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12 A ARTE REFINADA DE DETECTAR MENTIRAS A compreens„o humana n„o È um exame desinteressado, mas recebe infusıes da vontade e dos afetos; disso se originam ciÍncias que podem ser chamadas ìciÍncias conforme a nossa vontadeî. Pois um homem acredita mais facilmente no que gostaria que fosse verdade. Assim, ele rejeita coisas difÌceis pela impaciÍncia de pesquisar; coisas sensatas, porque diminuem a esperanÁa; as coisas mais profundas da natureza, por superstiÁ„o; a luz da experiÍncia, por arrog‚ncia e orgulho; coisas que n„o s„o comumente aceitas, por deferÍncia ‡ opini„o do vulgo. Em suma, in˙meras s„o as maneiras, e ‡s vezes imperceptÌveis, pelas quais os afetos colorem e contaminam o entendimento. Francis Bacon, Novum Organon (1620) Meus pais morreram h· anos. Eu era muito ligado a eles. Ainda sinto uma saudade terrÌvel. Sei que sempre sentirei. Desejo acreditar que sua essÍncia, suas personalidades, o que eu tanto amava neles, ainda existe ñ real e verdadeiramente ñ em algum lugar. N„o pediria muito, apenas cinco ou dez minutos por ano, para lhes contar sobre os netos, pÙ-los ao corrente das ˙ltimas novidades, lembrar-lhes que eu os amo. Uma parte minha ñ por mais infantil que pareÁa ñ se pergunta como È que estar„o. ìEst· tudo bem?î, desejo perguntar. As ˙ltimas palavras que me vi dizendo a meu pai, na hora de sua morte, foram: ìTome cuidadoî. ¿s vezes sonho que estou falando com meus pais, e de repente ñ ainda imerso na elaboraÁ„o do sonho ñ sou tomado pela consciÍncia esmagadora de que eles n„o morreram de verdade, de que tudo n„o passou de um erro horrÌvel. Ora, ali est„o eles, vivos e bem de sa˙de, meu pai fazendo piadas inteligentes, minha m„e muito sÈria me aconselhando a usar uma manta porque est· frio. Quando acordo, passo de novo por um processo abreviado de luto. Evidentemente, existe algo dentro de mim que est· pronto a acreditar na vida apÛs a morte. E que n„o est· nem um pouco interessado em saber se h· alguma evidÍncia sÈria que confirme tal coisa.

Capítulo 12 - A ARTE REFINADA DE DETECTAR MENTIRAS

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A ARTE REFINADADE DETECTAR MENTIRAS

A compreens„o humana n„o È um exame desinteressado, mas recebeinfusıes da vontade e dos afetos; disso se originam ciÍncias quepodem ser chamadas ìciÍncias conforme a nossa vontadeî. Pois umhomem acredita mais facilmente no que gostaria que fosse verdade.Assim, ele rejeita coisas difÌceis pela impaciÍncia de pesquisar;coisas sensatas, porque diminuem a esperanÁa; as coisas maisprofundas da natureza, por superstiÁ„o; a luz da experiÍncia, porarrog‚ncia e orgulho; coisas que n„o s„o comumente aceitas, pordeferÍncia ‡ opini„o do vulgo. Em suma, in˙meras s„o as maneiras,e ‡s vezes imperceptÌveis, pelas quais os afetos colorem econtaminam o entendimento.

Francis Bacon, Novum Organon (1620)

Meus pais morreram h· anos. Eu era muito ligado a eles. Ainda

sinto uma saudade terrÌvel. Sei que sempre sentirei. Desejo acreditar que sua

essÍncia, suas personalidades, o que eu tanto amava neles, ainda existe ñ real

e verdadeiramente ñ em algum lugar. N„o pediria muito, apenas cinco ou dez

minutos por ano, para lhes contar sobre os netos, pÙ-los ao corrente das

˙ltimas novidades, lembrar-lhes que eu os amo. Uma parte minha ñ por mais

infantil que pareÁa ñ se pergunta como È que estar„o. ìEst· tudo bem?î,

desejo perguntar. As ˙ltimas palavras que me vi dizendo a meu pai, na hora

de sua morte, foram: ìTome cuidadoî.

¿s vezes sonho que estou falando com meus pais, e de repente ñ

ainda imerso na elaboraÁ„o do sonho ñ sou tomado pela consciÍncia

esmagadora de que eles n„o morreram de verdade, de que tudo n„o passou

de um erro horrÌvel. Ora, ali est„o eles, vivos e bem de sa˙de, meu pai

fazendo piadas inteligentes, minha m„e muito sÈria me aconselhando a usar

uma manta porque est· frio. Quando acordo, passo de novo por um processo

abreviado de luto. Evidentemente, existe algo dentro de mim que est· pronto

a acreditar na vida apÛs a morte. E que n„o est· nem um pouco interessado

em saber se h· alguma evidÍncia sÈria que confirme tal coisa.

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Por isso, n„o rio da mulher que visita o t˙mulo do marido e

conversa com ele de vez em quando, talvez no anivers·rio de sua morte. N„o

È difÌcil de compreender. E se tenho dificuldades com o status oncolÛgico

daquele com que ela est· falando, n„o faz mal. N„o È isso que importa. O que

importa È que os seres humanos s„o humanos. Mais de um terÁo dos adultos

norte-americanos acreditam que em algum nÌvel estabeleceram contato com

os mortos. O n˙mero parece ter dado um pulo de 15% entre 1977 e 1988. Um

quarto dos norte-amercaicanos acredita em reencarnaÁ„o.

Mas isso n„o significa que estou disposto a aceitar as pretensıes de

um ìmÈdiumî, que afirma canalizar os espÌritos dos seres amados que

partiram, quando tenho consciÍncia de que a pr·tica est· cheia de fraudes. Sei

o quanto desejo acreditar que meus pais sÛ abandonaram os cascos de seus

corpos, como insetos ou cobras na muda, e partiram para outro lugar.

Compreendo que esses sentimentos poderiam me tornar uma presa f·cil atÈ

para um trapaceiro pouco inteligente, de pessoas normais que desconhecem

suas mentes inconscientes, ou dos que sofrem de uma desordem psiqui·trica

dissociativa. Relutantemente, ponho em aÁ„o algumas reservas de ceticismo.

