dramatizaçãodas notícias na televisão e tratou de proscrever o dramático darefle
xividade científica. A observação crítica da subjetividade do observador, praticada por Geertz, pelos etnometod610gos e pelos antrop610-
123
gos pós-modernos, segundo 'O autor de Respostas, "abre a porta auma forma de relativismo niilista" (Bourdieu e Wacquant, 1995,
p. 46). Esta afirmação é muito restrita em relação aos autores mais
relativistas ou "anarquistas" da antropologia pós-moderna e francamente inapropriada diante dos esforços de cànstrução de certa objetividade, a partir da sistematização do inter-subjetivo, que achamosnas obras de Geertz e .Rosaldo.
Na verdade, não se trata só de uma questão epistemológicamas também estética. Ao reconstruir a análise social, Rosaldo vê
coincidências com o Bourdieu antropólogo a ponto de concluir ocapítulo de Cultura e verdade, dedicado à indeterminação do tempoíndio e às improvisações dos ilongotes, apropriando-se extensamente da descrição bourdieana do ritmo e da política de reciprocidadeentre os camponeses da Argélia. Atraiu-o o modo pelo qual o autor
francês descreve, na dialética de ofensa e vingança: a criação de espaços para retardar a revanche, as estr4tégias que comandam o ritmo
da açãp, apressam e surpreendem o~ contêm e postergam, para intensificar a ameaça. Mas Rosaldo difere de Bourdieu em algo que
pareceria uma sutileza excessiva na ~erspectiva de um epistemólogo .Diz que o paradigma bourdieano d~ "repto e resposta sugere a estética das artes marciais. Os ilongotes e eu preferimos enfatizar a graça social, o ritmo e os passos que moldam a dança da vida. Meu
projeto foi descrever a estética discrepante que dá forma ao ritmoda vida cotidiana, em que o tempo do relógio não é a realidade úl
tima" (Rosaldo, 1989, p. 121). Por que dar tanta importância aoritmo? Porque nos seus movimentos - explica Rosaldo - se manifestam"a reflexão e a negociação em curso, a qualidade das relações sociais
entre os participantes" (ibid.).
Dir-se-ia que, na sua crítica aos tempos televisivos, na suainsensibilidade aos ritmos do debate e às indefinidas oportunidades de negociação e disputa, o Bourdieu sociólogo esqueceu sua ex
periência antropológica na Argélia. T ampouco levou em conta o queele mesmo escreveu no' seu posfácio ao livro de Paul Rabinow, Re-
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~125 ~@t=tI••••••SOBRE COMO CLIFFORD GEERTZ E PIERRE •••
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flexões sobre um trabalho de campo no Marrocos, que este autor. reali-zou sob a orientação de Clifford Geertz: ainda que interprete mala obra de Geertz como "um positivismo renovado" por causa da
descrição densa, que faria do cientista um sujeito neutro, "impecável
servidor dos dnones lógicos da explicação", Bourdieu elogia o trabalho de Rabinow devido ao seu questionamento da "autoridade"etnográfica, derivada dos rituais metodológicos da academia. Sustenta que os fatos são fabricados no campo, no "trabalho conjuntode interpretação do etnógrafo e seus informantes (Rabinow, 1992,
p. 152), o que parece coincidir com a afirmação de Rabinow de
que "os fatos antropológicos são transculturais" (ibid., p. 142). Noentanto, quanto à televisão, Bourdiéu, preocupado em impor SUll
autoridade epistemológica "objetiva", desqualifica a gestão do senti
do na disputa televisiva, as negociações que devem ocorrer (I'.Hu,do
um sociólogo fala para a dmera. Compartilho a crítica de Bourdicnlà televisão por subordinar-se ao mercado, mas esta crítica não CI)f1t1C="
gue perceber aquilo que, na linguagem e no ritmo da comllnicaç!lcIaudiovisual, aponta para um modo de interação social, lima construção do conhecimento distinta da atadêmica.
