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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ LUCIANA SIQUEIRA DE CARVALHO REGULAÇÃO AUTÔNOMA E INTEGRIDADE DAS ELEIÇÕES COMO PARÂMETROS CONTEMPORÂNEOS PARA AVALIAÇÃO DA LEGITIMIDADE DA JUSTIÇA ELEITORAL

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

LUCIANA SIQUEIRA DE CARVALHO

REGULAÇÃO AUTÔNOMA E INTEGRIDADE DAS ELEIÇÕES COMO PARÂMETROS CONTEMPORÂNEOS PARA AVALIAÇÃO DA

LEGITIMIDADE DA JUSTIÇA ELEITORAL

Rio de Janeiro2016

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LUCIANA SIQUEIRA DE CARVALHO

REGULAÇÃO AUTÔNOMA E INTEGRIDADE DAS ELEIÇÕES COMO PARÂMETROS CONTEMPORÂNEOS PARA AVALIAÇÃO DA

LEGITIMIDADE DA JUSTIÇA ELEITORAL

Tese apresentada como requisito para obtenção do título de Doutor em Direito, pela Universidade Estácio de Sá.

Orientador: Prof. Dr. Rogério José Bento Soares do Nascimento

Rio de Janeiro

2016

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“O conhecimento científico é um juízo acerca de coisas universais e necessárias, e tanto as conclusões da demonstração como o conhecimento científico são derivados de primeiros princípios (pois ciência envolve apreensão de uma base racional). Desse modo, o primeiro princípio de que deriva o que é cientificamente conhecido não pode ser objeto de ciência, nem de arte, nem de sabedoria prática, pois aquilo que pode ser cientificamente conhecido pode ser demonstrado, ao passo que a arte e a sabedoria prática tratam de coisas variáveis. Tampouco esses primeiros princípios são objetos de sabedoria filosófica, pois é uma característica do filósofo buscar a demonstração de certas coisas.

Se, então, as disposições da alma pelas quais possuímos a verdade e pelas quais jamais nos enganamos a respeito de coisas invariáveis ou mesmo variáveis, são o conhecimento científico, a sabedoria prática, a sabedoria filosófica e a razão intuitiva, e se a disposição da alma pela qual apreendemos as primeiras causas não pode ser nenhuma das três primeiras (isto é, o conhecimento científico, a sabedoria prática e a sabedoria filosófica), resta somente uma alternativa, a saber, que é a razão intuitiva que apreende os primeiros princípios.” - Aristóteles

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RESUMO

A presente tese, inserida na linha de pesquisa Acesso à Justiça e Efetividade do Processo, do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá, tem por objetivo analisar a atuação da Justiça Eleitoral no Brasil, no contexto do Estado Democrático de Direito, frente aos desafios regulatórios contemporâneos para a realização de eleições íntegras. Parte-se da premissa de que o Sistema Eleitoral brasileiro sofreu mudanças inauguradas pela Constituição de 1988, que alteraram as relações envolvidas na competição política para escolha de representantes eleitos, transformando a Justiça Eleitoral em uma autoridade reguladora autônoma híbrida, com poderes regulatórios e jurisdicionais. Todavia, a nova função regulatória e as responsabilidades eleitorais conforme o novo paradigma de Estado não foram abrangidas pela legislação eleitoral infraconstitucional com a extensão necessária, circunstância que permitiu a instauração de um ciclo vicioso para a regulação eleitoral e a fragilização do sistema democrático brasileiro nos últimos anos. Com o intuito de atingir o objetivo proposto, na primeira parte da presente pesquisa, busca-se delinear o contexto para o surgimento de autoridades reguladoras autônomas no final do século XX, utilizando-se como marcos teóricos a democracia deliberativa, nos termos propostos por Habermas, a democracia reflexiva tal como apresentada por Pierre Rosanvallon e a teoria contemporânea sobre autoridades reguladoras. Na segunda parte, a pesquisa pretende discutir o objeto da regulação na atualidade, suas instituições e finalmente analisar a atuação da Justiça Eleitoral brasileira, no desempenho de suas novas atribuições constitucionais.

Palavras chaves: democracia deliberativa, Justiça Eleitoral, eleições íntegras, integridade das eleições, regulação eleitoral.

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ABSTRACT

This thesis, located in the line of research on "Access to Justice and the Effectiveness of Proceedings" of the graduate law program at Universidade Estácio de Sá, aims to review the performance of the Justiça Eleitoral do Brasil (Brazilian Electoral Justice System), in the context of the Estado Democrático de Direito (Democratic Legal State), vis-à-vis the current regulatory challenges to the integrity of elections. Starting with the premise that the Brazilian Electoral System underwent changes inaugurated by the Constitution of 1988, which changed the relationships involved in the political competition for the choice of elected representatives, thereby turning the Electoral Justice System into a hybrid autonomous regulatory authority, with regulatory and jurisdictional powers. However, the new regulatory function and the electoral responsibilities pursuant to the new paradigm of the State were not covered to sufficient extent by the infraconstitutional electoral legislation, which circumstance allowed for the establishment of a vicious cycle for the electoral governance and a weakening of the Brazilian democratic system in recent years. In order to achieve the objective, in the first part of this research, we seek to outline the context for the emergence of autonomous regulatory authorities at the end of the 20th century, using as theoretical frameworks deliberative democracy, as proposed by Habermas, reflexivity democracy, as presented by Pierre Rosanvallon, and contemporary theory on regulatory authorities. In the second part, the study will discuss the object of current regulation and its institutions and then review the performance of the Brazilian Electoral Justice System vis-à-vis its new constitutional powers.

Key words: deliberative democracy, Justiça Eleitoral, electoral integrity, integrity of elections, electoral governance.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................10

PARTE I – APORTES TEÓRICOS PARA UM DIAGNÓSTICO DE LEGITIMIDADE DA ATUAÇÃO DA JUSTIÇA ELEITORALNO BRASIL...................................................................................................16

1. ANÁLISE DISCURSIVA DA ATUAÇÃO DA JUSTIÇA ELEITORAL..............171.1 Delimitação do modelo procedimental de democracia...........................................231.2 Sistema de direitos, autonomia privada e soberania popular..................................291.3 Direitos políticos, cidadania e sujeitos da democracia............................................321.3.1 Abordagem discursiva dos direitos políticos e delimitação do conteúdo

dos direitos eleitorais..............................................................................................421.3.2 Sujeitos da democracia............................................................................................491.4 Uma análise discursiva da Justiça Eleitoral.............................................................521.5 A crise do Estado de Direito, democracia deliberativa e autoridades

reguladoras...............................................................................................................60

2. DIFERENTES FORMAS DE LEGITIMIDADE E DIMENSÕESTEMPORAIS DA DEMOCRACIA...........................................................................69

2.1 Democracia representativa e novas demandas por legitimidade...................................712.2 Autoridades reguladoras independentes........................................................................822.3 Generalidade negativa e legitimidade da imparcialidade..............................................862.4 Dimensões temporais, expressões múltiplas do sujeito da democracia e

reflexividade..................................................................................................................912.5 Procedimento como meio de legitimação das ações estatais.........................................98

3. ALINHANDO CRITÉRIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DA ATIVIDADE REGULATÓRIA DA JUSTIÇA ELEITORAL.......................................................101

3.1 Sentido contemporâneo para o termo regulação...........................................................1023.2 Fundamentação teórica para a atividade regulatória....................................................1063.3 Autoridades reguladoras contemporâneas....................................................................1143.3.1 Autoridades reguladoras no estrangeiro.................................................................1163.3.2 Autoridades reguladoras no Brasil.........................................................................1193.4 Parâmetros para identificação da atividade regulatória da Justiça Eleitoral.................130

PARTE II: REGULAÇÃO ELEITORAL E INTEGRIDADE DAS ELEIÇÕES ... 136

4. GOVERNANÇA ELEITORAL, REGULAÇÃO AUTÔNOMA E INTEGRIDADE DAS ELEIÇÕES..........................................................................................................137

4.1 Governança Eleitoral e regulação tradicional................................................................1424.2 Integridade das eleições como objeto da regulação eleitoral........................................1524.2.1 Conceito de integridade eleitoral...............................................................................1534.2.2 Porque adotar a integridade das eleições como objetivo a ser perseguido

pela regulação eleitoral.............................................................................................159

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4.3 Regulação, jurisdição e ineficiência: lacunas de legitimidade no processo eleitoral contemporâneo como fonte de instabilidade política...................................................165

4.4 Governança Eleitoral, regulação autônoma e integridade das eleições.........................1734.5 Regulação autônoma: nova dimensão da Governança Eleitoral...................................1804.6 Dimensões temporais da Governança Eleitoral – ciclos eleitorais................................189

5. INSTITUIÇÕES DE REGULAÇÃO ELEITORAL.................................................1985.1 Órgãos de Gestão Eleitoral - OGE...............................................................................2025.1.1 Princípios que devem reger as atividades dos Órgãos de Gestão Eleitoral..............2065.1.2 Funções atribuídas aos Órgãos de Gestão Eleitoral.................................................2105.1.3 Partes interessadas no processo eleitoral..................................................................2175.2 Sistema de Justiça Eleitoral – SJE.................................................................................2185.2.1 Conceito de Sistema de Justiça Eleitoral...................................................................2215.2.2 Classificação dos Sistemas de Resolução de Disputas Eleitorais – SRDE................2225.2.3 Princípios e garantias dos Sistemas de Resolução de Disputas Eleitorais–SRDE.. 2265.3 Autoridade Reguladora Eleitoral...................................................................................230

6. REGULAÇÃO ELEITORAL NO BRASIL.............................................................2466.1. Governança Eleitoral pós Constituição de 1988..........................................................2486.2 Justiça Eleitoral como Autoridade Reguladora Eleitoral..............................................2556.3 Transição inacabada: regulação eleitoral, jurisdição e lacunas de legitimidade...........265

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................288

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................301

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ÍNDICE DE QUADROS E FIGURAS

QUADROS

Quadro 1: Três níveis da Governança Eleitoral.................................................147

Quadro 2: Princípios relacionados aos direitos eleitorais previstos em convenções e tratados internacionais.................................................155

Quadro 3: Características dos principais Modelos de Gestão Eleitoral...........204

Quadro 4: Natureza do Órgão Eleitoral conforme distribuição dos Níveisde Governança Eleitoral.......................................................................234

FIGURAS

Figura 1: Modelo central de integridade eleitoral.............................................161

Figura 2: Ciclo Eleitoral........................................................................................192

Figura 3: Composição da arquitetura institucional eleitoral............................201

Figura 4: Três Principais Modelos de Gestão Eleitoral.....................................203

Figura 5: Governança Eleitoral tradicional........................................................231

Figura 6: Nova Governança Eleitoral..................................................................232

Figura 7: Autoridade Reguladora Eleitoral híbrida..........................................244

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INTRODUÇÃO

Garantir a legitimidade do processo eleitoral é a missão institucional da Justiça

Eleitoral.

Embora seja bastante fácil intuir que um processo eleitoral legitimo possui

relevância significativa para o exercício democrático, compreender, de fato, o que tal

expressão significa e suas respectivas implicações traz alguns desafios. A legitimidade não é

um conceito que se possa formular sem um parâmetro previamente definido de Estado ou

apartado de um modelo de democracia. A análise de fenômenos jurídicos e políticos demanda

a escolha de referenciais críticos como ponto de partida.

As sociedades democráticas contemporâneas passaram por diversas

transformações ao longo do século XX culminando inclusive com a necessidade de revisão

dos fundamentos do estado liberal de direito. Temas como liberdade, igualdade,

responsabilidade, direitos humanos, justiça e instituições democráticas passaram a fazer parte

da pauta de interesses para uma reflexão atual sobre o fenômeno jurídico e sobre as premissas

para ordenação legitima da convivência coletiva.

A ideia do direito como metalinguagem para a prática política aparece como

paradigma novo e impacta diretamente o debate a respeito do exercício democrático atual, na

medida em que ao direito, além da atribuição normativa para regular conflitos sociais, passa a

ser atribuída a função de identificar e consagrar os valores que sustentam o ordenamento

jurídico em vigor. Da ideia de um sistema jurídico fechado, imune a influências morais e,

portanto, alijado de sua função crítica, caminha-se para a necessidade de construção de um

sistema jurídico permeável aos anseios sociais e para a necessária identificação de parâmetros

legítimos para o funcionamento do sistema representativo e por consequência do sistema

eleitoral.

Liberdade, igualdade, segurança e responsabilidade são valores que, se

submetidos a processos deliberativos legítimos transformam-se em vetores para organizar a

vida em comum, tomam a forma de princípios, e permitem verificar de que forma os

indivíduos enquanto agentes morais e jurídicos, através das diversas perspectivas de justiça,

se relacionam. Tais relações passam a ser mediadas por uma racionalidade prática que se

manifesta através de discursos públicos, de escolhas políticas e de políticas públicas.

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O Estado Democrático de Direito, enquanto novo paradigma, tem consagrado,

através das Constituições contemporâneas, esforços diversos para que a ordem jurídica,

econômica e social seja positivada de forma a alcançar os conflitos sociais ignorados pelo

positivismo. Dedica ainda esforços para atribuir ao direito autonomia. Esta nova concepção de

Estado deriva de uma concepção fraternal, a partir do reconhecimento do outro, da dignidade,

da autonomia, da tolerância, da possibilidade racional de liberdade entre cidadãos que

compartilham o mesmo espaço no tempo. Nessa linha de pensamento, delimitar um sentido e

um conteúdo para o que se compreende como legitimidade do processo eleitoral requer, em

primeiro lugar, a escolha de referenciais críticos para esta avaliação. As implicações e

consequências, que resultam da atribuição de sentido e conteúdo ao termo legitimidade pelos

diversos marcos teóricos sobre democracia, podem conduzir a resultados práticos bastante

distintos e por esta razão é preciso refletir a respeito dos referenciais que melhor se alinham

com os princípios que sustentam o sistema jurídico brasileiro.

Outra expressão problemática contida na missão institucional da Justiça Eleitoral

é processo eleitoral. A legislação relacionada à matéria não é exatamente clara quanto à

abrangência da expressão. Quando se inicia o processo eleitoral? A partir de quando há poder

de polícia? Em que momento há propaganda extemporânea? É com o registro de candidatos

ou com a legislação eleitoral fixada até um ano antes da data do pleito? Quando termina o

processo eleitoral? É com a diplomação dos eleitos? É no dia da votação? É no término do

julgamento dos feitos eleitorais relacionados a uma determinada eleição?

Os questionamentos envolvendo a expressão processo eleitoral não se referem

apenas à temporalidade, envolvem também questionamentos quanto às atividades

desenvolvidas pela Justiça Eleitoral e sua finalidade preponderante. Em última instância,

também levam a sérios problemas de legitimidade, responsabilidade, limites e controles.

Julgar processos, organizar a logística das eleições, normatizar procedimentos, solucionar

questionamentos, alistar eleitores e partidos políticos. Como identificar sua principal ou

principais atividades?

Uma análise dos documentos relacionados ao Planejamento Estratégico e ao

Mapeamento de Processos do Tribunal Superior Eleitoral/TSE e dos Tribunais Regionais

Eleitorais / TREs – Plano Estratégico, Mapa Estratégico e Cadeia de Valor, documentos de

planejamento e gestão disponíveis nas páginas de internet dessa justiça especializada –

demonstra que, embora todos esses órgãos estejam voltados para a finalidade comum de

realizar eleições, há diferenças quanto ao que se compreende por processos finalísticos, ou

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macros processos chave, envolvidos no processo eleitoral. Apenas para ilustrar, em alguns

documentos o julgamento de feitos eleitorais é considerado macroprocesso de apoio ao

macroprocesso chave Processo Eleitoral, como ocorre no TSE, enquanto para outros, tal

julgamento é um dos macroprocessos finalísticos da instituição, como está registrado na

Cadeia de Valor do TRE do Rio de Janeiro e do TRE de Minas Gerais, por exemplo. Para o

TSE a prestação jurisdicional é atividade de apoio ao processo eleitoral, enquanto que nos

TREs tal atividade faz parte do núcleo de atividades finalísticas da instituição.

As divergências e convergências encontradas em tais documentos não teriam

grande relevância se houvesse acordo semântico quanto ao que se compreende por processo

eleitoral, se houvesse acordo social quanto ao significado dessa expressão, se houvesse

clareza jurídica dos conteúdos abrangidos e sua extensão. Tais diferenças poderiam refletir

simplesmente diferenças de competência entre os órgãos da Justiça Eleitoral. No entanto, os

diferentes pontos de vista refletidos nos documentos de planejamento e gestão da Justiça

Eleitoral também ecoam nos questionamentos apresentados à Justiça Eleitoral, nas decisões

proferidas em feitos eleitorais e nos diversos debates sobre a amplitude do poder normativo

do órgão responsável pela condução de eleições no Brasil. Decisões judiciais e doutrina sobre

a matéria reiteradamente abrangem discussões sobre limites, competências e natureza das

atividades dessa justiça especializada.

A ausência de significado pacífico para os termos contidos na missão institucional

da Justiça Eleitoral é uma das evidências mais claras de que não há acordo estabelecido

quanto ao papel institucional da Justiça Eleitoral no Brasil. E esse desacordo possui sérias

consequências para a governança democrática no país, como se pretende demonstrar.

A Justiça Eleitoral pós Constituição de 1988, por exigência da restauração do

Estado de Direito, ganhou nova missão institucional. Em contexto de

neoconstitucionalismo(s), a Constituição e o sistema de direitos vinculam-se com projetos

econômicos, sociais, políticos e jurídicos que, necessariamente são prospectivos, pois devem

atuar conforme vetores voltados para a garantia da dignidade da pessoa humana e da justiça

social, com dimensão formal e substancial.

A prescrição de um Estado Democrático de Direito, na nova carta, ampliou as

exigências para a estrutura democrática e para as condições de emancipação do cidadão. O

povo constituído de cidadãos emancipados, enquanto condição para exercício da autonomia

fixada por parâmetros substanciais de dignidade e justiça, atua simultaneamente como autor e

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destinatário das normas de convivência comum. Nesse cenário, as condições para garantia de

legitimidade representativa são mais amplas.

No modelo anterior de estado, a Justiça Eleitoral é apenas responsável por

organizar eleições e julgar conflitos dela decorrentes, caso a caso, solucionando as pendências

de direitos políticos concebidos enquanto direitos individuais, de defesa. Atua, portanto, de

forma neutra para garantir uma igualdade formal, e assim, assegurar uma legitimidade

também de natureza formal. A repressão de ilícitos eleitorais e a organização burocrática da

logística das eleições são os parâmetros de legitimidade para o processo eleitoral. A regulação

eleitoral tradicional possui seu foco orientado para a legitimidade, enquanto amplo

alistamento e punição de ilícitos, e para a credibilidade, enquanto votação e apuração livres de

fraude. A presunção de inocência e a proteção da esfera de interesses individuais, em face do

Estado, são os vetores que orientam a regulação eleitoral tradicional, realizada mediante o

julgamento das ações típicas do processo eleitoral.

No novo paradigma de Estado as exigências são mais amplas. No Estado

Democrático de Direito os direitos de participação no Estado e o processo político para

escolha e legitimação de representantes assumem caráter de condições formais e materiais

para a democracia. Apenas a garantia de legitimidade e de igualdade formal não são

suficientes. Não basta o julgamento de atos ilícitos e a organização de votação e apuração

livre de fraudes. O conceito de processo eleitoral é ampliado e a regulação eleitoral, como

conceito novo, expande-se para o controle da disputa, para a regulação de candidaturas, das

regras de financiamento e propaganda, para a repressão de abusos econômicos, políticos e

ideológicos-religiosos, para a regulação e fiscalização da atividade partidária, para a regulação

do impacto do dinheiro na política. A nova regulação eleitoral mantém os objetivos do

passado acrescido da integridade, finalidade relacionada a um específico formato de processo

eleitoral: aquele voltado para realizar substancialmente princípios de direitos humanos e de

justiça social.

Parte-se da premissa de que a Constituição de 1988, a Lei de Inelegibilidade – Lei

Complementar nº 64/1990 -, A Lei dos Partidos Políticos – Lei 9.096/1995 -, e a Lei das

Eleições – Lei 9.504/1997 –, em conjunto, inauguraram um novo sistema eleitoral.

Nesse novo contexto, o desenho institucional da Justiça Eleitoral brasileira seria o

de uma autoridade reguladora híbrida, pois desempenha simultaneamente funções regulatória,

jurisdicional e administrativa.

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A presente tese busca responder se a Justiça Eleitoral é, de fato, uma autoridade

reguladora híbrida. E mais, se este desenho institucional convém, em um Estado Democrático,

ou se é sinal de uma distorção que compromete o equilíbrio perseguido com a separação das

funções-poder do Estado Constitucional contemporâneo.

A Justiça Eleitoral não pode ser um órgão neutro. No que se refere à competição

eleitoral e a eleições íntegras, ela deve ter papel ativo para garantir que as regras do jogo

democrático sejam honradas, ela possui responsabilidade política e social muito claras:

estabilizar e aprofundar as condições para o exercício da democracia representativa.

A Justiça eleitoral deve ser uma jurisdição provocada no que se refere à solução

das disputas e conflitos que venham a emergir durante o processo eleitoral, mas este é um dos

aspectos de sua atuação, que não pode ser confundido com sua missão contemporânea e

concomitante de organizar e regular o devido processo eleitoral, aquele orientado por

diretrizes de integridade.

O desafio que se apresenta é o de identificar e decompor as diversas funções da

Justiça Eleitoral e, portanto, compreender a governança eleitoral atual, a fim de que sejam

estabelecidos os devidos controles sociais e identificados os parâmetros para aferir seu

funcionamento legítimo.

A parte mais significativa dos feitos eleitorais, por força normativa, são

processados através de procedimentos análogos aos procedimentos judicias. Essa

circunstância faz com que a função regulatória autônoma seja encoberta pelo exercício da

função jurisdicional, parecendo que a regulação eleitoral tradicional realizada pelo devido

processo judicial é suficiente para dar conta das responsabilidades eleitorais. Não é. O devido

processo eleitoral contemporâneo é mais amplo, envolve uma teia de relações entre diversas

partes interessadas nas eleições que teve sua natureza alterada pela nova carta - especialmente

a interface entre a Justiça Eleitoral e os Partidos Políticos. O processo eleitoral

contemporâneo também atua em temporalidade distinta da tradicional tripartição de poderes, e

pelas razões expostas requer atendimento a outros requisitos para ser percebido como íntegro

e, portanto, legítimo.

O que se pretende demonstrar é que a regulação eleitoral contemporânea, de

natureza autônoma, inaugurada pela Constituição de 1988, possui estrutura diferente da

regulação eleitoral anterior, realizada apenas mediante controle jurisdicional tradicional. Essa

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modificação da estrutura regulatória em matéria eleitoral modificou a natureza das atividades

da Justiça Eleitoral e dos Partidos Políticos.

Para alcançar os objetivos propostos, nesta pesquisa documental utilizou-se de:

fontes legais - Tratados e Convenções Internacionais sobre direitos políticos, Constituição da

República, Legislação Eleitoral; fontes doutrinárias com temas relacionados à democracia,

cidadania, jurisdição, autoridades reguladoras e órgãos de gestão eleitoral; decisões e

estatísticas judiciais relacionadas aos direitos políticos; e consultas a diversos sítios de

organizações não governamentais internacionais relacionadas a eleições. Acrescente-se, ainda,

que o procedimento metodológico adotado foi o método hermenêutico-constitucional. Seus

resultados estão consolidados em duas etapas distintas conforme descrito a seguir.

A primeira parte da presente investigação tem por finalidade estabelecer marcos

teóricos para identificação e contextualização da nova atividade regulatória autônoma

resultado das transformações sociais e da reconfiguração de poderes do estado

contemporâneo. Tais transformações trouxeram a adição de novos papéis e mudanças

institucionais para fazer face aos novos desafios. Nesse contexto autoridades reguladoras

autônomas e cortes judiciais com características bastante específicas ganharam protagonismo.

Estabelecidos os marcos teóricos de análise, realizadas as devidas considerações a

respeito de autoridades reguladoras autônomas, definidos os critérios para sua identificação e

partindo-se da premissa de que a terceira onda regulatória do final do século XX teve

expressivo impacto também para a esfera eleitoral mundial, a segunda parte da pesquisa tem

por objetivos abordar o novo objeto da regulação eleitoral contemporânea, verificar como

regulação e governança eleitoral se relacionam e finalmente identificar quais são as

instituições envolvidas na regulação eleitoral.

Ultrapassadas essas etapas, será então realizada uma avaliação do sistema eleitoral

brasileiro para identificação e delimitação da atividade regulatória da Justiça Eleitoral

contemporânea.

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PARTE I

APORTES TEÓRICOS PARA UM DIAGNÓSTICO DE LEGITIMIDADE DA

ATUAÇÃO DA JUSTIÇA ELEITORAL NO BRASIL

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CAPÍTULO 1

ANÁLISE DISCURSIVA DA ATUAÇÃO DA JUSTIÇA ELEITORAL

A relação entre democracia e direito no modelo apresentado por Habermas

(2003), em sua obra Direito e Democracia: entre facticidade e validade, parte da premissa

fundamental de que o convívio social harmônico e legítimo entre indivíduos de uma mesma

coletividade depende, diretamente, da capacidade de tais indivíduos constituírem-se,

simultaneamente, como autores e destinatários das regras de convivência escolhidas e

delimitadas a partir da linguagem jurídica.

Habermas (2003a, p.122) inova ao identificar a esfera pública como instância

deliberativa e legitimadora do poder político, superando a necessidade de prévia subordinação

da moral ao direito ou do direito à moral como fundamentação do modelo de democracia,

conforme proposto por Immanuel Kant ou por Jean Jaques Rousseau.1 Na verdade, o autor

propõe uma relação de cooriginariedade entre direito e moral, e nessa linha de pensamento

explica os pressupostos de legitimidade para a construção do sistema de direitos, para o

funcionamento do sistema político, para a divisão de poderes e para o exercício da autonomia

privada e da soberania popular.

Partindo de uma análise compartilhada e interdisciplinar da obra Direito e

Democracia: entre facticidade e validade que envolveu diversos pesquisadores renomados,2

inclusive o próprio Habermas em réplica às críticas recebidas, Michel Rosenfeld e Andrew

Arato (1998, p. 01) realizam oportuna contextualização desse “trabalho monumental de

filosofia e de teoria social” que tem por finalidade tentar reconciliar direito e justiça, assim

como democracia e direitos, no horizonte das experiências americana e alemã no âmbito da

teoria constitucional e da jurisprudência.

1 “Torna-se crucial apreciar como Habermas tenta se localizar num ponto médio entre dois extremos: a tradição liberal inspirada em Immanuel Kant e a republicana infundida por Jean Jacques Rousseau. ” (OQUENDO, 2009,p. 10 e ss).2 O ponto de partida para os diversos artigos escritos pelos autores na coletânea organizada por Michel Rosenfeld e Andrew Arato (1998) tiveram origem em congresso realizado em 20 e 21 de setembro de 1992, na Escola de Direito Benjamin N. Cardozo, oportunidade em que trinta e dois acadêmicos dos Estados Unidos, Alemanha e de outros países, se reuniram, na cidade de Nova York, como representantes de diversos campos de estudo tais como direito, filosofia, sociologia e ciência política, para debaterem a obra apresentada por Habermas e que culminaram na publicação em 1998 da obra ”Habermas on law and democracy: critical exchanges”. Não é objetivo desta pesquisa discutir as críticas apresentadas à obra que serve de parâmetro de análise para as investigações realizas, mas apenas registrar a importância e a relevância do marco teórico escolhido.

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Explicam os autores que ao colocar a norma jurídica no centro de uma teia que

conecta a moral, o direito e a política, Habermas aperfeiçoa o projeto kantiano empreendido

por John Rawls em Uma Teoria da Justiça, sendo tal esforço influenciado ainda pela

Sociologia do Direito de Max Weber e pelo Filosofia do Direito de Hegel. Tal projeto ganha

fôlego no contexto das democracias constitucionais plurais contemporâneas, profundamente

fragmentadas, na qual identificam-se concepções amplamente divergentes de bem e de

significativo desacordo sobre valores fundamentais.

Nesse contexto, a relação entre norma e ética e entre normas e política tornam-se

cada vez mais problemáticas, sendo as soluções apresentadas pela jurisprudência e pela

doutrina bastante distintas. De um lado, há a produção acadêmica dos diversos estudiosos do

movimento Critical Legal Studies, que realizam suas reflexões a partir da subordinação do

direito à política, por compreenderem que as normas legais são suficientemente porosas para

serem manipuladas pela esfera política, como registram Rosenfeld e Arato (1998, p. 2). No

extremo oposto, está a corrente que concebe a norma jurídica como autônoma e

essencialmente separável da ética e da política, sendo seu mais célebre representante Niklas

Luhmann.

Outras alternativas intermediárias para lidar com o problemático nexo entre

direito, ética e política são as teorias liberais propostas pela filosofia política de John Rawls

em Uma Teoria da Justiça e pela teoria legal e constitucional de Ronald Dworkin. As duas

abordagens buscam lidar com a dicotomia kantiana entre direito e bem através da

determinação de uma unidade normativa e de uma coesão política sobrepostas às diversas

concepções de bem.

Objetivando contextualizar o projeto de democracia deliberativa apresentado por

Habermas, Rosenfeld e Arato registram que o esforço teórico realizado por Rawls e Dworkin,

no entanto, implicam em sacrifícios tão extremos de argumentação que suas conclusões ficam

comprometidas. Como explicam os autores, o contrato social hipotético de Rawls realizado

por trás do “veú de ignorância” torna-se reduzido a um ato individual solipcista e os

princípios de justiça que decorrem desse processo aproximam-se mais da incompatibilidade

do que propriamente da harmonia com as diversas concepções de bem. Já Dworkin, embora,

em sentido diverso, repudie o reino abstrato de um consenso hipotético, cai na armadilha da

contingência e da excessiva abstração do seu monológico juiz Hércules. Tanto Rawls como

Dworkin, apresentam teorias que colocam direitos liberais acima de bens e essa circunstância

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aumenta a tensão entre direito e democracia, na medida em que impacta diretamente políticas

públicas (ARATO, 1998, p. 2 e ss).

O recurso ao comunitarismo, e, portanto, à deliberação, nos termos propostos por

Frank Michelman, com algumas divergências, aparece como alternativa para superar a tensão

entre direito e democracia e a limitação da fundamentação monológica. Como explicam

Rosenfeld e Arato, esse é exatamente o esforço realizado por Habermas no seu projeto

filosófico e jurisprudencial consolidado em Direito e Democracia ao tentar compatibilizar o

que é mais atrativo das teorias de Rawls, Dowrkin e Michelman, mas sem sucumbir “aos

respectivos atalhos”.3

Assim, os aspectos principais que caracterizam e diferenciam a legitimidade

jurídica tal como proposta por Habermas são exatamente as características de autoimposição e

de vinculação de normas criadas por atores livres e iguais, através de procedimento

democrático discursivo, e por estas razões com potencial para preencher o abismo entre

democracia e direito, entre igualdade normativa e igualdade fática.

A deliberação como fonte de legitimidade para o exercício do poder deu origem a

amplo debate a respeito das possibilidades para a democracia contemporânea, seus limites,

dificuldades e possibilidades, sendo a obra de Habermas um dos principais referencias

teóricos para a discussão.

Na obra Deliberative Democracy and Beyond, John S. Dryzek, busca fazer um

apanhado do que chamou de “forte giro deliberativo” das teorias democráticas durante a

década de 1990. Aponta o autor que a legitimidade democrática passou a ser compreendida

como um processo social no qual aqueles que serão submetidos à normas coletivas possuem a

oportunidade de participar em deliberação efetiva, em contraposição a outras formas de

controle democrático como por exemplo a votação, a agregação de interesses, os direitos

constitucionais e até mesmo autogoverno. A ênfase dada pelo autor recai no grau de controle

democrático substantivo, comparado com o controle simbólico, realizado por cidadão

engajados e competentes. Dryzek propõe uma perspectiva mais abrangente para uma teoria

da democracia deliberativa, a democracia discursiva, cujo objetivo é reconhecer, para além

das fronteiras do constitucionalismo liberal, possibilidades para discursos deliberativos, como

3 Como explicam os autores: “Por causa de suas amarras à tradição Kantiana e seu firme compromisso com o proceduralismo, o projeto de Habermas é melhor compreendido como uma tentativa de aperfeiçoar a contribuição de Rawls apresentada em Uma Teoria da Justiça, de forma que permita um genuíno diálogo e consideração das diferenças que divide os atores sociais enquanto reduz o abismo entre democracia e direitos. ” - Em livre tradução – (ARATO, 1998, p 5).

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por exemplo, na esfera pública, na comunidade internacional, e entre o homem e a natureza. A

democracia discursiva teria fôlego para alcançar espaços deliberativos mais amplos que os

espações delimitados pelas instituições estatais.

William Scheuerman apontou dificuldades para a teoria habermasiana

relacionadas com as desigualdades sociais, que comprometeriam a legitimidade do poder na

medida em que as condições ideais de fala para participação em processos deliberativos seria

um “dever-ser abstrato”, distante da realidade prática. Nessa perspectiva, as ações do Estado

para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos

fundamentais passa a ser uma condição para o legitimo exercício democrático

(SHEUERMAN, 1999, p. 159).

A democracia deliberativa para realizar verdadeira democracia social depende do

reconhecimento de um núcleo mínimo de princípios substanciais. A exigência de um núcleo

moral com capacidade de abranger laços mínimos de civilidade é pressuposto para a

deliberação e o incentivo para construir as virtudes necessárias para uma cultura política

liberal deve resultar da cooperação entre as instituições do Estado e a sociedade civil

(BAYNES, 2010).

Amy Gutmann e Dennis Thompson (2004, p. 125 e ss.), na obra Why deliberative

democracy?, discutem exatamente o porquê da escolha por um paradigma deliberativo de

democracia, embora com algumas diferenças teóricas em relação à proposta de Habermas. E

esse é o ponto relevante aqui: o porquê da escolha de um paradigma deliberativo, ainda que

sejam muitos os questionamentos relacionados. Explicam os autores que as sociedades

modernas e plurais contemporâneas lidam permanentemente com desacordos morais e

perspectivas conflitantes sobre valores fundamentais que impactam diretamente a elaboração

das normas jurídicas de convivência comum que pretendem vincular a ação de todos. Essa

então seria a questão fundamental que se apresenta para as teorias democráticas

contemporâneas: encontrar meios moralmente justificáveis/legítimos para escolhas coletivas

vinculantes em face de permanente conflito moral (GUTMANN, 2004, p. 125).

A perspectiva da democracia deliberativa volta-se então para uma série de

princípios que buscam garantir termos justos de cooperação, deixando em aberto a

possibilidade para que os diversos valores morais sejam considerados no debate: “seu

princípio fundamental é que cidadãos devem uns aos outros justificativas pela legislação

vinculante que coletivamente impõem uns aos outros” (GUTMANN, 2004, p. 126).

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Gutmann e Thompson (2004) distinguem as teorias de democracia em teorias de

primeira ordem e teorias de segunda ordem (first and second-order theories of democracy).

Enquanto as teorias de primeira ordem4 buscam solucionar o desacordo moral através de seus

próprios e exclusivos termos, e, portanto, rejeitando teorias alternativas ou princípios com os

quais sejam conflitantes, as teorias de segunda ordem buscam exatamente o oposto: lidar com

os diversos desacordos morais criando espaço para manifestação de todas as teorias de

primeira ordem ainda que conflitantes entre si.

As teorias de segunda ordem seriam bem-sucedidas ou não na medida em que

conseguissem justificar/legitimar tanto as deliberações realizadas como o desacordo moral

remanescente para todos os que devem conviver com as decisões tomadas. São teorias de

segunda ordem exatamente porque lidam de forma consistente com as diversas perspectivas

morais das teorias de primeira ordem, reconhecendo e levando em conta os múltiplos

princípios de primeira ordem sem afirmar ou negar sua validade em última instância. As

teorias de segunda ordem reconhecem e buscam lidar com os diversos conflitos e desacordos

morais que as teorias de primeira ordem buscam eliminar, sem, no entanto, pretender ser

moralmente neutra: “uma teoria sobre democracia deliberativa completa inclui tanto

princípios substantivos quanto procedimentais, nega que ambos sejam moralmente neutros, e

julga ambos através de um ponto de vista de segunda ordem” (GUTMANN, 2004, p. 127).

O que os autores propõem é a adoção de um paradigma de democracia

deliberativa, que seja uma teoria de segunda ordem com princípios substantivos e

procedimentais, apropriado para acomodar amplo espectro de princípios de primeira ordem.

Os princípios aqui possuem um status diferenciado dos princípios em outras teorias. Nas

palavras de Gutmann e Thompson (2004, p. 126):5

“Como é possível para uma teoria incluir princípios substantivos e procedimentais enquanto ainda consegue acomodar um amplo espectro de princípios de primeira ordem? A chave para essa resposta é que os princípios em uma teoria deliberativa da democracia, independentemente de serem substantivos ou procedimentais, apresentam um status diferente dos princípios em outras teorias. A democracia deliberativa não busca um princípio fundador ou um conjunto de princípios que, em antecipação a uma atividade política efetiva, determine se uma norma ou procedimento pode ser tido como justificado (legítimo). Ao contrário, a democracia deliberativa adota uma concepção dinâmica de justificação (legitimação) política, na qual mudanças ao longo do tempo são características de princípios justificáveis.

4 Nesse sentido, são exemplos familiares de teorias de primeira ordem: o utilitarismo, o libertarianismo, o liberal igualitarismo e o comunitarismo. (GUTMANN, 2004, p. 126).5 Em livre tradução.

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Os princípios da democracia deliberativa são distintos em dois aspectos: eles são moralmente provisórios (sujeitos a mudanças em face da argumentação moral); e são politicamente contingentes (sujeitos a mudanças em face de argumentação política). ”

O desafio posto para uma teoria deliberativa da democracia, assim como para

qualquer teoria sobre democracia que pretenda dar conta das profundas divergências e

diferenças que compõem o tecido social contemporâneo, é identificar as condições para a

cooperação e participação influente de todos os envolvidos no processo democrático, ainda

que existam desacordos morais significativos, a fim de que a fonte normativa vinculante que

irá regular o compartilhamento do espaço comum de convivência possa ser vista como

legítima e aceita por todos.

Uma avaliação das funções e do papel atribuídos à Justiça Eleitoral não pode ser

feita desvinculada de um paradigma de democracia. Se a missão que cabe à Justiça Eleitoral é

“garantir a legitimidade do processo eleitoral”,6 então, em primeiro lugar há que se discutir e

contextualizar o que se compreende por legitimidade. É por esta razão que se elege a teoria da

democracia deliberativa, nos termos propostos por Habermas, como ponto de partida para esta

pesquisa.

Embora muitos acadêmicos tenham críticas e contribuições a apresentar a respeito

da democracia deliberativa nos termos propostos pelo autor,7 principalmente por ser esse um

projeto que suscita mais e novas questões ao tentar responder às demandas que se apresentam

para a democracia contemporânea, é indiscutível a importância e significado de suas ideias na

medida em que estas deslocam o debate para um novo paradigma de Estado de Direito e por

isso oferecem ferramentas inovadoras para uma análise de legitimidade da atuação da Justiça

Eleitoral em tempos de debate pós-metafísico que traz para a linguagem nova perspectiva de

análise.

Esta proposta pode ser melhor compreendida a partir de uma breve exposição

sobre as principais ideias de Habermas a respeito da democracia deliberativa, selecionadas

para colaborar na fundamentação da análise de legitimidade da Justiça Eleitoral

6 Ver: http://www.tre-rj.jus.br . Acesso em 23/11/2014.7 Nesse sentido, ver artigos publicados por Jacques Lenoble, Thomas McCarthy, Niklas Luhmann, Gunther Teubner, Arthur J. Jacobson, Michael K. Power, Robert Alexy, Klaus Günter, William Rehg, William E. Foorbath, Richard J. Bernstein, Frank I. Michelman, Ulrich K, Preuss, András Sajo, Bernhard Chlink, Amy Gutmann, Dennis Thompson e Pierre Rosanvallon, entre outros.

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1.1 Delimitação do modelo procedimental de democracia

A construção da exposição de Habermas (2007, p.227 e ss) parte da contraposição

entre a concepção liberal e a concepção republicana de política, na forma sustentada pela

corrente americana comunitarista, a partir da avaliação do papel do direito, do papel do

cidadão e da natureza do processo político. Ao final, pondera as virtudes e os problemas

apresentados por cada uma, para buscar um caminho intermediário através da proposta de um

modelo procedimental de democracia.

Ensina o autor que, para a concepção liberal, a ordem jurídica é institucionalizada

a partir de direitos subjetivos que garantem a esfera de autonomia dos indivíduos, aqui

compreendidos como liberdades negativas, sendo a limitação do poder dada por um “direito

superior da razão ou revelação transpolítica” (HABERMAS, 2007, p. 281).

Para esta linha de argumentação o indivíduo dotado de razão é o centro do modelo

e a concepção de cidadania será desenhada a partir dos direitos fundamentais atribuídos a

cada indivíduo, e, portanto, oponíveis em face do Estado e dos demais cidadãos. É a idéia de

um conjunto de indivíduos, no qual cada um maximiza suas liberdades e escolhas de vida,

pautado por uma razão superior comum a todos, até o limite máximo que compatibilize a

coexistência simétrica dos diversos interesses individuais.8

Nesta perspectiva, os direitos políticos são concebidos como direitos subjetivos

que atribuem ao cidadão a capacidade de controlar se os poderes do Estado são exercitados

conforme os interesses do Estado e do mercado.

O processo político, para a corrente liberal, consagra-se como processo

democrático capaz de viabilizar, validar, a luta pelo poder administrativo do Estado. A

dinâmica do processo político é compreendida da mesma forma que a dinâmica do mercado,

visto que neste modelo existem duas instâncias reguladoras das relações sociais, o mercado e

a administração estatal. Tratando-se de um modelo no qual os indivíduos realizam opções que

maximizam suas escolhas individuais, o processo político é o resultado de aprovações ou

desaprovações de cada indivíduo, que leva em conta seus interesses particulares, quanto a

escolhas de pessoas, programas e políticas administrativas, o que pode ser avaliado a partir do

8 Explica Oquendo (2009, p.11) que: “Não obstante, Kant termina subordinando a democracia a um sistema moral categórico donde emergem direitos humanos sacrossantos. ”

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número de votos dados em cada eleição. O conjunto das decisões individuais resulta na

manifestação de uma vontade política com força para interferir na administração estatal.9

Sob perspectiva distinta, a ordem jurídica, para a concepção Republicana, é

desenhada a partir da escolha dos indivíduos quanto a objetivos e normas que melhor reflitam

a ideia de interesse comum, “convívio equitativo e autônomo fundamentado sobre o respeito

mútuo” (HABERMAS, 2007, p.281), resultando numa ordem de valores expressa através de

uma ordem jurídica objetiva.

O projeto republicano busca compatibilizar a integridade da comunidade e os

direitos subjetivos dos indivíduos, sendo que os direitos devem resultar da vontade política

voltada para o bem comum (HABERMAS, 2007, p.280). Diferente da perspectiva liberal, o

modelo republicano transfere seu foco para o Estado, acrescentando, ao lado da administração

e do mercado, a solidariedade como fonte de integração social. O centro do modelo

republicano é a autodeterminação democrática de cidadãos deliberantes.

A cidadania, aqui, ganha papel diferenciado, visto que os direitos a ela relativos

passam a ser considerados como direitos positivos, como direitos de participação e

comunicação política. Os direitos políticos não são apenas direitos subjetivos negativos que

garantem a esfera de autonomia privada do cidadão, mas sim direitos positivos que garantem

a autodeterminação política. Os direitos políticos, nesta abordagem, garantem aos indivíduos

a participação nos processos decisórios a partir de uma autonomia pré-existente, com foco no

bem comum, garantindo a estes a prerrogativa de controle das ações estatais, sem, no entanto,

chegar a ser vislumbrado como força mediadora entre a sociedade e a ação estatal.

A natureza do processo político republicano apóia-se na garantia de um processo

equitativo da formação da opinião e da vontade, voltada para o bem comum, estruturado a

partir da “condução estritamente ética dos discursos políticos” (HABERMAS, 2007, p.286),

sendo esse o erro, segundo Habermas.

Neste modelo, o que viabiliza o entendimento não é a dinâmica própria de

interesses com foco no mercado, mas sim o entendimento mútuo alcançado a partir da

9 Explica Jean Paul Rocha (2008, p.179) sobre a abordagem liberal: “o objetivo do direito, portanto, é o reconhecimento e a garantia dos direitos individuais”. Nesse sentido a política é vista como “uma luta por posições que garantem acesso ao poder administrativo”. A disputa pelo voto, que franqueia aos partidos políticos o acesso ao poder, desenvolve-se num “mercado político” que molda a formação da vontade política. ” (...) “Na distinção entre Estado e sociedade, esta é concebida como “um sistema de interação entre pessoas e seu trabalho, estruturadas em torno do mercado. ”

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interlocução, da solidariedade. Valoriza-se o poder comunicativo configurado a partir de

discursos políticos.

O modelo republicano reconhece a existência de um terceiro espaço social

diferente da administração estatal de do mercado, a sociedade civil organizada, capaz de

controlar as ações do Estado. Mas o processo político, neste modelo, não chega a alcançar o

status de mediador entre a sociedade e o poder estatal, visto que a autonomia dos cidadãos é

anterior à política e o poder estatal democrático não é concebido como força originária.10

O que fica evidenciado pela análise de Habermas é que as diferenças entre as

definições de cidadania e direito, resultam na verdade, de divergências quanto à compreensão

da natureza do processo político. E é exatamente a partir da natureza do processo político que

o autor constrói suas ponderações a respeito do processo deliberativo democrático.

O modelo liberal concebe o processo político como o resultado das escolhas

individuais de cidadãos que buscam os melhores meios de realizar seus projetos privados e

para tanto validam as políticas públicas que melhor se identifiquem com suas escolhas

individuais. Este modelo constrói suas premissas a partir de um direito fundado em uma razão

superior, a partir dos direitos universais dos homens, que atribui aos indivíduos direitos que

antecedem o processo político, sendo este, o processo político, o meio necessário para

compatibilizar as escolhas individuais de cada cidadão. O processo político gera resultados

na forma de arranjos e interesses.

O modelo republicano concebe o processo político a partir de uma auto-

organização de cidadãos que buscam o entendimento através da interlocução, apresentando

caráter radicalmente democrático. Para este modelo, o processo político decorre das escolhas

realizadas pelos indivíduos com foco no interesse comum da sociedade, a partir de escolhas

éticas, baseadas em uma autonomia pré-existente à política. O resultado do processo político,

a formação democrática da opinião e da vontade, revela-se como auto entendimento ético.

10 Explica Rocha (2008, p.179) que: “o modelo republicano de democracia não vê a sociedade estruturada primordialmente em torno do mercado, nem a política como mediadora entre Estado e sociedade. Além do poder administrativo e da busca dos interesses privados que se dá no mercado, a solidariedade desponta como terceira forma de integração social. A prioridade, aqui, é a formação de uma vontade política fundada num entendimento mútuo ou num consenso construído de forma comunicativa. Há um fundamento ético para a política. A esfera pública política e a sociedade civil asseguram “o poder de integração e a autonomia da pratica comunicativa dos cidadãos”. Para o cidadão, o mais importante neste modelo são as liberdades positivas, os direitos políticos de participação e comunicação, mediante os quais ele pode tornar-se sujeito de uma comunidade de cidadãos livres e iguais. O processo político tem como paradigma o diálogo, e não o mercado. ”

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Ao analisar o processo político nos dois modelos, Habermas pondera que,

enquanto o modelo liberal tem por base a razão prática lastreada nos diretos universais dos

homens, no qual a partir destes, os indivíduos realizam acordos que permitem a convivência;

no modelo republicano as escolhas são realizadas a partir de numa razão prática voltada para a

eticidade concreta de uma determinada comunidade, com lastro em liberdades pré-existentes à

política, dependendo amplamente das “virtudes de cidadãos voltados ao bem comum”

(HABERMAS, 2007, p. 284).

Os dois modelos apresentam o processo político desenhado a partir de limitações

externas, sejam os direitos universais do homem no modelo liberal, seja o conteúdo ético das

escolhas realizadas pelos cidadãos no modelo republicano. A razão prática que configura o

processo político não é ligada diretamente aos cidadãos.

A proposta habermasiana pretende compatibilizar elementos dos dois modelos,

através da introdução da razão prática a partir da fixação de regras discursivas e formas

argumentativas que retiram seu teor normativo da estrutura de comunicação linguística

(HABERMAS, 2007, p. 286).

O modelo de democracia procedimental é construído a partir da delimitação das

condições de comunicação e procedimentos necessários à legitimação da formação

institucionalizada da opinião e da vontade. Habermas parte do princípio do discurso e da

forma jurídica para construir seu modelo, como será explicado no ponto seguinte. Para tanto,

o autor reconhece a existência de um espaço deliberativo diferente do Estado e do mercado, a

esfera pública ou sociedade civil, ao qual atribui a capacidade de mediar as relações sociais

através do processo político.

O processo político é concebido como caixa de ressonância dos anseios sociais

capaz de regular os diversos sistemas através da linguagem jurídica.

A concepção de uma política deliberativa é construída a partir do reconhecimento

das diferentes formas de comunicação que compõem a formação da vontade comum. Neste

contexto são reconhecidos auto-entendimentos de caráter ético, busca de equilíbrio entre

interesses divergentes e estabelecimento de acordos, checagem da coerência jurídica, escolhas

racionais com fim específico e fundamentação moral.

Em sua obra Direito e Democracia, Habermas demonstra como cada forma de

comunicação encontra-se ligada a processos de auto-entendimento específicos e

institucionalizados a partir de diferentes papéis. Assim as funções da legislação, da justiça e

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da administração são diferenciadas a partir dos potenciais de argumentação e das formas de

comunicação correspondentes (HABERMAS, 2003a, p. 238). Habermas analisa a lógica da

divisão de poderes do Estado a partir da perspectiva da teoria do discurso.

À administração, responsável pela implementação de políticas públicas definidas

pelo poder legislativo, é vedada a utilização de argumentos normativos que contenham

resoluções de caráter legislativo ou de decisões judiciais. Os argumentos normativos resultam

das formas de comunicação através das quais o legislativo e a jurisprudência fundamentam e

aplicam normas. As leis transformam o poder comunicativo em administrativo, como

resultado de acordos realizados a partir do procedimento democrático (HABERMAS, 2003a,

p. 238).

Enfim, a estrutura do modelo procedimental de democracia tem por fundamento o

reconhecimento dos diversos tipos de comunicação inerentes à sociedade assim como o

reconhecimento da institucionalização dos diversos espaços de interlocução, o que confere ao

modelo procedimental caráter radicalmente democrático por atribuir, aos próprios cidadãos, a

responsabilidade pelo processo político, através da garantia das condições de comunicação e

dos procedimentos que legitimem a formação livre e igualitária da opinião e da vontade.

Explica Habermas que, quando estão institucionalizadas as diversas formas de

comunicação, estas são capazes de, a partir do procedimento deliberativo político, alcançar

resultados racionais. A ética do discurso habermasiana está fundamentada na crença em que a

racionalidade é instrumento capaz de orientar a interação social possibilitando a coordenação

dos planos de ação dos múltiplos sujeitos que partem de visões e interesses diferentes.

A concepção discursiva da democracia apóia-se sobre o conceito procedimental

de política deliberativa, ou seja, nas “condições de comunicação sob as quais o processo

político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais, justamente por cumprir-se, em todo o

seu alcance, de modo deliberativo” (HABERMAS, 2007, p. 286).

A proposta normativa de democracia deliberativa apóia-se na ética do discurso, e

une elementos tanto do modelo liberal quanto do republicano, construindo um modelo ideal

para a tomada de decisões. Habermas propõe um modelo no qual são compatibilizados

negociações, discursos de auto-entendimento e discursos de justiça em um procedimento

democrático capaz de atingir resultados racionais, justos e honestos.

O processo político da formação da vontade adquire papel central no modelo

procedimentalista. As condições de comunicação do procedimento democrático necessárias à

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estrutura do modelo são institucionalizadas partindo dos direitos fundamentais e do Estado de

direito, da linguagem jurídica.

A política deliberativa passa a depender diretamente da institucionalização dos

procedimentos necessários ao processo de entendimento mútuo. A rede de comunicação

formada a partir de relações intersubjetivas em espaços deliberativos permite a formação

racional da opinião e da vontade a respeito dos temas considerados importantes pela

sociedade.

Esta formação racional da opinião e da vontade transforma-se em “decisões

eletivas institucionalizadas e em resoluções legislativas pelas quais o poder criado por via

comunicativa é transformado em poder administrativamente aplicável ” (HABERMAS, 2007,

p. 289).

Para Habermas, a solidariedade como fonte de integração social, decorre não

apenas das fontes da ação comunicativa, mas também precisa encontrar origem nas opiniões

públicas autônomas e em procedimentos institucionalizados por via jurídico-estatal para a

formação democrática da opinião e da vontade, sendo capaz de contrapor-se às outras duas

fontes de integração social: o dinheiro e o poder administrativo (HABERMAS, 2007, p. 289).

Enquanto na concepção liberal, a formação democrática da vontade tem a função

de legitimar o exercício do poder político e na concepção republicana esta tem a função de

constituir a sociedade como uma coletividade política, no modelo procedimentalista funciona

como procedimento através do qual ocorre a racionalização discursiva das decisões de

cidadãos que se auto-governam, mediante a programação e controle do poder político.

Na perspectiva procedimental, a soberania popular é concebida a partir de uma

filosofia pós-metafísica e prática, que transfere para a linguagem o seu paradigma, tornando

possível a existência de uma soberania construída a partir de formas de comunicação sem

sujeito; ao contrário dos modelos concebidos com base na filosofia da consciência, que

precisa personificar a soberania popular seja através de um conjunto de indivíduos, a partir de

competências atribuídas pelo direito constitucional, seja no povo de forma concretista ou em

instituições. Nesta perspectiva, o sistema político não se restringe ao ápice nem ao centro da

sociedade, mas configura-se como um sistema de ação ao lado de outros sistemas

(HABERMAS, 2007, p. 288 e ss).

O papel da cidadania, no modelo procedimentalista, ganha novos contornos, não

podendo os direitos políticos permanecerem resumidos a direitos negativos, ou ainda a

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direitos positivos que garantem a participação e comunicação política apenas como meio de

controle das ações estatais. Neste contexto, procedimentalista, a cidadania adquire um papel

radicalmente democrático no qual os cidadãos passam a autores e destinatários do sistema de

direito ao qual se encontram submetidos, em uma perspectiva horizontalizada do

procedimento democrático.

Com a verticalização das formas de comunicação - através da institucionalização

do poder político na forma de Estado configurado como poder político de organização, de

sanção e de execução -, transfere-se a autonomia política para foros e espaços dialógicos.

Nestes novos espaços a base da soberania popular descola-se do indivíduo, sendo transferida

para uma complexa rede de comunicação com procedimentos especificamente determinados,

garantindo-se, assim, o caráter radicalmente democrático do modelo normativo

procedimental. Nas palavras de Habermas (2007, p. 285):

“O conceito de uma política deliberativa só ganha referência empírica quando fazemos jus à diversidade das formas comunicativas na qual se constitui uma vontade comum, não apenas por um atuo-entendimento mútuo de caráter ético, mas também pela busca de equilíbrio entre interesses divergentes e do estabelecimento de acordos, da checagem de coerência jurídica, de uma escolha de instrumentos racional e voltada a um fim específico e por meio, enfim, de uma fundamentação moral. ”

Interessa abordar, a seguir, dois pontos específicos que auxiliam na compreensão

da proposta democrático-deliberativa: como é construído o sistema de direitos no modelo

procedimental e de que forma este compatibiliza autonomia privada com autonomia pública e

direitos humanos com soberania popular.

1.2 Sistema de direitos, autonomia privada e soberania popular

Como visto, o modelo normativo de democracia procedimentalista apresenta uma

nova abordagem para a natureza do processo político. A proposta habermasiana pretende

compatibilizar elementos do modelo liberal e do modelo republicano, através da introdução

da razão prática, a partir da fixação de regras discursivas e formas argumentativas que retiram

seu teor normativo da estrutura de comunicação linguística.

Angel R. Oquendo (2009, p. 11) explica que é fundamental a compreensão de que

Habermas busca encontrar um meio termo entre os extremos apresentados pela tradição

liberal, representada por Immanuel Kant, e a teoria republicana conforme a abordagem de

Jean Jacques Rousseau. Habermas busca estabelecer uma ligação interna entre soberania

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popular e direitos humanos diferente da relação identificada pelas teorias de Kant e Rousseau:

enquanto estes estabelecem uma relação de hierarquia entre soberania popular e direitos

humanos, Habermas os define a partir de uma relação de cooriginariedade.

Para Habermas, a legitimação do sistema de direitos não pode ser fundamentada a

partir de cosmovisões metafísicas ou religiosas, a partir de elementos externos. Em um

contexto pós-metafísico, no qual o foco da aquisição de conhecimento volta-se para as

relações intersubjetivas e para a linguagem, o sistema normativo precisa legitimar-se a partir

de elementos internos, o que somente será possível a partir de um agir comunicativo.

O processo de normatização, a auto-legislação de civis, somente se torna legítima,

a partir da introdução do princípio do discurso pela via da institucionalização jurídica, a partir

da forma jurídica, configurando o princípio da democracia. O princípio da democracia

somente pode ser idealizado a partir de um sistema de direitos, visto que deve configurar-se

através da institucionalização jurídica do princípio do discurso (HABERMAS, 2003a, p 158).

O princípio geral do discurso pode ser enunciado da seguinte forma: “D: são

válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu

assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais” (HABERMAS, 2003a, p

142). A utilização deste princípio parte da premissa de que questões práticas podem ser

julgadas de forma imparcial e decididas de forma racional.

O princípio da moral é uma especificação do princípio do discurso, que funciona

como “regra de argumentação para a decisão racional de questões morais” (HABERMAS,

2003a, p. 145), que funciona no nível da constituição interna da formação discursiva da

opinião e da vontade, se aplicando a todas as normas de ação que sejam justificáveis a partir

de argumentos morais.

Assim, a forma jurídica aliada ao princípio do discurso, ou seja, o princípio da

democracia, permite a identificação das categorias de direito que formam o próprio código

jurídico, enquanto “formalização jurídica de uma socialização horizontal em geral”

(HABERMAS, 2003a, p. 159).

A configuração da cidadania realiza-se, portanto, em dois momentos distintos. A

cidadania no primeiro plano é configurada a partir da especificação dos direitos fundamentais

das três primeiras categorias citadas por Habermas (2003a, 159) como necessárias para a

constituição do status de pessoas de direito. Esta cidadania ganha forma a partir da

positivação dos direitos constitucionais classicamente identificados como direitos de defesa,

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pelo legislador histórico. Neste sentido, o princípio do discurso é institucionalizado

juridicamente.

A figura jurídica do princípio da democracia resulta da conformação dada pelo

constituinte histórico aos direitos que configuram o princípio do discurso, isto é, da

formatação dada aos direitos políticos de participação.

Os direitos políticos precisam assegurar aos cidadãos a participação em todos os

espaços de deliberação e decisão do processo legislativo, de forma que “a liberdade

comunicativa de cada um possa vir simetricamente à tona, ou seja, a liberdade de tomar

posição em relação a pretensões de validade criticáveis” (HABERMAS, 2003a, p.164).

A configuração política da opinião e da vontade públicas depende da

possibilidade de se garantir a liberdade comunicativa simétrica acima referida. O uso público

destas liberdades comunicativas pressupõe autorização anterior do ordenamento jurídico,

assim como pressupõe meios de comunicação, de processos discursivos de consulta e decisão

garantidos juridicamente, para que os resultados atingidos sejam considerados legítimos. Nas

palavras do autor (HABERMAS, 2003a, p.164):

“Iguais direitos políticos fundamentais para cada um resultam, pois, de uma juridificação simétrica da liberdade comunicativa de todos os membros do direito; e esta exige, por seu turno, uma formação discursiva da opinião e da vontade que possibilita um exercício da autonomia política através da assunção dos direitos dos cidadãos. ”

O princípio do discurso, concebido enquanto iguais direitos de comunicação e

participação, e aplicado à forma jurídica, ao médium do direito, são os pré-requisitos

necessários para a construção de um sistema de direitos a partir da autodeterminação dos

cidadãos, em oposição à um sistema jurídico construído a partir da subordinação do direito à

moral, como o modelo kantiano.11

A institucionalização de um processo legislativo, através da forma jurídica,

viabiliza a institucionalização do princípio do discurso como princípio da democracia. Esta

institucionalização somente é viável se houver um código jurídico previamente estabelecido

que atribua ao indivíduo o status de sujeito de direito apto a participar do processo político.

Fica evidenciada a gênese simultânea, portanto a pressuposição recíproca da

esfera privada e da esfera publica de autonomia do cidadão, tornando-se claro que direitos

11 Como enfatiza Samantha Dobrowolski; “precisamente o direito e a participação no processo político democrático garantem a integração social em tempos de pluralismo no mundo desencantado. E os pressupostos comunicativos e as condições do processo de formação democrática da opinião e da vontade são a única fonte de legitimação” (DOBROWOLSKI, 2007, p. 188).

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humanos e soberania popular são pré-requisitos simultâneos para a arquitetura de um sistema

jurídico democrático. A autonomia política somente passa a existir após interpretação e

configuração, através do processo legislativo legítimo, dos direitos que a consagram.

Explica Habermas (2003a, p.166) que toda Constituição é um projeto cuja

duração dependerá da interpretação constitucional realizada pelos diversos participantes dos

processos de positivação do direito.

A tensão entre norma e realidade apresenta-se na conclusão de que “os direitos

políticos fundamentais devem institucionalizar o uso público das liberdades comunicativas na

forma de direitos subjetivos” (HABERMAS, 2003a, p.166).

A forma de tornar legítima a criação de normas de convivência entre cidadãos no

Estado Democrático de Direito depende da existência simultânea de um espaço público de

deliberação com regras e procedimentos bem definidos, assim como depende de um código

jurídico que assegure a esfera de autonomia a todos os cidadãos envolvidos. Para tanto, todo

cidadão deve ter assegurada sua autonomia privada simétrica e intersubjetivamente garantida,

enquanto destinatário das normas criadas, assim como sua autonomia pública ou política,

enquanto participante livre na criação das normas que regem a convivência, a qual todos, sem

distinção, estarão submetidos.

1.3 Direitos políticos, cidadania e sujeitos da democracia

Na construção teórica apresentada, Habermas demonstra, passo a passo, como

deve ser constituído o sistema jurídico, para, a seguir, explicar como a figura jurídica do

princípio da democracia resulta da formatação dada pelo constituinte histórico aos direitos

que configuram o princípio do discurso, da formatação dada aos direitos políticos de

participação.

O princípio do discurso, concebido enquanto iguais direitos de comunicação e

participação, aplicado à forma jurídica, é o pré-requisito necessário para a construção de um

sistema de direitos a partir da autodeterminação dos cidadãos, em oposição a um sistema

jurídico construído a partir da subordinação do direito à moral, como o modelo kantiano.12

12 Complementa este raciocínio Samantha Dobrowolski (2007, p.319) ao ponderar que: “A única forma de normatividade e de legitimidade, neste contexto, é o princípio do discurso. Este se desdobra no princípio da moralidade, que justifica juízos morais passíveis de universalização, e no princípio da democracia, o qual estrutura o conhecimento e a práticas dos cidadãos e, ao assumir a forma jurídica (direito), pode institucionalizar

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A cidadania, na perspectiva do modelo habermasiano, ganha novos contornos,

realizando-se em dois sentidos distintos.

No primeiro sentido, a cidadania configura-se a partir das três primeiras categorias

de direitos fundamentais apresentadas por Habermas. Ao serem interpretadas e positivadas

pelo legislador originário, configuram os clássicos direitos de defesa. Especificam direitos

fundamentais, constituindo os indivíduos como sujeitos de direito, como cidadãos enquanto

membro de uma coletividade.

No segundo sentido, a cidadania configura-se a partir da quarta categoria de

direitos fundamentais apresentada por Habermas. Observa-se que o sistema de direitos deve

permitir que os cidadãos sejam capazes de avaliar se os meios para produção da legislação são

legítimos, tarefa atribuída aos direitos fundamentais de participação nos processos de

formação da opinião e da vontade do legislador (HABERMAS, 2003a, p.164).

Sob a perspectiva desta abordagem, explica Gisele Citadino (2004, p.231-232),

que a democracia pressupõe uma cidadania ativa que seja capaz para o exercício da liberdade

e da deliberação na esfera publica política.13

Aqui se apresenta a grande diferença entre o modelo liberal e o modelo

procedimentalista, necessária à fundamentação de uma nova abordagem dos direitos políticos.

Para o modelo liberal, o processo político, a formação democrática da vontade,

tem a função exclusiva de legitimar o exercício do poder político, através da manifestação de

concordância ou não, pelos cidadãos, das políticas públicas implementadas. Neste contexto,

os direitos políticos apresentam-se como direitos subjetivos que garantem ao cidadão a

capacidade de validar ou não as escolhas políticas realizadas pelo Estado, conforme o

interesse de cada cidadão. Os direitos fundamentais e, entre estes os direitos políticos, são

instituídos na forma de direitos subjetivos de defesa em face do Estado e dos demais cidadãos.

O exercício da cidadania fica restrito, praticamente, aos direitos políticos de votar e de ser

os procedimentos comunicativos de formação da opinião e da vontade políticas, nos quais se entrelaçam compromissos, questões morais, éticas e pragmáticas, sob a suposição de que se alcançam resultados racionais equitativos. ”13 Para a autora: “a participação cidadã pode certamente buscar, através dos vários institutos previstos no texto constitucional, a efetivação das normas constitucionais protetoras dos direitos fundamentais. Nesta perspectiva, o sistema de direitos assegurados pela Constituição Federal apenas terá efetividade mediante a força de vontade concorrente dos nossos cidadãos em processos políticos deliberativos. Esta cidadania juridicamente participativa, entretanto, dependerá, necessariamente, da atuação do Poder Judiciário – especialmente da jurisdição constitucional-, mas sobretudo do nível de pressão e mobilização política que, sobre ele, se fizer” (CITTADINO, 2004, p.231-232).

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votado no dia das eleições. O processo eleitoral, nesta perspectiva, caracteriza-se apenas por

disputas políticas estratégicas de interesses individuais que resultam somente em acesso ao

poder administrativo pelas posições vencedoras e bem-sucedidas, com lógica de

funcionamento muito semelhante ao mercado. O processo eleitoral é o mecanismo que

legitima o acesso ao poder administrativo sem qualquer compromisso com a forma como este

será exercido. Nas palavras de Habermas (2007, p. 283):

“Segundo a concepção liberal, a política é essencialmente uma luta por posições que permitam dispor do poder administrativo. O processo de formação da vontade e da opinião política, tanto em meio à opinião pública como no parlamento, é determinado pela concorrência entre agentes coletivos agindo estrategicamente e pela manutenção ou conquista de posições de poder. O êxito desse processo é medido segundo a concordância dos cidadãos em relação a pessoas e programas, o que se quantifica segundo números de votos. Ao votar, os eleitores expressam suas preferências. As decisões que tomam nas eleições têm a mesma estrutura que os atos eletivos de participantes do mercado voltados à conquista de êxito. São os eleitores que licenciam o acesso a posições de poder pelas quais os partidos políticos lutam, em uma mesma atitude que se orienta pela busca de sucesso. Um mesmo modelo de ação estratégica corresponde igualmente ao input dos votos e ao output do poder. ”

A concepção republicana, por outro lado, atribui ao processo político uma

dinâmica diferente da que ocorre com o mercado identificando-o com práticas comunicativas

públicas voltadas para o entendimento mútuo, sendo o seu paradigma a interlocução. Há o

expresso reconhecimento de duas dinâmicas estruturalmente diferenciadas: o poder

comunicativo que emerge de opiniões majoritárias através da utilização de mecanismos de

discurso e o exercício do poder administrativo. A disputa de interesses divergentes precisa

submeter-se a processo cooperativo para que resultados respeitados por todos possam ser

alcançados. Mais do que autorizar o exercício de poder administrativo, o processo político é

responsável por delimitar as fronteiras vinculantes para o exercício do poder administrativo

(HABERMAS, 2007, p.283).

No entanto, em contexto de pluralismo social e cultural, em contexto de visões de

mundo e valores divergentes sem horizonte de consenso, apenas a interlocução fundamentada

pelo caráter ético de uma comunidade concreta não viabiliza o entendimento, sendo incapaz

por si só de excluir as motivações estratégicas. A fixação de pressupostos e procedimentos de

deliberação aparecem para preencher essa lacuna na medida em que o reconhecimento e a

institucionalização das respectivas formas de comunicação da interlocução e do agir

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instrumental tornam possível compatibilizá-las no médium das deliberações para produzir

uma razão procedimentalizada. Como explica o autor (HABERMAS, 2007, p. 286):

“Esse procedimento democrático cria uma coesão interna entre negociações, discursos de auto-entendimento e discursos sobre a justiça, além de fundamentar a suposição de que sob tais condições se almejam resultados ora racionais, ora justos e honestos. Com isso a razão prática desloca-se dos direitos universais do homem ou da eticidade concreta de determinada comunidade e restringe-se a regras discursivas e formas argumentativas que extraem seu teor normativo da base validativa da ação que se orienta ao estabelecimento de um acordo mútuo, isto é, da estrutura de comunicação linguística. ”

Para o modelo procedimentalista o processo político da formação democrática da

vontade apresenta-se como procedimento através do qual ocorre a racionalização discursiva

das decisões de cidadãos que se auto-governam, mediante a programação e controle do poder

político.

Para esta teoria, os direitos políticos referem-se a um conjunto de posições

jurídicas muito mais abrangentes. Os direitos precisam ser concebidos de forma que

autonomia pública e privada sejam pressupostas reciprocamente. A autonomia política

somente passará a existir após interpretação e configuração, através do processo legislativo

legítimo, dos direitos que a consagram. Nas palavras de Habermas (2003a, 165):

“Isso vale também para os direitos políticos fundamentais que entram nesse contexto. O princípio segundo o qual todo o poder do Estado emana do povo tem que ser especificado, conforme as circunstâncias, na forma de liberdades de opinião e de informação, de liberdade reunião e de associação, de liberdades de fé, de consciência e de confissão, de autorização para participação em eleições e votações políticas, para a participação em partidos políticos ou movimentos civis, etc. Nos atos constituintes de uma interpretação jurídica do sistema de direitos, os cidadãos fazem um uso originário de uma autonomia política que se constitui através de um modo performativo auto referencial.”

Os direitos políticos assim compreendidos envolvem o conjunto de direitos

subjetivos positivados pelo legislador constituinte histórico que garantem ao cidadão sua

autonomia política e privada, conforme acima exemplificado; envolvendo inclusive os

direitos fundamentais que garantem a cada cidadão a participação, em igualdade de

condições, em processos de formação da opinião e da vontade, de forma que possam criar

direito legítimo a partir do exercício de sua autonomia política (HABERMAS, 2003a, p. 159).

O sentido dos direitos fundamentais, para Habermas, se diferencia bastante do

conceito de direitos fundamentais regularmente utilizado pela doutrina.

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Habermas apresenta os direitos fundamentais como o conjunto de posições

jurídicas que precisam estar asseguradas para permitir a construção de um sistema jurídico

que compatibilize autonomia pública e privada dos cidadãos, direitos humanos e soberania

popular.

Nesse sentido, estes direitos fundamentais podem ser percebidos como

“condições da democracia”. Trata-se do conjunto de direitos essenciais ao estabelecimento

das condições para o diálogo democrático, primordiais no que se referem à criação das

condições ideais de fala dos cidadãos, no que se refere à criação do espaço dialógico para

realização do processo político democrático.

Há o reconhecimento pelo autor do sistema de direitos como conjunto de normas

que consagram as escolhas racionais dos indivíduos, portanto, o reconhecimento explícito de

uma dimensão objetiva da ordem jurídica, sendo esta uma conseqüência necessária do modelo

discursivo.

A perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, nesta abordagem, resulta das

escolhas do constituinte originário ao definir os direitos fundamentais conforme as quatro

categorias de direitos humanos propostas por Habermas, e do constituinte derivado ao

configurar e reconfigurar o sistema jurídico à luz das normas e princípios elaborados pelo

constituinte originário.

A perspectiva objetiva não resulta da Constituição interpretada como ordem de

valores, como no modelo republicano, mas desta enquanto resultado das escolhas racionais de

cidadãos, legitimadas por um processo discursivo na forma de processo legislativo, cujo

resultado objetivo é o conjunto de normas e princípios jurídicos que configuram o sistema de

direitos.

É importante ressaltar que, para Habermas, essas normas e princípios, por

conterem sentido deontológico de validade, apresentam obrigatoriedade geral por meio de

argumentos normativamente fundamentados, muito diferente do que ocorre com os valores,

que precisam ser abordados numa ordem transitiva a partir de ordens de precedência e

costumes, visto que não se encontram normativamente escalonados. Normas e princípios

refletem as escolhas discursivas realizadas e aceitas por uma dada comunidade jurídica,

enquanto valores refletem opções morais não legitimadas por um processo legislativo, não

expostas à processo de escolhas racionais.

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Neste sentido, a aplicação pela jurisdição constitucional da Constituição como

ordem de valores reflete imenso arbítrio, por não se utilizar de formas de discurso

previamente legitimadas, por não se utilizar de argumentos normativos previamente

justificados. Trata-se aqui da legitimidade da atuação do Poder Judiciário, que somente

ocorrerá a partir da utilização das formas de discurso compatíveis com a sua atuação.

São aparentes, portanto, as incompatibilidades identificadas entre direitos

humanos e soberania popular, ou, em relação ao dilema enfrentado pela hermenêutica

constitucional ao buscar compatibilizar Constituição e Democracia. Não é a coletividade

superior ao indivíduo, como na ótica republicana, e nem o indivíduo superior em importância

à coletividade, como no liberalismo.

Conforme proposto pelo modelo normativo da Democracia, este equilíbrio é dado

pela existência e atuação de indivíduos/cidadãos que exercem duplo papel, pois realizam

escolhas e ao mesmo tempo submetem-se às escolhas realizadas. Estas escolhas são co-

originárias e definem a tensão entre direitos humanos e soberania popular, entre Democracia e

Estado Constitucional, visto que definem a opção por um ponto de equilíbrio desejado entre

estes dois pólos.

Na verdade, a dimensão objetiva e a subjetiva dos direitos fundamentais podem

ser compreendidas como resultado direto do duplo papel assumido pelo indivíduo no modelo

da democracia procedimental, em um primeiro momento, e como resultado do modelo de

democracia procedimental que transfere para foros autônomos a dinâmica do processo

democrático. O espaço dialógico é que definirá a forma de equilíbrio entre estes dois pólos

de forma simultânea. Não dá para caminhar entre os dois pólos sem que aproximar-se de um,

implique em afastar-se do outro. As escolhas políticas realizadas devem levar estas questões

em consideração. O espaço dialógico é que definirá o equilíbrio, ora aproximando-se de um

pólo, ora de outro, e esta composição será dada por escolhas políticas realizadas de forma

legítima, pelos meios legítimos.

Explica Habermas que não há mais como abordar os direitos fundamentais sob a

perspectiva liberal, segundo a qual tais direitos são tratados apenas como direitos subjetivos

de liberdade em face do poder estatal quando também deveriam ser compreendidos,

simultaneamente, como normas objetivas de princípio e obrigatórias para todo o sistema

jurídico (HABERMAS, 2003a, p. 325). Para o autor, uma constituição construída a partir do

conceito de “auto-organização de uma comunidade jurídica”, por isso no contexto do Estado

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Democrático de Direito, não pode limitar-se a regular apenas as relações estabelecidas entre

cidadãos e Estado. A democracia deliberativa procedimental, construída a partir do Estado de

Direito deve regular também os poderes econômico, social e administrativo (HABERMAS,

2003a, p. 326).

Resulta destas proposições que, se os direitos fundamentais não podem ser mais

concebidos apenas como direitos subjetivos de liberdade em face do poder Estatal, como

direitos negativos, a Jurisdição Constitucional também ganha novos contornos, visto que não

poderá mais apenas restringir-se à proteção de cidadãos autônomos em face do Estado.

Reconhece o autor que, numa democracia procedimental, os direitos fundamentais, portanto a

autonomia privada e a soberania popular, ficam expostos à agressão também nas esferas

econômica e social, necessitando de proteção mais ampla.

Estas proposições também apresentam impacto direto na divisão de poderes

classicamente concebida, tornando-se necessário adequá-la aos novos parâmetros. Se o

conjunto de direitos fundamentais é concebido sob nova ótica, a efetivação e proteção de tais

direitos também deve ser redimensionada.

Na abordagem discursiva da democracia, as funções da legislação, da justiça e da

administração são diferenciadas a partir das formas de comunicação e dos potenciais de

argumentos respectivos, como anteriormente mencionado. A transformação do poder

comunicativo em poder administrativo é regulada por leis que emergem do procedimento

democrático legítimo, sendo estas leis e esse procedimento resultado de um sistema jurídico

protegido por uma jurisdição constitucional.

Nesse sistema, os argumentos normativos necessários aos discursos de

fundamentação, consubstanciados em resoluções legislativas, e aos discursos de aplicação das

normas, implementados através de decisões judiciais, são construídos pelo Poder Legislativo

e pelo Poder Judiciário respectivamente, não estando tais argumentos normativos disponíveis

à Administração (HABERMAS, 2003a, p. 238-239).

O Poder Executivo deverá, para efetivação de tais direitos, conformar suas ações a

projetos e orientações previamente determinados pela instância legislativa legítima.

Ao Poder Legislativo originário, é atribuído o poder ilimitado de utilizar-se de

argumentos normativos e pragmáticos voltados à fundamentação de normas elaboradas

através de processo radicalmente democrático. Ao Poder Legislativo derivado é concedido

poder para utilizar-se de argumentos normativos e pragmáticos voltados à fundamentação de

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normas, nos limites do sistema de direitos que viabiliza a autonomia privada e pública dos

cidadãos.

Ao Poder Judiciário, mais especificamente, à Jurisdição Constitucional, é

atribuída nova tarefa: considerando-se que apenas as “condições processuais da gênese

democrática das leis” são capazes de garantir legitimidade ao sistema jurídico, a esta caberá a

nobre tarefa de cuidar do sistema de direitos que viabiliza a autonomia privada e pública dos

cidadãos, em outras palavras, dos direitos políticos fundamentais (HABERMAS, 2003a, p.

326).

Explica, Habermas, que a constituição não deve ser compreendida como uma

“ordem jurídica e global concreta‟, que cristaliza uma escolha prévia para toda a sociedade. A

constituição deve ser compreendida como um sistema que normatiza procedimentos políticos

voltados para viabilizar a autodeterminação, juridicamente legitimada, de cidadãos que vivem

cooperativamente. “Por isso, o tribunal constitucional precisa examinar os conteúdos de

normas controvertidas especialmente no contexto dos pressupostos comunicativos e

condições procedimentais do processo de legislação democrático. Tal compreensão

procedimentalista da constituição imprime uma virada teórico-democrática ao problema da

legitimidade do controle da constituição ” (HABERMAS, 2003a, p. 326).

Torna-se ainda relevante enfatizar que os princípios que fundamentam a

legitimidade do processo democrático são suficientemente informativos, no sentido de

apresentarem conteúdo normativo, ainda que apresentem natureza procedimental, tornando-se

desnecessária sua densificação a partir de uma teoria substancial dos direitos (HABERMAS,

2003a, p. 329). Todo o sistema jurídico é concebido a partir uma perspectiva coerente e

racional, visto que amparado em uma teoria da democracia, e esta é suficiente para legitimar

discursos de fundamentação e discursos de aplicação de normas.

Uma análise dos direitos políticos sob a ótica de uma dimensão objetiva e

subjetiva dos direitos fundamentais, aliada uma análise discursiva de tais direitos, permite um

exercício de reflexão imediato. O conjunto dos direitos fundamentais pode ser interpretado

em dois sentidos distintos:

Como direitos fundamentais – primeiro sentido - referem-se aos quatro conjuntos

de direitos humanos fundamentais, concebidos como categoria de direitos previamente

acordados enquanto constitutivos do pacto democrático, nos termos apresentados por

Habermas: configuram o sistema de direitos que viabiliza a autonomia pública e privada dos

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cidadãos. Pode-se identificá-los como as regras do jogo democrático estabelecidas pelo poder

constituinte originário, como “condições da democracia”.

Estes direitos apresentam simultaneamente aspectos objetivos e subjetivos. No

aspecto objetivo, consagram normas objetivas de princípio e obrigatórias para todo o sistema

jurídico, criam “a possibilidade jurídico-objetiva de uma prática institucionalizada de

autodeterminação dos cidadãos”. No aspecto subjetivo, garantem direitos subjetivos em face

do poder administrativo, econômico e social, que viabilizam o exercício da autonomia pública

e privada.

Como direitos fundamentais – segundo sentido – referem-se ao conjunto de

direitos humanos positivados, configurados e reconfigurados, enquanto posições jurídicas

subjetivas, pelo legislador derivado.

Os direitos políticos fundamentais, no primeiro sentido, realizam-se através dos

direitos políticos fundamentais positivados, no segundo sentido. E estes somente serão

legítimos se forem interpretados e configurados a partir de um processo político que preencha

as exigentes condições de comunicação que permita a construção racional da opinião e da

vontade. Os direitos fundamentais no primeiro sentido direcionam e limitam a conformação

dos direitos fundamentais no segundo sentido. Nesse contexto, não se pode falar, por

exemplo, de uma liberdade ilimitada dos poderes políticos.

Os direitos políticos fundamentais, no primeiro sentido, servem como princípios

jurídicos de orientação para o legislador e ao mesmo tempo servem como parâmetro, pois

precisam atuar através da linguagem jurídica, do médium do direito estabelecido.

Como ensina Cass Sunstein (2009, p.182), “o governo autônomo depende para

sua existência dos direitos democráticos firmemente protegidos. O constitucionalismo pode

assim, garantir as pré-condições para a democracia limitando o poder das maiorias em

eliminar aquelas pré-condições. ” A jurisdição constitucional não pode invadir o espaço do

legislador, constituinte derivado, mas tem plena legitimidade para fazer cumprir sim a

Constituição originária, independente da atuação do poder legislativo derivado, pois as

normas constitucionais que caracterizam os direitos políticos fundamentais, no primeiro

sentido, são autoaplicáveis.

Por tais razões, os direitos políticos precisam ser interpretados no sentido proposto

por Habermas e não apenas como proposto pela doutrina tradicional, como direitos políticos

subjetivos de primeira dimensão, no sentido albergado pela teoria liberal.

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A dificuldade para se definir e compreender os direitos políticos em face da

Constituição de 1988 resulta de uma abordagem equivocada: enquanto são interpretados

exclusivamente como direitos fundamentais subjetivos de primeira dimensão, direitos

negativos, estes não são suficientes para garantir a democracia. É necessário para uma teoria

da democracia consistente com o Estado Democrático de Direito em que os direitos políticos

sejam concebidos como os direitos fundamentais que garantem a autonomia privada e a

autonomia pública dos cidadãos, somente nesta perspectiva é possível uma compreensão

adequada dos direitos políticos.

Os direitos políticos fundamentais perdem seu conteúdo relevante quando são

analisados apenas enquanto direitos subjetivos, negativos, de primeira dimensão. Estes

deixam de ser pilar da democracia, descaracterizando-se a cidadania, alienando o indivíduo do

contexto social, permitindo a criação de um abismo entre política e democracia em virtude da

ausência de processos de legitimação. Esta abordagem tem por conseqüência a apatia dos

cidadãos, que sem o estabelecimento necessário das vias de acesso à arena discursiva, isolam-

se enquanto indivíduos, não conseguindo se articular adequadamente enquanto sociedade

civil, enquanto esfera pública, no sentido habermasiano.