Como È, pergunto a mim mesmo, que os canalizadores nunca nos

d„o informaÁıes verific·veis que s„o inacessÌveis por outros meios? Por que

Alexandre, o Grande, nunca nos informa sobre a localizaÁ„o exata de sua

tumba, Fermat sobre o seu ˙ltimo teorema, James Wilkes Booth sobre a

conspiraÁ„o do assassinato de Lincoln, Hermann Gˆering sobre o incÍndio do

Reichstag? Por que SÛfocles, DemÛcrito e Aristarco n„o ditam as suas obras

perdidas? N„o querem que as geraÁıes futuras conheÁam as suas obras-

primas?

Se fosse anunciada alguma evidÍncia real de vida apÛs a morte,

desejaria muito examin·-la; mas teria de ser uma evidÍncia real cientÌfica, e

n„o simples anedota. Em casos como A Face em Marte e os raptos por

alienÌgenas, eu diria que È melhor a verdade dura do que a fantasia

consoladora. E, no cÙmputo final, revela-se freq¸entemente que os fatos s„o

mais consoladores que a fantasia.

A premissa fundamental da ìcanalizaÁ„oî, do espiritismo e de

outras formas de necromancia È que n„o morremos quando experimentamos

a morte. N„o exatamente. Continua a existir alguma parte de nÛs que pensa,

sente e tem memÛria. Seja o que for ñ alma ou espÌrito, nem matÈria nem

energia, mas alguma outra coisa ñ, essa parte pode entrar novamente em

corpos humanos ou de outros seres, e assim a morte perde grande parte de

sua ferroada. E ainda mais: se as afirmaÁıes do espÌrita ou canalizador s„o

verdadeiras, temos uma oportunidade de entrar em contato com os seres

amados que morreram.

J. Z. Knight, do estado de Washington, afirma estar em contato com

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um ser de 35 mil anos chamado Ramtha. Ele fala inglÍs muito bem, usando a

lÌngua, os l·bios e as cordas vocais de Knight, com um sotaque que me parece

hindu. Como a maioria das pessoas sabe como falar, e muitas ñ de crianÁas a

atores profissionais ñ tÍm um repertÛrio de vozes a seu dispor, a hipÛtese

mais simples sugere que È a prÛpria sra. Knight que faz Ramtha falar, e que

ela n„o tem contato com entidades desencarnadas da Època plistocena glacial.

Se h· provas em contr·rio, gostaria muito de conhecer. Seria

consideravelmente mais impressionante se Ramtha pudesse falar por si

mesmo, sem a ajuda da boca da sra. Knight. Isso n„o sendo possÌvel, como

podemos testar a afirmaÁ„o? (a atriz Shirley MacLaine afirma que Ramtha foi

seu irm„o em Atl‚ntida, mas isso j· È outra histÛria.)

Vamos supor que Ramtha pudesse ser interrogado. PoderÌamos

verificar se ele È quem afirma ser? Como È que ele sabe que viveu h· 35 mil

anos, mesmo aproximadamente? Que calend·rio emprega? Quem est·

tomando nota dos milÍnios intermedi·rios? Trinta e cinco mil mais ou menos

o quÍ? Como È que eram as coisas h· 35 mil anos? Ou Ramtha tem realmente

essa idade, e nesse caso vamos descobrir alguma coisa sobre esse perÌodo, ou

È uma fraude e ele (ou melhor, ela) vai se trair.

Onde È que Ramtha vivia? (Sei que fala inglÍs com sotaque hindu,

mas onde È que falavam assim h· 35 mil anos?) Como era o clima? O que

Ramtha comia? (Os arqueÛlogos tÍm alguma noÁ„o do que as pessoas

comiam nessa Època.) Quais eram as lÌnguas autÛctones, e qual era a

estrutura social? Com quem Ramtha vivia ñ com a mulher, mulheres, filhos,

netos? Qual era o ciclo de vida, a taxa de mortalidade infantil, a expectativa

de vida? Eles tinham controle populacional? Que roupas vestiam? Como elas

eram fabricadas? Os instrumentos e as estratÈgias de caÁa e pesca? Armas?

Sexismo endÍmico? Xenofobia e etnocentrismo? E, se Ramtha descendia da

ìelevada civilizaÁ„oî de Atl‚ntida, onde est„o os detalhes ling¸Ìsticos,

tecnolÛgicos, histÛricos e de outra natureza? Como era sua escrita?

Respondam. Em lugar disso, a ˙nica coisa que recebemos s„o homilias

banais.

Para dar outro exemplo, eis um conjunto de informaÁıes que n„o

foram canalizadas de um morto antigo, mas de entidades n„o humanas

desconhecidas que faziam cÌrculos nas plantaÁıes, assim como foi registrado

pelo jornalista Jim Schnabel:

Estamos muito ansiosos por essa naÁ„o pecadora estar espalhando

mentiras sobre nÛs. N„o viemos em m·quinas, n„o pousamos na Terra em

m·quinas [...]. Viemos com o vento. Somos a ForÁa Vital. A ForÁa Vital do

solo [...]. Viemos atÈ aqui [...]. Estamos apenas a um sopro de dist‚ncia [...]

a um sopro de dist‚ncia [...] n„o estamos a milhıes de milhas de dist‚ncia

[...] uma ForÁa Vital que È mais potente que as energias do corpo humano.

Mas nÛs nos reunimos num nÌvel mais elevado de vida[...]. N„o

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precisamos de nome. Vivemos num mundo paralelo ao seu, ao lado do seu

[...]. Os muros se romperam. Dois homens surgir„o do passado [...] o

grande urso [...] o mundo encontrar· a paz.

As pessoas d„o atenÁ„o a essas maravilhas pueris, principalmente

porque elas prometem algo parecido com a religi„o dos velhos tempos, mas

sobretudo a vida depois da morte, atÈ a vida eterna.

O vers·til cientista brit‚nico J. B. S. Haldane, que foi, entre muitas

outras coisas, um dos fundadores da genÈtica populacional, propÙs certa vez

uma perspectiva muito diferente para algo semelhante ‡ vida eterna. Haldane

imaginava um futuro distante em que as estrelas se obscureciam e o espaÁo

foi preenchido em sua maior parte por um g·s frio e fino. Ainda assim, se

esperarmos bastante tempo, ocorrer„o flutuaÁıes estatÌsticas na densidade

desse g·s. Ao longo de imensos perÌodos, as flutuaÁıes ser„o o suficiente

para reconstituir um Universo parecido com o nosso. Se o Universo È

infinitamente antigo, haver· um n˙mero infinito dessas reconstituiÁıes,

apontava Haldane.

Assim, num Universo infinitamente antigo com um n˙mero infinito

de nascimentos de gal·xias, estrelas, planetas e vida, deve reaparecer uma

Terra idÍntica em que vocÍ e todos os seus seres queridos voltar„o a se

reunir. Serei capaz de rever meus pais e apresentar-lhes os netos que eles n„o

conheceram. E tudo isso n„o acontecer· apenas uma vez, mas um n˙mero

infinito de vezes.