2. Dois movimentos contemporâneos coloc20m-nos diante datentação de imaginar que poderíamos não pertencer a lugar nenhum.
Uma destas correntes é o processo globalizador, ou seja, a dcsterritorialização de empresas, capitais, bens, comunicações emigrantes,entre cujos resultados 'se acham os não-lugares ,celebrados por Marc
Augé(aeroportos, shoppings, auto-estradas). Outra é a tentativa de
superar os subjetivismos e alcançar uma perspectiva objetiva, baseada numa pro,dução científica universalizada, que aboliria as diferenças culturais como estruturas-suportes de diversas modalidades de:conhecimento.
No entanto, os lugares continuam a existir por continuar aexistir alteridade no mundo. Foi transitoriamente útil a noção de
não-lugar para tornar os antropólogos mais atentos ao que nos co
munica, integra e relativiza nossas diferenças num mundo em que
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cada vez há mais auto-estradas materiais e simbólicas. Mas, até mes
mo nos aeroportos mais alheios ao país que os aloja, até mesmo nascolagens dos shoppings e nos bazares, é possível- e necessário - identificar de onde procedem as coisas e as pessoas. O que Geertz dizquando rechaça as obsessões da sociobiologia e do neo-racionalismo, no sentido de encontrar uma "natureza humana", é aplicável àimposição de uma racional idade teórica absolutamente universa
lizante: o preço que se deve pagar por este tipo de verdade "é a desconstrução da alteridade" (Geertz, 1996a, p. 122).
3. Escolher Clifford Geertz e Pierre Bourdieu teve o propósito de averiguar como dois fundadores das ciências sociais situam
se diante daquilo que desafia seu modo de entendê-Ias. Tê-Ios escolhido traz o pressuposto de que, entre os desafios que antropólogose sociólogos temos hoje, é preciso dar conta das formas globalizadas de interculturalidade, que exigem ir além do estudo de çontatosocasionais entre' culturas e sociedades,; assim como entender as in
dústrias culturais e outros processos que transcendem as sociedadesnacionais. Com este fim, seria valioso examinar como Bourdieu rea
giu aos efeitos teóricos e políticos que teve a tradução das suas obras
em sociedades não européias, o que está documentado num livro
que inclui diálogos com leitores estadunidenses e japoneses dos seustextos (Bourdieu, 1997).
Também conviria aprofundar algo que por ora insinuo: como
se exila, migra e se relocaliza instavelm~nte o trabalho intelectual
quando não pertencemos só a uma sociédade nacional e quando asuniversidades nacionais e públicas devem definir sua tarefa em rela-
. ção aos novos espaços transnacionais e privatizados. Nestes espaçossurgem desafios à produção e ao uso do saber, às vezes se produzemconhecim.entos e também oportunidades inéditas - tal como ocorre
com as empresas, com os meios de comunicação - para refazer nossotrabalho intelectual a partir de lugares distintos da universidade,
que não penso (nem em sentido teórico nem político) possam serconsiderados como não-lugares.
127SOBRE COMO CLIFFORD GEERTZ E PIERRE •••
4: Ao mesmo tempo que alguns lugares de ação e de conheci
mento esmaecem, os dispositivos mercantis tendem a subordinartodos à sua lógica. O mercado não é um lugar, como talvez se pudesse dizer do Estado ou da universidade, mas uma lógica organizadora
das interações sociais. Então, a confrontação que tantas vezes se fazentre Estado e mercado não deve ser vista como confrontação entre
duas entidades. Mais do que um lugar social, o mercado é este modo
de organizar a circulação de bens, mensagens e serviços como mercadorias, que tende na atualidade a reduzir as interações sociais aoseu valor econômico de troca.