Neste contexto, a coletividade constitui-se em um conjunto esquizofrênico de

indivíduos que não interagem adequadamente, o que resulta na precariedade da esfera de

autonomia individual e do exercício da soberania popular, na incapacidade do Estado de

equacionar os problemas de ordem pública básicos como educação, saúde, segurança entre

tantos outros.

Resulta ainda desse processo a erosão dos pilares da própria democracia, visto que

o legislador derivado perde seus parâmetros de atuação e por conseqüência sua legitimidade,

visto que não mais se utiliza dos discursos produzidos a partir do poder comunicativo dos

cidadãos, não mais se utiliza de processo democrático apto a garantir tratamento racional de

questões políticas (HABERMAS, 2003a, p. 321 e ss). O que resulta em políticas públicas

incapazes de equacionar as mazelas sociais e em uma jurisdição constitucional chamada a

colmatar espaços vazios que deveriam ser preenchidos por discursos jurídicos normativos de

fundamentação e não por discursos jurídicos de aplicação sem prévia legitimação.

A proposta aqui defendida é a de que seja realizada nova abordagem dos direitos

políticos, tomando-se como referencial o modelo normativo de democracia procedimental, e,

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portanto, a partir da forma como o processo político e o sistema de direitos são concebidos

neste modelo.

Este deve ser o preciso conceito de direitos políticos: o conjunto de direitos

fundamentais que formam o sistema de direitos que viabiliza a autonomia pública e privada

dos cidadãos. Os direitos políticos somente encontrarão um caminho para efetivação nos

moldes compatíveis com o Estado Democrático de Direito se for construída uma nova

perspectiva para sua interpretação, reconfiguração e aplicação.

1.3.1 Abordagem discursiva dos direitos políticos e delimitação do conteúdo dos direitos eleitorais

A delimitação do conteúdo, alcance e natureza jurídica dos direitos políticos,

partindo de uma compreensão discursiva, deve ser realizada levando-se em conta a estrutura

do sistema de direitos no contexto de uma democracia procedimental.

O referencial revolucionário da democracia, nesta abordagem, é a possibilidade de

emancipação do indivíduo a partir do seu reconhecimento como pessoa humana capaz de

autodeterminação e, simultaneamente, do seu reconhecimento como ser social capaz de

construir acordos racionais de convivência entre iguais, cujo referencial para igualdade é a

natureza humana.

Adotar o referencial de igualdade a partir da condição humana da pessoa significa

emancipar o indivíduo para fazer suas próprias escolhas, sem torná-lo refém de cosmovisões

metafísicas ou religiosas, previamente definidas. Significa atribuir ao indivíduo a condição de

cidadão capaz de regular sua vida em comunidade através do auto-entendimento. Significa

confiar na espécie humana como autora e responsável por seu destino.

Paradoxalmente, o reconhecimento dessa igualdade, considerando a condição

humana da pessoa, cria as condições para o reconhecimento e respeito das diferenças entre os

diversos seres humanos, para o reconhecimento do “outro”.

A igualdade é reconhecida através da garantia da “liberdade de todos”, do

reconhecimento simétrico de direitos para participar dos espaços dialógicos de interlocução,

enfim, da autonomia pública. A diferença é reconhecida partindo da liberdade de escolhas

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atribuída a cada cidadão, considerada sua esfera individual de autodeterminação. O sistema de

direitos de uma democracia que se pretende legítima, é construído sobre essas premissas.

Parece óbvio o que foi dito, mas basta voltar quase dois séculos na história, e

analisar a primeira Constituição brasileira, para compreender-se a importância desse

parâmetro. Em 1824, no Brasil, a titularidade e o exercício dos direitos políticos dependiam

dos seguintes requisitos: ser homem, ter renda mínima (voto censitário), saber ler (voto

literário), ser católico, entre outros.14 Estado e Igreja misturavam-se a tal ponto que o

exercício do voto era realizado conforme a paróquia do eleitor. As mulheres, os analfabetos,

os libertos, os acatólicos entre outros não votavam. Apenas alguns “humanos” eram

qualificados como cidadãos pelo sistema de direitos.

Disputas de poder, revoluções e guerras foram levadas a efeito na luta pela

igualdade. Basta lembrar que a revolucionária Declaração dos Direitos dos Homens foi feita

para os homens, não atribuindo às mulheres os mesmos direitos. Marie Gouze (1748-1793) ou

Olympe de Gouges, como ficou conhecida, propôs, durante o período da revolução francesa, a

criação da Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã, tendo sido condenada por seu

ativismo e guilhotinada em 1793 por ser “desnaturada” (GOUZE, 1791).

14 Enunciava a Constituição de 1824, quanto aos requisitos para exercício dos direitos políticos: “ Art. 91. Têm voto nestas Eleições primariasI. Os Cidadãos Brazileiros, que estão no gozo de seus direitos políticos.II. Os Estrangeiros naturalizados.Art. 92. São excluídos de votar nas Assembléas Parochiaes.I. Os menores de vinte e cinco annos, nos quaes se não comprehendem os casados, e Officiaes Militares,

que forem maiores de vinte e um annos, os Bachares Formados, e Clerigos de Ordens Sacras.II. Os filhos familias, que estiverem na companhia de seus pais, salvo se servirem Officios publicos.III. Os criados de servir, em cuja classe não entram os Guardalivros, e primeiros caixeiros das casas de

commercio, os Criados da Casa Imperial, que não forem de galão branco, e os administradores das fazendas ruraes, e fabricas.

IV. Os Religiosos, e quaesquer, que vivam em Communidade claustral.V. Os que não tiverem de renda liquida annual cem mil réis por bens de raiz, indústria, commercio ou

Empregos.Art. 93. Os que não podem votar nas Assembléas Primarias de Parochia, não podem ser Membros, nem

votar na nomeação de alguma Autoridade electiva Nacional, ou local.Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de

Provincia todos, os que podem votar na Assembléa Parochial. Exceptuam-seI. Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou

emprego.II. Os Libertos.III. Os criminosos pronunciados em querela, ou devassa.Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, abeis para serem nomeados Deputados. Exceptuam-seI. Os que não tiverem quatrocentos mil réis de renda liquida, na fórma dos Arts. 92 e 94.II. Os Estrangeiros naturalisados.III. Os que não professarem a Religião do Estado.Art. 96. Os Cidadãos Brazileiros em qualquer parte, que existam, são elegiveis em cada Districto Eleitoral

para Deputados, ou Senadores, ainda quando ahi não sejam nascidos, residentes ou domiciliados.Art. 97. Uma Lei regulamentar marcará o modo pratico das Eleições, e o numero dos Deputados

relativamente à população do Império. ”

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44

Atualmente, o reconhecimento da prerrogativa de dignidade e igualdade da

condição humana é marcado por diversas lutas, o que resta demonstrado pelos diversos

movimentos sociais de proteção aos deficientes, aos idosos, às crianças e adolescentes, apenas

para citar alguns. É a batalha pela igualdade construída a partir do reconhecimento da

diferença.

Neste contexto, a cidadania precisa ser compreendida como o vínculo jurídico que

atribui a cada pessoa o poder de ser reconhecida como igual em dignidade perante

determinado grupo social organizado, em razão da sua natureza humana. Em uma

compreensão discursiva da democracia, a cidadania garante a “consideração simétrica da

liberdade individual de cada um” como prerrogativa da “liberdade de todos”, sendo este o

sentido de igualdade. A igualdade apoia-se na premissa de que, a cada um, serão garantidas

condições equitativas de participação no processo de disputas argumentativas, no processo

democrático de justa coordenação das liberdades (NASCIMENTO, 2011, p. 723 e ss).

Os direitos políticos, então, devem ser compreendidos como o conjunto de

direitos que garante aos indivíduos o pleno exercício da cidadania.

Os direitos políticos podem ser conceituados como o conjunto de direitos

fundamentais que compõem o sistema de direitos que viabiliza a autonomia pública e privada

dos cidadãos.

Como neste trabalho apresenta-se necessária a proposta de uma sistematização

dos direitos políticos que consiga abarcar o sentido amplo de tais direitos na democracia

discursiva, e por conseqüência torná-los mais efetivo, é importante realizar uma abordagem

analítica dos direitos políticos, para apontar que parcela destes direitos deve ser objeto do

Direito Eleitoral.

Para esta tarefa, escolhe-se como referencial a classificação dos direitos

fundamentais apresentada por Rogério Nascimento, uma vez que esta classificação distingue

os direitos fundamentais a partir do duplo papel do sujeito em face da ordem jurídica, pessoa

e cidadão, e da pretensão respectiva.

em:15

Assim, conforme já mencionado, distinguem-se os direitos políticos fundamentais

15 Segundo o autor: “a ) direito à autonomia (direito de não ingerência do poder público ou de particulares na esfera de liberdade do sujeito no papel de pessoa), desdobrável „direitos de defesa‟ (autorização de resistência contra interferências não consentidas, direitos estes usualmente materializados por meio de prestações negativas,

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a) direitos à autonomia: - direitos de defesa;- direitos a proteção;

b) direitos de participação: - direito à lisura dos procedimentos;- direito-competência;

c) direitos à fruição.

Aqui, a classificação proposta será apropriada por um ângulo um pouco diferente

do previsto pelo autor.

A classificação utilizada como ponto de partida divide os direitos fundamentais

em direitos à autonomia, direitos de participação e direitos à fruição, considerando o duplo

papel do sujeito em face da ordem jurídica e a ótica da pretensão.

Esta classificação, ainda que ofereça novas contribuições por incluir mecanismos

procedimentais de garantia, identificando prestações negativas e positivas para resguardar

cada categoria de direitos, não permite clara delimitação dos direitos políticos no conjunto dos

direitos fundamentais. Nesta perspectiva, esta classificação resta bastante semelhante à

classificação que divide os direitos fundamentais, conforme a função preponderante, em

direitos de defesa (direitos de autonomia), direitos à prestação (direitos à fruição) e direitos de

participação (direitos de participação) por separar os direitos fundamentais a partir da

pretensão a ser exigida (autonomia, participação e fruição).

Ou seja, a depender da pretensão, qualquer direito fundamental pode assumir a

feição de direitos de autonomia, se a pretensão levar em consideração a defesa da dimensão

subjetiva, através de prestações positivas ou negativas que resguarde a esfera de autonomia

dos cidadãos; ou de direitos de participação, se a pretensão considerada for a garantia do

poder de agir e dos respectivos meios, através de prestações negativas e positivas; ou ainda,

direitos de fruição, quando a pretensão relacionar-se com a partilha justa dos recursos

coletivos (NASCIMENTO, 2011, p. 723 e ss).

isto é, com a proibição de certos comportamentos) e „direitos a proteção „ (poder de exigir a intervenção protetora do estado, usualmente materializado em prestações positivas, sejam de natureza jurídica ou fática, isto é, no exercício de direito subjetivo de acesso a serviços de proteção ou de reparação);(b) direito de participação (direito de influir como cidadão na formação da opinião e da vontade geral) que, por sua vez, se desdobra no„direito à lisura dos procedimentos‟, materializado em prestações negativas, ou no „direito-competência‟ de atuar através do procedimento devido, materializado em prestações positivas assecuratórias do poder de agir (direitos e garantias de atuação legítima);(c) direito a fruição, traduzindo a exigência de uma partilha justa dos recursos coletivos (reconhecível ao sujeito quer seja como cidadão, quer seja como pessoa), usualmente materializado por meio de prestações positivas (NASCIMENTO, 2011, p. 731).

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O direito de acesso à justiça, o direito ao voto, o direito ao meio ambiente, o

direito à defesa do consumidor, o direito à saúde, o direito à educação, a função social da

propriedade, entre diversos outros, podem ter pretensões formuladas sob o ângulo tanto dos

direitos à autonomia, quanto dos direitos de participação ou, ainda, de direitos à fruição.

Ressalte-se, esta classificação pode ser bastante útil para identificar sob qual

aspecto o direito fundamental precisa ser protegido, mas não permite identificar quais seriam

os direitos relativos à cidadania ou quais seriam os direitos políticos.

Seja a partir da classificação que distingue os direitos fundamentais em direitos de

primeira, segunda ou terceira dimensão; seja a partir da classificação de tais direitos que os

identifica com uma dimensão objetiva ou subjetiva; ou ainda, a partir de uma classificação

quanto à pretensão, subdividindo-os em direitos à autonomia, à participação ou à fruição;

todas estas classificações revelam a possibilidade de olhar para o conjunto dos direitos

fundamentais a partir de ângulos diferentes, o que demonstra o caráter multidimensional dos

direitos fundamentais e a complexidade para sua abordagem. Estas diversas classificações

quanto aos direitos fundamentais atendem a enfoques diferentes, sendo relevante conforme o

objetivo a ser atingido.

Como nenhum destes critérios permite a delimitação precisa dos direitos políticos

relativos ao exercício da cidadania, sendo este o objetivo perseguido, torna-se necessário

lançar mão de outro ângulo para “olhar” os direitos fundamentais.

É precisamente esta outra forma de olhar os direitos fundamentais que diferencia a

abordagem realizada por Habermas da abordagem dos direitos fundamentais utilizada

recorrentemente pela doutrina.

Conforme descrito anteriormente, Habermas (2003a, p. 160), ao interpretar os

direitos fundamentais à luz de uma teoria do discurso, considera como direitos fundamentais o

conjunto de direitos que formam o sistema de direitos que viabiliza a autonomia pública e

privada dos cidadãos.

O autor demonstra em sua obra Direito e Democracia (HABERMAS, 2003a, p.

113-168), como este sistema é construído e quais são os direitos que consolidam os pilares de

uma democracia discursiva. Precisamente estes direitos devem ser considerados como direitos

de cidadania, como direitos políticos fundamentais de autonomia privada e de autonomia

pública: “Iguais direitos políticos fundamentais para cada um resultam, pois, de uma

juridificação simétrica da liberdade de todos os membros do direito; e esta exige, por seu

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turno, uma formação discursiva da opinião e da vontade que possibilita um exercício da

autonomia política através da assunção dos direitos do cidadão” (HABERMAS, 2003a, p.

164).

Para que seja possível diferenciar e identificar os direitos políticos, à luz da teoria

do discurso, propõe-se a classificação dos direitos fundamentais a partir de duas matrizes:

(1) Direitos da cidadania: - direitos políticos de autonomia;- direitos políticos de participação;

(2) Direitos de fruição da cidadania.

Os direitos da cidadania abrangem os direitos que consolidam os pilares da

democracia discursiva. Os direitos políticos de autonomia têm por fim a criação e proteção

dos meios para o exercício e manifestação da cidadania, considerados aqui os cidadãos

enquanto destinatários do direito. Estes se identificam com os direitos positivados pelo

legislador originário a partir das primeiras três categorias que dão origem ao código jurídico

de convivência, nos termos propostos por Habermas (2003a, p. 159). Tais direitos vinculam

as esferas de atuação social, seja o Estado, o Mercado ou a Sociedade Civil, à criação do

devido processo para o exercício da cidadania, inclusive de instituições que os garanta, em

seu aspecto autonomia privada. É possível pensar aqui no acesso à justiça, por exemplo, como

meio necessário para resguardar a “possibilidade de postulação judicial de direitos e da

configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual” (HABERMAS, 2003a,

p.159). Ou ainda em diversos direitos subjetivos garantidos a partir das previsões

constitucionais contidas no artigo 5º, que tem por objetivo garantir “direito à maior medida

possível de iguais liberdades subjetivas de ação” (HABERMAS, 2003a, p.160).

Os direitos políticos de participação, por sua vez, têm por fim a criação e proteção

dos meios para o exercício e a manifestação da cidadania, considerados aqui os cidadãos

enquanto autores do direito. Estes se correlacionam com os direitos positivados a partir da

quarta categoria, conforme proposto pelo autor. Aqui devem ser almejadas as situações ideais

de fala, para que todo cidadão possa participar de maneira equitativa dos processos

argumentativos, para a formação racional da vontade coletiva. Abrangem “os direitos

fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação da opinião

e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles

criam direito legítimo” (HABERMAS, 2003a, p. 159).

Os direitos de fruição da cidadania correlacionam-se tanto com os direitos

políticos à autonomia, quanto com os direitos políticos de participação, uma vez que abrange

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seu conteúdo todos os demais direitos fundamentais que precisam ser reconhecidos para o

exercício dos direitos políticos de autonomia e de participação. Relacionam-se estes com a

quinta categoria de direitos prevista por Habermas. Pensemos aqui na defesa do consumidor

como atribuição do Estado, prevista no artigo 5º da Constituição, inciso XXXII, que exige dos

prestadores de serviços a disponibilização de canais de acesso para registro e solução de lesão,

ou ameaça de lesão, ligados ao consumo e dos Poderes Públicos as ações necessárias para

regulamentar, executar e garantir judicialmente as políticas de proteção ao consumidor. O

mesmo raciocino se aplica em relação ao meio ambiente, à educação, à saúde, ao

recolhimento de impostos, ou a qualquer direito que contribua para o exercício simétrico da

liberdade de cada um, em face de uma convivência coletiva. São os direitos fundamentais que

asseguram as “condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em

que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos

elencados de (1) até (4)” (HABERMAS, 2003a, p. 159).

Apresentada esta classificação, torna-se possível identificar um parâmetro para

definir o conteúdo dos direitos políticos que devem ser objeto do Direito Eleitoral.

Os direitos políticos considerados como objeto do Direito Eleitoral são os direitos

políticos de participação que se relacionam com o processo eleitoral, o que parece óbvio, mas

que supera em muito o direito de votar e ser votado, apenas normativamente considerado,

como forma pontual de participação nos termos previstos pelo Estado Liberal.

O conteúdo dos direitos eleitorais abrange a especificação e o detalhamento das

regras do jogo para a competição eleitoral, a especificação e o detalhamento dos

procedimentos necessários à realização das eleições e a especificação e detalhamento dos

procedimentos necessários para resguardar e assegurar as condições da democracia

alcançadas pelo processo eleitoral.

Todos os direitos relativos ao sistema de direitos, ligados ao cidadão enquanto

autor e destinatário das normas jurídicas de convivência, no que se refere à normatização,

regulamentação e regulação do processo eleitoral, à definição de estrutura da legítima

competição eleitoral e à definição dos conteúdos jurídicos dos termos envolvidos devem ser

considerados como objeto do Direito Eleitoral e, portanto, como matérias de competência da

Justiça Eleitoral.

Os direitos políticos de participação, objeto do Direito Eleitoral, ou seja, os

direitos eleitorais, podem ser conceituados como direitos da cidadania que garantem a

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autonomia pública dos cidadãos, e por extensão, a soberania popular e o devido processo

eleitoral, pois referem-se exatamente às escolhas legitimas que irão governar os ciclos

eleitorais, às escolhas que irão determinar a participação legitima de todos os interessados nas

diversas fases do ciclo eleitoral e na escolha legítima de representantes políticos.

E estes direitos políticos de participação, os direitos eleitorais, apresentam

natureza jurídica de direitos fundamentais da democracia, enquanto um dos alicerces do

sistema de direitos, ao lado dos direitos fundamentais de autonomia. Esta classificação é

essencial, como veremos à diante.

1.3.2 Sujeitos da democracia

A soberania popular, na democracia procedimental, é concebida sob a ótica de

uma filosofia pós-metafísica, que transfere para a linguagem o seu paradigma, permitindo a

construção de uma soberania a partir de formas de comunicação sem sujeito. Aqui, o sistema

político não é considerado como topo ou como centro da sociedade, mas sim como um

sistema de ação ao lado de outros sistemas.

A formação democrática da vontade funciona como procedimento através do qual

ocorre a racionalização discursiva das decisões de cidadãos que se autogovernam, mediante a

programação e controle do poder político. A política deliberativa passa a depender

diretamente da institucionalização dos procedimentos necessários ao processo de

entendimento mútuo.

Neste modelo, a perspectiva horizontalizada do procedimento democrático liga-se

ao conjunto de cidadãos enquanto autores e destinatários do sistema de direitos ao qual

encontram-se submetidos.

Através da institucionalização do poder político na forma de Estado, configurado

como poder político de organização, de sanção e de execução, como resultado da

verticalização das formas de comunicação, transfere-se a autonomia política para foros e

espaços dialógicos.

A base da soberania popular descola-se do indivíduo, transferindo-se para uma

complexa rede de comunicação com procedimentos especificamente determinados,

garantindo-se assim o caráter radicalmente democrático do modelo normativo procedimental.

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O descolamento da soberania popular de sua base original, o indivíduo, transfere

também a titularidade da democracia para esta complexa rede de comunicação, tornado

indeterminado o sujeito dessa relação. Os direitos políticos de participação passam a ser

exercidos também através do poder comunicativo, tornando-se transindividuais, para

coordenarem-se a partir de foros e espaços dialógicos de sujeito indeterminado, transferindo-

se para a coletividade. Coletividade aqui compreendida como sujeito indeterminado resultante

dos espaços dialógicos construídos a partir da associação de cidadãos livres e iguais, reunidos

para deliberar a respeito de sua convivência, como resultado do pacto constitucional de matriz

democrático-deliberativa. Além do cidadão, a coletividade, no exercício do poder

comunicativo, também se legitima como sujeito da democracia.

As consequências dessa premissa são diversas, visto que compreender a

coletividade como sujeito da democracia, implica em reconhecer o impacto desta titularidade

em face dos diversos direitos fundamentais. Aqui, especificamente, interessa os efeitos em

face dos direitos políticos de participação, objeto do Direito Eleitoral, os direitos eleitorais.

Se os direitos eleitorais, nesta nova abordagem, podem ser legitimamente

exercidos tanto pelo cidadão quanto pela coletividade, em suas diversas formas de

manifestação, resta evidente o quanto é insuficiente a compreensão do cidadão, enquanto

indivíduo portador de título de eleitor, como sujeito exclusivo democracia.

Uma abordagem inadequada da cidadania, e, portanto, da titularidade dos direitos

políticos, enseja a limitação inconstitucional do exercício dos direitos políticos.

Todos os indivíduos e a coletividade, independente da qualificação para o

exercício direto dos direitos políticos de participação, são cidadãos sujeitos aos efeitos deste

exercício pelos demais atores do processo político. Todos os cidadãos, aqui compreendidas as

crianças, os idosos, os conscritos, os presos, os analfabetos, ou seja, inclusive aqueles

cidadãos com direitos políticos limitados, suspensos ou cassado, sujeitam-se aos efeitos do

processo eleitoral (entre estes a propaganda irregular, a poluição visual, o abuso do poder

político, o abuso do poder econômico, etc...) e às decisões dos políticos eleitos, demonstrando

que há uma esfera dos direitos da cidadania que permanece intacta, os direitos políticos de

autonomia, apesar de restrições aos direitos políticos de participação. Tais cidadãos

permanecem destinatários do direito produzido.

A título de exemplo, a citação de algumas situações pode demonstrar restrições

inconstitucionais de direitos políticos de autonomia como resultado de uma abordagem

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equivocada e limitada dos direitos políticos: a impossibilidade de conceder título de eleitor ao

cidadão que está em liberdade condicional impede que este exerça outros direitos visto que

não pode tirar documento de identidade, não pode cadastrar-se no cadastro de pessoa física

(CPF), o que limita claramente sua autonomia privada. O cidadão nesta condição, não tem

acesso a documentos, ou ao ensino público ou a empregos regulares.

A coletividade, enquanto autora e destinatária do sistema jurídico, também é

afetada pelo processo eleitoral e pelas decisões tomadas por políticos eleitos. Há direitos

políticos, dos quais a coletividade é titular, que apenas podem ser reconhecidos e protegidos

em sua dimensão transindividual, perdendo sua essência em face de uma abordagem

meramente individual.

Assim, o direito à livre participação no processo eleitoral é cerceado quando uma

comunidade inteira encontra-se ao arbítrio da ação de quadrilhas envolvidas com tráfico de

drogas; ou quando a prefeitura condiciona a concessão de licença para circular transporte

coletivo à afixação de propaganda eleitoral, da prefeita da cidade, em veículos particulares,

submetendo o grupo de proprietários de vans à exigência abusiva e a comunidade daquela

circunscrição à propaganda irregular; ainda é possível citar como exemplo, o político que

utiliza material escolar e estabelecimento de ensino da rede pública de educação para realizar

campanha política, como se fosse o promotor do evento, expondo alunos e pais a

circunstâncias constrangedoras de abuso de poder político; ou quando centros sociais

deliberadamente protagonizam políticas públicas em substituição à ação do Estado com

objetivos claramente eleitorais em acordo com ocupantes de cargos públicos.

A ausência do devido reconhecimento dos sujeitos da democracia neste novo

contexto não só impede o exercício pleno dos direitos políticos, como impede o

reconhecimento de eventuais abusos praticados por candidatos, partidos, parlamentares e até

da sociedade civil organizada no processo político.

O reconhecimento e a legitimação das diversas formas de circulação do poder

político são essenciais para ajustá-las às regras e procedimentos democráticos. Apenas a partir

deste mapeamento, é que se torna possível estabelecer as regras do jogo, identificar e coibir

eventuais abusos. O reconhecimento de cidadãos, candidatos, partidos políticos, entidades

representantes da sociedade civil, Ministério Público e da Justiça Eleitoral como agentes

legitimados para defesa e proteção dos direitos eleitorais é essencial.

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1.4. Uma análise discursiva da Justiça Eleitoral

A opção política realizada pelo poder constituinte brasileiro, com a promulgação

da Constituição da República em 1988, buscou superar o modelo liberal, consagrando em seu

artigo primeiro a República Federativa do Brasil como Estado Democrático Social de Direito.

O novo modelo implantado pela Carta Magna demanda redimensionamento de

papéis, conceitos e instituições, notadamente da jurisdição eleitoral e da sociedade civil

organizada para realizar o princípio democrático.

Não obstante, a Constituição da República de 1988 preconize um novo modelo de

Estado e, portanto, um novo modelo para as relações democráticas, os direitos políticos

relativos à cidadania não foram devidamente explicitados e sistematizados pelo texto

constitucional. Tampouco avançou a legislação eleitoral no redimensionamento necessário e

suficiente de suas atribuições e dos direitos eleitorais.

Embora tenham sido publicadas diversas leis em matéria eleitoral, não houve

movimento necessário e suficiente para implementação e regulamentação de processo

eleitoral compatível com a nova abordagem de Estado, permanecendo o Código Eleitoral de

1965 ainda em vigor como a norma jurídica que regulamenta a competência constitucional da

Justiça Eleitoral.

A lei complementar responsável por determinar a competência da Justiça Eleitoral

permanece prescrevendo que incumbe a esta a tarefa de assegurar a organização e o exercício

dos direitos políticos, precipuamente os de votar e ser votado.

Quando se busca compatibilizar um modelo de Estado Democrático e Social de

Direito com premissas do Estado Liberal do século XVIII e XIX, é compreensível que

dissonâncias venham a ocorrer. A tentativa de aliar uma cidadania concebida sob a

perspectiva liberal, em virtude de inércia/omissão legislativa, a uma sociedade múltipla e

complexa bem diferente das sociedades dos séculos passados, resulta em um exercício de

cidadania caracterizado por momentos de participação em épocas de eleição e por uma

aparente apatia nos períodos compreendidos entre as mudanças de mandatos, no que se refere

a assuntos políticos, uma vez que o clamor social encontra-se represado pela inexistência dos

canais necessários para sua legitimação.

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53

Uma mentalidade política construída com fundamento na abordagem liberal

também colabora para justificar uma legislação eleitoral infraconstitucional que legitima,

apenas a participação do Ministério Público, partidos e candidatos no processo eleitoral. Fato

que reforça a idéia de uma abordagem inadequada da relação cidadão/Estado/sociedade, uma

vez que a parte interessada, cidadão e coletividade, permanece sendo convocada apenas para

validar disputas de poder.

A abordagem liberal dos direitos políticos também contribui para explicar porque

decisões em matéria eleitoral tem seu foco majoritariamente voltado apenas para os direitos

eleitorais enquanto direitos subjetivos, como direitos de defesa, sem o debate adequado a

respeito destas questões pela ótica objetiva dos direitos. Também é perceptível que o foco

dos direitos políticos em geral, e dos direitos eleitorais em especial, na forma como é

abordado pela doutrina e pela jurisprudência, volta-se para os direitos políticos enquanto

direitos individuais, sem o reconhecimento tão necessário da esfera coletiva e de seu aspecto

transindividual.

O reconhecimento da multidimensionalidade dos direitos políticos, e dos direitos

eleitorais, levaria a debates importantes quanto aos limites constitucionais do exercício do

poder político, viabilizando a reconfiguração do exercício dos direitos e dos poderes políticos

do Estado, sob a nova perspectiva do Estado Democrático de Direito.

Como dito anteriormente, a abordagem fragmentada e limitada dos direitos

políticos contribui para as práticas de corrupção da política brasileira, visto que, em tese, o

indivíduo que se candidata à uma função pública não tem qualquer responsabilidade para com

a sociedade civil, visto que, desde que seus direitos subjetivos estejam resguardados e a sua

atuação esteja validada por eleições, não há qualquer outra limitação no modelo liberal de

democracia que impeça sua atuação como ocupante de cargo público voltado para interesses

privados se este estiver em conformidade com parâmetros legais formais. Para esta linha de

interpretação, as regras do jogo democrático contemplam apenas conteúdo relativo à disputa

pelo poder, não sendo capaz de prescrever limites e direcionamento para a atuação dos

poderes políticos do Estado e para a sociedade civil organizada.

Outro ponto a merecer destaque imediato é o texto do parágrafo único, do artigo

primeiro do Código Eleitoral: a atribuição de poder regulamentar à Justiça Eleitoral.

A análise do processo eleitoral e das Resoluções e Instruções expedidas pela

Justiça Eleitoral demonstram que as normas expedidas por esta justiça especializada muitas

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54

vezes ultrapassam o tradicional limite da regulamentação, para legislar a respeito de assuntos

do processo eleitoral. E na maior para das vezes com o assentimento geral e aquiescência do

Supremo Tribunal Federal.

Por outro lado, resta indubitável que muitos dos avanços implementados no

processo eleitoral, desde a implantação da Constituição de 1988, resultaram do exercício deste

poder pela Justiça Eleitoral, ao expedir resoluções e instruções normativas a cada eleição, que

resultaram em posterior alteração na legislação eleitoral.

A produção parlamentar relativa à matéria eleitoral, em geral, tem “reagido” ao

trabalho realizado pela Justiça Eleitoral, seja no exercício do poder regulamentar, seja a partir

da interpretação e aplicação da legislação eleitoral. Muitas vezes o poder legislativo agiu, a

posteriori, para reconfigurar ou limitar abordagem dos direitos políticos consagrada por

interpretação realizada pela Justiça Eleitoral e pelo Supremo Tribunal Federal.

A título de exemplo, podem ser citadas as resoluções editadas para regulamentar a

verticalização das coligações, para estabelecer o número de cadeiras ocupadas por prefeitos,

ou ainda as regras da fidelidade partidária; matérias tratadas em resoluções da Justiça

Eleitoral, que em data posterior foram regulamentadas através de lei específica.

Em virtude de omissão legislativa, a atividade parlamentar também se viu

compelida a votar matérias que chegaram ao congresso através de leis de iniciativa popular.

Dois casos são emblemáticos: a criação do artigo 41-A, da Lei 9.504/1997, que aborda

condutas vedadas para captação de sufrágio, acrescentado pela Lei 9840/99; e a lei de

iniciativa popular enviada ao Congresso para criar regras relativas à moralidade eleitoral para

o exercício do mandato, Lei Complementar 135 de 04 de junho de 2010. Estas leis indicam

claramente a existência de uma sociedade civil organizada capaz de mobilização para

legitimação do processo político e uma classe política ainda refém de uma cultura

democrática ultrapassada.

Mas, é preciso retornar à questão: qual deveria ser o parâmetro democrático para

o exercício legítimo do poder regulamentar? Que limites este deve respeitar?

Deve ser ressaltado que as diversas ponderações realizadas até aqui se baseiam na

premissa de uma abordagem fragmentada e insuficiente dos direitos políticos e dos direitos

eleitorais, ou, em outras palavras, na ausência de uma sistematização necessária e suficiente

de tais direitos em face da nova concepção de Estado em contexto de profundas diferenças e

múltiplas demandas sociais.

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55

Mas esta premissa sozinha não é suficiente para justificar os problemas para

interpretação, aplicação e efetivação dos direitos políticos. Há, ainda, um outro complicador

bastante relevante: este refere-se à legitimação da atuação da Justiça Eleitoral enquanto poder

político estatal.

O mesmo poder político estatal, em princípio órgão jurisdicional, no exercício das

suas atribuições, acumula as três principais funções típicas do Estado: exercita a jurisdição

em matéria eleitoral, administra o processo eleitoral em todas as suas fases e expede

resoluções com força de lei em matéria eleitoral. O mesmo poder que expede normas,

administra e regula o processo eleitoral, acumula a tarefa de fiscalizá-lo administrativa e

judicialmente.

Para enfrentar os problemas relativos à interpretação, aplicação e efetivação dos

direitos políticos de participação, assim como os problemas relativos à legitimação da atuação

da Justiça Eleitoral, torna-se necessário recorrer, mais uma vez, a uma teoria da democracia

que aponte caminhos para a construção de uma cidadania compatível com o Estado

Democrático de Direito.

A teoria procedimental da democracia, conforme explicitado neste capítulo,

constrói seus pressupostos a partir do reconhecimento das diferentes formas de comunicação

que compõem a formação da vontade comum. Habermas demonstra que cada forma de

comunicação se encontra ligada a processos de auto-entendimento específicos e

institucionalizados a partir de diferentes papéis. Da mesma forma que a pessoa humana

assume simultaneamente o papel de indivíduo e cidadão, também as funções da legislação,

da justiça e da administração são diferenciadas a partir dos potenciais de argumentação e das

formas de comunicação correspondentes (HABERMAS, 2003a, p.232).

Conforme mencionado anteriormente, Habermas analisa a lógica da divisão de

poderes do Estado a partir da perspectiva da teoria do discurso. À administração, responsável

pela implementação de políticas públicas definidas pelo poder legislativo, é vedada a

utilização de argumentos normativos que contenham resoluções de caráter legislativo ou de

decisões judiciais. Os argumentos normativos resultam das formas de comunicação através

das quais o legislativo e a jurisprudência fundamentam e aplicam normas. As leis

transformam o poder comunicativo em administrativo, como resultado de acordos realizados a

partir do procedimento democrático (HABERMAS, 2003a, p.238).

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56

Enfim, a estrutura do modelo procedimental de democracia tem por fundamento o

reconhecimento das diversas teias de comunicação inerentes à sociedade assim como o

reconhecimento da institucionalização dos diversos espaços de interlocução, o que confere ao

modelo procedimental caráter radicalmente democrático por atribuir aos cidadãos a

responsabilidade pelo processo político, através da garantia das condições de comunicação e

de procedimentos que legitimem a formação da opinião e da vontade.16

Na medida em que a Justiça Eleitoral desempenha as funções administrativa,

jurisdicional e legislativa, de que forma deveria se dar a legitimação de sua atuação?

Em tese, o mesmo poder estatal não poderia dispor, ao mesmo tempo, dos

diferentes tipos de argumentos e da subordinação de formas de comunicação correspondentes.

A utilização do poder administrativo, legislativo e judicial, simultaneamente, pela Justiça

Eleitoral, somente estaria devidamente legitimada se fosse possível a institucionalização dos

discursos correspondentes à cada função, se fossem criados os processos de fundamentação

para aceitabilidade racional da legislação e da jurisprudência. De outra forma, os pressupostos

comunicativos para argumentos normativos de fundamentação e aplicação restariam não

atendidos (HABERMAS, 2003a, p. 217).

Enquanto Justiça Eleitoral no desempenho de sua atribuição típica de jurisdição, é

possível compreender que esta função se encontra parcialmente legitimada através da

jurisprudência produzida pelos tribunais eleitorais, pelo uso de argumento normativos de

aplicação. Diz-se parcialmente porque o cidadão e a sociedade civil organizada não possuem

legitimidade ativa expressa para participar amplamente deste espaço de interlocução. As

ações típicas da Justiça Eleitoral atribuem legitimidade ativa apenas aos candidatos, aos

partidos e ao Ministério Público. Portanto, o espaço dialógico para o exercício do poder

comunicativo não se encontra amplamente garantido. Principalmente se pensarmos que as

16 Nas palavras de Habermas (2003ª, p.239): “do ponto de vista da lógica da argumentação, a separação entre as competências de instâncias que fazem as leis, que as aplicam e que as executam, resulta da distribuição das possibilidades de lançar mão de deferentes tipos de argumentos e da subordinação de formas de comunicação correspondentes, que estabelecem o modo de tratar esses argumentos. Somente o legislador político tem o poder ilimitado de lançar mão de argumentos normativos e pragmáticos, inclusive os constituídos através de negociações equitativas, isso, porém, no quadro de um procedimento democrático amarrado à perspectiva da fundamentação de normas. A justiça não pode dispor arbitrariamente dos argumentos enfeixados nas normas legais; os mesmos argumentos, porém, desempenham um papel diferente, quando são aplicados num discurso jurídico de aplicação que se apóia em decisões consistentes e na visão da coerência do sistema jurídico em seu todo. A administração não constrói nem reconstrói argumentos normativos, ao contrário do que ocorre com o legislativo e a jurisdição. As normas sugeridas amarram a persecução de fins coletivos a premissas estabelecidas e limitam a atividade administrativa no horizonte da racionalidade pragmática. Elas autorizam as autoridades a escolher tecnologias e estratégias de ação, com a ressalva de que não sigam interesse ou preferências próprias – como é o caso de sujeitos de direito. ”

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ações típicas eleitorais apresentam estrutura de processo coletivo, produzindo efeitos erga-

omnes.

Quanto à tarefa de administrar o processo eleitoral,17 caberia a esta Justiça

especializada, em tese, apenas optar entre tecnologias e estratégias para a implementação das

políticas públicas definidas pelo legislador.

No que se refere à administração do processo eleitoral, a Justiça Eleitoral já

avançou bastante quanto à implementação das condições e procedimentos que garantem o

processo dialógico de interlocução.

Atualmente, com o processamento eletrônico das eleições, através da votação

realizada via urna eletrônica, o enorme problema ligado à legitimidade das eleições no que se

refere às fraudes realizadas durante o processo de votação e a apuração dos votos, foi bastante

mitigado. Nesta hipótese, é possível afirmar que as condições atingidas pelo processo político

brasileiro em termos de meios de manifestação equitativa da vontade, no que se refere à

votação, aproximam-se cada vez mais das situações ideais de fala previstas por Habermas. A

Justiça Eleitoral realiza um trabalho belíssimo e vanguardista, levando a uma maioria

significativa de eleitores brasileiros a possibilidade efetiva de realizar seu direito ao voto.

Note-se que o fator preponderante e responsável por legitimar esta fase é a

participação do cidadão. As Seções Eleitorais nos dias de Eleição são compostas por cidadãos

recrutados junto à sociedade civil, que em tais dias prestam enorme serviço à democracia,

colaborando para o pleno sucesso dessa fase do processo eleitoral. Os prédios cedidos para

alocação das seções eleitorais são prédios cedidos pelo próprio poder público ou por

representantes da sociedade civil, como por exemplo, escolas e clubes. É possível notar

claramente que, onde o cidadão e a sociedade civil participam, onde há acordo para formação

do processo de interlocução entre Estado, Sociedade Civil e cidadãos, o processo político

encontra-se plenamente legitimado.

No entanto, a função administrativa atribuída à Justiça Eleitoral, nas demais fases

do processo eleitoral ainda se encontra bastante distantes da garantia de um espaço de

interlocução que assegure a todos os interessados as condições procedimentais necessárias e

suficientes para proporcionar o diálogo democrático. O processo eleitoral continua ainda

submetido ao arbítrio do abuso do poder econômico e do abuso do poder político em ampla

17 Para compreensão mais detalhada do processo eleitoral ver: RAMAYANA, 2012; CERQUEIRA, 2006; CÂNDIDO, 2010; COSTA, 2009; TORQUATO, 1998; TEIXEIRA, 2003.

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escala, sem que haja mecanismos eficientes suficientemente estabelecidos para combatê-los,

contribuindo de forma decisiva para este quadro a ausência de clareza quanto às atribuições

da Justiça Eleitoral. 18

Aqui apresenta-se outra questão relativa à função administrativa exercida pela

Justiça Eleitoral: em tese, a administração responsável pelas escolhas políticas voltadas para

implementação do processo eleitoral deveria ter sua ação limitada pelos direitos subjetivos

dos indivíduos/cidadão, pelos direitos subjetivos da coletividade, o que seria controlado pelo

poder legislativo e pelo poder judiciário, nas arenas discursivas específicas. No entanto, se

tais escolhas políticas forem realizadas pela própria Justiça Eleitoral, no uso de seu poder

regulamentar, e forem controladas pela própria jurisdição eleitoral, a quem estaria atribuída a

tarefa de resguardar os direitos políticos dos excessos da própria Justiça Eleitoral?

Quanto à função normativa desempenhada pela Justiça Eleitoral, o exercício de

seu poder regulamentar tem se estendido para além da tarefa de detalhar a legislação eleitoral,

ultrapassando a fronteira de poder administrativo, para estabelecer procedimentos e escolhas

políticas que resultam na tarefa típica do poder legislativo de interpretar e configurar os

direitos políticos.

Ainda quanto ao exercício do poder normativo, também não se encontra

claramente expresso no sistema jurídico brasileiro procedimentos que garantam a legitimação

desta atuação. A Justiça Eleitoral, em tese, não poderia “dispor arbitrariamente dos

18 Diversos outros problemas se apresentam quando se pensa de forma mais ampla no processo eleitoral. Pode-se citar alguns exemplos: a pressão exercida junto à comunidades carentes para venda de votos, através de coação por grupos especializados, ou através da prestação de serviços por centros sociais de candidatos, ou ainda pela troca de bens ou dinheiro oferecidos por cabos eleitorais; o cadastramento com declaração falsa de residência por eleitores que receberam “incentivos” para alistamento conforme o interesse do candidato; e por fim a ausência de legitimação do cidadão e da coletividade para acionar a Justiça Eleitoral de forma direta quanto aos atos lesivos ou ilícitos praticados nesta fase, entre diversos outros problemas. Os problemas também se avolumam visto que a legislação não é clara ou é falha quanto a vários pontos como por exemplo: a ausência de uma definição clara do que se considera “apresentação da prestação de contas” pelos candidatos para efeitos de diplomação e de quitação eleitoral; o prazo para diplomação do suplente e o respectivo prazo para avaliação de problemas em sua prestação de contas; a comprovação do abuso de poder político ou econômico em virtude da dificuldade de levantamento das provas; o prazo exíguo para ajuizamento das ações típicas da justiça eleitoral; a utilização de termos de baixa densidade jurídica pela legislação eleitoral, como por exemplo os utilizados para especificar abuso do poder econômico, abuso do poder político, moralidade eleitoral para o exercício do cargo, entre outros; a ausência da legitimação dos cidadãos e da coletividade para impugnar atos ilegítimos do processo eleitoral. Estas situações geram enormes interferências e distorções nas condições de comunicação e, portanto, no processo de formação da opinião e da vontade, retirando desse espaço de interlocução uma boa parte de sua legitimidade. Não está definitivamente garantida a qualquer cidadão o exercício pleno de sua autonomia política, visto que não está garantido a todos os direitos fundamentais à participação, em igualdade de condições, no processo de formação da opinião e da vontade. Quanto a este ponto, a adequada identificação e reconhecimento das atividades da Justiça Eleitoral ainda precisa avançar muito para que sejam atendidas as exigentes condições de comunicação adequadas ao processo democrático.

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argumentos enfeixados nas normas legais” (HABERMAS, 2003a, p. 239), por não se utilizar

das formas de comunicação e potenciais de argumentos que legitimam o processo legislativo

se esta funcionasse apenas como órgão do Poder Judiciário. Mas como esta possui

competências mais amplas bastante significativas, esta restrição não pode ser simplesmente

aplicada sem a devida análise a respeito da natureza da atuação da Justiça Eleitoral.

O poder regulamentar da Justiça Eleitoral encontra-se amparado no artigo 1º,

parágrafo único, do Código Eleitoral de 1965, e reiterado nos artigos 61 da Lei 9.096/95 e no

artigo 105 da Lei 9.504/97, publicadas posteriormente à Constituição de 1988.

Interessante notar que a CFRB/88 atribui poder regulamentar amplo à Justiça

Eleitoral no ADCT para regulamentar as primeiras eleições após a constituição de 1988. Em

tese, quer parecer, que a legislação complementar posterior deveria ser produzida para

estipular as competências e a as regras para condução do processo eleitoral, ou seja, deveria

ter especificado e detalhado essa competência. O Ministro Gilmar Mendes questiona se, por

mutação constitucional, este poder não poderia ser visto como poder implícito atribuído à

Justiça Eleitoral.19 O Ministro Dias Tofolli entende que a Justiça Eleitoral funciona nos

moldes das agências reguladoras, não tendo esta sido constituída sob esta natureza jurídica

por tratar-se de figura jurídica ainda não consolidada à época de sua criação (Ata da 2ª

Reunião Ordinária realizada em 25 de abril de 2013, do Grupo de Trabalho para Análise,

Estudo e Formulação de Proposições relacionadas à Lei Eleitoral).

O exercício teórico, aqui realizado, de analisar os direitos políticos enquanto

direitos fundamentais, a partir das premissas do modelo normativo de democracia

procedimental, demonstra que a proposta de uma nova abordagem a partir do modelo

apresentado por Habermas é compatível com o ordenamento jurídico brasileiro.

O que fica evidenciado, no entanto, é a completa incompatibilidade de alguns

aspectos da legislação infra-constitucional com um processo político eleitoral que se pretenda

democrático, a partir das premissas de uma teoria da política e da democracia constituída em

tempos de pós-metafísica, em tempos de filosofia da linguagem.

Para redesenhar o processo político eleitoral brasileiro a fim de torná-lo legítimo,

no sentido de um modelo procedimental de democracia, torna-se necessária a

institucionalização das formas de comunicação e procedimentos correspondentes para o

19 Palestra proferida por Gilmar Mendes no plenário do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, em 30/08/2008.

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exercício da autonomia política e privada de cidadãos que se pretendam autores e

destinatários de sua própria legislação. Torna-se necessário o reconhecimento efetivo dos

discursos jurídicos disponíveis para utilização da Justiça Eleitoral. Essa análise, sob a

perspectiva procedimental, permite reconhecer que a Justiça Eleitoral agrega funções para

além das típicas funções jurisdicionais.

Sob essa perspectiva, é necessário que a legislação eleitoral seja atualizada, a

partir das formas de comunicação e potenciais de argumentos correspondentes aos diversos

poderes políticos institucionalizados na forma de Estado, para criar formas de comunicação e

espaços de interlocução legítimos para a implementação do processo eleitoral.

1.5 A crise do Estado de Direito, democracia deliberativa e autoridades reguladoras

O aprofundamento da complexidade e a radicalização das diferenças nas

sociedades contemporâneas ao longo do século XX transformou os laços de convivência e a

forma como se constrói a coesão social. Esse longo caminhar transformou também a

configuração dos direitos subjetivos, reforçou a dimensão objetiva do sistema jurídico, e

orientou-se no sentido segundo o qual os beneficiários do direito já não mais se contentam em

ser apenas destinatários de normas, tornando-se imperativa a demanda por um espaço comum

para interpretação dos critérios que poderiam levar à superação das desigualdades de fato

através de um horizonte de garantia da igualdade jurídica (HABERMAS, 2003b, p. 171).

As mudanças paradigmáticas do Estado Liberal, passando pelo Estado Social e a

seguir para o Estado Democrático de Direito, atuaram também em nível abstrato mais

profundo nas correspondentes exigências de transformação do direito enquanto

metalinguagem para a organização social.

As exigências para legitimação da convivência democrática, por consequência,

também se alteraram e se tornaram mais profundas com impacto direto na divisão de poderes

do Estado de Direito: “com o crescimento e a mudança qualitativa das tarefas do Estado,

modifica-se a necessidade de legitimação; quanto mais o direito é tomado como meio de

regulação política e de estruturação social, tanto maior é o peso da legitimação a ser carregado

pela gênese democrática do direito” (HABERMAS, 2003b, p. 171).

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A permanente tensão entre direito, enquanto meio de regulação social, e a política,

enquanto arena legítima de disputa de interesses, também se modifica mas precisa ser

preservada, a fim de que o direito possa permanecer funcionando como meio de integração

social, como meio de transformação de poder político em poder comunicativo. O direito não

pode estar à livre disposição da política sob pena de desvincular-se de sua função social

integradora, atingindo o cerne do processo democrático de estruturação política autônoma do

sistema de direitos.

A divisão de poderes na democracia deliberativa, como visto, apresenta sentido

distinto do conceito tradicional uma vez que se ampara na diferenciação de discursos que

permitem a gênese democrática do direito e na consequente possibilidade de avaliação das

políticas criadas sob a perspectiva normativa. Se as condições democráticas de criação do

direito e de políticas não são observadas, a circulação de poder político legítimo é diretamente

afetada, colocando em risco os meios para alcance da integração social.20

Se na clássica tripartição de poderes o Estado de Direito ampara-se nas premissas

de separação funcional/institucional e de independência entre poderes Legislativo, Executivo

e Judiciário, na perspectiva da democracia deliberativa o Estado de Direito ampara-se nos

seguintes princípios: soberania popular, enquanto elo de ligação entre Estado de Direito e

sistema de direitos; ampla proteção jurídica à esfera de autonomia do indivíduo, através da

atuação independente do Poder Judiciário; princípio da legalidade como exigência

fundamental de legitimidade para atuação da administração pública, ou seja, estrita

subordinação do poder administrativo ao poder comunicativo; separação entre Estado e

sociedade, de forma que o princípio de responsabilização democrática – accountability21 –

seja assegurado (ROCHA, 2008, p.177-183). Nesse sentido, a separação de poderes pode ser

concebida como a institucionalização dos procedimentos que fornecem à uma sociedade

complexa instrumentos para programar adequadamente, através do poder comunicativo, o

20 Como explica Rocha (2008, p.177-182), a clássica concepção de separação de poderes, atribuída à Montesquieu, ampara-se em duas premissas essenciais: cada uma das funções estatais do Estado – legislativa, administrativa e jurisdicional – deve ser exercida por uma autoridade especializada e tais entes são independentes entre si. Essa tradicional formulação teórica sofreu flexibilização ao longo do tempo assumindo- se que os poderes de Estado realizam funções típicas e atípicas, sendo amplamente discutida por diversos autores à medida que esta se afasta cada vez mais da realidade social contemporânea. Por outro lado, a separação de poderes na perspectiva da teoria do discurso afasta-se da concepção clássica ao buscar ir além da separação funcional de poderes e introduzir a diferenciação entre discursos de fundamentação de normas e de aplicação de normas, que se vinculam a um direito produzido comunicativamente.21 Enquanto forma de controle social.

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poder administrativo que ao lado do dinheiro, funciona como fonte de integração social

(ROCHA, 2008, p.183).

A separação de poderes, na verdade, sob perspectiva teórica abstrata, relaciona-se

mais com a disposição sobre diferentes tipos de argumentos e da subordinação de formas de

comunicação correspondentes – como estes são distribuídos - do que propriamente com a

separação funcional de poderes entre órgãos específicos. Em outras palavras, a disposição dos

diferentes tipos de argumentos e suas respectivas formas de comunicação, ou seja, a

materialização do direito através da possibilidade de elaborar discursos de fundamentação de

normas e de elaborar discursos de aplicação de normas, com suas correspondentes formas de

comunicação e legitimação, é que de fato diferenciam instituições. A democracia

deliberativa, nesse sentido, abre diversas outras possiblidades para criação de direito legitimo

através de instituições distintas das previstas na clássica tripartição de poderes, na medida em

que suas exigências se voltam para estruturas e procedimentos de legitimação, não ficando

aprisionada às instituições clássicas do Estado Liberal.22

A multiplicação de tarefas do Estado e a maior demanda por prestações coloca em

risco a estrutura democrática na medida em que critérios de eficiência e de sobrevivência

política de partidos e programas passam a competir com os requisitos de criação do direito

legítimo, exercendo pressão para que o direito seja instrumentalizado para fins políticos,

estratégicos, e para uma administração voltada exclusivamente para problemas de integração

funcional (HABERMAS, 2003b, p. 177 e ss).

A proliferação de políticas públicas para fazer face às diversas demandas sociais e

a criação inevitável de múltiplos centros de tutela de interesses especializados, aliados à

velocidade e complexidade das relações sociais contemporâneas, obrigam à revisão da

tradicional repartição de poderes entre seus clássicos representantes e apresentam reais

possibilidades de enfraquecimento do efeito impositivo da lei originada pelo tradicional

processo legislativo.

Nesse sentido, se por um lado, as instancias administrativas passam a ser cada vez

mais autônomas na busca por eficiência e na instrumentalização de direitos para alcançar fins

22 Nesse sentido, explica Rocha (2008, p.183): “o importante é que este exercício de “imaginação institucional e experimentação cuidadosa” seja orientado normativamente por uma visão do Estado e do direito baseada em princípios de acordo com os quais o direito legitimo nasce do poder comunicativo e este é convertido em poder administrativo por meio do direito produzido pelo Estado. Em outras palavras, o direito não pode ser somente o código de poder de acordo com o qual funciona o processo administrativo. Ele deve ser também o médium que transforma o poder comunicativo em poder administrativo. ”

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coletivos, por outro cria-se o risco cada vez maior de afastamento dos requisitos que lhes

garante atuação legitima, visto que tais instâncias administrativas não são capazes de, por si

só, construírem parâmetros para elaboração das necessidades sociais e para escolha adequada

de fins, se a estas não forem atribuídos os meios para legitimar tal atuação, ou seja, se não

forem institucionalizados os procedimentos correspondentes para formulação de direito

legítimo e democrático.

No paradigma Liberal de Estado a ordem jurídica geral e abstrata era construída

através de conceitos jurídicos determinados e por consequências jurídicas claramente

definidas a priori, visto que seu objetivo era preservar o espaço da autonomia individual em

face do aparelho estatal, sendo sua principal tarefa garantir a ordem. Nesse contexto, a

clássica tripartição de poderes fazia sentido e, mesmo que jamais tenha sido estritamente

obedecida, não causou maiores questionamentos. No entanto, com o advento do Estado Social

e do Estado Democrático de Direito, a administração assumiu amplas tarefas de estruturação e

de regulação política, sendo este o momento de inflexão no qual o processo legislativo

clássico começou a perder sua capacidade de programar a administração como

tradicionalmente o fazia (HABERMAS, 2003b, p.174).

A velha forma reativa e intervencionista de administração estatal cede espaço para

uma nova e moderna administração planejadora, preocupada com infraestrutura e prevenção

de riscos, prestadora de serviços, que assume cada vez mais atividades de regulação política

em sentido amplo, interferindo em espaços diferenciados da clássica relação cidadão-Estado,

avançando sobre as relações sociais entre sujeitos e sociedade civil (HABERMAS, 2003b,

p.174).

A emergência e multiplicação de normas com cláusulas gerais e conceitos

jurídicos cada vez mais indeterminados é o sintoma mais evidente da transformação das

relações políticas que passam a exigir novas formas de circulação do poder político e novos

meios para tradução deste em conteúdo jurídico, para transmissão das necessidades sociais e

de justificações éticas para o sistema de direitos. A programação da administração estatal,

voltada para a manutenção da ordem, realizada por um direito construído sob premissas

antecipadas, gerais e abstratas, é insuficiente para lidar com o aprofundamento da

complexidade e com a velocidade das demandas sociais, ou seja, com as mudanças

paradigmáticas inauguradas pelo Estado Social e ampliadas pelo Estado Democrático de

Direito.

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A divisão funcional do direito é diretamente atingida pelas modificações das

exigências de regulação social frente às instâncias administrativas estatais, uma vez que a

instância legislativa tradicional perdeu seu poder de adequadamente programá-las em face das

amplas tarefas de regulação e programação social assumidas pela administração

(HABERMAS, 2003b, p.176).

E se a administração assume formas de discurso próprias do poder legislativo sem

a institucionalização dos correspondentes procedimentos de legitimação, o sistema de direitos

é imediatamente enfraquecido visto que seus mecanismos de oxigenação e garantias são

solapados. Sem a definição de procedimentos específicos para legítima criação de normas,

não há parâmetros legítimos para aferição da atuação da administração, sem parâmetros

legítimos para aferição dessa atuação não pode haver controle social ou jurisdicional.

A autoprogramação da administração tende a pautar-se por referenciais de

eficiência e proporcionalidade, bastante distantes de um adequado referencial normativo

neutro produzido e pautado pelo poder comunicativo legitimador. “Políticas que não seguem

as condições da gênese democrática do direito não têm como ser avaliadas do ponto de vista

normativo. Os critérios de legitimidade democrática são perigosamente substituídos por

standards de eficiência” (ROCHA, 2008, p.187).

Se a Administração não institucionaliza procedimentos para adequada circulação

de poder político e portanto para a construção de uma razão procedimentalizada apropriada

para garantir a higidez do sistema de direitos, o Estado se enfraquece pois abre mão de sua

posição e força politicamente diferenciadas, ou seja, de sua soberania e imperatividade, para

se colocar no mesmo nível de outros atores da esfera pública e civil, passando a utilizar-se de

formas comunicacionais ilocucionárias, estratégicas, e portanto desprovidas da legitimação

democrática. O resultado é a instrumentalização da esfera pública para finalidades

estratégicas. Como explica Habermas (2003b, p.180):

“O desengate entre o poder administrativo autônomo e as normas do Estado de direito traz consequências. Uma administração que se programa a si mesma tem que abandonar a neutralidade no trato com normas, prevista no esquema clássico da divisão de poderes. Sob esse aspecto não se observa nenhuma tendência à objetivação. Na medida em que a administração assume as tarefas do legislador político e passa a desenvolver programas próprios, ela tem que decidir por conta própria a questão da fundamentação e da aplicação de normas. Todavia, essas questões clássicas não podem ser decididas sob pontos de vista da eficácia, pois exigem uma abordagem racional de argumentos normativos. Uma administração que trabalha seguindo o estilo cognitivo não possui os pressupostos comunicacionais, nem os procedimentos necessários. ”

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No diagnóstico do autor, o problema de uma administração que se autorregula

sem os correspondes pressupostos de legitimação, relaciona-se muito mais com uma

“insuficiente institucionalização de princípios do Estado de direito do que propriamente com a

sobrecarga de atividades” (HABERMAS, 2003b, p.180) e com as prestações do Estado

contemporâneo. Ressalte-se que Habermas enfatiza a necessidade de uma mudança

paradigmática na forma como se concebe a clássica divisão de poderes, através da proposta de

um paradigma jurídico procedimentalista, de uma nova institucionalização do princípio da

separação de poderes.

Na verdade, o Estado Democrático de Direito regula em nível abstrato

diferenciado o poder para dispor dos diferentes tipos de argumentos, ao exigir que diferentes

discursos e as respectivas formas de comunicação correspondentes aos distintos poderes

estatais sejam institucionalizadas, ao contrário do Estado Liberal que se contentava com a

divisão funcional/institucional do poder. Não se trata de não reconhecer a legitimidade da

atuação de uma administração que se auto programa, mas de apontar que, se o poder

legislativo adota a utilização de direito regulador, ou seja, se atribui à administração ou à

justiça função regulatória, deve criar os meios para compensar legitimamente a ausência de

imperatividade do direito assim formulado (HABERMAS, 2003b, p.182 e 183).

Os discursos de aplicação gerados a partir da função reguladora, para serem

legítimos, necessitam da correspondente complementação dos discursos de fundamentação,

necessitam, portanto, de legitimação suplementar em fóruns para solução de controvérsias

públicas com a participação influente dos envolvidos (HABERMAS, 2003b, p.183).

Há o explicito reconhecimento por Habermas do direito regulador, de entes

autônomos com funções reguladoras e das exigências de legitimação que este impõe a uma

Administração onerada com o ônus de realizar escolhas políticas, escalonar bens e finalidades

e implementar programas de leis abertos que demandam a utilização de argumentos

normativos ou a uma Justiça chamada a preencher espaços normativos deixados em aberto

pelo legislador (HABERMAS, 2003b, p.183). A ênfase, nesta perspectiva recai sobre a

necessidade de se criar e institucionalizar procedimentos suplementares para legitimação das

escolhas políticas e normativas da administração de da justiça.

Isso significa exatamente que autoridades reguladores e autoridades jurisdicionais,

nesse contexto, atuam de forma política, realizando escolhas, abandonando a pretensa

neutralidade a estas atribuídas pela clássica tripartição de poderes. Essa mudança de posição

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na estrutura de circulação de poder político implica necessariamente em novos requisitos de

legitimidade e em nova forma de análise destas instituições no desempenho de suas funções.

Essa nova perspectiva para a separação de poderes reconhece explicitamente que

no Estado contemporânea há a possibilidade real de mobilização de argumentos de

justificação, ou seja, de função quase-legislativa, por juízes e por representantes de

burocracias especializadas, tornando-se imperativo a institucionalização de procedimentos

voltados para suprir o déficit de legitimidade decorrente dessa exigência suplementar de

formas comunicacionais adequadas, a fim de que tais procedimentos sejam transparentes e

passíveis de controle.

Não é, portanto, a moldura institucional que determina a gênese do direito

legitimo, mas sim a garantia das condições procedimentais para sua produção e a legitima

disposição das formas de discurso.23 Para Habermas, os fluxos comunicacionais e as

influências públicas originadas na esfera pública e na sociedade civil, transformados em poder

comunicativo pelos processos democráticos, configuram o substrato social necessário para a

realização do sistema de direitos e para a coesão social.

Fica bastante claro o reconhecimento da função reguladora autônoma como forma

de atuação inevitável do Estado contemporâneo por todas as suas especificidades e

complexidades expostas. Fica evidente ainda que o ponto essencial não se refere a encontrar

novas explicações e fundamentos para manter vigente a separação de poderes em sua

formulação clássica. Como alerta Habermas, a sociedade e o Estado contemporâneo

encontram-se perante uma crise e, por consequência, perante transformações do direito que

atuam sobre seus fundamentos estruturais e abstratos: há de fato uma mudança paradigmática

na forma de funcionamento do processo político e na emergência de novas instituições

estatais com características e pressupostos legitimadores profundamente diferenciados. É

necessário então redobrar a atenção com a exigências suplementares de legitimação que

emergem nesse contexto.

Uma adequada análise das autoridades reguladoras e das cortes constitucionais

demanda, portanto a compreensão dessas profundas mudanças e das exigências suplementares

23 No mesmo sentido, explica Jean Paul Rocha que: “Concebida nesta perspectiva, a separação dos poderes, seja como doutrina, seja como princípio do Estado de direito, permite ao mesmo tempo compreender e criticar os desenhos institucionais e dinâmicas constitucionais concretas a partir dos desafios que se apresentam à democracia contemporânea. Ao formular os critérios para distribuição, pelos Poderes do Estado, dos diferentes tipos de argumentos e suas correspondentes formas de comunicação, a teoria habermasiana nos fornece instrumentos para fazer essa crítica da maquinaria constitucional” (ROCHA, 2008, p. 191).

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de legitimidade que se apresentam. A compreensão do funcionamento da Justiça Eleitoral e a

identificação de parâmetros para aferir a legitimidade de sua atuação também precisa

percorrer o mesmo caminho. Buscar explicações em fundamentos clássicos para a democracia

contemporânea sem aceitar que as transformações institucionais e políticas ocorrem em

dimensão estruturalmente diferenciada, implica em fracasso.

Nesse contexto, as relações que se estabelecem entre eleições, cidadãos,

candidatos, partidos políticos, Ministério Público, Justiça Eleitoral, representantes diversos da

sociedade civil, etc., precisam ser compreendidas através de novas lentes e a apropriação dos

diversos tipos de discurso que caracterizam as interações políticas resultantes precisam ser

identificadas a fim de que os correspondentes procedimentos de legitimação possam ser

institucionalizados.24

Já é possível perceber que, no horizonte da prática democrática contemporânea de

acirrada diferenciação social e de especialização da experiência jurídica, a atuação

compartilhada e influente de todos esses agentes sobre o tema eleições parece funcionar como

um centro de interesse público especializado e diferenciado para produção de razão

procedimentalizada, sobre tema essencial do processo político, o processo eleitoral. Mas esse

núcleo especializado de circulação de poder político, que cuida do processo eleitoral, precisa

ser visto sob nova perspectiva, sob pena de uma abordagem reducionista não dar conta de

toda a complexidade envolvida, com sérias consequências para a legitimação dessa parte

significativa do processo democrático. Afinal, como explica Habermas com referência a U.

Rödel e C. Lefort, no Estado Democrático de Direito o lugar simbólico de uma “soberania

diluída pelo discurso” deve permanecer vazio, e em tempos de mudanças paradigmáticas do

sistema de direitos essa condição tem como pré-requisito a institucionalização de

24 Nesse sentido, alerta Habermas (2003b, p.187) a respeito de problemas gerados no processo político pela mistura de papéis: “A crítica que atualmente se dirige contra a estatização dos partidos políticos visa, em primeiro lugar, a uma pratica que instrumentaliza a concorrência entre os diferentes programas que buscam o assentimento do público de eleitores para fins de recrutamento de pessoas e para a distribuição de cargos. Trata- se de uma diferenciação institucional entre duas funções, que os partidos assumem, apoiados em boas razões. Enquanto catalisadores da opinião pública, eles são chamados a colaborar na formação da vontade política e na educação política (com a finalidade de qualificar os cidadãos para exercer o seu papel); porém, enquanto máquinas de recrutamento, eles fazem seleção de pessoal e enviam grupos de líderes para o sistema político. Essas duas funções se confundiram na medida em que os próprios partidos se transformaram em componentes desse sistema. Pois na perspectiva dos detentores do poder administrativo, os partidos assumem seu poder de participação como se fosse uma função de regulação e consideram a esfera pública política como um ambiente do qual eles extraem a lealdade das massas. ”

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procedimentos que possam suplementar os déficits de legitimidade trazidos pelas mudanças

paradigmáticas no Estado de Direito em sua nova versão contemporânea.

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CAPÍTULO 2

DIFERENTES FORMAS DE LEGITIMIDADE E DIMENSÕES TEMPORAIS DA DEMOCRACIA

A abordagem da democracia deliberativa, nos termos apresentados por Habermas,

fornece parâmetro teórico consistente para a compreensão do sistema político e do sistema de

direitos, demonstrando passo a passo como, através de processos comunicativos e da

linguagem jurídica, as autonomias privada e pública são institucionalizadas, viabilizando

uma prática democrática fundada na razão, na qual cidadãos adotam simultaneamente o papel

de autores e de destinatários das normas de convivência para compartilhamento de um

determinado espaço e tempo histórico comuns.

A abordagem de Habermas com foco na teoria do discurso colabora para a

compreensão da arquitetura da democracia contemporânea no Estado Democrático de Direito,

das fronteiras e fundamentos que delimitam o processo político e legitimam o sistema de

direitos, demonstrando como se forma e se desenvolve o processo democrático. A abordagem

da democracia deliberativa proposta é necessária e bastante significativa, mas ainda é

insuficiente para completar a investigação que se pretende realizar. Embora Habermas faça

um diagnóstico da crise paradigmática que vive o direito e das ameaças que se apresentam em

face do correspondente sistema de direitos, na obra analisada este não se aprofunda em

relação à crise de legitimidade que se abate sobre o Estado contemporâneo como um todo

para apresentar um prognóstico.

Em sua obra Democratic legitimacy: Imparciality, Reflexivity, Proximity, Pierre

Rosanvallon (2011) oferece um outro ponto de vista para compreensão do processo

democrático ao buscar identificar as diferentes formas de legitimidade que fundamentaram e

sustentaram a democracia representativa e suas transformações desde o período pós

revolucionário até o momento presente. Ao adotar uma perspectiva dinâmica de análise,

propõe o autor que a democracia representativa e os fundamentos que a legitimam sejam

compreendidos como processo histórico, como construções que se realizam e se modificam

ao longo do tempo, sob pena de os fenômenos políticos e as novas instituições

contemporâneos não serem adequadamente compreendidos.

Explica o autor que o advento do sufrágio universal e a criação de instituições

para representação político-eleitoral foram o ponto alto do rompimento com o absolutismo no

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caminho para a implantação da experiência democrática, ao longo do século XIX. E este é um

dos principais motivos pelo qual se escolheu agregar seu ponto de vista à presente pesquisa: o

autor constrói seus argumentos com foco nas formas de legitimidade que sustentaram e

sustentam a representação político eleitoral e nas suas transformações ao longo do tempo. Tal

abordagem permite um novo e original olhar para as instituições que participam do processo

eleitoral, ao oferecer a possibilidade de se acrescentar um contraponto bastante interessante

para a democracia deliberativa. A teoria construída por Habermas faz um importante

diagnóstico voltado para o processo político das democracias contemporâneas, mas não

enfatiza as premissas que fundamentaram o sistema representativo-eleitoral, o processo

eleitoral e seu significado como o faz Pierre Rosanvallon.

Nessa linha de análise, explica o autor que, do século XIX até os anos1980, os

grandes temas políticos abordaram questões como, por exemplo, a democracia representativa,

as formas de exercício da democracia direta, a questão da separação de poderes, o papel da

opinião pública, debates a respeito da identificação de direitos humanos e suas

correspondentes garantias, entre outros, sem que houvesse qualquer ruptura ou mudança

significativa nas abordagens realizadas. No entanto, Pierre Rosanvallon (2011, p. 10) ressalta

que muito pouco se falou ou se questionou a respeito das premissas que fundamentaram na

origem o modelo democrático pós Revolução Francesa.

O diagnóstico realizado na obra Democratic Legitimacy busca explicar e oferecer

elementos para a compreensão de como a ideia de legitimidade democrática foi concebida no

período pós revolucionário e como essa se desenvolveu e se transformou até os dias atuais.

Como esclarece o autor, o acirramento e a diferenciação das relações sociais,

aliados `a velocidade do tempo democrático contemporâneo, trouxeram novos desafios para a

democracia e novo arranjo para a correlação e circulação de forças políticas, tornando

imprescindível a reavaliação de tais premissas.

O aparecimento e multiplicação de novas instituições da democracia no Estado

contemporâneo, as autoridades independentes e as cortes constitucionais, nesse contexto,

marcam um longo processo de ruptura com a ordem democrática tradicional e significam a

tentativa de responder a demandas recebidas pela administração pública e de dar respostas

diferenciadas às expectativas sociais (ROSANVALLON, 2011, p.10).

Por não se tratarem de instituições facilmente associadas às formas clássicas de

exercício da política, os cargos políticos eletivos, estas instituições não foram prontamente

associadas com a manifestação e com o exercício de poder político. Não foram identificadas

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como novos meios para expressão da soberania popular. Tanto é assim, que o debate a

respeito da legitimidade de tais instituições como meio politicamente válido para expressar o

interesse público a todo tempo emerge.

No mesmo sentido, a clássica questão que opõe o constitucionalismo como limite

ao exercício democrático da “voz da maioria” é fruto da falta de compreensão desse novo

fenômeno. Ela tanto pode ser compreendida pela perspectiva liberal burguesa que buscou

argumentos para dar um limite ao sufrágio universal e, portanto, à voz das massas, como pode

ser compreendida como meio de controle social sobre os representantes eleitos, se a este

corresponderem mecanismos institucionalizados de transparência das atividades públicas e de

responsabilização. As atividades de supervisão e regulação aparecem nesse contexto

(ROSANVALLON, 2011, p.10).

As agências reguladoras ou as autoridades independentes e as cortes

constitucionais, então, podem ser analisadas como formas políticas capazes de

institucionalizar mecanismos para o aprofundamento da convivência democrática na medida

em que se constituem como novos espaços para circulação do poder político.25

Ao lado das instituições e das normas, a arte de governar também aparece como

novo elemento essencial da esfera política contemporânea.26 Os procedimentos e o

comportamento dos representantes que governam e de todos os que atuam em nome da

administração passam a importar. O procedimento para entrega de produtos, de serviços e

para elaboração de decisões e de políticas públicas também passa a ser visto como essencial

para a coesão social. Participação, abertura, justiça, reconhecimento, respeito, presença,

transparência, solidariedade, responsabilidade e controle são valores e palavras que se

relacionam com o discurso público atual.

2.1 Democracia representativa e novas demandas por legitimidade

A transição do princípio hereditário para o princípio democrático como forma de

dar legitimidade ao exercício do poder demandou a construção de duas ficções sociológicas

que atuaram como premissas do Estado liberal democrático: a criação de um novo sujeito

político para a democracia e a criação de uma forma de expressão para esse novo sujeito

(ROSANVALLON, 2011).

25 Nesse sentido ver obra de Lawrence Sager. SAGER, Lawrence G. Juez y Democracia-Una teoria de la prática constitucional norte americana. Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A. Madrid: 2007.

26 ROSANVALLON, Pierre. Democratic Legitimacy: Imparciality, Reflexivity, Proximity. Cit.pág. 10.

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“O povo” é o sujeito político da democracia que, em tese, tem legitimidade para

expressar a vontade geral. Desse conceito, infere-se o ideal de unanimidade, a ficção para a

“expressão da generalidade social”. Esse novo sujeito político se expressa por meio de

representantes políticos escolhidos através de eleições periódicas, como solução para

legitimação do exercício da atividade política ao longo de cada mandato.

Esses são os dois postulados que fundamentaram o exercício democrático desde o

seu início, no período pós revolucionário: o povo como expressão da generalidade social e a

as eleições como mecanismo de legitimação da ação política durante o tempo determinado

pelo mandato.

Nos termos explicitados por Pierre Rosanvallon (2011, p.23), a democracia

representativa esteve, então, desde o princípio, amparada nos seguintes pressupostos: o

processo eleitoral é capaz de expressar direta e completamente à vontade geral; a cédula

eleitoral expressa a vontade dos eleitores, sendo os eleitores os únicos sujeitos da política; o

momento do voto é capaz de determinar a temporalidade do processo eleitoral; e, a

legitimidade das urnas legitima a ação dos representantes eleitos durante todo o seu mandato.

Essas características configuram o que ao autor denomina de “democracia imediata”.

A “democracia imediata” relaciona-se com o conceito inequívoco de “o povo”, no

sentido que este adquiriu no período pós Revolução Francesa. Explica o autor que, enquanto a

democracia direta rejeita a ideia de delegação, a democracia imediata rejeita a ideia de

interface, a ideia de que a expressão coletiva precisa de instituições e procedimentos para ser

alcançada, ou seja, rejeita qualquer forma de reflexividade social. Segundo Rosanvallon, esta

seria exatamente a fonte de hostilidade em relação aos partidos políticos e aos corpos

intermediários visto que estes seriam vistos como responsáveis por distorcer a espontaneidade

da expressão da vontade geral (ROSANVALLON, 2011, p.123 e ss).

Compreender o contexto da manifestação da vontade geral na época da Revolução

Francesa ajuda a entender o conteúdo da ideia de democracia imediata. Como explica o autor,

a expressão popular legítima funcionaria como um tipo de “eletricidade moral”, uma

manifestação natural, unânime e instantânea da vontade geral que não dependeria de debates

ou fundamentações para revelar-se, ficando o senso comum do povo sujeito a manipulações

ou abusos se fosse permitido que qualquer resquício da tradição absolutista tivesse caminho

para se manifestar. No momento revolucionário apenas o presente importava, devendo ser

rompidas as relações com instituições do passado. Somente o poder constituinte poderia

desempenhar a expressão de unanimidade e falar em nome do povo, de forma autônoma e

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incondicionada. Como afirmou Sieyès em 1789 “a vontade é tudo, a forma nada”. O poder

constituinte era equiparado ao poder divino para criação de uma ordem democrática sem que

fosse necessário a ela se submeter. Já naquele tempo, Sieyès diferenciou o poder constituinte

do poder constituído (ROSANVALLON, 2011, p.124).

Note-se que à época da Revolução Francesa, o poder constituinte era forma

legitima de expressão da vontade geral, portanto da unanimidade, não sendo o poder

constituinte e a vontade geral vistos como resultantes de disputas de posições e interesses,

como acontece nos dias de hoje. O poder constituinte, nesse sentido, era visto como a

expressão imediata e absoluta do povo, livre de quaisquer limites ou constrangimentos. A

vontade geral era concebida como forma de assentimento de todos para as ações dos

representantes eleitos. Ao longo do tempo, os ideais utópicos da democracia ficaram, no

entanto, restritos a praticas eleitorais e a uma perspectiva monista da política, que vê no

parlamento a única expressão legitima da soberania, abordagem que precisa ser alterada para

comportar o exercício democrático contemporâneo.

A concepção de democracia imediata, portanto, adota três premissas: a escolha

dos eleitores é equiparada a vontade geral; os eleitores são equiparados ao povo, e toda

legitimidade da atividade legislativa e política subsequente decorre do momento do voto.

Embora estas sejam premissas problemáticas, normalmente estas não costumam ser o centro

do questionamento a respeito da legitimidade da democracia representativa atual.

Com o tradicional foco da análise política voltado para as instituições e para o

exercício de práticas democráticas sem a adequada discussão das premissas que ao longo do

tempo fundamentam a democracia representativa, muito pouco se aventou a respeito de tais

fundamentos e dos problemas que estes implicam.

Partindo dessa perspectiva, Pierre Rosanvallon busca demonstrar que essas

ficções essenciais do modelo democrático, assumidas de forma pacífica e pouco questionada,

encobrem na verdade questões essenciais de legitimidade do exercício democrático

contemporâneo. Essas ficções foram primordiais para a justificação do Estado Liberal mas

sofreram transformações ao longo do século XX e já não são suficientes para fundamentar o

exercício do poder político no Estado Democrático contemporâneo.

A premissa de que o povo é capaz de representar de forma instantânea e unânime

a vontade geral é o primeiro problema. A técnica de escolha de representantes que atribui à

“vontade da maioria” a legitimidade para exercício do poder político reduz um problema

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complexo à uma questão aritmética: o povo e sua respectiva vontade pode ser representado

de forma instantânea pela maioria expressa na urna de votos. Vale registrar que as

manifestações populares na democracia dos antigos eram feitas sempre voltadas para o

consenso, ou seja, visavam atribuir aceitação unanime às soluções de problemas coletivos

levadas à ágora, a votação era realizada para simbolizar a adesão de todos à decisão tomada.

A votação não configurava uma vitória numérica na disputa de interesses individuais ou de

grupos, como passou a ocorrer na democracia dos modernos a partir do século XIX

(ROSANVALLON, 2011, p.18).

O segundo problema pode ser descrito como a suposição de que a legitimidade

atribuída pelas urnas aos representantes eleitos no momento instantâneo da eleição estende-se

durante todo o exercício de seu mandato. Como explica o autor as acirradas disputas

partidárias e eleitorais esvaziaram os conteúdos relacionados com a ideia de povo, enquanto

expressão da unanimidade, e de mandato, enquanto período autorizado para exercício de

poder legítimo, alterando significativamente o funcionamento do sistema político. O sistema

partidário e as infindáveis demandas e interesses divergentes passaram a apresentar relevância

inesperada e transformaram o exercício legislativo que deveria ser o centro do governo

representativo e a expressão do interesse comum em espaço permanente de disputas acirradas

de interesses privados. Já no período compreendido entre os anos 1890 e 1920 diversos livros

foram escritos buscando diagnosticar “a crise da democracia” e identificar os fatores que

transformaram o poder legislativo no espaço de disputas partidárias e de corrupção quando

este, na verdade, deveria ser o templo da razão pública (ROSANVALLON, 2011, p. 2).

Embora as eleições tenham deixado de ser vistas como a celebração da “apoteose

do povo” com todo o seu encanto desmistificado, não houve questionamento contundente a

respeito da regra da maioria como forma de representação da unanimidade social

(ROSANVALLON, 2011, p. 124).

Diversas soluções foram buscadas para superar os problemas da representação

democrática e revitalizar o ideal democrático. Após a Primeira Guerra mundial essa aspiração

foi transferida para a burocracia estatal como caminho alternativo para alcance da

generalidade social. Com o aparecimento e consolidação do Estado de Bem-Estar Social, uma

“máquina burocrática” estruturada e eficiente passou a representar o lócus da preservação e

defesa do interesse comum. Levar a vontade geral e o bem comum para uma esfera distante

das disputas partidárias foi o que motivou o desenvolvimento francês de modelo de serviço

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público, e o modelo de administração racional norte-americano (ROSANVALLON, 2011, p.

34 e ss).

Em contraste com o Estado Liberal, que tinha por princípio de justificação, e

portanto de legitimidade, as eleições e a “voz da maioria” como representante da unanimidade

social - outorgando aos representantes eleitos um “cheque em branco” para governar durante

o mandato previsto - , o regime democrático do Estado de Bem Estar Social passou a adotar

fundamentação e processos legitimadores diferentes: as eleições e a administração pública, o

acesso igual ao serviço público - através de concurso público- e a igualdade na urna de votos

como princípios de justificação e legitimidade para ação política estatal (ROSANVALLON,

2011, p. 34 e ss).

De mero instrumento para exercício do poder político e execução de políticas

públicas determinadas pelo parlamento, a administração pública passa a ser concebida como

entidade autônoma essencial para expressão do interesse comum. O conceito de competência

técnica aparece como fonte de legitimidade. Por um lado, as eleições configuravam uma

escolha subjetiva orientada por interesses e opiniões, por outro lado o concurso público

adotava critérios objetivos para escolher indivíduos tecnicamente competentes, como forma

de balancear o exercício das atividades políticas estatais (ROSANVALLON, 2011, p. 34 e

ss).

Essa nova forma de expressar o exercício do poder político passou a ter como

fundamentos a legitimidade das eleições, pela vontade expressa pela maioria através do

sufrágio universal, de caráter substancial, e a legitimidade através da identificação com o

interesse geral, de caráter procedimental, expresso pela burocracia estatal, como forma de

compensar o declínio da legitimidade eleitoral. Aceitava-se que as escolhas eleitorais

implicitamente legitimavam as políticas públicas propostas pelo vencedor das urnas, que

seriam implementadas por uma burocracia estruturada, técnica e neutra. Essa solução

sustentou os regimes democráticos durante grande parte do século XX, mas começou a

demonstrar-se insuficiente a partir da década de 1980.

Como aponta Pierre Rosanvallon, algumas mudanças significativas aconteceram

ao longo do caminho. As eleições passaram pelo que o autor chamou de “dessacralização”.

Sua função precípua foi, sob esta perspectiva, reduzida. Esta passou a ser um mecanismo de

escolha de representantes e não mais uma forma de expressão de unanimidade e de

legitimação antecipada de ações políticas para todo o período do mandato eleitoral

(ROSANVALLON, 2011, p. 69).

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O significado da palavra maioria também se alterou. Embora seu conteúdo legal,

político e parlamentar seja indiscutível, explica o autor que as implicações sociológicas do

termo são menos evidentes. Os interesses do “maior número” não são mais equivalentes aos

interesses da maioria. A complexidade social e o aprofundamento das diferenças individuais

e sociais no mundo contemporâneo alteraram o sentido de maioria. O que antes era visto

como uma massa homogênea, fonte de interesses semelhantes, hoje pode ser descrito como

um conjunto de situações específicas, adquirindo “o povo” um sentido diferenciado, mais

próximo do que se pode chamar de “o plural de minorias” (ROSANVALLON, 2011, p. 70).

Contribuiu ainda para tais mudanças o discurso neoliberal avassalador do final do

século XX, amplificado pelo fenômeno da globalização econômica, que colaborou para minar

a legitimidade da burocracia estatal ao tentar transferir para o mercado a legitimidade para

expressar o bem-estar geral.

As fontes de legitimidade burocrática e eleitoral chegaram ao novo século sem a

mesma vitalidade que sustentou os regimes democráticos até então. O sistema político

amparado nessa dupla legitimidade entrou em colapso.