Entretanto, de certo modo isso n„o oferece os consolos da religi„o.

Se nenhum de nÛs vai lembrar o que aconteceu desta vez, a Època que o leitor

e eu estamos partilhando, as satisfaÁıes da ressurreiÁ„o do corpo, pelo menos

aos meus ouvidos, soam ocas.

Mas nessa reflex„o subestimei o que significa infinidade. Na

imagem de Haldane, haver· universos, na verdade um n˙mero infinito de

universos, em que nossas mentes recordar„o perfeitamente todas as vidas

anteriores. A satisfaÁ„o est· ‡ m„o ñ moderada, no entanto, pela idÈia de

todos esses outros universos que tambÈm passar„o a existir (novamente, n„o

uma vez, mas um n˙mero infinito de vezes) com tragÈdias e horrores que

superam em muito qualquer coisa que j· experimentei desta vez.

Entretanto, o Consolo de Haldane depende do tipo de universo em

que vivemos, e talvez de arcanos, como, por exemplo, saber se h· bastante

matÈria para finalmente reverter a expans„o do universo, e o car·ter das

flutuaÁıes no v·cuo. Ao que parece, aqueles que sentem um profundo desejo

de vida apÛs a morte poderiam se dedicar ‡ cosmologia, ‡ gravidade

qu‚ntica, ‡ fÌsica das partÌculas elementares e ‡ aritmÈtica transfinita.

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Clemente de Alexandria, um dos padres da Igreja primitiva, em

suas ExortaÁıes aos Gregos (escritas em torno do ano 190), rejeitava as crenÁas

pag„s em termos que pareceriam hoje em dia um pouco irÙnicos:

Estamos realmente longe de permitir que os homens adultos dÍem

ouvidos a essas histÛrias. Mesmo aos nossos filhos, quando eles berram de

cortar o coraÁ„o, como se diz, n„o temos o h·bito de contar histÛrias

fabulosas para acalm·-los.

Em nossa Època, temos padrıes menos severos. Contamos ‡s

crianÁas histÛrias sobre o Papai Noel, o coelhinho da P·scoa e a fada do dente

por razıes que achamos emocionalmente sadias, mas depois, antes de

crescerem, nÛs os desiludimos sobre esses mitos. Por que nos desdizemos?

Porque o seu bem-estar como adultos depende de eles conhecerem o mundo

tal como È. NÛs nos preocupamos, e com raz„o, com os adultos que ainda

acreditam em Papai Noel.

Sobre as religiıes doutrin·rias, escreveu o filÛsofo David Hume que

os homens n„o ousam confessar, nem mesmo a seus coraÁıes, as d˙vidas

que tÍm a respeito desses assuntos. Eles valorizam a fÈ implÌcita; e

disfarÁam para si mesmos a sua real descrenÁa, por meio das afirmaÁıes

mais convictas e do fanatismo mais positivo.

Essa descrenÁa tem conseq¸Íncias morais profundas, como escreveu

o revolucion·rio americano Tom Paine em The age of reason:

A descrenÁa n„o consiste em acreditar, nem em desacreditar; consiste em

professar que se crÍ naquilo que n„o se crÍ. … impossÌvel calcular o dano

moral, se È que posso cham·-lo assim, que a mentira mental tem causado

na sociedade. Quando o homem corrompeu e prostituiu de tal modo a

castidade de sua mente, a ponto de empenhar a sua crenÁa profissional em

coisas que n„o acredita, ele est· preparado para a execuÁ„o de qualquer

outro crime.

A formulaÁ„o de T. H. Huxley foi:

O fundamento da moralidade È [...] renunciar a fingir que se acredita

naquilo que n„o comporta evidÍncias, e a repetir proposiÁıes ininteligÌveis

sobre coisas que est„o alÈm das possibilidades do conhecimento.

Clement, Hume, Paine e Huxley estavam todos falando de religi„o.

Mas a grande parte do que escreveram tÍm aplicaÁıes mais gerais ñ por

exemplo, para as importunidades disseminadas no pano de fundo de nossa

civilizaÁ„o comercial: h· um tipo de comercial de aspirina em que atores

fingindo ser mÈdicos revelam que o produto do concorrente tem apenas

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determinada fraÁ„o do ingrediente analgÈsico que os mÈdicos mais

recomendam ñ eles n„o dizem qual È o misterioso ingrediente. Enquanto o

seu produto tem uma quantidade drasticamente maior (1,2 a 2 vezes mais por

comprimido). Por isso, comprem esse produto. Mas por que n„o tomar dois

comprimidos do concorrente? Ou considere-se o caso do analgÈsico que

funciona melhor do que o produto de ìpotÍncia regularî do concorrente. Por

que n„o tomar o produto de ìpotÍncia extraî do outro fabricante? E eles

certamente n„o falam nada sobre as mais de mil mortes por ano causadas

pelo uso de aspirina nos Estados Unidos ou os aparentes 5 mil casos anuais

de disfunÁ„o renal provocados pelo uso de acetaminofeno, de que a marca

mais vendida È o Tylenol. (Isso, contudo, talvez represente um caso de

correlaÁ„o sem causalidade.) Ou quem se importa em saber quais os cereais

que tÍm mais vitamina, quando podemos tomar uma pÌlula de vitamina no

cafÈ da manh„? Da mesma forma, que importa saber que um anti·cido

contÈm c·lcio, se o c·lcio serve para a nutriÁ„o e È irrelevante para a gastrite?

A cultura comercial est· cheia de informaÁıes errÙneas e subterf˙gios

semelhantes ‡ custa do consumidor. N„o se devem fazer perguntas. N„o

pensem. Comprem.

As explicaÁıes pagas dos produtos, especialmente se feitas por

verdadeiros ou pretensos especialistas, constituem uma saraivada constante

de logros. Revelam menosprezo pela inteligÍncia dos clientes. Criam uma

corrupÁ„o insidiosa das atitudes populares a respeito da objetividade

cientÌfica. Hoje, existem atÈ comerciais em que cientistas reais, alguns de

consider·vel distinÁ„o, atuam como garotos-propaganda para as empresas.

Eles nos ensinam que tambÈm os cientistas mentem por dinheiro. Como

alertou Tom Paine, o fato de nos acostumarmos com mentiras cria o

fundamento para muitos outros males.