Qual é o sentido, então, de falar de mercados simbólicos? Ouso metafórico desta expressão econômica deve-se fazer acompanharde uma reflexão e auto-reflexão acerca daquilo que, na produção li
terária, artística, midiática e política transcende a circulação mercantil: produção de conhecimento e informação, buscas estéticas, defesa de direitos humanos e outras razões pelas quais os seres humanos
e as culturas interagem.
Vou continuar a analisar, nos capítulos seguintes, as condiçõesdesta reflexão e auto-reflexão. 'Por ora aponto que cabe duvidar, com
Bourdieu, de que a televisão possa criticaJ;-sea si mesma na televisão.Também convém ser suspicaz com as tentativas do relativismo an
tropológico para ajudar as culturas a superar seu etnocentrismo au
tojustificatório. E não é possível confiar que o campo científico sejacapaz de cumprir desinteressadamente este trabalho crítico sobresi mesmo, depois das dificuldades exibidas, entre outros, pelos estudos de Bourdieu sobre o campo acadêmico, bem como pelos de
Geertz e dos antropólogos pós-modernos sobre os obstácúlos à reflexividade na escrita e nas instituições antropológicas.
Chegamos assim não a uma conclusão, mas a uma hipótesepara o trabalho futuro. Talvez duas tarefas para sair do ensimesmamento das disciplinas e das instituições, da sua reorganização acríticasob O mercado, e para reencontrar o interesse público sejam as se
guintes: a) permitir que os objetos de estudo e ação de cada campo
"MAPAS126
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sejam confrontados, vale dizer, desafiados pelos outros com os quaistenham relação (por exemplo, as artes de elite e as culturas folclóricas
pelos meios de comunicação, estes últimos pelas interações sociais
não midiáticas); b) deixar que, dentro da globalização, emerjam as.perguntas da interculturalidade, das fronteiras que não caem ou só
mudam de lugar, das diferenças e desigualdades não diluíveis naglobalização.
Confirmamos que os objetos de estudo das ciências sociaisnão podem ser identidades separadas, culturas desconectadas de
modo relativista ou campos absolutamente autônomos. As evidentes interações entre eles não serão entendidas se as concebermos
como simples justaposição. Num tempo de globalização, o objetode estudo mais revelado r, mais questionador das pseudocertezasetnocêntricas ou disciplinares é a interculturalidade. O cientista so
cial, mediante a investigação empírica de relações interculturais e
a crítica auto-reflexiva das fortalezas disciplinares, pode tentar agorapensar a partir do exílio. Estudar a cultura requer, então, converterse em especialista das interseções.
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t•t•4
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••t•41
A GLOBALlZAÇÃO DA ANTROPOLOGIADEPOIS DO PÓS-MODERNISMO
4.
Trabalho de campo ou retórica textual
Temos falado dos antropólogos como profissionais especializados na interculturalidade. As oscilações ambivalentes en
contradas entre o que é próprio e o que é alheio geram dúvidaspouco confortáveis sobre nosso poder de ubiqüidade e tradutibilidade. Divididos entre a lealdade à sociedade estudada e as exi,.
gências do conhecimento nas instituições em que ensinamos, entre o saber dos nativos e o pensamento científico, não é fácil cons
truir discursos que lancem pontes entre ambos. A virada lingüís
tica das ciências sociais, na parte final do século XX, colocou precisamente no nível discursivo estes velhos dilemas da práticaetnográfica.
Neste capítulo e no seguinte, examinarei alguns prbblemasdecorrentes desta ênfase nos discursos. Aqui, buscarei mostrar oslimites dos debates epistemológicos e políticos pós-modernosque situaram na construção dos textos etnográficos os conflitosda interculturalidade. No próximo, proporei um trabalho semelhante com .os estudos culturais.
A análise crítica da discursividade etnográfica pôs sob sus
peita os modos de validação empírica da antropologia, sQbretudo eSte recurso - o trabalho de campo - durante décadas considerado chave da originalidade e do valor científico ~dessa disci-
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