Essa lacuna deixada pelo enfraquecimento dos fundamentos da dupla legitimidade

do regime democrático ao longo do século XX, aliada à falência do estado provedor, à

velocidade da circulação do capital e ao descolamento da esfera econômica da esfera política,

criou espaço para a emergência de novas formas de articulação social e de uma nova base

para composição do interesse comum. Todos esses fatores em conjunto deram origem a novos

espaços e novas formas para circulação e manifestação de poder político.

De uma estrutura política centralizada e com divisão de poderes bem definidas

entre os três tradicionais ramos de manifestação estatal - poder legislativo, como arena para

definição de escolhas públicas, poder executivo como espaço impessoal e apartidário para

execução de políticas públicas, e finalmente o poder judiciário como arena isenta para limitar

e conter a atuação dos demais poderes, como “boca da lei” –, começam a emergir outros

centros de circulação de poder políticos com reflexo imediato nas instituições estatais.

A burocracia estatal também sofreu transformações e novas técnicas de

governança começaram a ser criadas para fazer face às demandas de imagem e comunicação

da esfera de cidadania. A máquina administrativa estatal, antes interpretada como agente

intermediário, imparcial e inquestionável para reprodução do interesse público definido pelo

parlamento, começa a ser percebida como centro de circulação de poder político que interfere

nas políticas públicas, e como tal precisa justificar e fundamentar suas ações.

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O principal ponto de inflexão das mudanças contemporâneas no exercício do

regime democrático, ocorrida após a década de 1980, refere-se às novas exigências de

legitimação democráticas que passaram a ser demandadas pela sociedade contemporânea para

preencher o déficit de legitimidade que a dupla legitimidade eleitoral e do poder burocrático

já não podem dar conta.

O imperativo democrático que até então expressava a generalidade social foi

radicalmente transformado. O sufrágio universal, portanto, o resultado das urnas, não pode

mais ser equiparado à expressão subjetiva da massa de cidadãos, à equivalência da vontade

geral, já não é capaz de expressar a unanimidade social. E a estrutura burocrática estatal, por

si só, já não corresponde inquestionavelmente à noção objetiva e neutra de generalidade.

A construção do que se poderia chamar de interesse geral ou bem comum se

modifica. Como esclarece Pierre Rosanvallon, na forma contemporânea, a vontade geral não

mais se manifesta apenas como “generalidade social” unidimensional, como unanimidade

social instantânea. Para o autor esta se manifesta agora de forma complexa e

pluridimensional, sob três novas perspectivas simultâneas: a generalidade negativa, a

generalidade de multiplicação e a generalidade da atenção ao particular (ROSANVALLON,

2011, p. 6).

A generalidade negativa corresponde à definição do poder político em termos de

“um lugar vazio”. A manifestação dessa generalidade depende então de um tipo de instituição

que permaneça distante das disputas políticas, mas que permaneça aberta aos influxos da

cidadania. Ela se diferencia por uma variável estrutural, a independência, e por uma variável

comportamental, a manutenção da distância ou equilíbrio em relação às autoridades dos

poderes eleitos do governo (ROSANVALLON, 2011, p. 97). É esta generalidade negativa

que fundamenta a ação de instituições voltadas para atividades de supervisão ou de regulação

em geral, e das autoridades reguladoras independentes em especial, um dos focos dessa

pesquisa.

A generalidade de multiplicação ampara-se na proposição de que a soberania

social se expressa de múltiplas formas. O sujeito democrático é mais complexo, e por

consequência, o exercício democrático também o é. Rompe-se com a visão unidimensional

da soberania popular expressa pelo sufrágio universal ou pelas formas de exercício da

democracia direta, estas são algumas de suas manifestações mais significativas, mas sem

dúvida não são as únicas. A soberania popular se expressa de diversas formas, como por

exemplo através manifestação em processos que discutem a constitucionalidade ou

determinada interpretação de uma lei perante a Constituição, nas cortes constitucionais; nos

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processos administrativos entre administração e administrados, no qual direitos e deveres são

discutidos, ou ainda na participação de procedimentos de audiências públicas conforme tem

sido propostas pelo STF ou pelo TSE, nos mecanismos de accountability, entre outros

exemplos.

No mesmo sentido, compartilhando compreensão semelhante quanto às cortes

constitucionais, Lawrence G. Sager (2007, p. 207), na obra Juez y Democracia, volta sua

atenção para a questão mais geral de como a prática constitucional responde às críticas

inspiradas no ideal democrático, compreendendo que a teoria baseada na justiça é a que

melhor sustenta o constitucionalismo robusto em face de dúvidas democráticas. Ensina o

autor que a democracia direta, a democracia representativa e os sistemas de governo que

incluem juízes com autoridade e responsabilidade de garantir a Constituição são diferentes

alternativas para o exercício democrático. Registra ainda que uma judicatura com

competência constitucional possui elementos que permitem o debate adequado sobre os

direitos, tendo essa percepção levado diversos estados democráticos modernos a adotar

constituições escritas e a conferir a instituição judicial a sua garantia, apontando como

características promissoras desse modelo, sob o ponto de vista epistêmico: a desvinculação

dos juízes e dos tribunais dos interesses imediatos dos membros de sua comunidade política; a

atuação dos juízes como se fossem “inspetores de qualidade” por cumprirem função

especializada e redundante ao identificar fundamentos de justiça política que sejam

importantes e que sirvam de fundamento para o regime constitucional e para o controle da

legislação; o “equilíbrio reflexivo” que decorre das fundamentações através de princípios em

uma sucessão de casos, que precisam ser coerentes no tempo, resultando como meio para

equilibrar a reflexão normativa e para concretizar a exigência moral de generalização.

A seguir, Sager induz à reflexão a respeito de duas formas pelas quais as pessoas

são capazes de participar como iguais no processo deliberativo de direitos: a igualdade

eleitoral e a igualdade deliberativa. A igualdade eleitoral seria garantida através do exercício

em condições de igualdade do direito de eleger os representantes políticos que tomam as

decisões sobre os direitos, ressaltando que esta é uma forma perigosa por ser influenciada

pelo poder dos votos e do dinheiro desviando-se das pretensões de determinado grupo ou

indivíduo. A igualdade deliberativa seria garantida aos participantes nos processos de debates

sobre direitos, ou seja, a consideração séria por quem tenha autoridade deliberativa dos seus

direitos e interesses, estando implícito nessa forma de igual participação o direito de ser

ouvido e de obter resposta fundamentada, como, por exemplo, nos processos judiciais. Essas

duas formas de igualdade seriam complementares para o exercício democrático. Nas palavras

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de Sager (2007, p. 207): “A maior parte dos Estados democráticos modernos possuem um

conjunto de estruturas institucionais nas quais os parlamentos prometem a igualdade eleitoral,

enquanto os tribunais constitucionais prometem a igualdade deliberativa. ”

A generalidade da atenção ao particular adota a perspectiva de indivíduos

concretos e situados em determinado espaço e tempo da história e dá outro sentido ao

princípio da igualdade (ROSANVALLON, 2011, p. 171). Não basta a igualdade formal. O

aspecto material passa a ser relevante para a definição de políticas públicas justas. A

igualdade em dignidade, nos termos de Kant, passa a exigir a “inclusão do outro”, nos termos

de Habermas. É a igualdade pelo reconhecimento de diferenças de circunstâncias e garantia

de condições equivalentes de acesso ao futuro, nos termos de Pierre Rosanvallon. Esses são

os fundamentos da generalidade da atenção ao particular. Todos possuem direito de ter suas

especificidades levadas em conta. É o reconhecimento da miríade de minorias que compõem

o caleidoscópio social: crianças, idosos, homossexuais, negros, consumidor, eleitores,

empresários, sem-tetos, etc. É o reconhecimento da multiplicidade de papéis sociais

simultâneos desempenhados por cada um e a busca de meios para compor sua coexistência

(ROSANVALLON, 2011, p. 171 e ss).

O interesse comum, a vontade geral, pensada nestes termos se distancia

imensamente da totalidade social enquanto agregado aritmético (eleições) ou enquanto

unidade monista, corpo coletivo ou estrutura social homogênea e singular capaz de

representar uma só vontade geral que atenda a todos.

De uma perspectiva estática da sociedade e sua correspondente generalidade

social unidimensional, avança-se para uma abordagem dinâmica da convivência social que a

todo tempo reconfigura, transforma e adequa a vontade geral. Nesse sentido, a vontade geral

manifesta-se como um horizonte regulatório e não mais como uma fórmula substancial e

palpável, visto que se torna contingente e circunstancial.

A pluralização dos sujeitos políticos e das formas de expressão da generalidade

social tem por consequência exigências maiores para a legitimação da circulação do poder

político. A essas três novas formas de exercício e manifestação da soberania popular, ou seja,

de expressão da vontade geral, correspondem novos tipos de legitimidade para circulação do

poder político. À generalidade negativa, corresponde a legitimidade da imparcialidade; à

generalidade da multiplicação associa-se a legitimidade da reflexividade; e, finalmente, à

generalidade de atenção ao particular, corresponde a legitimidade da proximidade.

Essas novas formas de legitimidade diferenciam-se da legitimidade eleitoral e

burocrática, definidas por critérios estruturais – “maioria vitoriosa” e “concurso público” -,

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visto que se definem por qualidades, sendo, portanto, precárias e nunca definitivamente

alcançadas, dependendo permanentemente da percepção social e da avaliação do

comportamento de suas instituições.

A conformidade com a norma formal já não se sustenta como fundamento único

para essas novas perspectivas de legitimidade. Seu caráter é hibrido visto que a dimensão

formal precisa ser complementada pela dimensão dinâmica do permanente reconhecimento

social. Não basta que as ações das instituições fundadas sob os novos tipos de legitimidade

pareçam legitimas, elas precisam ser percebidas como legítimas, elas precisam de fato agregar

valor às relações e à convivência social. Instituições não eleitas serão percebidas como

socialmente úteis se forem capazes de entregar produtos e soluções que correspondam ao

interesse social específico que deu origem à sua criação.

Nesse ponto Pierre Rosanvallon considera as abordagens procedimentais, como

por exemplo, a de Habermas, insuficientes visto que estas adotam uma perspectiva monista da

soberania popular, ou seja, enxergam apenas o parlamento como caixa de ressonância social

por excelência e como espaço exclusivo de elaboração da razão procedimentalizada

(ROSANVALLON, 2011, p. 8). Não haveria, em sua opinião, o explicito reconhecimento de

formas e arenas múltiplas para a manifestação da soberania popular. A soberania popular não

seria vista como resultado de formas complexas e múltiplas de manifestação, segundo

Rosanvallon haveria apenas o deslocamento da soberania social de um corpo social concreto

para um espaço difuso de comunicação.27

O autor francês propõe uma redefinição do conceito de legitimidade partindo da

desconstrução e reconstrução da ideia de generalidade social. Essa abordagem tem por

consequência a pluralização radical das formas de legitimidade e, portanto, das manifestações

correspondentes em termos de instituições que ficarão encarregadas de garanti-las. Então, se

existe mais de uma forma de agir ou de falar em “nome da sociedade”, ou seja, se existe mais

27 Neste ponto, vale registrar que a autora desta pesquisa discorda, em parte, da crítica feita por Pierre Rosanvallon à Habermas. Habermas não adota uma postura monista em termos da manifestação da soberania popular através do parlamento como única instância legítima, ao transferir a soberania popular de um corpo concreto para um espaço difuso de comunicação. O que o autor alemão faz é alertar para os princípios que fundamentam o sistema de direitos e para a apropriação de discursos sem as correspondentes formas de legitimação por instituições que passam a dispor de discursos de fundamentação e de aplicação de normas. Habermas reconhece sim a existência de novos espaços dialógicos, como as autoridades independentes e a cortes constitucionais, que precisam adequar a institucionalização de mecanismos de legitimação para a disposição dos discursos correspondentes. A diferença essencial é que Habermas reconhece essa possiblidade como uma possível fonte de enfraquecimento do sistema de direitos e talvez este seja o alvo da crítica de Rosanvallon que reconhece legitimidade para outras instituições além do Parlamento como fonte de produção de direito legítimo.

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de uma forma da soberania popular se manifestar, é necessário que a tradicional repartição de

poderes e a estrutura tradicional da burocracia estatal sejam revistas.28

A proposta de Pierre Rosanvallon é que a legitimidade democrática seja vista

como um sistema no qual a dupla legitimidade eleitoral e burocrática seja complementada

pelas legitimidades da imparcialidade, da reflexividade e da proximidade como meio para

estabelecer um ideal democrático mais exigente. Como explica o autor, “se a legitimidade no

sentido mais amplo implica ausência de coerção, a legitimidade democrática requer algo mais:

um tecido de relações entre o governo e a sociedade” (ROSANVALLON, 2011, p. 9).

Nesse ponto o autor volta a se aproximar da democracia deliberativa nos termos

propostos por Habermas, na medida em que compreende que a democracia enquanto

apropriação social do poder político depende de tais relações. A ideia de tecido social se

aproxima muito da ideia de rede social de comunicação pela qual circula o poder político,

divergindo, no entanto quanto a forma de definir o lócus legítimo para sua manifestação.

Pierre Rosanvallon propõe uma forma bastante interessante para abordar o

aprofundamento da convivência democrática em tempos de radicalização da complexidade

social. Para ele a democracia contemporânea fundamenta-se no reconhecimento da

legitimidade do conflito de um lado, sendo a competição eleitoral responsável por

institucionalizar o conflito e determinar a solução: “a política democrática implica a escolha

de lados, a tomada de posição. Em sociedades marcadas pela divisão social e pela incerteza

quanto ao futuro, essa dimensão da política democrática é essencial” (ROSANVALLON,

2011, p. 12). Por outro lado, ampara-se na aspiração de consenso, visto que a convivência

democrática pressupõe o compartilhamento do espaço comum. Conflito e consenso são duas

faces da convivência democrática que necessitam de igual reconhecimento e legitimação.

Assim, identifica o autor dois tipos de instituições essenciais para a prática

democrática contemporânea: as instituições de conflito, relativas às práticas partidárias

subjetivas da competição eleitoral-representativa, e as instituições do consenso, relacionadas

ao mundo objetivo das instituições da democracia indireta, as cortes constitucionais e as

autoridades independentes.

O reconhecimento explícito de que o ideal democrático contemporâneo se ampara

nessa dualidade paradoxal permite o enfrentamento e atualização da ficção de que a “maioria

das urnas” corresponde à expressão de unanimidade da vontade geral. A decomposição dos

28 Sob a perspectiva da democracia deliberativa, nos termos propostos por Habermas, seria o equivalente a reconhecer a apropriação de formas diferenciadas de discursos por novas instituições.

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elementos que fundamentam a ideia democrática permite a construção de soluções para suprir

o déficit democrático da democracia eleitoral-representativa liberal, nos termos em que foi

concebida. O explicito reconhecimento da necessária tensão entre instituições majoritárias e

instituições governadas pela justificação do consenso colabora para identificar soluções para o

equacionamento das tensões sociais.

Demonstra ainda o autor a necessidade de se reconhecer uma outra dualidade do

modelo democrático contemporâneo: a tensão entre democracia da tomada de decisão, cujo

referencial é a legitimidade eleitoral-burocrática, de cunho formal, e a democracia de

comportamentos, de aspecto procedimental, cujo referencial é a perspectiva dinâmica das

práticas e procedimentos públicos que não podem mais ignorar os cidadãos e suas

circunstancias até as próximas eleições.

Nesse contexto aparece uma nova dimensão para legitimação das ações da

administração pública: o comportamento daqueles que fazem parte da burocracia faz

diferença. Como as instituições funcionam passa a importar. É nesse sentido que as

instituições do consenso aparecem como novas formas políticas, como nova arena legítima de

circulação de poder político e de construção da razão procedimentalizada. As cortes

constitucionais e as autoridades independentes de supervisão e regulação atuam para alinhar

de forma dinâmica e permanente as ações e políticas públicas com o projeto constitucional, ou

seja, garantem a busca do interesse comum, a expressão da vontade geral, sob perspectiva

múltipla, complexa e diferenciada.

2.2 Autoridades reguladoras independentes

A criação de autoridades reguladoras independentes não é um acontecimento

recente na história da burocracia estatal. A primeira autoridade independente, a Interstate

Commerce Commission (ROSANVALLON, 2011, p. 75), foi criada pelos Estados Unidos no

final do século XIX para regular as estradas. O fenômeno que de fato tem chamado a atenção

é o aumento no ritmo da criação dessas entidades na maioria dos países democráticos após os

anos 1980, multiplicando a quantidade de órgãos independentes para tratar de diversos

interesses especializados.

Independente da natureza jurídica e das peculiaridades dessas autoridades em cada

país, o que pode ser analisado como ponto novo e comum é a dimensão executiva atribuída a

tais agências em conjunto com funções normativas e/ou judiciais, para atuarem em centros de

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interesses públicos específicos e múltiplos, caracterizando uma nova forma de processar

interesses sociais e políticos pulverizados.

A proliferação de entes regulatórios interfere diretamente na tradicional separação

de poderes e modifica claramente a esfera de atuação do poder executivo e legislativo,

trazendo para o regime democrático uma reorganização das formas de circulação do poder

político. As fronteiras tradicionais entre poderes políticos, administrativo, legislativo e

judiciário são modificadas. Por hora, basta registrar esse ponto. O assunto será melhor

explorado no próximo ponto. Nesse momento, interessa identificar a origem do fenômeno e

discutir que fundamentos legitimaram a criação de órgãos dessa natureza.

Alguns fatores críticos que contribuíram para a criação da primeira agencia

reguladora no século XIX permanecem como fundamento para a criação dessas autoridades

no século XXI: a necessidade de um agente imparcial em relação ao ciclo das disputas

partidárias-eleitorais, a fim de que o interesse comum seja administrado em perspectiva de

prazo mais longo; alto grau de especialização técnica; flexibilidade do sistema regulatório

para expedir normas, tomar decisões, apresentar soluções e resolver disputas entre todos os

participantes e envolvidos da mesma esfera de interesses, de forma dinâmica e em prazo

adequado, portanto, com ciclos temporais diferentes dos horizontes de tempo dos tradicionais

procedimentos do poder executivo e do poder legislativo.

O primeiro esforço teórico a respeito de tais características das autoridades

independentes foi feito por uma força tarefa governamental americana em 1944 e confirmada

após pela Hoover Commission (ROSANVALLON, 2011, p. 79). Os relatórios que resultaram

desses trabalhos identificaram como características essenciais das comissões reguladoras as

seguintes: isolamento de pressões políticas e independência do poder executivo;

imparcialidade; habilidade para implementar políticas públicas de longo alcance não sujeitas à

influencias das eleições; e habilidade para formular políticas racionais e coerentes. Foi

enfatizado ainda o fato de que o público aceitava melhor as decisões das agências do que as

decisões da burocracia tradicional.

Na França, em 1978, sob imperativos semelhantes, foi criada a primeira agência

correspondente ao modelo de autoridade independente, a National Comission for Computers

and Freedom – CNIL (ROSANVALLON, 2011, p. 80). O debate envolveu opiniões

divergentes quanto `a natureza do órgão a ser criado para fornecer e gerir um número de

cadastro único para cada cidadão, se um departamento ligado ao Ministério da Justiça ou uma

autoridade administrativa independente. Houve resistência do público e da oposição política

que compreendeu essa iniciativa de dar a um órgão do governo esse poder como um ataque à

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liberdade. A solução política aceita para o impasse foi a criação de uma autoridade reguladora

independente.

A criação do órgão regulador francês foi emblemática porque, como elucida

Pierre Rosanvallon, essa decisão evidenciou explicitamente a suspeita de parcialidade em

relação ao órgão executivo, demonstrando a insuficiência do princípio majoritário para

legitimar as ações estatais para alcance do bem comum. As circunstâncias que envolveram a

criação da National Comission for Computers and Freedom trouxeram uma distinção fática

entre a legitimidade eleitoral e a legitimidade da imparcialidade (ROSANVALLON, 2011, p.

80). E é nesse sentido que o autor entende que a adoção do modelo de autoridades reguladoras

independentes para resguardar o bem comum significa a criação de um novo sistema para

expressar e gerir o interesse geral, legitimidade que os poderes tradicionais do Estado já não

conseguem preencher.

Na América Latina, a experiência de seguidos regimes de exceção, com a

decomposição dos laços cívicos e, portanto, com a destruição sucessiva das possibilidades de

construção de um regime democrático subsequente, levou alguns países como, por exemplo,

Uruguai e Brasil, a resgatar a dimensão social e a definir precondições estruturais como

requisitos essenciais da democracia compreendida não apenas como procedimento, mas como

forma social. A criação de uma autoridade independente dos poderes eleitos para regular o

processo eleitoral foi a saída encontrada por alguns países da região para dar início à

construção dos lações civis de cidadania, para preservar os direitos políticos eleitorais da

corrupção do sistema partidário-eleitoral e da apropriação desse especifico interesse comum

por interesses privados.

O principal objetivo era assegurar a importância do processo eleitoral e proteger

as condições para que o tecido social fosse reconstruído, para que canais de circulação de

poder político legítimos fossem abertos e preservado na perspectiva de longo prazo, para que

as condições de auto-gestão política de uma comunidade de cidadãos que dividem o mesmo

espaço pudessem ser restauradas e preservadas em face de apropriações espúrias de poder no

curto prazo.

No período entre guerras e diante de ameaças extremas e concretas como o

comunismo, o nazismo, o stalinismo e os regimes de exceção na américa latina, as novas

fundações do processo democrático tiveram seu início em termos negativos. Era essencial

construir um “espaço vazio” para defesa do regime democrático e para preservação dos laços

políticos sociais.

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A ideia era estruturar a atividade eleitoral e as atividades políticas de tal forma

que os requisitos essenciais do processo democrático pudessem ser garantidos. Os regimes de

exceção eram um claro indicativo de que a constituição política da sociedade havia sido

quebrada e de que não havia instituições e tradição de cidadania capaz de assegurar a solução

de problemas pelas vias institucionalizadas. Não era apenas uma questão de existir ou não

eleições. Era uma questão de legitimidade de todo o processo de disputa partidária-eleitoral

que estava em jogo, processo esse que por não ser capaz de refletir a vontade geral e o

interesse comum não conseguiu manter coeso o tecido político social.

Nesse sentido, é sintomática a criação da Justiça Eleitoral no Brasil em pleno

regime de exceção, em 1932, seu fechamento em 1937, sua reabertura em 1945, a publicação

do código eleitoral em 1965 e a criação do Banco Central do Brasil em 1964.29 A formas

políticas tradicionais de circulação de poder estavam quebradas e não funcionavam, mas as

exigências por legitimidade social estavam presentes. O poder político centralizado de forma

arbitrária na mão do poder executivo, embora fosse detentor da força militar, claramente não

possuía a legitimidade para se colocar como guardião do interesse comum na esfera politica-

eleitoral. A justificação do poder por meio da violência tem um custo elevado demais e difícil

de sustentar-se no tempo, era necessário pelo menos demonstrar algum esforço de

legitimação, ainda que formal.

A manutenção da Justiça Eleitoral no Brasil em tempos de ditadura evidencia

exatamente a separação entre legitimidade representativa-eleitoral, que no caso foi imposta

pela força, e legitimidade da imparcialidade. Esse foi o meio encontrado para dar início à

reconstrução dos laços políticos eleitorais em uma sociedade fragmentada e tutelada pela

força, ou pelo menos para oferecer ainda que formalmente uma aparência de legitimidade.

Não era uma mera questão de votar ou não, de escolher representantes eleitos ou não, mas de

criar um horizonte, ainda que simbólico, para a reconstrução dos laços de convivência

legitima, o primeiro passo, ainda que formal, para a busca de um contrato social durador e de

uma ordem justa.

O processo eleitoral tem dimensão democrática significativa na medida em que o

sufrágio universal possui uma força simbólica muito grande por permitir que toda a

comunidade de cidadãos se expresse através de um procedimento e de uma linguagem comum

compreendida por todos, e que dá a todos uma voz igual, com o mesmo peso. O paradoxo é

que para proteger e garantir as pré-condições de manifestações básicas da democracia foi

29 Sendo a moeda também considerada como uma das fontes de integração do tecido social. Nesse sentido ver: ROSANVALLON, 2011, p.116).

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necessário afastar a coordenação e a regulação do processo eleitoral das disputas partidárias-

eleitorais, foi necessário entregá-lo à uma autoridade reguladora independente dos poderes

eleitos para que as disputas eleitorais fossem recolocadas numa dimensão que pudesse ser

percebida como legitima. A independência era a específica condição para sua atuação

legítima, a legitimidade negativa era o expresso requisito para a efetiva proteção da

manifestação do interesse comum, para o resgate dos laços sociais rompidos em países com

históricos recorrentes de ruptura com o Estado democrático. Foi necessário criar uma

instituição de consenso, como pré-condição para a reativação das instituições legítimas de

conflito.

2.3 Generalidade negativa e legitimidade da imparcialidade

A tradicional legitimidade eleitoral dos sistemas democráticos representativos

ampara-se no reconhecimento e aceitação popular da “regra da maioria”, representando então

uma generalidade agregada de identificação que se manifesta em termos quantitativos.

A generalidade da imparcialidade atua em outro sentido, no sentido negativo.

Numa sociedade profundamente diversificada, na qual, como dito, a concepção de “o povo”

manifesta-se mais como um agregado de múltiplas e diferenciadas minorias do que como uma

voz unânime e homogênea, na qual o interesse geral permanece em constante

questionamento e sob forte pressão de grupos de interesse diversos, há uma tendência para

que cidadãos prefiram ser governados por princípios e interesses voltados para a eliminação

de privilégios e para a garantia de igual possibilidade a todos. Explica Pierre Rosanvallon

(2011, p. 97 e ss), que a opção por uma generalidade negativa procedimental30 aparece como

meio mais eficiente e legítimo para criar e garantir espaço para a realização desinteressada

dos interesses de todos.

Outro aspecto relevante que deve ser ressaltado é o fato de que nessa sociedade

profundamente diversificada os centros de interesse e, portanto, de circulação de poder

político, são múltiplos e fragmentados em relação ao tradicional sistema napoleônico

centralizado de poderes políticos. Nessa perspectiva, instituições e cidadãos se organizam e

participam de tantos quantos forem necessários microssistemas para expressar múltiplas

dimensões do interesse comum.

30 Mais uma vez Rosanvallon se aproxima de Habermas ao reconhecer a manifestação da legitimidade negativa em seu aspecto procedimental como fonte de justificação de aspecto imparcial.

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Esse é o fenômeno que esclarece a multiplicação de autoridades reguladoras

independentes e de organizações da sociedade civil a partir do final dos anos 1980. Esse é o

fenômeno que explica a transformação da tradicional partição de poderes com a emergência

de órgãos reguladores e de supervisão ao lado da expansão da atuação das cortes

constitucionais e do poder judiciário como um todo. Não é mais possível coordenar o

interesse comum de forma centralizada porque o interesse comum agora manifesta-se de

forma complexa, não é mais possível coordenar a vida social a partir de um único polo de

circulação de poder político, como ocorreu até então na figura do parlamento, porque o tempo

e o espaço para manifestação da democracia se modificaram. O interesse comum e a vontade

geral ganharam dimensões múltiplas de manifestação, estes passam a ser tidos como

interesses comuns e vontades gerais que se organizam circunstancial e dinamicamente,

necessitando assim de meios e instituições capazes de coordená-los também de forma

múltipla e dinâmica.

Para manter a coesão do tecido social, é essencial a existência de instituições com

espaço para a composição dos diversos e múltiplos interesses comuns, de forma que todos os

afetados percebam que efetivamente possuem voz ativa, que existem canais específicos para

garantir que ao seu direito será dada a mesma atenção que aos direitos dos demais. A

independência das autoridades reguladoras e das cortes de justiça protegem os interesses

comuns de interferências políticas, com políticas públicas previstas para horizontes de tempo

mais longos. Mas para funcionar de forma legítima e receber assentimento geral, tais

instituições devem ser percebidas como imparciais a todo tempo e nesse sentido a existência

de procedimentos internos bem definidos, de mecanismos claros para a tomada de decisão e

de mecanismos de accountability são essenciais. Estas precisam funcionar como novas

arenas para elaboração da razão procedimentalizada. Outro paradoxo precisa então ser

registrado: a generalidade negativa se apresenta através de uma imparcialidade

necessariamente ativa.

As autoridades reguladoras independentes e as cortes judiciais que lidam com a

questão da constitucionalidade, no novo contexto democrático, devem estar voltadas para

garantir tais objetivos: a acessibilidade de todos os participantes dos diversos microssistemas

políticos a canais para apresentar suas demandas, para ser ouvido e para ter uma resposta que

tenha levado em conta suas condições particulares. Tais objetivos tornam-se parâmetros para

aferição do exercício legitimo das funções públicas, e, portanto, da manifestação do poder

político estatal.

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A igualdade como inclusão formal não é suficiente. Não basta haver sufrágio

universal, não basta haver acesso formal à educação e à saúde, e a tantos outros direitos de

cidadania. É preciso que as ações governamentais agreguem valor efetivo à vida cotidiana do

cidadão e entreguem respostas concretas. Como aponta Pierre Rosanvallon (2011, p. 98):

“A expectativa da imparcialidade, e então a importância da generalidade negativa, emerge dos caminhos concretos nos quais a sociedade funciona. A sociedade hoje está dividida numa miríade de caminhos: a particularidade está em todo lugar. Essa é uma consequência inevitável do crescimento econômico e do aumento da complexidade. A influência de interesses especiais e de grupos de pressão aumentaram por questões estruturais. Para que seja possível controlá-los, a estratégia mais eficiente é criar instituições cujo papel seja o de defender a generalidade negativa, porque não é mais possível conceber a sociedade como uma totalidade positiva. ”

Ressalta ainda o autor que, ao contrário do poder aristocrático que é concebido

como dominium e do poder eclesiástico como ministerium (ROSANVALLON, 2011, p. 98), o

projeto democrático depende da designação de um “lugar vazio”. Na democracia o poder

democrático deve emergir do livre consentimento, sem que este seja apropriado por qualquer

um dos participantes. Como “o povo” enquanto coletividade é um sujeito virtual, que na

prática é profundamente dividido por interesses e opiniões divergentes, a apropriação coletiva

do poder, se tomada apenas em seu aspecto positivo, não irá funcionar, visto que sua

manifestação se dá pela competição eleitoral-partidária e pelo embate de interesses políticos

antagônicos, ou seja pela regra da maioria. A socialização do poder em sua forma negativa se

faz então necessária para suprir os déficits de legitimidade da sua manifestação positiva.

A função de autoridades reguladoras independentes, das cortes judiciais e do

terceiro interventor é então desejar pela nação, é falar em nome da vontade geral.31 Tanto

Sieyès quanto Madison distinguiram o conceito de governo representativo e de democracia, e

ambos concordavam que os representantes do povo deveriam ser autoridades independentes,

imparciais e com competência diferenciada em relação aos eleitores, características que

atualmente descrevem muito mais os órgãos reguladores independentes e as cortes

constitucionais do que o parlamento contemporâneo.

Essa situação pode ser melhor compreendida com as colocações apresentadas pelo

autor em relação à tentação pela despolitização (ROSANVALLON, 2011, p. 223). Ele busca

evidenciar o paradoxo na conduta dos políticos que, para demonstrar seu comprometimento

com o bem comum, declaram sua rejeição à política enquanto espaço de manipulações e

31 No sentido usado por Carré de Malberg em sua teoria dos órgãos, alguns órgãos possuem a função de “agir e desejar pela nação”, e Rosanvallon cita o exemplo da lei francesa na qual os juízes decidem em nome do povo francês para demonstrar seu ponto de vista. Para melhor compreensão, ver: ROSANVALLON, 2011, p. 90.

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cálculos pessoais, tentando vender uma imagem de distância das práticas políticas, do

desprezo pela competição feroz pelo voto, uma imagem apartidária. Ao mesmo tempo em que

a própria classe política deslegitima o conflito partidário, não há o devido reconhecimento da

função política de outras instituições da generalidade, de consenso. Pierre Rosanvallon

entende que esta é uma confusão destrutiva para a prática democrática que precisa ser

equacionada.

Para o autor, deve ser restaurado o respeito e a legitimidade das instituições de

conflito e reconhecida a importância das instituições de consenso. A legitimidade do processo

democrático contemporâneo depende de ambas. O embate de plataformas e valores, de ações

estratégicas e de disputas de interesses precisa ter sua arena delimitada e preservada. Estas

fazem parte das instituições de conflito. É necessário assumir que a disputa partidária-eleitoral

é componente legítimo e essencial do processo democrático, que se constitui como uma das

formas de expressão de generalidade que fundamenta a democracia, a generalidade positiva,

sendo seu canal de manifestação as instituições de conflito – partidos políticos, congresso

nacional e o processo eleitoral. Enfatiza o autor, no entanto, que esta não é a única instância

relevante (ROSANVALLON, 2011, p. 222 e ss).

Outra forma de expressão de generalidade precisa também ser assegurada, a

generalidade negativa, através da atuação de instituições contra majoritárias voltadas para o

consenso, instituições cujo foco de atuação seja garantir o aspecto substancial de igual

oportunidade para todos.32

É necessário colocar a democracia em perspectiva mais ampla, pois esta deve

criar e assegurar espaço tanto para o conflito como para o consenso, assim como para o

funcionamento dos diversos centros de interesse, seus sujeitos e instituições. A democracia

precisa ter assegurada em seu cerne a disputa política legitima o que implica em maior

regulação democrática e maior atenção à sua construção. Nas palavras do autor: “onde a

regulação é procedimental, a construção é mais substantiva” (ROSANVALLON, 2011, p.

224).

32 Aqui é necessário registrar um ponto que será considerado mais adiante. Embora o autor fale em instituições contra majoritárias no sentido de proteger os interesses comuns e as múltiplas vontades gerais das maiorias vencedoras, com a inversão de papéis ocorrida exatamente pelas diversas disputas de interesses, as autoridades reguladoras e as cortes judiciais e constitucionais em algumas circunstâncias terão, na verdade um papel majoritário, pois, além de proteger minorias para que não sejam dizimadas ou esmagadas pelas disputas de interesses, deverão principalmente proteger a soberania em suas múltiplas dimensões e manifestações, garantindo igual oportunidade a todos e mantendo aberto horizontes de múltiplas possibilidades. Nesse sentido, haverá então uma ação majoritária das autoridades reguladoras independentes e das cortes judiciais e constitucionais, mas majoritária exatamente no sentido de proteger o “lugar vazio” que precisa ser preservado na democracia contemporânea de apropriações indevidas por maiorias circunstanciais, ou, porque não dizer, das “minorias” circunstancialmente vencedoras.

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Especificamente em relação ao tema desse trabalho, é imprescindível registrar

que: se a disputa partidária-eleitoral é um dos pilares da democracia contemporânea, o

processo para escolha de ideias, interesses e representantes constitui-se como uma arena

especifica e especializada de circulação de deliberação, portanto como um dos subsistemas

políticos no qual se manifesta aspecto especifico do interesse comum. A construção

substantiva e a manifestação dos diversos pontos de vista relacionados a tal interesse

dependem de regulação procedimental capaz de garantir condições equitativas para sua

expressão. O foco aqui é a garantia da legitimidade do processo eleitoral. Esse será legitimo

se as condições procedimentais para alcance de resultados substancialmente legítimos forem

asseguradas. Essa é a tarefa das autoridades reguladoras independentes associadas e

encarregadas do processo eleitoral.

Portanto, na perspectiva da generalidade negativa, cabe à Justiça Eleitoral

brasileira a regulação do processo eleitoral a fim de garantir sua legitimidade substancial, ou

seja, que as disputas partidárias-eleitorais, compostas pelo embate de interesses divergentes e

contrapostos, aconteça dentro das regras do jogo, para entregar resultados eleitorais

substancialmente justos. A Justiça Eleitoral é, no Brasil, o ente com a atribuição de construir

consensos que viabilizem processos eleitorais legítimos, com a atribuição de criar as

condições para que instituições de conflito, os partidos políticos, participem de forma legitima

da disputa de ideias e de interesses que indicará os representantes eleitos para a próxima

legislatura.

Uma distinção crucial se faz necessária nesse ponto: eleições como um dos pilares

da democracia, como manifestação positiva substancial da “maioria”, ou das “minorias

vencedoras”, como manifestação da vontade geral, ou seja, como resultado, como escolha

objetiva e inequívoca de representantes democráticos eleitos; e eleições como processo,

processo eleitoral como procedimento, como garantia de igualdade de condições, como meio

para alcance do consenso, como meio para aceitação dos resultados eleitorais.

A Justiça Eleitoral como agente regulador do processo eleitoral atua conforme

esse segundo sentido, para garantir eleições conforme o primeiro sentido. A Justiça Eleitoral

tem por função garantir as condições de legitimidade para produção do consenso, para o

resultado do embate de ideias eleitorais, ou seja, garantir legitimidade para a solução dos

conflitos eleitorais e legitimidade para os resultados das urnas. Há mesmo um paradoxo a ser

reconhecido: para garantir resultados legítimos para o exercício de poder político pelas

instituições de conflito é necessário a atuação legítima de instituições de consenso.

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Autoridades reguladoras independentes, nesse sentido, configuram uma forma de

poder representativo embora não sejam integradas por agentes eleitos.

A tradicional representação eleitoral, por meio de representantes eleitos, incorpora

as duas dimensões tradicionais da representação previstas pela teoria política, a representação

como delegação e a representação como figuração, ampara-se, portanto, na proximidade.

Diferentemente, a representação de autoridades reguladoras independentes depende, por outro

lado, de sua abertura a inputs sociais, de sua capacidade para identificar necessidades sociais e

para funcionar em nome de todos os envolvidos, principalmente dos grupos ou de cidadãos

menos visíveis.

A representatividade das autoridades reguladoras independentes, e, portanto, sua

legitimidade de ação, ampara-se na acessibilidade, nos canais de diálogo efetivo que

estabelece com as partes interessadas para compor interesses e solucionar conflitos. A

legitimidade de sua atuação depende dos mecanismos de que dispõe para proporcionar a todos

os interessados influência nos processos de escolha das formas pelas quais os conflitos serão

resolvidos. Depende ainda de procedimentos que permitam levar em consideração todos os

argumentos das partes interessadas buscando superar perspectivas particulares para alcançar

uma forma de generalidade especifica, a generalidade negativa.

2.4 Dimensões temporais, expressões múltiplas do sujeito da democracia e reflexividade

Como registrado anteriormente, o estado democrático liberal foi criado sob a

perspectiva de três premissas básicas: a escolha dos eleitores é equiparada a vontade geral; os

eleitores são equiparados ao povo, e toda atividade legislativa e política subsequente decorre

do momento do voto.

A proposta teórica de Pierre Rosanvallon para corrigir e compensar essas três

premissas problemáticas no contexto democrático atual é o aprofundamento do exercício

democrático contemporânea sob a perspectiva do que ele chamou de democracia reflexiva. O

exercício da democracia reflexiva dá origem ao que o autor chama de generalidade de

multiplicação e a correlata exigência da legitimidade reflexiva (ROSANVALLON, 2011, p.

123).

Enquanto a generalidade negativa pretende satisfazer a demanda por unanimidade,

correspondendo-lhe a exigência de legitimidade da imparcialidade, a perspectiva reflexiva

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92

exige a pluralização de manifestações do poder político ao invés da separação, buscando a

multiplicação de abordagens mais limitadas como forma de se alcançar perspectiva mais

compreensiva do todo.

A democracia reflexiva aprofunda esforços sobre si própria e funciona através de

duas perspectivas complementares: de um lado, acrescenta maior complexidade para formas

democráticas e para sujeitos da democracia, e, de outro regula os mecanismos do sistema

majoritário.

Pierre Rosanvallon explica que Condorcet foi o primeiro teórico a enfrentar a

questão a respeito de como deveria funcionar a democracia representativa. Ainda em 1793, ao

apresentar sua proposta de constituição, o autor já teria identificado que formas diferentes

para o exercício da soberania popular deveriam existir, através da diversificação do calendário

político e na diversidade das formas de expressão política. Pierre Rosanvallon (2011, p. 128)

reconhece o valor das ideias de Condorcet e propõe chamar este conjunto de múltiplas

possibilidades de expressão da soberania popular de “soberania complexa”.

Já naquele tempo, explica Rosanvallon, Condorcet identificou duas formas de

complexidade envolvidas no conceito da vontade geral. A vontade geral como resultado da

interação entre o povo e seus representantes, e não como uma vontade anterior ao processo

político. E a soberania popular como resultado das estruturas ordinárias do governo

representativo, em complemento ao referendo e a censura, por exemplo (ROSANVALLON,

2011, p. 128).

Prossegue em sua explicação ressaltando que, enquanto as seções de Paris

imaginavam a vontade geral apenas como expressão do povo enquanto “a multidão reunida

sob os paralelepípedos da cidade”, Sieyès, no extremo oposto, imaginava a vontade geral

apenas como expressão de um órgão, visto que o povo como sujeito político somente existia

por meio da representação. Condorcet, por outro lado, buscou transcender tais perspectivas, e

propôs a abordagem da soberania como construção histórica.

Explica Pierre Rosanvallon que para Condorcet a soberania popular se expressa

através de escalas temporais diferenciadas: a de curto prazo (referendum e censura), a

periódica (eleições institucionalizadas); e a de longo prazo (constituição). E tais formas de

expressão da vontade popular estariam sujeitas a complementação, supervisão e controle de

outras formas e procedimentos para sua manifestação. Para Condorcet, “o povo real” seria um

ente complexo com manifestações plurais e a única forma de dar corpo a esse povo real é

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93

reconhecer suas diversas formas de manifestação. Nesse contexto, a separação de poderes

ganha novo sentido e passa a ser instrumento para se alcançar um exercício mais profundo de

democracia, como meio para manifestação do povo real (ROSANVALLON, 2011, p. 129).

A democracia representativa, enfatiza Rosanvallon, nos termos concebidos por

Condorcet permitia a multiplicação de temporalidades, de formas e de sujeitos da soberania,

não sendo reduzida a mera síntese ou equilíbrio de dois princípios contraditórios. Essa

abordagem é crucial para a compreensão da república moderna e para a abordagem da

generalidade democrática.

A abordagem plural dos sujeitos, das formas e dos procedimentos da democracia,

através de multiplicações de expressões parciais, permite uma aproximação mais efetiva da

generalidade democrática. Ao pluralizar fontes e representantes do poder social, Condorcet

propôs uma abordagem complexa da soberania que permite enquadrar a relação entre

liberalismo e democracia sob outro ponto de vista. Ao invés de uma abordagem que identifica

o liberalismo como limite ao exercício democrático, este passa a ser visto como aumento da

influência social no processo político. Se a sociedade possui mecanismos para interferir e

legitimar o exercício dos poderes estatais, então a generalidade social encontra-se, pelo

conjunto, no comando (ROSANVALLON, 2011, p. 129).

A pluralização das manifestações da soberania popular se dá pela abordagem

plural de seus representantes. A multiplicidade material e funcional de “o povo”, nos termos

propostos pela soberania complexa, é sua representação mais adequada. Pierre Rosanvallon

divide sua manifestação em três formas principais: o povo eleitoral, o povo social e o provo

como princípio, sendo que cada um deste é uma manifestação parcial do todo.

A manifestação do povo eleitoral (ROSANVALLON, 2011, p. 130) é sempre

fugaz e esporádica e identifica-se com a realidade numérica da urna de voto, expressando-se o

poder social nesta hipótese como manifestação instantânea da maioria. Imediatamente

manifesta-se na divisão entre minoria e maioria. Há diversas arenas, espalhadas por espaços

sociais distintos, na quais o debate político ocorre, e as eleições caracterizam uma forma de

agregar elementos tão diferenciados. Sua contribuição para a expressão da generalidade social

reside em dois pontos fundamentais: o processo eleitoral por natureza elimina controvérsias

através da expressão legitima e incontestável da maioria e as eleições consagram uma

expressão radical da igualdade, ao conceder a todos o igual direito de se manifestar pelo voto.

Embora o resultado das eleições seja dividido entre maioria vencedora e minoria que deverá

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94

se submeter, o processo eleitoral garante a legitimidade que unifica temporariamente a

expressão popular e por isso é tão relevante para a prática democrática.

O processo eleitoral oferece meio objetivo legitimo de desejar em comum, de

reduzir periodicamente a diversidade a um denominador comum, estando tal função

agregativa das eleições no centro do processo democrático. Por esta razão muitos países

adotaram instituicoes eleitorais independentes para assegurar confiança e justiça ao processo

eleitoral, reconhecendo a necessidade de uma terceira parte reflexiva como premissa

fundamental para o completo exercício democrático.

O povo social (ROSANVALLON, 2011, p. 130), por outro lado, expressa-se

como uma sucessão continua de minorias ativas ou passivas. É a perspectiva dinâmica das

relações sociais em movimento, e a busca permanente por uma convivência justa, é o

resultado das diversas interações e interconexões que delimitam questões essenciais do tecido

social, deixando evidente problemas, promessas e objetivos não alcançados.

O povo como princípio é representado pelo equivalente geral que sustenta a ideia

de igualdade e fundamenta o projeto de uma política inclusiva. É o liame que une cidadãos

pelo que estes possuem em comum, o direito a igualdade de oportunidades. Pela perspectiva

kantiana, seria o reconhecimento da dignidade inerente a todo ser humano. Sua expressão

mais evidente se dá pelo reconhecimento dos direitos fundamentais, enquanto constituição e

reconhecimento simultâneo da cidadania e da coletividade. Os sujeitos de direito são a

expressão concreta do povo como princípio, que qualquer um pode identificar. A expressão

sociológica e abstrata de “o povo” é substituída por uma expressão jurídica e concreta que

permite a identificação tangível da comunidade política e de todos os seus problemas,

discriminações e exclusões.

O povo como princípio (ROSANVALLON, 2011, p. 130) atua em dimensão

temporal mais ampla. Ao contrário do que ocorreu na época da Revolução Francesa, quando

o parlamento era a instituição que melhor representava o povo como princípio, atualmente o

órgão que melhor representa o povo como princípio são as cortes constitucionais e judiciais.

A atuação contra majoritária com foco em direitos e princípios fundamentais, aliada à técnica

jurídica de produção de racionalidade decisória, colabora diretamente para a construção ativa

da memória e da vigilância coletivas, funções politicas concretas por excelência, permitindo a

preservação da identidade da democracia ao longo do tempo.

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Cada imagem apresentada acima identifica-se com uma expressão diferente da

vontade geral. O povo eleitoral se relaciona a sua expressão numérica, a “vontade geral

expressiva”. O povo social expressa-se através da “vontade geral integrativa” que busca

eliminar distinções e erradicar discriminações, criando iguais condições de convivência

comum. O povo como princípio manifesta–se através do amplo respeito pela existência e

dignidade de cada indivíduo, sendo sua manifestação de generalidade somente possível

mediante a existência de um governo que inclua a todos incondicionalmente. O alcance da

generalidade social pressupõe então a manifestação do sujeito democrático em suas três

dimensões.

A pluralização da temporalidade política é a próxima contribuição essencial de

Condorcet ressaltada por Pierre Rosanvalon, na medida em que este compreende a

democracia como uma construção histórica, sendo esta então função do tempo

(ROSANVALLON, 2011, p. 132). O povo, enquanto sujeito político coletivo, também. O que

significa que a democracia, além de ser um sistema que permite que uma coletividade governe

a si mesma, é um horizonte temporal que permite a construção de uma identidade comum.

Nessa linha de pensamento, tempos sociais diversos precisam ser articulados para densificar o

ideal democrático: o tempo vigilante da memória, o longo prazo da norma constitucional; o

médio prazo, o tempo limitado do mandato parlamentar; e, o curto prazo da opinião pública e

das eleições. A vontade geral é, portanto, complexa e apresenta então diversas sujeitos e

formas de manifestação no tempo.

A generalidade da multiplicação se manifesta então através da pluralização em

duas dimensões: na pluralização dos sujeitos políticos e na pluralização das temporalidades

políticas.

Na sociedade contemporânea a pluralização da temporalidade do exercício

democrático é uma exigência cada vez maior. A permanente mutação social torna o

pensamento de curto prazo uma ameaça constante, sendo necessário para a manutenção dos

laços sociais um parâmetro estável, função ocupada pela representação através de princípios.

Esse é o motivo que explica o aumento de credibilidade das cortes constitucionais e judiciais

e a queda da credibilidade dos órgãos representativos tradicionais.

A democracia de longo prazo relaciona-se então com as normas constitucionais,

enquanto as decisões e escolhas realizadas pelo parlamento e pelo executivo relacionam-

se

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96

com o exercício democrático em prazo mais curto. Cortes constitucionais e parlamento são

então instituições políticas que atuam em dimensões temporais diferentes da democracia.

É essencial então compreender a estrutura da democracia, e, portanto, do sistema

político e de suas instituições, como uma construção que se realiza em escalas temporais

diferenciadas, mas interconectadas.

A reflexividade, nesse sentido, é uma forma de representação democrática que

permite a redução do abismo entre as escolhas majoritárias e a prática democrática concreta,

colaborando para aprofundamento do sistema representativo como um todo. As cortes

constitucionais e judiciais permitem outra forma de manifestação e construção da vontade

geral, em escala de tempo diferente das eleições e dos mandatos políticos, concedendo aos

cidadãos outras formas de controle sobre o poder político. Regista Pierre Rosanvallon que os

objetivos de uma democracia direta podem ser melhor alcançados através do estabelecimento

de um sistema de representação generalizado, que ultrapassa as tradicionais fronteiras do

momento eleitoral. As cortes constitucionais e judiciais colaboram com a vitalidade da

democracia através de pelo menos três formas: ajudam a corrigir as deficiências do sistema

representativo, realçam as práticas de governança democrática e realçam a qualidade da

deliberação política.

A reflexividade permite o confronto de práticas deliberativas distintas, de duas

formas de construção da vontade geral: a produção de normas pelo devido processo

legislativo e a produção de decisões através da técnica de fundamentação legal. Como explica

o autor (ROSANVALLON, 2011, p. 147):

“A reflexividade introduzida por procedimentos judiciais constitucionais multiplica as localizações, modos e tempos da deliberação pública. Ela permite a oportunidade de olhar para essas questões de ângulos diferentes. Ela ainda impõe um período de delay para reflexão. A cena deliberativa resultante tem uma composição, um caráter reflexivo, que faz com que seja possível abordar objetivos que seriam difíceis de atingir através da organização do debate público de acordo com os cânones da teoria deliberativa pura. De fato, a deliberação verdadeira é bastante exigente em termos do nível de informação, parâmetros de argumentação, e maturidade de reflexão. ”

O ponto central da reflexividade é a construção da ponte e a redução de distâncias

entre a democracia definida como procedimento e a democracia definida como conteúdo.

Nesse contexto, novos requisitos são adotados para coordenar as diversas

expressões da vontade geral. Procedimentos de imparcialidade e de reflexividade são

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incorporados para evidenciar outras dimensões do exercício democrático, para além da

tradicional composição do sistema representativo eleitoral.

O aprofundamento do exercício democrático ao longo do século XX e XXI

demonstra a exigência de novos procedimentos e instituições para a prática democrática

contemporânea deixando claro a insuficiência da abordagem unidimensional e monista

original. A multiplicação de sujeitos e espaços da democracia trouxe a necessidade de meios

mais elaborados e múltiplos para expressão da vontade geral, como dito, e foi nesse contexto

que apareceram as autoridades reguladoras independentes e as cortes constitucionais como

novas arenas de circulação de poder político.

Para Pierre Rosanvallon, as cortes constitucionais e judiciais apresentam uma

função diferente das abordagens tradicionais que as equiparam a legisladores negativos ou a

percebem como limite ao exercício democrático. Entende o autor que além da tarefa de

supervisão as cortes constitucionais constituem-se como espaço para “um regime de

expressões concorrentes da vontade geral”,33 na medida em que concedem poderes aos

cidadãos para questionarem a atuação de diversas instituições e para apresentar pontos de

vista diferenciados sobre a interpretação das normas, configurando uma forma de resistência

popular. A possibilidade de participação na construção de argumentos e fundamentos pelos

cidadãos, e, portanto, a capacidade de influenciar as decisões das instituições reflexivas, seria

para o autor uma forma equivalente de exercício de democracia direta (ROSANVALLON,

2011, p. 137 e ss).

As eleições e a revisão constitucional seriam por excelência canais para cidadãos

realizarem o controle social sobre o poder do parlamento. Sendo importante frisar que estes

são canais complementares e não concorrentes.

Explica o autor que o aumento da complexidade social deu origem a um mundo de

singularidades que já não comporta apenas a expressão unidimensional do povo eleitoral

como forma de legitimação do poder político. A fragmentação da percepção do bem comum

e a intensa dinâmica social trouxeram a exigência de espaços diferenciados e concretos para

construção do seu conteúdo, tornando fundamental para a convivência democrática a criação

de arenas específicas para atuação do povo como princípio (ROSANVALLON, 2011, p. 141).

O exercício de soberania, sob tais lentes, é muito mais amplo que participar do

momento eleitoral, significa ter a oportunidade de discutir efetiva e ativamente as diversas

33 Expressão emprestada da formulação de Dominique Rousseau (ROSANVALLON, 2011, p.139).

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perspectivas para aplicação das normas de convivência comum e para a interpretação do bem

comum. Os procedimentos nos quais são discutidas as normas constitucionais, aparecem

assim como novos espaços deliberativos significativos.

Essa abordagem fornece novo sentido para a relação entre supervisão

constitucional e princípio majoritário, colocando em nova perspectiva o debate entre

constitucionalismo e democracia.

A democracia então precisa ser abordada pelo menos sob duas perspectivas

distintas: democracia como regime e democracia construída como forma de sociedade. É

necessário o reconhecimento simultâneo do conflito institucionalizado e das instituições de

consenso, o que significa dizer que o processo democrático necessita atender tanto a

exigências de escolhas periódicas entre programas e indivíduos significativamente diferentes,

como é necessário o estabelecimento de instituições que permaneçam acima destas diferenças

para promover o interesse geral (ROSANVALLON, 2011, p. 163).

Enquanto regime jurídico, a democracia depende do permanente embate de ideias

e opiniões para se manter como caixa de ressonância dos anseios sociais. De outra

perspectiva, a democracia como forma de sociedade depende de instituições capazes de

construir consensos, de direcionar esforços e reduzir desigualdades, garantindo oportunidades

e igual acesso a possibilidades.

A legitimidade das instituições de reflexividade e da imparcialidade dependem

então, tanto do reconhecimento de seu caráter representativo, como do seu reconhecimento

pelos cidadãos, qualidade que precisa ser testada a todo tempo.

Esse fenômeno refle as mudanças da dinâmica social e aparece como resultado de

aspirações democráticas de maior justificação para as decisões políticas, maior abertura e,

acima de tudo, maior imparcialidade (ROSANVALLON, 2011, p. 171 e ss).

2.5 Procedimento como meio de legitimação das ações estatais

Atualmente o procedimento importa. A forma como o funcionamento de órgãos e

instituições públicas é percebido pela sociedade faz diferença. Apenas a entrega de serviços e

produtos pelo Estado não são mais suficientes para suprir as demandas sociais e garantir a

legitimidade das instituições governamentais. Em uma sociedade que se diferencia a cada dia

e na qual o indivíduo tem importância fundamental, demonstrar que os argumentos de todos

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são considerados e que cada um tem seu espaço de manifestação garantido também é fator

crítico para aferição de legitimidade.

A ideia de uma “democracia da proximidade” foi oficialmente consagrada em

2002, na legislação francesa, conforme registra Pierre Rosanvallon (2011, p. 171).

Proximidade é a palavra que expressa a demanda contemporânea para o exercício da

cidadania. Todos desejam ser ouvidos, todos desejam saber que importam, todos desejam ter

meios para registrar suas demandas e receber respostas.

A proximidade se relaciona com a ideia de atenção ao particular e de efetiva

consideração das circunstâncias de cada um, sendo esta uma variável determinante para na

constituição da percepção da legitimidade das instituições.

Eficiência e transparência são variáveis que colaboram decisivamente para a

percepção de proximidade em relação às instituições. Em sociedades multiculturais, a

preocupação com a proximidade e a imparcialidade será cada vez maior pois a construção da

vontade geral depende do sentimento de inclusão e da construção de boas relações entre

cidadãos e instituições. A coexistência social contemporânea ampara-se na coordenação da

ideia de direitos iguais com a diversidade. A legitimidade das instituições democráticas

depende desse reconhecimento.

O “fluxo de legitimidade” tornou-se estruturalmente mais frágil e fragmentado em

virtude da aceleração, modificação e multiplicação do tempo político e da dificuldade de se

identificar maiorias em meio a diversidade. A incorporação ao sistema político de instituições

atentas as particularidades e próximas dos indivíduos tornou-se então necessidade imperativa

para fortalecimento das fundações democráticas e para garantir governabilidade.

Enquanto as formas de generalidade negativa e reflexiva resultam das demandas

por imparcialidade e reflexividade, a forma de generalidade da proximidade decorre das

demandas por acessibilidade, transparência e receptividade ao outro. O conceito de mandato

já não é suficiente para suprir a defasagem entre governo e sociedade e estabelecer o grau de

proximidade necessário. Cidadãos já não se contentam apenas com o sistema representativo

eleitoral como forma de participação, há uma exigência por maior intervenção em todos os

momentos e em todas as dimensões do exercício democrático. Ha exigências de

implementação de meios para um intercâmbio aberto e efetivo, para reconhecimento da

batalha que se trava diariamente pela justificação de ações políticas e governamentais. Ha

ainda a exigência de garantia de meios para troca efetiva de informações entre governo e

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100

sociedade, que serve para o governo como instrumento de ação para construção de sua

legitimidade e para os cidadãos como mecanismo de reconhecimento. A justificação e a troca

de informações são processos interativos que se constituem como elementos essenciais da

legitimidade das instituições governamentais, não apenas do parlamento, mas da máquina

burocrática como um todo.

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CAPÍTULO 3

ALINHANDO CRITÉRIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DA ATIVIDADE REGULATÓRIA DA JUSTIÇA ELEITORAL

Nas últimas décadas do século XX, o Estado para enfrentar as múltiplas demandas

sociais incorporadas ao longo do período, viu-se diante de enorme sobrecarga e falência do

modelo previsto pelo Estado de bem-estar social ao buscar funcionar como grande fornecedor

central de serviços públicos (BARROSO, 2003, p. 15 e ss). A velocidade, diversificação e

especialização das demandas sociais fizeram com que a elaboração de políticas públicas

centralizadas e a prestação do serviço público ganhassem novos contornos.

Desburocratização, desregulamentação, privatização, foram movimentos que

ganharam forte impulso nos anos 1980 e 1990 modificando a relação entre o Estado, a esfera

pública e o mercado. Diversas atividades e bens monopolizados pelo Estado passaram a ser

explorados pela iniciativa privada e atividades privadas foram classificadas como de interesse

público, ficando o Estado responsável por delimitar a moldura jurídica para seu exercício

(BARROSO, 2003, p. 16 e ss).

O reconhecimento, incorporação e consolidação progressiva de direitos

individuais e coletivos no catálogo de direitos fundamentais positivados nas constituições

contemporâneas, após o segundo pós-guerra, que acompanharam a transformação do Estado

Liberal para um Estado do Bem Estar Social e finalmente para o que hoje se denomina na

literatura de Estado Democrático de Direito, tem exigido de forma permanente a revisão de

valores, dogmas e conceitos tradicionais incorporados e consolidados pelo sistema jurídico

ao longo dos séculos XVIII e XIX, com enorme impacto ainda nos dias de hoje.

A atuação regulatória estatal amplamente centralizada fortaleceu-se e depois

entrou em crise, ao longo século XX, e esse fenômeno deslocou o centro de poder político

institucionalizado e concentrado para a periferia, ou seja, de um poder administrativo

altamente burocrático e centralizado para polos de poder administrativo e político

descentralizados, tecnicamente especializados e diversificados. Essa transformação da

atividade regulatória do Estado e a consolidação progressiva da nova correlação de forças

políticas e sociais impactou diretamente o sistema jurídico, transformando a estrutura da

divisão de poderes tradicionais herdada da democracia liberal.

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Nesse sentido, novas teorias foram elaboradas para buscar explicar a

transformação da atividade regulatória do Estado. Diversas esforços acadêmicos

multidisciplinares permanecem sendo feitos para tentar entender e explicar tal fenômeno.

Nos dois primeiros capítulos a regulação foi abordada sob o ponto de vista de

duas teorias da democracia a fim de que fossem identificados critérios para aferir sua

legitimidade no Estado Democrático de Direito. Agora serão apresentados esforços para

compreender este mesmo fenômeno da regulação sob a perspectiva da teoria jurídica.

3.1 Sentido contemporâneo para o termo regulação

Compreender o sentido e significado do termo regulação demanda em primeiro

lugar reconhecer o intercâmbio de ideias existente nas diversas abordagens sobre sistemas e

em especial sobre os sistemas econômico, político e jurídico na medida em que as construções

teóricas e científicas sobre estes temas influenciam-se reciprocamente.34

Embora a economia seja um sistema independente ao lado de outros, o

funcionamento do sistema capitalista de produção, com sua lógica própria, tem sido fator

determinante para a forma como as relações sociais e políticas se estabelecem, influenciando

diretamente a normatização estatal, o sistema de direitos e, por conseguinte a forma como se

compreende o termo regulação.

A racionalidade das relações econômicas decorrente da estrutura de mercado

capitalista tem tido influência decisiva no Estado moderno, como salienta Max Weber ao

longo de sua obra Economia y Sociedad (WEBER, 2009). As relações sociais e políticas que

sustentam o modo de produção capitalista são balizadas por normas jurídicas que definem

34 Conforme explica Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “A ideia de regulação, também conotada a equilíbrio, aparece na Biologia para designar a função que mantém o balanço vital dos seres vivos, um conceito que mais tarde se expandiria e se aperfeiçoaria com a descrição da função autopoiética, tendo alcançado as ciências sociais, a partir de sua adoção na Teoria Geral dos Sistemas, criada em 1951, por Ludwig von Bertalanfy, passando a ser descrita genericamente como a função que preserva o equilíbrio de um modelo em que interagem fenômenos complexos. No Direito o conceito teórico de regulação sistêmica, inovando uma nova percepção do equilíbrio na convivência, surgiu muito depois das experiências históricas haverem desenvolvido certas funções reguladoras setoriais. Realmente, desde a Idade Média já se havia percebido a conveniência de articular-se uma harmonização setorial de interesses complexos para alcançar um micro equilíbrio independente do todo social; foi o que ocorreu, ainda no âmbito exclusivo da autorregulação, com a experiência das corporações de oficio, e, na Idade Moderna, com a disciplina desenvolvida na Alemanha para o uso das águas e com as anglo-saxônicas, aplicadas inicialmente aos setores de transporte aquaviários, nos Estados Unidos, e ferroviários, na Inglaterra. O pioneirismo desses dois países anglo-saxões no campo da regulação setorial independente de interesses, não só se revela na multiplicação dos entes encarregados dessas novas funções como na elaboração doutrinaria que se foi neles amealhando” (MOREIRA NETO, 2003, p. 67).

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suas regras, permitindo e amparando seu desenvolvimento. Esse intercâmbio permanente

demonstra que o tecido social possui fontes de integração diversas sendo a moeda, o sistema

de direitos, a solidariedade e o Estado expressões por excelência de tais fontes de integração.

Realizadas estas considerações, é preciso registrar que um dos referenciais mais

importantes que deu origem a estudos sobre regulação foi o Teorema de Pareto, o “ótimo de

Pareto”, de Vilfredo Pareto, elaborado, entre o final do século XIX e início do século XX,

para abordar a eficiência econômica e a ideia de equilíbrio geral.

Diversas outras produções acadêmicas também se utilizaram desse mesmo marco

teórico para o desenvolvimento de conceitos da microeconomia, para análises sobre a

ineficiência do sistema econômico e a necessidade de intervenção, e muitas resultaram em

teorias sobre falhas de mercado e equilíbrio sistêmico, como por exemplo, a teoria da

regulação proposta por George Stigler, em sua produção The theory of economic regulation,

publicada em 1971, o Diagrama de Edgeworth e a Teoria da Agência,35 tendo este marco

teórico impactado até mesmo debates sobre equidade.36

Todas essas pesquisas tiveram seu escopo ampliado e também serviram de

referencial para inferências sobre eficiência social e para a elaboração de teorias

sociojurídicas sistêmicas, como por exemplo as propostas por Massimo Severo Giannini e sua

Teoria dos Ordenamentos Setoriais, por Niklas Luhmann e sua Teoria dos Sistemas Sociais e

por Gunther Teubner na sua obra O Direito como sistema autopoiético, em 1989.

Considerando-se que o termo regulação pode ser conceituado por perspectivas

diversas – como por exemplo, a sociológica, a econômica, a jurídica – faz-se necessário

apresentar alguns conceitos com a finalidade de delimitar o sentido que se pretende adotar

nessa pesquisa.37

Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2003, p. 91) a regulação é um novo tipo

de atividade jurídica do Estado que busca superar as linhas tradicionais da administração

burocrática de feição positivista, através da incorporação de aspectos democráticos à

administração pública, com ênfase na eficiência, na legitimidade e na efetividade, aspectos de

natureza secundária no contexto anterior. Para o autor, a regulação “como instituto vitorioso

35 Nesse sentido ver: PINDICK e RUBINFELD, 2002, principalmente a Parte 4 – Informação, Falhas de Mercado e o Papel do Governo.36 Em Pindick e Rubinfeld são referenciadas quatro visões de equidade: a igualitária, a Rawlsiana, a utilitária e aorientada pelo mercado, no ponto que discute equidade e competição perfeita (PINDICK e RUBINFELD, 2002, p. 581).37 Para outras referências sobre o conceito de regulação contemporânea ver: PIETRO, 2012, p. 525; SUNFELD, 2000, p. 29-47; MOREIRA, 1997.

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disseminado pela nova revolução liberal” marca ponto de inflexão quanto à irresponsabilidade

política e incorpora novos referenciais democráticos na gestão de interesses públicos.

Paulo Todescan Lessa Mattos (2006, p.35-38) considera que o ato de regular

equivale ao exercício de função normativa. Quando a regulação decorre de atividade do poder

executivo, esta é chamada de regulação administrativa. Esta deriva de normas secundárias e

normas terciárias, possui fundamento em norma primária, faz a previsão de direitos e

deveres, altera e especifica condicionamentos e restrições já previstos em normas primárias

editadas pelo parlamento. As normas produzidas pela regulação resultam da delegação

legislativa e por esta razão podem adaptar e especificar o conteúdo de normas primárias,

gerais e abstratas em face de novas situações. A delegação legislativa estaria justificada em

face de exigências para aumento da eficiência, para correção de problemas de legitimidade, e

em virtude da ausência de expertise do parlamento. O Poder Legislativo não possui

conhecimentos dos detalhes (expertise) do setor regulado nem capacidade operacional

(eficiência) para lidar com todas as exigências da regulação. Registra o autor que “um sistema

jurídico moderno não tem como ser concebido apenas como um sistema estático fundado em

normas primárias estabelecidas por um Poder Legislativo soberano, gerando a exigência de

delegação de poder normativo (problemas de legitimidade) ” (MATTOS, 2006, p. 35-38).

No mesmo sentido, Marçal Justen Filho (2002) aponta que a regulação

econômico-social abrange a atividade estatal sistemática de intervenção indireta sobre o

comportamento dos sujeitos públicos e privados, para implementar políticas públicas e

realizar direitos fundamentais. Odete Medauar (2002, p. 123-128) registra que a regulação

atual abarca a edição de normas; a fiscalização do seu cumprimento; a atribuição de

habilitações como por exemplo autorização, permissão e concessão; a cominação de sanções;

a mediação de conflitos através de técnicas como consultas públicas, audiências públicas,

celebração de compromisso de cessação e de ajustamento; podendo abranger até mesmo

fixação de políticas públicas para o setor regulado.

Para Alexandre Santos de Aragão (2013, p. 40), em seu livro Agências

Reguladoras e a Evolução do Direito Administrativo Econômico, a regulação contemporânea

pode ser definida como:

“A regulação estatal da economia como o conjunto de medidas legislativas, administrativas, convencionais, materiais ou econômicas, abstratas ou concretas, pelas quais o Estado, de maneira restritiva da autonomia empresarial ou meramente indutiva, determina, controla ou influencia o comportamento dos agentes econômicos, evitando que lesem os interesses sociais definidos no marco da Constituição e os orientando em direções socialmente desejáveis. ”

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105

Como explica Aragão, a noção de regulação implica no exercício integrado de três

poderes: poder normativo, ao qual corresponde a imposição de quadro normativo geral e

abstrato às atividades econômicas; o poder de assegurar sua aplicação, como aplicação

concreta de regras, através de decisões individuais, caso a caso; e, o poder de reprimir

infrações, compondo disputas e conflitos, através da apreciação concreta, caso a caso.

Nesse contexto, a “regulação para a competência” (ORTIZ, 1999), de inspiração

na Comunidade Europeia, também aparece como enfoque diferenciado da regulação

econômica tradicional, ao buscar compor características da tradição europeia de serviços

públicos com aspectos mais flexíveis de uma regulação estatal voltada para a determinação de

quadros normativos para a regulação das atividades econômicas.38

Observe-se que, ao lado dos mecanismos tradicionais de regulação, em especial o

poder de polícia de fundamento liberal, a regulação econômica contemporânea incorpora a

sua atuação objetivos finalistas que exigem atuações estatais positivas, em perfeita sincronia

com os propósitos do Estado Democrático de Direito, o que justificaria a ampliação de

poderes atribuídos às autoridades independentes. Nesse sentido, inclusive a compreensão do

tradicional poder de polícia precisa ser revista. Nas palavras de Alexandre Aragão (2013, p.

38):

“Propugnamos, ao revés, um conceito de poder de política adequado ao Estado Democrático de Direito e à complexidade socioeconômica em que vivemos; que seja funcionalizado em razão dos interesses públicos a serem atendidos pelas atividades privadas, em relação às quais o Poder Público pode, observados os limites legais, dimensionar de maneira dinâmica o conteúdo e a extensão. Não se trata mais apenas de evitar que um particular fira os direitos dos demais, mas também de direcionar a sua atividade na senda dos interesses públicos juridicamente definidos. ”

Dessa forma, as novas formas de regulação estatal da economia, em sentido

amplo, poderiam ser assim enumeradas, conforme ensina Alexandre Aragão (2013, p. 35):

regulação estatal, realizadas através de normas expedidas por órgãos e entidades do próprio

Estado, ainda que com a participação de organismos intermédios da sociedade; regulação

pública não estatal, realizada por entes da própria sociedade, mas por delegação ou por

incorporação das suas normas ao ordenamento jurídico estatal; autorregulação realizada por

38 No mesmo sentido, afirma Massimo Giannini: “ a regulação dos anos menos recentes é embebida de controles e de relações de controle; já a dos anos mais recentes registra a tendência a substituir relações de controle por relações de direção, aparentemente mais elaboradas e ponderadas; a relação de direção compreende ainda o controle, mas que, de maneira muito mais flexível, sobretudo permite a adoção de medidas corretivas, em sentido próprio, das disfunções verificadas, que, ao invés de serem reprimidas com medidas sancionatórias, são eliminadas mediante a adoção de medidas corretivas, frequentemente informais.” (GIANNINI, 1995, p 299).

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instituições privadas sem delegação ou interferência estatal; e, desregulação, assim

consideradas aquelas atividades livremente desenvolvidas sujeitas apenas às regras de

mercado.

A atividade regulatória antes amparada em normas gerais e abstratas expedidas

pelo parlamento, para se adequar à velocidade e pluralidade do Estado contemporâneo, são

agora produzidas por diversos polos atomizados de poder, tornando-se parte significativa da

atividade regulatória exercida por medidas concretas de autoridades administrativas

independentes. Nessa mesma linha de pensamento, Paulo Todescan Mattos (2006, p. 38-39)

acerca do tema, registra que o fenômeno da delegação legislativa se estruturou ao longo do

século XX como resposta mais eficiente que a legislativa à necessidade de especialização

técnica da burocracia estatal para regulação do sistema econômico.

Com a funcionalização da atividade regulatória, a ação do órgão regulador atual,

além de atender aos aspectos formais da lei, precisa alinhar-se a valores e princípios da ordem

jurídica, para alcançar legitimidade também material. Como bem resume J.J. Canotilho

(2009, p. 1085), a legitimidade do Estado passa a amparar-se na realização de finalidades

coletivas e não mais na expressão legislativa da soberania popular.

Na linha dos conceitos apresentados, a regulação contemporânea caracteriza-se

então pela atribuição de função regulatória autônoma a um órgão regulador, decorrente de

delegação legislativa, a qual corresponde um conjunto de poderes para induzir, restringir,

determinar, controlar ou influenciar o comportamento dos agentes do setor regulado, com as

especiais intenções de realizar finalidades coletivas, proteger e implementar direitos

fundamentais. A regulação autônoma orienta-se por padrões de eficiência, efetividade e

legitimidade do sistema jurídico, enquanto referenciais democráticos para a gestão de

interesses públicos.

3.2 Fundamentação teórica para a atividade regulatória contemporânea

Ao longo do século XX a administração pública foi incorporando a tutela dos

mais variados interesses sociais, o que teve por consequência a ampliação e especialização do

aparato estatal, com a consequente autonomização da burocracia (GIANNINI, 1970, p. 33 e

ss) e a reorganização dos poderes públicos.

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Como visto, a estrutura de poder político centralizada da modernidade foi

transformada pela consolidação de subsistemas político-jurídicos, e pelo consequente

aparecimentos de novos órgãos e entes legitimados a produzir normas jurídicas, que se

multiplicaram alterando a correlação de forças até então concentradas no Estado central. O

resultado desse movimento foi a criação de novos centros de poder especializados, dotados de

autonomia em graus diferenciados, funcionando lado a lado com as instituições tradicionais

do estado liberal, dando origem ao fenômeno do pluralismo social e estatal.

O novo desenho político-jurídico de organização social desloca e atribui

competências normativas para novas unidades intermediárias mediadoras das relações entre

Estado e cidadãos, com lógica diversa do universalismo e racionalismo liberal do século

XVIII. Agências reguladoras, organizações sociais, parcerias público-privadas, entidades

coletivas, etc., constituem novos centros de decisão política e organização social.

A concepção de uma pluralidade de ordenamentos jurídicos que se relacionam de

maneiras diversas - seja um subsistema ou subsistemas contidos em outro, seja por uma

relação de coordenação ou intersecção de sistemas, seja pela convivência de diversos sistemas

jurídicos paralelos – perpassa a história do Direito, do Império Romano com a ideia de “law

of the land” para estrangeiros, atravessando a época pré-medieval e medieval, passando pela

concentração de fontes jurídicas no século XVIII, pós Revolução Francesa, para novamente

emergir como paradigma renovado a partir da segunda metade do século XX.

A defesa da ideia de pluralismo jurídico realizada pelo jurista Santi Romano

(2008), em sua Teoria dos Ordenamentos Jurídicos, publicada na Itália em 1946, partindo da

perspectiva das instituições, oferece contribuição relevante para a compreensão do fenômeno

contemporâneo da descentralização administrativa para órgãos independentes e autônomos.

Considera o autor que a existência de instituições decorre da diferenciação de corpos sociais

dentro do sistema jurídico, compondo, portanto, cada instituição um ordenamento jurídico

diferenciado, perspectiva discutida por diversos autores. Em posição oposta, estão outros

autores que defendem que, em última instância, o Estado deterá sempre domínio da fonte

originária do Direito, sendo as demais fontes derivadas.

A Teoria dos Ordenamentos Sociais, desenvolvida inicialmente pelo publicista

italiano Massimo Severo Giannini (1970), inspirada na obra de Santi Romano, aparece como

apreensão sistematizada dessa nova realidade, marcando o debate a respeito da concepção dos

ordenamentos setoriais como categoria autônoma da Teoria Geral do Direito e do Direito

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regulatório do Estado. Essa teoria ao lado de construções doutrinária a respeito de nova

abordagem para o princípio da legalidade e para a tradicional divisão de poderes caracterizam

pontos de inflexão para a consolidação de uma nova compreensão das relações envolvendo o

direito administrativo.

A noção proposta pela ideia de ordenamentos setoriais e os institutos a ele

correlacionados apresentam um interessante caminho para se pensar como ocorre a interface

entre o direito, a economia e a política, partindo das transformações das relações sociais e seu

impacto direto no Direito Público. Nessa direção, aparecem como questões relevantes: a

pluralização das fontes normativas, que deixam de ter sua sede exclusiva no parlamento; o

funcionamento, ao lado dos poderes tradicionais do Estado, de órgãos e instituições dotados

de independência e autonomia como parte essencial de subsistemas jurídicos; e a adoção de

mecanismos gerenciais, finalísticos e autônomos como forma de flexibilização do modelo

tradicional, verticalizado e hierárquico de Administração Pública (ARAGÃO, 2013, p. 7).

Os ordenamentos setoriais configuram uma espécie do gênero ordenamentos

jurídicos derivados do ordenamento jurídico central, o Estado, estabelecendo com esse um

necessário diálogo. Normalmente os ordenamentos jurídicos setoriais são criados pelo Estado

como resposta a demandas impostas por relações sociais muito específicas e técnicas no

âmbito da economia ou da política, e por consequência, para resguardar aspectos sensíveis ao

interesse coletivo que não devem ficar à disposição do arbítrio privado (ARAGÃO, 2013, p.

98).

Compreende Alexandre Aragão (2013) que os ordenamentos setoriais teriam por

função a regulação das atividades empresariais ou profissionais, por imposição da economia e

da técnica. Será assumido nesse trabalho que, ao lado da atividade regulatória do Estado por

exigências do sistema econômico, esta também se impõe por força do sistema político e

jurídico, e por consequência, das relações sociais que precisam de garantias para o exercício

de direitos fundamentais. O entrelaçamento entre interesses específicos de um grupo social

com um interesse estatal sensível faz com que tais interesses sejam elevados à categoria de

interesse público passando a compor a esfera de interesses tutelados pelo Estado.

A multiplicação de interesses públicos técnicos e específicos, nesse sentido, faz

com que sejam criados pelo Estado ordenamentos setoriais especializados, politicamente

independentes de sua administração central, ou seja, sem relação de hierarquia ou de controle

direto, mas ainda assim submetidos às normas do sistema jurídico central.

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Tais ordenamentos setoriais podem ser conferidos entidades públicas ou privadas

que passarão a regular as atividades relacionadas a determinado interesse público específico,

ficando vinculados todos os envolvidos ao novo subsistema jurídico estabelecido (ARAGÃO,

2013, p. 23). Como exemplo de ordenamentos setoriais atribuídos pelo Estado a instituições

independentes e autônomas em relação ao poder central estatal, mas ainda assim vinculados

ao sistema jurídico central, podemos citar, no Brasil, as agências reguladoras e, em especial

para esta pesquisa, a Justiça Eleitoral (questão que a ser discutida na segunda parte). Em

outros países podemos citar as autoridades independentes francesas, italianas, espanholas e as

commissions nos Estados Unidos (ARAGÃO, 2013, p. 18).

Indivíduos ou pessoas jurídicas estarão vinculadas a ordenamentos setoriais

sempre que desejarem exercer atividades que demandam autorizações, licenças, permissões,

registro, concessões, ato ou contrato administrativo anterior, habilitação especifica, enfim,

sempre que tais atividades estiverem submetidas às normas e condições específicas

determinadas por instituição regulatória autônoma.

O microssistema jurídico de um ordenamento setorial é integrado por todos

aqueles que participam da atividade ou que sejam atingidos pelo interesse tutelado, as partes

interessadas. Assim, órgãos, instituições, particulares, empresas, estarão todos submetidos à

atividade regulatória deste microssistema e sobre ele exercerão influência. Nos ordenamentos

setoriais, então, poderão sempre ser identificados um elemento organizacional, uma produção

normativa própria e uma pluralidade de sujeitos que participam do funcionamento da

instituição (ARAGÃO, 2013, p. 19).

Normatização própria, na acepção proposta por Giannini, pressupõe a criação de

normas pelo próprio grupo e a respectiva submissão a estas por todos os sujeitos envolvidos

na atividade regulada. E tais normas devem ser parte de um subsistema, que como tal precisa

necessariamente se organizar segundo princípios capazes de garantir sua integridade, e de

coordenar-se com o sistema jurídico central.

Nesse ponto vale consignar um primeiro pré-requisito essencial para futura

avaliação da legitimidade do órgão regulador: a norma do ordenamento setorial precisa ser

elaborada com a possibilidade de participação influente de todos os envolvidos, este será o

meio para garantir o filtro de legitimidade para a produção normativa do sistema. Garantir

canais efetivos para validação das normas regulatórias é a primeira pré-condição de

legitimidade do ordenamento setorial.

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110

Como aponta Alexandre Aragão (2013, p. 20), os órgãos ou entidades de

ordenamentos setoriais criados por lei, praticam grande variedade de poderes: poderes

normativos, propriamente ditos ou de natureza concreta; poderes para solução de conflitos de

interesses; poderes investigativos; poderes fomentadores; poderes de fiscalização preventiva

ou repressiva; e poderes inclusive para afastar ou impedir a participação de sujeitos do

ordenamento setorial. Vale registrar que o conjunto de poderes atribuídos às autoridades

administrativas independentes constituem poderes para verdadeiramente criar e implementar,

em maior ou menor grau, políticas públicas especificas para os setores sociais regulados.

A “teoria da gradação da positividade jurídica”, é uma outra alternativa proposta

contemporaneamente por Miguel Reale (2000, p. 303 e ss.) na tentativa de encontrar um meio

termo para compatibilizar e coordenar a possibilidade de um pluralismo de instituições

autônomas com a soberania estatal, diferenciando-se as instituições por graus distintos de

estabilidade e coercitividade, apresentando grau máximo de positividade apenas aquelas

criadas ou reconhecidas pelo próprio Estado.

O que se tem verificado na prática é que o compartilhamento de um espaço de

convivência comum por cidadãos de uma sociedade complexa, cada vez mais dinâmica e

diferenciada, tem dado ensejo à multiplicação de espaços normativos desocupados e muito

especializados não alcançados pelo poder político centralizado. Estes espaços diferenciados

socialmente, se relevantes, serão preenchidos cada vez mais por instituições – privadas,

públicas ou semi-públicas – autônomas e com produção normativa própria.

A avaliação da atividade regulatória do Estado contemporâneo precisa então ser

compreendida exatamente através do paradigma renovado do pluralismo político e dos

ordenamentos setoriais, ou seja, partindo de uma perspectiva que permita a compatibilização

entre órgãos reguladores com autonomia jurídico-normativas diferenciada e o Estado

Democrático de Direito; que favoreça diálogo permanente e equacionamento das tensões entre

os diversos subsistemas jurídicos e o sistema central, para permanente elaboração de

resultados politicamente legítimos.

O Estado sempre teve entre suas funções essenciais a regulação. Se antes a

regulação aparecia de forma centralizada, com o Poder Legislativo fornecendo as diretrizes

através de políticas públicas escolhidas que deveriam ser implementadas pelo Poder

Executivo, agora com a emergência e consolidação de uma sociedade plural e complexa, a

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atribuição regulatória do Estado adotou novas feições, alterando-se as tradicionais formas de

intervenção do Estado.

A prestação de serviços públicos, mecanismo mais intenso de regulação social,

que antes alinhava-se com a ideia de monopólio de determinadas atividades pelo Estado, sofre

de forma permanente alterações conforme o contexto socioeconômico e jurídico e por

consequência o seu conceito não é exatamente unânime e estável.

O foco da tradicional e forte intervenção estatal alterou-se: de interventor direto

como prestador de serviços públicos o Estado assumiu papel regulador das atividades sociais,

passando a coordenar múltiplos e atomizados centros de interesse, através de órgão e entes

técnicos especializados e independentes.