Enquanto escrevo, tenho diante de mim o programa da Whole Life

Expo, a exposiÁ„o anual da Nova Era realizada em San Francisco. …

comumente visitada por dezenas de milhares de pessoas. Ali especialistas

muito question·veis fazem propaganda de produtos muito question·veis. Eis

algumas das apresentaÁıes: ìComo proteÌnas presas no sangue produzem

dor e sofrimentoî. ìCristais, talism„s ou pedras?î (Tenho a minha opini„o.)

Prossegue: ìAssim como um cristal focaliza as ondas sonoras e luminosas

para o r·dio e a televis„oî ñ o que È um erro insÌpido de quem n„o

compreende como o r·dio e a televis„o funcionam ñ, ìele pode amplificar as

vibraÁıes espirituais para o ser humano afinadoî. Ou mais esta: ìO retorno

da deusa, um ritual de apresentaÁ„oî. Outra: ìSincronismo, a experiÍncia do

reconhecimentoî. Essa È fornecida pelo ìirm„o Charlesî. Ou, na p·gina

seguinte: ìVocÍ, Saint-Germain e a cura pela chama violetaî. E assim

continua, com milhares de an˙ncios sobre as ìoportunidadesî ñ percorrendo

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a gama estreita que vai do d˙bio ao esp˙rio ñ que se acham ‡ disposiÁ„o na

Whole Life Expo.

Algumas vÌtimas de c‚ncer, perturbadas, fazem peregrinaÁıes ‡s

Filipinas, onde ìcirurgiıes medi˙nicosî, depois de esconder na palma da

m„o pedaÁos de fÌgado de galinha ou coraÁ„o de bode, fingem tocar nas

entranhas do paciente e retirar o tecido doente, que È ent„o triunfantemente

exibido. Certos lÌderes de democracias ocidentais consultam regularmente

astrÛlogos e mÌsticos antes de tomar decisıes de Estado. Sob a press„o

p˙blica por resultados, a polÌcia, ‡s voltas com um assassinato n„o

solucionado ou um corpo desaparecido, consulta ìespecialistasî de ESP

(percepÁ„o extra-sensorial) (que nunca adivinham nada alÈm do esperado

pelo senso comum, mas a polÌcia, dizem os ESPs, continua a cham·-los).

Anuncia-se a previs„o de uma divergÍncia com naÁıes advers·rias, e a CIA,

estimulada pelo Congresso, gasta dinheiro dos impostos para descobrir se

podemos localizar submarinos nas profundezas do oceano concentrando o

pensamento neles. Um ìmÈdiumî ñ usando pÍndulos sobre mapas e varinhas

rabdom‚nticas em aviıes ñ finge descobrir novos depÛsitos minerais; uma

companhia mineira australiana lhe adianta elevada soma de dÛlares,

irrecuper·vel em caso de fracasso, garantindo-lhe uma participaÁ„o na

exploraÁ„o do minÈrio em caso de sucesso. Nada È descoberto. Algumas

est·tuas de Jesus ou murais de Maria ficam manchados de umidade, e

milhares de pessoas bondosas se convencem de que testemunharam um

milagre.

Todos esses s„o casos de mentiras provocadas ou presumÌveis.

Acontece um logro, ora de forma inocente, mas com a colaboraÁ„o dos

envolvidos, ora com premeditaÁ„o cÌnica. Em geral, a vÌtima se vÍ presa de

forte emoÁ„o ñ admiraÁ„o, medo, gan‚ncia, dor. A aceitaÁ„o crÈdula da

mentira talvez nos custe dinheiro: È o que P. T. Barnum apontou, ao afirmar:

ìNasce um ot·rio a cada minutoî. Mas pode ser muito mais perigoso do que

isso, e quando os governos e as sociedades perdem a capacidade de pensar

criticamente os resultados podem ser catastrÛficos ñ por mais que

deploremos aqueles que engoliram a mentira.

Na ciÍncia, podemos comeÁar com resultados experimentais, dados,

observaÁıes, mediÁıes, ìfatosî. Inventamos, se possÌvel, um rico conjunto de

explicaÁıes plausÌveis e sistematicamente confrontamos cada explicaÁ„o com

os fatos. Ao longo de seu treinamento, os cientistas s„o equipados com um kitde detecÁ„o de mentiras. Este È ativado sempre que novas idÈias s„o

apresentadas para consideraÁ„o. Se a nova idÈia sobrevive ao exame das

ferramentas do kit, nÛs lhe concedemos aceitaÁ„o calorosa, ainda que

experimental. Se possuÌmos essa tendÍncia, se n„o desejamos engolir

mentiras mesmo quando s„o confortadoras, h· precauÁıes que podem ser

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tomadas; existe um mÈtodo testado pelo consumidor, experimentado e

verdadeiro.

O que existe no kit? Ferramentas para o pensamento cÈtico.

O pensamento cÈtico se resume no meio de construir e compreender

um argumento racional e ñ o que È especialmente importante ñ de reconhecer

um argumento falacioso ou fraudulento. A quest„o n„o È se gostamos da

conclus„o que emerge de uma cadeia de raciocÌnio, mas se a conclus„o derivada premissa ou do ponto de partida e se essa premissa È verdadeira.

Eis algumas das ferramentas:

• Sempre que possÌvel, deve haver confirmaÁ„o independente dos

ìfatosî.

• Devemos estimular um debate substantivo sobre as evidÍncias,

do qual participar„o notÛrios partid·rios de todos os pontos de vista.

• Os argumentos de autoridade tÍm pouca import‚ncia ñ as

ìautoridadesî cometeram erros no passado. Voltar„o a cometÍ-los no futuro.

Uma forma melhor de expressar essa idÈia È talvez dizer que na ciÍncia n„o

existem autoridades; quando muito, h· especialistas.

• Devemos considerar mais de uma hipÛtese. Se alguma coisa deve

ser explicada, È preciso pensar em todas as maneiras diferentes pelas quais

poderia ser explicada. Depois devemos pensar nos testes que poderiam servir

para invalidar sistematicamente cada uma das alternativas. O que sobreviver,

a hipÛtese que resistir a todas as refutaÁıes nesta seleÁ„o darwiniana entre as

ìm˙ltiplas hipÛteses eficazesî, tem uma chance muito melhor de ser a

resposta correta do que se tivÈssemos simplesmente adotado a primeira idÈia

que prendeu nossa imaginaÁ„o.*

• Devemos tentar n„o ficar demasiado ligados a uma hipÛtese sÛ

por ser a nossa. … apenas uma estaÁ„o intermedi·ria na busca do

conhecimento. Devemos nos perguntar por que a idÈia nos agrada. Devemos

compar·-la imparcialmente com as alternativas. Devemos verificar se È

possÌvel encontrar razıes para rejeit·-la. Se n„o, outros o far„o.