Nesse contexto, a concepção de serviço público é ampliada e flexibilizada para

contemplar a nova realidade. Nesse sentido, explica Alexandre Aragão (2013, p. 147):

“O conceito de serviço público, tradicionalmente o mais forte mecanismo de regulação social, tem passado por grandes desafios: se mantido o seu conceito tradicional de atividade exclusiva da esfera pública, cujo mero exercício poderia ser delegado a particulares, terá as sua esfera bastante reduzida; se ampliado o seu conceito para todas as atividade, ainda que não exclusivas do Estado, em que este exerça uma regulação ordenadora, o serviço público alcançara uma amplitude tal que dispersará o seu conceito, abrangendo realidades díspares.”

Torna-se necessário, então, compreender o conteúdo nuclear do serviço público

(publicatio) que o diferencia da atividade econômica latu sensu, circulação de bens e/ou

serviços do produtor ao consumidor: serviço público é a atividade econômica latu sensu

assumida pelo Estado para atendimento direto de necessidades ou utilidade públicas,

norteadas pelos princípios de universalidade e igualdade, com objetivos de justiça e

solidariedade social (ARAGÃO, 2013, p. 147).

Ao contrário do serviço público (publicatio), as atividades econômicas strictu

sensu são aquelas que apresentam interesse fiscal ou estratégico para o Estado e que, em

algumas hipóteses constitucionais podem ser monopolizadas. Nesta perspectiva o Estado atua

de forma empresarial e econômica, concorrendo com os demais agentes da iniciativa privada.

A grande dificuldade que se apresenta é verificar se todos os serviços públicos são

atividades monopolizadas pelo Estado ou se estariam abrangidas também como serviços

públicos as atividades privadas que, em razão de obedecerem aos princípios da universalidade

e igualdade, com impacto direto em toda a coletividade, são de interesse público e, portanto,

sujeitas à coordenação e rígida regulação estatal. Estas são atividades privadas de interesse

público autorizadas, sujeitas à ordenatio. Como explica Alexandre Aragão (2013, p. 150): “as

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atividades econômicas que estamos abordando atendem diretamente à coletividade, estando

sujeitas a uma autorização prévia operativa, que, além de possibilitar ao particular o exercício

da atividade, investe o Poder Público de uma série de poderes de direção sobre a atividade

sem que a titularize. ”

O princípio da proporcionalidade e o princípio da subsidiariedade são os

parâmetros que devem orientar a intervenção do Estado nas relações sociais. Sempre que a

intervenção estatal puder se dar de forma menos gravosa para a iniciativa privada, esta deve

ser a opção eleita. As atividades privadas de interesse público autorizadas aparecem

exatamente como reflexo do princípio da proporcionalidade e da subsidiariedade: se para

alcance dos objetivos e finalidade coletivos, com maior eficiência, a iniciativa privada pode

realizar atividades de interesse coletivo e prestar serviços essenciais, esta deve ser a forma

escolhida, cabendo ao Estado a conformação dessas atividades e serviços às finalidades

públicas.

Assim, a execução de serviços públicos de titularidade estatal pode ser atribuídos

à iniciativa privada através dos institutos da concessão e da permissão, e as atividades

privadas de interesse público são ordenadas pelo Estado mediante o instituto da autorização.

Após estas considerações torna-se compreensível a sustentação realizada por

Alexandre Aragão (2013, p. 153) de que os serviços públicos podem ser conceituados de

forma ampla no sistema jurídico brasileiro, considerando-se como tais “todas as atividades de

interesse da coletividade sujeitas aos princípios da continuidade, universalidade, sejam elas

titularizadas pelo Estado ou pela iniciativa privada. ” Explica ainda o autor que na hipótese

de transferência da execução de serviços públicos mediante concessão ou permissão, é

estabelecida uma relação endógena entre a regulação estatal e o particular permissionário ou

concessionário, na medida em que o Estado normatiza a prestação do serviço.

Na hipótese de atividade de interesse público autorizada, a relação que se

estabelece entre o particular autorizado e o Estado é exógena, visto que não será o serviço

público normatizado, mas sim direcionado para que a execução da atividade atinja sua

finalidade pública.

O que irá diferenciar o serviço público prestado pelo Estado do serviço público

prestado pela iniciativa privada será o regime jurídico à qual cada um estará submetido,

publicatio ou ordenatio, visto que ambos buscam suprir necessidades da coletividade.

As atividades privadas de interesse público autorizadas, também conhecidas como

serviços públicos impróprios ou virtuais, são assim caracterizadas pelo impacto que

apresentam junto à coletividade ou por causar assimetrias de informação para os sujeitos

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113

envolvidos. Estas atividades normalmente estão submetidas a processo regulatório específico,

correspondente a um ordenamento setorial e a uma autoridade regulatória independente.39

A atividade regulatória estatal, no Estado Democrático de Direito, busca ajustar

de forma permanente a tensão existente entre o exercício da autonomia individual e o alcance

de finalidades públicas, em cenário social diferenciado e em permanente transformação.

Busca uma forma de compatibilizar o pluralismo e o princípio majoritário, sendo este o

contexto para a multiplicação de órgãos ou entidades especializadas com amplos poderes

regulatórios, guiados por princípios e finalidades legais, mas com certa distância do aparato

político eleitoral.

As novas perspectivas que se apresentam para o Direito Público ainda não

encontram consenso na doutrina, havendo ainda amplo debate quanto à natureza e

legitimidade dos novos institutos e seus respectivos órgãos e instituições. Conforme alerta e

Paulo Todescan Mattos (2006, p.40):

“As consequências desse fenômeno (delegação legislativa) são significativas para o funcionamento do sistema jurídico, especialmente no que se refere a problemas de legitimidade decisória e racionalidade da decisão. ”

“O fenômeno da delegação legislativa para órgãos do Poder Executivo tem consequências ainda mais profundas. Coloca em evidência a relação entre norma enquanto instrumento de controle – inclusive controle sobre a ação regulatória do Estado (normas procedimentais, por exemplo) – e discricionariedade administrativa enquanto diminuição do controle sobre as decisões políticas tomadas pelos órgãos do Poder Executivo – o que conduz a problemas de legitimidade decisória e de racionalidade do conteúdo da regulação administrativa. Se por um lado a “inflação legislativa” ou “juridificação” decorrente do fenômeno da delegação legislativa coloca em evidencia o Poder Executivo enquanto espaço privilegiado para organização da economia e da vida social, respondendo a demanda por expertise e eficiência na edição de normas, por outro lado aumenta a necessidade de controle democrático da ação do Estado regulador. ”

“Assim, sendo, o que passa a estar em questão é: como se dá a decisão sobre o conteúdo da regulação e quem controla a regulador? Ou, em outras palavras, qual racionalidade legal pode dar conta da legitimação de políticas públicas definidas no contexto da ação regulatória do Estado e como tal racionalidade pode ser institucionalizada? ”

39 Para Alexandre Aragão (2013, p.175), “a grande gama regulatória incidente sobre as atividades privadas de interesse público é evidenciada pelo fato de, após uma primeira geração de agências reguladoras de serviços públicos desestatizados, terem surgido agências reguladoras de atividades econômicas mediante o mecanismo de autorizações operativas, principalmente na área de saúde - a Agencia Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA (Lei 9782/99), a Agencia Nacional de Saúde Complementar – ANS (Lei 9.961/2000) – e de transportes– Agencia Nacional de Transportes Terrestres – ANTT e a Agencia de Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAQ (Lei 10.233/2001). Dentro da mesma perspectiva poderíamos também colocar as atividades sujeitas à ação regulatória do Banco Central do Brasil – BACEN (Lei nº 4.595/64).”

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No entanto, considerando-se que instituições autônomas diversas são partes

integrantes relevantes do sistema jurídico brasileiro, a ausência de consenso doutrinário não

pode ser, de forma nenhuma, argumento para impedir a utilização, reconhecimento e

aperfeiçoamento de instrumental analítico da atividade regulatória do Estado. O esforço para

compreensão, compatibilização e coordenação dos subsistemas jurídicos e de seus institutos

com as escolhas políticas consensualizadas na carta magna é pré-requisito para uma

metalinguagem jurídica que se pretende legítima, pois somente dessa forma, pelo

reconhecimento jurídico de tais transformações, é que se pode criar os mecanismos

necessários e correspondentes de controle e responsabilização, vetores para a busca de um

sistema justo.

3.3 Autoridades reguladoras contemporâneas

A diferenciação de funções estatais, ao longo da história do Direito, não pode ser

compreendida adequadamente se não for considerada sob a perspectiva social, econômica,

jurídica e histórica, como formas distintas de distribuição de poder político entre os diversos

sujeitos sociais. Como apresentado no ponto anterior, o dogma da separação de poderes,

conforme proposto por Montesquieu, há muito vem sendo flexibilizado e transformado para

adequar-se às demandas de uma sociedade cada vez mais complexa e dinâmica.

Teorias contemporâneas sobre diálogos institucionais (SILVA, 2010) e a própria

realidade fática demonstram as intensas transformações do sistema jurídico que já não

comportam os limites forjados pelo liberalismo político para superar o absolutismo das

monarquias dos séculos XVII e XVIII. Modelos de ordenação e organização do estado não

são estáticos e não podem ser cristalizados sob pena de se tornarem obsoletos, sendo sua

plasticidade essencial para lidar com as transformações das relações políticas, econômicas,

sociais e jurídicas.

A proliferação de órgãos auxiliares e com perfis técnicos dotados de

independência funcional para o exercício de funções de governo aparecem como aspecto

essencial da concepção contemporânea de distribuição de funções estatais, de separação de

poderes. Se antes a tradicional separação de poderes se dava pela divisão de funções estatais

típicas entre os três poderes centrais típicos com atribuições amplas, genéricas e abstratas de

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115

coordenação de toda a estrutura política e burocrática, atualmente a divisão de funções

estatais parece se diferenciar por “centros de interesse público específico”, que como

subsistemas especializados, recebem amplos poderes para regular e garantir interesses

públicos bastante específicos.

Essa radicalização da funcionalização da distribuição de poderes por “centros de

interesse público específico” aparece como forma renovada da tradicional tripartição de

poderes: amplos poderes concedidos a diversas unidades autônomas independentes com

atribuição de regular um conjunto delimitado de interesses públicos. Novos e múltiplos

centros de circulação e processamento de poder político são criados ao lado do poder central

do Estado, capilarizando e multiplicando as fontes do sistema normativo e os centros de

criação e coordenação de políticas públicas, como resposta a uma sociedade cada vez mais

plural e com demandas cada vez mais diferenciadas. Os cidadãos e instituições participam de

tantos subsistemas quantos sejam seus centros de interesses públicos diferenciados, todos

inter-relacionados com uma fonte estatal central, que cada vez mais será desafiada a

diferenciar tais centros de interesse e a coordenar esforços para manter a integridade do tecido

social plural e a legitimidade da circulação do poder político.

A legitimidade para exercício dos poderes públicos se funcionaliza. Se antes o

sistema de freios e contrapesos operava entre poderes e a legitimidade para o exercício de

cada poder do Estado se dava pela forma específica prevista de circulação de poder em cada

esfera com seus respectivos controles e filtros sociais, a legitimidade agora passa também a

ser aferida de forma atomizada através dos meios e procedimentos previstos para cada

instituição, para cada sistema setorial.

O sistema de freios e contrapesos também se torna fragmentado: cada subsistema

precisa ter normas claras de funcionamento e previsão de mecanismos de participação de

todos os envolvidos, tanto para a elaboração dessas normas quanto para aferição e garantia de

partição integral de todas as partes interessadas. Nesse contexto, transparência e

accountability tornam-se conceitos chave para a legitimação de todo o processo e das relações

estabelecidas nesses centros de interesse diferenciados.

Acrescenta Alexandre Aragão (2013, p. 23 e ss) que o afastamento do caráter

mítico e absoluto da clássica separação de poderes, permite compatibilizar a autonomia das

entidades administrativas independentes e dos respectivos ordenamentos setoriais com a

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116

divisão de funções estatais previstas pelas constituições contemporâneas e como valores do

Estado de Direito.40

Os poderes atribuídos em graus variados às autoridades reguladoras

contemporâneas, chamadas pela doutrina também de autoridades administrativas

independentes, são bastante amplos, concentrando estas instituições poderes típicos da

clássica tripartição de poderes oitocentista, com graus de liberdade mais amplos do que os

tradicionalmente exercidos pelos poderes típicos centrais do Estado. Essa forma

diferenciada de exercício da função regulatória, que atribui a entes autônomos poderes

administrativos, persecutórios, jurisdicionais e legislativos, suscita questionamentos diversos,

principalmente quanto á constitucionalidade e legitimidade de seu exercício, com relevo

especial para o princípio da separação de poderes.41

3.3.1 Autoridades reguladoras no direito estrangeiro

Os Estados Unidos da América foram os primeiros a adotar o modelo de

autoridades administrativas independentes, com a concepção de agencia reguladora

independente, fato que se coordena perfeitamente com sua tradição liberal e não estatizante,

em oposição aos países, como por exemplo, França, Espanha, Brasil e Argentina que tiveram

no Direito Administrativo francês a sua inspiração, que somente passaram a adotar tal modelo

de forma vigorosa na última quadra do século passado. Esse movimento se deu muito mais

pelas diferentes circunstancias político-econômicas desses países do que a um pretenso atraso

na transformação de seus institutos (ARAGÃO, 2013, p. 229).

40 “Bem ao contrário disto, as competências complexas das quais as agências reguladoras independentes são dotadas fortalecem o Estado de Direito, vez que, ao retirar do emaranhado das lutas políticas a regulação de importantes atividades sociais e econômicas, atenuando a concentração de poderes na Administração Pública central, alcançam, com melhor proveito, o escopo maior – não meramente formal – da separação e poderes, qual seja, o de garantir eficazmente a segurança jurídica, a proteção da coletividade e dos indivíduos empreendedores de tais atividades ou por elas atingidos” (ARAGÃO, 2013, p. 24).41 Não é objeto da presente pesquisa realizar amplo levantamento bibliográfico ou histórico a respeito da criação de autoridades reguladoras ou autoridades administrativas independentes no direito comparado ou no Brasil, sendo de interesse especifico a contextualização desses novos entes na sociedade contemporânea. Para maiores229) informações sobre o tema ver: ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico, 2013; NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Direito Regulatório, 2003; CARDOZO, José Eduardo Martins e outros (org.). Curso de Direito Economico.Volumes I, II e III, 2006; ROSANVALLON, Pierre. Democratic Legitimacy: Impartiality, reflexivity, proximity, 2011 ; MATTOS, Paulo Todescan L. Mattos (org.). Regulação Econômica e Democracia: O Debate Europeu, 2006; MATTOS, Paulo Todescan L. Mattos (org.). Regulação Econômica e Democracia: O Debate Americano, 2006.

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117

A primeira agência reguladora independente americana nasceu em 1887 para

regulamentar os serviços interestaduais de transporte, a Interstate Commerce Comission, em

contexto histórico bastante diverso do ocorrido no final do século XX (ROSANVALLON,

2011; NETO, 2003).

Esse modelo de agencia independente se consolidou de tal forma nos Estados

Unidos, a partir da década de 30, que se tornou objeto de estudo do Direito Administrativo

norte-americano e muitas vezes se confunde com o estudo da atividade regulatória.42 A ideia

de que autoridades administrativas independentes exerceriam funções administrativas “quase

judiciais” e “quase legislativas” já se apresentava no debate americano, estimulando

questionamentos quanto à legitimidade do exercício simultâneo pelo mesmo órgão de funções

típicas dos tradicionais três poderes do Estado, questão hoje já pacificada no entendimento de

que tais funções das agências reguladoras caracterizam a função administrativa em sua

concepção mais ampla (ARAGÃO, 2013, p. 235).

Devem ser ressaltados o Administrative Procedure Act – APA de 1946,43 que

garantiu a participação às partes envolvidas nos processos decisórios e normativos das

agências, assim como a Executive Order nº 12.886/93 – Regulatory Planning and Review,44

editada no governo Clinton, para determinar procedimentos obrigatórios para as agencias, que

devem comunicar suas intenções para o Regulatory Working Goup, que supervisiona e orienta

a definição de políticas públicas pelas agências, e ainda a orientação para que a lei traga os

parâmetros mínimos para balizar as funções normativas das agências reguladoras, intelligible

principle doctrine (ARAGÃO, 2013, p. 237-238).

A expressão “autoridades administrativas independentes” para designar as

atividades de entes equivalentes às agências reguladoras no ordenamento brasileiro foi fixada

na França. A título de exemplo, vale registrar a definição e as explicações dadas pela Direcion

42 Vale registrar a explicação de Maria Silvia Di Pietro (2012, p. 395-399) sobre o termo agência que nos Estados Unidos caracteriza órgãos da administração pública federal que não estão sob o comando do Presidente da República, pela forma diferente de organização política : “Foi importado do direito norte-americano, onde tem sentido mais amplo, que abrange “qualquer autoridade do Governo dos Estados Unidos, esteja ou não sujeita ao controle de outra agência, com exclusão do Congresso e dos Tribunais”, conforme consta expressamente da Lei de Procedimento Administrativo (Administrative Procedure Act). Por outras palavras, excluídos os três Poderes do Estado, todas as demais autoridades públicas constituem agências. Nos Estados Unidos, falar em Administração Pública significa falar nas agências, excluída do conceito a própria Presidência da República, ao contrário do que ocorre no Brasil, em que o Chefe do Poder Executivo integra a Administração Pública, estando colocado no seu ápice, orientando e dirigindo seu funcionamento. ”43 In: http://www.justice.gov/sites/default/files/jmd/legacy/2014/05/01/act-pl79-404.pdf. Acesso em 30/10/2014.44 In: http://www.archives.gov/federal-register/executive-orders/pdf/12866.pdf. Acesso em 30/10/2014.

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de I’Information Légale e Administrative45 francesa a respeito das Autoridades

Administrativas Independentes:

“Uma autoridade administrativa independente (AAI) é uma instituição do Estado responsável por, em seu nome, assegurar a regulação de setores considerados como essenciais e onde o governo pretende evitar intervir diretamente. As AAI são uma categoria jurídica relativamente nova porque, ao contrário da tradição administrativa francesa, elas não estão submetidas à autoridade hierárquica de um ministro. Foi na Lei de 6 de janeiro de 1978 que criou a Comissão Nacional de Informática e de Liberdades (CNLL) que o termo surgiu pela primeira vez. O número varia de acordo com os autores, em função dos critérios para definição adotados. Elas dividem-se em duas categorias, aquelas encarregadas da regulação de atividades econômicas e aquelas encarregadas de proteger os direitos dos cidadãos. As AAI apresentam três características, que são:. Autoridades: elas dispõem de um certo número de poderes (recomendações, decisões, regulação, sanção);. Administrativas: elas agem em nome do Estado e algumas competências atribuídas à administração lhes são delegadas (ex: o poder regulamentar). Independentes: dos setores regulados e também das autoridades públicas. Elas são, portanto, alocadas fora das estruturas administrativas tradicionais e não são submissas ao poder hierárquico. As autoridades públicas não podem lhes dirigir ordens, diretrizes ou mesmo simples conselho e seus membros não podem ser demitidos. Elas constituem-se, portanto, como uma exceção ao artigo 20 da Constituição segundo o qual a Administração se subordina ao Governo.”

São consideradas autoridades administrativas independentes aqueles entes com

competência decisória para regular setor social específico através da estipulação das “regras

do jogo”, sem que façam parte da hierarquia central do Poder Executivo. Vale ressaltar que,

na França, a atuação de tais órgãos além da regulação de setores econômicos ou de serviços

públicos delegados a particulares, destinam-se também à proteção de direitos fundamentais e

à proteção dos cidadãos frente à Administração Pública. Na mesma linha de pensamento,

também na Espanha e em Portugal as autoridades administrativas independentes são criadas

para além de regular setores da economia, atuar na proteção de direitos fundamentais ou de

valores e interesses constitucionalmente protegidos.

Embora a doutrina no Brasil analise a atuação de autoridades administrativas

independentes, agências reguladoras, dando ênfase em sua atuação como forma de

intervenção do Estado no âmbito econômico, é importante ressaltar que tal modelo

organizativo volta-se para a regulação de serviços públicos e atividades privadas de interesse

45 Ver: http://www.vie-publique.fr/decouverte-institutions/institutions/administration/organisation/etat/aai/. Acesso em 30/10/2014.

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público sensíveis para a coletividade, áreas que normalmente suscitam fortes, múltiplos e

conflitantes interesses de todos os envolvidos.

3.3.2 Autoridades reguladoras no Brasil

O estudo das autoridades reguladoras no Direito Positivo Brasileiro, apresenta

como desafio realizar releitura de antigos institutos que já vigoravam na legislação pátria

antes do Programa Nacional de Desestatização – PND, que trouxe o fenômeno da

multiplicação de tais entes, no formato de agências, pós Constituição de 1988. Antes da

década de 90, o sistema jurídico brasileiro já contava com órgãos reguladores como, por

exemplo, o Conselho Monetário Nacional, o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores

Mobiliários (ARAGÃO, 2013, P. 269 e ss).

Na verdade, é possível dizer que a criação de entes voltados para a regulação de

áreas de interesse ou assunto específico no Brasil sofreu impacto direto de movimentos

ocorridos principalmente nos Estados Unidos e na Europa.

Em 1835, através do Decreto de Governo nº 101, foi estabelecida a possibilidade

de criação de companhias de estrada de ferro para realizar a ligação entre o Rio de Janeiro,

Capital do Império, às capitais de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia, através das

Cartas de Privilégio (CARDOZO, 2006, p. 258), o que pode ser atribuído às influências

americanas e inglesas.

Nos Estados Unidos, no período pós quebra de 1929, como resultado de novas

formas de administração pública que priorizavam o planejamento indicativo, o sistema de

fomento e os processos associativos entre os setores público e privado, ou seja, a intervenção

do governo para buscar equilíbrio econômico e social, foi criado um grande número de

agências: a Food and Drug Administration – FDA em 1932, a Agriculture Adjustment

Admnistration – AAA, em 1933, a Security and Exange Comission-SEC de 1933 entre muitas

outras (NETO, 2003, p.75). Esse movimento foi amplamente influenciado pelas ideias

keynesianas, que ganharam relevo na proposta política-econômica do New Deal, no governo

Franklin Roosevelt (CARDOZO, 2006, p.259; MATTOS, 2006, p.69 e ss.) novamente a

influência americana pôde ser sentida no Brasil nas décadas de 1930 e 1940. No primeiro

governo Vargas, é possível identificar a primeira onda regulatória voltada para a

“modernização” da administração pública, que embora tenha se inspirado no modelo norte-

americano, foi feita com características bastante distintas, principalmente em razão das

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diferenças de organização político-administrativa, como já mencionado. Nessa época, foram

criados diversos órgãos no Brasil, entre os quais podem ser citados a título de exemplo:

Instituto Nacional de Estatística, em 1934, Departamento Administrativo do Serviço Público

(Dasp) em 1938, Conselho Federal do Comércio Exterior (CFCEX) de 1934, a Coordenação

de Mobilização Econômica (CME) de 1942, o Conselho Nacional de Política Industrial e

Comercial (CNPIC) de 1944, a Comissão de Planejamento Econômico (CNE) de 1944,46 e

muito importante, para esta pesquisa, a Justiça Eleitoral, em 1932 que deixaria de funcionar

em 1937 para retomar suas atividades em 1945,47 durante novo período de democratização.

Posteriormente, na década de 1960, outra onda regulatória emergiu. Nesta época

foram criados órgãos como por exemplo o Conselho Administrativo de Defesa Econômica,

em 1962, o Banco Central do Brasil, em 1964, o Conselho Monetário Nacional, em 1964, e

diversas estatais como a Eletrobrás, criada em 1962. O Decreto Lei 200/1967 também foi de

especial importância ao registrar e reconhecer explicitamente a existência de atividades

governamentais autônomas e descentralizadas. Embora a Justiça Eleitoral já estivesse em

funcionamento nesse período, data de 1965 a criação do Código Eleitoral em vigor até a

presente data.

No período posterior, no último quarto do século XX, o Brasil passa por nova e

significativa reforma no período pós regime militar, novamente, influenciado por

acontecimentos ocorridos na Europa e nos Estados Unidos. Os processos de privatização

ocorridos no cenário europeu na década de 1980 em diante e a política de desregulação e re-

regulação da economia nos Estados Unidos, no mesmo período, fixaram os fundamentos

teóricos e práticos para o processo de reforma de Estado brasileiro. Estes processos foram as

respostas dos países desenvolvidos aos desafios trazidos pela crise do Estado contemporâneo

e pela globalização econômica na década de 1990 (Mattos, 2006, p.140).

A Recomendação de 31 de maio de 1996 do Conselho de reforma do Estado,

Decreto 1.738/1996, fixou as diretrizes para o Estado regulador pátrio e contribuiu com

síntese elucidativa sobre o tema: “O projeto de reforma do Estado visa substituir o antigo

estatismo pelo moderno Estado regulador. O aparato regulatório existente é enorme, obsoleto,

burocratizante e, em essência, intervencionista, sendo necessário primeiro desregular para, a

seguir regular por novos critérios e formatos mais democráticos, menos intervencionistas e

burocratizados. ”

46In:http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2642:catid=28&Itemid=23. Acesso em 30/10/2014.47 In: http://www.tse.jus.br. Acesso em 30/10/2014.

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Os marcos mais expressivos desse processo foram a nova ordem inaugurada pela

Constituição de 1988, o Programa Nacional de Desestatização, trazido pela Lei 8031/1990,

alterado pela Lei 9491/1997, e a Reforma Gerencial de 1995. Esses marcos foram decisivos

para a criação e consolidação de autoridades administrativas independentes, ou autoridades

reguladoras, no formato que se discute atualmente. A positivação da regulação no Brasil se

deu no nível constitucional em 1995 – com a Emenda Constitucional nº 8, de 16 de agosto de

1995, que criou o “órgão regulador” para disciplinar os serviços de telecomunicação e com a

Emenda Constitucional nº 9, de 10 de novembro de 1995, que criou outro “órgão regulador”

relacionado ao setor de hidrocarbonetos monopolizados pela União - e no nível legal a partir

de 1996 (MOREIRA NETO, 2003, p. 189-190).

Vale registrar que a Lei da Eleições, Lei 9504, foi publicada em 1997. Este ponto

será abordado na parte II.

A existência de órgãos ou entidades com graus de autonomia variados em relação

ao governo central, como demonstrado, não é novidade para a legislação brasileira. O ponto

principal de debate, a novidade em relação aos entes criados no último quarto do século XX

relaciona-se com a vedação de exoneração ad nutum dos dirigentes das autoridades

reguladoras independentes e a ausência de ingerência hierárquica da Administração Central

em face dos atos decisórios de tais entes, autonomia orgânica e autonomia funcional

respectivamente. Como explica Aragão (2013, p. 270-271) - utilizando-se os termos

“agência”, “reguladora” e “independente” para reflexão - o grande divisor de águas em

relação a outras entidades há muito existentes é a “independência”, já acolhida pelo

legislador, mas até então afastada pela jurisprudência. A conjugação da independência e das

competências regulatórias é que caracteriza uma entidade como uma agencia reguladora

independente.

Quanto à natureza institucional das agências reguladores, em primeiro lugar, é

essencial registrar que sua denominação ou personalidade jurídica não é suficiente para

classificar um ente como autoridade reguladora independente. O que irá classificar um órgão

ou entidade como autoridade reguladora independente são as normas que irão garantir suas

funções específicas e a sua independência orgânica e funcional, ou seja, o regime jurídico

objetivamente fixado pela lei criadora do órgão ou entidade que garante as diversas

prerrogativas materiais de autonomia. Em princípio, na legislação brasileira, todas as

agências reguladoras receberam natureza jurídica de “autarquias especiais” (ARAGÃO, 2013,

p. 278).

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Nesse sentido, Alexandre Aragão (2013, p. 281) conceitua as agências

reguladoras independentes como “autarquias de regime especial, dotadas de considerável

autonomia frente à Administração centralizada, incumbidas do exercício de funções

regulatórias e dirigidas por colegiado cujos membros são nomeados por prazo determinado

pelo Presidente da República, após prévia aprovação pelo Senado Federal, vedada a

exoneração ad nutum”; Diogo de Figueiredo (NETO, 2003, p. 167-169) ressalta que as

agências reguladoras são identificadas através da distinção de certas características teóricas

sensíveis da regulação em razão da dificuldade de se realizar uma síntese sistemática em face

da diversidade de órgãos regulatórios, possuindo, no entanto, em comum a preocupação

finalística de exercer alguma forma de intervenção estatal deslegalizada nas atividades sociais

e econômicas; e Paulo Todescan Mattos (2006, p. 143-144) indica que o principal elemento

de transformação jurídico-institucional trazido pelo projeto de reforma do Estado no Brasil

refere-se ao novo papel de agente regulador, enfatizando que as agências reguladoras possuem

desenho institucional e procedimentos decisórios muito diferentes dos demais órgãos

reguladores existentes no Brasil até então.48

Buscando compreender, qualificar e diferenciar o fenômeno da emergência de

entes reguladores autônomos no Estado contemporâneo, alguns autores buscam definir

critérios para identificação e classificação de autoridades administrativas independentes ou

autoridades reguladoras.

Propõe Alexandre Aragão (2013, p.317) seja verificado se há entidades ou órgãos

investidos de competências regulatórias (ordenação da atividade econômica desenvolvida por

particulares, inclusive através de amplos poderes normativos autorizados em lei), dotados de

autonomia orgânica e funcional nos termos das agências reguladoras independentes criadas na

década de 90. Sendo que a autonomia aqui buscada é aquela autonomia reforçada, maior que a

autonomia regular das entidades da administração indireta, que garante a efetiva

independência.

Ou seja, somente seriam consideradas agências reguladoras independentes, ou

autoridades reguladoras, aqueles órgãos ou entidades que conjugarem, ao mesmo tempo,

todos os atributos abaixo: 1) atribuição de competências regulatórias, com respectivos

poderes; 2) impossibilidade de exoneração ad nutum dos seus dirigentes; 3) organização

colegiada; 4) formação técnica; 5) impossibilidade de recursos hierárquicos impróprios.

48 Para outros conceitos de agência reguladora independente ver: CARVALHO FILHO, 2012, p. 484-485; DI PIETRO, 2012, p. 525; MATTOS, 2006, p. 143-144.

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Interessante notar que Alexandre Aragão,49 antes de realizar a análise do Conselho

Monetário Nacional-CMN, do Banco Central do Brasil – BACEN, da Comissão de Valores

Mobiliários – CVM, Conselho Administrativo de Defesa Econômica-CADE, Universidade

Públicas, Conselhos Profissionais50 e das Agências Executivas, já adianta que, para além das

entidades denominadas agências reguladoras, não haveria qualquer outra entidade da

administração indireta que pudesse ser enquadrada como agência reguladora independente.

Diogo de Figueiredo (NETO, 2003, p.168-169) considera que alguns princípios

básicos da regulação devem ser considerados para caracterização da atividade regulatória e

classificação das agências reguladoras: 1 – Competência regulatória (a partir da deslegalização e da

adoção de funções híbridas); 2 – Independência regulatória (a funcional, a dos agentes e a financeira);

3 – Participação regulatória (pela publicidade e pela processualidade aberta).

Na mesma linha de pensamento, Fernando Fróes (2006, p. 509 e ss) indica como

requisitos para a identificação de um órgão de regulação os seguintes:1 - competência; 2 -

independência; 3 - interdependência; 4 - composição de conflitos; 5 - especialização; 6 -

participação do usuário; 7 - controle administrativo e judicial de seus atos. Já, Paulo Mattos

(2006) ao avaliar as mudanças legislativas ocorridas para institucionalizar a reforma do

Estado, assinala que o modelo de agência reguladora adotado no Brasil possui quatro

características essenciais: decisão por órgãos colegiados; autonomia decisória do órgão

regulador; ampliação do poder normativo e jurisdicional da administração indireta; e criação

de mecanismos de participação pública nos processos decisórios no interior das agências. Para

49 Nos termos do autor: “podemos afirmar que não são agências reguladoras independentes: (a) o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central em razão de, apesar de serem reguladores, não possuírem independência;(b) a Comissão de Valores Mobiliários – CVM, porque, malgrado ser uma entidade reguladora e possuir autônima orgânica, não tem autonomia funcional suficiente, estando sujeita a recursos para a Administração Direta; (c) o CADE é independente e, ao nosso ver, apesar de ser matéria bastante discutida, também possui competências regulatórias; (d) as universidades públicas são entes até mais independentes que as agencias, mas não são reguladores; (e) os Conselhos Profissionais, sem embargo da sua elevada independência, por serem manifestações da autorregulação, não da regulação em sentido estrito; e (f) as agencias executivas não constituem espécie de pessoa jurídica da Administração Pública, sendo mera qualificação dada pelo Poder Executivo para tornar possível o aumento da autonomia de órgãos ou entidades da União” (ARAGÃO, 2013, p. 331).50 A inovação normativa através de fontes de segundo grau, sobre direitos fundamentais, no contexto jurídico atual, é uma realidade que não pode ser mais ignorada. A título de exemplo é possível citar a Resolução CFM2.013/2013, revogada pela Resolução CFM 2.121/2015, ambas do Conselho Federal de Medicina, a respeito de técnicas de reprodução assistida. Esta resolução caracteriza atividade normativa de segundo grau e relaciona-se diretamente com o § 4º do art. 199 da Constituição de 1988, que dispõe que “a lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.” Questões sobre direitos fundamentais envolvem problemas éticos, transformações de costumes, que exigem novas arenas e mecanismos para justificação, deliberação e validação sob pena de criação de normas e realização de escolhas carentes de legitimidade e, portanto, arbitrárias. Escolhas arbitrárias padecem de meios e parâmetros para responsabilização, e no limite, impedem o controle social, constituindo-se como claro problema de democracia.

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o autor, as agências reguladoras caracterizam um novo lócus de poder decisório e de

formulação de políticas públicas, com dinâmica diferente da administração estatal direta,

principalmente por institucionalizar a participação do cidadão no conteúdo da regulação.

As autoridades reguladoras são identificadas principalmente pela ausência de

submissão à uma hierarquia superior capaz de rever suas decisões e pela autonomia decisória

e financeira, ficando a autoridade administrativa independente responsável pelo conteúdo

político e decisório das políticas públicas que implementa. É certo que estes órgãos estão

vinculados ao sistema jurídico estatal vigente e seus princípios, mas também é inquestionável

que a estes são atribuídas competências específicas para coordenar e regular o funcionamento

das atividades ligadas ao interesse público por elas tutelado.

A autonomia reforçada, conforme registra Alexandre Aragão, é atributo essencial

para que um ente ou órgão possa ser classificados como autoridade administrativa

independente ou como uma autoridade reguladora independente. É a independência ou

autonomia reforçada que tal entidade deve possuir em face aos Poderes centrais do Estado que

a diferencia.

Normalmente, esta característica é assegurada pelo mandato por prazo fixo pré-

determinado, atribuído aos seus dirigentes e com garantias para o exercício do mandato, entre

as quais deve ser ressaltada a vedação de exoneração ad-nutum de seus dirigentes. Essa

característica ao lado da proibição de recurso impróprio em relação aos atos e decisões do

órgão regulador, estabelecem atributos muito significativos para garantia de autonomia e

independência.

A autonomia reforçada das autoridades administrativas independentes, no entanto,

não impede a definição de diretrizes, mediante aprovação de normas pelo Poder Legislativo, a

supervisão do Tribunal de Contas ou o acesso ao Poder Judiciário para composição de

conflitos. As políticas públicas traçadas pelo agente regulador devem estar alinhadas com os

princípios constitucionais, não podendo desviar-se de tais vetores de conformação.

É essencial registrar que o grau de liberdade da autonomia atribuída a agentes

públicos, será definida por lei e esta somente poderá ser reduzida ou ampliada pela mesma

fonte normativa que inicialmente a circunscreveu.51

51 Nas palavras de Alexandre Aragão (2013, p.212-213): “Não há, portanto, antagonismo entre a autonomia de entidades e órgãos materialmente descentralizados com a unidade da Administração, muito pelo contrário: a Administração Pública contemporânea, para cumprir suas funções e atender aos valores e princípios constitucionais a ela impostos, deve atuar, ao mesmo tempo, coordenada e descentralizadamente. Vemo-nos diante de um Direito Administrativo mais complexo e plural, que abandona a ideia de que uma atividade

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A segunda característica conferida às autoridades administrativas independentes é

a diversidade de funções a estas atribuídas pela norma que as institui: atividade normativa,

atividade regulatória, atividade fiscalizadora, atividade sancionatória e atividade julgadora.

A função regulatória autônoma tem por finalidade fixar e delimitar o conteúdo da

regulação. No exercício da função regulatória, a entidade atua de forma prospectiva visando a

efetivação das políticas públicas por ela traçadas, e a consolidação das melhores práticas para

as relações desenvolvidas dentro do ordenamento setorial.

A competência fiscalizatória poderá incidir sobre serviços públicos concedidos,

sobre exploração privada de monopólio ou bem público de natureza contratual, ou ainda sobre

agentes que desempenham atividade privada de interesse público, sendo a fiscalização nesta

hipótese, em regra, decorrente do exercício do poder de polícia.

A competência sancionatória decorre da competência fiscalizatória que, ao

identificar descumprimento de normas ou contratos aplica as sanções previstas. Esta

competência do ente regulador precisa ter amparo legal, ainda que atribuída de forma

genérica. A mediação e composição de conflito é atribuição essencial das autoridades

reguladoras independentes, produzindo tais entidades Direito assim como o Poder Judiciário,

no exercício da sua legitimidade reflexiva.

Assim como a função fiscalizatória, a função julgadora também precisa ter

fundamento legal. Flexibilidade e consensualidade são características que devem pautar o

exercício da atividade regulatória, de forma que, sempre que possível, negociações e

consensos pautem as ações de todos os personagens envolvidos na atividade regulatória.

Todos os envolvidos precisam ter espaço garantido para participação influente no processo

decisório do ordenamento setorial, construindo pontes para soluções diferentes da via

contenciosa, afinal a função regulatória tem por finalidade maior coordenar interesses, alinhar

ações para garantia de direitos fundamentais e realização dos valores e princípios

consensualizados na ordem jurídica.

O exercício da função julgadora com a composição de conflitos por forma

alternativa precisa de previsão legal e formas de controle muito bem estabelecidas sob pena

de captura dos envolvidos e desvio da finalidade regulatória. O ordenamento setorial se

caracteriza por conter subsistema jurídico especializado que demanda conhecimento técnico e

administrativa só é racional na medida em que estiver previamente prevista, detalhadamente normatizada e sujeita a uma linha hierárquica; que a substitui por técnicas de análise, de gestão e responsabilidades estratégicas.”

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científico para desenvolvimento de atividade regulatória capaz de atender a múltiplas e

complexas demandas. Claramente a escolha de uma solução entre as diversas disponíveis

reveste-se de caráter político e precisará estar alinhada com as políticas públicas apresentadas

para o subsistema.

Assim, novos instrumentos de integração e regulação social vão paulatinamente

sendo reconhecidos no âmbito do Direito Administrativo modificando inclusive as formas de

controle necessárias das atividades que passam a ser menos hierárquicas e mais finalísticas,

mas também mais plural e atomizadas. E o caráter finalístico incorporado às atividades

regulatórias, nesse novo contexto, passa a exigir o planejamento estratégico de ações e a

responsabilização de agentes, na medida em que os critérios tradicionais para avaliação dos

atos administrativos se transformam.

Se no Direito Administrativo tradicional a prática de atos administrativos devia

ser exercida nos limites da legalidade administrativa estrita, pois tratavam-se de políticas

públicas amparadas em requisitos racionalmente pré-estabelecidos por lei, em circunstâncias

complexas e plurais, no paradigma do Estado Democrático de Direito que pretende assumir

uma postura proativa de transformação social, o Direito Administrativo também precisa ser

atualizado e legitimado.

Não será possível implementar apenas meios, medidas e controles típicos de

práticas jurídicas que funcionem olhando apenas para o passado, serão necessários

instrumentos e práticas que permitam olhar para o futuro, uma ação regulatória prudencial,

com objetivos, metas e responsabilidades compartilhadas, passíveis de avaliação reflexiva por

todos os sujeitos envolvidos.

O pluralismo e a complexidade social, ao lado da globalização, tem sido a porta

de entrada para as técnicas que rapidamente estão invadindo a prática administrativa da

administração pública, sem a correspondente atualização e incorporação dos novos institutos à

legislação administrativa em tempo adequado: planejamento estratégico, definição de metas,

governança, gestão de projetos, gestão de processos, gestão eletrônica de informações, gestão

por competência, entre tantos outros.52

52 Como assinala Alexandre Aragão (2013, p.35): “Nos vemos diante de um Direito Administrativo mais complexo e plural, que abandona a ideia de que uma atividade administrativa só é racional na medida em que estiver previamente prevista e detalhadamente normatizada; que a substitui por técnicas de análise, gestão e reponsabilidade estratégica”.

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127

Permanecem, no entanto, pendentes de avaliação os mecanismos para legitimação,

controle e responsabilização das relações transformadas que estão sendo construídas pelas

práticas da burocracia estatal, sem ainda total correspondência teórica e normativa.53

Por fim, resta discutir a questão do amplo poder normativo atribuído às

autoridades administrativas independentes e o fenômeno da delegificação.

A teoria das fontes para criação de normas legítimas de convivência assumiu

feições diversas ao longo da história das sociedades. Como outra face da mesma moeda, a

evolução da teoria das fontes pode também ser compreendida como a história da

discricionariedade. Desde justificativas divinas, passando por fundamentação amparada na

hereditariedade, até chegar ao império da lei, para finalmente deslocar seu eixo para o

fenômeno do constitucionalismo contemporâneo - que agrega postulados políticos, princípios

e valores vitoriosos, de uma sociedade cada vez mais plural - a teoria das fontes encontra-se

agora perante o desafio de manter a integridade do sistema jurídico perante práticas sociais

plurais dinâmicas e complexas, que apresentam como correspondente uma pluralidade de

fontes emanada dos múltiplos centros de interesses especializados e das práticas cada vez

mais atomizadas da burocracia estatal contemporânea

As limitações do absoluto e estrito império da lei apartadas de questões éticas

morais, nos termos da tradição herdada dos séculos XVIII e XIX, evidenciou-se através de

eventos marcantes na história da humanidade, sendo o século XX recheado de exemplos

contundentes das consequências de um direito sem compromissos com a justiça: nazismo,

fascismo, ditaduras, etc. As experiências vividas no período pós segunda guerra

demonstraram o amplo grau de discricionariedade e os perigos embutidos em discursos

jurídicos pretensamente isentos e teoricamente descomprometidos com a realidade fática. As

lacunas do sistema que anteriormente eram preenchidas pelo “juiz boca da lei” que “decidia

conforme sua própria consciência”, pelos costumes e por princípios,54 na verdade

53 Por exemplo: como compatibilizar banco de horas com a Lei 8812/98? Como compatibilizar o direito disciplinar dos servidores públicos federais com a gestão por projetos, que por definição flexibiliza prazos e compromissos e se organiza de forma apartada do organograma institucional, e, portanto, fora das competências previstas? Como compatibilizar a gestão por competência de servidores e a diferenciação de funções, se grande parte dos servidores é concursada para cargos de provimento efetivo com descrição genérica de suas atribuições? Todas essas perguntas registram apenas um vislumbre dos desafios que o Direito Administrativo vem enfrentando não só no âmbito das autoridades administrativas independentes, mas na burocracia estatal como um todo. A burocracia estatal brasileira é hierarquizada, pautada pela legalidade estrita dos atos administrativos e da distribuição de competências previa e rigidamente estabelecida. A incorporação avassaladora de práticas da ciência da administração pelo Estado gerencial não conseguiu ainda encontrar amplo respaldo teórico e legal.54 No Brasil, pela Lei de Introdução ao Código Civil.

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128

demonstraram ser verdadeiros cheques em branco para que o sistema pudesse ser considerado

absoluto e pleno. Diversos foram os institutos e teorias criados para encobrir as limitações de

um sistema jurídico amparado em normas gerais e abstratas com a pretensão de abranger toda

a realidade fática. São exemplos dessa prática, como cita Alexandre Aragão (2013, p. 36), a

progressiva construção jurisprudencial que insere no sistema jurídico novos institutos como a

teoria da imprevisão, a responsabilidade civil do Estado, o desvio de finalidade, etc.

O Estado Liberal apresenta como estrutura jurídica correspondente um sistema de

direitos que para ser legítimo não precisa ser necessariamente substancialmente democrático,

ou de outra forma, que, para efeitos de legitimidade, conforma-se com uma legalidade formal

sem compromisso com aspectos materiais das normas produzidas.

O Estado democrático de direito apresenta exigências e compromissos maiores.

Enquanto o Estado Liberal de direito contenta-se com formas e estruturas jurídicas

descompromissadas previstas em lei, o Estado Democrático ampara-se numa ordem

axiológica da sociedade que se manifesta através dos princípios. Para ser legítimo o direito

democraticamente produzido precisa legitimar-se em arenas deliberativas com procedimentos

previamente identificados e institucionalizados, precisa ainda alinhar-se com os valores

consensualizados pelo processo político e consolidados pelo sistema jurídico na forma de

princípios (ARAGÃO, 2013, p. 38).

Uma teoria das fontes que pretenda tratar da legitimação de normas produzidas

por centros de poder atomizados no seio social, em especial nesta pesquisa as normas

produzidas por autoridades administrativas independentes, ou em outros termos, das

condições de legitimidade do fenômeno da delegificação, precisa necessariamente considerar

o princípio da legalidade por novas lentes.

O processo de transformação do princípio da legalidade, nos termos previstos pelo

Estado Liberal, desenrolou-se e aprofundou-se com a proliferação de normas expedidas pelo

parlamento e com a atribuição de poderes normativos à administração, também pelo próprio

parlamento. O advento do Estado gerencial ou regulador, como resultado do aprofundamento

das responsabilidades assumidas pelo Estado do bem-estar social e do correspondente

fracasso para lidar com tantas exigências, precisou incorporar à função administrativa poderes

normativos de caráter ainda mais amplo para conseguir gerir múltiplas atividades sociais e

econômicas (ARAGÃO, 2013, p. 37 e ss).

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129

Nesse contexto, as transformações impostas pela contemporaneidade à teoria

liberal das fontes ultrapassa o aspecto formal da produção normativa - não se trata apenas de

que órgão ou poder estatal possui competência para criar normas jurídicas válidas - para

alcançar seu conteúdo material, na medida em que, as aspirações liberais de uma produção

normativa geral e abstrata, produzida por um poder legislativo central, capaz de conter toda a

facticidade, paulatinamente vão sendo substituídas por uma realidade na qual a produção

normativa é crescentemente mais especializada, atomizada e pluralizada (ARAGÃO, 2013, p.

38).

A realização dos princípios constitucionais e a garantia do devido processo legal,

formal e material, para a produção de normas jurídicas são os vetores que determinam a

legitimidade da norma jurídica produzida. Nessa linha de pensamento é que deve ser

abordado o fenômeno da atribuição de competência normativa e correlato grau de

discricionariedade atribuído às autoridades reguladoras independentes.

A atividade reguladora autônoma, diferente do que prescreve a estrita legalidade

administrativa, não tem apenas por finalidade disciplinar as atividades dos sujeitos que

participam da atividade regulada e todas as circunstâncias em que esta pode ser praticada. A

atividade reguladora autônoma tem por principal finalidade estabelecer condições para que o

exercício de interesses privados seja alinhado com a finalidade pública protegida dos

interesses tutelados. Daí a extensão dos poderes normativos concedidos à autoridade

administrativa independente, visto que esta é responsável por implementar políticas públicas

para os ordenamentos setoriais, a fim de que a livre iniciativa privada promova as atividades

reguladas com ampla liberdade, mas alinhadas com o interesse público e com os princípios

constitucionais.

Como a tutela dos interesses protegidos pelos ordenamentos setoriais precisa

acompanhar as relações estabelecidas nas práticas cotidianas de cada setor específico, com

metas e diretrizes que se ajustem na velocidade de tais relações, o poder normativo concedido

por lei ou pela constituição às autoridades reguladoras independentes, para integração do

conteúdo da vontade parlamentar, tende a ser bastante amplo, utilizando-se de textos abertos e

com expressões de conteúdo indeterminado (ARAGÃO, 2013, p. 37 e ss).

A utilização de normas de baixa densidade normativa, nesta hipótese, é uma

estratégia para tratar relações sociais, que por sua própria natureza, se apresentam de forma

volátil e em permanente mutação. Esta lei produzida mediante o instituto da delegificação ou

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deslegalização tem por finalidade atribuir poder regulamentar para órgãos distintos do poder

legislativo para tratar, mediante atividade regulamentar autônoma, matérias que anteriormente

tinham reserva de lei.

A norma produzida pela deslegalização não apresenta conteúdo material de

regulamentação ou afigura-se como norma que precisa ser completada. Sua função primordial

é transferir para outra sede normativa a regulação preponderantemente técnica de determinada

matéria, não havendo qualquer inconstitucionalidade nesta prática, visto que o balizamento e

a coordenação destas regulações plurifórmicas e pluricêntricas permanecem na esfera de

influência política do parlamento (ARAGÃO, 2013, p. 43). A própria Constituição brasileira

reconhece em seu bojo a delegificação de diversas matérias para entidades estatais e não

estatais.55

Em que pese a competência normativa técnica dos entes reguladores autônomos, é

preciso reconhecer que, no limite, parte significativa da produção normativa regulatória será

expedida sem a correspondente e estrita previsão legislativa. Aqui aparece um dos problemas

essenciais do poder regulamentar concedido às autoridades administrativas independentes:

muitas normas expedidas por estes entes irão de fato inovar a ordem jurídica, apresentando

força primária (ARAGÃO, 2013, p.39). Será, então essencial, a delimitação de

procedimentos para o devido processo normativo, a instituição formal de canais e arenas para

legitimação de tais normas e a criação de mecanismos de controle da atuação do agente

regulador.

3.4 Parâmetros para identificação da atividade regulatória da Justiça Eleitoral

Conforme visto nos pontos anteriores, a atividade regulatória sempre foi uma das

funções essenciais do Estado e a prestação de serviço público a manifestação mais intensa de

regulação social. Os principais fatores responsáveis pela transformação da regulação

tradicional foram: o fracasso do Estado para fazer face a todas as demandas sociais

paulatinamente reconhecidas pela administração publica ao longo do século XX; o

aprofundamento da complexidade das relações sociais em razão da multiplicação e

55 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: art. 21, XI, serviços de telecomunicações; artigo 177,§2º, III, exploração do petróleo; art. 207, universidades; art. 217, I, entidades desportivas privadas; art. 17, III, prestação de contas de partidos políticos.

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131

diversificação do que se compreende por minorias; as múltiplas faces que a ideia de bem

comum passou a incorporar; o fracasso das cortes judiciais para fazer face à multiplicação de

demandas de natureza coletiva e massificada; e, finalmente, o reconhecimento sucessivo pelos

ordenamentos jurídicos ao redor do mundo das novas exigências substanciais trazidas por

princípios internacionais de direitos humanos, com enorme impacto para o que se compreende

por democracia e para o papel do Estado.

O Estado Liberal possuía como referenciais jurídicos mais relevantes a eficácia e

a legalidade formal, manifestados principalmente através da estruturação de uma burocracia

estatal, com acesso mediante concurso público; de eleições periódicas para autorizar agentes

políticos a exercerem mandatos e a tomarem decisões em nome de todos; e pelo império da

lei. Nesse contexto, legitimidade e efetividade eram referenciais metajurídicos, não

abrangidos por uma legalidade que se legitimava mediante critérios estritamente formais.

O constitucionalismo contemporâneo modificou tal perspectiva, reconheceu

finalidades concretas de justiça social, estabeleceu uma constelação de princípios como vetor

de orientação para ações legitimas, e trouxe para a gestão de interesses públicos novos

referenciais democráticos.

Um dos resultados dessas transformações foi o compartilhamento de

responsabilidades para execução de serviços e atividades de interesse público. A proteção e

criação de reais possibilidades para o exercício de direitos humanos passou a ser

responsabilidade compartilhada entre Estado e iniciativa privada.

A atribuição de atividades e serviços que mantiveram a natureza de interesse

público para a iniciativa privada, em razão do interesse coletivo que os caracterizam, criou

nova e diferenciada função regulatória para o Estado: a função regulatória autônoma. Esse

novo estado com funções gerenciais e finalidades de justiça social, foi classificado pela

doutrina constitucional contemporânea como Estado Democrático de Direito.

A função regulatória autônoma assim identificada pode relacionar-se tanto com

atividades de interesse público com fins econômicos quanto com atividades voltadas para

proteção e concretização de direitos fundamentais, conforme princípios de direitos humanos

traçados por tratados e convenções internacionais.

Diante de todo o exposto neste terceiro capítulo, torna-se agora necessário

consolidar os parâmetros que serão utilizados na segunda parte dessa pesquisa para

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132

identificação e avaliação da nova função regulatória autônoma da Justiça Eleitoral. Nessa

linha de pensamento, três são os parâmetros que precisam ser estabelecidos:

(i) o conceito de serviço público;

(ii) o que se compreende por função regulatória autônoma;

(iii) os atributos para classificação de um ente como autoridade reguladora

autônoma.

(i) O conceito de serviço público a ser utilizado na segunda parte da pesquisa será

delimitado conforme a definição apresentada por Alexandre Aragão ao longo deste capítulo.

O conceito de atividade será, no entanto, ampliado para além da atividade econômica, nos

termos propostos pelo autor, para abranger também atividades que tenham por finalidade a

proteção e concretização de direitos fundamentais.

Assim, considera-se serviço público todas as atividades de interesse da

coletividade sujeitas aos princípios da continuidade, universalidade, sejam elas titularizadas

pelo Estado ou pela iniciativa privada.

O regime jurídico, publicatio ou ordenatio, ao qual o serviço público está

vinculado é que irá diferenciar o serviço público prestado pelo Estado do serviço público

prestado pela iniciativa privada. São modalidades de serviço público:

- A prestação de serviço público oferecida diretamente pelo próprio Estado (regime

jurídico - publicatio);

- A execução de serviço público de titularidade estatal atribuída à iniciativa privada,

através dos institutos da concessão ou permissão (regime jurídico - ordenatio);

- A atividade privada de interesse publico, ou serviço público impróprio, ordenada

pelo Estado mediante autorização (regime jurídico – ordenatio).

Importante recordar que as atividades privadas de interesse público autorizadas

são caracterizadas pelo impacto que apresentam junto à coletividade ou por causar assimetrias

de informação para os sujeitos envolvidos. Essas atividades normalmente estão submetidas a

processo regulatório especifico e correspondente a um ordenamento setorial e a uma

autoridade reguladora independente. Por possuir impacto direto em toda coletividade, tais

atividades privadas de interesse público sujeitam-se à autorização previa operativa, que além

de possibilitar ao particular o exercício de tal atividade, investe o poder público de uma série

de poderes para rígida regulação ainda que não seja seu titular.

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133

(ii) Tradicionalmente, o ato de regular está associado com o exercício de função

normativa e com o exercício da função jurisdicional e tem por focos principais a legalidade e

a eficácia. Tal regulação pressupõe ciclos temporais idealizados conforme o modelo racional e

abstrato da tradicional separação de poderes, cuja vontade soberana é também igualmente

abstrata e idealizada, cabendo ao poder legislativo a edição de normas primárias para regular a

convivência social e ao poder judiciário a avaliação das condutas que não respeitam tais

normas. A regulação tradicional também está firmemente associada à figura do Estado que,

diretamente, presta serviços e desempenha atividades de interesse público.

No entanto, o fracasso do Estado para fazer face a tantas demandas, o acirramento

da complexidade social e das novas exigências de criação de condições materiais para

garantia e exercício de direitos fundamentais, obrigaram o Estado a compartilhar com a

iniciativa privada a responsabilidade pela execução de serviços e atividades de interesse

público. Tais circunstâncias criaram para o Estado a correspondente responsabilidade de

regular a prestação de serviços e o exercício de atividades atribuídas à particulares norteados

pelos princípios da universalidade e da igualdade. E a operacionalização de tal

responsabilidade, deu origem à criação de centros de interesse múltiplos e atomizados, através

de órgãos e entes técnico-especializados e independentes, com poderes híbridos.

Outros fatores também contribuíram para a transformação da função regulatória

do estado, figurando entre os principais o reconhecimento da incapacidade do poder

legislativo para obter informações detalhadas dos sistemas que precisam ser regulados e a

capacidade para deliberar sobre todos os aspectos relacionados à regulação de um

determinado fato social no tempo adequado; a incapacidade do poder judiciário para lidar com

direitos coletivos e demandas massificadas através de um processo judicial estruturado para

solucionar problemas de natureza individual. Tais constatações trouxeram exigências

concretas de delegação de poder normativo, com a correspondente atribuição de função

regulatória autônoma e demais poderes associados.

Assim, é possível afirmar que haverá função regulatória autônoma sempre que

houver a existência de atividade privada classificada como de interesse público, sujeita à

autorização para funcionamento, e a existência de polo de poder administrativo e político

descentralizado, tecnicamente especializado e diversificado, com a atribuição de cuidar de um

específico campo de atividade considerado em seu conjunto, com poderes para condicionar,

coordenar e disciplinar a atividade privada, com a finalidade de realizar direitos fundamentais.

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A função regulatória autônoma compreende o conjunto de medidas normativas,

administrativas, abstratas ou concretas através das quais o Estado induz, restringe, determina,

controla ou influencia o comportamento de agentes particulares, com os especiais fins de

resguardar interesse público indisponível e de promover a dignidade da pessoa humana.

A função regulatória autônoma abrange, portanto: o poder normativo, para impor

moldura normativa geral e abstrata à atividade regulada; o poder para habilitar o particular a

prestar serviço público ou exercer atividade privada de interesse público (mediante

autorização, permissão ou concessão); o poder para assegurar sua aplicação, mediante poder

de polícia e decisões individuais proferidas na avaliação do caso concreto; poder para reprimir

infrações, através da solução de disputas concretamente consideradas.

Há três dimensões específicas da função regulatória autônoma que precisam ser

destacadas:

1) Poder normativo autônomo – possibilidade de expedir normas como

consequência de delegação legislativa para regular centro específico de direito público - estas

normas, por sua natureza autônoma, necessitam de procedimento suplementar para sua

legitimação em fóruns criados para participação informada e influente das partes interessadas

na regulação, como, por exemplo, audiências públicas;

2) Mecanismos de enforcement – mecanismos efetivos para gerar incentivos e

alinhar comportamentos com as finalidades da regulação - mecanismos e procedimentos

concretos para controlar, impor restrições e punir desvios de finalidade no exercício da

atividade regulada – esta dimensão está associada aos demais poderes relacionados à

atividade regulatória;

3) Eficiência da regulação – identificação de critérios para avaliar se a regulação

está atingindo seu objetivo, se o processo regulatório persegue as finalidades sociais previstas

e se entrega os resultados esperados.

A legitimidade da função regulatória autônoma dependerá, portanto dos

mecanismos previstos para legitimar o direito regulador produzido através da participação

influente dos interessados em fórum adequado; dependerá, ainda, da existência de

responsabilidades delimitadas na legislação e de mecanismos de enforcement com capacidade

para gerar resultados eficientes em tempo adequado, sob pena de tornar-se a regulação

ineficiente, e, portanto, ilegítima.

A legitimidade da função regulatória não resulta apenas de uma regulação bem-

sucedida, mas também da percepção de legitimidade e de eficiência do processo regulatório

pela sociedade. Não basta que a regulação seja legítima e eficiente, ela deve ser percebida

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como legítima e eficiente pela sociedade, pelos cidadãos. Para atender à essa dimensão torna-

se relevante criar instrumentos objetivos para avaliação dos resultados da regulação e dar

transparência à sociedade sobre tais indicadores.

(iii) A classificação de um órgão ou ente como autoridade reguladora autônoma

depende da identificação dos seguintes atributos:

. Órgão ou ente investido de função regulatória autônoma para ordenar atividade

privada de interesse público desenvolvida por particular, mediante autorização, através de

amplos poderes normativos autorizados em lei - deslegalização e funções híbridas: atividade

normativa, atividade regulatória, atividade fiscalizadora, atividade sancionatória e atividade

julgadora;

. Decisão por órgãos colegiados;

. Autonomia orgânica, funcional e financeira (autonomia decisória reforçada da

autoridade reguladora, com atribuição de mandato sem possibilidade de exoneração ad nutum;

impossibilidade de recursos hierárquicos impróprios e autonomia financeira);

. Criação de mecanismos de participação pública no conteúdo nos processos

decisórios (participação regulatória pela publicidade e pela processualidade aberta).

A nova atividade regulatória autônoma busca ajustar de forma permanente a

tensão existente entre o exercício da autonomia individual e o alcance de finalidades públicas,

a tensão entre pluralismo e princípio majoritário, em cenário social diferenciado, em

permanente transformação, com sujeitos e temporalidades bastante distintos da tradicional

partição de poderes. A nova atividade regulatória volta-se para a garantia de iguais condições

de acesso a todos, de igual oportunidade. É nesse novo sentido que a atividade regulatória

autônoma deve ser compreendida.

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PARTE II

REGULAÇÃO ELEITORAL E INTEGRIDADE DAS ELEIÇÕES

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CAPÍTULO 4

GOVERNANÇA ELEITORAL, REGULAÇÃO AUTÔNOMA E

INTEGRIDADE DAS ELEIÇÕES

A adoção de eleições como forma de escolha de representante eleitos disseminou-

se largamente nos últimos trinta anos, sendo indiscutível que os valores da democracia

representativa se incorporaram amplamente à pauta política contemporânea. Sucessivamente

diversos regimes fizeram a transição para a democracia como forma de governo e adotaram

eleições como forma legitima de acesso a cargos políticos (NORRIS, 2014, p. 192). No

entanto, a consolidação da governança democrática apresenta-se como um dos maiores

desafios do século XXI tanto para democracias recentes como para democracias já

estabelecidas, independentemente de seu grau de amadurecimento (GLOBAL COMISSION

ON ELECTIONS, 2012, p.7).

O crescimento das desigualdades sociais, as crises econômicas internacionais, a

globalização, as crises sociais locais, a livre circulação de capitais, o crime organizado, o

aumento dos níveis de corrupção, a interferência do dinheiro na política, as pressões por

melhoras na qualidade de vida das pessoas e o desrespeito aos direitos humanos são exemplos

de alguns dos diversos obstáculos concretos para o aprofundamento da convivência

democrática e para o alcance de soluções pacíficas de integração do tecido social no século

XXI (GLOBAL COMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 5-6).

Embora possam existir divergências quanto à forma como tais fatores impactam o

desenvolvimento econômico e social, não há grandes controvérsias quanto a existência desse

impacto. O reconhecimento da relação existente entre esses fatores e a governança eleitoral,

impondo a exigência de eleições integras como condição para a estabilidade social, entretanto,

constitui-se uma novidade.

Durante muito tempo as eleições foram consideradas como eventos periódicos e

independentes de manifestação essencial à democracia, mas sem que o impacto de seu aspecto

processual e cíclico fosse levado em conta. Nos últimos anos esse quadro vem mudando com

a multiplicação de pesquisas a respeito de eleições, do seu arcabouço jurídico, das instituições

envolvidas e do impacto destas no processo democrático.

Cada vez mais as eleições têm sido percebidas como processo, como ciclos

eleitorais interligados, com forte impacto sobre a governança democrática e sobre as práticas

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políticas dos diversos países. Cada vez mais o campo de estudo abrangido pela governança

eleitoral se destaca como campo de pesquisa autônomo diferenciado, indicando a

transformação de seu objeto.

A terceira onda democrática ocorrida nas últimas décadas do século XX, os

diversos conflitos políticos ao redor do globo, o esforço para transformar a transição

democrática em prática consolidada e o envolvimento de cortes constitucionais/especializadas

e de autoridades eleitorais autônomas aparecem como questões de ordem política e jurídica

que abriram novos questionamentos e novas frentes de pesquisa sobre governança eleitoral.

Em diversos países da América Latina, na África do Sul e no Leste Europeu, há

exemplos consolidados de adoção de autoridades autônomas para gerir o processo eleitoral

como forma de superar e reduzir os impactos de interesses políticos circunstanciais e

imediatistas tão nocivos para a consolidação democrática. São exemplos as instituições

eleitorais do Uruguai, da Costa Rica, do México e, como se pretende defender aqui nesta

pesquisa, do Brasil.

Nessa linha de pensamento, começam a ganhar importância as instituições que

participam do processo político em geral e do processo eleitoral em especial. As instituições,

as “leis da democracia” (SCHLEICHER, 2011, p.75) e o processo eleitoral passam a

importar. Há o reconhecimento de que eleições impactam o processo político e o processo

político impacta a estabilidade social. Começa-se a perceber de forma mais direta que eleições

e governança eleitoral não são neutras em relação ao ambiente político e econômico. Ao

contrário: alterações no processo eleitoral possuem o potencial de influenciar o processo

político e a governança democrática, ampliando ou reduzindo as conquistas da democracia

contemporânea, fortalecendo-a ou enfraquecendo-a (NORRIS, 2014).

A ideia de integridade eleitoral nasce associada a esse contexto e indica uma nova

e inversa relação de causalidade: eleições íntegras funcionam como salvaguarda e aprofundam

a democracia, ao contrário do senso comum de que a democracia garante eleições íntegras. E

por esta razão a integridade das eleições, enquanto objeto de um tipo específico de

governança eleitoral, vem ganhando destaque como campo de estudo autônomo. (NORRIS,

2014, p. 191 e ss).

Como explicam Heather K. Gerken e Michael S. Kang (2011, p. 88) a estrutura do

processo político e da disputa eleitoral colaboram para determinar os resultados substanciais

do processo democrático. Há cada vez maior consenso de que os procedimentos adotados pelo

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processo político, sob suas diversas perspectivas, dão forma e determinam as políticas

implementadas, os candidatos que são eleitos e as reformas que são aprovadas. Essa

perspectiva é bastante significativa na medida em que torna evidente que os procedimentos

adotados pelo parlamento e pelas autoridades eleitorais autônomas na condução do processo

eleitoral, ou seja, a governança eleitoral, impactam e direcionam substancialmente o processo

político.

Outro aspecto que vem ganhando relevo é o fato de que o processo político tem

sido tradicionalmente avaliado pela perspectiva de instituições enquanto origem de

manifestações de vontade homogêneas: o parlamento, o poder executivo, o poder judiciário, o

ministério público, etc. Esta visão hoje, sob a perspectiva dos fundamentos democráticos, tem

sido vista como problemática (GERKEN, 2010, p. 18).

Para diversos estudiosos contemporâneos das leis e das instituições da democracia

as instituições são percebidas como uma coleção de atores políticos que ao desempenhar as

funções estatais para as quais foram eleitos ou ao desempenhar atribuições partidárias não se

despem de seus interesses partidários e particulares, sendo aqui identificadas hipóteses

clássicas de regulação, circunstâncias nas quais há potenciais conflitos de interesse e falhas de

comunicação, sendo necessário instituir incentivos para que ações comandadas por interesses

privados sejam alinhadas com melhores escolhas públicas. Essa abordagem coloca o papel

das autoridades eleitorais autônomas e das cortes constitucionais/especializadas em nova

perspectiva (GERKEN, 2010, p. 18 e ss).

No mesmo sentido, Habermas apresenta e discute os problemas decorrentes de

agentes que atuam orientados por uma lógica estratégica e o compartilhamento do espaço

comum que deve ser construído por uma lógica de cooperação para emancipação do cidadão,

em contexto de democracia deliberativa (HABERMAS, 2003). Pierre Rosanvallon também

ressalta a importância do reconhecimento da existência de instituições de conflito e de

instituições de consenso e das lacunas de legitimidade que precisam ser preenchidas no

âmbito de uma democracia complexa (ROSANVALLON, 2011).

A literatura sobre governança eleitoral expressamente identifica o problema da

produção de normas eleitorais pelo congresso para atender a interesses partidários e privados,

com a intenção de reduzir a competição eleitoral e perpetuar no poder a maioria vigente. Há o

expresso reconhecimento de que as normas eleitorais impactam a correlação de forças

políticas, modificando a forma de funcionamento do sistema político e as possibilidades de

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acesso aos cargos eletivos, alterando inclusive as pautas para elaboração de políticas públicas.

As leis da democracia determinam quem pode chegar ao poder e de que forma (GERKEN e

KANG, 2011).

É nessa linha de desenvolvimento que aparecem estudos sobre “politics as

market” (ISSACHAROFF E PILDES, 1998), sobre a “lei da democracia” (SCHLEICHER,

2011) e sobre o “institucional turn” (GERKEN e KANG, 2011, p. 90), voltados para o estudo

da disputa política eleitoral e para o papel que a lei eleitoral desempenha na governança

política.

Os debates voltam-se para questões como a necessidade de regulação da disputa

política a fim de que o processo eleitoral seja protegido de normas elaboradas pelo parlamento

que possam trazer danos à competição política, reduzindo as condições equitativas de acesso

ao poder. Voltam-se ainda para o estudo do impacto da governança eleitoral e das decisões

adotadas ao longo do processo eleitoral, a fim de investigar como estas influenciam as

eleições e as estruturas democráticas, ou seja, como candidatos são eleitos e como o poder

político é exercido.

Assim, entram em perspectiva o papel atribuído às cortes constitucionais, às

cortes eleitorais especializadas e às autoridades eleitorais autônomas, em matéria eleitoral,

com enfoque diferenciado do papel que lhes tem sido tradicionalmente atribuído.

Há autores como Issacharoff e Pildes (1998), que argumentam de forma mais

radical que a cortes responsáveis pela matéria eleitoral deveriam rever a legislação eleitoral

aprovada pelo parlamento da mesma forma que os reguladores antitruste supervisionam os

atos praticados por monopolistas, questionando se a legislação eleitoral apresenta efeitos

anticompetitivos injustificáveis. Estas abordagens tomam a representação, enquanto resultado

de competição política ampla e legítima, como o objetivo das eleições e buscam analisar

como o agente regulador das eleições deveria tratar da legislação eleitoral anticompetitiva,

gerada por legisladores voltados para seus próprios interesses. Enfatizam os autores a

importância de se compreender como a legislação eleitoral constrói incentivos entre partidos,

candidatos, eleitores e terceiros interessados, e como tais normas poderiam ser usadas para

gerar resultados antidemocráticos ou mais democráticos.

Os autores da corrente conhecida como “ The Institucional Turn in Elections Law

Scholarship” (GERKEN e KANG, 2011, p. 86 e ss) pretendem avançar e estuar o processo de

elaboração das normas que regem o processo eleitoral e como este poderia ser aperfeiçoado,

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141

propondo ferramentas para que sejam compreendidos e identificados os incentivos que

impactam o comportamento individual e partidário com força para dirigir a competição

política.

Os requisitos da democracia apreciados pelas cortes constitucionais e pelas

autoridades eleitorais autônomas no exercício de suas atribuições englobam uma dimensão

mais ampla que a proteção de direitos políticos individuais através da mobilização de

argumentos e fundamentos típicos para avaliação da esfera de direitos pela perspectiva da

autonomia privada. Na medida em que os conflitos levados à jurisdição constitucional e

eleitoral normalmente envolvem interesse público indisponível e o exercício de direitos

eleitorais em dimensão coletiva, o impacto das decisões tomadas alcança na maioria das vezes

efeitos transindividuais. Normalmente as questões discutidas buscam marcar posições,

defender interesses privados e partidários, de cunho político, com amplo impacto na esfera

coletiva dos direitos eleitorais e para o processo político como um todo.

Ao dar forma e significado à legislação eleitoral e ao seu conteúdo e, portanto, ao

regular o processo eleitoral, as cortes constitucionais e as autoridades especializadas lidam

com especificidades e aspectos políticos bastante particulares, pois lidam com a competência

para atuar nas fronteiras do exercício democrático. Ao delinear procedimentos e realizar

substantivamente os direitos eleitorais, tais instituições funcionam como salvaguardas das

estruturas da democracia, fortalecendo-a. Quando não o fazem, tornam ilegítimo o processo

eleitoral, bloqueiam o acesso dos interesses que permeiam o tecido social à arena adequada

para disputas e enfraquecem os pilares democráticos.

Os estudos sobre a governança eleitoral demonstram que não basta garantir

inclusão civil. O alcance da igualdade passa pelo empoderamento político efetivo de todos as

partes interessadas, é um processo intermediário que precisa ser percorrido, sustentado e

reconhecido como essencial à democracia A igualdade política efetiva - a garantia de

participação influente, o “nivelamento do campo de batalha político” e a garantia de reais

possibilidades de acesso a todos os interesses - não é uma questão apenas de garantir direitos

a minorias passivas que precisam de proteção judicial, mas de garantir mecanismos para que

as diversas minorias encontrem meios para proteger a si mesmas através do processo político

legitimo, para que façam suas demandas chegar às instâncias políticas adequadas (GERKEN,

2010).

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142

O que se está começando a perceber é que, na prática, a existência de uma nova

forma de governança eleitoral, desempenhada por autoridade eleitoral autônoma com força

para regular e dar forma ao processo eleitoral, é capaz de induzir um ciclo virtuoso de

consolidação e aprofundamento democrático: quanto mais se tem eleições percebidas como

íntegras e legítimas, mais resistente e respeitado se torna o sistema de direitos e estável é o

equilíbrio social (NORRIS, 2014, p. 191 e ss).

Em outras palavras, quanto mais se tem eleições percebidas como íntegras e

legítimas, maior é a tendência de se utilizar de instituições e meios democráticos para

compatibilizar e resguardar o exercício de autonomia individual e da soberania popular, e para

alcançar a convivência social pacífica. Maior é a estabilidade do tecido social. A proteção da

democracia aprofunda a democracia. Nesse sentido, fica muito claro: o voto é fonte de

integração social e a qualidade das eleições é fator crítico para a estabilidade democrática.

4.1 Governança Eleitoral e regulação tradicional

O ato de votar é precedido pela fixação de uma série de normas e regras, sejam as

normas gerais e abstratas previstas na Constituição e na legislação eleitoral que definem as

condições estruturais para o exercício de direitos eleitorais, sejam as normas previstas para

cada eleição elaboradas pelo parlamento e pelos órgãos eleitorais responsáveis.

O ato de votar é precedido ainda do registro de partidos, de eleitores e de

candidatos da competição eleitoral e da implementação de toda a logística necessária para a

votação, apuração e validação de resultados. Posteriormente às eleições, existem muitas

outras etapas até que os resultados finais sejam proclamados, os candidatos diplomados e os

ciclos eleitorais encerrados.

Durante todo o ciclo eleitoral as pretensões e intervenções das partes interessadas

devem ser consideradas e respostas adequadamente fundamentadas devem ser dadas, sejam

estas através de decisões judiciais ou administrativas, ou ainda através de consultas destinadas

a ouvidorias ou qualquer outro procedimento de participação estabelecido. Informações sobre

eleições, sobre o processo eleitoral e sobre as atividades dos órgãos eleitorais devem estar

organizadas, disponíveis e acessíveis para todas as partes interessadas, pesquisadores e a

sociedade em geral. Tanto em razão da necessidade de participação informada, e, portanto,

influente, como em razão das exigências de transparência como fonte de credibilidade e

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confiança na instituição gestora do processo eleitoral. Ao longo de todos esses complexos

procedimentos há uma série de elementos que precisam ser corretamente identificados para

que todo o processo eleitoral possa ser compreendido e para que seja possível fixar

parâmetros para sua legitimação, monitoramento e controle.

Em geral, apreciações sobre o sistema político e, mais especificamente, sobre o

sistema eleitoral, não costumam ir tão longe. Análises sobre o sistema político costumam

deter-se em aspectos relacionados à política, partidos, voto e proporcionalidade (PASTOR,

1999), com ênfase para os sistemas de governo e fórmulas eleitorais, enquanto análises

jurídicas sobre eleições costumam voltar-se para aspectos do direito eleitoral, sem que maior

atenção seja dada ao papel da governança eleitoral e sua respectiva importância para a entrega

de resultados eleitorais legítimos (HARTLYN, 2008).

Mesmo no Brasil onde a matéria eleitoral é objeto de um ramo especializado do

direito, o direito eleitoral, o enfoque que costuma ser dado à essa disciplina volta-se para seus

institutos jurídicos, discutindo-se os aspectos materiais e processuais do direito eleitoral, sob a

perspectiva de direitos subjetivos, principalmente enquanto direitos individuais e de defesa,

sem que sejam discutidos explicitamente os papéis das instituições envolvidas no processo

eleitoral e o impacto sistêmico das decisões tomadas nos processos.

Essa realidade vem mudando nas últimas décadas. A adoção generalizada de

eleições ao redor do globo, a constatação de desequilíbrios sociais associados às eleições

enfrentados pelas democracias emergentes ao longo da terceira onda democrática e os

escândalos e irregularidades envolvendo a apuração de resultados eleições em democracias

estabelecidas, como a controvertida apuração realizada na Flórida em 2000 durante a eleição

presidencial, são alguns dos principais fatores que contribuíram para colocar a governança

eleitoral e suas instituições na pauta de questionamentos e na agenda de pesquisa.

O estudo das “leis da democracia”, das instituições e dos procedimentos que

lidam com eleições, como campo autônomo de investigação, vem ganhando relevância. Ainda

que fosse possível imaginar a organização do processo eleitoral com níveis muito baixos de

irregularidades e fraudes, apenas a infraestrutura e a logística necessárias para sua realização,

no tempo adequado, e com os recursos necessários disponíveis, a um custo razoável, já

deveriam ser fontes de ampla atenção, pois tratam-se de procedimentos bastante complexos

(MOZZAFFAR e SHEDLER, 2002).

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Em 2002, a governança eleitoral começou a ter seu objeto formalmente

delimitado. A International Political Science Association - IPSA, através de iniciativa

pioneira, consolidou artigos sobre a governança eleitoral em uma edição de seu periódico

International Political Science Review - volume 23, nº 1. Nessa publicação, Shaeen Mozaffar

e Andreas Schedler (2002), no artigo introdutório intitulado “The Comparative Study of

Electoral Governance – Introduction” sistematizaram um conceito de governança eleitoral

que vem sendo usado pela literatura política como referência desde então.

Em 2008, no artigo “Electoral governance matters: explaining the quality of

elections in contemporary Latin America”, Hartlyn, McCoy e Mustillo (2008) buscaram

demonstrar que a estrutura das instituições associadas à governança eleitoral impacta a

qualidade das eleições. O interessante para essa pesquisa é que o artigo utiliza como campo de

investigação os países da América Latina.

As considerações apresentadas nos dois artigos serão utilizadas como ponto de

partida para se estabelecer a relação existente entre a regulação eleitoral tradicional e as

transformações trazidas para a governança eleitoral contemporânea pelo uso de direito

regulador.

Compreendem Mozaffar e Schedler (2002, p.7) que a governança eleitoral pode

ser conceituada como o “conjunto de atividades relacionadas que envolve a elaboração da lei,

aplicação da lei e adjudicação da lei. Ela identifica a provisão de certeza procedimental para

assegurar a incerteza substantiva das eleições democráticas como a principal tarefa da

governança eleitoral. ”

No mesmo sentido, Hartlyn, McCoy e Mustillo (2008) definem a governança

eleitoral como “a interação entre normas constitucionais, legais e institucionais e práticas

organizacionais que determinam as normas básicas dos procedimentos eleitorais e da

competição eleitoral; organiza campanhas, alistamento eleitoral, votação e apuração; resolve

disputas e certifica resultados” (HARTLYN et al, 2008).

A incerteza substancial, enquanto resultado esperado para eleições legítimas,

pressupõe que a governança eleitoral assegure que as regras do jogo sejam respeitadas e que a

competição por cargos políticos seja legítima garantindo que quaisquer tentativas de excesso

no exercício de direitos, fraude ou manipulação sejam adequadamente tratados ou, em outras

palavras, que o processo eleitoral seja alinhado a princípios democráticos e à legislação

eleitoral, que respeite o devido processo eleitoral.

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Em razão da complexidade envolvida, todo processo eleitoral traz imperfeições e

manter o grau de imperfeição dentro de parâmetros não significativos é a meta que se

apresenta. Sem a catalogação suficiente de dados sobre processos eleitorais e a definição de

parâmetros para sua aferição, os problemas de governança eleitoral, em geral, somente são

identificados quando o sistema eleitoral já teve a sua credibilidade ou integridade afetada.

Estas são algumas das razões que justificam a necessidade de mapeamento dos componentes

da governança eleitoral e de definição de indicadores relevantes para as etapas do ciclo

eleitoral, de forma que seja possível monitorá-los antes que a credibilidade ou integridade do

processo sejam abaladas (MOZZAFFAR e SHEDLER, 2002, p. 6 e ss).

Nesse sentido, o valor da governança eleitoral tende a ser percebido somente

quando ocorrem problemas ao longo do processo eleitoral: ou porque este passa

sistematicamente a incorporar deficiências, erros, inexatidões e irregularidades, como ocorre

em democracias estáveis, ou porque a complexidade de coordenar centenas de tarefas para

criar um ambiente estável para a competição eleitoral periodicamente afeta os resultados das

eleições, em razão de falhas e fracassos ao longo desse processo (MOZZAFFAR e

SHEDLER, 2002, p. 6).

A governança eleitoral, então, traz em si um paradoxo sob a perspectiva da

“institucionalização da incerteza”, na medida em que a garantia de incerteza substancial dos

resultados eleitorais pressupõe a garantia da certeza procedimental. Mozaffar e Shedler

(2002, p. 11) ressaltam que a principal tarefa da governança eleitoral decorre exatamente

desse paradoxo: “organizar a incerteza eleitoral através da garantia de certeza procedimental”.

Na mesma linha de pensamento, apontam Pastor (1999, p. 80) e Hartlyn (2008,

p.74) que a dimensão operacional e administrativa das eleições dificilmente é adequadamente

considerada. A estrutura e a logística das eleições não recebem a devida atenção. A

quantidade de múltiplas e diferenciadas atividades, aliada a prazos curtos e corridos, em

conjunto com sucessivas etapas encadeadas e ordenadas do ciclo eleitoral, tornam a

organização da logística das eleições bastante complexa sendo crítico para a credibilidade e

continuidade de eleições legítimas o papel da governança eleitoral.

A complexidade e as possibilidades de falhas nascem da quantidade de elementos

que precisam ser geridos e sincronizados dentro de um determinado espaço e tempo. Há

enorme esforço para agregar e legitimar a participação de todas as partes interessadas, no

prazo correto, em cada fase do ciclo eleitoral. A logística do processo eleitoral, com todas as

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suas etapas e atividades, é, portanto, um dos fatores críticos para a legitimidade e o sucesso

das eleições. Mozzaffar e Schedler (2002, p. 6) avaliam que “esse papel é importante, mas

não é examinado e compreendido nas democracias estáveis. Mas apresentam especial

ressonância nas democracias emergentes, nas quais a manipulação eleitoral é deliberada e

sistematicamente fraudada por legisladores autoritários relutantes em abrir mão do poder”.

A governança eleitoral ainda tem sido considerada como atividade estritamente

operacional e técnica e as eleições como procedimento neutro que apenas organiza de forma

isenta a escolha de representantes eleitos, sem que sejam discutidos os papeis,

responsabilidades e incentivos das partes envolvidas, as etapas e os procedimentos adotados,

enfim, sua legitimidade substancial, no horizonte do estado democrático prospectivo que

possui uma pauta muito clara voltada para justiça social e dignidade da pessoa humana.

Estudos sobre a governança eleitoral objetivam preencher estas lacunas através da

compreensão de seus elementos e de seu significado para o processo de estabilização social e

para aprofundamento da democracia, assim como para encontrar e definir parâmetros para o

seu monitoramento e aperfeiçoamento. A governança eleitoral deve ser alvo de estratégias de

estudo que permitam questionamentos conceituais teóricos e metodológicos sobre seu

significado, sua localização institucional no sistema político-jurídico, com a desagregação de

seu conteúdo em procedimentos e variáveis estruturais pesquisáveis (MOZZAFFAR e

SCHEDLER, 2002, p.7).