• Devemos quantificar. Se o que estiver sendo explicado È passÌvel

de mediÁ„o, de ser relacionado a alguma quantidade numÈrica, seremos

muito mais capazes de discriminar entre as hipÛteses concorrentes. O que È

vago e qualitativo È suscetÌvel de muitas explicaÁıes. H· certamente verdades

a serem buscadas nas muitas questıes qualitativas que somos obrigados a

enfrentar, mas encontr·-las È mais desafiador.

(*) Esse È um problema que afeta os j˙ris. Estudos retrospectivos mostram que

alguns jurados tomam a sua decis„o muito cedo ñ talvez durante a argumentaÁ„o de

abertura; depois guardam na memÛria as provas que parecem sustentar suas impressıes

iniciais e rejeitam as contr·rias. O mÈtodo das hipÛteses eficazes alternativas n„o est· em

funcionamento nas suas cabeÁas.

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• Se h· uma cadeia de argumentos, todos os elos na cadeia devem

funcionar (inclusive a premissa) ñ e n„o apenas a maioria deles.

• A Navalha de Occam. Essa maneira pr·tica e conveniente de

proceder nos incita a escolher a mais simples dentre duas hipÛteses que

explicam os dados com igual eficiÍncia.

• Devemos sempre perguntar se a hipÛtese n„o pode ser, pelo

menos em princÌpio, falseada. As proposiÁıes que n„o podem ser testadas ou

falseadas n„o valem grande coisa. Considere-se a idÈia grandiosa de que o

nosso Universo e tudo o que nele existe È apenas uma partÌcula elementar ñ

um elÈtron, por exemplo ñ num Cosmos muito maior. Mas, se nunca obtemos

informaÁıes de fora de nosso Universo, essa idÈia n„o se torna impossÌvel de

ser refutada? Devemos poder verificar as afirmativas. Os cÈticos inveterados

devem ter a oportunidade de seguir o nosso raciocÌnio, copiar os nossos

experimentos e ver se chegam ao mesmo resultado.

A confianÁa em experimentos cuidadosamente planejados e

controlados È de suma import‚ncia, como tentei enfatizar antes. N„o

aprendemos com a simples contemplaÁ„o. … tentador ficar satisfeitos com a

primeira explicaÁ„o possÌvel que passa pelas nossas cabeÁas. Uma È muito

melhor do que nenhuma. Mas o que acontece se podemos inventar v·rias?

Como decidir entre elas? N„o decidimos. Deixamos que a experimentaÁ„o

faÁa as escolhas para nÛs. Francis Bacon indicou a raz„o cl·ssica: ìA

argumentaÁ„o n„o È suficiente para a descoberta de novos trabalhos, pois a

sutileza da natureza È muitas vezes maior do que a sutileza dos argumentosî.

Os experimentos de controle s„o essenciais. Por exemplo, se alegam

que um novo remÈdio cura uma doenÁa em 20% dos casos, temos de nos

assegurar se uma populaÁ„o de controle, ao tomar um placebo pensando que

ingere a nova droga, tambÈm n„o experimenta uma cura espont‚nea da

doenÁa em 20% das vezes.

As vari·veis devem ser separadas. Vamos supor que nos sentimos

mareados, e nos d„o uma pulseira que pressiona os pontos indicados pela

acupuntura e cinq¸enta miligramas de meclizina. Descobrimos que o mal-

estar desaparece. O que causou o alÌvio ñ a pulseira ou a pÌlula? SÛ ficaremos

sabendo se tomarmos uma sem usar a outra, na prÛxima vez em que ficarmos

mareados. Agora vamos imaginar que n„o somos t„o dedicados ‡ ciÍncia a

ponto de querer ficar mareados. Nesse caso, n„o separamos as vari·veis.

Tomamos os dois remÈdios de novo. Conseguimos o resultado pr·tico

desejado; aprofundar o conhecimento, poderÌamos dizer, n„o vale o

desconforto de atingi-lo.

Freq¸entemente o experimento deve ser realizado pelo mÈtodo

ìduplo cegoî, para que aqueles que aguardam uma certa descoberta n„o

fiquem na posiÁ„o potencialmente comprometedora de avaliar os resultados.

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Ao testar um novo remÈdio, por exemplo, queremos que os mÈdicos que

determinam os sintomas a serem mitigados n„o fiquem sabendo a que

pacientes foi ministrada a nova droga. O conhecimento poderia influenciar a

sua decis„o, ainda que inconscientemente. Em vez disso, a lista dos que

sentiram alÌvio dos sintomas pode ser comparada com a dos que tomaram a

nova droga, cada uma determinada independentemente. SÛ ent„o podemos

estabelecer a correlaÁ„o existente. Ou, ao comandar uma identificaÁ„o policial

pelo reconhecimento de fotos ou dos suspeitos enfileirados, o oficial

encarregado n„o deveria saber quem È o principal suspeito, para n„o

influenciar a testemunha consciente ou inconscientemente.

AlÈm de nos ensinar o que fazer na hora de avaliar uma informaÁ„o,

qualquer bom kit de detecÁ„o de mentiras deve tambÈm nos ensinar o que n„ofazer. Ele nos ajuda a reconhecer as fal·cias mais comuns e mais perigosas da

lÛgica e da retÛrica. Muitos bons exemplos podem ser encontrados na religi„o

e na polÌtica, porque seus profissionais s„o freq¸entemente obrigados a

justificar duas proposiÁıes contraditÛrias. Entre essas fal·cias est„o:

• ad hominem ñ express„o latina que significa ìao homemî, quando

atacamos o argumentador e n„o o argumento (por exemplo: A reverenda dra.Smith È uma conhecida fundamentalista bÌblica, por isso n„o precisamos levar a sÈriosuas objeÁıes ‡ evoluÁ„o);

• argumento de autoridade (por exemplo: O presidente RichardNixon deve ser reeleito porque ele tem um plano secreto para pÙr fim ‡ guerra noSudeste da ¡sia ñ mas, como era secreto, o eleitorado n„o tinha meios de

avaliar os mÈritos do plano; o argumento se reduzia a confiar em Nixon

porque ele era o presidente; um erro, como se veio a saber);

• argumento das conseq¸Íncias adversas (por exemplo: Deve existirum Deus que confere castigo e recompensa, porque, se n„o existisse, a sociedade seriamuito mais desordenada e perigosa ñ talvez atÈ ingovern·vel.* Ou: O rÈu de um casode homicÌdio amplamente divulgado pelos meios de comunicaÁ„o deve ser julgadoculpado; caso contr·rio, ser· um estÌmulo para os outros homens matarem as suasmulheres);