A governança eleitoral sozinha não consegue assegurar boa representação política,

mas sem a boa governança eleitoral já se sabe que não é possível assegurar resultados

eleitorais íntegros e estabilidade social prolongada.

Realizadas estas considerações iniciais e considerando-se que a governança

eleitoral é a ampla gama de atividades que cria e mantém a estrutura institucional na qual

ocorre a competição eleitoral para escolha de representantes políticos, assinalam Mozzaffar e

Schedler (2002, p.7 e ss.) que é possível identificar três níveis para seu funcionamento:

elaboração de normas, aplicação de normas e adjudicação de normas. Registram ainda os

autores que acima do primeiro nível, a elaboração de normas, há as normas constitucionais

que definem quem tem competência para definir as normas para a governança eleitoral, sendo

este um ponto problemático em regimes de transição democrática.

Discutir a estrutura constitucional de sistemas eleitorais não é o objetivo dessa

etapa, mas sim compreender como a governança eleitoral pode ser decomposta e analisada e

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ainda como a distribuição de competências a ela relacionada impacta o seu funcionamento.

Com este objetivo, a seguir, será apresentado quadro sistemático com a identificação dos três

níveis de governança eleitoral, conforme proposto por Mozzafar e Schedler (2002, p.8). Note-

se que este quadro é uma referência para o estudo pois a diferença de sistema e de legislação

eleitoral impacta bastante na distribuição dos elementos. Interessa aqui compreender os

níveis da governança eleitoral e conhecer os possíveis elementos de sua composição.

Quadro 1: Três níveis de Governança Eleitoral

Três Níveis de Governança Eleitoral

Níveis Elementos

1. Elaboração de normasEscolha e definição das principais regras do jogo eleitoral

(a) Normas da Competição Eleitoral - Fórmula eleitoral- Circunscrições eleitorais- Tamanho do parlamento- Calendário eleitoral- Direitos políticos

(b) Normas de Governança Eleitoral - Alistamento eleitoral- Registro de partidos de candidatos- Financiamento de campanhas e regulação- Observação das eleições- Modelo de cédula eleitoral- Seções eleitorais- Votação e apuração de votos- Órgãos de gestão eleitoral- Autoridades para disputas eleitorais

2 . Aplicação de NormasOrganização do jogo eleitoral - Registro de eleitores, candidatos e partidos

- Registro de observadores das eleições- Educação de eleitores- Organização eleitoral- Votação, apuração e proclamação de votos

3. Adjudicação de NormasCertificação dos resultados da eleição e solução dedisputas Recebimento de denúncias e

reclamações Processamento de feitosPublicação e implementação de decisões

Fonte: Mozzaffar e Shedler, 2002.

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O nível Elaboração de Normas abrange a definição das normas da competição

eleitoral, que definem as condições estruturais do processo político, e as normas de

governança eleitoral, em sentido estrito, que definem as condições estruturais e

procedimentais do processo eleitoral. Nessa pesquisa, em nome da clareza conceitual e dos

objetivos que se pretende atingir nesse capítulo, as normas de governança eleitoral, em

sentido estrito, serão chamadas de normas de regulação eleitoral.

Mozaffar e Shedler chamam atenção para o fato de que estudantes de sistemas

eleitorais normalmente voltam-se para as consequências políticas das normas da competição

eleitoral - como por exemplo, para as normas que definem o direito de sufrágio, normas com

especificação dos critérios de representação, normas que definem a circunscrição eleitoral, ou

a definição da quantidade de cadeiras para o poder legislativo, tamanho do colégio eleitoral ou

sistemas de votação-, negligenciando completamente a importância das normas de regulação

eleitoral.

As normas de regulação eleitoral basicamente regulam a atuação das partes

interessadas - eleitores, candidatos, partidos políticos e terceiros interessados – e o

funcionamento do microssistema eleitoral: detalham os requisitos e operacionalizam as

condições para alistamento eleitoral, para a determinação de elegibilidade e inelegibilidade,

viabilizando ou não o registro de candidatos; detalham os requisitos e operacionalizam a

forma como será feita a observação e monitoramento do processo eleitoral, o financiamento

político e o acesso à mídia, como por exemplo as normas de prestação de contas partidárias e

de campanha, as normas de propaganda eleitoral, e ainda as normas que detalham o

funcionamento, procedimentos e operacionalização dos órgãos de gestão eleitoral e dos

órgãos de solução de disputas eleitorais.

O nível Aplicação de Normas tem por foco a administração e o funcionamento de

toda a logística do processo eleitoral, com vistas a estabelecer uma base institucional sólida

para a competição eleitoral e a votação.

Trata-se de mapear todas as etapas do processo, criar as condições para

operacionalizar a legislação eleitoral, criando meios para solução dos problemas que venham

a aparecer e integrar pessoas, atividades e prazos. A governança eleitoral, no nível de

implementação de normas, enfrenta como desafios gerenciar a eficiência administrativa, a

neutralidade política e a accountability pública. Tais desafios, pela natureza de cada um,

implicam na impossibilidade de otimizar qualquer um deles sem que os demais tenham

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resultados reduzidos. A governança eleitoral cumprirá seu papel de dar credibilidade e

legitimidade ao processo eleitoral se, independente de ambientes de escassez material e de

desconfiança política, for capaz enfrentar tais desafios e encontrar uma forma para equilibrá-

los (MOZZAFAR e SCHEDLER, 2002, p.8).

A eficiência administrativa aparece como enorme desafio em razão da

complexidade e magnitude do processo eleitoral, da quantidade de atividades e tarefas e do

número de pessoas envolvidas, que precisam trabalhar de forma integrada e nos prazos

determinados. É exatamente no nível operacional que o processo eleitoral está sujeito a maior

quantidade de erros e falhas. Eleições implicam na maior mobilização popular em tempos de

paz e sua organização e condução envolvem uma logística complexa com severas restrições

de tempo que, para funcionar, dependem de um alto nível de coordenação e planejamento

estratégico (MOZZAFAR e SCHEDLER, 2002, p. 8 e ss).

Garantir sufrágio universal e igual chance de participação no processo eleitoral

implica, em primeiro lugar, em disponibilizar meios físicos para o exercício dos direitos

políticos de participação. Desde a implementação de condições para alistamento e votação,

aquisição de bens e serviços, passando pela contratação de pessoas em número suficiente e

com treinamento adequado, por exemplo, até a criação de condições reais para defesa de

direitos, para monitoramento e acompanhamento do financiamento político e da propaganda

eleitoral, tudo isso no prazo adequado.

A participação de todos implica na necessidade de criação de locais de votação

próximos dos eleitores, distribuídos em unidades diversas por todo o país, em meios para

inscrição e controle do cadastro eleitoral e partidário, implica ainda em logística complexa

para aquisição e distribuição de bens e serviços, para monitoramento e fiscalização de

partidos e candidatos, assim como para alocação de pessoas capacitadas para lidar com suas

tarefas e atribuições. Apenas o desafio físico para enfrentar barreiras geográficas já pode se

apresentar como impedimento muito significativo da universalização do sufrágio e para

exercício dos direitos políticos de participação.

A neutralidade política, enquanto manifestação de atuação imparcial perante todos

que tomam parte na competição eleitoral, aparece como desafio significativo para o processo

eleitoral na medida em que este fica exposto a permanentes interferências ilegítimas e

manipulações por partes interessadas com poder político ou econômico, seja através do

exercício de poder normativo, seja através de interferências diretas que podem impactar o

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aspecto operacional, como por exemplo imposições ilegítimas de restrição orçamentária e de

legislação restritiva.

Como a busca de legitimação pelas urnas pode levar à manipulação do processo

eleitoral por autoridades no exercício do poder político que pretendem manter seus mandatos,

a autoridade eleitoral precisa pautar suas atividades pela transparência, integridade e justiça a

fim de demonstrar que não funciona apenas como uma marionete na reprodução das

condições do regime político, capaz de assegurar verdadeira incerteza substancial e certeza

procedimental para os resultados eleitorais (MOZZAFAR e SCHEDLER, 2002, p. 8 e ss). Há

diretrizes especificas para a conduta de gestores e dirigentes da autoridade eleitoral voltadas

para garantir a neutralidade política (IDEA, 2014, p. 23).

A eficiência administrativa e operacional reconhecida e a transparência das

atividades aparecem como fundamentos para a credibilidade da autoridade eleitoral, na

medida em que sustentam sua imparcialidade em relação às disputas políticas, e, portanto,

consagra-se como requisito do devido processo eleitoral. Interessante notar que falhas

operacionais podem ser percebidas pelas partes interessadas no processo eleitoral como

indícios de fraude ou abusos, ferindo a credibilidade do processo, a confiança nos resultados

eleitorais, e, portanto, colocando em questão a legitimidade de todo o procedimento. A

desconfiança política aliada à incompetência técnica pode causar enormes danos a todo o

procedimento eleitoral.

Uma governança eleitoral efetiva precisa ser bem-sucedida na tarefa de separar

aspectos operacionais de questões políticas, criando mecanismos adequados e diferentes tanto

para monitoramento operacional quanto para prevenção de fraudes e abusos políticos. E esse

tratamento diferente para problemas diferentes precisa ficar claro e ser bem compreendido por

todas as partes interessadas com a finalidade de mitigar a exposição permanente do processo

eleitoral a questionamentos relacionados à confiança e à segurança.

Imparcialidade, nesse sentido, não significa atuar de forma passiva e reativa, mas

sim dar tratamento equitativo às demandas e alinhar condutas com os princípios democráticos

contemporâneos. A neutralidade política em relação a todos os participantes da competição

eleitoral não significa que sua atuação seja neutra em relação a princípios e diretrizes

constitucionais. Esta, inclusive é uma das diferenças marcantes entre uma atuação conforme o

modelo de Estado Liberal e o modelo de Estado Democrático de Direito.

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A autoridade eleitoral deve atuar de forma comprometida com a efetivação dos

direitos eleitorais, concebendo e implementando inclusive políticas públicas. Sua atuação,

por consequência, pauta-se por nível considerado de discricionariedade que somente pode ser

legitimada se forem estabelecidos os procedimentos adequados e correspondentes de

legitimação. Os mecanismos de accountability pública aparecem como os meios por

excelência para legitimação de sua atuação operacional, visto que são estes os mecanismos

que permitem aferir sua eficiência administrativa e sua imparcialidade política. A

accountability possui três dimensões essenciais: informação, motivação e incentivo

(enforcement), sendo que normalmente as autoridades eleitorais privilegiam apenas a

dimensão da informação. Apenas dar ciência de suas ações não é suficiente. As autoridades

eleitorais precisam explicitar a razão de suas escolhas e possuir meios para alinhar

comportamentos e punir desvios.

Nesse sentido, a construção de canais para participação efetiva das partes

interessadas, a abertura de espaço para participação da imprensa e para pesquisas acadêmicas

exige das autoridades eleitorais motivação e alinhamento permanente de suas ações com

princípios e normas constitucionais e eleitorais.

O nível Adjudicação de Normas visa a legitimidade processual com o julgamento

oportuno e imparcial das disputas e conflitos eleitorais, sejam estes decorrentes de

ambiguidades da legislação eleitoral ou de problemas operacionais ao longo de todo o

processo eleitoral. A previsão de mecanismos para compor conflitos e solucionar pendências

do processo eleitoral, assegurando às partes interessadas meios institucionalizados para defesa

de direitos, é etapa significativa para credibilidade e confiança nos resultados eleitorais e para

legitimidade de todo o processo (MOZZAFAR e SCHEDLER, 2002, p. 8 e ss).

A adjudicação de normas funciona como uma válvula de segurança para o

processo eleitoral: se a legislação eleitoral e a operacionalização de seus procedimentos não

forem capazes de garantir certeza procedimental e incerteza substantiva, os procedimentos

para resolução de disputas e conflitos e para certificação de resultados eleitorais devem

funcionar como mecanismos adicionais de legitimação dos procedimentos eleitorais na

medida em que forem capazes de restaurar e manter a confiança no processo eleitoral.

A legislação eleitoral presume-se ter sido elaborada através do devido processo,

sendo em princípio, legítima. No entanto, por se caracterizar a disputa eleitoral por ações

estratégicas, qualquer fase do ciclo eleitoral pode ser alvo de condutas e interpretações legais

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contingentes e parciais pelas partes interessadas, o que atribui à atividade adjudicatória a

responsabilidade de funcionar como filtro de racionalidade deliberativa, alinhando a cada ato

e decisão as condutas e questionamentos da parte interessada aos princípios guias do devido

processo eleitoral.

4.2 Integridade das eleições como objeto da regulação eleitoral

A disseminação das eleições como forma de escolha de representantes, a

existência de conflitos políticos em diversos estados soberanos, as dificuldades associadas à

transição democrática e problemas transnacionais envolvendo corrupção e fraudes político-

econômicas são eventos que deram origem a um grupo crescente de pesquisadores que busca

compreender porque eleições falham e o que pode ser feito para alcançar a integridade das

eleições (NORRIS, 2014, p.10).

Na esteira desse debate, entram na pauta questões muito controvertidas sobre

direitos humanos, como por exemplo a possibilidade de regulação do financiamento do

dinheiro na política com a finalidade de equilibrar a competição versus a liberdade de

expressão; a moralidade eleitoral versus direitos individuais; o financiamento público/privado

de campanha com limites versus a liberdade de autodeterminação e a liberdade de expressão;

a legitimidade de um agente regulador eleitoral versus a decisão da maioria parlamentar, entre

muitas outras. Todas essas questões conduzem a debates sobre princípios normativos e sobre

direitos humanos (NORRIS, 2015, p. 4 e ss).

Os problemas associados com a escolha de representantes eleitos não são novos.

Fraudes, irregularidades e corrupção, entre muitas outras, são dificuldades que sempre

estiveram associadas a eleições. No entanto, a multiplicação de problemas da mesma natureza

em escala mundial e para além das fronteiras de estados soberanos, ao lado de clamores

substanciais de direitos humanos e de dignidade da pessoa humana, questões do

constitucionalismo contemporâneo, levaram para uma escala mais ampla os problemas

recorrentes das eleições.

As fraudes, as falhas comuns, as irregularidades e ilegalidades que

constantemente fizeram parte do histórico das eleições, que antes eram consideradas como

problemas técnicos isolados e pontuais de procedimentos que deveriam atender apenas a uma

legitimidade formal, passaram a ser objeto de estudo relevante e identificadas como

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fenômenos com potencial para influenciar não só a governança eleitoral como também a

governança democrática, atingindo sua legitimidade substancial.

A governança eleitoral e a corrupção política associada, na virada do novo século,

deixou de caracterizar preocupação de natureza doméstica para os diversos estados soberanos

para ser alçada à pauta permanente de organismos internacionais e organizações não

governamentais.

A constatação desses fenômenos resultou em uma agenda emergente de pesquisa

sobre integridade eleitoral, sobre questionamentos a respeito de procedimentos e instituições

envolvidos no processo eleitoral e sobre os potenciais vínculos que estes poderiam ter com a

governança democrática, com o funcionamento legítimo do sistema político e com a

estabilidade social.

Atualmente, caminha-se para o consenso de que embora as eleições não

caracterizem condição suficiente para o exercício da democracia, constituem-se como

condição necessária (NORRIS, 2015, p. 4). Embora eleições com integridade no sentido

contemporâneo sejam um objeto de estudo novo, a experiência prática e as pesquisas em

andamento direcionam-se no sentido de evidenciar que um determinado tipo de processo

eleitoral, aquele conforme normas e parâmetros internacionais de direitos humanos, possui

potencial para induzir e aprofundar processos democráticos. E, de forma oposta, eleições

conduzidas com desrespeito aos padrões internacionais de direitos humanos possuem

potencial para induzir e aprofundar crises do sistema político (GLOBAL COMISSION ON

ELECTIONS, 2012).

Eleições fazem diferença para a democracia (MOZAFFAR e SHEDLER, 2002,

p.5) e a governança eleitoral estabelecida também (HARTLYN, 2008, p.74). A noção de

integridade eleitoral ou de eleições íntegras nasce associada a esse novo contexto de maior

inclusão política, com acirramento da complexidade da convivência social, e de maiores

desafios impostos pela dinâmica global.

4.2.1 Conceito de integridade eleitoral

Eleições são a materialização e operacionalização dos direitos políticos de

participação, dos direitos eleitorais. Direitos eleitorais são direitos políticos, que integram a

categoria de direitos humanos, e pretendem garantir a todos os cidadãos de uma dada

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comunidade a realização de eleições livres, justas, genuínas e periódicas através do sufrágio

direto, universal, livre e secreto (IDEA, 2010, p.12).

Estão abrangidos no conceito de direitos eleitorais o direito de votar e de

concorrer a cargos eletivos através de eleições periódicas, justas, livres e genuínas, através do

voto universal, livre, secreto e direto; o direito de ter acesso, em condições de igualdade a

cargos públicos eletivos; o direito de associação política para fins eleitorais; e outros direitos

diretamente correlacionados como o direito de liberdade de expressão, de liberdade de

associação e de petição, e ainda o direito de acesso à informação em matéria político eleitoral.

Os direitos eleitorais expressam o conjunto de direitos políticos de participação que garantem

aos cidadãos a participação na condução de matérias públicas ou através de representantes

eleitos livremente (IDEA, 2010, p. 12 e ss).

Importante ressaltar que os princípios e garantias relativos ao direito de acesso à

justiça previstos nos instrumentos internacionais de direitos humanos aplicam-se também aos

direitos eleitorais e aos órgãos judiciais constituídos para proteção e defesa dos direitos

eleitorais. Entre esses princípios, cabe distinguir o direito a uma decisão efetiva perante uma

corte imparcial e previamente constituída, o direito ao devido processo legal e à audiência

pública na qual a defesa de direitos eleitorais seja garantida a todas as partes interessadas de

forma igual.

Existem diversos tratados e convenções internacionais que expressamente fazem

previsão dos direitos políticos eleitorais como parte integrante dos direitos humanos e,

portanto, fornecem princípios e diretrizes universais para a delimitação do conceito de

integridade eleitoral.

A existência de parâmetros internacionais bastante claros e já normalizados sobre

o exercício de direitos políticos em geral, e sobre eleições em particular, contidos nos tratados

e acordos internacionais sobre direitos humanos, ratificados por parcela significativa de

estados, oferece um sólido ponto de partida para se estabelecer um conceito de integridade

eleitoral (NORRIS, 2014; IDEA, 2010 e GLOBAL COMISSION ON ELECTIONS, 2012).

No quadro, a seguir, podem ser identificados alguns dos principais princípios

previstos em acordos e tratados internacionais sobre eleições.

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Quadro 2: Princípios relacionados aos direitos eleitorais previstos em convenções e tratados internacionais.

PARÂMETROS INTERNACIONAS PARA ELEIÇÕESPRINCÍPIO INTERPRETAÇÃO

Direitos e oportunidades de participar das atividades do Estado

Referem-se a direitos e oportunidades de participar nas atividades do Estado através de partidos políticos, de organizações da sociedade civil e através do voto para escolha de representantes eleitos

Direitos e iguais oportunidades de voto Tais direitos e oportunidades devem sujeitar-se apenas a restrições razoáveis, como, por exemplo, a idade mínima para qualificação do eleitor

Direitos e oportunidades de ser eleito

Tais direitos e oportunidades relacionam-se com a livre escolha de candidatos, sem restrições discriminatórias, como por exemplo, a utilização de requisitos não razoáveis de filiação política, educacional ou residencial

Eleições periódicasRelaciona-se com a definição de mandatos e a definição objetiva de prazos para os eventos do ciclo eleitoral

Sufrágio universalO direito de votar deve ser o mais inclusivo possível para todos os cidadãos adultos

Sufrágio igualA relação uma pessoa/um voto afeta a delimitação da circunscrição eleitoral e a distribuição de assentos correspondentes na eleição de representantes eleitos

Voto secretoProibe a conexão entre a identidade do eleitor e as escolhas realizadas em sua votação, para previnir coerção, corrupção ou intimidação.

Liberdade de discriminação e igualdade perante a lei

Proibe discriminação baseada em raça, cor, sexo, lingua, religiao, opiniao politica, nacionalidade, propriedade, nascimento, ou qualquer outro status , essencial para garantir que candidatos, partidos e eleitores possam participar em igualdade de condições

Igualdade entre homens e mulheres

Inclui assegurar que as mulheres tenham iguais oportunidades de participação em eleições. A CEDAW reconhece inclusive o uso de medidas temporárias voltadas para acelerar a igualdade de fato entre homens e mulheres, tal como políticas de quota de gênero.

Liberdade de associação

Inclui o direito de formar partidos politicos e outras organizações civis, embora sejam reconhecidas como legítimas pelo ICCPR restrições relacionadas à garantia de segurança nacional, ordem pública e segurança pública.

Liberdade de assembleia

Inclui direitos dos candidatos relacionados à organização de encontros de campanha eleitoral embora algumas restrições sejam reconhecidas pelo ICCPR como razoaveis em face de interesses de segurança nacional ou ordem pública

Liberdade de locomoçãoReconhece que candidatos devem ser livres para fazer campanha sem restrições e os eleitores devem ser livres para exercerem seu direito de voto

Liberdade de opinião e de expressão Esse direito aplica-se à imprensa, mas também a partidos e candidatos

Direito à segurança da personalidadeEsse direito inclui proibição de injuria, intimidação, prisao arbitrária ou detenção, incluindo candidatos e ativistas, durante as campanhas

Transparência e direito à informaçãoAutoridades eleitorais possuem a obrigação de dar transparência às suas atividades, assim como todas as partes interessadas, tais como, partidos políticos, candidatos e a sociedade civil organizada

Prevenção de corrupção

Os Estados são obrigados a prevenir a corrupção, inclusive a que ocorre durante o processo eleitoral. A UNCAC enfatiza que os Estados devem adotar medidas para fomentar a transparencia no diancimento de campanhas e de partidos políticos.

Estado de direitoInclui igualdade perante a lei, a independencia e a imparcialidade do Poder Judiciário

Direito à remedio efetivoInclui acesso à revisão judicial para pretensões relacionadas às eleições, para garantir a confiança publica no processo eleitoral e em seus resultados

Direito à audiência justa e públicaEstados são obrigados a fornecer tratamento eficiente e temporalmente adequado através de tribunais independentes e imparciais

Estados devem adotar as medidas necessárias para efetivação de direitos

Estados são obrigados a adotar as medidas necessárias para dar efetividade a direitos no ICCPR, tanto abstendo-se de restringir direitos como protegendo-os

Fonte: Domenico Tuccinardi, ed. 2014. International Obligations for Elections: Guidelines for Legal Frameworks. Internationa IDEA: Stockholm. Capítulo 4

Os princípios apresentados na tabela possuem alta carga de abstração, como é

característico da linguagem de acordos e tratados internacionais, e por isso torna-se necessário

a contextualização e densificação de seus conteúdos, a tradução desses princípios em normas

e procedimentos aplicáveis e verificáveis em cada país (NORRIS, 2015, p. 6-7).

A análise das normas, procedimentos e práticas relacionados a eleições é premissa

para compreensão do porquê eleições são bem-sucedidas e porque eleições falham, ou seja, é

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preciso que o fenômeno em observação possa ser descrito, operacionalizado e analisado.

(NORRIS, 2014 e GLOBAL COMISSION ON ELECTIONS, 2012).

Pippa Norris (2014), no livro Why Electoral Integrity Matters, propõe que o

conceito de integridade eleitoral seja construído de forma ampla a partir dos princípios

previstos em normas e tratados internacionais, portanto com fundamento em parâmetros

universais de direitos humanos, aplicados globalmente, vinculantes para todos os países

signatários, com aplicação durante todas as fases do ciclo eleitoral. Registre-se por hora que

dois são os elementos relevantes: o conjunto de princípios que servem de vetor para delinear

uma governança eleitoral legítima e o que se compreende por ciclo eleitoral.

Como explica a autora, essa forma de conceituar integridade eleitoral permite a

construção de uma base sólida comum para avaliação das eleições de acordo com padrões

normativos universais que alcançaram amplo consenso. A adoção dos direitos humanos como

parâmetro para avaliação de eventos de competição política permite, ainda, o detalhamento e

a consolidação de diretrizes sobre aspectos práticos do processo eleitoral, à medida que

consensos sejam alcançados por órgãos internacionais de observação e apoio eleitoral.

A integridade eleitoral seria então atributo de eleições realizadas conforme os

parâmetros previstos nas normas internacionais e que, portanto, respeitam direitos humanos,

por outro lado, irregularidades eleitorais seriam atributos de eleições que falham em atender

tais parâmetros (NORRIS, 2015, p. 4).

Em setembro de 2012, em razão da relevância do tema, representantes da Global

Comission on Elections, Democracy and Security (GLOBAL COMISSION ON

ELECTIONS, 2012), comissão de especialistas criada pela International Institute for

Democracy and Electoral Assistance - International IDEA e pela Kofi Annan Foundation,

reuniram-se e publicaram relatório no qual foi delimitado e fixado um sentido comum para o

que se compreende por eleições com integridade:

“Definimos eleições com integridade como qualquer eleição baseada nos princípios democráticos do sufrágio universal e da igualdade política conforme refletidos nos padrões e tratados internacionais, e que seja profissional, imparcial e transparente em sua organização e administração durante todo o ciclo eleitoral. ”

Como visto, os tratados e convenções internacionais especificam padrões

internacionais básicos de integridade eleitoral. Seu principal fundamento está no artigo 21 da

Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948:

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“Artigo 21: 1. Todo ser humano tem o direito de tomar parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. 2. Todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. 3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto. ”

Desse artigo decorrem direitos e princípios inequívocos tais como o de que a

autoridade governamental legitima decorre da vontade do povo expressa através de eleições

legítimas realizadas em intervalos periódicos, com sufrágio universal e igual, através de voto

secreto e livre.

O Pacto Internacional sobre Direitos Políticos e Civis, adotado pela XXI Sessão

da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, apresenta orientações

específicas que colaboram para delimitar o conceito de integridade eleitoral em especial as

contidas nos artigos 1, 2, 3, 25 e 26 com a previsão autodeterminação, de tratamento

igualitário e sem discriminação de qualquer natureza, de participação nos assuntos públicos

direta ou indiretamente por representantes livremente escolhidos, de votar e ser votado em

eleições periódicas, autênticas e realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto

secreto, que assegurem a manifestação de vontade livre dos eleitores.

Posteriormente outras normas de direitos humanos com previsões mais explícitas

e detalhadas foram publicadas. Na Conferência de Cooperação e Segurança na Europa -

CSCE de 1990 (OSCEOSCE, 1990) foi elaborado o documento de Copenhagen com previsão

especifica para eleições livres em intervalos regulares, eleição popular para todos os assentos

em pelo menos uma das câmaras; sufrágio universal e igual, o direitos de estabelecer partidos

políticos e sua clara separação do estado, a realização de campanhas em ambiente livre e

justo, livre acesso à imprensa, voto secreto com contagem e apuração conduzida de forma

honesta, divulgação pública dos resultados apurados, garantia de instalação dos vencedores e

do exercício de seus respectivos mandatos.

O Código de Boa Conduta em Matéria Eleitoral apresentado pela Comissão de

Veneza de 2002 (VENICE COMMISSION, 2002) detalha questões relativas às eleições,

apresentando diversas implicações relacionadas ao sufrágio universal e igual, abordando

desde questões como a igualdade de contagem de votos, passando pela igualdade de

oportunidades, a livre formação da vontade e correspondente expressão pelo eleitor, até a

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necessidade de combate à fraude eleitoral e de organização de eleições verdadeiramente

democráticas e periódicas.

No mesmo sentido, as Nações Unidas – UN e a Organização dos Estados

Americanos – OEA também publicaram normas com diretrizes e orientações sobre eleições.

A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção de 2003, em seu artigo 7

(UNDOC) estabelece:

“Artigo 7 – Setor Público2. Cada Estado Participante considerará também a possibilidade de adotar medidas legislativas e administrativas apropriadas, em consonância com os objetivos da presente Convenção e de conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, a fim de estabelecer critérios para a candidatura e eleição a cargos públicos. 3. Cada Estado Participante considerará a possibilidade de adotar medidas legislativas e administrativas apropriadas, em consonância com os objetivos da presente Convenção e de conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, para aumentar a transparência relativa ao financiamento de candidaturas a cargos públicos eletivos e, quando proceder, relativa ao financiamento de partidos políticos. 4. Cada Estado Participante, em conformidade com os princípios de sua legislação interna, procurará adotar sistemas destinados a promover a transparência e a prevenir conflitos de interesses, ou a manter e fortalecer tais sistemas. ”

A Resolução 63/163 de 12 de abril de 2012, publicada pela Assembleia Geral das

Nações Unidas reconhece que “a democracia é um valor universal baseado na livre expressão

da vontade do povo para determinar seus próprios sistemas políticos, econômicos, social e

cultural e a completa participação em todos os aspectos de seu funcionamento. ” Além de

explicitar seu comprometimento com o princípio democrático a resolução estabelece ainda a

responsabilidade dos estados membros para “garantir eleições livres e justas, livre de

intimidações, coerção e adulteração na contagem de votos e que todos esses atos sejam

punidos adequadamente”.

Na abordagem apresentada para construção do conceito de integridade eleitoral,

as convenções e tratados internacionais sobre direitos humanos são o ponto de partida, são o

vetor de orientação para o desenvolvimento de ações e procedimentos concretos com objetivo

de alcançar a integridade e reduzir irregularidades durante todo o ciclo eleitoral.

Problemas de integridade eleitoral com capacidade para danificar a legitimidade

de eleições abrangem tanto irregularidades decorrentes de atos ilícitos como de atos

formalmente legais; decorrem das diretrizes estabelecidas em normas que podem restringir

demais direitos ou de normas que não os protegem adequadamente; podem ser resultado tanto

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de escolhas políticas como decorrentes de problemas de gestão, da falta de recursos ou de

falhas técnicas. Como a integridade eleitoral é um atributo complexo, multidimensional e

estreitamente ligado ao constitucionalismo contemporâneo e aos direitos humanos, a

especificação de seu conteúdo e alcance ainda carece de maior desenvolvimento e enfrenta

muitas limitações pela ausência de acordos internacionais sobre temas eleitorais relevantes.

Questões como financiamento político, propaganda eleitoral, competências e funções

associadas à gestão das eleições, entre muitos outros, são temas novos que ainda não foram

suficientemente detalhados e descritos em normas internacionais de ampla aceitação, embora

diversas pesquisas e diretrizes com esta finalidade estejam em elaboração. (NORRIS, 2014)

A definição de um conceito de integridade eleitoral consistente e de aceitação

ampla, conforme normas internacionais, é o primeiro marco significativo de esforços no

sentido de se estabelecer um parâmetro sólido para aferição de legitimidade da governança

eleitoral e democrática. O passo seguinte é a tradução de tais princípios e diretrizes em formas

concretas de governança eleitoral, em ações, políticas públicas e procedimentos concretos

passíveis de monitoramento.

4.2.2. Porque adotar a integridade das eleições como objetivo a ser perseguido pela regulação eleitoral?

Atualmente, diversos órgãos internacionais - tais como as Nações Unidas/ONU, a

Organização dos Estados Americanos/OEA, a Organização para Organização e Segurança da

Europa/OSCEOSCE, a Comissão Europeia para a Democracia / Venice Commission -,

organizações não governamentais - como por exemplo a International Institute for

Democracy and Electoral Assistance – IDEA e o Carter Center -, estudos acadêmicos e

pesquisas estão voltados para compreender porque eleições falham e o que pode ser feito para

que processos eleitorais se tornem mais íntegros.

Essas ações integram esforços direcionados para a redução de conflitos políticos e

de instabilidades sociais, com as principais finalidades de ampliar a convivência democrática

e promover as condições essenciais para plena concretização de direitos humanos e da

dignidade da pessoa humana. Estas são as razões intuitivas que justificam a adoção da

integridade eleitoral como parâmetro de adequação para realização de eleições.

Argumentos racionais para a adoção da integridade das eleições como parâmetro

são apresentadas por Pippa Norris (2014) no livro intitulado Why Electoral Ingegrity Matters.

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Este livro é o primeiro de uma série de três obras que consolidarão os resultados do projeto

The Electoral Integrity Project, em desenvolvimento ao longo de cinco anos, com

pesquisadores de diversas partes do mundo e dirigido pela pesquisadora. O projeto busca

compreender porque eleições falham, o que pode ser feito a respeito e de que forma a

qualidade das eleições se relaciona com a estabilidade democrática.

No primeiro livro publicado pela equipe do projeto, a tese defendida é a de que a

qualidade procedimental da competição eleitoral faz diferença para o comportamento político

e para o comportamento das massas. A pesquisadora apresenta um modelo sobre integridade

eleitoral, cujas hipóteses foram testadas por pesquisas empíricas, para demonstrar que a

qualidade das eleições e da democracia apresenta impactos significativos para o

comportamento de agentes do sistema político.

Embora não seja objeto da presente pesquisa discutir o modelo e os respectivos

fundamentos apresentados pela autora, entende-se que sua breve apresentação colabora para

imediata compreensão do vínculo estabelecido entre a qualidade das eleições/qualidade da

democracia e a estabilidade social, em contexto de complexas relações humanas determinadas

pela radical fragmentação do que se compreende por bem comum, consequência da

universalização do sufrágio e da ampla inclusão política ocorrida ao longo do século XX e

especialmente nos últimos trinta anos.

A identificação desse vínculo contribui decisivamente para demonstrar a

importância de se estabelecer a integridade das eleições como horizonte regulatório para

alinhar interesses estratégicos a objetivos cooperativos, para orientar as relações entre

instituições de conflito e instituições de consenso na esfera eleitoral, pois fica muito claro que

não é qualquer tipo de eleição que atende ao princípio democrático contemporâneo.

O modelo sequencial apresentado retrata uma reação em cadeia a partir da

percepção pública sobre a qualidade das eleições e da democracia que pode culminar com

maior participação popular no processo político e estabilidade social; ou em protestos

populares com graus de intensidade diferenciados que tem por consequência alterações da

legislação política e eleitoral para inserir reformas e adequações ao sistema político eleitoral;

ou ainda em protestos vigorosos e turbulentos que levam a profundos problemas sociais que

podem resultar inclusive na ruptura do regime vigente.

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PERCEPÇÃO PÚBLICA DE INTEGRIDADE ELEITORAL E DE IRREGULARIDADES ELEITORAIS

LEGITIMIDADE POLÍTICA

COMPARECIMENTO ÀS URNAS

DEMONSTRAÇÕES PACÍFICAS DE PARTICIPAÇÃO

PROTESTOS VIOLENTOS

rotina de retroalimentação (feedback loop) rotina de retroalimentação (feedback loop)

QUALIDADE DAS ELEIÇÕES E DA DEMOCRACIA

CONCESSÕES INSTITUCIONAIS, REPRESSÃO ESTATAL OU MUDANÇAS DE REGIME

161

Ou seja, a percepção pública de integridade eleitoral está diretamente relacionada

com sentimentos de legitimidade política e essa percepção tem consequências muito

significativas para o processo políticos.

A seguir serão apresentadas breves considerações sobre alguns aspectos do

modelo central de integridade eleitoral especialmente significativos para a pesquisa

desenvolvida (NORRIS, 2014, p. 11).56

Figura 1: Modelo Central de Integridade EleitoralFonte: Norris, 2014.

A premissa inicial do modelo é a de que a comunidade internacional se engajou

no fortalecimento da integridade eleitoral em razão da proliferação dramática de competições

multipartidárias aliada ao aparecimento persistente de irregularidades eleitorais semelhantes

ao redor do mundo (NORRIS,2014, p. 11).

Dessa premissa decorrem três proposições:

1) onde as disputas falham no atendimento a parâmetros internacionais de

integridade, espera-se que cidadãos comuns percebam as falhas eleitorais;

2) espera-se que a percepção massiva de integridade eleitoral tenha impacto na

legitimidade política, através do fortalecimento da confiança pública nas instituições

eleitorais, do senso de efetividade da política externa e da satisfação com a performance da

democracia;

3 ) a percepção pública de integridade eleitoral (sentimentos de legitimidade

política) tem impacto no ativismo político: tanto pode aumentar o comparecimento de

56 O modelo central sobre integridade eleitoral não foi apresentado na presente pesquisa de forma completa. Para apresentação integral do modelo e de todas as hipóteses testadas ver NORRIS, 2014.

CONDIÇÕES DE MEDIAÇÃO

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eleitores às urnas enquanto reduz a propensão para participar de ações e protesto ou conflitos

violentos, na medida em que acomoda todos os grupos através do canal eleitoral, reduzindo os

ressentimentos subjacentes que desencadeiam a violência social, as revoltas populares e

guerras civis; como sua ausência, ou seja, a existência de irregularidades eleitorais, pode

desencadear a redução do comparecimento às urnas e favorecer o aparecimento de conflitos

sociais, na medida em que os canais eleitorais não são eficientes para acomodar os interesses

divergentes.

As consequências desse processo em cadeia podem ser diversas a depender da

capacidade dos regimes políticos estabelecidos em cada estado soberano para dar respostas ao

descontentamento das massas. Os efeitos da integridade eleitoral e das irregularidades

eleitorais não são sempre automáticos ou diretos, pois dependem do grau de maturidade

democrática e institucional de cada país para lidar com as circunstâncias políticas, ou seja,

depende das condições de mediação estabelecidas.

Nas democracias estáveis, a preocupação pública persistente sobre irregularidades

eleitorais tais como escândalos financeiros ou fraudes eleitorais podem levar a protestos

públicos que terão como resultado concessões da classe política, que poderão culminar até

mesmo na implementação de reformas institucionais e procedimentais.

Em ambientes menos estáveis, a resposta a protestos públicos decorrentes de

irregularidades eleitorais pode ser a catalizadora para atos de repressão com o evidente

objetivo de calar as críticas e a livre manifestação da oposição. No limite, o descontentamento

popular pode levar até mesmo a transição de regime.

A primeira hipótese do modelo sugere que eventos do mundo real modelam as

percepções públicas. Falhas nas atividades das instituições democráticas e nos processos

democráticos oferecem uma base racional para percepções públicas sobre processos eleitorais

fraudulentos, desonestos ou injustos.

Diferente das atividades políticas que ocorrem no parlamento e no poder

executivo, com alta complexidade normativa e procedimental sem a participação direta do

cidadão, eleições também são eventos com alta complexidade, mas que possuem uma

interface direta para participação de todos os cidadãos, com razões e fundamentos de justiça

ou injustiça discutidos pelos candidatos e partidos, de forma concentrada, no período eleitoral,

e com ampla cobertura e divulgação pela mídia.

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Cada cidadão tem a oportunidade de experimentar diretamente eventos ligados às

eleições, desde o alistamento eleitoral, o registro de candidatos e partidos, a propaganda

política, a divulgação de pesquisas eleitorais, até a compra de votos, falhas na votação ou a

devida solução de problemas.

Embora, os cidadãos possam saber ou se importar muito pouco com a legislação

eleitoral, com aspectos abstratos ou técnicos de sua realização, a experiência direta de cada

cidadão com as eventos eleitorais, a manifestação de formadores de opinião, de líderes

partidários, de organizações não governamentais, entre outros fatores, modelam uma

percepção pública mais informada sobre integridade ou irregularidades eleitorais, do que

sobre outras atividades políticas, oferecendo oportunidades e experiências diretas de

integridade ou irregularidade do processo eleitoral para cidadãos e demais interessados.

A segunda hipótese do modelo sequencial pressupõe que a percepção pública de

integridade eleitoral induz sentimentos mais amplos de legitimidade política, sendo este um

indicador crítico para a qualidade da democracia, na medida em que ampliam os sentimentos

dos cidadãos sobre a legitimidade dos políticos eleitos, das instituições democráticas e de seus

princípios e procedimentos. Se a integridade eleitoral tem a capacidade de fomentar a

aceitação popular dos resultados das urnas e das ações dos representantes eleitos, as

irregularidades eleitorais possuem o efeito oposto podendo enfraquecer sentimentos de

legitimidade política e afetar a confiança no processo eleitoral, nas autoridades eleitorais e nos

representantes eleitos.

A legitimidade e estabilidade política dependem de sentimentos de pertencimento

a uma comunidade nacional, de apoio aos princípios democráticos, de avaliações positivas

sobre a performance da democracia, de confiança nas instituições do estado – entre estas os

partidos políticos, as autoridades eleitorais e os representantes eleitos para cargos públicos

(NORRIS, 2014, p. 13).

A principal conclusão da pesquisa realizada por Pipa Norris, em colaboração com

diversos outros pesquisadores e após variados testes empíricos descritos na obra, é a de que a

qualidade das eleições teria capacidade para influenciar atitudes, a percepção de legitimidade

democrática e o padrão de participação política - comparecimento às urnas e participação em

movimentos ativistas/protestos.

A pesquisa sugere que há um “elo perdido” negligenciado entre a qualidade das

eleições/democracia e o engajamento político, entre eleições e a manifestação das massas

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(NORRIS, 2014, p. 196). A legitimidade e a estabilidade do regime democrático relacionam-

se com a integridade das eleições, enquanto que manifestações populares e revoltas sociais

seriam resultado indireto de irregularidades eleitorais.

Portanto, a integridade eleitoral teria alcance mais amplo do que votações

eleitorais pontuais. A integridade das eleições ou falhas associadas a eleições poderiam

potencializar efeitos positivos ou negativos sobre o funcionamento do sistema político com

consequências bastante drásticas e inversas, estabilidade social ou acirramento do conflito

social.

No mesmo sentido, vale registrar as conclusões da reunião realizada em 2012 pela

Global Comission on Elections, Democracy and Security (GLOBAL COMMISSION ON

ELECTIONS, 2012, p. 3 e ss). O relatório elaborado durante o encontro registra que a

governança democrática, e, portanto, a estabilidade social, depende de paz e segurança, do

desenvolvimento econômico e do estado de direito com respeito aos direitos humanos, e,

portanto, às suas instituições. Registra ainda que a preservação da governança democrática no

estado democrático de direito depende diretamente da governança eleitoral direcionada para

garantia de integridade eleitoral, na medida em que eleições são um dos pilares da

democracia, pois determinam quem tem acesso ao poder político e de que forma. Eleições

íntegras forjam o elo de legitimidade entre os cidadãos e o sistema político.

Embora tais relações não estejam completamente identificadas, descritas,

comprovadas e normalizadas, já se sabe que uma governança eleitoral deficiente mina alguns

dos pilares da governança democrática e ameaça sua estrutura a partir de dentro, na medida

em que afasta suas salvaguardas e permite que interesses estratégicos contaminem o sistema

de direitos minando sua legitimidade e colocando em risco o seu funcionamento.

A democracia, o desenvolvimento econômico e a segurança pública dependem de

eleições íntegras. Onde existe integridade nas eleições os pilares da democracia são honrados:

há igualde política substancial, os cidadãos escolhem de fato seus representantes e esses

representantes prestam contas de seus atos – partidos políticos e campanhas políticas são

regulados para funcionar a servido de princípios democráticos. Sem integridade eleitoral e

sem regulação há desequilibro da competição eleitoral: somente acessam cargos políticos

aqueles que possuem influência política ou econômica, os cidadãos não conseguem de fato

escolher seus líderes visto que estes não possuem chances reais de participar da competição

política, não há transparência nem monitoramento efetivo com a correspondente

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responsabilização na condução de atividades partidárias e de campanhas eleitorais, sendo por

todas essas razões negada a possibilidade de igual participação a todos para influenciar o

processo político (GLOBAL COMMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 4).

Confiança e credibilidade por parte dos cidadãos nas eleições são os atributos que

garantem aos governantes eleitos legitimidade substancial. Eleições apenas formalmente

legitimas ameaçam a integridade do tecido social pois impede a circulação de poder político

substancialmente legitimo e a legitima ordenação de pautas para políticas públicas. Eleições

dão vida e tornam concretos parte dos direitos humanos previstos na Declaração Universal

dos Direitos dos Homens e na Convenção de Direitos Civis e Político e criam condições para

implementação dos demais.

A habilidade democrática para solucionar conflitos e compor interesses de forma

pacífica pressupõe eleições íntegras, ou seja, pressupõe reais condições fazer chegar à esfera

política representantes dos diversos interesses sociais e a correspondente prestação de contas.

A integridade do processo eleitoral é, portanto, catalizadora do aprofundamento

democrático e da deliberação pública legítima (NORRIS, 2014, p. 163 e ss), sendo esta a

razão pela qual a integridade das eleições justifica-se como vetor de orientação para

realização e avaliação do processo eleitoral, durante todo o seu ciclo.

4.3 Regulação, jurisdição e ineficiência: lacunas de legitimidade no processo eleitoral contemporâneo como fonte de instabilidade política

A tendência para utilização de instituições e mecanismos judiciais para gestão do

processo eleitoral e para solução das disputas eleitorais teve início no final do século XIX e

firmou-se ao longo do século XX.

A transferência de competências para organizar e compor conflitos do processo

eleitoral a membros do poder judiciário justificou-se pela necessidade de se afastar ou pelo

menos reduzir a influência de interesses políticos na condução das eleições a fim de que seus

resultados pudessem ter credibilidade.

A institucionalização de meios e procedimentos judiciais para solução de litígios

eleitorais trouxe maior segurança jurídica para os sistemas políticos e permitiu a

institucionalização de práticas objetivas voltadas para a estabilização democrática. A forma

jurisdicional de resolver litígios em matéria política trouxe racionalidade e segurança ao

procedimento diferenciando-os dos meios e procedimentos políticos de resolução de conflitos,

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166

uma vez que os procedimentos e argumentos disponíveis eram diferentes para o poder

judiciário e para o poder legislativos.

Durante a maior parte do século XX, a jurisdição caracterizou-se como uma das

principais formas de regulação eleitoral.

A consolidação e sofisticação dos meios constitucionais e legais para solução de

disputas políticas eleitorais, a partir da terceira onda de democratização ocorrida no final do

século XX, principalmente em democracias emergentes, colaboraram para fortalecer o papel

de protagonista de órgãos eleitorais na consolidação de valores e procedimentos

democráticos.

O protagonismo de cortes eleitorais especializadas teve por fundamento a entrega

de soluções de igualdade, a preservação da liberdade de expressão, a mitigação das

assimetrias de informação no processo eleitoral, o combate a fraudes e abusos, enfim,

contribuiu para o livre e justo exercício formal dos direitos políticos eleitorais. As cortes

especializadas em matéria eleitoral, nesse sentido, alçaram-se à condição de pedras angulares

da democracia ao assegurar legalidade e confiança no processo eleitoral.

No mesmo sentido, a história da América Latina de forte ingerência política sobre

as eleições fez com que o processo político necessitasse de salvaguardas especiais com o

objetivo de garantir eleições justas e confiáveis. A fórmula encontrada para cumprir esse

objetivo seguiu a tendência adotada em outros países de entregar a cortes judiciais a

competência para cuidar do processo eleitoral (ISSACHAROFF, 2010, p. 978).

Nos países dessa região esta opção foi ainda mais radicalizada na medida em que

a responsabilidade pela condução de todo o processo eleitoral foi entregue a órgãos com

autonomia e independência funcional para a condução de todos os procedimentos para

escolha dos representantes eleitos, sendo o exemplo mais contundente a entrega do processo

eleitoral para um órgão ou para um conjunto órgãos gestores das eleições, independente e

com poderes judiciais para conduzir, regular e direcionar o processo eleitoral do início ao fim

(ISSACHAROFF, 2010, p. 978 e ss).

No entanto, a regulação eleitoral de natureza jurisdicional, amparada em

parâmetros que foram eficientes no paradigma de Estado anterior, precisa ser revista no

contexto atual. Se durante o século XX, o modelo jurisdicional de controle do processo

eleitoral mostrou-se eficiente, em suas últimas décadas tal modelo começou a demonstrar

sérias limitações.

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167

Na primeira parte do século XX, como visto no segundo capítulo, a legitimidade

democrática, nos termos apresentados por Pierre Rosanvallon (2011), amparava-se no acesso

ao serviço público mediante concurso e na realização de eleições periódicas, enquanto eventos

isolados para autorizar a representação política, investindo em mandatos aqueles que

deveriam tomar decisões em nome do povo. O Estado de Direito era burocrático, técnico e

obediente à uma lógica estritamente formal, cujos parâmetros de legitimidade também

obedeciam a uma legitimidade estrita. Sob essa perspectiva, o interesse público ou vontade

popular apresentava caráter homogêneo e monológico, sendo sua principal forma de

expressão o parlamento.

Nesse contexto, a regulação eleitoral tradicional, como foi visto, era feita através

da jurisdição e funcionava tendo por parâmetro o modelo racional e abstrato de separação de

poderes que também tinha por pressuposto um sujeito soberano, igualmente idealizado e

abstrato. A regulação eleitoral tradicional, realizada através da jurisdição, tinha por missão

avaliar e garantir a legalidade formal de procedimentos, resguardando principalmente direitos

individuais e de defesa. O voto ainda estava em processo de universalização.

A terceira onda democrática do final do século XX, resultado das transformações

inauguradas e disseminadas pela pauta principiológica do constitucionalismo contemporâneo,

como resposta às lacunas abertas por um modelo jurídico desconectado da facticidade e com

baixo potencial para realizar justiça social, inaugurou um novo paradigma de Estado.

No Estado Democrático de Direito, resultado das democracias representativas

contemporânea com clamores de justiça formal e substancial, na qual o cidadão assume duplo

papel, de autor e destinatário das normas produzidas, as condições de legitimidade

democrática tornaram-se mais complexas. Ainda na linha apresentada de Pierre Rosanvallon

(2011), a legitimidade democrática incorporou outras dimensões: a legitimidade da

imparcialidade, a legitimidade da reflexividade e a legitimidade da proximidade, como

consequência da universalização do voto e correspondente reconhecimento da miríade de

minorias e diferenças que agora compõe o heterogêneo tecido social. Tais circunstâncias

radicalizaram a fragmentação da ideia de bem comum e levaram para outro patamar as

disputas para acesso à arena política e a políticas públicas, e criaram novos espaços

deliberativos para além do parlamento.

O reconhecimento de instituições de conflito e de instituições de consenso, com o

correspondente redimensionamento de seus papéis, ao lado da manifestação complexa dos

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sujeitos e tempos da democracia, levaram ao redimensionamento das condições de

legitimidade eleitoral.

Se no Estado de Direito a regulação tradicional do processo eleitoral, mediante

exercício da jurisdição, pautava-se por uma legalidade estrita, pela verificação de condições

formais para alistamento e candidatura e pela credibilidade formal da votação e apuração, que

deveriam ser livres de fraudes, com foco para os atos ilícitos, no Estado contemporâneo a

nova regulação das eleições mantém os objetivos do passado acrescidos da integridade.

A regulação eleitoral como conceito novo expandiu-se para o controle da disputa,

para o alistamento e comportamento de eleitores, para as condições de acesso à arena

eleitoral, para o registro de candidaturas, para as regras de financiamento e de propaganda,

para o funcionamento da mídia, para a repressão aos abusos econômicos, políticos e

ideológicos-religiosos e para o controle e fiscalização da atividade partidária. Expandiu-se

para o controle de todo o ciclo eleitoral.

A nova regulação eleitoral tornou-se contingente e complexa, e por isso necessita

de estrutura autônoma e ativa para dar conta da “realidade” não captada ou resolvida nos

ciclos de temporalidade “idealizados” do modelo racional e abstrato de separação de poderes

tradicional.

Em contexto de enorme complexidade do processo eleitoral, essas são exatamente

a maiores dificuldades da regulação eleitoral contemporânea, o fator crítico para a realização

de eleições íntegras: ser eficiente e legítima.

Eleições íntegras, ou seja, o devido processo eleitoral, pressupõe: logística

eficiente e segura; participação informada e influente do cidadãos, atividade partidária e

candidaturas legítimas e resultados legítimos.

A logística eficiente e segura pressupõe mecanismos para organizar e

operacionalizar o processo eleitoral. Significa criar as condições materiais adequadas para que

as etapas do ciclo eleitoral aconteçam no prazo previsto, com a menor quantidade possível de

falhas.

A participação informada e, por consequência, influente do cidadão, depende de

uma série de medidas de transparência ativa que fomentem o acesso efetivo a informações

sobre o processo eleitoral e ações educacionais voltadas para o fortalecimento da cidadania.

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A entrega de atividade partidária e de candidaturas legítimas à sociedade significa

funcionamento partidário e candidaturas em compliance com as regras do jogo democrático

no prazo adequado. Partidos políticos enquanto instituições de conflito por excelência, cujas

ações são pautadas por lógica estratégica, geram para a sociedade enormes assimetrias de

informação pois seus interesses de acesso e permanência ao poder conflitam diretamente com

a lógica do entendimento que deve vigorar no exercício dos cargos políticos. Os órgãos

eleitorais possuem a responsabilidade de criar incentivos adequados para alinhar as ações de

partidos e candidatos com os objetivos da regulação eleitoral expressos no conceito de

integridade das eleições.

Resultados legítimos pressupõem livre manifestação de vontade com esforço

contínuo para redução das desigualdades e construção da participação influente. Os cidadãos

assumem duplo papel, autor e destinatário das normas de convivência comum, e, portanto,

atuam em duas dimensões sociais comuns: na esfera privada e na esfera pública. Suas ações

podem orientar-se também por lógica estratégica ou por lógica de consenso.

Em contexto de enormes desigualdades sociais, a manifestação livre e consciente

do voto constantemente é afetada por circunstâncias diversas que impedem a manifestação

equitativa: violência, pobreza, ausência de serviços públicos, desigualdade material de

oportunidades. As condições para exercício da cidadania, para livre exercício da soberania

popular, podem ficar seriamente comprometidas (SHEUERMAN, 2005).

A regulação eleitoral contemporânea, nos termos em que vem sendo discutida

nesta pesquisa, relaciona-se com as três dimensões da governança eleitoral. Muitos são os

debates sobre a logística eficiente e segura do processo eleitoral e sobre as condições que

precisam ser implementadas para garantir integridade. Já se sabe também que os problemas

mais evidentes envolvendo eleições no mundo contemporâneo relacionam-se com o papel do

dinheiro na política e com a disseminação da corrupção nos sistemas políticos ao redor do

planeta (FGV/IDEA, 2015). Estes são, na esfera dos direitos políticos, as maiores fontes de

instabilidade social e os maiores riscos para a integridade das eleições.

As principais dificuldades para enfrentamento das lacunas de legitimidade geradas

pelo dinheiro e pela corrupção relacionam-se com a ausência de mecanismos de enforcement,

uma das dimensões da regulação autônoma, conforme apresentado no capítulo 3.4 (GLOBAL

COMMISSION ON ELECTIONS, 2012; IDEA, 2014). Há legislação farta sobre o tema, mas

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o maior problema relaciona-se com sua aplicação, com os mecanismos para gerar os

incentivos corretos e para punir desvios em tempo adequado.

A regulação eleitoral através da jurisdição, que funcionou como alternativa bem-

sucedida para regular o processo eleitoral durante o século XX, aparece agora como

problema: a regulação eleitoral mediante procedimentos jurisdicionais, com foco e

mecanismos voltados apenas para proteção de direitos individuais e para aspectos formais de

legitimidade, tem sido ineficiente. Os mecanismos, procedimentos e temporalidades da

jurisdição tradicional, por si só, são inadequados e insuficientes para as exigências da

complexa regulação eleitoral contemporânea.

Importante registrar que esse não é um fenômeno exclusivamente relacionado à

direitos políticos. A sociedade de massa, com relações profundamente diversificadas e de

natureza coletiva, tem induzido transformações significativas na estrutura do sistema jurídico

enquanto mecanismo de comunicação social.

Nesse sentido, em artigo publicado no ano 2010, Andrei Shleifer, do

Departamento de Economia da Universidade de Harvard, sustenta que a universalização da

adoção de procedimentos regulatórios no mundo contemporâneo tem muito mais a ver com o

fracasso das cortes em solucionar disputas de forma barata, previsível e imparcial do que

propriamente com falhas de mercado e assimetrias de informação. A multiplicação de

mecanismos de regulação, que no presente trabalho tem sido chamada de regulação

autônoma, e por consequência a multiplicação de autoridades reguladoras independentes,

seria uma adaptação institucional mais eficiente à um mundo mais complexo.

Explica o autor que a regulação contemporânea, de natureza autônoma, não é

necessariamente preferível à jurisdição, existindo custos e benefícios associados com cada

forma de regulação das relações sociais, sendo ambas as alternativas imperfeitas. O que existe

são circunstâncias nas quais uma forma de regular é mais eficiente do que outra. Quando

litigar se torna mais caro, imprevisível e ineficiente, cria-se espaço para a regulação

autônoma. Em poucas palavras, diz o autor, “a hipótese de regulação eficiente ampara-se no

fracasso das cortes” (SHLEIFER, 2010, p. 4).

A observação feita pelo autor oferece perspectiva bastante interessante para a

compreensão do fenômeno contemporâneo da multiplicação de órgãos eleitorais

especializados com poderes jurisdicionais, da multiplicação de órgãos eleitorais que, embora

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possuam competência jurisdicional, pela natureza de suas atividades, assemelham-se em

competências e estrutura a autoridades reguladoras.

A atividade regulatória autônoma funciona através da padronização de requisitos

para condutas adequadas das partes envolvidas e, embora tal padronização muitas vezes possa

ser considerada rígida, há um efeito associado de redução do esforço para adequação às

normas. Reduz-se o aparato de controle e punição tradicional, a posteriori e caso a caso,

através da uniformização de condutas e ações em regulamentos autônomos voltados para

tratar eventos massificados, na maior parte das vezes de natureza transindividual e coletiva.

A regulação autônoma também afeta os custos envolvidos em eventual

judicialização das questões que não consegue resolver, na medida em que fornece critérios

mais objetivos e específicos para avaliar fatos que de outra forma ficariam sujeitos à avaliação

subjetiva e complexa dos envolvidos.

Ao especificar critérios objetivos e tangíveis para o objeto regulado, a regulação

contemporânea reduz a amplitude das questões discutidas, tornando os comportamentos das

partes envolvidas mais previsíveis e o custo para solução de divergências menor, gerando

maior incentivo para adesão às normas pelos envolvidos.

Outro argumento, trazido pelo autor, que se adequa bastante à presente reflexão, é

o de que a emergência do estado regulador foi amplamente fomentada pela “desigualdade de

armas” no contexto da sociedade de massas, no qual as cortes foram incapazes de lidar com as

profundas e complexas mudanças econômicas.

Assim, grandes empresas e consumidores, fábricas e trabalhadores, são exemplos

de relações na qual uma das partes é hipossuficiente e está em franca desvantagem, gerando

não apenas problemas de cunho individual, mas claramente de natureza coletiva. Não por

acaso, atualmente as relações de consumo e de trabalho figuram entre algumas das relações

mais reguladas pelo Estado. Quanto maior a quantidade de envolvidos, quanto maior a

quantidade de demandas repetitivas, maior é o incentivo para que a relação social seja

regulada de forma autônoma a fim de que os ônus da judicialização sejam reduzidos. Essa

mesma avaliação é adequada para a esfera político-eleitoral. Há uma clara relação de

hipossuficiência entre partidos políticos e candidatos de um lado e eleitores/cidadãos de outro.

A regulação autônoma, obviamente legitimada pelos procedimentos adequados,

com os correspondentes mecanismos de enforcement, pode ser muito mais eficiente para

regular fatos sociais de abrangência coletiva do que múltiplas e longas batalhas judiciais.

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Nestas hipóteses, os fatos são mais complexos e correspondem a conhecimentos e incentivos

muito especializados. A judicialização pressupõe equivalência de meios e recursos para as

partes envolvidas mas falha largamente quando uma das partes é hipossuficiente, quando a

desigualdade de armas é esmagadora. As relações de natureza transindividual e coletiva em

geral apresentam essa característica.

Registra Shleifer (2010, p. 24) que a eficiência é fator crucial para a sobrevivência

das instituições. Se órgãos e cortes eleitorais são instituições de consenso - que têm por

missão dar voz e oportunidade a todos, para que a imparcialidade, enquanto condição de

acesso igual, e a reflexividade, enquanto meio para construção compartilhada de conteúdos e

significados dos direitos eleitorais – a eficiência e legitimidade para entrega dos resultados

esperados, eleições íntegras, não pode ser ignorada.

Todas as considerações relacionadas à eficiência da regulação, seja ela econômica

ou social, são muito oportunas para o debate sobre a atividade regulatória autônoma das

instituições, e, em especial para órgãos eleitorais.

As relações estabelecidas no âmago do processo eleitoral para escolha de

representantes políticos apresentam extrema desigualdade entre as principais partes

envolvidas: cidadãos e partidos políticos.

A pauta internacional de princípios ligada a eleições, aponta a separação entre

Estado e partidos políticos como um dos pressupostos de legitimidade do processo eleitoral.

Nesse contexto, os partidos políticos são entes de natureza jurídica privada que exercem

atividade de interesse público, ao mediar as relações entre cidadãos e cargos públicos, que

precisa ser regulada.

Há claramente uma relação de hipossuficiência estabelecida, na qual existem

chances concretas de “captura da democracia” por interesses estratégicos. Assimetrias de

informação, falhas e externalidades, causadas por abuso de poder político, econômico ou

ideológico, sem desconsiderar o enorme impacto das desigualdades sociais, são fontes

potenciais de ilegitimidade que ameaçam a integridade das eleições.

A regulação eleitoral eficiente e a entrega de resultados eleitorais íntegros

dependem ainda de respeito aos prazos dos ciclos eleitorais. Questões essenciais da disputa

política não podem ser prolongadas indefinidamente por processos judiciais sem que tal

circunstância afete a legitimidade dos resultados das urnas. A regulação eleitoral ineficiente

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gera desequilíbrio sistêmico e interfere na qualidade da democracia criando espaço para a

instabilidade social.

O processo eleitoral, embora extremamente complexo, possui fases e problemas

bastante previsíveis, que podem ser bastante beneficiados pela regulação autônoma, inclusive

com redução ou simplificação significativa da litigiosidade.

Os procedimentos previstos para o exercício da jurisdição foram construídos para

funcionar em temporalidade diferente dos ciclos eleitorais e para atender a objetivos

completamente diferentes dos objetivos da regulação eleitoral autônoma. A jurisdição

tradicional foi construída sob alicerces de direitos individuais e o processo eleitoral envolve,

por excelência, procedimentos de natureza coletiva, em razão dos sujeitos da democracia

envolvidos. Tais diferenças eram pouco relevantes no paradigma anterior de Estado, mas são

muito importantes no contexto atual.

A conclusão a que se chega é que a regulação eleitoral de natureza jurisdicional -

que não só foi eficiente ao longo do século XX, como colaborou amplamente para a

estabilização democrática - deixou de ser eficiente no contexto atual e precisa ser revista.

A regulação eleitoral contemporânea engloba, para além da competência

jurisdicional, a competência normativa autônoma, decorrente do instituto da deslegalização,

mas necessariamente abrange também a dimensão de enforcement, de mecanismos concretos

para gerar incentivos de adesão a normas e para punição de desvios, sob pena tornar-se

ineficiente. A nova regulação autônoma, como discutido no terceiro capítulo, envolve a

atribuição de competência normativa e de poderes híbridos, com diferente estrutura de

apropriação de discursos, novas exigências para produção de direito legítimo e novos

mecanismos de regulação social.

4.4 Governança Eleitoral, regulação autônoma e integridade das eleições

A ideia de eleições justas e genuínas foi construída ao longo do século XX

associada a padrões de legalidade, enquanto que as irregularidades estariam ligadas a atos

ilícitos, ou seja, com foco em ações fraudulentas tipificadas na legislação eleitoral doméstica

de cada país.

A abordagem normativa e jurisdicional dos problemas ligados a eleições deu

racionalidade aos procedimentos eleitorais e permitiu a implementação de parâmetros práticos

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e concretos para solução das divergências emergentes durante os procedimentos eleitorais

(NORRIS, 2014). Esta perspectiva esteve completamente coerente com a teoria jurídica e o

modelo de estado predominantes no período, a teoria jurídica positivista e o Estado de Direito.

No mesmo período, a complexidade do processo eleitoral deu ensejo a introdução

de técnicas gerenciais voltadas para a mitigação de falhas e erros decorrentes das rotinas de

trabalho dos órgãos eleitorais, normalmente associados à ineficiência, incompetência,

problemas na máquina burocrática, etc. A profissionalização dos órgãos eleitorais foi o meio

encontrado em diversos países para agregar credibilidade às eleições.

A legalidade e a especialização técnica das atividades eleitorais percorreram o

caminho natural de agregação de legitimidades às democracias representativas do Estado

Liberal, tal como proposto por Pierre Rosanvallon (2011).

Embora estas abordagens tenham contribuído de forma significativa para a

ampliação da legitimidade do processo eleitoral, com o advento do constitucionalismo

contemporâneo e dos direitos humanos, que incorporaram à democracia uma pauta

principiológica prospectiva, tais abordagens deixaram de ser suficientes pois contemplam

apenas aspectos formais e técnicos sem alcançar aspectos de justiça substancial.

Eleições podem ser perfeitamente legais e administrativamente eficientes e ainda

assim violar padrões internacionais de direitos humanos (NORRIS, 2014), se não puderem

garantir igual oportunidade e participação influente a todos.

Por ser prospectiva, contingente e possuir dimensão coletiva, a integridade

eleitoral contemporânea não pode amparar-se apenas em procedimentos judiciais com

parâmetros formais para solucionar conflitos individuais e em questões gerenciais. Estes

parâmetros são insuficientes para promover o necessário alinhamento de todas as fases do

processo eleitoral com os princípios democráticos previstos em tratados e convenções

internacionais sobre direitos políticos.

E é nesse sentido que a integridade das eleições aparece como objetivo a ser

perseguido pela governança eleitoral, na medida em que o processo eleitoral também passa a

ser prospectivo e precisa funcionar, a todo tempo, a serviço da concretização de princípios

democráticos e de direitos humanos.

A integridade das eleições deixa de ser apenas atributo normativo formal e

técnico, aferível a posteriori, para transformar-se em atributo de natureza substancial que

precisa ser acompanhado ao longo de todo o processo eleitoral.

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Há uma alteração de perspectiva: é insuficiente olhar apenas para trás e verificar

onde o processo eleitoral falhou. É preciso agregar ao espelho retrovisor do órgão eleitoral um

painel com instrumentos para navegação durante todo o percurso. É preciso agregar à

perspectiva backward looking do procedimento judicial, que funciona voltada para o passado,

a perspectiva foward looking da regulação prospectiva, voltada para o futuro, para uma ação

prudencial que tenha por finalidade o equilíbrio da competição política, o alinhamento das

eleições com padrões de integridade durante o todo o ciclo eleitoral e a redução da amplitude

da litigiosidade.

A integridade das eleições passa a ser objeto da função regulatória autônoma

originada no final do século passado, conforme discutido na primeira parte dessa pesquisa.

Sem função regulatória autônoma não há regulação prudencial eficiente visto que as

temporalidades associadas aos três poderes tradicionais do estado, por si só, não permitem a

criação de mecanismos e procedimentos eficientes para lidar com uma realidade contingente.

Perseguir a integridade eleitoral significa criar, mediante exercício imparcial e

reflexivo, normas de governança eleitoral voltadas para a redução da litigiosidade, para a

eficiência da regulação prudencial, significa ainda aperfeiçoar os meios para que as partes

interessadas do processo eleitoral tenham interesse em alinhar suas ações com finalidades

cooperativas, com padrões internacionais de direitos humanos. Então é possível afirmar que o

objetivo da regulação eleitoral é perseguir a integridade das eleições durante todo o ciclo

eleitoral.

Atualmente a condução de eleições com integridade enfrenta diversos desafios

regulatórios em todo o mundo: a regulação do financiamento político de partidos, a regulação

do financiamento de campanhas, a representação de minorias, a igualdade de gêneros, o

desenvolvimento de novas tecnologias, a regulação da propaganda eleitoral, a regulação da

atuação da imprensa, entre muitos outros.

Uma análise mais apurada demonstrará que todos estes desafios apresentam uma

face regulatória que não poderá ser corretamente enfrentada se não houver o explícito

reconhecimento de função regulatória autônoma em matéria eleitoral para orientar as

circunstâncias emergentes através de mecanismos eficientes e temporalmente adequados.

O relatório publicado pela Global Comission on Elections, Democracy and

Security em 2012 (GLOBAL COMMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 6) apresenta os

cinco maiores desafios a serem superados para a condução de eleições com integridade:

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- a construção de estrutura normativa para atender a clamores substanciais de

direitos humanos e justiça eleitoral;

- a criação de Órgãos de Gestão Eleitoral (EMBs) profissionais, competentes,

com total independência de ação para administrar as eleições que sejam transparentes e

mereçam a confiança pública;

- a construção de instituições e a criação de normas para a competição

multipartidária e para divisão de poderes que assegurem a democracia como um sistema de

segurança mútuo entre os competidores políticos;

- a remoção de barreiras – legais, administrativas, políticas, econômicas e

sociais- para a participação universal e igual; e

- a regulação do financiamento político descontrolado, opaco e não divulgado.

O relatório consolida orientações e diretrizes voltadas para alcance e

aperfeiçoamento da integridade das eleições. Ao desenvolver o tema, o relatório aborda

objetivamente a questão da regulação do processo eleitoral, e em especial a regulação do

financiamento político.

O relatório não entra na questão da função regulatória autônoma como

desenvolvido nessa pesquisa, mas as ao discorrer sobre as instituições envolvidas na

condução do processo eleitoral deixa muito claro os requisitos de independência, autonomia,

transparência e confiança pública de tais instituições, características que, no formato

apresentado, remetem imediatamente às características de autoridades reguladoras autônomas

e aos componentes de legitimidade a estes associados. Em razão da importância dos temas

tratados no relatório para a pesquisa, a seguir estão resumidas as principais considerações

relacionadas aos desafios acima apresentados.

A construção de estrutura normativa para atender a clamores substanciais de

direitos humanos e justiça eleitoral possui diretrizes e princípios já bem definidos na

Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Convenção Internacional de Direitos Civis e

Políticos, cujos países signatários comprometeram-se a honrar. No entanto, se tais diretrizes e

princípios não forem traduzidos e detalhados em normas e procedimentos aplicáveis,

passíveis de monitoramento e verificação, com mecanismos correspondentes para efetivo

alinhamento de condutas e responsabilização dos infratores, no tempo adequado, o aspecto

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substancial não terá reais possibilidades de materialização (GLOBAL COMMISSION ON

ELECTIONS, 2012, p. 6 e ss).

A tradução de princípios e diretrizes em normas e procedimentos aplicáveis e

passiveis de monitoração e verificação, com mecanismos correspondentes para efetivo

alinhamento de condutas e responsabilização de infratores no tempo adequado pressupõe a

institucionalização de uma governança eleitoral cíclica e contínua com meios e medidas

concretos para sua materialização, pressupõe, portanto, a existência de uma autoridade

reguladora autônoma atuante com os correspondentes poderes de enforcement.

A confiança de todas as partes interessadas na condução do processo eleitoral é

elemento chave para a integridade das eleições. A criação de autoridades gestoras do processo

eleitoral (EMBs) profissionais, competentes, transparentes e com total independência de ação

para administrar eleições é pressuposto para o merecimento da confiança pública, na medida

em que as ações dos envolvidos na condução do processo eleitoral precisam ser auditáveis

pelas partes interessadas (GLOBAL COMMISSION ON ELECTIONS, 2012, p.20 e ss).

Não basta que as eleições sejam tecnicamente confiáveis, é necessário que estas

sejam percebidas como livres, justas e confiáveis e essa percepção somente pode existir se

houver procedimentos e parâmetros de avaliação estabelecidos para o acompanhamento e

monitoramento das diversas atividades que compõem todas as fases do processo eleitoral

(GLOBAL COMMISSION ON ELECTIONS, 2012. p. 6). Definir os diversos processos de

trabalhos envolvidos nas eleições, as decisões e resultados deles decorrentes com seus

respectivos registros (documentos), tornando-os disponível para o público com linguagem

acessível é etapa fundamental para a construção da confiança.

A independência de ação para administrar as eleições, em nível nacional, significa

criar instituições eleitorais profissionais, competentes, com total independência para conduzir

o processo eleitoral – isso significa acesso a recursos financeiros suficientes para realizar

eleições e mandatos para organizar eleições transparentes que mereçam confiança e

credibilidade pública (GLOBAL COMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 21). Mais uma

vez há referência a requisitos para a autoridade eleitoral que remetem à natureza jurídica de

uma autoridade reguladora independente.

A construção de instituições e a criação de normas para a competição

multipartidária e para divisão de poderes que assegurem a democracia como um sistema de

segurança mútuo entre os competidores políticos implica que vencedores tenham autoridade

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legitima e que perdedores tenham segurança política e física (GLOBAL COMISSION ON

ELECTIONS, 2012, p. 24 e ss). A democracia é uma sucessão de ciclos eleitorais com

posições vencedoras ou perdedoras de curto prazo que em escalas de tempo maior podem se

modificas pela organização e pela mobilização.

Um sistema de segurança mútuo pressupõe que partidos políticos e candidaturas

sejam monitorados e que exista um código de responsabilidade política para avaliação de suas

condutas, e esse monitoramento no contexto contemporâneo não pode mais ser feito somente

pelo próprio poder político visto que interesses contingentes e vitoriosos podem desconsiderar

parcela significativa de interesses públicos legítimos não representados.

A oxigenação permanente do sistema político pressupõe a escolha de parâmetros

claros para regular a competição política de forma que: os interesses estratégicos de partidos

e candidatos sejam sucessivamente alinhados com diretrizes e princípios constitucionais, com

princípios democráticos e de direitos humanos; os pressupostos da competição política

legítima sejam preservados – acesso e participação influente de todos os cidadãos, igualdade

política, segurança para perdedores, limites para vencedores, etc.; a atuação de autoridades

reguladoras do processo eleitoral ocorra também de forma alinhada com princípios de

integridade eleitoral.

Eleições íntegras permitem que as disputas entre os diversos interesses ocorram

em arenas racionalizadas com potenciais para compor e dissolver conflitos ao invés de

potencializá-los. A nível nacional, recomenda-se que sejam desenvolvidos procedimentos

para deter a violência associada a eleições, a implementação de mecanismos efetivos de

responsabilização de infratores das normas eleitorais, a implementação de políticas para

impedir supervalorização dos vencedores e desvalorização dos perdedores da competição

política (GLOBAL COMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 24).

A remoção de barreiras legais, administrativas, políticas, econômicas e sociais

para a participação universal e igual implica em primeiro lugar no reconhecimento dessas

barreiras, a seguir na delimitação de políticas públicas legitimadas em fóruns adequados para

definição de critérios aceitos por todo, que tenham por finalidade tornar mais equitativo o

acesso à arena política. Nesse sentido, eleições com integridade significam eleições com

possibilidade real de acesso a candidaturas, a recursos para campanha política, à estrutura

mínima para representação política viável. A possibilidade de participar como candidato em

eleições por si só não assegura que os diversos interesses sociais sejam representados. A

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ausência de regulação partidária com exigências mínimas para políticas de inclusão, por

exemplo, garante a manutenção do poder nas mãos de uma mesma família ou de um mesmo

grupo por gerações, dificulta o acesso de minorias e perpetua o desequilíbrio de gênero

(GLOBAL COMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 29).

O financiamento político descontrolado é atualmente uma das mais fortes ameaças

para a integridade das eleições e, portanto, para a estabilidade social e para a legitimidade do

sistema político. Situações de crise ou de desagregação de sistemas políticos contemporâneos

têm sido continuamente associadas a escândalos políticos e corrupção, e o elo entre essas

circunstâncias e a integridade das eleições apenas começou a ser descrito (GLOBAL

COMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 33).

O controle do financiamento político abrange o financiamento de campanhas, as

finanças partidárias e todos os aspectos relacionados com o financiamento e o gasto de

partidos políticos e candidatos em campanhas eleitorais. Compra de votos, suborno de

candidatos em troca de favores políticos, abuso de poder econômico e político, influência do

crime organizado e de organizações paraestatais através de doações ilícitas para campanhas

políticas, contabilidade paralela, são todos exemplos de problemas gerados por financiamento

político sem controle, de dinheiro na política sem adequada regulação.

Em nível doméstico, regular o financiamento político significa controlar

efetivamente doações e gastos partidários e de campanhas políticas, significa alinhar e

monitorar o financiamento público de partidos e de campanhas políticas com os princípios

democráticos estabelecidos conforme direitos humanos, garantir a divulgação e transparência

das doações e gastos e a penalização por não adequação a normas e procedimentos (non-

compliance) (GLOBAL COMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 62 e ss).

A criação de uma estrutura normativa para atender a clamores substanciais de

direitos humanos e justiça eleitoral, a criação de normas para garantir equilíbrio e

legitimidade na competição multipartidária, a remoção de barreiras para a participação

universal e igual, e o financiamento político descontrolado, opaco e não divulgado são claras

hipóteses para regulação autônoma que ganharam forma e se intensificaram após a terceira

onda de democratização do final do século XX em razão da complexidade social, da

universalização do voto e da inclusão política, do novo constitucionalismo prospectivo e das

novas exigências de legitimidade que se apresentaram para as sociedades contemporâneas.

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180

Apenas fortes requisitos de transparência não são suficientes para garantir a

integridade eleitoral e o controle do dinheiro na política. A existência de uma autoridade

eleitoral independente para o monitoramento e supervisão do financiamento político com

poderes para responsabilização e alinhamento de interesses eleitorais é fator crítico para a

realização de eleições com integridade. Deve haver previsão normativa e de procedimentos

concretos para recebimento, exame e auditoria das declarações financeiras dos partidos

políticos e candidatos, com poderes para monitorar a contabilidade dos partidos, para

investigar potenciais violações da legislação eleitoral e para impor rígidas sanções em

hipótese de descumprimento de normas e procedimentos.

O poder e a competição para acesso ao poder devem ser regulados. Não é

suficiente que governos criem instituições; a sobrevivência e legitimidade do sistema político

depende de que todas as partes interessadas respeitem e salvaguardem a independência e o

profissionalismo das instituições eleitorais (GLOBAL COMISSION ON ELECTIONS,

2012).

As considerações apresentadas no relatório demonstram claramente o

deslocamento e ampliação do foco da discussão: se antes bastava discutir o funcionamento do

sistema político eleitoral em relação à estrutura legal associada, agora discutir os incentivos e

motivações enfrentados pela autoridade reguladora eleitoral e pelas partes interessadas do

processo eleitoral, discutir o objeto da regulação eleitoral e a estrutura da governança eleitoral

tornaram-se questão prementes.

A integridade das eleições é então o objetivo a ser perseguido pela regulação

eleitoral na medida em que esta deve funcionar a serviço da concretização de princípios

democráticos e de direitos humanos. Por todo o exposto é possível defender-se a tese de que o

objeto da nova função regulatória autônoma, em matéria eleitoral, é garantir a integridade das

eleições durante todo o ciclo eleitoral, sendo um de seus aspectos mais relevantes a regulação

do financiamento político, que possui conteúdo econômico evidente.

Definido o objeto da regulação eleitoral, faz-se necessário agora compreender

como regulação e governança eleitoral se relacionam.

4.5 Regulação autônoma: nova dimensão da Governança Eleitoral

A função regulatória autônoma, como visto na primeira parte dessa pesquisa, é

resultado da nova onda regulatória, fenômeno que emergiu da reconfiguração de relações

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entre estado, esfera pública e mercado, no contexto de uma sociedade múltipla, radicalmente

diferenciada, voltado para preencher déficits de legitimidade com a busca de elementos

substanciais de justiça social. Resulta ainda de uma nova forma de correlacionar os poderes

tradicionais do estado, decorrente da descentralização e pulverização de suas fontes e

atividades.

A função regulatória autônoma, exercida por autoridades reguladoras

independentes, para gerenciamento de centros específicos de interesse público, implica no

exercício integrado de poderes híbridos : poder normativo, ao qual corresponde a imposição

de quadro normativo geral e abstrato às atividades reguladas, o poder de assegurar sua

aplicação, como aplicação concreta de regras, através de decisões individuais, caso a caso; e o

poder de reprimir infrações, compondo disputas e conflitos, através da apreciação concreta,

caso a caso. A regulação autônoma busca suprir lacunas que a regulação tradicional não

consegue preencher.

É importante recordar que a regulação autônoma se diferencia da regulação

tradicional em razão de sua fonte, visto que decorre do fenômeno da delegificação; em razão

da incorporação de objetivos finalistas, que exigem atuações estatais positivas, em perfeita

sincronia com os propósitos do Estado Democrático de Direito, circunstância que justificaria

a ampliação dos poderes concedidos às autoridades reguladoras independentes, conforme

apontado por Alexandre Aragão (2013); e em razão da temporalidade e da complexidade das

relações atuais, relações de massa que exigem soluções mais rápidas, com menor litigiosidade

e maior previsibilidade do comportamento do Estado.

A incorporação de objetivos finalistas à regulação contemporânea, como resultado

de constitucionalismo prospectivo voltado para a justiça substantiva, com fundamento na

dignidade da pessoa humana, é uma das principais justificativas para a existência e atribuição

de função regulatória autônoma, destacada dos tradicionais poderes legislativo e executivo.

Tais objetivos finalistas, com maior previsibilidade das respostas estatais e

preservação de igual oportunidade a todos, buscam preencher as lacunas de legitimidade da

democracia representativa em seu estado atual.

No mesmo sentido, o objetivo finalista de alcançar eleições com integridade é a

principal justificativa para a incorporação da função regulatória autônoma como o quarto

elemento integrante da governança eleitoral contemporânea.

A proposta pioneira apresentada por Mozzafar e Shedler (2002), embora seja

inovadora ao dar nome e importância para a governança eleitoral, tornando-a objeto de

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182

estudo, apresenta dificuldade metodológica ao decompor os elementos da governança eleitoral

conforme a tradicional tripartição de poderes napoleônica sem considerar explicitamente o

uso de direito regulador, o correspondente aparecimento da função regulatória autônoma

nascida no final do século XX, e o florescimento de autoridades reguladoras independentes

como consequência da reorganização de princípios do sistema de direitos e como forma de

atender a novas e precárias formas de legitimidade.

O interessante é que os autores distinguem o conjunto normativo que aborda

questões relacionadas aos partidos políticos, fórmulas eleitorais, voto e proporcionalidade, ou

seja, diferencia as normas primárias que tratam do desenho do sistema político do conjunto

normativo que regula a competição eleitoral, identificando exatamente as normas de

governança eleitoral, em sentido estrito, aqui tratadas como normas de regulação eleitoral,

como o conjunto normativo negligenciado.

Embora seja recorrente nos textos sobre governança e integridade eleitoral a

menção à independência das autoridades eleitorais, aos poderes, funções e competências que

estas devem possuir para gerenciar eleições alinhadas com os princípios democráticos

contemporâneos, a referência aos prazos exíguos e à complexidade e tecnicidade do processo

eleitoral, à necessidade de alinhar o exercício de interesses da competição política com a

pauta internacional de direitos humanos, enfim, ao reconhecimento implícito de que o sistema

eleitoral é um micro sistema jurídico especializado, um centro de interesse público específico,

não há o expresso reconhecimento das normas de regulação eleitoral como produto da função

regulatória autônoma atribuída à autoridades eleitorais. (Essa ausência, no contexto

americano, não é tão relevante, visto que o poder executivo daquele país possui estrutura

diferente da estrutura brasileira, mas no Brasil faz toda a diferença).

Eleições caracterizaram eventos complexos ao longo de todo o século XX, fraudes

e irregularidades eleitorais já existiam e nem por isso a governança eleitoral foi objeto de

interesse até o final do período. A diferença é que no contexto anterior do Estado de Direito, a

legitimidade das eleições tinha natureza formal e a lisura e a integridade dos procedimentos

eram aferidas por padrões de legalidade estrita e de eficiência sem conteúdo finalístico.