• apelo ‡ ignor‚ncia ñ a afirmaÁ„o de que qualquer coisa que n„o

provou ser falsa deve ser verdade, e vice-versa (por exemplo: N„o h· evidÍnciaconvincente de que os UFOs n„o estejam visitando a Terra; portanto, os UFOsexistem ñ e h· vida inteligente em outros lugares do Universo. Ou: Talvez hajasetenta quasilhıes de outros mundos, mas n„o se conhece nenhum que tenha o

(*) Uma formulaÁ„o mais cÌnica feita pelo historiador romano PolÌbio: ìComo as

massas s„o inconstantes, presas de desejos rebeldes, apaixonadas e sem temor pelas

conseq¸Íncias, È preciso incutir-lhes medo para que se mantenham em ordem. Por isso, os

antigos fizeram muito bem ao inventar os deuses e a crenÁa no castigo depois da morteî.

Page 11: Capítulo 12 -  A ARTE REFINADA DE DETECTAR MENTIRAS

progresso moral da Terra, por isso ainda somos o centro do Universo). Essa

impaciÍncia com a ambig¸idade pode ser criticada pela express„o: a ausÍncia

de evidÍncia n„o È evidÍncia da ausÍncia;

• alegaÁ„o especial, freq¸entemente para salvar uma proposiÁ„o em

profunda dificuldade teÛrica (por exemplo: Como um Deus misericordioso podecondenar as geraÁıes futuras a um tormento intermin·vel, sÛ porque, contra as suasordens, uma mulher induziu um homem a comer uma maÁ„? AlegaÁ„o especial:

VocÍ n„o compreende a doutrina sutil do livre-arbÌtrio. Ou: Como pode haver umPai, um Filho e um EspÌrito Santo igualmente divinos na mesma Pessoa? AlegaÁ„o

especial: VocÍ n„o compreende o mistÈrio da SantÌssima Trindade. Ou: Como Deuspermitiu que os seguidores do judaÌsmo, cristianismo e islamismo ñ cada umcomprometido a seu modo com medidas herÛicas de bondade e compaix„o ñ tenhamperpetrado tanta crueldade durante tanto tempo? AlegaÁ„o especial: Mais uma vezvocÍ n„o compreende o livre-arbÌtrio. E, de qualquer modo, os movimentos de Deuss„o misteriosos);

• petiÁ„o de princÌpio, tambÈm chamada de supor a resposta (por

exemplo: Devemos instituir a pena de morte para desencorajar o crime violento.Mas a taxa de crimes violentos realmente cai quando È imposta a pena de

morte? Ou: A bolsa de valores caiu ontem por causa de um ajuste tÈcnico e darealizaÁ„o de lucros por parte dos investidores. Mas h· alguma evidÍncia

independente do papel causal do ìajusteî e da realizaÁ„o de lucros?

Aprendemos realmente alguma coisa com essa pretensa explicaÁ„o?

• seleÁ„o das observaÁıes, tambÈm chamada de enumeraÁ„o das

circunst‚ncias favor·veis, ou, segundo a descriÁ„o do filÛsofo Francis Bacon,

contar os acertos e esquecer os fracassos** (por exemplo: Um Estado se

(**) Meu exemplo favorito È a histÛria que se conta sobre o fÌsico italiano Enrico

Fermi, recÈm-chegado ‡s praias norte-americanas, membro do Projeto Manhattan de

armas nucleares, e tendo de se defrontar com chefes-de-esquadra norte-americanos no

meio da Segunda Guerra Mundial.

ñ Fulano de tal È um grande general ñ disseram-lhe.

ñ Qual È a definiÁ„o de um grande general? ñ perguntou Fermi na sua maneira

caracterÌstica.

ñ Acho que È um general que ganhou muitas batalhas consecutivas.

ñ Quantas?

Depois de alguma hesitaÁ„o, decidiram-se por cinco.

ñ Quantos dos generais norte-americanos s„o grandes generais?

Depois de mais alguma hesitaÁ„o, decidiram-se por uma pequena porcentagem.

ñ Mas imaginem ñ replicou Fermi ñ que n„o exista isso que vocÍs chamam de

grande general, que todos os exÈrcitos tenham forÁas iguais, e que vencer uma batalha seja

uma simples quest„o de sorte. Nesse caso, a probabilidade de vencer uma batalha È de

uma em duas, ou 1/2; duas batalhas, 1/4; trÍs, 1/8; quatro, 1/16; e cinco batalhas

consecutivas, 1/32 ñ o que È mais ou menos 3%. VocÍs esperam que uma pequena

porcentagem dos generais norte-americanos ganhe cinco batalhas consecutivas ñ por uma

simples quest„o de sorte. Agora, algum deles j· ganhou dez batalhas consecutivas...?

Page 12: Capítulo 12 -  A ARTE REFINADA DE DETECTAR MENTIRAS

vangloria do presidente que gerou, mas se cala sobre os seus assassinos que matam emsÈrie);

• estatÌstica dos n˙meros pequenos ñ fal·cia aparentada com a

seleÁ„o das observaÁıes (por exemplo: ìDizem que uma dentre cada cincopessoas È chinesa. Como È possÌvel? ConheÁo centenas de pessoas e nenhuma delas Èchinesa. Atenciosamenteî. Ou: Tirei trÍs setes seguidos. Hoje ‡ noite n„o tenho comoperder);

• compreens„o errÙnea da natureza da estatÌstica (por exemplo: Opresidente Dwight Eisenhower expressando espanto e apreens„o ao descobrir quemetade de todos os norte-americanos tÍm inteligÍncia abaixo da mÈdia);

• incoerÍncia (por exemplo: Prepare-se prudentemente para enfrentar opior na luta com um potencial advers·rio militar, mas ignore parcimoniosamenteprojeÁıes cientÌficas sobre perigos ambientais, porque eles n„o s„o ìcomprovadosî.

Ou: Atribua a diminuiÁ„o da expectativa de vida na antiga Uni„o SoviÈtica aosfracassos do comunismo h· muitos anos, mas nunca atribua a alta taxa demortalidade infantil nos Estados Unidos (no momento, a taxa mais alta dasprincipais naÁıes industrializadas) aos fracassos do capitalismo. Ou: Considererazo·vel que o Universo continue a existir para sempre no futuro, mas julgueabsurda a possibilidade de que ele tenha duraÁ„o infinita no passado);

• non sequitur ñ express„o latina que significa ìn„o se segueî (por

exemplo: A nossa naÁ„o prevalecer·, porque Deus È grande. Mas quase todas as

naÁıes querem que isso seja verdade; a formulaÁ„o alem„ era ìGott mit

unsî). Com freq¸Íncia, os que caem na fal·cia non sequitur deixaram

simplesmente de reconhecer as possibilidades alternativas;

• post hoc, ergo propter hoc ñ express„o latina que significa

ìaconteceu apÛs um fato, logo foi por ele causadoî (por exemplo, Jaime

Cardinal Sin, arcebispo de Manilla: ìConheÁo [...] uma moÁa de 26 anos queaparenta sessenta porque ela toma a pÌlula [anticoncepcional]î. Ou: Antes de asmulheres terem o direito de votar, n„o havia armas nucleares);

• pergunta sem sentido (por exemplo: O que acontece quando umaforÁa irresistÌvel encontra um objeto imÛvel? Mas se existe uma forÁa irresistÌvel,

n„o pode haver objetos imÛveis, e vice-versa);

• exclus„o de meio-termo, ou dicotomia falsa ñ considerando

apenas os dois extremos num continuum de possibilidades intermedi·rias

(por exemplo: Claro, tome o partido dele; meu marido È perfeito; eu estou sempreerrada. Ou: Ame o seu paÌs ou odeie-o.. Ou: Se vocÍ n„o È parte da soluÁ„o, È parte doproblema);

• curto prazo versus longo prazo ñ um subconjunto da exclus„o do

meio-termo, mas t„o importante que o separei para lhe dar atenÁ„o especial

(por exemplo: N„o temos dinheiro para financiar programas que alimentem crianÁasmal nutridas e eduquem garotos em idade escolar. Precisamos urgentemente tratar docrime nas ruas. Ou: Por que explorar o espaÁo ou fazer pesquisa de ciÍncia b·sica,

Page 13: Capítulo 12 -  A ARTE REFINADA DE DETECTAR MENTIRAS

quando temos tantas pessoas sem teto?);• declive escorregadio, relacionado ‡ exclus„o do meio-termo (por

exemplo: Se permitirmos o aborto nas primeiras semanas da gravidez, ser·impossÌvel evitar o assassinato de um bebÍ no final da gravidez. Ou, inversamente:

Se o Estado proÌbe o aborto atÈ no nono mÍs, logo estar· nos dizendo o que fazer comos nossos corpos no momento da concepÁ„o);

• confus„o de correlaÁ„o e causa (por exemplo: Um levantamentomostra que È maior o n˙mero de homossexuais entre os que tÍm curso superior do queentre os que n„o o possuem; portanto, a educaÁ„o torna as pessoas homossexuais. Ou:

Os terremotos andinos est„o correlacionados com as maiores aproximaÁıes do planetaUrano; portanto ñ apesar da ausÍncia de uma correlaÁ„o desse tipo com

respeito ao planeta J˙piter, mais prÛximo e mais volumoso ñ o planeta Urano Èa causa dos terremotos);* ***

• espantalho ñ caricaturar uma posiÁ„o para tornar mais f·cil o

ataque (por exemplo: Os cientistas supıem que os seres vivos simplesmente sereuniram por acaso ñ uma formulaÁ„o que ignora propositadamente a idÈia

darwiniana central, de que a natureza se constrÛi guardando o que funciona e

jogando fora o que n„o funciona. Ou: ñ isso È tambÈm uma fal·cia de curto

prazo/longo prazo ñ os ambientalistas se importam mais com anhingas e corujaspintadas do que com gente);

• evidÍncia suprimida, ou meia verdade (por exemplo: Umaìprofeciaî espantosamente exata e muito citada do atentado contra o presidenteReagan È apresentada na televis„o; mas ñ detalhe importante ñ foi gravada antes

ou depois do evento? Ou: Esses abusos do governo pedem uma revoluÁ„o, mesmoque n„o se possa fazer uma omelete sem quebrar alguns ovos. Sim, mas ser· uma

revoluÁ„o que causar· muito mais mortes do que o regime anterior? O que

sugere a experiÍncia de outras revoluÁıes? Todas as revoluÁıes contra

regimes opressivos s„o desej·veis e vantajosas para o povo?);

• palavras equÌvocas (por exemplo, a separaÁ„o dos poderes na

ConstituiÁ„o norte-americana especifica que os Estados Unidos n„o podem

travar guerra sem uma declaraÁ„o do Congresso. Por outro lado, os

presidentes detÍm o controle da polÌtica externa e o comando das guerras,

(*) Ou: As crianÁas que assistem a programas violentos na televis„o tendem a

ser mais violentas na vida adulta. Mas a TV causou a violÍncia, ou crianÁas violentas

preferem assistir a programas violentos? Muito provavelmente, as duas coisas. Os

defensores comerciais da violÍncia na TV argumentam que qualquer um sabe distinguir

entre a televis„o e a realidade. Mas os programas infantis das manh„s de S·bado tÍm hoje

em dia uma mÈdia de 25 atos de violÍncia por hora. No mÌnimo, isso torna as crianÁas

insensÌveis ‡ agress„o e ‡ crueldade gratuita. E, se podemos implantar falsas lembranÁas

nos cÈrebros dos adultos impression·veis, o que n„o estamos implantando em nossos

filhos, quando os expomos a uns 100 mil atos de violÍncia antes de terminarem a escola

prim·ria?

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que s„o potencialmente ferramentas poderosas para que sejam reeleitos.

Portanto, os presidentes de qualquer partido polÌtico podem ficar tentados a

arrumar disputas, enquanto desfraldam a bandeira e d„o outro nome ‡s

guerras ñ ìaÁıes policiaisî, ìincursıes armadasî, ìataques de reaÁ„o

protetoresî, ìpacificaÁ„oî, ìsalvaguarda dos interesses norte-americanosî e

uma enorme variedade de ìoperaÁıesî, como a ìOperaÁ„o da Causa Justaî.

Os eufemismos para a guerra s„o um dos itens de uma ampla categoria de

reinvenÁıes da linguagem para fins polÌticos. Talleyrand disse: ìUma arte

importante dos polÌticos È encontrar novos nomes para instituiÁıes que com

seus nomes antigos se tornaram odiosas para o p˙blicoî).

Conhecer a existÍncia dessas fal·cias lÛgicas e retÛricas completa o

nosso conjunto de ferramentas. Como todos os instrumentos, o kit de

detecÁ„o de mentiras pode ser mal empregado, aplicado fora do contexto, ou

atÈ usado como uma alternativa mec‚nica para o pensamento. Mas, aplicado

judiciosamente, pode fazer toda a diferenÁa do mundo ñ ao menos para

avaliar os nossos prÛprios argumentos antes de os apresentarmos aos outros.