Questionamentos sobre fraudes e irregularidades eleitorais ganharam nova

dimensão somente em face do Estado Democrático de Direito, do estado gerencial, da

globalização, das relações de massa e da nova onda regulatória, circunstâncias que alteraram o

parâmetro de integridade para aferição de eleições passando a abranger aspectos substanciais

de justiça social e aspectos finalísticos para a competição política.

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183

Uma análise satisfatória da governança eleitoral contemporânea deve abranger a

nova dimensão regulatória autônoma sob pena de não ser possível compreender a proliferação

de órgãos eleitorais independentes nos diversos países, principalmente nas democracias que se

consolidaram com a terceira onda democrática e em meio à nova onda regulatória. Mas mais

do que isso: sob pena de não ser devidamente legitimada a nova função regulatória e ficar esta

atrelada somente a padrões de eficiência e de legalidade, sem a correspondente legitimação de

seus discursos e viabilidade de controle social.

A identificação de eleições como potencial fator de indução do equilíbrio ou de

desequilíbrio social concedeu ao voto novo status: este passou a ser elemento de agregação

social diferenciado. Voto e dinheiro são fortes e sensíveis elementos de agregação social no

mundo contemporâneo e por isso devem ser regulados. Política monetária e política eleitoral

são temas que atualmente integram as pautas econômica e política mundiais pois apresentam

enormes potenciais de equilíbrio para as diversas democracias representativas ou enormes

potenciais de destruição. E esse impacto, em um mundo globalizado, ultrapassa as fronteiras

dos estados nacionais. Crises financeiras e corrupção política, atualmente, são problemas de

natureza global que alcançam a relação dinheiro/política das diversas democracias

contemporâneas. Por estas razões é que o debate sobre a independência e o papel dos bancos

centrais apresenta enorme apelo e pelas mesmas razões o debate sobre a independência e o

papel das autoridades eleitorais também começam a apresentar.

O impacto do dinheiro no financiamento político e os múltiplos escândalos

relacionados à corrupção envolvendo eleições e partidos em diversos países vem

demonstrando que dinheiro e voto são elementos cada vez mais próximos e mais

significativos para a estabilidade social.

Nesse contexto, a distribuição de funções/poderes entre órgãos eleitorais é fator

determinante para a governança eleitoral, sendo inclusive capaz de alterar a natureza jurídica

dos órgãos eleitorais (este ponto será tratado no próximo capítulo) e a natureza das relações

estabelecidas no sistema político eleitoral. Por estas razões, a decomposição de seus

elementos deve contemplar todas as dimensões de fato existentes e, em especial, a nova

dimensão regulatória autônoma. Caso contrário, a análise da governança eleitoral

contemporânea permanecerá refém da perspectiva tradicional e centralizada de partição de

poderes e o correspondente diagnóstico será limitado e incapaz de apontar as reais e novas

lacunas de legitimidade decorrentes da regulação eleitoral tradicional e os controles que

deveriam ser associados com a nova regulação.

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O nível Elaboração de Normas seria então decomposto em dois: Normas da

Competição Eleitoral e Normas de Regulação Eleitoral. Mozzafar e Shedler (2011)

decompõem o nível elaboração de normas em normas da competição eleitoral e normas de

governança eleitoral. Como registrado anteriormente, haveria uma governança eleitoral em

sentido amplo, que abrange o conjunto das dimensões da governança eleitoral, e normas de

governança eleitoral em sentido estrito. Em nome da clareza e em razão do conteúdo que se

pretende atribuir às normas de governança eleitoral em sentido estrito nessa pesquisa, adotou-

se a expressão normas de regulação eleitoral para referência à normas produzidas por órgãos

eleitorais. A proposta desta pesquisa é que se adote a fonte normativa e o uso de direito

regulador como pontos centrais de avaliação e diferenciação entre ambas.

As normas da competição eleitoral seriam aquelas normas genéricas e abstratas

que determinam a moldura da competição eleitoral, aprovadas mediante o devido processo

legislativo. As normas de regulação eleitoral abrangeriam as normas produzidas por órgãos

eleitorais no exercício de sua competência normativa, enquanto manifestação de função

regulatória, com a finalidade de alinhar os procedimentos eleitorais com as diretrizes da

integridade eleitoral.

A função regulatória autônoma está relacionada com o tipo de poder normativo

concedido aos órgãos eleitorais, com uso ou não de direito regulador. A competência

normativa concedida pode ser limitada e associada aos tradicionais poderes administrativos

do estado, nesse caso, abrangerá a função regulatória tradicional, devendo respeitar seus

limites e sem espaço para inovar a ordem legal.

No entanto, a função regulatória atribuída ao órgão eleitoral poderá decorrer de

uso de direito regulador pelo parlamento com a correspondente atribuição de função

regulatória autônoma para órgãos eleitorais. Nessa segunda hipótese será mais ampla e poderá

inovar a ordem jurídica, mas necessitará de procedimentos de legitimação mais exigentes que

garantam a participação influente de todos os interessados, ou seja, exigirá a legitimação dos

discursos correspondentes em arenas específicas destinadas a esse fim, como por exemplo a

realização de audiências públicas com procedimentos próprios à legitimação do direito assim

produzido.

A arquitetura institucional do sistema eleitoral e a correspondente atribuição de

competências é que determinará a extensão e a natureza da atividade regulatória atribuída. É

importante, entretanto, frisar que, uma governança eleitoral prospectiva e alinhada com

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princípios democráticos, em razão das características do processo eleitoral e de suas

exigências de legitimidade, dificilmente poderá ser bem-sucedida se estiver somente

amparada em uma estrutura de poder tradicional.

A complexidade e especialização das eleições, o timing das decisões envolvidas e

a incapacidade de regular eleições somente mediante procedimentos voltados para corrigir o

passado impossibilitam a adoção somente dos tempos, meios e medidas das estruturas

tradicionais de poder. O ciclo eleitoral possui tempos e objetos muito particulares que

demandam novos procedimentos, novas formas de legitimação e atuação prospectiva e

prudencial.

Há ainda um aspecto de extrema relevância a ser considerado. Por ser a

competição política por cargos eletivos caracterizada por ações tipicamente estratégicas, esta

impacta diretamente as decisões legislativas em matéria eleitoral e as ações dos representantes

eleitos que ocupam o poder executivo. Não é por acaso que a influência dos ciclos eleitorais

na política e na economia são amplamente discutidos e reconhecidos na literatura política e

econômica. Assim, outra justificativa para o exercício de função regulatória autônoma por

órgãos eleitorais refere-se à necessidade de se instituir freios e contrapesos para a atuação dos

partidos políticos.

O interesse pela manutenção de poder político por partidos e representantes

eleitos pode criar claros déficits de legitimidade tanto para a legislação política e eleitoral

aprovada como para políticas públicas previstas e implementadas. E essa ação estratégica

precisa ser compensada pela ação de outra instituição ou de intuições que atuem conforme a

lógica colaborativa, para produzir uma razão que seja procedimentalizada, e, portanto,

legitima. Os órgãos eleitorais, através de ações pautadas pela legitimidade da imparcialidade e

da reflexividade, são as instituições legitimadas para suprir tais lacunas através do uso de

função regulatória autônoma em matéria eleitoral.

A Declaração de Direitos Civis e Políticos determina claramente como princípio

democrático fundamental a separação entre partidos políticos e estado. Essa independência é

da essência da democracia. No entanto, os partidos políticos são instituições independentes

que exercem ações relacionadas com interesse público extremamente relevante e indisponível:

direitos fundamentais políticos, pilares da democracia representativa e do sistema de direitos.

E essa razão por si só já legitimaria a necessária regulação estatal. Mas além disso, os partidos

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políticos no exercício de suas atribuições, devem funcionar alinhados com princípios

democráticos e orientados à concretização de direitos humanos.

A legislação eleitoral, como qualquer norma comum na tradição de direito

positivado, é elaborada pelo parlamento, pelos representantes políticos investidos em

representação popular, mas, em matéria eleitoral, estes representantes, que alcançam o poder

pelo sucesso nas eleições, possuem interesses específicos de cunho estratégico no conteúdo a

ser legislado.

O parlamento, em regra, atua como uma instituição de consenso, como arena

política para construção de ações cooperativas em face das divergências e desacordos que

representa. Mas a disputa eleitoral é marcada pela atuação de instituições de conflito por

excelência, os partidos políticos, que possuem interesses estratégicos muito específicos de

permanência ou de acesso aos centros de exercício de poder político. Os partidos políticos

atuam de forma independente através de bancadas no parlamento que lutam constantemente

para manter níveis elevados de influência.

A independência dos partidos político em relação ao Estado não descaracteriza o

caráter claramente público do interesse tutelado: a escolha de representantes da sociedade

para concorrer a cargos eletivos e atuar como agentes políticos a serviço da democracia.

A natureza independente dos partidos políticos não pode servir de argumento para

seu livre arbítrio. As regras partidárias precisam garantir igual acesso procedimental e

substancial dos cidadãos aos espaços políticos. Sem dúvida haverá um espaço de

discricionariedade atribuído aos partidos políticos para que elaborem e formulem os diversos

interesses sociais em disputa na sociedade, e, por consequência, matérias de cunho interno

que serão da livre escolha de cada um. Mas a garantia de igual acesso a todos deve estar

alinhada com as diretrizes da integridade eleitoral que precisarão ser respeitadas por todos os

partidos.

Nesse sentido, é possível afirmar que, em matéria eleitoral, há a inversão de

papéis entre o poder legislativo e os órgãos eleitorais responsáveis por regular o processo

eleitoral. Nesta específica hipótese, de produção normativa eleitoral, o poder legislativo

assume uma posição contra majoritária visto que tende a legislar em interesse próprio, pela

ampliação de poderes e vantagens de partidos e candidatos vitoriosos. Nesta hipótese, o

parlamento tende a abandonar sua função de proteção do espaço vazio reservado à razão

pública, à deliberação legítima de natureza cooperativa, de nivelar o campo de batalha político

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para garantir a igualdade de oportunidade e acesso à arena de disputas políticas legítimas. Por

outro lado, os órgãos eleitorais ocupam a posição majoritária de defesa dos pilares da

democracia representativa e de justiça substancial, e ainda mais relevante, garantem as

condições de legitimidade para a disputa política eleitoral.

Especificamente em matéria eleitoral, a atuação do órgão eleitoral e a atuação do

parlamento funcionam com polos invertidos: o parlamento atua de forma contra majoritária na

medida em que tende a elaborar normas políticas eleitorais orientadas por interesses

estratégicos de manutenção do poder, enquanto o órgão eleitoral, ao defender as condições

para o exercício democrático representativo, atua de forma majoritária para resguardar os

interesses da maioria, os interesses da cidadania e manter abertas reais oportunidades de

acesso a todos.

Essa hipótese-premissa somente se justifica em razão do objeto da governança

eleitoral ser a proteção da integridade das eleições, durante todo o ciclo eleitoral, e, portanto,

parte significativa das condições para funcionamento do sistema democrático representativo.

A autoridade eleitoral atua como um dos mecanismos de freio e contrapeso às ações

estratégicas particulares em matéria eleitoral dos integrantes do parlamento, em nome de uma

razão pública.

Quando o parlamento elabora normas atinentes à competição política ele o faz

enquanto instituição de conflito, por esta razão é tão difícil realizar acordos em relação a

reformas políticas. E o órgão eleitoral deveria funcionar, nesta específica hipótese, como

instituição de consenso, como rede de segurança.

Se os partidos políticos controlam o acesso do cidadão à competição eleitoral,

quem regula e condiciona as ações dos partidos políticos? Na hipótese investigada, o órgão

eleitoral é que deve deter a competência para regular e alinhar a atuação partidária com os

princípios constitucionais e, portanto, democráticos.

Não se está a propor que o parlamento abra mão de determinar a moldura jurídica

e os princípios que devem reger a competição eleitoral determinados através de uma

legislação geral e abstrata que fixem as diretrizes e estrutura do sistema político eleitoral.

Mas sim que se reconheça que a previsão e uso de direito regulador em matéria eleitoral tem

por finalidade resguardar os pilares da democracia de maiorias circunstanciais interessadas no

acesso e permanência do poder.

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Nesse sentido, a legislação eleitoral deve criar os meios efetivos para que as

normas de governança eleitoral tenham a amplitude e os instrumentos necessários para regular

efetivamente questões da competição eleitoral, para protegê-la de interesses estratégicos de

maiorias contingentes diretamente afetados pelos resultados da competição política.

Garantir o alinhamento de ações de partidos políticos e candidatos com padrões

internacionais de integridade eleitoral é tarefa de governança eleitoral, mais especificamente é

tarefa de regulação autônoma, regulação com finalidade específica e com ações positivas. A

proliferação de órgãos eleitorais autônomos bem-sucedidos é a evidência mais contundente

desses fatos e das transformações de legitimidade associadas ao sistema político eleitoral na

virada do século XX.

A Regulação através de Normas, dimensão regulatória da governança eleitoral,

abrange, portanto, o exercício de função regulatória autônoma destinada a “densificar” o

conteúdo dos direitos eleitorais, para tornar concretos procedimentos orientados para a

integridade eleitoral. Abrange ainda as duas dimensões da nova regulação autônoma,

conforme descrito no terceiro capítulo: a aplicação dos mecanismos de enforcement previstos

e a avaliação da eficiência da regulação em face do parâmetro integridade eleitoral.

A estrutura da governança eleitoral será determinada pela combinação das

competências descritas nos três níveis da governança eleitoral. O nível da Regulação através

de Normas e sua abrangência estão diretamente ligados à distribuição de competência entre os

órgãos eleitorais e à amplitude dos poderes concedidos. A combinação dos três níveis da

governança eleitoral, conforme a distribuição de competências e poderes entre órgãos

eleitorais, resulta em formas diferenciadas de regulação do processo eleitoral e em graus de

autonomia também distintos, podendo alcançar o quarto nível da governança eleitoral.

A dimensão da Regulação através de Normas existirá sempre que houver uso de

direito regulador pelo parlamento em matéria eleitoral e atribuição de função regulatória

autônoma para o órgão eleitoral. Essa atribuição possui ligação direta com o tipo de órgão

eleitoral que a exerce pois somente órgãos que atendem aos requisitos de uma autoridade

reguladora autônoma ou independente poderão exercer de fato tal função.

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4.6 Dimensões temporais da Governança Eleitoral - Ciclos Eleitorais

A governança eleitoral pode ser decomposta para fins de análise em quatro níveis

conforme apresentado no item anterior. Esta avaliação permite identificar como os princípios

do estado de direito são instituídos e de que forma são dispostas e apropriadas as

correspondentes formas de discurso. Essa abordagem permite uma apreciação de legitimidade

do processo eleitoral sob o ponto de vista da democracia deliberativa.

Outra forma relevante de apreciação da governança eleitoral refere-se ao ponto de

vista associado com a pluralidade de sujeitos e com a pluralidade de temporalidades da

democracia complexa.

Nesse sentido, vale registrar de início que, normalmente, cada eleição tende a ser

analisada como um evento isolado e independente, parte do processo político. No entanto,

avaliar cada eleição como evento isolado retira o conjunto de disputas eleitorais da

perspectiva da democracia como um processo.

Observar as eleições a partir do ponto de vista de ciclos eleitorais que se sucedem

no processo democrático de médio ou longo prazo, enquadrando-os como partes dinâmicas e

significativas do processo político, colabora para redimensionar seu peso e valor para a

prática representativa assim como permite identificar as relações que as sustentam e a

manifestação de seus múltiplos sujeitos.

Mozzafar e Schedler (2002) ressaltam a importância das eleições sobre a dinâmica

de democratização, ao apontar que, curiosamente, mesmo em ambientes de eleições

manipuladas e ambíguas a existência do processo eleitoral por si pode colaborar para o

exercício democrático, na medida em que os profundos questionamentos sobre as etapas do

processo eleitoral podem funcionar como gatilho para uma espiral retroalimentada de

democratização através das eleições. Pippa Norris (2014), demonstra que a qualidade das

eleições tem potencial tanto para influenciar a estabilidade social como para levar a crises do

regime político representativo. E Pierre Rosanvallon (2011) explica que a soberania popular

contemporânea se manifesta de forma complexa através de múltiplos sujeitos - do povo

eleitoral, do povo social e do povo como princípio - e de múltiplas temporalidades.

Por estas razões, a realização de eleições íntegras não pode ser considerada como

mero acaso ou como mera etapa operacional pontual pois a escolha de representantes eleitos

configura-se como uma das atividades núcleo da democracia representativa em permanente

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mutação e adaptação. O processo político e o exercício dos poderes políticos do estado além

da legitimidade das urnas precisam ainda de mecanismos mais sofisticados, diferenciados,

permanentes e cíclicos para legitimação das suas atividades e essas exigências servem

também para a governança eleitoral, e, por consequência, para o exercício das atividades de

regulação do processo eleitoral.

Quando se fala em eleições, pelo menos dois níveis de legitimidade precisam ser

identificados. O primeiro nível refere-se à legitimidade na escolha de representantes eleitos, à

garantia da certeza procedimental como garantia da incerteza substancial, à legitimidade das

urnas propriamente dita, refere-se à integridade dos resultados eleitorais.

O segundo nível refere-se à legitimidade do devido processo eleitoral, não

enquanto responsável por entregar resultados livres de fraudes, mas como procedimento capaz

de agregar esforços comunicativos para produção de conteúdos e significados comuns

relacionados aos direitos eleitorais, como mecanismo eficiente para ordenação de interesses e

para escolha de políticas públicas, na medida em que escolhe representantes eleitos aceitos

por todos – que realizam acordos e mantém desacordos em níveis toleráveis.

Nessa segunda perspectiva, o conjunto de processos eleitorais passa a assumir um

novo conteúdo, passa a ser lugar de processos deliberativos e de formação e exercício de

vontades. Passa a ser lócus de manifestação das novas formas de legitimidade conforme

identificado por Pierre Rosanvallon: imparcialidade, reflexividade e inclusão do outro.

Enfim, passa a ser espaço potencial para participação influente de todas as partes interessadas,

em todas as suas etapas.

O estudo das eleições como processo cíclico e dinâmico de aprofundamento de

convivência democrática, como parte significativa do processo político, exige reflexões a esse

respeito. O primeiro desafio é compreender cada eleição como um bem definido ciclo

eleitoral. Os ciclos eleitorais deveriam ser sucessivos e independentes entre si no tempo, mas

como é possível que um ciclo eleitoral se inicie antes do anterior haver terminado, deve ficar

registrado que a ocorrência de superposição de ciclos precisa ser considerada. Esse ponto não

pode ser negligenciado visto que a autoridade gestora das eleições estará diante do desafio de

coordenar esforços direcionados para múltiplas etapas de ciclos eleitorais distintos.

O próximo ponto a ser apreciado é a contextualização dos ciclos eleitorais em

relação aos mandatos eletivos e às políticas partidárias, o médio prazo. Eventos que em uma

primeira análise parecem independentes, misturam-se quando se verifica que a atividade

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partidária e de candidatos, principalmente atividades financeiras e atividades políticas, estão

sujeitas à regulação e fiscalização da autoridade eleitoral.

Na produção acadêmica das ciências sociais não é incomum a apreciação dos

ciclos eleitorais sob o enfoque dos impactos políticos e econômicos, reciprocamente

considerados. Aqui, a perspectiva é outra, mais específica. Propõe-se a delimitação de tais

ciclos como horizonte de tempo no qual deveria ser investigado se há alguma correlação entre

os ciclos eleitorais de médio prazo e a governança eleitoral, em outras palavras, se e como a

ação regulatória da justiça eleitoral e a atuação dos poderes representativos impactam ou

seriam capazes de impactar de alguma forma o comportamento de partidos políticos, de

potenciais candidatos a cargos políticos, da própria autoridade reguladora e demais

interessados, e principalmente analisar os incentivos e falhas associados a atuação de

autoridades reguladoras eleitorais e demais partes interessadas nesse processo.

Por fim, há um ciclo mais extenso da dinâmica política eleitoral que pode ser

compreendido como de longo prazo, no qual a interação entre as partes interessadas do

processo eleitoral pode ser apreendida sob uma perspectiva mais ampla. Sob esta ótica torna-

se possível compreender a dinâmica interinstitucional em matéria de regulação política

eleitoral, analisar a criação e implementação de políticas públicas, diagnosticar o

comportamento da autoridade eleitoral e como este influencia o processo democrático no

longo prazo, analisar a governança eleitoral para identificar fraquezas a fim de corrigi-las e

virtudes com o objetivo de resguardá-las.

Enfim, a compreensão dos ciclos eleitorais de curto, médio e longo prazo -

segmentação metodológica para fins de análise - oferece a possibilidade de se apreciar sob a

perspectiva das eleições a dinâmica do processo democrático.

O contexto para este tipo de análise pode se modificar bastante conforme a

estrutura de governança e o tamanho das legislaturas previstas para cada país. Por isso, esta

etapa será realizada levando-se em conta a legislação eleitoral, o tamanho dos mandatos

eleitorais e o horizonte constitucional no Brasil, pós Constituição de 1988.

Os ciclos eleitorais de curto prazo referem-se ao conjunto de atividades e etapas

previstas para cada processo eleitoral, para cada eleição.

Page 192: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

192

O ciclo eleitoral de curto prazo é composto pela sequência de etapas sucessivas

conforme indicado na figura a seguir (NORRIS, 2015, p. 12):57

Figura 2: Ciclo eleitoralFonte: Pippa Norris, 2015

Conforme visto ao longo deste capítulo, o conceito de ciclo eleitoral abrange

todas as fases do processo eleitoral e não apenas o período compreendido entre o registro de

candidatos e a votação. A integridade das eleições está associada com cada uma dessas fases.

Essa noção colabora para resolver questões envolvendo a competência e extensão

de poderes da autoridade reguladora no tempo, como por exemplo questionamentos

relacionados ao período para exercício de poder de polícia legitimo. Sob esta perspectiva, a

autoridade reguladora possuiria poder de polícia durante todas as fases, assim como suas

demais competências e poderes também alcançariam todo o ciclo eleitoral.

As etapas acima indicadas abarcam as principais fases do ciclo eleitoral que

podem ser desdobradas em muitas outras atividades, como por exemplo: a previsão de

orçamento e financiamento para as eleições; a publicação da legislação eleitoral que irá

57 No mesmo sentido ver: Electoral Cycle (ACE PROJETC); The Electoral Cycle (IDEA, 2010, pag. 16).

Page 193: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

193

regular a competição; a expedição das normas que irão regular a competição eleitoral;

publicação do calendário eleitoral; o planejamento do processo eleitoral e de sua logística

operacional e de infraestrutura; o alistamento de eleitores; o registro de partidos políticos; a

capacitação e treinamento de todos os envolvidos; as campanhas públicas educativas, a

aquisição de bens e serviços; a regulação e supervisão das ações de partidos políticos e pré-

candidatos; a definição da lista de eleitores que cumprem as condições para votar nas

eleições; o registro de candidatos; a definição dos candidatos, partidos e coligações que irão

disputar as eleições; a propaganda eleitoral; o acompanhamento e supervisão da propaganda

eleitoral; o registro, acompanhamento e supervisão de pesquisas eleitorais; o

acompanhamento e a supervisão do financiamento de campanhas; a preparação e entrega da

logística e da infraestrutura para a realização da votação e apuração dos votos; a resolução das

disputas que emergirem durante essa fase do processo eleitoral; a prestação de contas de

campanha e sua apreciação; a proclamação e a diplomação dos eleitos. Note-se que toda a

atividade partidária relacionada à escolha dos candidatos que irão concorrer ao próximo pleito

está abrangida pelo ciclo eleitoral.

A última fase, relacionada aos órgãos eleitorais, abrange a avaliação de

planejamentos, estratégias, reformas, revisões e avaliações em relação à legislação eleitoral, à

atuação da autoridade gestora e das partes interessadas no processo eleitoral a fim de que

ações voltadas para aperfeiçoamento de procedimentos e processos sejam realizadas.

Cada ciclo eleitoral deveria, em tese, estar completo antes do início do ciclo

seguinte de forma que a legitimação dos resultados eleitorais fosse definitiva antes da

diplomação dos eleitos. No entanto, em razão da complexidade dos procedimentos

regulatórios, de limitações financeiras e de tempo, os ciclos eleitorais tendem a funcionar de

forma sobreposta, podendo, no tempo, haver condução simultânea de etapas de ciclos

eleitorais de curto prazo diferentes, e ainda a mistura de procedimentos de eleições com

consultas populares, referendos ou plebiscitos, ou eleições suplementares.

Os ciclos eleitorais de médio prazo podem ser avaliados sob a perspectiva dos

mandatos eleitorais. No Brasil, as eleições ocorrem a cada dois anos, sendo realizadas as

eleições gerais para cargos eletivos estaduais e federais a cada quatro anos e as eleições

municipais, também a cada quatro anos, de forma que há ciclos eleitorais de curto prazo no

Brasil a cada dois anos e de médio prazo a cada quatro anos.

Page 194: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

194

A sobreposição natural dos ciclos de médio prazo com ciclos de curto prazo já

ocorre, no Brasil, em razão da legislação eleitoral, que prevê eleições gerais e municipais

intercaladas a cada dois anos. Imagine-se agora a sobreposição de ciclos eleitorais de curto

prazo, seja por não terem sido concluídos no prazo previsto ou pela existência de ciclos

eleitorais de curto prazo extraordinários, como eleições suplementares e consultas populares.

Esta situação faz com que os diversos ciclos, tanto de curto quanto de médio prazo, sejam

sobrepostos impactando diretamente as atividades e prazos da governança eleitoral, que

precisará trabalhar em níveis diferenciados de ação simultaneamente.

Sobre os ciclos eleitorais de médio prazo, seriam pertinentes estudos para

estabelecer as relações de causa e consequência entre o tipo de eleição, se geral ou municipal,

e as normas produzidas; os impactos de cada tipo de eleição para a governança de médio

prazo; a participação e influência das partes interessadas na legislação eleitoral; verificar se há

vínculos estabelecidos entre as partes interessadas que possam interferir na composição das

autoridades eleitorais; analisar se há diferença substancial no padrão de governança

democrática no médio prazo e suas causas; verificar quais são os atores com participação

influente e que mecanismos de participação funcionam e quais são insuficientes.

Há uma ampla agenda de pesquisa sobre ciclos eleitorais no médio prazo que ao

ser estabelecida pode trazer informações relevantes para aperfeiçoamento da governança

eleitoral.

Os ciclos eleitorais de longo prazo são formados a partir das relações que se

consolidam ao longo do tempo como resultado das práticas adotadas pela governança

eleitoral, em um horizonte constitucional. Em geral, a análise de políticas públicas de longo

alcance e de grande impacto são pensadas levando-se em conta esta dimensão. É possível

realizar um corte metodológico para se avaliar os ciclos de longo prazo considerando-se o

passado e o futuro.

Para análise do passado, é factível o estudo de cada ciclo constitucional. Para

avaliação de perspectivas do futuro não há como ser previsto o horizonte de funcionamento da

constituição em vigor, assim, sugere-se que um bom parâmetro para se analisar ciclos de

longo prazo, voltados para o futuro, é a adoção do parâmetro de tempo proposto pelo Ace

Project (ACE PROJECT) que indica que a arquitetura e funcionamento da governança

eleitoral deve ser avaliada pensando-se nos próximos dez anos, ao invés de apenas reagir a

cada evento eleitoral. Outra possibilidade seria realizar cortes metodológicos para os ciclos

Page 195: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

195

de longo prazo, considerando-se os diversos períodos de governo dos partidos vencedores nas

eleições presidenciais, estaduais ou municipais, a depender do enfoque que se pretenda

priorizar. Assim, os ciclos de longo prazo poderiam ser considerados sob pelo menos três

perspectivas distintas: a perspectiva do horizonte constitucional, a perspectiva do horizonte de

tempo em que cada partido ou coligação vencedora permaneceu ocupando o poder e ainda a

perspectiva de se pensar e observar tais ciclos a cada dez anos.

Independente da perspectiva adotada, é importante ressaltar que rotinas para

supervisão do cadastro de eleitores, solução de disputas que emergem fora do período

eleitoral, acompanhamento e supervisão das atividades políticas e financeiras de partidos

políticos, aperfeiçoamento do sistema de votação e dos diversos aspectos da governança

eleitoral, definição de políticas públicas para regulação do processo eleitoral como um todo, e

não apenas como um evento isoladamente considerado, são atividades constantes dos órgãos

gestores das eleições que funcionam de forma permanente e portanto precisam também ser

articuladas levando-se em conta horizonte temporal mais longo do que os ciclos de curto e

médio prazo.

Trata-se de abordar a governança eleitoral sob a perspectiva de aprofundamento

do processo democrático e da manutenção e garantia das condições que permitam a existência

de competição eleitoral íntegra, ou seja, que garantam a certeza dos procedimentos para

garantir a incerteza dos resultados.

O funcionamento do sistema eleitoral é complexo e somente pode ser

compreendido adequadamente em suas múltiplas perspectivas de tempo, de sujeitos e das

instituições envolvidas. Todos estes componentes formam uma ampla rede de relações que se

desenvolve no tempo e apresentam marcos significativamente interligados.

Eleições significam na verdade uma das pontas do iceberg chamado democracia.

As grandes mobilizações que se realizam para um dia de votação a cada eleição - esta é

sempre a aparência -, a um observador desavisado, pode parecer uma sequência de momentos

isolados que no tempo renovam a representação política. No entanto, a ideia de ciclos

eleitorais demonstra que esse é um longo e permanente processo político construído de etapas

que se sucedem para marcar no tempo os acordos sociais, políticos e econômicos de uma

determinada sociedade, através dos quais uma ampla miríade de interesses é escalonada e

divergências são acomodadas por canal político pacífico.

Page 196: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

196

As fases dos ciclos eleitorais compõem-se de uma vasta e complexa lista de

atividades que precisam ser adequadamente identificadas, encadeadas e monitoradas a fim de

se garantir a integridade do processo eleitoral. A lisura e a realização adequada de uma fase

são pré-requisitos para o sucesso e legitimidade da fase seguinte, o que demonstra que a

questão da legitimidade do processo eleitoral necessita ser permanentemente construída a

cada ciclo que se inicia, em suas três dimensões temporais. Esse é o desafio que aqui se

registra como relevante: compreender como a atuação da autoridade eleitoral, enquanto

agente regulador do processo eleitoral, pode contribuir para a legitimidade da representação

política, em sua gênese, ou seja, na escolha legitima de seus representantes.

Os desafios técnicos, políticos e jurídicos existentes em cada ciclo eleitoral

demonstram sua complexidade e colaboram para vencer a avaliação ingênua de que eleições

são apenas uma questão de logística para levar eleitores a escolher candidatos no dia das

eleições.

Os mandatos eleitorais, a legislação eleitoral, as partes interessadas do processo

eleitoral, a influência do dinheiro na política, os interesses econômicos e políticos divergentes

são componentes que impactam diretamente os ciclos eleitorais e a atuação institucional do

agente regulador desse processo. Ao lado dos mecanismos de legitimação de suas ações,

aparecem como pontos chave para manter o equilíbrio dessas relações oferecer credibilidade e

confiança no processo eleitoral, assim como garantir a estabilidade das relações políticas e de

sua renovação.

Autoridades eleitorais funcionam como salvaguardas do processo eleitoral, dos

princípios constitucionais e dos direitos eleitorais fundamentais e apresentam função essencial

para a democracia que somente são efetivamente percebidas em momentos de crise. Ter

instituições que consigam resolver disputas e conciliar interesses políticos através de eleições,

respeitando as regras do jogo previamente definidas, com aceite dos resultados pelos

participantes vencidos é um dos maiores desafios democráticos contemporâneos.

As autoridades eleitorais atuam como instâncias indutoras da estabilização do

processo político e como fonte de garantia e de legitimação dos direitos políticos eleitorais.

Os consensos intersubjetivos legítimos que vão se estabelecendo através das decisões dos

órgãos eleitorais e através da regulação eleitoral sedimentam e enraízam na sociedade a

construção do conceito de cidadania e de legitimidade democrática, colaborando para a

consolidação da democracia.

Page 197: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

197

Os desafios para autoridades eleitorais não são pequenos: instituir mecanismos e

procedimentos claros, fazer rodar os ciclos eleitorais de forma legitima e chegar a resultados

aceitos por todos. Tais desafios são imensos e requerem comprometimento e aperfeiçoamento

constante, maturidade institucional e boa governança.

Page 198: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

CAPÍTULO 5

INSTITUIÇÕES DE REGULAÇÃO ELEITORAL

No início do século XX, as competências em matéria eleitoral eram inseridas na

estrutura de poder conforme as funções típicas de estado associadas a órgãos já estabelecidos

que acumulavam as funções de organizar eleições. As transformações verificadas ao longo do

mesmo século, derivadas da reorganização de forças dentro do Estado, trouxeram radicais

mudanças na arquitetura institucional do sistema eleitoral, sendo a mais evidente a separação

dos órgãos eleitorais das estruturas tradicionais de poder com as correspondentes atribuições

de autonomia e independência.

A transformação da arquitetura institucional de sistemas eleitorais ocorreu em

todo o mundo e, após a terceira onda democrática, nos últimos anos do século XX, apresentou

amplo impacto para diversos países da América Latina, do Leste Europeu e na África do Sul.

Esse fenômeno que despertou a atenção de estudiosos e de organismos

internacionais teve como um de seus resultados a definição de alguns critérios mínimos para

comparação e avaliação das autoridades eleitorais nos diversos países. Rafael López-Pintor

publicou em 2000 a obra “Electoral Management Bodies as Intitutions of Governance”, e a

International IDEA – Institute for Democracy and Electoral Assistance (2010, 2014) publicou

em 2007 dois manuais: “Electoral Management Design: The International IDEA Handbook”,

revisto e atualizado em 2014, e “Electoral Justice: The International IDEA Handbook”,

revisto em 2010.

Esta análise é crítica na medida em que o modelo de governança eleitoral adotado

por um país é determinante para o funcionamento do sistema eleitoral. E o modelo de

governança eleitoral é diretamente impactado pela distribuição de competências entre os

órgãos eleitorais.

As diferentes formas de distribuição de competências em matéria eleitoral criam

sistemas de gestão eleitoral distintos, e, portanto, instituições eleitorais com naturezas

jurídicas muito diferentes. E tais diferenças apresentam consequências significativas na

medida em que diferentes formas de distribuição de funções requerem também formas

alternativas de legitimação dos respectivos discursos, sob pena de enfraquecimento e

deslegitimação do sistema de direitos.

Page 199: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

199

A International IDEA – Institute for Democracy and Electoral Assistance é uma

organização internacional que busca consolidar princípios e orientações sobre o núcleo

mínimo e essencial que deve compor uma arquitetura para organização legitima do processo

eleitoral.

Pela expertise desta organização, que estuda o processo eleitoral no mundo, em

conjunto com diversos pesquisadores e com outras organizações, entendeu-se que o

conhecimento por ela sistematizado constitui-se como um sólido ponto de partida para

referenciar a análise que ora se pretende desenvolver.

O manual Electoral Justice publicado pela International, apresenta os

componentes essenciais de um Sistema de Justiça Eleitoral institucionalizado: legislação

eleitoral, sistema eleitoral, sistema partidário e cultura política (IDEA, 2010, pag. 4). Já o

manual Financiamento de partidos políticos e campanhas eleitorais também da International

IDEA - traduzido em 2015 para o português através do esforço conjunto realizado pelo

Tribunal Superior Eleitoral e pela Fundação Getúlio Vargas - registra que os objetivos e a

cultura política de um determinado país influenciam as metas políticas estabelecidas e por

consequência a forma como as normas eleitorais são aprovadas e como eleições são

conduzidas.

Assim, tendo por parâmetro tais elementos e para fins de análise e

contextualização da exposição, algumas premissas serão adotadas.

A primeira premissa adotada é a de que um Sistema Eleitoral institucionalizado

tem seu núcleo composto pelos seguintes elementos (IDEA, 2010, p.4):

- Legislação Eleitoral - Constituição e normas eleitorais e partidária: arcabouço

jurídico que define princípios e diretrizes do Estado, sistema de governo, forma de governo,

garantias e direitos políticos de participação individuais e coletivos, sistema partidário,

sistema eleitoral, mandatos e atribuições de competência política, enfim, as fronteiras e

normas gerais do jogo político e do processo eleitoral;

- Arquitetura Institucional Eleitoral: indicação das principais instituições

responsáveis pela condução do processo eleitoral e as competências a estas atribuídas;

- Sistema Partidário: estrutura de partidos políticos e suas normas internas;

- Sociedade civil e cidadãos: indicação dos principais sujeitos da democracia;

- Outras partes interessadas no processo eleitoral: todos os envolvidos com

responsabilidades e direitos relacionados ao processo eleitoral e ainda a rede de observadores

Page 200: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

209

internos e externos do processo eleitoral que colaboram para o alinhamento das práticas

eleitorais à legislação;

- Cultura política: contexto no qual se insere o processo eleitoral, os objetivos e

metas do sistema político.

O foco desse capítulo é discutir teoricamente as possibilidades de configuração da

arquitetura institucional eleitoral e sua associação com as dimensões da governança

eleitoral, para identificar em que hipóteses a distribuição de competências entre os órgãos ou

instituições que a compõe pode resultar na criação de uma autoridade reguladora eleitoral e na

adição da dimensão regulatória autônoma à governança eleitoral.

Esse ponto é central para a pesquisa pois permitirá o desenvolvimento de critérios

objetivos para responder se a Justiça Eleitoral brasileira é, de fato, um órgão regulador híbrido

ou se sua atuação deve restringir-se apenas às suas funções judiciais tradicionais e se isso

convém, em um Estado Democrático, ou sé é sinal de uma distorção que compromete o

equilíbrio perseguido com a separação das funções-poder do Estado Constitucional.

A segunda premissa adotada assume que a arquitetura institucional eleitoral de um

determinado país, o desenho institucional das autoridades responsáveis pela condução do

processo eleitoral, é determinado pela distribuição de competências associadas às quatro

dimensões da governança eleitoral: elaboração de normas, aplicação de normas, adjudicação

de normas e regulação através de normas.

A organização de eleições pressupõe o desenvolvimento de uma série de

atividades especializadas e complexas que por esta razão normalmente são atribuídas a uma

instituição ou instituições que ficam responsáveis por sua execução.

Assim, para melhor compreensão dessas instituições, será apresentada uma síntese

dos principais pontos relevantes para esta pesquisa, que foram retirados do manual intitulado

“Electoral Management Design: The International IDEA Handbook” (IDEA, 2014) - este

manual trata do órgão responsável pela organização das eleições -, e do manual “Electoral

Justice: The International IDEA Handbook” (2010) - que aborda a estrutura de sistemas para

solução das disputas que emergem do processo eleitoral.

No manual “Electoral Management Design” é cunhado o termo “Electoral

Management Body - EMB” para referir-se a um órgão gestor das eleições, independente da

natureza jurídica da instituição que organiza seus procedimentos. Cabe registrar que no

Page 201: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

201

LEGISLAÇÃO ELEITORALARQUITETURA INSTITUCIONAL ELEITORALSOCIEDADE CIVIL E CIDADÃOSPARTES INTERESSADAS NO PROCESSO ELEITORAL

CULTURA POLÍTICA

GOVERNANÇA ELEITORAL

OGE - ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORALSJE - SISTEMA DE JUSTIÇA ELEITORAL

SISTEMA ELEITORAL

SISTEMA PARTIDÁRIO

Brasil, no manual da International IDEA - Financiamento de partidos políticos e campanhas

eleitorais (2015) - o termo foi traduzido como Órgão de Gestão Eleitoral – OGE.

O termo “Electoral Dispute Resolution System – EDRS” refere-se ao Sistema de

Justiça Eleitoral, sistema responsável por solucionar as disputas e compor os conflitos

emergentes durante o processo eleitoral, sendo o termo “Electoral Dispute Resolution Body –

EDRB” utilizado para referir-se à instancia de último recurso para decidir as questões em

matéria eleitoral.

Ou seja, a arquitetura institucional eleitoral é composta por uma instituição ou

instituições responsáveis pela gestão eleitoral e por um sistema de justiça eleitoral.

Figura 3: Composição da arquitetura institucional eleitoralFonte: elaborado pelo autor

As diversas possibilidades para institucionalização da gestão eleitoral e do sistema

de justiça eleitoral dão origem a arquiteturas institucionais eleitorais distintas, e, por

consequência, a órgãos ou instituições eleitorais diferenciados, sendo a institucionalização de

um autoridade reguladora eleitoral resultado de formas específicas de composição dos níveis

de governança eleitoral, ou seja, da forma como são combinadas e institucionalizadas as

atribuições de uma instituição de gestão eleitoral com um sistema de justiça eleitoral. É o que

será visto a seguir.

Page 202: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

202

5.1 Órgão de Gestão Eleitoral - OGE

O órgão de gestão eleitoral tem a competência constitucional/legal para gerir as

fases e os elementos essenciais do processo eleitoral assim como dos instrumentos de

participação direta previstos pelo ordenamento jurídico, como referendos e plebiscitos no caso

brasileiro, e o recall nos países que adotam este mecanismo de controle político. Pode haver

uma única autoridade de gestão eleitoral com todas as atribuições ou podem ser designadas

diversas instituições ou vários órgãos com as competências de gestão eleitoral distribuídas

entre eles.

Existem basicamente três modelos de gestão eleitoral: o Modelo Independente, o

Modelo Governamental e o Modelo Misto (IDEA, 2014, p. 6 e ss).

O Modelo Independente considera a existência de uma instituição responsável

pela gestão eleitoral independente e com autonomia administrativa e financeira, sem

ingerência ou submissão ao Poder Executivo. Diversas democracias emergentes e recentes,

nos últimos vinte e cinco anos, escolheram esse modelo. São exemplos de países que adotam

esse modelo: Armênia, Bósnia Herzegovina, Canadá, Costa Rica, Índia, Indonésia, Brasil,

Polônia, África do Sul, Tailândia e Uruguai. Há países que adotam dois órgãos independentes

para gestão eleitoral, distribuindo entre estes as competências de gestão do processo eleitoral:

um órgão fica responsável pelas decisões políticas e outro fica responsável pela efetiva

administração e implementação do processo eleitoral. Exemplo: Jamaica e Romênia (IDEA,

2014, pag. 7).

No Modelo Governamental as eleições são organizadas por um órgão do Poder

Executivo, podendo ser organizadas de forma nacional e/ou local. São exemplos de países que

utilizam esse modelo de órgão de gestão eleitoral: Suécia, Suíça, Dinamarca, Reino Unido,

Estados Unidos (IDEA, 2014, pag. 7).

O Modelo Misto de gestão eleitoral apresenta uma dupla composição: há um

órgão independente responsável por definir políticas, monitorar ou supervisionar o processo

eleitoral, como no Modelo Independente, e um órgão responsável pela organização e

implementação do processo eleitoral ligado ao Poder Executivo, como no Modelo

Governamental. Neste modelo o órgão responsável pela organização e implementação é

supervisionado pelo órgão independente. Exemplo de países que adotam este modelo:

França, Japão, Espanha.

Page 203: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

COMISSÃO ELEITORAL

COMISSÃO ELEITORAL

CENTRAL Ad hoc + MINISTÉRIO

DA JUSTIÇA

CONSELHO ELEITORAL + MINISTÉRIO

DO INTERIOR

AUTORIDADE LOCAL

203

Note-se, mais uma vez, que no Modelo Misto ficam evidentes as competências

atribuídas a órgãos de gestão eleitoral para definição de políticas públicas, monitoramento ou

supervisão do processo eleitoral, o que implica na supervisão e fiscalização da ação dos

agentes envolvidos. Neste modelo há uma clara distinção entre as atribuições de gestão,

regulação e supervisão do processo eleitoral e as atividades de logística, ou seja, as atividades

operacionais para organização e implementação das etapas do processo eleitoral.

Uma pesquisa realizada pela International IDEA em 2014 com 217 países buscou

mapear o perfil dos órgãos de gestão eleitoral nos diversos países estudados. O mapeamento

realizado mostrou a seguinte distribuição: 67% dos países adotam o Modelo Independente,

23% adotam o Modelo Governamental e 12% adotam o Modelo Misto, 2% dos países não

adotam eleições no nível nacional (IDEA, 2014, pag. 8).

Serão apresentados a seguir dois quadros que resumem os três modelos de gestão

eleitoral mais difundidos e suas principais características, sendo que todos os quadros foram

retirados do Handbook on Electoral Management Design (IDEA, 2014, pag. 10-11):

TRÊS MODELOS DE GESTÃO ELEITORAL

MODELO INDEPENDENTE MODELO GOVERNAMENTAL

ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORAL - OGE INDEPENDENTE

ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORAL - OGE GOVERNAMENTAL

ou ou ou

Figura 4: Três principais Modelos de Gestão Eleitoral

Fonte: IDEA, 2014.

COMO POR EXEMPLO COMO POR EXEMPLO COMO POR EXEMPLO

TRIBUNAL ELEITOR

MINISTÉRIO DO

INTERIOR

MODELO MISTO

ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORAL

- OGE

ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORAL - OGE

GOVERNAMENTAL

Page 204: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

204

Quadro 3: Características dos principais Modelos de Gestão Eleitoral

CARACTERÍSTICAS DOS TRÊS MODELOS DE GESTÃO ELEITORAL MAIS DIFUNDIDOS

ASPECTOS DO MODELO DE

GESTÃO ELEITORAL

MODELO INDEPENDENTE

MODELO GOVERNAMENTAL

MODELO MISTO

COMPONENTE INDEPENDENTE

COMPONENTE GOVERNAMENTAL

- OGE(s)OGE INDEPENDENTE OGE GOVERNAMENTAL

OGE - COMPONENTE INDEPENDENTE

OGE - COMPONENTE GOVERNAMENTAL

ARRANJO INSTITUCIONAL

É institucionalmente independente do poder

executivo

Está subordinado a um departamento de Estado

e/ou ao governo local

É institucionalmente independente do poder

executivo

Está subordinado a um departamento de

Estado e/ou ao governo local

Possui autonomia para A implementação está

IMPLEMENTAÇÃO DA ELEIÇÃO

Possui total responsabilidade pela

implementação

A implementação está sujeita às diretrizes do

poder executivo

monitorar ou supervisionar, e em alguns casos para

determinar a política de

sujeita às diretrizes do poder executivo, e em algumas situações às

diretrizes e supervisãoimplementação do órgão independente

Não se reporta ao poder Não se reporta ao poderexecutivo mas com executivo mas com

ACCOUNTABILITYFORMAL

algumas exceções é formalmente accoutable

para a legislatura, o

Totalmente accountable para o poder executivo.

algumas exceções é formalmente accoutable

para a legislatura, o

Totalmente accountable para o poder executivo.

judiciário ou para o judiciário ou para oresponsável pelo estado responsável pelo estado

PODERES

Possui poderes para desenvolver a moldura

regulatória de forma independente conforme

a legislação.*

Os poderes são limitados à implementação

Em geral, possui poderes para desenvolver a

moldura regulatória de forma independente

conforme a legislação.Monitora ou supervisiona

aqueles que implementam as eleições

Os poderes são limitados à

implementação

COMPOSIÇÃO

É composto por membros que estão fora

do poder executivo enquanto atuam no

órgão eleitoral

É conduzido por ministro ou servidor público. Com

algumas exceções não possui "membros",

apenas uma secretaria.

É composto por membros que estão fora do poder

executivo enquanto atuam no órgão eleitoral.

É conduzido por ministro ou servidor

público. Com algumas exceções não possui

"membros", apenas um secretaria.

MANDATO

Possui garantias para o mandato, mas não necessariamente

mandato fixo

Usualmente não possui membros, então não se

aplica. A equipe da secretaria é de

servidores públicos sem garantias de mandato.

Possui garantias para o mandato, mas não necessariamente

mandato fixo

O mandato não possui garantias.

ORÇAMENTOPossui orçamento

proprio e autonomia orçamentária

O orçamento é parte do orçamento do ministério ou da autoridade local.

Possui orçamento separado.

O orçamento é parte do orçamento do

ministério ou da autoridade local.

* Poucos países que utilizam o modelo Independente ou Misto de gestão eleitoral não possuem EMBs independentes com poderes regulatórios

Fonte: IDEA, 2014.

Page 205: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

205

Note-se que, em relação ao Modelo Independente, modelo de maior relevância

para esta pesquisa, o manual apresenta as seguintes características: independência do órgão

em relação ao poder executivo, ampla responsabilidade pela implementação das eleições,

responsabilização formal, sem subordinação a órgão do poder executivo, perante órgão do

poder judiciário ou legislativo (controle/accountability), forma de composição e garantias de

mandato expressa e autonomia orçamentária.

Importante ainda registrar que no manual é assumido explicitamente que no

Modelo Independente de gestão eleitoral o órgão eleitoral possui poderes para determinar a

moldura regulatória eleitoral de forma independente, com o devido respeito à legislação,

sendo que poucos países que adotam o Modelo Independente ou Misto de gestão eleitoral não

possuem órgãos de gestão eleitoral, OGE, com poderes regulatórios. Aqui, por tudo que já foi

dito nos capítulos anteriores, assume-se que quando o manual faz referência a poderes para

desenvolver a moldura regulatória eleitoral de forma independente e nos limites da lei, o

manual está se referindo à utilização de direito regulador pelo órgão de gestão eleitoral, e,

portanto, ao uso de função regulatória autônoma.

O Modelo Independente de Gestão Eleitoral, como dito anteriormente, é utilizado

por 63% dos 214 países pesquisados (IDEA, 2014, p. 8) o que conduz à constatação de que

em cada um dos países, a depender de diversos fatores, o órgão de gestão eleitoral terá

especificidades muito próprias e graus de autonomia diferenciados. No entanto, já é possível

perceber que as características associadas às instituições de gestão eleitoral, conforme o

Modelo Independente, aproximam-se bastante das características associadas a autoridades

reguladoras autônomas que se consolidaram no final do último século.

Os órgãos de gestão eleitoral podem ser permanentes ou temporários a depender

da frequência das atividades eleitorais, independente do modelo escolhido. Os seguintes

países apresentam órgãos permanentes de gestão eleitoral: Brasil, Armênia, Austrália,

Canada, Indonésia, México, Filipinas, África do Sul e Tailândia, entre outros (IDEA, 2014, p.

30).

Em países com estrutura federativa, os órgãos de gestão eleitoral podem ter

natureza nacional e local. A relação estabelecida e a distribuição de funções e

responsabilidades entre o conjunto de órgãos eleitorais irão depender da legislação. Na

Austrália e no Canadá, o órgão de gestão eleitoral nacional é responsável pelas eleições

nacionais e os órgãos locais possuem a atribuição de conduzir as eleições em sua

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206

circunscrição. Na Índia, o órgão de gestão eleitoral nacional supervisiona controla as eleições

regionais. Na Nigéria a competência para conduzir eleições nacionais, estaduais e realizar

referendos é responsabilidade do órgão eleitoral nacional e os órgãos locais conduzem apenas

a eleição local. Na Suíça, o órgão de gestão eleitoral tem competência para realizar a

coordenação política e as autoridades locais possuem competência para conduzir as eleições

(IDEA, 2014, p. 18).

Os órgãos de gestão eleitoral podem ainda ser classificados como centralizados ou

descentralizados. Pode existir um órgão central responsável por todo o processo eleitoral ou

uma estrutura hierárquica de órgãos de gestão do processo eleitoral legalmente definida,

responsável pelas atividades nacionais, regionais e locais, com atribuições e competências

previamente definidas para cada nível.

Uma estrutura de órgão de gestão eleitoral descentralizada e permanente está mais

apta a garantir a continuidade das atividades eleitorais, assim como maior inclusão e

transparência na governança eleitoral.

5.1.1 Princípios que devem reger as atividades dos Órgãos de Gestão Eleitoral

A legitimidade, credibilidade e integridade do processo eleitoral estão diretamente

relacionadas às garantias atribuídas às instituições responsáveis pela gestão das eleições, das

consultas populares e dos mecanismos de controle político adotados, nos termos da

competência a estas relacionada.

Assim, a atuação legítima do órgão de gestão eleitoral deve pautar-se pelos

seguintes princípios, como fundamentos para a administração do processo eleitoral e garantia

de sua integridade: independência, imparcialidade, integridade, transparência, eficiência,

profissionalismo e comprometimento com os serviços prestados (IDEA, 2014, p. 21). Vale

registrar que uma atuação conforme tais princípios normalmente é favorecida pelo Modelo

Independente de órgão gestor das eleições. Aqui já é possível iniciar uma comparação entre os

princípios para uma atuação legitima do órgão eleitoral indicados pelo Manual e os requisitos

para que uma instituição seja considerada uma autoridade reguladora independente, conforme

descrito no terceiro capítulo.

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207

O atributo de independência do órgão ou órgãos de gestão eleitoral pode ser

descrito sob duas perspectivas distintas: como independência estrutural prevista pela lei ou

pela Constituição, como no Modelo Independente de gestão eleitoral, e como independência

funcional, enquanto a capacidade do órgão de gerir o processo eleitoral e tomar decisões de

fato independentes das pressões ou influências governamentais e políticas. Mais uma vez

está registrada a questão da independência reforçada do órgão eleitoral.

Tanto uma cultura de preservação de independência nas decisões quanto o

compromisso dos membros do órgão de gestão das eleições para respeito ao devido processo

de formação das decisões são elementos cruciais para assegurar a independência em seu

aspecto material. Em alguns países como Brasil, Costa Rica, Austrália e Zâmbia membros do

Poder Judiciário são nomeados para o órgão de gestão eleitoral, a fim de garantir esses

objetivos.

A imparcialidade é o atributo que garante a confiança no processo eleitoral e,

portanto, o respeito e acolhimento ao resultado das eleições por todos os envolvidos. A

confiança de todos os participantes do jogo eleitoral depende da credibilidade na

imparcialidade do órgão gestor das eleições quanto às suas decisões e ações.

A imparcialidade garante o equilíbrio entre todos os participantes da disputa

eleitoral, tanto perdedores como vencedores, fazendo com que o resultado do processo

eleitoral possa ser aceito e respeitado por todos, nos termos das regras do jogo previamente

definidas.

Existem procedimentos que colaboram significativamente param uma atuação

imparcial do órgão gestor das eleições e, principalmente, para a percepção de imparcialidade

por cidadãos e pela sociedade civil: a adoção de códigos de conduta com fortes sanções para

os gestores e autoridades com competência decisória, a fiscalização de suas ações, a

instituição de mecanismos de transparência e de responsabilização de todas as partes

envolvidas no processo eleitoral (IDEA, 2014, pag. 20 e ss).

Nesse ponto, a imparcialidade descrita pelo manual pode ser correlacionada com a

legitimidade da imparcialidade descrita por Pierre Rosanvallon (2011). A confiança mútua de

todas as partes interessadas no processo eleitoral depende de garantir a todos reais e

equitativas possibilidades de participação. Pode ser ainda avaliada pela perspectiva de

Habermas, quanto à instituição do sistema de direitos e à institucionalização de mecanismos

para legitimar os discursos produzidos.

A maior responsabilidade por garantir a integridade do processo eleitoral cabe à

instituição gestora de tal processo, esta é a maior responsável por criar as condições de aferir

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208

se seus agentes e os demais envolvidos estão agindo de forma íntegra e, portanto, protegendo

a lisura do processo eleitoral. A legislação eleitoral, incluída a legislação produzida a partir de

poderes regulatórios atribuídos à autoridade gestora do processo eleitoral, deve prever normas

para garantir a integridade do processo eleitoral e, por consequência, para prevenir corrupção

e desvio de interesses nas ações de todos os agentes envolvidos neste processo (ACE

PROJECT).

A transparência é o mecanismo pelo qual as políticas públicas, a atividade

regulatória e a administração operacional e financeira do órgão gestor das eleições podem ser

acompanhadas. É ainda o mecanismo através do qual cidadãos podem acompanhar e

monitorar os ciclos eleitorais em suas distintas dimensões temporais.

A instituição de mecanismos de transparência colabora para identificação e

implementação de boas práticas assim como para identificação de tentativas de fraude

financeira ou eleitoral, de má gestão ou de captura do agente regulador, permitindo o

adequado tratamento de desvios e o aumento da credibilidade e da reputação da instituição.

A institucionalização de práticas de governança eleitoral, tanto regulatórias, como

administrativas e financeiras, para acompanhar a execução das atividades do órgão de gestão

eleitoral é pratica essencial para avaliação de sua eficiência.

O processo eleitoral demanda diversos conhecimentos técnicos e especializados

que precisam ser coerentemente organizados para funcionar em escalas de tempo definidas

pelo calendário eleitoral. A capacitação e envolvimento de dirigentes, gestores, servidores e

demais envolvidos no processo eleitoral é ponto crítico para o sucesso de uma eleição e para

credibilidade em seus procedimentos.

A prestação de serviços eleitorais e a regulação das atividades privadas de

interesse público na esfera eleitoral, pela instituição de gestão das eleições, é a razão essencial

de sua existência. O claro delineamento de tais serviços e atividades, assim como a definição

de metas e parâmetros gerenciais para aferir e acompanhar a sua execução permitem o

aperfeiçoamento dos processos de trabalho, contribuindo para aumentar a confiança no

processo eleitoral e o seu controle.

Com o objetivo de síntese, apresenta-se abaixo princípios indicados pelo manual

Handbook on Electoral Management Design (2014, p. 47) que deveriam estar previstos na

Constituição, relacionados aos órgãos de gestão eleitoral:

- Independência do OGE;- Composição do OGE;- Mandato dos membros do OGE;- Funções e poderes do OGE;

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209

- Direitos associados ao sufrágio ou requisitos para qualificação do eleitor;- Direitos dos partidos políticos;- Parâmetros para delimitação da circunscrição eleitoral ou autoridade

competente;- Sistema para eleição presidencial;- Sistema para eleição do órgão legislativo nacional;- Direitos ou qualificação exigida para concorrer a cargo eletivo;- Periodicidade das eleições;- Mecanismos para organização das disputas eleitorais.

No mesmo sentido, apresenta-se abaixo um checklist elaborado pelo International

IDEA (2014, p.49) relacionado à estrutura legal para órgãos de gestão eleitoral com a

finalidade de verificar se há estrutura normativa (legal framework) adequada no país:

a. A estrutura normativa garante que o OGE seja constituído como uma instituição independente e imparcial?

b. A estrutura normativa capacita o OGE para operar de forma imparcial e transparente?

c. A estrutura normativa protege os membros e servidores de dispensa arbitrária?d. A estrutura normativa estabelece o sistema de accountability, poderes, funções

e responsabilidades do OGE em cada um dos níveis e as relações entre os diversos níveis?

e. A estrutura normativa adequadamente estabelece a relação entre o OGE e as partes interessadas externas?

f. A estrutura normativa estabelece diretrizes claras para todas as atividades do órgão de gestão eleitoral e ainda assim permite flexibilidade prática para suas implementações?

g. A estrutura normativa permite revisão exequível e oportuna das decisões do OGE?

h. A estrutura normativa estabelece prazo suficiente para organização eficaz dos eventos eleitorais?

i. A estrutura normativa garante que o OGE tenha recursos suficientes e oportunos para gerir suas funções e responsabilidades eficazmente?

Os princípios que orientam a previsão e delimitação de órgãos de gestão

eleitoral na Constituição e o checklist fornecidos pelo International IDEA buscam prover

referenciais objetivos e de fácil análise para avaliação da estrutura normativa relacionada à

arquitetura institucional da gestão eleitoral de um determinado país. Essas diretrizes foram

consolidadas a partir das boas práticas e de experiências bem-sucedidas identificadas no

estudo dos 217 países que integram a base de dados da organização e dos estudos realizados

nos últimos anos sobre governança eleitoral. Por esta razão configuram-se como um sólido

referencial para análise de um órgão de gestão eleitoral no caso concreto.

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210

5.1.2 Funções atribuídas aos Órgãos de Gestão Eleitoral

A história da formação de instituições de gestão eleitoral na América Latina

apresenta peculiaridades que contribuem de forma significativa para a análise dessas

autoridades e para a compreensão da arquitetura da governança eleitoral, e por consequência

para a identificação dos poderes, funções e responsabilidade atribuídos estes órgãos (IDEA,

2014, ISSACHAROFF, 2010, p. 978).

A escolha do Modelo Independente de órgãos para gestão das eleições nos países

da América Latina foi uma tendência que se consolidou não apenas no Brasil, como em

diversos outros países da região e em outras democracias recentes. A necessidade de entregar

a organização e administração do processo eleitoral a uma autoridade independente dos

órgãos compostos por agentes eleitos, principalmente independente do Poder Executivo,

apareceu como forma de enfrentar e reduzir a dominação de poderes historicamente

oligárquicos ou de regimes de exceção (IDEA, 2014, ISSACHAROFF, 2010, p. 978 e ss).

Essa estratégia teria permitido a quebra de um ciclo de resolução de disputas de

poder político e conflitos eleitorais através da violência, muitas vezes por meio de conflitos

armados, para buscar forma de solucionar desacordos políticos através de uma linguagem

racionalizada, por meio do Estado de Direito e, portanto, por regras do jogo previamente

definidas. Nestes países, a busca por mecanismos de garantia de eleições livres e justas, ou

seja, por um processo eleitoral íntegro, fez com que a legislação eleitoral fosse tratada de

forma setorizada, como um microssistema, concedendo-se à instituição gestora do processo

eleitoral amplas competências, funções e responsabilidades, independência, autonomia e os

meios para tratar de todo o processo eleitoral (SCHLEICHER, 2011; ISSACHAROFF, 2007,

2010, p. 978).

Pelas razões expostas, amplos poderes foram concedidos às autoridades gestoras

independentes do processo eleitoral, ficando em alguns países tais entes conhecidos como

“quarto poder” do governo, a exemplo do Uruguai e da Costa Rica. Nestes dois países, às

autoridades independentes foram atribuídos poderes para expedir normas regulatórias e

diretrizes, para revisão das normas vinculantes do processo eleitoral, para convocar e conduzir

eleições, para certificar e anular seus resultados, assim como para solucionar todos os

conflitos e disputas eleitorais, sendo que todas as suas decisões são decisões finais e não

podendo ser revistas nem mesmo pelo poder judiciário.

Embora nem todas as instituições eleitorais dos países da América Latina tenham

a mesma extensão dos poderes e funções atribuídos aos órgãos do Uruguai e da Costa Rica,

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211

uma vez que suas decisões não estão sujeitas ao controle judicial, ainda assim, alguns destes

órgãos gestores do processo eleitoral possuem poderes para normatizar e regular, com efeitos

vinculantes, todas as atividades do processo eleitoral, assim como para direcionar a

participação de todas as principais partes interessadas – eleitores, partidos políticos,

candidatos, mídia e observadores. Algumas destas autoridades claramente possuem poderes

executivos, legislativos e judiciais explicita ou implicitamente previstos.

Em geral configuram o núcleo essencial das funções das instituições gestoras do

processo eleitoral os poderes para (IDEA, 2014. Pag. 75 e ss):

. Determinar quem pode votar: o exercício da cidadania mediante voto é uma das

pedras fundamentais da democracia. Assegurar que apenas os cidadãos no exercício regular

de seus direitos políticos possam votar é premissa para a legitimidade do processo eleitoral

(essa função abrange a identificação e registro de eleitores, a identificação e registro de

eleitores vivendo em outros países, o desenvolvimento e manutenção de cadastro eleitoral

nacional);

. Registro de candidatos e partidos para a eleição – o direito de concorrer a cargo

público eletivo é um direito político fundamental, e garantir que todos os participantes

obedeçam às normas eleitorais colabora para conferir legitimidade às eleições (estão

abrangidas competências, como por exemplo, para: registro de partidos políticos, regulação

do financiamento partidário, supervisão política das convenções partidárias para escolha de

pré-candidatos);

. Condução do processo de votação – a habilidade de votar com segurança é

atividade fundamental das eleições (abrange poderes para estabelecer o planejamento e

implementação da logística eleitoral, organizar a participação e a capacitação da equipe

envolvida no processo eleitoral, treinamento de delegados de partidos e candidatos, coordenar

a logística de segurança do processo eleitoral, acreditação e regulação da participação de

observadores, adjudicação de disputas eleitorais, organizar a votação em território

estrangeiro);

. Contagem/apuração de votos – garantir que os resultados eleitorais de fato

reflitam a vontade dos eleitores;

. Totalização de votos – conforme o sistema eleitoral para que os vencedores

sejam identificados (envolve poderes para anunciar e certificar resultados eleitorais);

. Condução da organização das eleições de forma que esta obtenha credibilidade

(abrange poderes para promover políticas eleitorais nacionais e regionais, planejar os serviços

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212

eleitorais, treinar a equipe envolvida, revisar e aperfeiçoar a estrutura normativa eleitoral e

para realizar auto avaliação da performance do OGE após as eleições.

É necessário registrar que, para fins de classificação de uma instituição como

Órgão de Gestão Eleitoral - OGE, é a competência para realizar as atribuições previstas no

núcleo essencial acima descrito que caracteriza um órgão como uma instituição de gestão

eleitoral - OGE, no sentido indicado pelo manual. Órgãos com competências eleitorais que

não alcançam as atribuições essenciais não são considerados órgãos de gestão eleitoral –

OGEs, como por exemplo as cortes eleitorais (IDEA, 2014, pag. 6).

Além das hipóteses acima, também costumam ser atribuídas à instituição gestora

das eleições funções e poderes para (IDEA, 2014. Pag. 76-77):

. Realizar políticas públicas e elaborar diretrizes eleitorais nacionais ou regionais,

(making electoral policies);

. Planejar serviços eleitorais;

. Capacitar todas as pessoas envolvidas no processo eleitoral;

. Realizar campanhas educativas e informacionais sobre processo eleitoral e

direitos políticos;

. Delimitar as circunscrições eleitorais;

. Planejar e implementar a logística do processo de votação e das demais

atividades do processo eleitoral;

. Coordenar os procedimentos para alistamento eleitoral para adequada e correta

identificação dos eleitores;

. Alistamento eleitoral - desenvolvimento e manutenção de um cadastro eleitoral

nacional;

. Coordenar os procedimentos de registro e de filiação partidária;

. Regular e supervisionar a atividade financeira partidária (regulation of financing

of political parties - political party regulation);

. Registrar convenções partidárias;

. Regular e supervisionar a conduta de partidos políticos e candidatos (regulating

the conduct of the political parties and candidates);

. Regular e supervisionar o comportamento da mídia durante a eleição;

. Regular e fiscalizar as pesquisas de opinião;

. Treinar delegados/observadores de partidos políticos e de candidatos (training

political parties and candidates poll watchers);

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213

. Acreditar e regular a ação de observadores do processo eleitoral;

. Proclamar e certificar os resultados das eleições;

. Adjudicar as disputas eleitorais (the adjudication of electoral disputes);

. Revisar e avaliar para adequação a legislação eleitoral e a performance do órgão

gestor das eleições;

. Aconselhar o governo e o parlamento sobre questões de reforma eleitoral;

. Participar em serviços de assistência eleitoral internacional.

O sistema jurídico de alguns países apresenta em sua legislação eleitoral, além dos

poderes e funções atribuídos à autoridade gestora das eleições, previsões quanto às

responsabilidades, obrigações e mecanismos de controle – sistema de accountability -, tais

como a obrigação de prestar contas para um órgão externo, por exemplo.

Outros elementos normativos podem também abranger a previsão de códigos de

conduta, a obrigação de prestar serviço adequado e tratamento justo a todas as partes

interessadas no processo eleitoral, a determinação de padrões de qualidade para os serviços e

materiais de eleição, a obrigatoriedade de manutenção de arquivos eleitorais abrangentes, a

obrigação de transparência e de suas atividades e de prestar contas regularmente, entre outros

(IDEA, 2007. Pag. 69).

A ausência de transparência operacional e regulatória colabora decisivamente para

enfraquecimento da confiança no processo eleitoral assim como para desvios de finalidade e

ações com conflitos de interesse. É exigência para o adequado exercício dos direitos políticos

eleitorais a implementação de mecanismos de accountability que permitam dotar o processo

eleitoral de transparência, boa governança, e, consequentemente, de integridade e confiança.

O princípio de accountability significa que a autoridade gestora das eleições

necessita fornecer periodicamente evidencias às partes interessadas, bem como para o público

em geral, de que suas atividades são efetivas e que estão adequadas aos padrões legais, éticos

e financeiros assim como os serviços prestados são fornecidos com qualidade e presteza.

Transparência ativa a respeito de suas políticas, de ações e serviços previstos, de recursos

utilizados, de avaliação de sua performance, integram os temas que devem constar em

relatórios periódicos de desempenho.

A previsão de mecanismos de auditorias internas e externas, periódicas, também

contribuem para a identificação de fraudes, corrupção e mal feitos, assim como para

aperfeiçoamento de suas práticas e melhor desempenho no exercício de suas atividades

(IDEA, 2007, p. 231 e ss). Essa observação vale inclusive para a atividade partidária.

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214

As instituições de gestão eleitoral, enquanto gestores da implementação de

princípios democráticos são diretamente responsáveis por garantir as condições para uma

competição eleitoral justa e íntegra, ou seja, por garantir o devido processo eleitoral. A gestão

eleitoral precisa, portanto, pautar-se pela prestação de contas de seus atos, pela

institucionalização de canais para comunicação e participação efetiva das partes interessadas,

pela instituição de mecanismos para prevenção de comportamentos inadequados e de

conflitos de interesse, e pelo desenvolvimento sustentável do processo eleitoral, enquanto um

dos pilares democráticos.

Entre as funções essenciais da autoridade gestora das eleições, encontra-se ainda:

a necessidade de desenvolvimento de um planejamento estratégico e operacional, para

identificação de parâmetros de avaliação e controle de suas atividades e desempenho (IDEA,

2007, p. 140); assim como a obrigação de proteger a história institucional e a memória

eleitoral coletiva, através da implementação de políticas para gestão e arquivamento de seus

registros, processos e documentos com a finalidade de garantir que estes permaneçam

estruturados, preservados, íntegros e acessíveis (IDEA, 2007, p. 188). Trata-se do princípio

de transparência ativa, que permite efetivo controle social. Se não há planejamento e

parâmetros previamente definidos e nem registros de suas atividades organizados, não há

como ser realizado uma verdadeira responsabilização por atividades nem controle social.

Quanto à avaliação do comportamento de todas as partes envolvidas na

organização e implementação das eleições, constitui boa prática a adoção de códigos de

conduta, pois a ciência deste pelos atores do processo eleitoral favorece avaliação futura de

sua conduta e responsabilização. São elementos essências para normatização dos códigos de

conduta:

. O compromisso de manter a integridade de todo o processo eleitoral;

. A garantia de não participação em atividade partidária;

. Afastamento de conflitos de interesse;

. Comprometimento com a prestação de serviços qualidade para eleitores e partes interessadas;

. Ciência e adesão às diretrizes regulatórias e de gestão.

Por todo o exposto, a moldura constitucional e legal do processo eleitoral deveria

definir a estrutura, os poderes, as funções e as responsabilidades da autoridade gestora com a

finalidade de garantir a independência e a integridade do processo eleitoral, sua adequada

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215

governança assim como a participação informada e influente de cidadãos, partidos políticos e

sociedade civil (IDEA, 2007, pag. 43 e ss).

Diversas constituições apresentam previsões legais quanto a órgãos de gestão

eleitoral e normalmente estas previsões abrangem diversos temas. Para funcionamento

adequado da instituição gestora das eleições, a legislação eleitoral deve considerar a

explicitação dos seguintes pontos: independência e imparcialidade da instituição gestora do

processo eleitoral; garantias para o funcionamento imparcial e transparente; garantia contra

exoneração arbitraria de seus dirigentes; identificação dos órgãos envolvidos na gestão do

processo eleitoral e definição de responsabilidades, poderes, funções e controles associados

para cada órgão componente da arquitetura eleitoral e definição da relação existente entre

estes; definição da relação existente entre a instituição gestora do processo eleitoral e os

interessados externos; definição de diretrizes claras para a autoridade gestora e atribuição a

esta de flexibilidade e competência para implementação dos atos necessário à gestão do

processo eleitoral; definição de critérios e prazos para controle das ações da autoridade

gestora; garantia de tempo e de recursos financeiros suficientes para gestão efetiva do

processo eleitoral à autoridade gestora.

É importante que a constituição e a lei abordem os conteúdos acima indicados e

claramente atribua a competência de gestão e regulação para a instituição responsável pelo

detalhamento e operacionalização dos procedimentos eleitorais. É importante ainda que os

poderes, responsabilidades e funções atribuídos estejam claramente previstos. Parte da

moldura normativa eleitoral normalmente é elaborada através de poderes concedidos para

expedir normas à instituição gestora do processo eleitoral, uso de direito regulador. A

legislação eleitoral precisa permitir que o órgão gestor das eleições tenha flexibilidade para

lidar com as mudanças das circunstancias eleitorais.

Em alguns países, à autoridade gestora do processo eleitoral é especificamente

atribuída a competência para regulamentar o processo eleitoral, sendo autorizada a produção

de normas novas ou a criação de normas e regulamentos para complementar a norma primaria

existente. Nesta hipótese, os órgãos gestores do processo eleitoral são investidos de poderes

legislativos (poderes para normatizar o processo eleitoral), poderes judiciais (poderes para

interpretar e revisar normas com efeito vinculante) e poderes executivos para coordenar e

organizar operacionalmente o processo eleitoral.

No Uruguai a competência normativa para regular o processo eleitoral é exclusiva

e não pode ser revista por qualquer outro órgão do governo. O mais comum, no entanto, é

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que a competência normativa e regulatória seja atribuída ao órgão gestor das eleições, mas

com possibilidade de revisão por uma instancia judicial.

É essencial registrar que o poder para exercer atividade regulatória concedido à

autoridade administradora das eleições deve estar sempre alinhado com a constituição e a

legislação eleitoral, sendo igualmente importante a criação de controles para aferir se seu

exercício é consistente com princípios e valores do ordenamento jurídico (IDEA, 2014, p. 44).

A atividade regulatória abrange áreas críticas de atuação tais como: circunscrição

eleitoral, alistamento eleitoral e controle do cadastro eleitoral, registro e fiscalização

partidária, fixação de parâmetros e monitoramento das campanhas eleitorais, prestação de

contas e processo de votação.

A atividade regulatória pode ainda abranger áreas de atuação tais como:

formulação de políticas administrativas e diretrizes operacionais relacionadas ao seu próprio

corpo funcional, a ações afirmativas, à performance administrativa, desenvolvimento e

capacitação de seu quadro funcional, e a ações voltadas para as partes interessadas externas.

São partes interessadas externas, por exemplo, os eleitores, o Ministério do Planejamento, o

parlamento, os partidos políticos, organizações da sociedade civil e mídia.

Por sua natureza complexa e técnica, as atividades do processo eleitoral

necessitam de estruturação e padronização mínimas, a fim de que a compreensão de

conceitos, procedimentos e direitos sejam adequadamente apreendidos por todos os

envolvidos. A compreensão da arquitetura eleitoral, das atividades envolvidas, de seu

funcionamento por todas as partes interessadas é premissa para a consistência, credibilidade e

aceitabilidade dos resultados eleitorais.

A fim de preservar a instituição gestora das eleições de intervenções e

manipulações inadequadas por partidos políticos que estejam no poder, é crucial que a

arquitetura do sistema eleitoral, funções e atribuições do órgão eleitoral estejam claramente

previstos na legislação eleitoral. A atividade regulatória deve ser exercida de forma

transparente, respeitando o princípio da publicidade, e com mecanismos institucionalizados

para participação das partes interessadas na sua produção e para seu controle, inclusive de

revisão judicial. O poder regulamentar deve ser exercido de forma que a flexibilidade para

dar respostas efetivas conforme as exigências e circunstancias temporais do processo eleitoral

mantenham o equilíbrio e a consistência com as diretrizes da legislação correspondente

(IDEA, 2014, p. 51).

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217

5.1.3 Partes interessadas no processo eleitoral

O processo eleitoral envolve a participação de diversos atores. Participam

diretamente do processo eleitoral, estando, portanto, submetidos à legislação eleitoral, o órgão

eleitoral e as seguintes partes interessadas (IDEA, 2014, p. 229 e ss):

- Eleitores e futuros eleitores;

- Partidos políticos e candidatos;

- Quadro funcional e autoridades gestoras do órgão de gestão eleitoral;

- Poder Executivo;

- Poder Legislativo;

- Ministério Público

- Órgãos de solução de disputas eleitorais;

- Sistema Judicial

- Monitores e observadores nacionais e internacionais do processo eleitoral;

- Mídia / imprensa;

- Organizações da sociedade civil;

- Doadores de campanha e agencias de assistência eleitoral.

Também aparecem como partes interessadas do processo eleitoral, de forma

secundária, e na medida em que destes vierem a participar ou na medida em que tiverem

interesses afetados, e, portanto, submetendo-se a seu subsistema jurídico, as seguintes partes:

fornecedores de bens e serviços para o órgão de gestão eleitoral, o público em geral, os

fornecedores de bens e serviços para partidos políticos e candidatos58 e as redes de

cooperação regional ou internacional em matéria eleitoral.

A credibilidade e legitimidade do órgão de gestão eleitoral está diretamente

relacionada com os canais de comunicação e mecanismos de diálogo efetivo que este venha a

implementar para garantir uma relação transparente, imparcial, profissional e comprometida

com a integridade do processo eleitoral. Inciativas como encontros, debates de políticas

públicas e diretrizes, organização de seminários temáticos, ações de instrução e capacitação,

consultas e audiências públicas para abordar temas como, por exemplo, políticas e diretrizes,

regulamentações, calendários eleitorais, procedimentos eleitorais e reformas eleitorais, são

ações que colaboram para garantir a participação informada e influente de todos os

58 Item acrescentado pela autora em razão da legislação brasileira.

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218

interessados no processo eleitoral, assim como a efetividade dos direitos políticos de

participação, dos direitos eleitorais.

O estabelecimento de procedimentos para efetiva participação das partes

interessadas durante todo o processo eleitoral cria salvaguardas para o sistema eleitoral e

constrói as bases para o funcionamento legitimo do sistema. A rede de interação formada e

institucionalizada através de procedimentos claros, com normas de funcionamento

previamente estabelecidas e meios para efetiva responsabilização política de todos os

participantes envolvidos no processo eleitoral é o mecanismo que cria condições para

realização de eleições com integridade.

A legitimidade do Sistema Eleitoral decorre do equilíbrio estabelecido entre todos

os seus participantes, dos mecanismos de freios e contrapesos estipulados para todas as partes

integrantes desse subsistema e dos mecanismos disponibilizados para a participação e

responsabilização efetiva de todos os envolvidos. Aqui é de extrema relevância registrar tema

que ainda não alcançou a consideração devida: a responsabilidade eleitoral, aqui

compreendida como a responsabilidade atribuída a cada parte integrante do sistema eleitoral.

Um Sistema Eleitoral que não identifica, define e explicita claramente, ao lado

dos direitos, as responsabilidades eleitorais conferidas a cada participante do sistema

apresenta lacunas de legitimidade que impedem o alcance de integridade eleitoral em seu

sentido amplo.

5.2 Sistema de Justiça Eleitoral - EJS

As organizações internacionais de assistência eleitoral compreendem as eleições

como um dos pilares dos processos democráticos, sendo o Sistema de Justiça Eleitoral fator

crítico para a sua credibilidade (ACE PROJECT, 2013, p. 73 e ss).

A institucionalização de mecanismos e procedimentos para garantir o exercício de

direitos políticos eleitorais e a igualdade de condições na competição política, capazes de

mitigar desigualdades ou percepções de desigualdades pelos agentes envolvidos, são

elementos chave para garantir o devido processo eleitoral e a legitimação dos representantes

eleitos, visto que somente eleições percebidas como imparciais, justas e íntegras apresentam

resultados passíveis de aceitação e respeito pelas partes interessadas no processo eleitoral.

A complexidade técnica das eleições, as etapas sucessivas com prazos exíguos e

bem demarcados no calendário eleitoral, a natureza competitiva e as disputas por posições e

interesses políticos divergentes, são elementos que fazem com que as diversas fases do

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219

processo eleitoral estejam vulneráveis à abusos e fraudes, a contestações e a questionamentos

por todas as partes interessadas.

A previsão de um sistema para prevenção e solução de disputas e conflitos, ao

lado do órgão gestor das eleições, aparece como uma condição procedimental da democracia,

na medida em que as regras do jogo democrático necessitam de um árbitro para aferir seu

legitimo funcionamento.

A organização International IDEA desenvolveu o manual Electoral Justice: The

International IDEA Handbook (IDEA, 2010) com o objetivo de explorar as considerações

técnicas e legais envolvidas na arquitetura de um sistema de resolução de disputas eleitorais

como, por exemplo, a classificação dos diversos sistemas existentes nos países estudados, os

elementos, princípios e garantias que devem pautar sua atuação, considerando ainda os

mecanismos judiciais e os mecanismos alternativos de resolução de disputas que tem sido

utilizados.

A International IDEA, ao desenvolver este estudo, teve por objetivo aumentar a

compreensão da importância de um Sistema de Justiça Eleitoral nacionalmente

comprometido, robusto e sensível ao contexto, e ainda examinar como a variedade de

mecanismos utilizados por seus órgãos para defesa e proteção dos direitos políticos eleitorais

funcionam, enfatizando o quanto é crucial a legitimação pelos cidadãos das instituições

encarregadas de administrar a justiça eleitoral.

Para tanto, identifica como variáveis chave da legitimidade do sistema eleitoral a

importância do consenso político na definição da estrutura e composição do órgão eleitoral

que irá compor conflitos e solucionar disputas, assim como as características essenciais de

transparência e independência para sua atuação. Registra ainda que a criação de instituições

eleitorais fortes, de caráter permanente, com independência e autonomia funcional e

financeira, além de fator legitimador, deve ser percebida como um investimento na qualidade

da democracia (IDEA, 2010, p. 4 e ss).

Como anteriormente registrado, a tendência para utilização de instituições e

mecanismos judiciais para solução de conflitos e disputas eleitorais teve início no final do

século XIX e firmou-se ao longo do século XX, embora, inicialmente a composição de

conflitos em matéria eleitoral e a certificação de resultados eleitorais tenham sido atribuições

exclusiva de órgãos do poder legislativo.

A transferência de competências para organizar e compor conflitos do processo

eleitoral a membros do poder judiciário também foi explicada pela necessidade de se afastar

ou pelo menos reduzir a influência de interesses políticos na condução das eleições. A

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220

institucionalização de meios e procedimentos judiciais para solução de litígios eleitorais

trouxe maior segurança jurídica para os sistemas políticos permitindo maior aprofundamento

e enraizamento de práticas democráticas.

No mesmo sentido, registrou Habermas (HABERMAS, 2002), que a forma

jurisdicional de resolver litígios em matéria política agrega racionalidade e segurança ao

procedimento distinguindo-o dos meios e procedimentos políticos de resolução de conflitos,

pois os procedimentos e argumentos disponíveis são diferentes para o poder judiciário e para

o poder legislativo.

Nos países da common law a entrega de jurisdição eleitoral foi normalmente feita

para órgãos integrantes da justiça comum, prática que se disseminou por outros países. Após

as duas grandes guerras, tal responsabilidade passou a fazer parte das atribuições de diversas

cortes constitucionais, em países da Europa Continental, da África e da Ásia, para então, a

partir das últimas décadas do século XX, passar a fazer parte de cortes eleitorais

especializadas em países da América Latina, da África, Ásia e Europa.

A consolidação e sofisticação dos meios constitucionais e legais para solução de

disputas políticas eleitorais, a partir da terceira onda de democratização ocorrida no final do

século XX, principalmente em democracias emergentes, colaboram para fortalecer o papel de

protagonista dos Sistemas de Justiça Eleitoral na consolidação de valores e procedimentos

democráticos.