A ind˙stria do tabaco norte-americana fatura cerca de 50 bilhıes de

dÛlares por ano. H· uma correlaÁ„o estatÌstica entre o fumo e o c‚ncer,

admite a ind˙stria do fumo, mas n„o existe, dizem, uma relaÁ„o causal. Uma

fal·cia lÛgica est· sendo cometida, È o que afirmam. O que significa tudo

isso? Talvez as pessoas com predisposiÁıes heredit·rias para contrair o

c‚ncer tenham predisposiÁıes heredit·rias para drogas que viciam ñ assim,

poderia haver uma correlaÁ„o entre o c‚ncer e o fumo, mas aquele n„o seria

causado por este. Podem-se inventar conexıes deste tipo, cada vez mais

forÁadas. Essa È exatamente uma das razıes por que a ciÍncia insiste em fazer

experimentos de controle.

Vamos supor que se pintassem as costas de um grande n˙mero de

camundongos com alcatr„o de cigarro, e que tambÈm se observasse a sa˙de

de um n˙mero quase idÍntico de camundongos que n„o foram pintados. Se

os primeiros contraem c‚ncer e os segundos n„o, pode-se ter bastante certeza

de que a correlaÁ„o È causal. Trague a fumaÁa de tabaco, e a chance de

contrair c‚ncer aumenta; n„o trague, e a taxa permanece no nÌvel b·sico. O

mesmo vale para o enfisema, a bronquite e as doenÁas cardiovasculares.

Quando, em 1953, se publicou a primeira obra na literatura cientÌfica

mostrando que as subst‚ncias presentes na fumaÁa do cigarro, quando

espargidas nas costas de roedores, produzem tumores malignos, a reaÁ„o das

seis maiores companhias de tabaco foi comeÁar uma campanha de relaÁıes

p˙blicas para impugnar a pesquisa, patrocinada pela FundaÁ„o Sloan

Kettering. Uma reaÁ„o semelhante ‡ da Du Pont Corporation, quando em

Page 15: Capítulo 12 -  A ARTE REFINADA DE DETECTAR MENTIRAS

1974 foi publicada a primeira pesquisa mostrando que seu produto Freon

ataca a camada protetora de ozÙnio. H· muitos outros exemplos.

… de se pensar que, antes de denunciar descobertas cientÌficas

indesejadas, as principais companhias deveriam empregar os seus

consider·veis recursos para verificar a seguranÁa dos produtos que se

propıem fabricar. E, se perdessem algo, se cientistas independentes

sugerissem um perigo, por que as companhias se oporiam? Prefeririam matar

pessoas a perder lucros? Se, nesse mundo incerto, um erro precisa ser

cometido, ele n„o deveria ter o objetivo de proteger os clientes e o p˙blico? E,

por outro lado, o que esses casos revelam sobre a capacidade de o sistema de

livre empresa policiar a si mesmo? N„o s„o exemplos em que a interferÍncia

do governo È claramente a favor do interesse p˙blico?

Um relatÛrio interno da Brown and Williamson Tobacco

Corporation, de 1971, lista como objetivo da companhia ìafastar das mentes

de milhıes a falsa convicÁ„o de que fumar cigarros causa c‚ncer de pulm„o e

outras doenÁas; uma convicÁ„o baseada em pressupostos fan·ticos, rumores

falaciosos, afirmaÁıes sem fundamento e declaraÁıes n„o cientÌficas de

oportunistas que buscam notoriedadeî. Eles se queixam do

ataque incrÌvel, sem precedentes e abomin·vel contra o cigarro,

constituindo o maior libelo e a maior difamaÁ„o j· perpetrados contra um

produto na histÛria da livre empresa; um libelo criminoso de t„o grandes

proporÁıes e implicaÁıes que È de se perguntar como essa cruzada de

cal˙nias pode se acomodar sob a ConstituiÁ„o pode ser t„o desrespeitada e

violada [sic].

Essa retÛrica È apenas um pouco mais inflamada do que a das

declaraÁıes que a ind˙stria do tabaco emite de tempos em tempos para

consumo p˙blico.

H· muitas marcas de cigarros que anunciam baixo nÌvel de alcatr„o

(dez miligramas ou menos por cigarro). Por que isso È uma virtude? Porque È

no alcatr„o refrat·rio que os hidrocarbonetos arom·ticos policÌclicos e

algumas outras subst‚ncias cancerÌgenas se concentram. As propagandas que

enfatizam baixos teores de alcatr„o n„o s„o uma admiss„o t·cita das

companhias de tabaco de que os cigarros realmente causam c‚ncer?

A Healthy Building International È uma organizaÁ„o lucrativa, que

recebe h· anos milhıes de dÛlares da ind˙stria do fumo. Ela realiza pesquisas

sobre fumo passivo, e presta declaraÁıes para as companhias de tabaco. Em

1994, trÍs de seus tÈcnicos reclamaram que altos executivos teriam falsificado

dados sobre partÌculas de cigarro inal·veis no ar. Em todos os casos, os dados

inventados ou ìcorrigidosî faziam a fumaÁa de cigarro parecer mais segura

do que as mediÁıes dos tÈcnicos haviam indicado. Os departamentos de

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pesquisa da companhia ou as firmas do ramo contratadas j· descobriram

alguma vez que um produto È mais perigoso do que a empresa de tabaco

declarou publicamente? Em caso positivo, mantiveram o emprego?

O tabaco vicia; segundo muitos critÈrios, ainda mais do que a

heroÌna e a cocaÌna. Havia uma raz„o para as pessoas ìcaminharem uma

milha por um Camelî, como diziam os an˙ncios da dÈcada de 40. J·

morreram mais pessoas por causa do fumo do que em toda a Segunda Guerra

Mundial. Segundo a OrganizaÁ„o Mundial de Sa˙de, o fumo mata 3 milhıes

de pessoas por ano em todo o mundo. Esse n˙mero vai chegar a 10 milhıes

de mortes por ano em 2020 ñ em parte devido a uma grande campanha

publicit·ria que pinta o tabagismo como um h·bito avanÁado e elegante para

as jovens mulheres do mundo em desenvolvimento. … em parte por causa da

falta disseminada de conhecimento sobre a detecÁ„o de mentiras, o

pensamento crÌtico e o mÈtodo cientÌfico que a ind˙stria de tabaco consegue

ser o fornecedor bem-sucedido dessa mistura de venenos que viciam. A

credulidade mata.