Como visto, esse protagonismo teve por fundamento entregar soluções de

igualdade, preservar a liberdade de expressão, mitigar as assimetrias de informação do

processo eleitoral, combater fraudes e abusos, enfim, de garantir o livre, justo e íntegro

exercício dos direitos políticos de participação - o devido processo eleitoral.

A Justiça Eleitoral colabora para assegurar, por consequência, as condições para o

devido processo democrático, garantindo as condições para que a democracia prospere e se

consolide. Esta contribui diretamente para a interação de forças políticas e para a estabilidade

social.

O Sistema de Justiça Eleitoral, nesse sentido, é pedra angular da democracia e tem

por função assegurar a legalidade e constitucionalidade do processo eleitoral como assegurar

o exercício dos direitos políticos eleitorais dos cidadãos59 (IDEA, 2010, p.1).

59 “Electoral justice is at the cornerstone of democracy in that it safeguards both the legality of the electoral process and the political rights of citizens. It has a fundamental hole in the continual processo f democratization and catalyses the transition from the use of violence as a mean for resolving political conflict to the use of lawful means to arrive at a fair solution” (IDEA, 2010, p. III). Nesse sentido, ver o projeto BRIDGE – Building Resources for Democracy, Governance and Elections e ACE Electoral Knowledge network (ACE PROJECT).

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221

5.2.1 Conceito de Sistema de Justiça Eleitoral

A concepção de um Sistema de Justiça Eleitoral nasceu vinculada à defesa e

garantia dos direitos políticos eleitorais e ao afastamento de ilícitos que porventura viessem a

ser praticadas ao longo do processo eleitoral. Seus meios e mecanismos foram previstos

basicamente para: 1) garantir que cada ação, procedimento e decisão relacionados ao processo

eleitoral observem o devido processo eleitoral, alinhando-os com a legislação correlata; 2)

proteger e restaurar o gozo dos direitos políticos eleitorais, dando às pessoas que acreditam ter

sofrido violação ou lesão a seus direitos os meios para apresentar suas demandas ou

reclamações, ser ouvido e receber uma adjudicação (IDEA, 2010, p. 1).

Nesse sentido, o Sistema de Justiça Eleitoral institucionaliza os meios para

composição dos conflitos decorrentes da disputa eleitoral e é o lócus por excelência do

exercício reflexivo de construção dos sentidos e conteúdos relacionados à cidadania.

Nas democracias, a garantia de adesão às regras do jogo democrático para escolha

dos representantes eleitos e a estabilidade do sistema político são diretamente afetados pela

atuação do Sistema de Justiça Eleitoral, sendo seu papel reconhecidamente fundamental em

todas as democracias emergentes ou já estabelecidas.

Um sistema político robusto e aberto à participação de todos os envolvidos no

processo de concorrência a cargos políticos representativos deve lidar com a competição, com

as estratégias e com a as disputas de interesses contrapostos emergentes desse processo,

através de canais legitimamente instituídos. Tais demandas e disputas não devem ser vistas

como fraqueza do sistema político ou como evidencia de deficiência ou manipulação do

processo eleitoral, ao contrário, devem ser incorporadas ao processo eleitoral e normalizados

os procedimentos para fazer face a estes desafios (IDEA, 2010).

A legitimidade do processo eleitoral, o devido processo eleitoral, não emerge da

ausência de questionamentos ou demandas ao longo de suas etapas, mas, ao contrário, emerge

da institucionalização de mecanismos legítimos para lidar com disputas de múltiplos

interesses estratégicos, a fim de que estes sejam filtrados por uma razão deliberativa capaz de

conduzi-los para uma solução cooperativa.

Nesse sentido, a atuação da Justiça Eleitoral transcende o papel de garantidora de

normas, no sentido tradicional, visto que suas decisões interferem diretamente no processo

eleitoral e no modo como se comportam todas as partes interessadas. Independência,

imparcialidade, autonomia, transparência, acessibilidade, efetividade e justiça eleitoral em

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222

tempo adequado aparecem como requisitos para uma atuação capaz de conferir credibilidade,

segurança e legitimidade aos resultados eleitorais.

As partes interessadas devem acreditar que se seus direitos políticos eleitorais

vierem a ser violados, estas terão acesso aos meios para registrar demandas ou reclamações,

para ser ouvidas e para receber uma resposta que proteja ou restaure seus direitos. Um

Sistema de Justiça Eleitoral depende de meios tanto para prevenir quanto para lidar com

efetivas violações à legislação eleitoral.

Nessa linha de pensamento, um Sistema de Justiça Eleitoral pode ser assim

conceituado (IDEA, 2010, p. 9):

“Sistema de justiça eleitoral é o conjunto de meios e mecanismos disponíveis em um pais especifico para garantir e verificar que ações eleitorais, procedimentos e decisões estejam de acordo com o sistema jurídico, e para proteger e restaurar o gozo dos direitos políticos. Um sistema de justiça eleitoral é instrumento chave do estado de direito e a garantia última de observância dos princípios democráticos de eleições livres, justas e genuínas.”

5.2.2 Classificação dos Sistemas de Resolução de Disputas Eleitorais - SRDE

O manual elaborado pela organização International IDEA, “Electoral Justice:

International Idea Handbook” (IDEA, 2010) utiliza o termo Sistema de Resolução de

Disputas Eleitorais – SRDE para designar o conjunto de meios e mecanismos institucionais

técnico-legais disponíveis para acionar ou supervisionar ações eleitorais, procedimentos e

decisões através de órgãos administrativos, judiciais ou legislativos ou mesmo órgãos

internacionais em matéria eleitoral (IDEA, 2010, p. 37).

O objetivo de um Sistema de Resolução de Disputas Eleitorais é garantir que o

processo eleitoral funcione conforme a legislação eleitoral ou que respeite os direitos

eleitorais, em última instância, busca garantir a integridade do processo eleitoral (IDEA,

2010, p. 37).

O manual apresenta ainda uma classificação para os Sistemas de Resolução de

Disputas Eleitorais - SRDE, assim como os princípios estruturais e garantias procedimentais

que aparecem como fatores críticos para adequada institucionalização e funcionamento da

justiça eleitoral, ressaltando que um sistema de resolução de disputas eleitorais eficiente é

fator determinante para um sistema eleitoral bem-sucedido e funcional (IDEA, 2010, p. 60).

O critério utilizado no manual para realizar a classificação dos SRDEs adota como

referência a natureza jurídica do órgão competente para emitir a decisão final sobre eleições –

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223

para proclamar seus resultados – e/ou para julgar o último recurso em matéria eleitoral, em

eleições nacionais. Esse critério considera como ponto de partida para classificação dos

SRDEs o órgão responsável pela palavra final sobre o processo eleitoral nacional de um

determinado país. Ou seja, a decisão do órgão da qual não seja mais cabível recurso.

Utilizando-se deste critério, foram identificados quatro modelos principais, ou

seja, a resolução final de disputas eleitorais e a competência para proclamar os resultados

eleitorais e dar posse a candidatos eleitos pode ser da competência de (IDEA, 2010, p. 61):

- Órgão do Poder Legislativo (o parlamento ou qualquer outra assembleia

política);

- Órgão do Poder Judiciário:

. Tribunal da justiça comum, parte do Poder Judiciário;

. Tribunal Constitucional;

. Tribunal Administrativo;

. Tribunal eleitoral especializado;

- Órgão de gestão eleitoral com poderes judiciais;

- Órgãos ad-hoc criados para um processo eleitoral específico com apoio

internacional ou como uma solução institucional nacional para uma eleição

específica.

Dessa forma, um SRDE pode ser composto por instituição ou órgão de natureza

jurídica administrativa, judicial ou legislativa. Pode ainda ser composto por um sistema misto

com decisões tomadas e revistas por órgãos de natureza legislativa-judicial, legislativa-

administrativa ou judicial-legislativa (IDEA, 2010, p. 65).

Os primeiros sistemas de resolução de disputas e conflitos eleitorais apareceram

conjuntamente com a instalação das primeiras democracias representativas, ficando a decisão

final sobre eleições atribuída a assembleias legislativas. A modificação dessa prática teve

início com a transferência da competência para dar a última palavra em questionamentos

relativos a procedimentos e resultados eleitorais para órgãos da justiça comum, procedimento

inaugurado pelo Reino Unido na segunda metade do século XIX, em 1868, com a

judicialização das demandas e questionamentos sobre o processo eleitoral para representantes

do parlamento (IDEA, 2010, p. 62 e ss).

Essa prática se difundiu, sendo por fim adotada por diversas democracias

representativas ao longo do século XX, ainda que alguns países tenham mantido a forma

original de atribuir a órgãos políticos as decisões finais sobre os questionamentos do processo

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eleitoral ou adotado a prática de compartilhar poderes para solução de conflitos entre órgãos

do poder legislativo e executivo ou entre o poder legislativo e o poder judiciário.

O modelo que atribui a órgãos políticos a responsabilidade por decidir a respeito

dos conflitos eleitorais foi adotado, por exemplo, pela França ao longo do século XVIII até a

constituição de 1958, e nos Estados Unidos desde 1787. A motivação para o estabelecimento

deste modelo era a separação e independência dos poderes tradicional, mas o abuso de tais

prerrogativas levou à necessidade de transferir o arbitramento de disputas eleitorais para um

órgão que fosse visto como neutro em relação a disputas políticas.

A judicialização dos procedimentos eleitorais ganhou destaque no mundo

contemporâneo com a competência em matéria eleitoral atribuída à justiça comum, a cortes

constitucionais, administrativas ou especializadas em matéria eleitoral. Colaborou

decisivamente para essa transformação a adoção do sistema presidencialista por diversos

países e a necessidade de solucionar problemas em nível nacional nas votações para

presidente. Assim, a adoção do modelo que atribui a órgãos do poder judiciário a palavra final

sobre disputas, conflitos e resultados eleitorais difundiu-se amplamente durante o século XX.

A lógica, a racionalidade e a estrutura de funcionamento do poder judiciário são percebidas

como forma legitima para compor conflitos e certificar resultados eleitorais. Muitos são os

países que adotam esse modelo (IDEA, 2010, p. 76 e ss).

A jurisdição eleitoral final é conferida a órgãos regulares do poder judiciário ou a

cortes constitucionais, entre outros, nos seguintes países: Áustria, Alemanha, Brasil, Reino

Unido, Austrália, Paquistão, Jamaica, Canada, Índia. Note-se que para esta hipótese há uma

ampla variedade de possibilidades conforme o sistema estabelecido para cada país, visto que

as decisões podem ser tomadas por órgãos do poder judiciário e questionadas em última

instância na suprema corte, como no Brasil, ou podem ser tomadas, por exemplo, por órgãos

de gestão eleitoral – OGEs independentes e questionados em última instância na corte

suprema ou corte constitucional, como ocorre na Austrália, Canadá e Índia. Alguns países

entregaram a jurisdição eleitoral a cortes administrativas, como por exemplo Colômbia e

Finlândia.

O modelo de SRDE que adota corte especializada em matéria eleitoral com

independência funcional, tanto como parte do Poder Judiciário ou como uma corte

independente dos três poderes governamentais, confere a estes órgãos poderes para solução

final de disputas eleitorais. Este modelo foi inicialmente adotado no Uruguai, em 1924, com a

criação da Corte Eleitoral do Uruguai, sendo em seguida previsto pela constituição chilena no

ano 1925 com a criação do Tribunal Certificador das Eleições do Chile.

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225

A longo do século XX, a adoção do modelo de SRDE com corte eleitoral

especializada e independente difundiu-se em diversos países da América Latina, contribuindo

significativamente para o processo de democratização e consolidação democrática dos países

da região, especialmente a partir da terceira onda de democratização do último quarto do

século. Pelo critério apresentado acima, somente integram a categoria de cortes eleitorais

especializadas aqueles tribunais que possuem a decisão final sobre as disputas e resultados

eleitorais e da qual não caibam mais recurso para qualquer outra instancia judicial ou

constitucional. Estes órgãos são cortes eleitorais especializadas, autônomas e independentes

com a função exclusiva de resolver disputas do processo eleitoral, não tendo qualquer

responsabilidade de gestão sobre as eleições. Adotam este modelo, por exemplo, os seguintes

países: Chile, Republica Dominicana, Equador, México, Peru, Albânia, Grécia, Autoridade

Palestina, África do Sul e Suécia. Vale registrar que a autoridade julgadora pode integrar ou

não o Poder Judiciário, sendo requisitos essenciais ser órgão especializado em julgar matéria

eleitoral e a independência (IDEA, 2010, p. 74).

Diferenciam-se do modelo de corte eleitoral especializada aqueles sistemas de

justiça eleitoral que possuem órgãos judiciais eleitorais especializados cujas decisões podem

ser questionadas em termos constitucionais perante a corte constitucional ou perante outro

órgão do Poder Judiciário. Há ainda SRDE com órgão independente de Justiça Eleitoral, mas

que pode ter sua decisão final questionada por corte constitucional, hipótese de países como

El Salvador, Honduras, Panamá e Guatemala. As cortes eleitorais especializadas do Brasil e

do Paraguai integram o Poder Judiciário sendo as demais cortes eleitorais especializadas

independentes (IDEA, 2010, p. 74).

Quando é atribuído ao mesmo órgão ou conjunto de órgãos a responsabilidade

para gerir o processo eleitoral e para solucionar as disputas que emergem ao longo deste

processo – sendo deste a decisão final -, ou seja, agem como Órgão de Gestão Eleitoral –

OGE e como Sistema de Resolução de Disputas Eleitorais - SRDE, estes devem ser

classificados como órgão de gestão eleitoral com poderes judiciais. Nesta hipótese figuram as

justiças eleitorais dos seguintes países: Costa Rica, Nicarágua e Uruguai (IDEA, 2010, p. 74).

Na América Latina encontram-se cortes eleitorais especializadas com poderes

para resolução final das demandas eleitorais. Muitos órgãos eleitorais autônomos e

independentes da região concentram poderes administrativos, judiciais e mesmo regulatórios.

Entretanto, estas atribuições podem estar divididas entre duas autoridades especializadas,

independentes e autônomas, ficando os aspectos administrativos, operacionais, de gestão e

supervisão com o órgão gestor das eleições – OGEs – e a competência para solucionar

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conflitos e questionamentos quanto ao processo e ao resultado das eleições com a autoridade

especializada autônoma e independente com poderes jurisdicionais, SRDEs.

Alguns sistemas combinam a possibilidade de apresentação de demandas para um

órgão gestor das eleições com posterior apelo para um órgão judicial eleitoral independente e

autônomo – como no Chile, Republica Dominicana e Equador – e em outros o órgão de

apelação faz parte do próprio judiciário – como por exemplo no México e na Venezuela.

As cortes eleitorais especializadas da África do Sul, Suécia e Autoridade Palestina

funcionam de forma autônoma e independente de qualquer poder do Estado (IDEA, 2010, p.

75).

Os órgãos gestores das eleições da Costa Rica e do Uruguai apresentam-se como

modelos de extremo sucesso de independência e autonomia na condução do processo

eleitoral, uma vez que são detentores de enorme credibilidade e profissionalismo na condução

de suas atividades (IDEA, 2014, p. 77).

5.2.3 Princípios e garantias dos Sistemas de Resolução de Disputas Eleitorais - SRDE

A independência e autonomia dos Sistemas de Resolução de Disputas Eleitorais –

SRDE depende diretamente da expressa previsão de garantias estruturais e de garantias

judiciais na legislação eleitoral, como é explicado no manual. Tais garantias permitem que o

órgão de justiça eleitoral possa atuar livre de pressões políticas do parlamento, da

administração governamental, de partidos políticos e demais partes interessadas, tomando

decisões orientadas por critérios racionais, imparciais e constitucionais (IDEA, 2010, p. 83).

As garantias estruturais são definidas conforme os seguintes princípios para

condução das atividades de um sistema de justiça eleitoral (IDEA, 2010, p. 89):

- independência do SRDE;

- independência e imparcialidade dos membros do SRDE;

- regime de accountability e responsabilização do SRDE e de seus membros;

- integridade e profissionalismo dos membros e do corpo funcional do SRDE;

- independência financeira e sustentabilidade do SRDE.

A independência e autonomia no desempenho das atribuições do sistema de

justiça eleitoral normalmente são previstas na Constituição. Diz-se que há independência

funcional quando sua estrutura está separada de qualquer outro órgão e age sem subordinação

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institucional, ou seja, a independência funcional caracteriza-se pela ausência de subordinação

das decisões da instituição outro órgão hierarquicamente superior, ficando estas subordinadas

apenas à legislação eleitoral e à constituição. A revisão constitucional de suas decisões não

descaracteriza a independência funcional.

O fato do SRDE pertencer ao poder judiciário, no qual existam órgãos superiores

como supremas cortes ou cortes constitucionais, não significa a caracterização da

possibilidade de recurso improprio, hipótese capaz de afetar o atributo de independência. A

revisão de suas decisões em bases constitucionais perante a corte constitucional não

descaracteriza a independência do órgão.

Como exemplo de independência de uma corte eleitoral especializada é possível

citar o Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación, a mais alta autoridade judicial

no México em relação à matéria eleitoral.

Outro exemplo interessante de independência de um SRDE é o previsto na

constituição da Costa Rica que atribui ao Supremo Tribunal Eleitoral a competência exclusiva

para organizar, dirigir e supervisionar todo o processo eleitoral, ou seja, esta instituição

funciona tanto como órgão gestor das eleições como também funciona como órgão

responsável pela resolução de disputas eleitorais, ou seja, como OGE e como EDRB. No

Brasil o Tribunal Superior Eleitoral e a Justiça Eleitoral também funcionam de forma

independente, com atribuições de gerir o processo eleitoral e resolver os conflitos e disputas

dele emergentes. A diferença é que na Costa Rica a competência da justiça eleitoral é

exclusiva não cabendo sequer recursos com questionamentos constitucionais para a corte

constitucional, como ocorre no Brasil (IDEA, 2010, p. 89 e ss).

Vale registrar ainda que a legislação eleitoral de alguns países atribui

significativos poderes normativos às cortes eleitorais especializadas dotando-a de poderes

para expedir normas, resoluções, instruções ou regulamentos e para responder a consultas.

Alguns órgãos gestores das eleições com competência jurisdicional eleitoral também recebem

poderes normativos como, por exemplo, as autoridades eleitorais da Republica Dominicana,

de El Salvador e do Uruguai. No Equador e no Peru são concedidos poderes inclusive para

apresentação de projetos de lei em matéria eleitoral (IDEA, 2010, p. 89 e ss).

Relacionam-se ainda com a independência e imparcialidade dos sistemas

eleitorais a previsão expressa das seguintes garantias: previsão de independência e

imparcialidade na Constituição, a fixação prévia do processo de escolha de seus membros e a

definição de requisitos técnicos e profissionais, a previsão de estabilidade, remuneração

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adequada, a previsão das incompatibilidades com o exercício do cargo, a previsão de regras

para afastamento por impedimento ou suspeição (IDEA, 2010, p. 89 e ss).

A previsão de estrutura de prestação de contas e de responsabilização,

accountability, das atividades da justiça eleitoral e de seus membros é essencial para o

comprometimento da instituição com um processo eleitoral íntegro, sendo seus princípios

guia a transparência e a publicidade das atividades institucionais e dos atos de seus dirigentes

e do seu corpo funcional.

A credibilidade da autoridade eleitoral é diretamente impactada pela transparência

e publicidade em relação à performance das diversas atividades do órgão, sejam estas de

gestão, jurisdicional e ou quanto à utilização e alocação de recursos. É importante que suas

atividades possam ser acompanhadas pela sociedade, constituindo boa prática a elaboração e

divulgação periódica de relatórios demonstrando que sua atuação está alinhada com a

constituição e com a legislação eleitoral.

Quanto à estrutura de responsabilização esta garante que os membros e os

integrantes do quadro funcional tenham independência para atuar, na medida em que assegura

sua permanência e remoção nos termos previamente previstos em lei e através do devido

processo legal, fixando ainda mecanismos para imposição de responsabilização civil, penal e

administrativa para desvios de função ou na hipótese da prática de ilícitos, funcionando estas

como garantias para a instituição.

A integridade institucional ampara-se no compromisso público e explicito que os

gestores e o corpo funcional assumem de manter conduta íntegra e de prestar serviços

eleitorais de excelência. A explicitação das razões de decidir, a adequada fundamentação de

seus atos e o alinhamento com os princípios constitucionais e de direitos humanos, e ainda

com a legislação eleitoral permitem entregar à sociedade maior grau de certeza jurídica e

coerência, favorecendo a confiança nas ações institucionais, a proteção dos direitos políticos

eleitorais e a integridade do processo eleitoral.

Ao lado das garantias estruturais, as garantias procedimentais visam a prévia

fixação e a correta compreensão das normas e procedimentos eleitorais, de forma que as

regras do jogo sejam dadas antecipadamente e fiquem claras para todas as partes interessadas.

Configuram-se como garantias procedimentais: transparência, clareza e simplicidade das

normas que regulam os procedimentos para acesso à justiça eleitoral e defesa dos direitos

políticos eleitorais; a publicidade e consistência na aplicação dessas normas aos

procedimentos; acesso efetivo em termos de espaço, tempo, custo e oportunidade à um

sistema de resolução de conflitos e disputas eleitorais efetivo que garanta a todos o direito de

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229

ser ouvido e de receber uma resposta; direito de defesa ou de audiência com previa definição

do devido processo para os litigantes; pleno respeito às decisões e julgamentos; consistência e

integridade na interpretação e aplicação da lei (IDEA, 2010, p. 89 e ss).

A consistência, coerência e racionalidade na interpretação e aplicação de

princípios e normas eleitorais é resultado de uma atuação independente e autônoma do

sistema de justiça eleitoral, livre de pressões política ou quaisquer outras circunstancias que

possam interferir na formação legitima de decisões sobre o processo eleitoral.

Os requisitos de acesso à justiça e de certeza jurídica dependem de clara

compreensão pelas partes interessadas do devido processo e dos mecanismos disponíveis para

defesa de seus direitos políticos eleitorais durante todas as etapas do processo eleitoral.

O conteúdo da legislação eleitoral deve ser amplamente divulgado e os

procedimentos para exercício e defesa de direitos devem ser claros, assim como deve ser

transparente e consistente a atuação dos dirigentes da justiça eleitoral. O direito fundamental

de acesso à justiça eleitoral somente possui efetividade se todas as partes interessadas tiverem

condições de compreender adequadamente o funcionamento do sistema eleitoral e seus

procedimentos, seus prazos e se for possível ter acesso efetivo, no tempo adequado, ao órgão

jurisdicional e a uma resposta efetiva para sua demanda.

O fator tempo, a oportunidade, é questão determinante para a defesa e efetividade

dos direitos políticos eleitorais e para os procedimentos eleitorais, na medida em que os

prazos do processo eleitoral são muito curtos e ininterruptos. Os procedimentos eleitorais

devem ser oportunos, ou seja, a resposta a uma demanda deve ser dada prontamente, nos

marcos temporais previstos na legislação e no calendário eleitoral. Decisões tomadas fora do

prazo legal são fontes de injustiça e podem trazer máculas impossíveis de serem sanadas

afetando diretamente a legitimidade do processo eleitoral e dos resultados das eleições.

O EDRS precisa levar em conta os períodos de tempo extremamente exíguos que

se sucedem entre as diversas fases do processo eleitoral e à necessidade de encerramento de

cada fase antes do início da subsequente. O equilíbrio entre prazos curtos e as garantias do

devido processo eleitoral demandam estrutura adequada para funcionamento dos sistemas de

justiça eleitoral e obediência estrita aos prazos para apresentar demandas e para apresentação

de solução, sob pena de danos ao processo eleitoral.

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230

5.3 Autoridade Reguladora Eleitoral

O desenho institucional das autoridades que irão cuidar do processo eleitoral é

uma das decisões mais importantes para a implementação de uma estrutura de democracia

representativa, visto que será destas autoridades a responsabilidade por criar e sustentar as

condições para o aprofundamento democrático e a responsabilidade por garantir integridade

ao processo eleitoral.

Ao longo do século XX eleições foram realizadas por órgãos incumbidos de

organizar sua logística e por dirimir seus conflitos, e nesse contexto já foi possível perceber,

desde a primeira metade do século, movimentos de separação entre as atividades de órgãos

compostos por poderes políticos eleitos e as atividades de órgãos eleitorais, como forma de

estabilizar o sistema político e reduzir conflitos, enfim, como forma de legitimar e tornar

aceitos os resultados das urnas.

Inicialmente, a responsabilidade pela condução do processo eleitoral respeitou a

clássica tripartição de poderes com atribuição dessa atividade para órgãos do poder

legislativo. A seguir, ainda respeitando esta ideia, o julgamento de conflitos decorrentes de

disputas eleitorais foi entregue a cortes judiciais.

Em um segundo momento, os novos desafios contemporâneos para a realização de

eleições íntegras e para manutenção da coesão social radicalizaram esse movimento e levaram

a uma ruptura com a estrutura tradicional de partição de poderes, o que resultou na separação

funcional e na independência de diversos órgãos eleitorais em diversos países.

Na prática, significou o uso de direito regulador e a correspondente atribuição de

função regulatória autônoma pelo parlamento para órgãos eleitorais. Essas circunstâncias

trouxeram expressivas transformações para os sistemas eleitorais impondo a reorganização do

sistema político. Estudos sobre Governança Eleitoral passaram a ser relevantes nesse novo

contexto.

Após analisar os principais componentes da arquitetura institucional eleitoral –

Órgão de Gestão Eleitoral e o Sistema de Justiça Eleitoral -, é chegado o momento de

correlacionar a arquitetura eleitoral com a institucionalização dos níveis de governança

eleitoral previamente apresentados e verificar as consequências decorrentes.

A governança eleitoral tradicional e a correspondente arquitetura institucional

eleitoral podem ser representadas conforme figura a seguir.

Page 231: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

LEGISLAÇÃO ELEITORALARQUITETURA INSTITUCIONAL ELEITORALSOCIEDADE CIVIL E CIDADÃOSPARTES INTERESSADAS NO PROCESSO ELEITORAL

CULTURA POLÍTICA

GOVERNANÇA ELEITORAL TRADICIONAL

ELABORAÇÃO DE NORMASAPLICAÇÃO DE NORMASADJUDICAÇÃO DE NORMAS

PODER LEGISLATIVOOGE - ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORALEJS - SISTEMA DE JUSTIÇA ELEITORAL

SISTEMA ELEITORAL

SISTEMA PARTIDÁRIO

231

Figura 5: Governança Eleitoral TradicionalFonte: elaborado pelo autor.

A governança eleitoral tradicional prevê a distribuição de competências conforme

o modelo tradicional de partição de poderes e, nessa perspectiva, a atribuição de elaboração

de normas é exclusiva do poder legislativo. O órgão de gestão eleitoral é responsável pela

aplicação de normas e quanto às normas de gestão eleitoral cabe a estes apenas o poder

regulamentar tradicional. O sistema de justiça eleitoral é responsável pela adjudicação de

normas e pela tradicional regulação eleitoral.

A arquitetura institucional conforme o modelo de governança eleitoral tradicional

é construído respeitando a distribuição clássica de poderes do Estado: o poder legislativo é

responsável pela elaboração de normas, há um ou mais órgãos responsáveis pela gestão das

eleições e um sistema de justiça eleitoral previsto para solucionar as disputas que resultam do

processo eleitoral. A normatização das eleições é integralmente realizada pelo poder

legislativo no uso de suas atribuições regulares e os demais órgãos quando utilizam poder

regulamentar apenas o fazem através de poder regulamentar tradicional e limitado.

Como visto, as transformações das relações sociais e da atuação estatal, ao longo

do século XX, culminaram com a radicalização da separação dos órgãos eleitorais das

estruturas tradicionais de poder político e com a atribuição de função regulatória autônoma

para tais instituições em graus variados. Essa foi a fórmula encontrada para reduzir conflitos,

Page 232: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

LEGISLAÇÃO ELEITORAL ARQUITETURA INSTITUCIONAL ELEITORAL SOCIEDADE CIVIL E CIDADÃOS

PARTES INTERESSADAS NO PROCESSO ELEITORAL

CULTURA POLÍTICA

NOVA GOVERNANÇA ELEITORAL

ELABORAÇÃO DE NORMASAPLICAÇÃO DE NORMAS ADJUDICAÇÃO DE NORMASREGULAÇÃO ATRAVÉS DE NORMAS

SISTEMA ELEITORAL

SISTEMA PARTIDÁRIO

AUTORIDADE REGULADORA ELEITORAL

232

buscar consensos políticos mínimos e garantir patamares aceitáveis de integridade para o

processo eleitoral frente à acirradas disputas de interesses contingentes.

Sem dúvida a universalização do sufrágio e a inclusão de parcela cada vez mais

significativa da sociedade no processo político contribuiu para essa solução, visto que o poder

legislativo como manifestação vitoriosa de forças políticas circunstanciais deixou de

representar exclusivamente a tão fragmentada vontade popular contemporânea.

Os órgãos eleitorais ao longo do século XX transformaram-se para fazer face a

novas exigências de legitimidade e ganharam vestes de autoridades reguladoras e de cortes

judiciais, enquanto canais de legitimação e representação das novas formas de legitimidade.

O impacto de tais transformações foi a configuração de uma nova forma de governança

eleitoral com alteração da natureza jurídica dos órgãos eleitorais e a exigência de novas

formas de legitimidade para sua atuação, sob pena de enfraquecimento e até mesmo ruptura

do sistema de direitos, acirramento de conflitos e desintegração dos canais de circulação de

poder político.

A definição da arquitetura institucional eleitoral consideradas as diferentes e

novas formas de combinar os níveis de governança eleitoral e da correspondente atribuição de

poder regulamentar autônomo mudou a natureza dos órgãos eleitorais e atribuiu a estes graus

diferenciados de autonomia. Nesse contexto, foram criadas autoridades reguladoras eleitorais,

semelhantes em alguns aspectos ao formato de agência. A figura abaixo indica essa

transformação.

Figura 6: Nova Governança EleitoralFonte: elaborado pelo autor

Page 233: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

233

Para esta avaliação, assume-se que a distribuição de competências relacionadas à

dimensão de Elaboração de Normas – Normas da Competição Eleitoral e Normas de

Regulação Eleitoral – é determinante para caracterizar um órgão eleitoral como uma

autoridade reguladora eleitoral ou não, na medida em que as normas de governança eleitoral

podem resultar do exercício de poder regulamentar tradicional ou do exercício de função

regulatória autônoma. Como visto anteriormente, na hipótese de atribuição de função

regulatória autônoma para um órgão eleitoral, uma nova dimensão é adicionada à governança

eleitoral: a dimensão de regulação através de normas.

Note-se que aqui está sendo discutida a dimensão elaboração de normas da

Governança Eleitoral apenas quanto às normas de regulação eleitoral, sendo certo que não há

qualquer dúvida quanto à competência do poder legislativo para elaborar normas da

competição eleitoral.

A arquitetura institucional eleitoral de Sistemas Eleitorais pode assumir variados

formatos para atender às peculiaridades do sistema político-jurídico de cada país. A partir da

consulta aos manuais publicados pela International IDEA e conforme a base de dados

disponibilizada pela mesma instituição a partir da pesquisa elaborada junto a 217 órgãos

eleitorais, Global Database on Elections and Democracy, verifica-se que, em geral, a

arquitetura institucional eleitoral de um país é composta pelas múltiplas formas de se

combinar a distribuição de funções/poderes entre um Órgão Gestor das Eleições - OGE e um

Sistema de Justiça Eleitoral – SJE.

A correta identificação de uma autoridade reguladora eleitoral e do papel que esta

representa dependem então da forma como a arquitetura do sistema eleitoral é estabelecida,

ou seja, de como a governança eleitoral é instituída e de que instituições eleitorais ela é

composta. Os órgãos ou instituições eleitorais podem então assumir naturezas jurídicas

diversas conforme a combinação dos níveis de governança eleitoral e o uso ou não poder

regulador pelo poder legislativo com atribuição de função regulatória autônoma para órgãos

eleitorais. Algumas possibilidades são apresentadas no quadro a seguir.

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234

Quadro 4: Natureza do Órgão Eleitoral conforme distribuição dos Níveis de Governança Eleitoral

NIVEIS DE GOVERNANÇA ELEITORAL

ÓRGÃOS ELEITORAISELABORAÇÃO DE NORMAS

APLICAÇÃO DE NORMAS

ADJUDICAÇÃO DE NORMASREGULAÇÃO ATRAVÉS DE NORMAS

NATUREZA DO ÓRGÃO ELEITORALNORMAS DE REGULAÇÃO

ELEITORAL - FUNÇÃO REGULATÓRIA TRADICIONAL

NORMAS DE REGULAÇÃO ELEITORAL - FUNÇÃO

REGULATÓRIA AUTÔNOMA

PODER ADMINISTRATIVO

PODER JURISDICIONAL

ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORAL - OGE - COM PODER REGULAMENTAR

TRADICIONALSIM NÃO SIM NÃO NÃO NÃO

ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORAL COM COMPETÊNCIA ADMINISTRATIVA

TRADICIONAL

ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORAL - OGE - COM FUNÇÃO REGULATÓRIA

AUTÔNOMASIM SIM SIM SIM NÃO SIM ÓRGÃO REGULADOR ELEITORAL

ÓRGÃO DE RESOLUÇÃO DE DISPUTAS ELEITORAIS COM PODER

REGULAMENTAR TRADICIONALSIM NÃO NÃO SIM NÃO NÃO

ÓRGÃO DE RESOLUÇÃO DE DISPUTAS ELEITORAIS ADMINISTRATIVO

ÓRGÃO DE RESOLUÇÃO DE DISPUTAS ELEITORAIS COM PODER

REGULAMENTAR TRADICIONAL E PODER JURISDICIONAL

SIM NÃO NÃO NÃO SIM NÃOÓRGÃO DE RESOLUÇÃO DE

DISPUTAS ELEITORAIS JUDICIAL

ÓRGÃO DE RESOLUÇÃO DE DISPUTASELEITORAIS COM FUNÇÃO

REGULATÓRIA AUTÔNOMA SEM PODER JURISDICIONAL

SIM SIM NÃO SIM NÃO SIM ÓRGÃO REGULADOR ELEITORAL

ÓRGÃO DE RESOLUÇÃO DE DISPUTAS ELEITORAIS COM FUNÇÃO

REGULATÓRIA AUTÔNOMA E PODERES JURISDICIONAIS

SIM SIM NÃO NÃO SIM SIMÓRGÃO REGULADOR ELEITORAL

COM PODER JURISDICIONAL

ÓRGÃO ELEITORAL COMCOMPETÊNCIAS DE OGE E SRDE COM FUNÇÃO REGULATÓRIA AUTÔNOMA SEM PODER JURISDICIONAL - SUJEITO

A CONTROLE JUDICIAL

SIM SIM SIM SIM NÃO SIMAUTORIDADE REGULADORA

ELEITORAL

ÓRGÃO ELEITORAL COM COMPETÊNCIAS DE OGE E DE SRDE

COM FUNÇÃO REGULATÓRIA AUTÔNOMA,COM A PALAVRA FINAL EM MATÉRIA ELEITORAL

SIM SIM SIM SIM NÃO SIMAUTORIDADE REGULADORA

ELEITORAL HÍBRIDA DE NATUREZA JURÍDICA ADMINISTRATIVA

ÓRGÃO ELEITORAL COM COMPETÊNCIAS DE OGE E DE SRDE

COM FUNÇÃO REGULATÓRIA AUTÔNOMA E PODER JURISDICIONAL

SUJEITO APENAS A CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

SIM SIM SIM SIM SIM SIMAUTORIDADE REGULADORA

ELEITORAL HÍBRIDA, DE NATUREZA JURÍDICA JUDICIAL

ÓRGÃO ELEITORAL COM COMPETÊNCIAS DE OGE E DE SRDE

COM FUNÇÃO REGULATÓRIA AUTÔNOMA E PODER JURISDICIONAL

COM A PALAVRA FINAL EM MATÉRIA ELEITORAL

SIM SIM SIM SIM SIM SIMAUTORIDADE REGULADORA

ELEITORAL HÍBRIDA, DE NATUREZA JURÍDICA JUDICIAL

Fonte: preparado pelo autor.

A combinação dos dois primeiros níveis de governança eleitoral, Elaboração de

Normas e Aplicação de Normas, através da atribuição das respectivas competências para um

mesmo ente pode ter pelo menos dois resultados: um Órgão de Gestão Eleitoral com

competência regulamentar tradicional ou um Órgão Regulador Eleitoral com competência

regulamentar autônoma. Tal órgão regulador poderá ter características de agência reguladora

se atender aos critérios de autonomia e independência previstos pela literatura jurídica,

conforme apresentado na primeira parte desse trabalho.

A combinação do primeiro nível e do terceiro nível da Governança Eleitoral,

Elaboração de Normas e Adjudicação de Normas, através da atribuição dos respectivos

poderes para um mesmo ente pode ter pelo menos quatro resultados: um Órgão de Resolução

de Disputas Eleitorais Administrativo com competência regulamentar tradicional, um Órgão

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235

de Resolução de Disputas Eleitorais Judicial com competência regulamentar tradicional e

poderes jurisdicionais, ou um Órgão Regulador Eleitoral com poderes semelhantes aos de

uma agência reguladora se atender aos critérios de autonomia e independência mas sem

poderes jurisdicionais, ou ainda um Órgão Regulador Eleitoral com Poder Jurisdicional, e

portanto com poderes mais amplos do que o de uma agência reguladora contemporânea.

A associação de poder regulamentar autônomo a qualquer dos outros níveis da

governança eleitoral implica na criação do seu quarto nível: regulação através de normas.

A última combinação que se deseja explorar é a conjugação de todos os níveis de

Governança Eleitoral em um mesmo órgão – Elaboração de Normas, Aplicação de Normas e

Adjudicação de Normas. Nesta quarta hipótese, são quatro as possibilidades: Um Órgão

Eleitoral com poderes de OGE e de SRDE, com função regulatória autônoma sem poder

jurisdicional, sujeito à revisão judicial de seus atos, equivalente a uma autoridade reguladora

independente – Autoridade Reguladora Eleitoral; um Órgão Eleitoral com poderes de OGE e

de SRDE, com poder regulamentar autônomo, com a palavra final em matéria eleitoral –

Autoridade Reguladora Eleitoral híbrida de natureza jurídica administrativa; um Órgão

Eleitoral com poderes de OGE e de SRDE, com poder regulamentar autônomo e poder

jurisdicional, sujeito apenas a controle de constitucionalidade – Autoridade Reguladora

Eleitoral híbrida, de natureza jurisdicional; um Órgão Eleitoral com poderes de OGE e de

SRDE, com poder regulamentar autônomo e poder jurisdicional, com a palavra final sobre

conflitos eleitorais – Autoridade Reguladora Eleitoral híbrida, de natureza jurisdicional.

A combinação dos três níveis de governança eleitoral em um mesmo ente, com

uso de direito regulador, necessariamente implica na criação do quarto nível de Governança

Eleitoral, Regulação através de Normas, e na atribuição de independência e autonomia.

Um órgão eleitoral que exerça todas as dimensões da governança eleitoral e que

faça uso de função regulatória autônoma, necessariamente configura-se como uma autoridade

reguladora autônoma, pois necessariamente agrega seus poderes típicos e atende aos

requisitos de autonomia e independência.

Os órgãos eleitorais que detém todos os níveis da governança eleitoral, possuem

autonomia e independência, com poder regulamentar autônomo, sujeitos apenas a controle de

constitucionalidade ou com a palavra final em matéria eleitoral, constituem um tipo especial

de autoridade reguladora independente: constituem-se como uma Autoridade Reguladora

Page 236: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

236

Eleitoral híbrida pois além de funcionar como autoridade reguladora independente também

funcionam como poder jurisdicional ou como instância final de decisão em matéria eleitoral.

Como é possível observar no quadro apresentado, a combinação dos níveis de

governança eleitoral e a correspondente distribuição de competências entre órgãos eleitorais

resultam em instituições eleitorais de natureza jurídica distinta, com diferentes gradações de

autonomia e independência, e, portanto, com diferentes graus e formas de apropriação de

discursos. Resta claro que os requisitos para uma atuação legítima de órgãos eleitorais irão

depender do tipo de arquitetura eleitoral instituída e da forma como a governança eleitoral foi

estabelecida pelo ordenamento jurídico em análise, pois a cada um corresponderá exigências

diferentes de legitimidade.

Os constantes debates sobre os limites para a atuação de instituições eleitorais e

sobre sua eficiência/ineficiência para regular o processo eleitoral devem considerar os

diferentes incentivos e circunstâncias que se apresentam para os órgãos eleitorais, conforme

sua natureza. Sem essa avaliação, é muito difícil aferir adequadamente os desafios que se

apresentam para a governança eleitoral contemporânea.

A função regulatória autônoma em matéria eleitoral, em geral, tem sido atribuída

ou em conjunto com a competência para gerir o processo eleitoral, ou em conjunto com a

competência para solucionar disputas, ou ainda conjugada às duas competências

simultaneamente, como identificado na base de dados da International IDEA.

A consequência é que a adição da nova dimensão regulatória à governança

eleitoral, pela atribuição de função regulatória autônoma à autoridade eleitoral, modifica a

natureza jurídica do órgão eleitoral e, portanto, modifica a institucionalização de princípios do

Estado de direito relacionados ao Sistema Eleitoral, exigindo uma nova institucionalização do

princípio da separação de poderes, com correspondentes procedimentos de legitimação.

E como apontado acima, a natureza jurídica do órgão eleitoral não só é

modificada como são criadas instituições com graus diferenciados de autonomia, sendo

possível reconhecer desde órgãos eleitorais reguladores independentes, com características e

poderes semelhantes a agências reguladoras, passando por Autoridades Reguladoras Eleitorais

e Autoridades Reguladoras Eleitorais com poderes jurisdicionais, que somente podem ser

questionados em bases constitucionais, até Autoridades Reguladoras Eleitorais com a palavra

final em matéria eleitoral. Nas duas últimas hipóteses, a Autoridade Reguladora Eleitoral

pode ser classificada como uma autoridade híbrida por possuir poderes ainda mais amplos do

que os associados às autoridades reguladoras no formato contemporâneo, visto que possuem

Page 237: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

237

poder jurisdicional especializado e exclusivo em matéria eleitoral. E essa questão pode ser

ainda mais complexa se for considerada a hipótese na qual membros das cortes

constitucionais venham a integrar tais órgãos eleitorais autônomos, caso do Brasil.

O reconhecimento da existência de autoridades reguladoras eleitorais muda

completamente a perspectiva para análise de órgãos eleitorais e principalmente, para esta

pesquisa, da Justiça Eleitoral brasileira. Avaliar o desempenho de uma Justiça Eleitoral que

detém todos poderes da governança eleitoral, como é o caso brasileiro, conforme padrões

tradicionais de análise do Poder Judiciário no mínimo desconsidera variáveis extremamente

relevantes para o seu desempenho e na pior das hipóteses encobre lacunas diversas de

legitimidade, dificultando o alinhamento de sua atuação com padrões de integridade eleitoral

e o devido controle de seus atos.

Uma autoridade reguladora eleitoral que se auto programa, porque autônoma e

independente, a partir do uso de direito regulador delegado pelo poder legislativo, deve criar

os meios para compensar legitimamente a ausência de imperatividade do direito assim

formulado.

E o primeiro passo é reconhecer que a autoridade eleitoral faz uso de função

regulatória autônoma.

Os discursos de aplicação gerados a partir da função regulatória autônoma pelas

autoridades eleitorais, para serem legítimos, necessitam da correspondente complementação

dos discursos de fundamentação, necessitam, portanto, de legitimação suplementar em fóruns

para solução de controvérsias públicas com a participação informada e influente dos

envolvidos.

As normas de efeito vinculante expedidas pelos órgãos eleitorais, no uso de

função regulatória, necessitam de validação em arenas adequadas a fim de que sejam

construídos consensos intersubjetivos e densificados sentidos capazes de estabilizar o

exercício dos direitos políticos de participação, o devido processo eleitoral e o sistema de

direitos.

Órgãos eleitorais que exercem função regulatória autônoma então possuem o ônus

de realizar escolhas políticas, escalonar bens e finalidades e implementar programas de leis

abertos que demandam a utilização de argumentos normativos.

Isso significa que o órgão regulador, na hipótese em que atua como autoridade

reguladora eleitoral, atua de forma política, realiza escolhas e abandona a pretensa

neutralidade da clássica tripartição de poderes. Deixa de ser mero intermediário entre

cidadãos e Estado, como no modelo de Estado Liberal, para adotar postura prospectiva.

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238

Essa mudança de configuração da arquitetura eleitoral equivale à uma mudança na

estrutura de circulação de poder político do Sistema Eleitoral e implica necessariamente em

novos requisitos de legitimidade e em novas formas de análise e de avaliação dos órgãos

eleitorais.

Aqui há a possibilidade real de mobilização de argumentos de justificação, ou

seja, de função quase-legislativa por juízes e por órgãos eleitorais especializados, tornando-se

imperativa a institucionalização de procedimentos voltados para suprir o déficit de

legitimidade decorrente dessa exigência suplementar de formas comunicacionais adequadas, a

fim de que a atuação dos órgãos eleitorais seja transparente e passível de controle.

Se não há apropriada identificação de autoridades reguladoras eleitorais e do

exercício de função regulatória autônoma correspondente, o Sistema Eleitoral fica sujeito à

insuficiente institucionalização do princípio da separação de poderes e, por consequência,

sujeito à insuficiente institucionalização de procedimentos de monitoramento e controle pelos

sujeitos da democracia. Fica refém de parâmetros arbitrários de eficiência e descolado de suas

fontes de legitimidade.

Este é o primeiro argumento racional para se identificar e nomear autoridades

reguladoras eleitorais. Esse primeiro argumento tem por referencial a democracia deliberativa.

A segunda razão teórica para se identificar e nomear autoridades reguladoras

eleitorais e autoridades reguladoras eleitorais com poderes híbridos refere-se ao papel que as

autoridades reguladoras independentes passaram a desempenhar no contexto contemporâneo,

na virada do século. Essa segunda justificativa tem por referencial a democracia complexa,

nos termos propostos por Pierre Rosanvallon.

A democracia representativa contemporânea, e por consequência o Sistema

Eleitoral, constrói sua coesão e legitimidade sobre elementos constitutivos múltiplos:

legitimidade eleitoral, legitimidade do serviço público, legitimidade da imparcialidade,

legitimidade da reflexividade e legitimidade de atenção ao particular. Como registrado

anteriormente, a soberania popular se manifesta de forma complexa através de múltiplos

sujeitos e múltiplas temporalidades.

Nesse sentido, o Sistema Eleitoral também passou a possuir dimensões temporais

múltiplas, assim como formas de expressão diferenciadas: o exercício de direitos eleitorais, no

curto prazo de um processo eleitoral e na forma e no tempo das urnas; sua configuração e

reconfiguração pelos influxos recebidos da esfera pública deliberativa, na dimensão temporal

e espacial de médio prazo dos mandatos políticos e dos ciclos eleitorais de médio prazo para

elaboração de normas e regulação de atividades eleitorais e partidárias; os direitos individuais

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239

e coletivos na linguagem e no tempo dimensionados para os devidos processos

administrativos e judiciais, no longo tempo da jurisprudência constitucional e das políticas

públicas produzidas.

O funcionamento atual do Sistema Eleitoral resulta de forças ambivalentes e

opostas, resulta da atuação de instituições de conflito e da atuação de instituições de consenso.

As instituições eleitorais de conflito, relacionadas às práticas partidárias subjetivas

da competição eleitoral-representativa, de um lado, e as instituições eleitorais de consenso,

relacionadas ao mundo objetivo das instituições da democracia indireta, as cortes

constitucionais/especializadas e as autoridades eleitorais independentes, de outro. Conflito e

consenso são duas faces da convivência democrática contemporânea que necessitam de igual

reconhecimento e legitimação.

Nesse contexto, as cortes constitucionais/especializadas em matéria eleitoral e as

autoridades eleitorais independentes funcionam para alinhar de forma dinâmica e permanente

as ações e políticas públicas em matéria eleitoral com o projeto constitucional e com o

horizonte da integridade eleitoral, permitindo a expressão da vontade geral sob perspectiva

múltipla, complexa e diferenciada. Fornecem corpo e voz para alcance das novas e precárias

formas de legitimidade.

A legitimidade eleitoral tradicional ampara-se no reconhecimento e aceitação

popular da “regra da maioria”, representando uma generalidade agregada de identificação que

se manifesta em termos quantitativos. Já a legitimidade eleitoral do sistema democrático

representativo contemporâneo implica na criação de espaços para a realização desinteressada

dos interesses de todos, ou seja, cidadãos preferem ser governados por princípios e interesses

voltados para a eliminação de privilégios e para a garantia de igual possibilidade a todos.

Nesse sentido, órgãos eleitorais tem por função assegurar condições de

legitimidade para produção do consenso, para o resultado legitimo do embate de ideias

eleitorais. A atuação legítima de órgãos eleitorais, enquanto instituições de consenso, permite

o alcance de resultados íntegros para o exercício de poder político pelas instituições de

conflito. E mais: se há autoridade reguladora autônoma é porque há atividade a ser regulada.

O não reconhecimento de autoridades reguladoras eleitorais impede o

reconhecimento de que a atividade partidária e intrapartidária, o acesso à arena política e o

impacto do dinheiro na política precisam ser regulados, para que o acesso à cargos políticos e

o exercício dos direitos eleitorais estejam alinhados com os princípios prospectivos de

integridade eleitoral.

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240

A ausência de marcos institucionais claros para regulação, fiscalização,

supervisão e controle da atividade partidária e do impacto do dinheiro na política sob o

argumento de que o poder legislativo deve ser soberano não se coaduna com a democracia

contemporânea. No Estado Liberal o poder legislativo detinha amplos poderes para

determinar como o processo eleitoral formal deveria funcionar, no Estado Democrático de

Direito o funcionamento do processo eleitoral, o devido processo eleitoral, somente pode ser

tido como legítimo se for conforme diretrizes de integridade eleitoral.

A separação dos órgãos eleitorais do poder político ocorreu exatamente pela

incapacidade do poder político de se autorregular perante uma vontade soberana fragmentada,

pela necessidade de existir um terceiro imparcial que regule a competição política para

garantir o “nivelamento do campo de batalha”, para que permaneçam abertas as possibilidades

de acesso à arena política para todos e para que a competição política seja percebida como

legítima por vencedores e perdedores.

Os órgãos eleitorais autônomos, nesse sentido, correspondem a uma forma de

poder representativo embora não sejam integradas por agentes eleitos. A representatividade

das autoridades reguladoras eleitorais ampara-se na acessibilidade, nos canais de diálogo

efetivo que estabelece com os sujeitos da democracia, para compor interesses, informar e

solucionar conflitos eleitorais. A legitimidade de sua atuação depende dos mecanismos de que

dispõe para proporcionar a todos os interessados influência nos processos de escolha das

formas pelas quais os conflitos eleitorais serão resolvidos. Depende ainda de estabelecer

procedimentos eleitorais que permitam levar em consideração todos os argumentos das partes

interessadas buscando superar perspectivas particulares e individuais para alcançar uma forma

de generalidade específica, a generalidade negativa. À esta generalidade corresponde a

legitimidade da imparcialidade, que pretende satisfazer a uma nova e complexa demanda por

unanimidade.

Sistemas Eleitorais e órgãos eleitorais também se relacionam com a generalidade

da multiplicação e com a correlata exigência de legitimidade reflexiva. A perspectiva

reflexiva exige a pluralização de manifestação do poder político, ao invés da separação, e a

regulação dos mecanismos do sistema majoritário. O exercício do direito de petição com os

correspondentes direitos de ser ouvido e de receber uma resposta fundamentada da autoridade

competente é por excelência procedimento de legitimidade reflexiva. O sistema de direitos é

também construído e legitimado pelo debate processual, pela interação entre as partes

interessadas e os órgãos de regulação eleitoral. A realização de consultas em tese, pelas

partes, com a respectiva resposta da autoridade reguladora mediante procedimento específico,

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241

e a participação em audiências públicas dos órgãos eleitorais para validar normas e

procedimentos para eleições apresentam-se como novas formas de manifestação de soberania

e de legitimação do sistema de direitos.

Na mesma linha de pensamento, no livro Juez y Democracia (SAGER, 2007), as

reflexões realizadas por Lawrece G. Sager buscam demonstrar que a prática democrática

contemporânea incorporou diferentes alternativas ao exercício monista da vontade popular

pelo parlamento previsto pela teoria liberal tradicional. Estas reflexões também são bastante

oportunas para a presente pesquisa. O autor volta sua atenção para a questão mais geral de

como a prática constitucional responde às críticas inspiradas no ideal democrático,

compreendendo que a teoria baseada na justiça é a que melhor sustenta o constitucionalismo

robusto em face de dúvidas democráticas. Para ele, a democracia direta, a democracia

representativa e os sistemas de governo que incluem juízes com autoridade e responsabilidade

de garantir a Constituição são diferentes alternativas para o exercício democrático.

Uma judicatura com competência constitucional, explica Sager (2007), possui

elementos que permitem o debate adequado sobre os direitos, tendo essa percepção levado

diversos Estados democráticos modernos a adotar Constituições escritas e a conferir à

instituição judicial a sua garantia, apontando como características promissoras desse modelo,

sob o ponto de vista epistêmico: a desvinculação dos juízes e dos tribunais dos interesses

imediatos dos membros de sua comunidade política; a atuação dos juízes como se fossem

“inspetores de qualidade” por cumprirem função especializada e redundante ao identificar

fundamentos de justiça política que sejam importantes e que sirvam de fundamento para o

regime constitucional e para o controle da legislação; o “equilíbrio reflexivo” que decorre das

fundamentações através de princípios em uma sucessão de casos, que precisam ser coerentes

no tempo, resultando como meio para equilibrar a reflexão normativa e para concretizar a

exigência moral de generalização. A seguir, Sager induz reflexão a respeito de duas formas

pelas quais as pessoas são capazes de participar como iguais no processo deliberativo de

direitos (SAGER, 2007): a igualdade eleitoral e a igualdade deliberativa.

A igualdade eleitoral seria garantida através do exercício em condições de

igualdade do direito de eleger os representantes políticos que tomam as decisões sobre os

direitos, ressaltando que esta é uma forma perigosa por ser influenciada pelo poder dos votos

e do dinheiro desviando-se da pretensão de determinado grupo ou indivíduo. A igualdade

deliberativa seria assegurada aos participantes nos processos de debates sobre direitos, ou

seja, a consideração séria por quem tenha autoridade deliberativa dos seus direitos e

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242

interesses, estando implícito nessa forma de igual participação o direito de ser ouvido e de

obter resposta fundamentada, como, por exemplo, nos processos judiciais. Essas duas formas

de igualdade seriam complementares para o exercício democrático e não excludentes como se

poderia imaginar.

A abordagem plural dos sujeitos, das formas e dos procedimentos eleitorais,

através da multiplicação de expressões parciais – seja através de ouvidorias, disque-denúncia,

ações de transparência ativa, procedimentos judiciais e administrativos ou ainda outros canais

estabelecidos - permite uma aproximação mais efetiva da generalidade democrática. Se a

sociedade possui mecanismos para interferir e para legitimar o exercício dos poderes das

autoridades eleitorais, então a generalidade social encontra-se, pelo conjunto, no comando. O

alcance da generalidade social pressupõe a manifestação da soberania popular em suas três

dimensões contemporâneas, conforme identificado por Pierre Rosanvallon (2011): o povo

eleitoral, o povo social e o povo como princípio. E a arquitetura institucional do Sistema

Eleitoral precisa prever mecanismos e procedimentos para dar voz às múltiplas dimensões do

sujeito democrático.

O conceito de mandato político já não é suficiente para suprir a defasagem entre

governo e sociedade e estabelecer o grau de proximidade necessário. Cidadãos já não se

contentam apenas com o sistema representativo eleitoral tradicional como forma de

participação, no qual somente participam no dia da votação. Há uma exigência por maior

intervenção em todos os momentos e em todas as dimensões do sistema político eleitoral.

Há demanda por canais estabelecidos para troca efetiva de informações entre

governo e sociedade com dupla função: para o governo, os canais de comunicação servem

como instrumento de ação para construção de sua legitimidade junto aos cidadãos e, para as

partes interessadas no processo eleitoral, funcionam como mecanismo de reconhecimento e

controle. A participação popular já não se restringe às urnas e assume formas variadas de

manifestação durante os ciclos eleitorais em suas diversas temporalidades.

A identificação de parâmetros para aferição da legitimidade dos procedimentos

eleitorais relaciona-se com a arquitetura institucional do Sistema Eleitoral. Autoridades

Reguladoras Eleitorais possuem referenciais de legitimidade bastante diferentes dos

tradicionais poderes do estado. Elas podem tanto atuar em nome de uma generalidade

negativa como em nome de uma generalidade reflexiva, a depender das atribuições que

incorpore. Isso implica ainda em atuação subjetiva e temporalmente complexa, na medida em

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243

que suas ações se desenrolam em ciclos eleitorais com tempos diferenciados, assim como

através de formas distintas de manifestação da soberania popular.

No contexto do Estado Democrático de Direito, do constitucionalismo

principiológico, sob perspectiva deliberativa, e em horizonte de soberania complexa, no qual

os procedimentos institucionais equivalem à caixa de ressonância dos anseios sociais, a

autoridade eleitoral autônoma realiza políticas públicas, age conforme e para conformar ações

com princípios e diretrizes constitucionais na busca de efetivação e proteção de direitos

políticos eleitorais, atua para avalizar a integridade de todo o processo eleitoral, a cada ciclo, e

para a estabilidade política de longo prazo .

Quando se atribui a uma mesma autoridade eleitoral poderes normativos,

administrativos, fiscalizatórios e judiciais para gerir todo o processo eleitoral altera-se a

verdadeira natureza jurídica das atividades e das autoridades que a implementam, ainda que

estas normativamente sejam classificadas como órgãos do poder judiciário, legislativo,

executivo ou como órgão autônomo e independente.

A conjugação de todos esses poderes atribuídos a uma mesma autoridade, aliados

à garantia de independência, mandato fixo e impossibilidade de recurso impróprio de suas

decisões, caracterizam a típica função regulatória autônoma contemporânea, nos moldes da

nova função regulatória que surgiu nas últimas décadas do século XX e qualificam a

instituição responsável por gerir o processo eleitoral como autoridade reguladora autônoma

do processo eleitoral.

A autoridade reguladora eleitoral assim constituída ainda pode ter poderes

jurisdicionais, e, nessa hipótese, será uma autoridade reguladora híbrida pois concentra

poderes regulatórios e poderes judiciais caracterizando um órgão de natureza diferenciada dos

demais órgãos que compõem os poderes do Estado. O surgimento de um órgão regulador

eleitoral híbrido apresenta enormes desafios de legitimidade e controle que que somente

podem ser corretamente identificados no contexto de um Sistema Eleitoral concretamente

estabelecido.

Antes de prosseguir, é importante registrar e sistematizar as conclusões até aqui

apresentadas. Para tanto segue abaixo quadro sintético com a arquitetura institucional de um

Sistema Eleitoral com Autoridade Reguladora Eleitoral híbrida.

Page 244: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

LEGISLAÇÃO ELEITORALARQUITETURA INSTITUCIONAL ELEITORAL SOCIEDADE CIVIL E CIDADÃOSPARTES INTERESSADAS NO PROCESSO ELEITORAL

CULTURA POLÍTICA

NOVA GOVERNANÇA ELEITORAL

ELABORAÇÃO DE NORMASAPLICAÇÃO DE NORMASADJUDICAÇÃO DE NORMASREGULAÇÃO ATRAVÉS DE NORMAS

SISTEMA ELEITORAL

SISTEMA PARTIDÁRIO

244

OGE + SJE = AUTORIDADE REGULADORA

ELEITORAL HÍBRIDA

REQUISITOS DIFERENCIADOS E MAIS EXIGENTES DE

LEGITMAÇÃO E CONTROLE

Figura 7: Autoridade Reguladora Eleitoral híbridaFonte: elaborado pelo autor.

Nesta hipótese a instituição responsável por conduzir todo o processo eleitoral

aparece como agente regulador autônomo, como autoridade reguladora independente,

responsável por resguardar direitos políticos eleitorais ou de participação, nivelar a

competição eleitoral, planejar e implementar políticas públicas, alinhar interesses com as

finalidades da integridade eleitoral e solucionar as disputas emergentes com poderes

jurisdicionais.

Enfim, a autoridade reguladora eleitoral híbrida apresenta competência para atuar

nas fronteiras do sistema democrático, assegurando que soberania popular e direitos humanos

mantenham o equilíbrio mínimo exigido para manutenção, preservação e oxigenação do

sistema de direitos, impedindo que este venha a ser colonizado por padrões de condutas

voltados para objetivos de maiorias contingentes.

Page 245: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

245

Em tese, a autoridade reguladora eleitoral híbrida seria capaz de “ansiar pela

nação”, atuaria voltada para o consenso, voltada para resguardar a integridade e as condições

de legitimidade do sistema representativo, preservando a possibilidade de confronto legítimo

de ideias e interesses contrapostos, assim como atuaria para a construção do equilíbrio

reflexivo, tal como proposto por Sager (2007).

O aparecimento de órgãos eleitorais autônomos híbridos é uma realidade

incontestável da governança eleitoral contemporânea, o que conduz a inevitáveis reflexões

sobre as condições de legitimidade para sua atuação, com questionamentos diversos sobre

limites, poderes e procedimentos envolvidos.

Até aqui buscou-se demonstrar que o constitucionalismo contemporâneo

prospectivo, que possui na dignidade da pessoa humana seu maior vetor de direcionamento e

alinhamento do diálogo social, trouxe impacto significativo para o sistema democrático em

geral e para o sistema eleitoral em especial.

Nesse contexto, a integridade das eleições tornou-se o objetivo a ser perseguido

para a realização de eleições democraticamente legítimas, enquanto horizonte regulatório e

vetor de adequação para o devido processo eleitoral, material e formalmente considerados.

A agregação da dimensão substancial de legitimidade como condição para um

processo eleitoral legítimo teve impacto direto para a governança eleitoral na medida em que,

para garantir a integridade das eleições e aprofundar a percepção de legitimidade democrática

pelos cidadãos, diversos órgãos eleitorais ganharam autonomia em face dos tradicionais

poderes eleitos do Estado. E esse fenômeno deu origem a novos questionamentos sobre

poderes e limites dos órgãos eleitorais.

Nesse contexto, é que a presente tese busca responder se a Justiça Eleitoral

brasileira se caracteriza como uma autoridade reguladora eleitoral híbrida e se essa arquitetura

institucional convém em face do paradigma de Estado Democrático de Direito adotado pelo

Brasil a partir de 1988. Essa avaliação será feita a seguir.

Page 246: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

CAPÍTULO 6

REGULAÇÃO ELEITORAL NO BRASIL

Nesta etapa da pesquisa será realizada reflexão sobre a arquitetura institucional

adotada no Brasil para regular o processo eleitoral no contexto da Constituição de 1988,

utilizando-se como referencial os marcos teóricos da democracia procedimental, da

democracia reflexiva, com ênfase no papel do Direito e sua relação com a Política, tal como

formulado por Habermas e Pierre Rosanvallon.

Busca-se, nesse contexto, avaliar o impacto da nova carta para a governança

eleitoral, as características e os desafios apresentados para a Justiça Eleitoral brasileira, assim

como seu grau de maturidade frente às novas exigências de legitimidade contemporânea.

Pretende-se, em última instancia, verificar se a regulação eleitoral brasileira atual

preenche os pressupostos de adequação e justiça, nos termos das teorias da democracia

apresentadas e das exigências de integridade determinadas pela pauta internacional de direitos

humanos.

A teoria da democracia procedimental apresenta meios para avaliação das

condições de comunicação e para identificação das formas de institucionalização de discursos

em matéria eleitoral a fim de que seja verificada se há legitimidade do direito assim

produzido. Ou seja, permite identificar se há, do ponto de vista normativo, mecanismos que

garantam a fundamentação racional das decisões e a possiblidade de participação influente

das partes interessadas no processo eleitoral no que se refere à formulação do conteúdo da

regulação. Nesta etapa a legitimidade da regulação será analisada quanto ao aspecto da

produção normativa, do respeito aos procedimentos para construção legitima do sistema de

direitos.

A teoria da democracia reflexiva explica que as instituições reguladoras e as

cortes constitucionais multiplicaram-se como resultado do aumento da complexidade e da

fragmentação social para fazer face aos novos e precários aspectos da legitimidade

democrática que emergiram no mundo contemporâneo: legitimidade da imparcialidade,

legitimidade da reflexividade e legitimidade da atenção ao particular.

Sob esse ponto de vista, as autoridades reguladoras tornaram-se as instituições

responsáveis por garantir a todos igual oportunidade de participação nos processos sociais,

igual oportunidade de acesso. Já as cortes judiciais passaram a ser lócus de participação

Page 247: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

247

social, através do exercício da reflexividade, na medida em que o processo judicial oferece às

partes interessadas mecanismos de participação na discussão, construção e sedimentação do

conteúdo do direito em “funcionamento” e, portanto, da regulação aplicada mediante os

diversos procedimentos estabelecidos para aferir e corrigir o processo regulatório, alinhando-o

com a pauta de direitos humanos. Aqui, a legitimidade da regulação é avaliada no que se

refere à existência de mecanismos efetivos de participação, controle, fiscalização e incentivo,

colocados à disposição do órgão regulador para garantir a participação influente e informada

de múltiplos sujeitos, em múltiplas temporalidades, com reais possibilidade de assegurar a

legitimidade substancial ao longo de todo o processo eleitoral.

Garantir a legitimidade do processo eleitoral significa então possibilidade

concreta de legitimar o direito produzido pelo órgão regulador e a possibilidade concreta de

participar, controlar, fiscalizar e gerar incentivos para alinhar comportamentos de todos os

atores envolvidos, inclusive do órgão regulador, aos princípios da integridade durante todas as

fases do ciclo eleitoral.

Nessa linha de desenvolvimento, faz-se necessário identificar a natureza do órgão

eleitoral brasileiro, ou seja, como foi feita a distribuição de competências da governança

eleitoral no Brasil. Essa primeira análise torna possível avaliar se a Justiça Eleitoral funciona

apenas como um órgão tradicional integrante do Poder Judiciário, ou se a Justiça Eleitoral de

fato funciona também como uma autoridade reguladora híbrida por ser um órgão regulador

com poderes jurisdicionais, tese dessa pesquisa.

A próxima etapa tem por finalidade identificar se a arquitetura institucional

eleitoral do Brasil convém ao estado democrático de direito, ou seja, se há mecanismos

institucionalizados para tornar legitima a sua atuação. Faz-se necessário refletir sobre as

condições de legitimidade para produção de políticas públicas em matéria de regulação

eleitoral no Brasil pós Constituição de 1988, considerando o desenho institucional da Justiça

Eleitoral, e os respectivos procedimentos decisórios colocados `a sua disposição para

fundamentação racional de suas decisões e para participação do cidadão na formulação do

conteúdo da regulação (MATTOS, 2006, p. 27).

A seguir, busca-se compreender se a regulação eleitoral atende aos requisitos da

nova regulação autônoma levando-se em conta suas três dimensões: poder normativo e

poderes híbridos, previsão de mecanismos de enforcement e eficiência. Ou seja, a pretensão é

avaliar se a Justiça Eleitoral detém poderes normativos autônomos; se possui mecanismos

Page 248: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

248

efetivos para controlar, fiscalizar e fornecer incentivos concretos para alinhamento do

comportamento das partes interessadas envolvidas no processo eleitoral com o vetor de

integridade estabelecido pelas normas internacionais de direitos humanos e as lacunas

porventura existentes; se dispõe de instrumentos para dar transparência aos resultados da

regulação; e se o resultados da regulação eleitoral é eficiente.

6. 1 Governança Eleitoral pós Constituição de 1988

Uma breve análise das competências atribuídas à Justiça Eleitoral, desde sua

criação em 1932, demonstra que, no Brasil, esta instituição já nasceu responsável por gerir

todas as fases do processo eleitoral (CÓDIGO ELEITORAL 1932).

Como apontado na primeira parte desse trabalho, as ondas regulatórias que

influenciaram os países europeus e os Estados Unidos, durante o século XX, tiveram ampla

repercussão no Estado brasileiro. Nas décadas de 1930, 1960 e 1980 e seguintes, tais efeitos

são bastante evidentes sobre as instituições brasileiras e de uma forma ou de outra, sua

influência também pode ser verificada sobre a governança eleitoral, ainda que à primeira vista

essa relação não seja tão evidente.

O distanciamento histórico e o acompanhamento das atividades desenvolvidas

demonstram que a Justiça Eleitoral foi criada em 1932 e recriada em 1945 para responder a

demandas de institucionalização do diálogo político, de redução da violência social e de

estabilização democrática. Foi criada com o intuito de assegurar, através da linguagem e dos

procedimentos jurisdicionais, maior racionalidade e legitimidade para o sistema

representativo nacional.

Nessa linha de argumentação, é possível dizer que à Justiça Eleitoral, desde a sua

criação, foi atribuída a tarefa de regulação do processo eleitoral. O que se pretende

demonstrar é que, se no início, a regulação eleitoral no Brasil foi preponderantemente

jurisdicional, no período pós Constituição de 1988, a regulação eleitoral - ainda que de

natureza jurisdicional, em razão da natureza jurídica do órgão gestor das eleições - teve sua

estrutura alterada e ampliada no contexto do Estado Democrático de Direito.

A transformação da regulação eleitoral tradicional para a regulação eleitoral de

natureza autônoma ocorreu como resultado dos diversos fatores já apontados ao longo da

presente investigação: a paulatina universalização do voto; a maior complexidade das relações

Page 249: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

249

sociais fragmentadas e de massa; o novo papel do cidadão enquanto autor e destinatário das

normas de convivência comum na democracia contemporânea; das novas e precárias formas

de legitimidade; do reconhecimento da existência de instituições de conflito e de instituições

de consenso; da pauta principiológica do constitucionalismo contemporâneo voltado para

condições materiais de dignidade da pessoa humana e portanto prospectiva; da mudança para

o paradigma de Estado Gerencial; e da mudança de natureza jurídica de partidos políticos,

após a Constituição de 1988.

Todos os fatores indicados buscam explicar por que a regulação eleitoral

contemporânea se desprendeu da estrutura tradicional e centralizada de partição de poderes

para uma estrutura pulverizada e especializada, conforme os diversos e fragmentados

interesses públicos geridos de forma compartilhada entre Estado e particulares, após 1988.

Para demonstrar a alteração da regulação eleitoral no Brasil, após a nova carta

constitucional, serão analisadas, a seguir, a Governança Eleitoral, a arquitetura institucional

do Sistema Eleitoral brasileiro e o ciclo da criação e legitimação das normas eleitorais.

A estrutura da Governança Eleitoral brasileira está prevista na CRFB/1988 e na

Legislação Eleitoral posterior, conforme identificado abaixo:

. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – artigos 118 a 121;

. Código Eleitoral – Lei 4.737, de 15 de julho de 1965, e alterações posteriores;

. Lei de Inelegibilidades – Lei Complementar 64, de 18 de maio de 1990, e

alterações posteriores;

. Lei das Eleições – Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997, e alterações

posteriores;

. Lei dos Partidos Políticos – Lei 9.096, de 19 de setembro de 1995, e alterações

posteriores;

. Legislação Eleitoral e Partidária complementar.

No primeiro nível da Governança Eleitoral, Elaboração de Normas, que abrange a

escolha e definição das principais regras da disputa eleitoral, as Normas da Competição

Eleitoral no Brasil foram previstas pelo legislador constituinte na Constituição de 1988, como

por exemplo o sistema eleitoral, os direitos políticos, o sistema partidário, o prazo dos

mandatos, os cargos eletivos. A competência para editar normas gerais e abstrata primárias

sobre eleições foi atribuída ao Poder Legislativo na própria Constituição de 1988 e a

Page 250: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

250

competência dos órgãos eleitorais foi remetida para a edição de lei complementar. A Justiça

Eleitoral é o único conjunto de órgãos do Poder Judiciário cuja competência não foi descrita

na Constituição de 1988.

A competência para editar Normas de Regulação Eleitoral foi concedida à Justiça

Eleitoral mediante a legislação eleitoral, que conferiu a essa justiça especializada poder

regulamentar para editar resoluções e instruções com força de lei para assegurar a organização

e o exercício dos direitos políticos, conforme previsto no artigo 1º, parágrafo único e no artigo

23, IX do Código Eleitoral e também pelos artigos 105 da Lei das Eleições - Lei 9.504/97 e

61 da Lei dos Partidos Políticos – Lei 9.096/95.

Note-se que o poder regulamentar conferido à Justiça Eleitoral pelo Código

Eleitoral de 1965, recepcionado pela Constituição de 1988 com status de Lei Complementar

ao artigo 121 da Constituição de 1988, no contexto da nova carta constitucional dirigente,

ganhou status de função regulatória autônoma. Essa conclusão decorre de uma interpretação

sistemática do sistema jurídico criado em matéria eleitoral pela nova carta, visto que a

recepção de uma lei feita em 1965, no contexto de outra constituição, precisa ter seu conteúdo

reinterpretado em face do novo contexto normativo.

A possibilidade de regulação autônoma foi inclusive reconhecida pela doutrina e

jurisprudência ao reconhecer que as Resoluções e Instruções expedidas pela Justiça Eleitoral

para normatizar o processo eleitoral possuem força de lei, com capacidade de inovar o sistema

jurídico, cabendo inclusive controle de constitucionalidade das normas assim editadas

(CERQUEIRA, 2006, p. 7 e 8).

A competência relacionada ao segundo nível da Governança Eleitoral, Aplicação

de Normas, que envolve a organização e concretização de todas as fases do ciclo eleitoral,

também foi atribuída à essa Justiça especializada, conforme infere-se das normas previstas

artigo primeiro e seguintes do Código Eleitoral, Lei 4.734/1965.

Este nível abrange claramente o planejamento das eleições, a organização da

logística eleitoral, a adoção de todas as medidas necessárias à sua implementação, inclusive o

exercício de poder de polícia. Tradicionalmente, também seria possível associar este segundo

nível da Governança Eleitoral no Brasil com os principais procedimentos relacionados ao

processo eleitoral: alistamento de eleitores, o registro de partidos políticos, o controle da

filiação partidária, fiscalização da propaganda eleitoral, prestação de contas de campanha e

prestação de contas anual, votação, apuração, proclamação dos eleitos e diplomação.

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251

O terceiro nível da Governança Eleitoral, Adjudicação de Normas, que envolve a

certificação de resultados e a solução de disputas decorrentes o processo eleitoral, também foi

atribuída à Justiça Eleitoral, como pode ser depreendido do artigo 121, §º 4 da Constituição de

1988 e dos artigos 22, 23, 29, 30, 35, 40 Código Eleitoral. A regulação eleitoral tradicional

resultava principalmente da implementação de atividades relacionadas ao nível adjudicação

de normas, ou seja, dos procedimentos jurisdicionais que faziam o controle de legalidade e

punia os ilícitos praticados em matéria eleitoral.

Tradicionalmente, no contexto anterior à Constituição de 1988, os procedimentos

eleitorais estariam submetidos à regulação tradicional que tinha como foco a legitimidade

formal: a punição de ilícitos e a credibilidade de resultados. Legitimidade aqui compreendida

como ampla possibilidade de alistar-se como eleitor e registrar-se como candidato, no sentido

de inclusão e participação de todos os cidadãos reconhecidos nos termos da carta

constitucional. Credibilidade compreendida como votação e apuração livre de fraude. A

regulação tradicional tinha por finalidade apurar atos ilícitos, impedir fraudes e impor

sanções, após avaliação formal das condutas praticadas.

O quarto nível da Governança Eleitoral, Regulação Através de Normas, nos

termos propostos no quarto capítulo dessa pesquisa, resulta da forma como o novo sistema de

direitos brasileiro foi previsto pelo legislador constituinte de 1988, das normas de direitos

humanos aos quais o Brasil vinculou-se no plano internacional e da legislação eleitoral

posterior a nova carta constitucional. Enfim, resulta das profundas transformações sociais

trazidas pela universalização do voto ao longo de todo o século XX e do que se passou a

compreender por convivência democrática nos últimos anos desse período.

Nesse novo contexto, à regulação eleitoral tradicional, mantidos os objetivos do

passado, adicionou-se a integridade, que expandiu a necessidade de controle e alinhamento de

todas as fases do ciclo eleitoral com princípios de direitos humanos. Igual acesso e

participação influente em todo o processo eleitoral passou a abranger circunstâncias

procedimentais materialmente legítimas com efetiva repressão a abusos econômicos,

políticos, ideológico-sociais e religiosos.

O ponto de inflexão mais significativo para a transformação da regulação eleitoral

contemporânea resultou da alteração da natureza jurídica dos partidos políticos pós

constituição de 1988. Ao declarar que os partidos políticos são pessoas jurídicas de direito

privado e que a filiação partidária é condição de elegibilidade para acesso a cargos

Page 252: CAPÍTULO 1 - Estácio S.A. · Web viewNessa perspectiva, as ações do Estado para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos fundamentais

252

representativos, o constituinte fez evidente opção pela entrega da tutela de interesse público

indisponível à particular. Ao fazê-lo, criou, em contrapartida, para o poder público, a

obrigação de regular as relações decorrentes da nova sistemática eleitoral para que estas sejam

alinhadas com os princípios constitucionais e com a pauta internacional de direitos humanos.

Ao estabelecer a clara distinção entre partidos políticos e Estado, decisão

totalmente conforme tratados e acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, o

constituinte de 1988 estabeleceu uma nova correlação de forças para o Sistema Eleitoral.

A efetiva supervisão e regulação da atividade partidária, a supervisão e controle

da influência do dinheiro na política, em razão da prática de atividade de interesse público por

ente privado, tornaram-se novas condições de legitimidade para o processo eleitoral e para o

alcance de eleições íntegras, ao lado da regulação de todas as fases do ciclo eleitoral, que com

estas relações estão diretamente ligadas.

Partidos políticos e campanhas eleitorais são financiados com dinheiro público e

com dinheiro de terceiros, seja diretamente através de doações privadas e doações do Fundo

Partidário, seja indiretamente pelo horário eleitoral gratuito ou pela prestação direta de outros

serviços. Somente o controle de receitas e despesas, envolvendo bens públicos e bens de

terceiros, respectivamente, recebidas e realizadas por partidos políticos e candidatos, já seriam

fundamento suficiente para justificar a regulação e supervisão de órgão eleitoral. O

funcionamento partidário e campanhas eleitorais claramente possuem dimensão econômica

significativa, embora nela não se esgote. (No mesmo sentido, em âmbito global, normas mais

rigorosas e mecanismos de combate a corrupção e à lavagem de dinheiro estão se

disseminando para regular fluxos financeiros, mercados de ações, operações bancárias,

governança de empresas de capital aberto, etc.).

Some-se a estas questões a enorme capacidade que o dinheiro e as normas

intrapartidárias possuem para influenciar os resultados do processo eleitoral, e, portanto,

quem chega ou não ao poder, e que políticas públicas são ou não aprovadas, resta

demonstrada a premente e urgente necessidade de regulação autônoma da atividade partidária

e do ciclo eleitoral em toda a sua extensão.

A tese defendida na presente pesquisa é a de que, no Brasil, as competências para

controlar, supervisionar e criar os incentivos necessários para alinhar o comportamento das

partes interessadas no processo eleitoral aos princípios de direitos humanos foram atribuídas à

Justiça Eleitoral. Inclusive a regulação e supervisão da atividade financeira partidária. Essa

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253

conclusão decorre de interpretação sistemática do conjunto normativo publicado após a

Constituição de 1988: Lei de Inelegibilidade – Lei Complementar 64/90, Lei dos Partidos

Políticos – Lei 9.096/1995 e da Lei das Eleições – Lei 9.504/1997, e respectivas alterações

posteriores.

A Constituição de 1988 e a legislação acima indicada deram origem a um novo

sistema normativo eleitoral, um novo ordenamento setorial, que tem por finalidade delinear as

regras do jogo para a competição política de acesso ao poder, tornando mais estável e

previsível as circunstâncias para o desenvolvimento dos ciclos eleitorais.

Como visto no terceiro capítulo, um microssistema jurídico de um ordenamento

setorial é integrado por todos aqueles que participam da atividade ou que sejam atingidos pelo

interesse tutelado, as partes interessadas. Assim, órgãos, instituições, particulares, empresas,

estarão todos submetidos à atividade regulatória desse microssistema e sobre ele exercerão

influência. Em um ordenamento setorial sempre será identificado um elemento

organizacional, uma produção normativa própria e uma pluralidade de sujeitos que participam

do funcionamento da instituição para legitimar sua atuação. Normatização própria, na acepção

proposta por Giannini, referência para os microssistemas jurídicos de um ordenamento

setorial, pressupõe a criação de normas pelo próprio grupo e a respectiva submissão a estas

por todos os sujeitos envolvidos na atividade regulada. E tais normas devem ser parte de um

subsistema, que como tal precisa necessariamente se organizar segundo princípios capazes de

garantir a sua integridade, legitimidade e de coordenar-se com o sistema jurídico central. A

regulação como instituto novo marca ponto de inflexão quanto à irresponsabilidade política e

incorpora novos referenciais democráticos na gestão de interesses públicos conduzidos por

particulares.

A Justiça Eleitoral no contexto da carta de 1988 é exatamente o elemento

organizacional, com competência para produção normativa própria, cujo funcionamento

legítimo pressupõe a instituição de mecanismos de participação de todos os interessados no

funcionamento da instituição. Uma análise do calendário e das atividades eleitorais mostra

que cada vez mais mecanismos de transparência e participação têm sido inseridos nos

procedimentos da Justiça Eleitoral, durante as diversas fases do ciclo eleitoral. A título de

exemplo, é possível indicar o “calendário da transparência” e o aplicativo para

acompanhamento de apuração criados pelo Tribunal Superior Eleitoral para as eleições de

2016. Tais sucessivas modificações não são apenas melhorias de gestão, mas sim respostas a

novas demandas por legitimidade do sistema político eleitoral.

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254

A criação pela nova Carta desse novo microssistema jurídico estabeleceu nova

correlação de forças entre as partes interessadas da competição política e alçou a Justiça

Eleitoral à condição de autoridade reguladora autônoma do processo eleitoral, com a

correspondente redefinição do papel de todos os envolvidos.

A regulação eleitoral, enquanto atividade regulatória autônoma delegada à Justiça

Eleitoral, passou a envolver as seguintes fases do ciclo eleitoral: a definição da moldura

regulatória através da expedição de resoluções e instruções eleitorais, a definição das

circunscrições eleitorais, a regulação do alistamento e do cadastro eleitoral, a regulação do

registro partidário e do registro de candidaturas, a regulação de campanhas eleitorais, a

regulação da propaganda eleitoral e da atuação da mídia, a regulação de pesquisas eleitorais, a

regulação do processo de votação, a regulação da votação e a regulação da proclamação dos

resultados. A criação do novo modelo regulatório levou para outro patamar a exigência de

responsabilização política e de novos referenciais democráticos para a gestão dos interesses

públicos em matéria eleitoral.

A regulação eleitoral autônoma, regulação através de normas, resultou, portanto

do exercício integrado de todas as dimensões da governança eleitoral em razão da nova

dinâmica estabelecida: de um lado, a atribuição de atividades de interesse público a

particulares, e, de outro, a correspondente obrigação do Estado de regular a atividade privada.

A legitimidade do novo sistema eleitoral depende exatamente dos novos papéis e

responsabilidades, em matéria eleitoral, atribuídos às partes interessadas desse microssistema

jurídico. Em conjunto, a Justiça Eleitoral, o Ministério Público Eleitoral, os partidos

políticos, os candidatos, os eleitores, empresas, a imprensa, os observadores do processo

eleitoral e os representantes da sociedade civil, formam um espaço deliberativo,

especializado, no qual a interação de todos deve resultar na produção de uma razão

procedimentalizada. Deve resultar em um sistema de freios e contrapeso às recíprocas

atuações a fim de que o sistema eleitoral funcione como filtro deliberativo dos interesses em

disputa, com reconhecimento recíproco de que o equilíbrio encontrado entre acordos e

desacordos sociais pode ser aceito e respeitado por todos.

A tensão existente entre as partes, os canais de comunicação institucionalizados,

os procedimentos estabelecidos e o vetor de integridade eleitoral é que, em conjunto, criam a

concreta possibilidade para uma governança eleitoral legitima e reais possibilidade para

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255

escolha de representantes capazes de refletir e reproduzir a correlação de forças existente no

tecido social.

6.2 Justiça Eleitoral como Autoridade Reguladora Eleitoral

A atribuição concentrada de competências relacionadas à Governança Eleitoral

para a Justiça Eleitoral brasileira, conforme analisado no ponto anterior, aliada à

correspondente atribuição de função regulatória autônoma que resulta dessa concentração de

poderes, conforme proposição realizada no capítulo 5, e a entrega de atividade de interesse

público para particulares, tem por corolário a criação de uma autoridade reguladora eleitoral

com poderes híbridos.

A pretensão nesta etapa da pesquisa é verificar se esta proposição pode ser

comprovada na prática. É preciso então, conforme critérios estabelecidos no terceiro capítulo

para identificação da atividade regulatória da Justiça Eleitoral, analisar:

- Se existe serviço ou atividade de interesse público de natureza econômica ou de

natureza protetiva e garantidora de direitos humanos atribuída a particular, em matéria

eleitoral;

- Se a função regulatória atribuída à Justiça Eleitoral tem natureza autônoma;

- Se a Justiça Eleitoral se enquadra nos atributos para classificação de uma

autoridade reguladora como autoridade reguladora independente.

Os direitos eleitorais abrangem principalmente os direitos de votar e ser votado.

Se antes, tais direitos deveriam obedecer apenas a referenciais normativos formais, com o

advento do constitucionalismo principilógico e com a pauta de direitos humanos

internacionais, a legitimidade para o exercício de tais direito passou a vincular-se a finalidade

específica, aqui definida como integridade eleitoral, com parâmetros concretos para sua

aferição.

Processos e procedimentos eleitorais, nesse sentido, ganharam novo significado

para aferição da legitimidade que deixou de ser considerada apenas no que se refere aos

resultados da disputa eleitoral e à ausência de condutas ilícitas.

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256

A forma como se desenrola a competição político-eleitoral e a conduta dos

sujeitos envolvidos são condições para o alcance de resultados legítimos. O devido processo

eleitoral tornou-se mais complexo.

Assim, é importante apontar que a participação dos sujeitos da democracia no

exercício de direitos eleitorais e das partes interessadas no processo eleitoral tornaram-se

objeto de regulação eleitoral.

Cidadãos, como sujeitos por excelência da democracia, enquanto detentores de

título eleitoral, cujo alistamento é compulsório no Brasil, exercem atividade de interesse

público por previsão Constitucional, sujeita à regulação pela Justiça Eleitoral.

A Justiça Eleitoral é responsável por verificar o atendimento ou não das condições

para o indivíduo alistar-se como eleitor e para investi-lo na condição de cidadão, em sentido

estrito, e por coibir condutas irregulares no exercício de direitos de participação. A Justiça

Eleitoral autoriza o exercício de direitos políticos através do registro do eleitor no cadastro

eleitoral e a emissão do título de eleitor.

A gestão do cadastro eleitoral implica em uma série de atividades regulatórias e

na escolha de políticas públicas para garantir sua lisura. A adoção do registro biométrico de

eleitores resultou exatamente dos diversos problemas decorrentes do alistamento eleitoral. A

definição de procedimentos para composição de mesas de votação, de juntas eleitorais e o

combate à venda de votos, ente diversos outros, são exemplos de regulação eleitoral

envolvendo a participação de cidadãos no processo eleitoral.

Partidos políticos, enquanto exclusivos legitimados para escolha de candidatos à

competição política e enquanto usuários de recursos públicos e de terceiros, exercem

atividade de interesse público coletivo sujeita à regulação, como já apontado. A Justiça

Eleitoral autoriza ou não a atividade partidária, que depende da avaliação de atendimento aos

requisitos legais, assim como autoriza a constituição de órgãos partidários nacionais,

regionais e municipais. Os partidos políticos somente estão legitimados a funcionar após

registro na forma da lei civil e registro na Justiça Eleitoral.

Institutos de pesquisa, mídia e redes sociais, prestadores de serviço para partidos e

campanhas eleitorais, e observadores do processo eleitoral, enquanto participantes ativos, de

natureza privada, no processo eleitoral, exercem atividade de interesse público sujeita à

regulação pela Justiça Eleitoral. A participação da mídia e de observadores no processo

eleitoral se dá mediante autorização prévia da Justiça Eleitoral.

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257

Quanto à identificação de função regulatória autônoma, esta existirá sempre que

houver a existência de atividade privada classificada como de interesse público e a existência

de polo de poder administrativo e político descentralizado, com poder regulamentar delegado,

tecnicamente especializado e diversificado com a atribuição de cuidar de um especifico

campo de atividade considerado em seu conjunto, com poderes para condicionar, coordenar e

disciplinar a atividade privada, com a finalidade de realizar direitos fundamentais.

A existência de função regulatória autônoma em matéria eleitoral pode ser

verificada mediante a identificação dos diversos tipos de atividades privadas relacionadas com

o processo eleitoral, cujo exercício seja de evidente interesse público.

A identificação da Justiça Eleitoral enquanto polo de poder administrativo e

político descentralizado, com poder regulamentar delegado, tecnicamente especializado com a

atribuição de cuidar de um especifico campo de atividade considerado em seu conjunto - a

competição eleitoral para a escolha de representantes políticos -, resulta da previsão de

poderes para condicionar, coordenar e disciplinar a atividade privada de interesse público e

para alinhá-la à finalidade de realizar direitos fundamentais: eleições íntegras.

A função regulatória autônoma abrange, então, o poder normativo para impor

moldura normativa geral e abstrata à atividade regulada – Resoluções e Instruções sobre

eleições -; o poder para habilitar o particular a exercer atividade privada de interesse público:

a investidura do cidadão como eleitor, a autorização para criação de órgãos partidários; a

autorização de funcionamento para representantes da imprensa, a acreditação de observadores

do processo eleitoral, etc.; o poder para assegurar sua aplicação, mediante decisões

individuais proferidas na avaliação do caso concreto – processamento dos feitos eleitorais;

poder para reprimir infrações, através da solução de disputas concretamente consideradas –

exercício de poder de polícia e processamento judicial e administrativo dos feitos eleitorais.

Tais prerrogativas dependem da verificação do atendimento aos atributos para

classificação de um órgão ou ente como autoridade reguladora autônoma. Ou seja, é preciso

verificar se a Justiça Eleitoral atua como instituição do Estado responsável por regular setor

considerado como essencial e no qual o governo pretende evitar intervir diretamente para

regulação de atividades econômicas ou para proteger direitos dos cidadãos, se possui a

preocupação finalística de exercer algum tipo de intervenção estatal deslegalizada nas

atividades sociais ou econômicas. É o que será feito a seguir, mediante avaliação do órgão

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com a última palavra em matéria eleitoral, critério adotado pela International IDEA para

avaliação de órgãos eleitorais.

Em primeiro lugar, será avaliado se o Tribunal Superior Eleitoral atende aos

requisitos identificados nos capítulos 3 e 4 para classificação de uma instituição como

autoridade reguladora autônoma e, em segundo lugar, verificar-se-á se o Tribunal Superior

Eleitoral detém as competências relacionadas com um Órgão de Gestão Eleitoral e com um

Sistema de Justiça Eleitoral, indicadas no capítulo 5.

Os requisitos identificados no capítulo 3 para classificação de uma instituição

como autoridade reguladora independente ou autônoma são os seguintes:

1. Atribuição de competências regulatórias (uso de direito regulador e adoção de

funções híbridas);

2. Decisão por órgão colegiado;

3. Autonomia orgânica, funcional e financeira (autonomia decisória reforçada da

autoridade reguladora, com atribuição de mandato sem possibilidade de

exoneração ad nutum, impossibilidade de recursos hierárquicos impróprios e

autonomia financeira);

4. Existência de mecanismos de participação publica no conteúdo da regulação

(participação regulatória pela publicidade e pela processualidade aberta).

1. Atribuição de competência regulatória

O regime democrático inaugurado pela Constituição de 1988, em conjunto com a

legislação eleitoral posteriormente publicada, em especial a Lei de Inelegibilidade – Lei

Complementar 64/1990, a Lei dos Partidos Políticos – Lei 9.096/1995 e a Lei das Eleições –

Lei 9.504/97, trouxe para o sistema jurídico pátrio nova uma sistemática em matéria de

regulação eleitoral.

O legislador constituinte, no Capítulo VI, Dos Direitos Políticos, da CRFB/1988,

determinou a nova estrutura da competição política e os novos princípios regulatórios que a

governam ao determinar que : a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e

pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos; as condições de elegibilidade e as

condições que de inelegibilidade; a possibilidade de impugnação do mandato eleitoral ante à

Justiça Eleitoral; as hipóteses de perda e suspensão dos direitos políticos; a liberdade para

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criação, fusão, incorporação e extinção de partidos, resguardados a soberania nacional, o

regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana,

observados o caráter nacional, a proibição de recebimento de recursos financeiro de entidades

ou governos estrangeiros, a prestação de contas à Justiça Eleitoral, autonomia partidária,

registro partidário na forma da lei civil e no Tribunal Superior Eleitoral, acesso dos partidos

políticos ao fundo partidário, ao rádio e à televisão, na forma da lei.

A deslegalização da matéria eleitoral, com a recepção do Código Eleitoral de

1965 pela Constituição de 1988, foi confirmada e ampliada em face das alterações

introduzidas pela nova legislação sobre a matéria sendo claramente conferidas à Justiça

Eleitoral competência normativa (deslegalização) e funções híbridas: atividade normativa,

atividade regulatória, atividade fiscalizadora, atividade sancionatória e atividade julgadora.

A delegação normativa está registrada na legislação eleitoral que concede a essa

justiça especializada poder regulamentar para editar resoluções e instruções com força de lei

para assegurar a organização e o exercício dos direitos políticos, conforme previsto no artigo

1, parágrafo único e no artigo 23, IX do Código Eleitoral e, também, pelos artigos 105 da Lei

das Eleições - Lei 9.504/97 e 61 da Lei dos Partidos Políticos – Lei 9.096/95.

Uma análise sistemática aplicada à Constituição de 1988, ao Código Eleitoral, à

Lei das Eleições e à Lei dos Partidos Políticos, permite inferir que o Tribunal Superior

Eleitoral possui competência regulatória autônoma para normatizar o processo eleitoral,

competências para organizar sua logística, para solucionar as disputas dele decorrentes e para

exercer atividades de controle, supervisão e compliance, com o objetivo específico de alinhar

o comportamento das partes interessadas com a finalidade integridade das eleições, e

correspondentes poderes para aplicar de sanções.

2. Independência regulatória (a funcional, a dos agentes, a financeira)

A independência regulatória está prevista no Capítulo III – Do Poder Judiciário,

da CRFB/88, especialmente nos artigos 92 a 99 que enuncia as garantias dos juízes, a

autonomia administrativa e financeira dos tribunais e nos artigos 118 a 121 que especifica os

órgãos que compõe a Justiça Eleitoral, a forma para designação de seus membros e a extensão

de seus mandatos. Os artigos 121, §§ 1 e 2 registram as garantias e o prazo do mandato para a

corte eleitoral, consignando, portanto, mandato com prazo determinado e a impossibilidade de

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exoneração ad nutum de seus dirigentes, garantindo, por consequência, a autonomia reforçada

do órgão eleitoral.

O artigo 121, §3º, expressamente determina que são irrecorríveis as decisões dos

Tribunal Superior Eleitoral, com exceção das que contrariem a Constituição e as denegatórias

de habeas corpus ou mandado de segurança, restando afastada a previsão de recurso

hierárquico impróprio para as decisões prolatadas pelo órgão eleitoral. Note-se que, nesta

hipótese, o poder conferido à Justiça Eleitoral é ainda mais amplo do que o das agências

reguladoras autônomas brasileiras, visto que suas decisões além de estarem resguardadas da

possibilidade de modificação por recurso impróprio, apresentam natureza judicial.

Importante mencionar que a partir da década de 1990, o quadro de servidores

efetivos da Justiça Eleitoral foi paulatinamente ampliado, permitindo a especialização técnica

em matéria eleitoral. Registre-se que a natureza jurídica da Justiça Eleitoral enquanto

conjunto de órgãos do Poder Judiciário foi uma opção política do poder constituinte

originário, que, como visto nos capítulos 4 e 5, poderia ter optado por formato diverso.

Como visto, a natureza jurídica do órgão eleitoral, por si só, não é determinante

para definir sua competência, se apenas de órgão jurisdicional, de órgão de gestão das

eleições ou de autoridade reguladora eleitoral. O conjunto de competências atribuído, ou seja,

a forma de institucionalização da governança eleitoral, e o uso de direito regulador é que

permitem a identificação de uma autoridade reguladora eleitoral. A Justiça Eleitoral brasileira,

embora dotada de autonomia orgânica, funcional e financeira, sujeita-se à diversos

mecanismos de controle no exercício de suas atividades, como por exemplo a fiscalização de

suas atividades administrativas pelo Tribunal de Contas da União, a definição de metas e

diretrizes para sua atuação pelo Conselho Nacional de Justiça, a participação do Ministério

Público Eleitoral em todas as fases do processo eleitoral, o controle social e da imprensa.

3. Decisão por órgão colegiado

Como visto no ponto anterior, a composição colegiada do Tribunal Superior

Eleitoral, com mandato fixo sem possibilidade de exoneração ad nutum, está prevista o artigo

119 e parágrafos, da CRFB/88.

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4. Mecanismos de participação pública no conteúdo da regulação (participação regulatória

pela publicidade e pela processualidade aberta);

A Lei das Eleições, Lei 9.504 de 30 de setembro de 1997, em seu artigo 105

explicitamente enunciou que até o dia 05 de março do ano da eleição, o Tribunal Superior

Eleitoral, atendendo ao caráter regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções

distintas das previstas em seu texto, poderá expedir todas as instruções necessárias para sua

fiel execução, ouvidos, previamente em audiência pública, os delegados ou representantes dos

partidos políticos.

Outro mecanismo de participação pública no conteúdo da regulação é a

competência para responder, em matéria eleitoral, às consultas que ao Tribunal Superior

Eleitoral forem dirigidas em tese por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de

partido político, nos termos previstos pelo art. 23, XII do Código Eleitoral.

Por ser a Justiça Eleitoral uma autoridade reguladora eleitoral híbrida, com

poderes regulatórios e jurisdicionais, a avaliação do conteúdo da regulação se dá por meio de

diversos procedimentos, na medida em que decisões judiciais e administrativas, como

resultado de procedimentos em contraditório e de audiências públicas, durante todo o ciclo

eleitoral, dão ensejo a modificações das Resoluções e Instruções sobre eleições para o período

seguinte. Há um exercício conjugado de atividades relacionadas à legitimidade da

imparcialidade e à legitimidade da reflexividade, que resulta em alterações cíclicas do

conteúdo da regulação, com participação de todas as partes interessadas.

O calendário eleitoral, aprovado para cada eleição pelos órgãos eleitorais, também

apresentam diversas formas de participação, como por exemplo, as audiências públicas em

diversas etapas de elaboração, validação e lacração dos sistemas eleitorais; a possibilidade de

impugnação pelos diversos legitimados de candidaturas, da composição das mesas receptoras

de votos, dos integrantes das juntas eleitorais e de escrutinadores; as audiências públicas de

Votação Paralela; a possibilidade de acompanhamento do registro de candidatos e de partidos

políticos para concorrer à eleição, e da prestação de contas eleitorais ao longo do processo

eleitoral, visto que os dados são disponibilizados pela internet para dar transparência e

viabilizar questionamentos oportunos pelas partes interessadas legitimadas. Outro mecanismo

de participação popular é a ouvidoria eleitoral, que recebe denúncias e consultas diversas

sobrea as várias etapas do processo eleitoral. Os procedimentos eleitorais obedecem aos

parâmetros de processamento para processos judiciais e administrativos, com ampla

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publicidade das decisões. Todas as fases do processo eleitoral são públicas e dispõem de

mecanismos de transparência e publicidade para acompanhamento e participação de todos os

interessados.

Em conjunto, tais atributos criam para a Justiça Eleitoral um novo lócus de poder

decisório e de definição e implementação de políticas públicas, com instrumentos

diferenciados de legitimação para o direito produzido, ao prever a institucionalização de

canais para participação das partes interessadas na definição do conteúdo da regulação. Seja

através de audiências públicas ou através do processamento formal de todas as demandas

recebidas.

Registre-se que, diferente dos processos judiciais das demais esferas do Poder

Judiciário, o processamento judicial dos feitos eleitorais no Brasil não se restringe à

apreciação de pretensões resistidas ou de atos ilícitos, mas alcança, de forma dinâmica, todos

os principais eventos do ciclo eleitoral. O processamento de registros de candidato, das

prestações de conta de campanha e das representações previstas na legislação eleitoral, são

claros exemplos da adoção de metodologia judicial para alcançar consenso mínimo e

estabilidade nas diversas fases do processo eleitoral. Os exemplos citados e muitos outros

caracterizam modalidades de procedimentos nos quais o conteúdo da regulação eleitoral é

discutido continuamente durante o ciclo das eleições, pois a judicialização de tais

procedimentos relaciona-se muito mais à criação de canais institucionalizados para exercício

da imparcialidade e reflexividade quanto à regulação eleitoral do que propriamente a solução

de pretensões resistidas.

A legitimidade de muitas ações eleitorais relaciona-se mais com a possibilidade

de construção de conteúdos e acordos intersubjetivos relacionados à legislação eleitoral do

ciclo eleitoral em desenvolvimento do que propriamente à solução de conflitos decorrentes do

processo eleitoral propriamente dito. Ou seja, diversos feitos eleitorais funcionam, na

verdade, como espaço para debate, delimitação e legitimação do conteúdo da regulação

eleitoral.

A adoção de uma pauta de princípios com finalidade específica de garantir

direitos humanos em geral, e direitos políticos em especial, com a participação influente de

cidadãos enquanto autores e destinatários das normas de convivência comum, e a atribuição

de personalidade jurídica aos partidos políticos, com a exigência de filiação partidária como

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condição de elegibilidade, caracterizam-se como os principais elementos de transformação

jurídico-institucional inseridos pelo nova forma de Estado no âmbito eleitoral em 1988.

Os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito previstos na carta

constitucional de 1988, em seu primeiro artigo - soberania, cidadania, dignidade da pessoa

humana e do pluralismo político – investiram a Justiça Eleitoral no papel de autoridade

reguladora autônoma do processo eleitoral com o objetivo de garantir as condições para a

realização de eleições íntegras. Então, é possível afirmar que o Tribunal Superior Eleitoral

atende aos requisitos identificados no terceiro e quarto capítulos para ser classificado como

autoridade reguladora autônoma do processo eleitoral.

A segunda análise, refere-se à identificação dos órgãos investidos das

competências correspondentes à Gestão Eleitoral e ao Sistema de Justiça Eleitoral, no Brasil,

conforme descrito no quinto capítulo.

É admissível considerar que o Brasil adota o Modelo Independente de gestão

eleitoral, na medida em que existe no país uma estrutura de órgãos permanente, responsável

pela gestão eleitoral, independente, com autonomia administrativa e financeira, sem

ingerência ou submissão ao Poder Executivo.

O núcleo essencial das funções que caracterizam instituições gestoras do processo

eleitoral está contemplado entre as competências atribuídas à Justiça Eleitoral brasileira:

organizar eleições e consultas populares; gerir o cadastro eleitoral e determinar quem pode

votar; registrar candidaturas e partidos políticos para as eleições; conduzir o processo de

votação, apuração e totalização dos votos.

Importante registrar que as demais funções e poderes tipicamente atribuídos à

órgãos de gestão eleitoral também integram as competências da Justiça Eleitoral brasileira: a

realização de políticas públicas e a elaboração de diretrizes eleitorais nacionais ou regionais,

como por exemplo o recadastramento eleitoral biométrico e a elaboração de um calendário

eleitoral unificado; o planejamento dos serviços eleitorais; a capacitação das pessoas

envolvidas no processo eleitoral; a realização de campanhas educativas e informacionais

sobre o exercício de direitos políticos; a delimitação de circunscrições eleitorais; o

planejamento e implementação da logística eleitoral; o alistamento eleitoral; o registro de

partidos políticos e de filiação partidária; a regulação e supervisão da atividade financeira

partidária; a regulação e supervisão da conduta de partidos políticos e candidatos durante o

processo eleitoral; a regulação e supervisão do comportamento da mídia durante as eleições; a

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fiscalização de pesquisas de opinião relacionadas ao processo eleitoral; a acreditação e

regulação da ação de observadores do processo eleitoral; a proclamação e certificação dos

resultados das eleições; a adjudicação das disputas eleitorais; a revisão e avaliação para

adequação da legislação eleitoral – Instruções e Resoluções – e a performance do órgão de

gestão eleitoral. Verificou-se que o Brasil ainda não adota códigos de ética ou códigos de

conduta para as partes interessadas no processo eleitoral, nem para seus membros e

servidores.

Uma consulta ao sítio da Justiça Eleitoral demonstra que há planejamento

estratégico e projetos estratégicos em andamento para esse ramo especializado de Justiça,

sendo, no entanto, interessante verificar que ainda não há acordos consolidados nos órgãos de

gestão eleitoral quanto aos objetivos e respectivos conteúdos, relacionados ao processo

eleitoral. A Cadeia de Valor (documento que registra os macroprocessos eleitorais) e os

Mapas Estratégicos (documentos que registram a missão, a visão, os valores e os objetivos

institucionais) publicados pelo TSE e pelos Tribunais Regionais evidenciam tanto os acordos

quanto as divergências que ainda permanecem vigentes sobre a compreensão do que significa

e abrange a expressão processo eleitoral.

Entende-se que tais divergência decorrem tanto da diferença de competência entre

os órgãos da Justiça Eleitoral, mas principalmente das transformações do papel da Justiça

Eleitoral no contexto contemporâneo. Ainda não há consenso sobre a natureza regulatória das

atividades dessa justiça especializada. Por ser integrante do Poder Judiciário e adotar a

metodologia jurisdicional na condução de diversos procedimentos do ciclo eleitoral, a

natureza regulatória de suas atividades fica encoberta.

O sistema de resolução de disputas e conflitos eleitorais no Brasil foi atribuído a

órgãos regulares do Poder Judiciário, especializados em matéria eleitoral, circunstância que

atribui à Justiça Eleitoral poderes jurisdicionais.

Como visto no quinto capítulo, a conjugação de todos esses poderes atribuídos a

uma mesma autoridade, em conjunto com os atributos para criação de uma autoridade

reguladora autônoma, e com finalidade específica – integridade das eleições -, caracterizam a

atribuição da típica função regulatória autônoma e qualifica o órgão eleitoral como autoridade

reguladora eleitoral híbrida.

Assim, por todo o exposto, classifica-se o Tribunal Superior Eleitoral como

Autoridade Reguladora Eleitoral híbrida do processo eleitoral brasileiro.

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6.3 Transição inacabada: regulação eleitoral, jurisdição e lacunas de legitimidade

A terceira onda democrática, ao final do século XX, trouxe para o Brasil,

importantes transformações no âmbito dos direitos fundamentais e coletivos, como visto em

capítulos anteriores. A Constituição de 1988, elaborada sob os influxos do constitucionalismo

contemporâneo e das mudanças paradigmáticas relacionadas à democracia nesse novo

contexto, privilegiou um extenso catálogo de direitos e garantias fundamentais, alinhando-se

com princípios internacionais de direitos humanos voltados para a concretização da dignidade

da pessoa humana em suas dimensões formal e substancial.

Na esfera dos direitos de cidadania, dos direitos políticos e dos direitos eleitorais,

não foi diferente. A influência dessa nova abordagem está registrada ao longo de todo o texto

constitucional. No entanto, embora estejam pulverizados na nova carta diversos direitos e

garantias associados a eleições, estes não foram explicitamente organizados (CARVALHO,

2010).

O sistema normativo relacionado à esfera eleitoral, pós Constituição de 1988, foi

delineado a partir da recepção do Código Eleitoral de 1965 - Lei 4.7.37/1965, como Lei

Complementar ao art. 121 da CRFB/1988, da publicação da Lei de Inelegibilidade – Lei

Complementar nº 64 /1990, da Lei dos Partidos Políticos – Lei 9.096/1996 e da Lei das

Eleições – lei 9.504/1997. Embora não tenha sido elaborado um novo, completo e integrado

conjunto de normas destinado a reger as eleições, claramente a legislação eleitoral criada

entre 1990 e 1997 resultou de esforços voltados para a sistematização das regras do jogo

eleitoral, com a intenção de prever e adequar as normas eleitorais à nova realidade

constitucional.

A previsão constitucional para o funcionamento partidário conforme o regime

democrático e os direitos fundamentais da pessoa humana; de prestação de contas à Justiça

Eleitoral, art. 17 e incisos da CRFB/88; de possibilidade de impugnação de mandato eletivo

ante essa corte especializada como consequência do abuso de poder econômico, corrupção ou

fraude, art. 14, §10 da CRFB/88; a previsão de audiências públicas para validar as resoluções

e instruções eleitorais, art. 105 da Lei das Eleições, são exemplos de atualizações legislativas

alinhadas com a tutela de interesses públicos entregues a pessoas jurídicas de direito privado.

No mesmo sentido, foi feita a inclusão do §9º na Constituição de 1988, pela Emenda

Constitucional de Revisão nº 4/1994, que tem por finalidade a proteção da probidade

administrativa, da moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do

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candidato, e a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou

emprego na administração direta e indireta.

Todos os exemplos normativos acima citados confirmam a transformação

correlação de forças entre as partes interessadas no sistema eleitoral, nos últimos anos do

século XX, e a consequente inauguração de novas relações regulatórias.

No entanto, a extensão dos poderes conferidos à Justiça Eleitoral e as diretrizes e

os limites para atuação partidária não foram suficientemente definidos na legislação

infraconstitucional, tornando-se estas as maiores fontes de tensão do atual sistema eleitoral

brasileiro. Tal circunstância fica muito clara quando se leva em consideração os princípios

identificados pela International IDEA para a previsão e delimitação de órgãos de gestão

eleitoral na Constituição e o checklist elaborado pela mesma instituição, com a finalidade de

verificar se há estrutura normativa (legal framework) adequada no país em análise. Tais

diretrizes buscam apresentar parâmetros racionais para a institucionalização da gestão

eleitoral voltada para a integridade eleitoral, a partir das boas práticas registradas conforme

avaliação dos 217 órgãos que compõem a base de estudo daquele instituto.

Conforme apresentado no quinto capítulo, foram identificados como princípios

relacionados à institucionalização de órgãos eleitorais que devem ser observados pelo

conjunto normativo constitucional de cada país os seguintes: independência do OGE;

composição do OGE; mandato dos membros do OGE; funções e poderes do OGE; direitos

associados ao sufrágio ou requisitos para qualificação do eleitor; direitos dos partidos

políticos; parâmetros para delimitação da circunscrição eleitoral ou autoridade competente;

sistema para eleição presidencial; sistema para eleição do órgão legislativo nacional; direitos

ou qualificação exigida para concorrer a cargo eletivo; periodicidade das eleições;

mecanismos para organização das disputas eleitorais. Como parâmetro de análise da estrutura

normativa relacionada ao Órgão de Gestão Eleitoral, também o checklist apresentado pela

International IDEA (2014) trouxe as seguintes questões:

a. A estrutura normativa garante que o OGE seja constituído como uma instituição independente e imparcial?

b. A estrutura normativa capacita o OGE para operar de forma imparcial e transparente?

c. A estrutura normativa protege os membros e servidores de dispensa arbitrária?d. A estrutura normativa estabelece o sistema de accountability, poderes, funções

e responsabilidades do OGE em cada um dos níveis e as relações entre os diversos níveis?

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e. A estrutura normativa adequadamente estabelece a relação entre o OGE e as partes interessadas externas?

f. A estrutura normativa estabelece diretrizes claras para todas as atividades do órgão de gestão eleitoral e ainda assim permite flexibilidade prática para suas implementações?

g. A estrutura normativa permite revisão exequível e oportuna das decisões do OGE?

h. A estrutura normativa estabelece prazo suficiente para organização eficaz dos eventos eleitorais?

i. A estrutura normativa garante que o OGE tenha recursos suficientes e oportunos para gerir suas funções e responsabilidades eficazmente?

A avaliação desses princípios e perguntas em face da legislação eleitoral brasileira

conduz à avaliação de que a Justiça Eleitoral foi concebida como órgão independente e

imparcial, mas não permite afirmar que o órgão de gestão eleitoral brasileiro esteja capacitado

para operar de forma imparcial e transparente na extensão necessária que a integridade

eleitoral demanda. A estrutura normativa pátria, em matéria eleitoral, não possui mecanismos

regulatórios suficientemente descritos e nem mecanismos para prevenir conflitos de interesses

entre as partes interessadas e outras formas de captura da regulação. Embora seja possível

considerar que o item c esteja atendido os demais itens precisam ser submetidos a avaliação

contextualizada frente aos desafios contemporâneos. A extensão de poderes e funções dos

órgãos de gestão eleitoral, a relação com as partes interessadas, as diretrizes claras para todas

as atividades da gestão eleitoral, a revisão oportuna e exequível das de suas decisões

(inclusive a estrutura recursal) e o prazo para organização eficaz dos eventos eleitorais são

questões que ainda precisam ser seriamente consideradas, pois carecem de normatização

adequada e adaptação ao novo paradigma de estado.

A análise de tais questões relacionadas à legislação eleitoral brasileira evidencia

que o Brasil possui estrutura normativa insuficiente para garantir a governança eleitoral

necessária e as prerrogativas que um órgão de gestão eleitoral precisa ter para tornar o

processo eleitoral íntegro em toda a extensão requerida.

A competência regulatória da Justiça Eleitoral em 1965, regulação tradicional, era

muito diferente da competência regulatória da Justiça Eleitoral pós 1988, regulação de

natureza autônoma, com compromissos de responsabilização política e de inserção de

referenciais democráticos na gestão de interesses públicos conduzidos por agentes privados.

A competência em matéria eleitoral não foi prevista na carta constitucional e a norma

complementar que deveria delinear a extensão e limites dos novos poderes conferidos à

Justiça Eleitoral não foi produzida pelo parlamento, sendo tal lacuna colmatada com a

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recepção do Código Eleitoral de 1965, norma designada para tratar da competência da Justiça

Eleitoral, e de forma indireta pela legislação eleitoral posterior.

A atuação partidária, como visto, também sofreu profundas transformações na

nova conjuntura constitucional e mais uma vez a legislação eleitoral deixou lacunas em aberto

ao delinear de forma insuficiente a responsabilidade eleitoral de partido políticos e candidatos

no exercício de atividade privada de interesse público. A ausência de mecanismos de

responsabilização eleitoral inviabiliza ações positivas da Justiça Eleitoral e do Ministério

Público Eleitoral para alinhar as ações das partes interessadas no processo eleitoral com os

parâmetros contemporâneos de integridade das eleições, e, portanto, com princípios

relacionados a direitos fundamentais da pessoa humana.

A fragmentação relacionada à previsão de direitos eleitorais pela carta

constitucional e a ausência de sistematização suficiente pela legislação infraconstitucional pós

1988 dificultam uma precisa delimitação de deveres, limites e responsabilidades em matéria

eleitoral tanto para a Justiça Eleitoral quanto para partidos políticos e candidaturas, em

desacordo evidente com novo ordenamento constitucional.

A estrutura de regulação autônoma em matéria eleitoral foi inaugurada pela nova

carta magna ao dar aos partidos políticos natureza jurídica de direito privado, ao determinar

que a filiação partidária é condição de elegibilidade e que partidos políticos prestam conta de

suas atividades para a Justiça Eleitoral. No entanto, os procedimentos relacionados à nova

estrutura regulatória permaneceram sem as adaptações correspondentes na legislação

infraconstitucional. A nova regulação autônoma em matéria eleitoral ainda possui

institucionalização precária das suas três dimensões: poderes e funções delimitados,

mecanismos de enforcement previstos e eficiência avaliada em relação às fases dos ciclos

eleitorais. Esses são os pontos críticos relacionados à transição inacabada para um novo

sistema eleitoral legitimo.

As evidências encontradas ao longo dessa pesquisa demonstram que a transição

para o novo marco regulatório em matéria eleitoral iniciada pela Constituição de 1988 não

chegou a ser integralizada, visto que as funções e limites para a atuação da Justiça Eleitoral

jamais chegaram a ser tratados adequadamente e a responsabilidade eleitoral, principalmente

a partidária e de candidatos, não foi suficientemente contemplada pela legislação

infraconstitucional posterior.

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269

A Constituição de 1988 e a legislação eleitoral produzida na década de 1990

inauguraram um novo ciclo regulatório em matéria eleitoral e, embora o procedimento

jurisdicional como mecanismo de manifestação da regulação eleitoral tenha sido mantido, sua

natureza foi completamente alterada. No Brasil, como visto, a Justiça Eleitoral funciona tanto

como Órgão de Gestão Eleitoral quanto como Sistema de Justiça Eleitoral, atende aos

requisitos para ser classificada como autoridade reguladora autônoma, reúne todas as

competências ligadas às dimensões da governança eleitoral e, portanto, pode ser classificada

como Autoridade Reguladora Eleitoral com poderes híbridos, uma vez que suas decisões

possuem natureza jurisdicional.

Por ser a Justiça Eleitoral integrante do Poder Judiciário, conforme infere-se do

artigo 118 da CRFB/1988, a nova regulação também se utiliza de linguagem jurídica e a

maioria de dos feitos eleitorais são processados como se judicial fossem, ainda que não

possuam natureza contenciosa (os procedimentos são autuados, distribuídos para juízes,

entram em sessão, recebem decisões, recursos, enfim, respeitam procedimentos equivalentes

aos dos processos judiciais independente de sua natureza jurídica). Essa constatação fica

muita clara quando se analisa a Resolução 22.676, de 13 de dezembro de 2007, que dispõe

sobre a classificação dos feitos e a formação das siglas processuais no âmbito da Justiça

Eleitoral, e a Lei 12.034/2009, que definiu a natureza do procedimento de prestação de contas

como jurisdicional. Como exemplo da adoção de procedimento equivalente ao procedimento

judicial para as principais atribuições da Justiça Eleitoral – sejam estas

normativas/regulatórias, administrativas, ou judiciais - elenca-se abaixo algumas das

previsões do artigo terceiro da Resolução 22.676/2007:

- a classe Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) compreende as ações que incluem o pedido previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64/90;

- a classe Apuração de Eleição (AE) engloba também os respectivos recursos;

- a classe Conflito de Competência (CC) abrange todos os conflitos que ao Tribunal cabe julgar;

- a classe Correição (Cor) compreende as hipóteses previstas no art. 71, §4º do Código Eleitoral;

- a classe Criação de Zona Eleitoral ou Remanejamento (CZER) compreende a criação de zona eleitoral e quaisquer outras alterações em sua organização;

- a classe Embargos à Execução (EE) compreende as irresignações do devedor aos executivos fiscais impostos em matéria eleitoral;

- a classe Execução Fiscal (EF) compreende as cobranças de débitos inscritos na dívida ativa da União;

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- a classe Instrução (Inst) compreende a regulamentação da legislação eleitoral e partidária, inclusive as instruções previstas no art. 8º da Lei 9.709/98;

- a classe Prestação de Contas (PC) abrange as contas de campanhas eleitorais e prestação anual de contas dos partidos políticos;

- a classe Processo Administrativo (PA) compreende os procedimentos que versam sobre requisições de servidores, pedidos de créditos e outras matérias administrativas encaminhadas por juiz ou tribunal e que devam ser submetidos a julgamento no Tribunal;

- a classe Propaganda Partidária (PP) refere-se aos pedidos de veiculação de propaganda partidária gratuita em bloco ou em inserção na programação das emissoras de rádio e televisão;

- a Reclamação (Rcl) é cabível para preservar a competência do Tribunal ou garantir a autoridade de suas decisões, e nas hipótese previstas na legislação eleitoral e nas instruções expedidas pelo Tribunal;

- a classe Recurso Especial Eleitoral (REspe) engloba o recurso de registro de candidatos, quando se tratar de eleições municipais (art. 12, parágrafo único, da LC nº 64/90);

- a classe Recurso Ordinário (RO), relativa às eleições federais e estaduais, compreende os recursos que versam sobre elegibilidade, expedição de diploma e anulação ou perda de mandato eletivo (art. 121, §4º, III e IV, da Constituição Federal);

- a classe Revisão de Eleitorado (RvE) compreende as hipóteses de fraude em proporção comprometedora no alistamento eleitoral, além dos casos previstos na legislação eleitoral);

- não se altera a classe do processo pela interposição de Agravo Regimental (AgR), de Embargos de Declaração (ED), de Embargos Infringentes (EI) opostos em Execução Fiscal e de Embargos Infringentes e de Nulidade (EIN) relativos ao processo penal nos tribunais regionais eleitorais;

- não se altera a classe do processo pela impugnação ao registro de candidatura;

- os recursos de Embargos de Declaração (ED) e Agravo Regimental (AgR), assim como a Questão de Ordem (QO), terão suas siglas acrescidas às siglas das classes processuais em que forem apresentados.

Outras classes processuais relacionadas à procedimentos típicos da Justiça

Eleitoral também estão contempladas na Resolução 22.676/2007: Ação de Impugnação de

Mandato Eleitoral, Ação de Investigação Judicial Eleitoral, Cancelamento de Registro de

Partido Político, Propaganda Partidária, Recurso contra Expedição de Diploma, Recurso

Eleitoral, Registro de Candidatura, Registro de Órgão de Partido Político em Formação,

Registro de Partido Político.

Uma breve análise da tabela contida na Resolução e da legislação eleitoral

apontadas permite a percepção imediata de algumas questões peculiares à Justiça Eleitoral e à

nova regulação em matéria eleitoral que as diferenciam substancialmente das demais justiças

e das outras autoridades reguladoras autônomas que existem no Brasil: todos os principais

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processos e procedimentos típicos do processo eleitoral são “judicializados” -

independentemente de ter ou não natureza judicial formal - mesmo os que em tese possuiriam

natureza administrativa ou regulatória como o registro de candidatura, a fiscalização da

propaganda eleitoral, a prestações de contas eleitorais, o registro de partido político e a

consequente autorização para funcionamento da atividade partidária, etc. Até mesmo a

atividade normativa, a produção de normas de regulação eleitoral e o processamento de

consultas, é realizada mediante procedimento equivalente ao de processo judicial, na classe

Consultas (Cta) e Instruções (Inst).

Por um lado, a utilização da racionalidade judicial, o uso de procedimentos

análogos aos procedimentos judiciais para gerir os eventos mais relevantes do ciclo eleitoral e

a adoção de audiências públicas para diversos eventos do calendário eleitoral

institucionalizam formas de discurso correspondentes às diversas funções da governança

eleitoral tornando-a legitima sob este aspecto – há procedimento previsto para validar as

Resoluções e Instruções produzidas pelo TSE, há previsão de participação de todas as partes

interessadas, os procedimentos são conduzidos por Juízes e Desembargadores Eleitorais

especificamente designados para sua tarefa, há garantia de participação de representante do

Ministério Público em todas as etapas do processo eleitoral e legitimidade para que esta

instituição se manifeste em nome da sociedade e da proteção dos princípios democráticos

Por outro lado, a multiplicação de feitos eleitorais, pós constituição de 1988 - em

razão do novo sistema eleitoral instaurado pelo novo regime jurídico trazido pelas

modificações legislativas já indicadas - tornaram o procedimento regulatório eleitoral de

natureza estritamente judicial altamente ineficiente, criando novas lacunas de legitimidade na

medida em que o processo eleitoral tem dificuldades de entregar, no prazo adequado,

representantes eleitos com percepção de legitimidade popular.

A título de exemplo, em 1994 a Justiça Eleitoral do Rio de Janeiro autuou menos

do que 50 processos relacionados a registro de partidos e candidaturas para as eleições gerais

daquele ano, na capital do estado. Em 2014, a Justiça Eleitoral do Rio de Janeiro protocolou,

só na capital, mais de 3.000 pedidos de registro para as eleições gerais e quantidade

equivalente de processos de prestação de contas. Sem considerar documentos protocolados

relacionados a esses procedimentos, os recursos correspondentes e os demais feitos eleitorais

protocolados no período. As exigências da nova regulação eleitoral, o controle de agentes

privados no exercício de atividades de interesse publico, alteraram significativamente o

volume e a natureza das atividades da Justiça Eleitoral, inclusive dos feitos de natureza

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criminal. A reformulação da legislação eleitoral, aliada às novas exigências materiais de

integridade – como, por exemplo, a avaliação de abuso de poder político ou econômico e a

avaliação de moralidade na vida pregressa para o exercício do cargo - trouxe impactos

consideráveis para o processamento dos feitos eleitorais, multiplicando questionamentos e

aumentando drasticamente a quantidade processada.

Esse impacto ainda não foi dimensionado a contento. Uma avaliação dos

relatórios do Justiça em Números, gerados pelo Conselho Nacional de Justiça, revela que as

séries históricas sobre processos eleitorais levam em conta os mesmos parâmetros e medidas

dos processos judiciais das demais justiças: processos autuados, processos baixados, taxa de

congestionamento, etc. A produtividade da Justiça Eleitoral é medida da mesma forma que as

demais justiças sem que seja considerada a temporalidade dos ciclos eleitorais, que

modificam radicalmente os parâmetros para julgamentos eficientes. A efetividade do processo

judicial eleitoral relaciona-se diretamente com o atendimento ou não dos prazos fixados para

as etapas do ciclo eleitoral. Não é qualquer aumento de produtividade e redução para

julgamento de prazos que atende à legitimidade das eleições. Mas sim aquela que respeita o

calendário eleitoral e entrega candidaturas e diplomações com questionamentos resolvidos no

prazo previsto.

Consulta realizada junto aos Tribunais Regionais Eleitorais, entre setembro e

outubro de 2015, durante o desenvolvimento da presente pesquisa, sobre a quantidade de

processos autuados entre 1994 e 2014 - nas classes processuais relacionadas a Registro de

Candidaturas, a Prestação de Contas, a Ação de Impugnação de Mandato Eleitoral, a Ação de

Investigação Judicial Eleitoral, a Recurso Contra Expedição de Diploma e à Representações –

revelou diversas dificuldades envolvidas no dimensionamento da nova atividade regulatória

da Justiça Eleitoral. Funcionalidades para controlar o trânsito em julgado dessas ações

somente foram implementadas no sistema de acompanhamento processual da Justiça Eleitoral

recentemente, em 2014. Entre 20 Tribunais Regionais Eleitorais consultados, apenas 6

responderam aos questionamentos. Um TRE respondeu que não pode realizar esse

levantamento sem prejuízo de suas atividades, outro informou que os processos estão à

disposição para consulta do pesquisador, três enviaram parcialmente as informações com a

ressalva de que a ausência de filtros específicos nos sistemas de acompanhamento impede a

geração dos resultados relacionados à consulta.

Os resultados da consulta realizada indicam que ainda não existem séries

históricas estruturadas para avaliação da atividade regulatória contemporânea da Justiça

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Eleitoral. Indicam ainda que os parâmetros de avaliação da atividade regulatória eleitoral

ainda são aqueles relacionados regulação jurisdicional tradicional (importante registrar que

esse não é um problema exclusivo da Justiça Eleitoral, visto que a ausência informações de

qualidade para avaliar o desempenho de órgãos estatais no exercício de sua atividade fim

ainda tem sido a regra no Brasil, a transparência das ações estatais ainda está relacionada, em

sua maioria, às atividades meio dos órgãos públicos: orçamento, licitações, vencimento de

servidores, etc.). O ponto que se pretende enfatizar é que sequer se pensa a ação da Justiça

Eleitoral sob a perspectiva da eficiência da regulação eleitoral, ou seja, ainda não se mede se

os julgamentos dos feitos eleitorais respeita as fases do ciclo eleitoral e se entrega resultados

satisfatórios: representantes eleitos percebidos como legítimos, nos prazos do calendário

eleitoral. Uma das tentativas pioneiras nesse sentido foi a previsão pela Lei 12.034/2009, no

que se refere às ações que resultem em perda de mandato, para fixar o prazo de um ano como

tempo de duração razoável. No entanto, tal previsão não trouxe ferramentas concretas para

evitar recursos protelatórios e tornar tal projeto uma realidade (CONJUR, 2010).

Verifica-se que o aumento significativo do número de processos eleitorais não

trouxe o correspondente aumento de estrutura para processamento das ações e nem alteração

dos prazos e mecanismos para sua apreciação. Ao contrário, a Lei 13.165/2015 reduziu em 40

dias o prazo para julgamento de registros de candidatos para as eleições de 2016, deixando

apenas 45 dias para processamento desses feitos em todas as instâncias até a data da eleição

no primeiro final de semana de outubro. Considerando-se que as eleições são municipais, as

chances de os processos de registro questionados terem sido julgados em 45 dias em 3

instâncias é bem pequena.

Conforme registrado, as alterações inseridas pela nova sistemática eleitoral

aumentaram significativamente a quantidade de procedimentos eleitorais judiciais, e este

aumento multiplicou demandas semelhantes, de natureza coletiva e massificada. Nesse

contexto, o uso da regulação jurisdicional tradicional, mediante processamento de feitos

eleitorais, tornou-se ineficiente pois a estrutura de processos judiciais, construídos sob

parâmetros de direitos individuais, com ampla proteção à garantias individuais como a

presunção de inocência – parâmetro típico de direito de defesa -, começaram a produzir

enormes lacunas de legitimidade na medida em que decisões judiciais seguras e definitivas,

começaram a ultrapassar a temporalidade associada com ciclos eleitorais de curto prazo e

mesmo a temporalidade do ciclos eleitorais de médio prazo.

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274

As lacunas de legitimidade da regulação jurisdicional tradicional resultam do

tempo associado com as decisões proferidas nos feitos eleitorais e da proteção insuficiente

dos sujeitos da democracia: eleitores ficam sujeitos a representação questionável. A

ilegitimidade da regulação eleitoral não decorre do reconhecimento de direitos e garantias

individuais, mas dos mecanismos de avaliação amplos e subjetivos que prolongam

indefinidamente os procedimentos eleitorais, submetendo a proteção de direitos coletivos a

critérios que não se coadunam com sua natureza. Não é incomum que no dia da eleição

candidatos sem registro definitivo concorram às eleições; que candidatos sejam diplomados

sem que seu registro ou suas contas tenham sido julgados em caráter definitivo ou sem que as

ações que questionam sua candidatura ou eventos de sua candidatura tenham sido resolvidas.

Como explicou Silvana Batini, Procurador Eleitoral em 2010 no Rio de Janeiro, em entrevista

à CONJUR, “a segurança jurídica não pode ser preservada à custa da lisura do processo

eleitoral” (CONJUR, 2010).

A título de exemplo, é possível citar matéria do Jornal O Globo, de 10/10/2015,

Escândalos em Série – Ações semelhantes à de Dilma punem pouco - sobre Ações de

Impugnação de Mandato Eleitoral / AIME, prevista no artigo 14, §10 e §11. Segundo a

matéria, que levantou dados em 23 dos 27 Tribunais Regionais Eleitorais, “mais da metade

das Ações de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME) instauradas nas eleições de 2010 e

2014 foi arquivada ou teve o acusado inocentado. Até hoje, apenas dois processos decidiram

pela cassação de mandato. Em ambos, a decisão é de primeira instância e os impugnados

estão recorrendo. ”

De acordo com a reportagem, desde 2010, 96 AIMES foram instauradas para

avaliar a conduta de candidatos a governador, senador e deputados. Dessas, 30 foram

arquivadas sem julgamento de mérito, sendo que a maioria por “perda de objeto”, em razão do

término do mandato. Ex-governadores do Amazonas, Omar Aziz, do Piauí, Wilson Martins, e

de Roraima, José Anchieta Júnior, completaram seus mandatos sem que a ação tenha sido

concluída. Seriam 96 ações abertas, 3 casos de cassação de mandato em primeira instância,

nenhuma condenação definitiva, 55 processos com absolvição ou arquivamento e 41 em

andamento. (Jornal O Globo, 2ª edição, sábado 10.10.2015, página 8, Ano XCI – nº 30.014,

Rio de Janeiro. Ações Semelhantes à de Dilma punem pouco – Levantamento do Globo em 23

TREs aponta morosidade, três políticos foram condenados em primeira instância. Silvia

Amorim e Tiago Dantas).

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Outra forma de ilegitimidade associada ao processo eleitoral decorre da ausência

de previsão normativa que contemple a contento a responsabilidade eleitoral das partes

interessadas que agem em desacordo com os princípios e normas que norteiam o processo

eleitoral. Ao contrário, a responsabilidade eleitoral tem sido sucessivamente reduzida por

legislações casuísticas produzidas a cada ciclo eleitoral. Alguns, entre muitos exemplos, são

apontados a seguir:

- A Lei 11.694/2008, que trata sobre a responsabilidade civil dos Partidos

Políticos, alterando o Código Civil e a Lei 9.096/1995, estabelece a responsabilização do

órgão que deu causa ao fato, no âmbito municipal, estadual ou nacional, sendo excluída a

solidariedade de outros órgãos ou direção;

- A Lei 12.034/2009 definiu que a natureza do procedimento de prestação de

contas é jurisdicional, o que permite a possibilidade de recursos diversos e sucessivos. No

mesmo diploma está a previsão de prazo decadencial de cinco anos, a possibilidade de

apresentação de reconsideração do julgado, o efeito suspensivo para os recursos que versem

sobre desaprovação total ou parcial da prestação de contas dos órgãos partidários; definiu o

prazo de 15 dias, contados da diplomação, para entrar com ação contra candidato eleitor

quando há irregularidade na prestação de contas, praticamente inviabilizando a ação;

- A Lei 12.034/2009 excluiu a responsabilidade subsidiária entre órgãos

partidários, seccionando a responsabilidade civil, trabalhista, tributária e eleitoral para cada

esfera de organização partidária, conforme previsão estatutária; vedou a ação civil pública em

matéria eleitoral; reduziu a abrangência das Resoluções e Instruções produzidas pelo TSE,

praticamente determinando que a regulação autônoma da Justiça Eleitoral volte aos

parâmetros da regulação tradicional;

- A Reforma Política de 2015. Lei 13.165/2015, reduziu ainda mais o tempo para

apreciação dos processos de Registro de Candidaturas, passando o último dia de registro do

dia 05 de julho do ano eleitoral para o dia 15 de agosto, com a possibilidade de registro de

candidatos até 30 dias antes do pleito; praticamente afastou a ilicitude de propagandas

eleitorais extemporâneas e praticamente tornou a prestação de contas de campanhas e partidos

um mero procedimento formal de apresentação de contas;

- A Ação de Investigação Judicial Eleitoral – AIJE ou Reclamação, previstas no

artigo 22 da Lei de Inelegibilidades – Lei 64/1990, traz previsão das seguintes sanções;

cassação de Registro do Candidato ou do diploma e inelegibilidade por 8 anos, contados da

data da eleição e não do trânsito em julgado da sentença definitiva. O prazo para sua

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propositura deveria ser de pelo menos seis meses após a diplomação para dar tempo razoável

ao Ministério Público para averiguar as irregularidades e levantar provas e os seus efeitos

deveriam ser o termo inicial contado da data do trânsito em julgado e não da data da eleição, o

que tem levado à extinção do processo por perda de objeto. Outro problema envolvendo as

AIJEs é que apenas fatos graves possuem consequências jurídicas, o desrespeito reiterado a

normas eleitorais em geral, é um nada jurídico;

- As prestação de contas de campanhas eleitorais fazem girar uma caríssima

máquina administrativa e judicial com poucos efeitos, na medida em que a legislação eleitoral

não prevê qualquer forma de sanção ou consequência jurídica para candidatos não eleitos.

Não há previsão de responsabilidade eleitoral pelos atos de campanha para candidatos não

eleitos e nem mecanismos para impedir atos protelatórios indefinidos e a litigância de má fé.

Todas essas circunstâncias contribuem para a ineficiência da regulação eleitoral.

O expressivo ajuizamento de ações eleitorais, sem efeitos práticos, sem consequências

jurídicas, aumenta apenas o custo da regulação e a torna largamente ineficiente.

A nova regulação eleitoral caracteriza fenômeno que resultou, assim como as

demais formas de regulação autônoma contemporâneas, da entrega de atividade de interesse

público a particulares, do fracasso da regulação jurisdicional tradicional para fazer face à nova

temporalidade das relações sociais e da multiplicação de demandas massificadas e repetitivas,

de natureza coletiva.

Como visto no terceiro capítulo, a regulação de natureza autônoma

contemporânea pressupõe uma dimensão normativa e uma constelação de poderes associados,

poder regulador delegado pelo poder legislativo à autoridade reguladora, uma dimensão de

enforcement / compliance, que significa a existência de mecanismos efetivos para supervisão,

fiscalização, incentivo e sanção, colocados à disposição das autoridades reguladoras e uma

dimensão de eficiência, que deve ter a capacidade de tornar o processo regulado percebido

como legitimo pela sociedade. Como visto no quinto capítulo, a arquitetura institucional de

sistemas eleitorais deve atender a pressupostos mínimos para viabilizar uma governança

eleitoral conforme exigências de integridade eleitoral, como condição para a estabilidade

social.

Assim, a regulação eleitoral autônoma depende do delineamento da

responsabilidade eleitoral, com consequências para os atos praticados durante o ciclo eleitoral,

independente da candidatura ter sido bem-sucedida ou não. A normalidade e a legitimidade

das eleições, ou seja, a integridade eleitoral, caracteriza interesse público indisponível e por

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isso a não adesão às normas deve ter consequências, independente do exercício do mandato e

independente de sua duração.

Como apontado no quarto capítulo, a hipótese de regulação autônoma eficiente

ampara-se no fracasso da regulação jurisdicional tradicional frente aos desafios

contemporâneos. A uniformização de condutas e ações das partes envolvidas no processo

eleitoral em regulamentos autônomos, em Resoluções e Instruções eleitorais detalhadas, e

feitas a priori, resultam da necessidade de se especificar critérios objetivos e tangíveis para o

objeto regulado, reduzindo a amplitude das questões discutidas, a fim de tornar os

comportamentos das partes envolvidas mais previsíveis e o custo para solução de divergências

menor.

O uso da regulação eleitoral autônoma deveria gerar maiores incentivos para

adesão às normas regulatórias por todos os envolvidos, na medida em que reduziria a

subjetividade para interpretação da norma eleitoral pela decisão judicial, tornando mais

objetiva e célere a sua aplicação. Não é o que tem ocorrido na prática. O maior exemplo é a

alteração do art. 105 da Lei das Eleições pela Lei 12.034/2009 que reduziu a amplitude do

poder regulamentar da Justiça Eleitoral, caminhando em sentido completamente oposto à

necessidade de fortalecimento da atuação dos órgãos de regulação eleitoral, previsto por

tratados e acordos internacionais.

A Constituição de 1988 e a legislação da década de 1990, ao inaugurarem

sistemática diferente de regulação eleitoral, deram origem a um novo ciclo de produção

normativa e de legitimação do sistema de direitos, em matéria eleitoral:

- A quantidade de decisões judiciais proferidas durante um ciclo eleitoral (T1) de

curto prazo pacifica entendimentos, produzindo acordos semânticos quanto ao conteúdo da

regulação eleitoral, como manifestação da reflexividade em processos judiciais;

- Os conteúdos sedimentados em no ciclo eleitoral (T1), levam a inovações na

regulação eleitoral no ciclo posterior (T2), que se manifestam mediante alterações das

Resoluções e Instruções expedidas pelo TSE para regular o processo eleitoral, resultado de

normas que pretendem garantir a imparcialidade e igual acesso às partes interessadas. O lócus

de legitimação dessas normas são as audiências públicas realizas conforme o artigo 105 da

Lei das Eleições, que criam a possiblidade de participação influente para validação do direito

regulador assim produzido, os “precedentes” criados nas decisões dos feitos eleitorais e o

próprio procedimento para elaboração e processamento de Resoluções e Instruções eleitorais;

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- A regulação produzida pelo TSE muitas vezes sofre questionamentos perante o

Supremo Tribunal Federal, que, na maioria das vezes tem validado as normas produzidas pelo

TSE. É possível identificar esse procedimento como outra fonte de legitimação, pois há

oportunidade das partes se manifestarem e o Ministério Público necessariamente atua como

representante da sociedade;

- As alterações introduzidas através do uso de direito regulador pela Justiça

Eleitoral, no ciclo eleitoral subsequente, dão ensejo a modificações da legislação eleitoral

produzida pelo parlamento (T3). O maior problema de legitimidade aparece em (T3), na

medida em que, muitas vezes, as alterações da legislação eleitoral produzida pelo parlamento

têm apresentado natureza casuística e acabam por neutralizar a regulação produzida pela

Justiça Eleitoral. Muitas dessas alterações deveriam ser objeto de questionamento quanto à

sua constitucionalidade pois ferem direitos e garantias fundamentais e alteram dispositivos

que deveriam ser tratados por lei complementar, como por exemplo a vedação de ação civil

pública em matéria eleitoral e reiteradas modificações e reduções dos poderes regulatórios da

Justiça Eleitoral (matéria relacionadas à competência da Justiça Eleitoral).

O ciclo de produção normativa que se iniciou virtuoso, após a Constituição de

1988, durante a década de 1990, tornou-se vicioso na virada do século. As principais razões

para questionamentos de legitimidade do processo eleitoral relacionam-se com a ausência de

clara definição de papéis, poderes e deveres dos partidos políticos e da Justiça Eleitoral e com

a ausência de uma legislação que reconheça e trate de forma sistemática a responsabilidade

eleitoral.

O sistema eleitoral brasileiro está incompleto. Nos últimos anos, a legislação

eleitoral tornou-se uma colcha de retalhos em razão da permanente disputa de interesses

envolvendo questões eleitorais e partidárias. É preciso reconhecer o enorme conflito de

interesses existente na produção de normas eleitorais e partidárias pelo parlamento, visto que

há interesse direto dos representantes eleitos, autores da norma, na legislação produzida. A

atuação da sociedade civil, através de iniciativas populares, tem buscado suprir as lacunas de

legitimidade em matéria eleitoral abertas pelo parlamento como reação à atividade regulatória

da Justiça Eleitoral. Os maiores avanços em matéria eleitoral têm sido resultado de leis que

resultam da iniciativa popular e do poder regulamentar da Justiça Eleitoral.

As alterações da legislação eleitoral, produzidas nos últimos anos, inclui, por um

lado os avanços decorrentes das leis de iniciativa popular e das Resoluções e Instruções da

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Justiça Eleitoral. Por outro lado, é compensada pela inclusão de diversos mecanismos

protelatórios ou de neutralização da regulação eleitoral, que permite a judicialização de

diversos conteúdos de natureza indeterminada da legislação eleitoral, tornando intermináveis

e sem efeito seus procedimentos. Como exemplo é possível citar o conceito de “quitação

eleitoral”, o conceito de “contas prestadas”, entre muitos outros, que tornam a regulação

eleitoral completamente ineficiente.

A vedação de Ação Civil Pública e a redução do poder regulamentar da Justiça

Eleitoral, expressamente trazida pela Lei nº 12.034/2009 – Lei da Ficha Limpa, já

mencionadas, são exemplos da ambivalência da legislação eleitoral, decorrente da disputa de

forças entre a sociedade e o parlamento. Esta lei resultou de iniciativa popular, mas durante

sua aprovação, o artigo 105 recebeu nova redação restritiva e o art. 105-A foi inserido para

impedir a utilização de Ação Civil Pública em matéria eleitoral, em clara afronta aos

princípios constitucionais. A redução do poder regulamentar da Justiça Eleitoral e a vedação

de ação civil pública limitam a proteção de direitos políticos eleitorais de natureza coletiva e

retiram da Justiça Eleitoral e do Ministério Público a chance de protege-los com ferramentas

adequadas. Em última instância, impede a proteção suficiente do estado democrático. A

garantia da legitimidade do processo eleitoral, missão da Justiça Eleitoral brasileira, ainda

requer enorme amadurecimento das instituições eleitorais e delimitação mais clara de

competências e responsabilidades.

As alterações da legislação eleitoral demonstram que, na década de 1990, houve

enorme esforço do Congresso Nacional para institucionalização de um sistema eleitoral

previsível e estável, com regras do jogo claras, e com “um campo de batalha nivelado”.

A virada do século - principalmente a última década – trouxe novos desafios para

a estabilidade democrática. A legislação eleitoral passou a ser produzida de forma casuística,

conforme interesses contingenciais predominantes, com sucessivas tentativas de neutralizar a

atuação da Justiça Eleitoral. Contudo, muito pouco se discute sobre o papel da Justiça

Eleitoral no Brasil e sobre a redução sistemática de seus poderes regulatórios pelo parlamento.

O debate mais arrojado conduzido pelas instituições de conflito, os partidos

políticos, sobre limites e poderes da Justiça Eleitoral, normalmente, pretende defender a

autonomia e independência partidária, a presunção de inocência de candidatos e a

irresponsabilidade eleitoral de partidos políticos, como se autonomia fosse fundamento

adequado para afastamento do controle e supervisão do Estado. O senso comum parece

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colocar em polos antagônicos os partidos políticos enquanto instituições dotadas de

autonomia e a Justiça Eleitoral, enquanto órgão tradicional do Poder Judiciário, que tenta

judicializar a política ou exacerbar seus poderes através de ativismo indevido.

Essa confusão decorre exatamente da incompleta compreensão do papel da Justiça

Eleitoral no contexto atual: a Justiça Eleitoral não é um órgão equivalente aos demais órgãos

do Poder Judiciário. Sua função preponderante não é apenas a função jurisdicional tradicional.

O uso de procedimento judicial como meio para processamento da regulação eleitoral não

descaracteriza seus poderes e a amplitude que sua ação regulatória deve ter. A Justiça

Eleitoral brasileira é uma Autoridade Reguladora Eleitoral, com funções híbridas, e sua

missão é assegurar a legitimidade do processo eleitoral, é garantir a integridade das eleições.

Uma nova estrutura do sistema de direitos relacionados à eleição, com alocação dos

respectivos discursos para legitimá-lo, e a delimitação de um conceito de responsabilidade

eleitoral mais amplo é que precisam ser discutidos.

O devido processo eleitoral pressupõe mecanismos que consigam entregar

resultados eficientes e legítimos a cada fase do ciclo eleitoral de curto, médio e longo prazo.

O processo judicial tradicional atua em um horizonte de tempo muito diferente e o ritmo da

Justiça Eleitoral ainda está distante do ideal (CONJUR, 2010).

A regulação autônoma é o mecanismo contemporâneo que tem por finalidade

suprir tais lacunas de legitimidade, tornando os feitos eleitorais mais céleres e objetivos,

mediante regulação prévia. Mas seus resultados serão inexistentes se não houver meios para

dar efetividade à regulação. Os mecanismos destinados a estes fins, poder normativo derivado

e mecanismos de enforcement previstos pela legislação eleitoral, estão sendo paulatinamente

reduzidos pelo parlamento sem que haja qualquer questionamento constitucional a este

respeito.

O reconhecimento da personalidade jurídica de direito privado para partidos

políticos, pela Constituição de 1988, deu-lhes autonomia para definir seus estatutos, mas não

afastou o controle estatal sobre atividades de interesse público. Ao contrário, como visto,

criou a correspondente obrigação de supervisão e fiscalização pelo Estado e a instituição que

recebeu parte significativa desta incumbência constitucional foi a Justiça Eleitoral.

A ausência de enfrentamento correto dessa questão, de adequada previsão legal

quanto a extensão de poderes da Justiça Eleitoral e da responsabilidade eleitoral das partes

envolvidas, resulta na imaturidade do sistema eleitoral brasileiro que fica refém da legislação

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eleitoral casuística produzida pelo parlamento e de uma ação cada vez menos efetiva do órgão

gestor das eleições, afogado em demandas repetitivas intermináveis.

O interesse pela manutenção de poder político por partidos e representantes

eleitos pode criar claros déficits de legitimidade tanto para a legislação política e eleitoral

aprovada como para políticas públicas previstas e implementadas. E essa ação estratégica

precisa ser compensada pela ação de outra instituição ou de intuições que atuem conforme a

lógica colaborativa, para produzir uma razão que seja procedimentalizada, e, portanto,

legitima. Trata-se da institucionalização de um sistema de controle mútuo, um dos cinco

maiores desafios relacionados ao alcance de eleições com integridade.

A Autoridade Reguladora Eleitoral, através de ações pautadas pela legitimidade

da imparcialidade e da reflexividade, é a instituição legitimada para suprir tais lacunas através

do uso de função regulatória autônoma. O Ministério Público Eleitoral é outra instituição

legitimada visto que possui a responsabilidade constitucional de proteger o estado

democráticos e o exercício de direitos humanos, mas por outros meios que também dependem

de previsão expressa de efeitos jurídicos para os atos praticados em afronta à legislação

eleitoral, ou seja, delimitação da responsabilidade eleitoral e previsão de sanções para seu

descumprimento.

A atuação da Justiça Eleitoral está submetida a controle pela rede de relações

estabelecida no Sistema Eleitoral, na medida em que sua atuação está vinculada à participação

do Ministério Público Eleitoral, pelo Supremo Tribunal Federal, pelo Conselho Nacional de

Justiça, pelos Tribunal de Contas da União, por partidos políticos e candidatos, pela imprensa,

por organizações da sociedade civil, cuja interação processual já foi aceita como amicus

curiae em ADPF 144 a respeito de matéria eleitoral – moralidade da vida pregressa de

candidatos a cargo eletivo - (CARVALHO, 2010, p. 127) e por cidadãos que atuam nas mesas

eleitorais e através da ouvidoria.

Há uma extensa rede de relações estruturadas no sistema eleitoral que busca

garantir a existência de um sistema mútuo de controle e segurança e essa rede funciona para

controlar as atividades da Justiça Eleitoral mas tem falhado no controle e proteção da

atividade regulatória da Justiça Eleitoral, em razão de lacuna legislativa e da não compreensão

de sua extensão, e no controle do acesso à representação política, da atividade intrapartidária e

no controle do impacto do dinheiro na política.

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282

Não se está a propor que o parlamento abra mão de determinar a moldura jurídica

e os princípios que devem reger a competição eleitoral através de uma legislação geral e

abstrata que fixe as diretrizes e estrutura do sistema político eleitoral. Mas sim que se

reconheça existência de direito regulador em matéria eleitoral e que as normas de regulação

eleitoral necessitam ter a amplitude e os instrumentos necessários para regular efetivamente

questões da competição eleitoral, que precisam ser resguardadas de interesses estratégicos de

maiorias oportunistas diretamente interessadas nos resultados da competição política. As

alterações da legislação infraconstitucional que aniquila funções e poderes da Justiça

Eleitoral, e, portanto, enfraquece as salvaguardas democráticas, é claramente inconstitucional.

Garantir o alinhamento de ações de partidos políticos e candidatos com padrões

internacionais de integridade eleitoral é tarefa de governança eleitoral, mais especificamente é

tarefa de regulação autônoma, regulação com finalidade específica e com ações positivas. A

proliferação de órgãos eleitorais autônomos bem-sucedidos é a evidência mais contundente

desses fatos e das transformações de legitimidade associadas ao sistema político eleitoral na

virada do século XX.

A ausência de reconhecimento de tais circunstancias impede a institucionalização

de procedimentos para lidar com os problemas relacionados a autoridades reguladoras

autônomas, como por exemplo o risco de captura aos órgãos reguladores pelos agentes

regulados. Impede ainda a identificação dos problemas relacionados à concentração de

funções correspondentes às tarefas de gestão e de sistema de justiça para um mesmo órgão.

Apenas para ilustrar, não existe na legislação qualquer impedimento para que

advogados que atuam no âmbito do direito eleitoral integrem a Justiça Eleitoral na qualidade

de membro do plenário, também não há previsão de “quarentena” para o jurista que se afasta

das Cortes Eleitorais e volta ao exercício da atividade advocatícia na área eleitoral. A lei

inclusive excepciona a atividade na Justiça Eleitoral como causa de impedimento da atuação

de advogados nas cortes eleitorais. Também não existem mecanismos institucionalizados para

reduzir a influencia de partidos políticos sobre Tribunais Eleitorais. Para compreender a

extensão de tais relações, basta registrar que a composição dos Tribunais Eleitorais recebe

indicações do chefe do Poder Executivo. Se por um lado a participação de integrantes do meio

jurídico colaboram para legitimar a atividade eleitoral, por outro abre possibilidades para

influencias indevidas no processo eleitoral se não houver instrumentos de controle

disponíveis, como por exemplo a existência de códigos de ética e de conduta para os membros

que integram os Tribunais Eleitorais e as partes interessadas no processo eleitoral.

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No mesmo sentido, os interesses e paradoxos associados à gestão podem ser

bastante conflitantes com os interesses associados ao sistema de resolução de disputas

eleitorais. Tais decisões operam em tempos diferenciados e atendem a objetivos distintos que

necessariamente implicam na avaliação dos custos / benefícios associados. Há uma tensão

permanente quanto à ênfase que deve ser dada às funções de gestão e de jurisdição. Se os

recursos são escassos e limitados, certamente haverá escolhas quanto a que aspecto deverá ser

privilegiado em detrimento dos demais. Para Autoridades Reguladoras Eleitorais, esse é um

problema concreto: a regulação eleitoral de curto prazo bem-sucedida, na medida em que

exige a maior parte dos recursos, abre a oportunidade para problemas de gestão e de equilíbrio

do sistema de justiça eleitoral de longo prazo, ou vice-versa.

Importante ainda frisar que, em contexto mais amplo, atualmente, diversas são as

medidas registradas em acordos e tratados internacionais para enfrentar desequilíbrios sociais,

políticos e econômicos associados com a ausência de regulação satisfatória. O combate à

corrupção e a promoção de transparência para redução de crimes associados à lavagem de

dinheiro, ao exercício ilegítimo de poder político-estatal e ao impacto descontrolado do

dinheiro na política, tem gerado novos acordos e obrigações para as diversas nações

signatárias, entre as quais se encontra o Brasil. Vide, em especial, as medidas associadas com

o combate à corrupção derivadas de acordos e tratados internacionais, que paulatinamente

vem sendo incorporadas legislação pátria. Tais medida tem gerado um novo ciclo de gestão

para entes públicos e privados através da produção de normas e de novas práticas associadas à

gestão de ricos, controles internos, compliance, sustentabilidade, exigências de auditorias

internas/externas, tanto para atividades de natureza pública quanto para atividades privadas de

interesse público que possuem impacto coletivo, ou envolvam interesses de terceiros, em

âmbito nacional e internacional. A Lei Anticorrupção, Lei 12.846/2013 é um dos exemplos

mais expressivos.

Esse recente movimento, com produção de novas normas e regulamentos

nacionais e internacionais, está estabelecendo e consolidando novas práticas de gestão de

riscos, controles internos e compliance para pessoas jurídicas, com novas exigências quanto à

implementação de controles para evitar fraudes, aumentar a adesão à normas e criar maior

estabilidade para as relações políticas e econômicas. Como exemplo é possível citar:

- em 2003 foi publicada a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção,

tendo entrado em vigor em 2005; em 2009, representantes dos países signatários se reuniram

em Doha para acordar formas de monitoramento da implementação da Convenção contra a

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Corrupção, tendo por resultado um ciclo de acompanhamento a cada 5 anos, através da

aplicação de checklist e elaboração de relatório específico com as medidas implantadas por

cada país;

- em junho de 2014 foi emitido o AS18 que estabelece requisitos sobre a

identificação, contabilização e divulgação de relacionamentos e transações entre a companhia

e suas partes relacionadas e em setembro de 2014 foi emitido o Alerta 12, que define

procedimentos necessários aos testes de receita/testes substantivos, ambos pelo PCAOB

(Public Company Accounting Oversight Board, corporação americana sem fins lucrativos

estabelecida pelo Congresso para supervisionar auditores de companhias públicas, com a

finalidade de proteger investidores e o interesse público, através de relatórios de auditoria

independentes certificados. As diretrizes estabelecidas pelo PCAOB estabelecem parâmetros

para auditoria externa e condicionam o comportamento de empresas, órgãos, público e etc.

Pela importância e efetividade de suas diretrizes, e pela globalização de mercados, tais normas

balizam ações de auditoria externa e comportamentos de empresas mesmo fora das fronteiras

americanas, inclusive no Brasil);

- em outubro de 2014 a Comissão de Valores Mobiliários estabeleceu a norma

CVM 552 para as empresas de capital aberto que cria a necessidade de reportar publicamente

as deficiências de controles internos identificadas pelo auditor externo e pelo auditor interno

(vigência a partir de janeiro de 2016);

- em janeiro de 2015, o BNDES institui novos requerimentos sobre compliance

para obtenção de crédito e financiamento para empresas interessadas em empréstimos;

- em março de 2015 a Controladoria Geral da União editou a norma CGU 909

com a definição de critérios para avaliação dos programas de integridade das empresas como

requisito para concessão de redução no valor de multas.

No mesmo sentido, O Tribunal de Contas da União e o Conselho Nacional de

Justiça vêm estabelecendo para o Poder Judiciário em geral, e para a Justiça Eleitoral em

especial, diretrizes diversas para implementação de planejamento estratégico, gestão de riscos,

aumento de transparência, etc. Entre estas destaca-se o novo objetivo estratégico para o Plano

Estratégico do Poder Judiciário para o período 2016-2020: combater a corrupção e a

improbidade administrativa. Este objetivo, no âmbito da Justiça Eleitoral está diretamente

relacionado com o artigo 7º da Convenção de Combate à Corrupção das Nações Unidas,

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incorporada à legislação pátria pelo Decreto 5.687/2006, que orienta a adoção de medidas

legislativas e administrativas para aumento da transparência e prevenção de corrupção

associadas às disputas eleitorais e ao financiamento político.

Ações relacionadas a prevenção e combate à corrupção e à maior transparência de

relações públicas e privadas caracterizam fenômeno novo no século XX por sua intensidade e

abrangência pois abarca relações nacionais e transnacionais e está intrinsecamente ligado à

necessidade de estabilização de mercados e de sistemas políticos. E umas das principais

características desse fenômeno é exatamente a identificação do vínculo existente entre

eleições íntegras e estabilidade social.

Nessa linha de desenvolvimento, a regulação da atuação de partidos políticos e do

impacto do dinheiro na política é elemento chave para a estabilidade social e para a

estabilidade econômica. O estabelecimento de diretrizes para suas atividades e o efetivo

controle de seu funcionamento, em face das novas perspectivas, assim como tem ocorridos

com bancos, empresas de capital aberto e órgãos públicos, aparecem como questões de

primeira ordem para a estabilidade política e social. Partidos políticos também deveriam

obedecer às normas e padrões internacionais mínimos de auditoria e controle interno e

externo, de gestão de risco, de compliance, e a Justiça Eleitoral deveria ter competência para

estabelecer diretrizes para seu funcionamento conforme tais diretrizes e padrões de

integridade eleitoral.

No mesmo sentido, a estrutura para processamento de alguns crimes eleitorais

deveria ser revista. A Justiça Eleitoral, enquanto autoridade reguladora eleitoral com poderes

híbridos, com sua estrutura atual, possui atribuições regulatórias muito específicas que não se

coadunam com o processamento de crimes eleitorais na dimensão que estes adquiriram no

contexto atual. Os ilícitos eleitorais contemporâneos envolvendo abuso de poder político ou

econômico alcançaram circunstâncias muito mais complexas e amplas que aquelas anteriores

à 1988, sendo certo que a condução de processos criminais dessa magnitude exige

especialização e estrutura adequada que atualmente a Justiça Eleitoral está longe de possuir.

Entra em pauta uma necessária consideração a respeito da separação das esferas de

responsabilidade eleitoral e criminal, para que cada uma respeite ao devido processo com seus

meios, medidas e especificidades. Este é um desafio muito significativo quando se acompanha

o que vem acontecendo no cenário político brasileiro nos últimos dez anos.

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A ausência de reconhecimento de tais circunstâncias gera o enfraquecimento da

democracia e da dinâmica eleitoral assim produzida. Se é verdade que a estabilidade social

depende da qualidade das eleições e da democracia, se é verdade que a atuação do órgão

regulador eleitoral é fator determinante para a estabilidade democrática, torna-se premente

levar adiante essa nova pauta de investigação para que adequações da legislação eleitoral

sejam realizadas e procedimentos orientados para a integridade das eleições previstos.

A regulação eleitoral brasileira atual ainda não atende em toda a extensão

necessária aos requisitos da nova regulação autônoma, levando-se em consideração suas três

dimensões, conforme indicado no capítulo 3: poder regulatório de natureza híbrida,

mecanismos de enforcement e eficiência.

O poder regulatório autônomo da Justiça Eleitoral tem sido sucessivamente

neutralizado ou mesmo reduzido pelo parlamento, fazendo com que o processo eleitoral não

seja regulado com a extensão necessária. A legislação eleitoral ainda não enfrentou com o

alcance exigido o tema da responsabilidade eleitoral para colocar à disposição da Justiça

Eleitoral instrumentos para tornar efetiva a regulação eleitoral mediante previsões normativas

que gerem efeitos no mundo jurídico para não compliance com as normas eleitorais.

A eficiência da regulação deve ser avaliada segundo as etapas dos ciclos

eleitorais. A regulação será eficiente quando entregar definitivamente julgados registros de

candidaturas antes do dia da votação, contas prestadas e aprovadas antes da diplomação;

quando consequências para o descumprimento da legislação eleitoral tiverem efeitos

jurídicos; quando questionamentos relacionados à campanhas forem julgados antes da

diplomação; quando questionamentos sobre diplomações tiverem prazo razoável para

julgamento, por exemplo, no primeiro ano do mandato; quando partidos também adotarem

procedimentos internos voltados para o respeito a princípios de direitos humanos e princípios

relacionados à eleições íntegras (democratização intrapartidária).

O contexto atual requer alteração de perspectiva para avaliação da arquitetura

institucional do sistema eleitoral brasileiro, principalmente no que se refere aos papéis,

competências e responsabilidades relacionados com a Justiça Eleitoral, partidos políticos e

demais partes interessadas no processo eleitoral, com a finalidade de alinhar suas ações com

os requisitos de adequação e justiça da nova ordem constitucional. Eleições, partidos

políticos e candidaturas devem ser efetivamente regulados. A regulação deve atender aos

pressupostos da regulação autônoma legítima, tanto no que se refere à produção normativa

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quanto aos mecanismos de enformcement previstos e à eficiência. Sem essas adequações, a

realização de eleições com integridade fica profundamente comprometida e o sistema

democrático sujeito à erosão de seus fundamentos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A aplicação de analise discursiva à atuação da Justiça Eleitoral evidenciou as

tensões existentes entres os diversos papéis sob a responsabilidade da instituição. Elaborar

normas, implementar procedimentos, julgar conflitos e solucionar disputas, são atribuições

que, quando consideradas em conjunto, carecem de formas especificas de discurso e meios

próprios e específicos de legitimação para cada atividade.

Uma análise discursiva da questão, à primeira vista, demonstra então os diversos

déficits de legitimidade que seriam decorrentes da institucionalização de uma mesma

autoridade com os três poderes típicos do Estado. Habermas, em sua obra Direito e

Democracia, ressalta os problemas resultantes desse tipo de instituição e a possibilidade de

enfraquecimento da estrutura democrática pela multiplicação de órgãos desse tipo se a

dimensão da eficiência for colocada acima da necessidade de legitimação dos discursos

correspondentes que fundamentam e sustentam o sistema de direitos.

A abordagem discursiva, no entanto, demonstrou o caráter radicalmente

democrático do projeto político contemporâneo e enfatiza a importância da comunicação

como fonte de integração social, da institucionalização de arenas e procedimentos

deliberativos, da importância de mecanismos de transformação de ações estratégicas em ações

cooperativas. Ou seja, a importância da institucionalização de formas para produção de razão

procedimentalizada como meio para legitimação da convivência.

A proposta teórica desenvolvida por Pierre Rosanvallon na obra Democratic

Legitimacy também permitiu um novo olhar para a Justiça Eleitoral enquanto instituição e

para o problema da legitimidade a ela associado. Nesse sentido, alguns pontos ressaltados

pelo autor foram de especial interesse para essa pesquisa: a) a legitimidade da democracia

representativa contemporânea que para ser corretamente compreendida e analisada precisa ser

decomposta em seus múltiplos elementos constitutivos: legitimidade eleitoral, legitimidade do

serviço público, legitimidade da imparcialidade, legitimidade da reflexividade e legitimidade

da atenção ao particular; b) a generalidade social ou a percepção de bem comum, que deixou

de ser unânime em razão de uma maioria composta por uma “miríade de minorias”

deslocando o foco para a necessidade de entendimento e de compartilhamento de prioridades

que levem em conta as circunstâncias de todos; c) a soberania popular contemporânea com

sua manifestação complexa: múltiplos sujeitos e múltiplas temporalidades; d ) o sistema de

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direitos que, por consequência, também possui dimensões temporais e espaciais múltiplas,

assim como formas de expressão diferenciadas: o exercício de direito eleitorais, no curto

prazo de um processo eleitoral e na forma e no tempo das urnas; a

configuração/reconfiguração do sistema de direitos pelos influxos recebidos da esfera pública

deliberativa, na dimensão temporal e espacial de médio prazo dos mandatos políticos e dos

ciclos eleitorais para elaboração de normas; os direitos individuais e coletivos na linguagem e

no tempo dimensionados para os devidos processos administrativos e judiciais, e no longo

prazo da jurisprudência constitucional; d ) o papel das autoridades reguladoras e das cortes

constitucionais enquanto agentes críticos para a percepção e manifestação das novas e

precárias formas de legitimidade contemporâneas: legitimidade da imparcialidade,

legitimidade da reflexividade e legitimidade da proximidade; e ) a exigência contemporânea

de reconhecimento para instituições de conflito e para instituições de consenso.

A sociedade e o Estado contemporâneos encontram-se perante uma crise,

conforme alertou Habermas e, por consequência, perante transformações do direito que atuam

sobre seus fundamentos estruturais e abstratos: há de fato uma mudança paradigmática na

forma de funcionamento do processo político e na emergência de novas instituições estatais

com características e pressupostos legitimadores profundamente diferenciados. Como visto,

no Estado Democrático de Direito, o lugar simbólico de uma “soberania diluída pelo

discurso” deve permanecer vazio, e em tempos de mudanças paradigmáticas do sistema de

direitos essa condição tem como pré-requisito a institucionalização de procedimentos que

possam suplementar os déficits de legitimidade trazidos pelas mudanças no Estado de Direito

em sua versão contemporânea.

Autoridade reguladores e cortes constitucionais ganharam protagonismo nessa

nova circunstância, enquanto novas formas de articulação social e novos espaços deliberativos

para composição do interesse comum. Como apontado por Rosanvallon, os representantes do

povo deveriam ser autoridades independentes, imparciais e com competência diferenciada em

relação a eleitores, características que atualmente descrevem muito mais órgãos reguladores

independentes e cortes constitucionais do que o parlamento contemporâneo. Nesse sentido, as

autoridades reguladoras autônomas configuram uma forma de poder representativo embora

não sejam integradas por agentes eleitos. Em sociedades fragmentadas e complexas, a

multiplicação de expressões parciais da democracia permite uma aproximação mais efetiva da

generalidade democrática. Se a sociedade possui mecanismos para interferir e legitimar os

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poderes estatais de forma contínua, então a generalidade social se encontra, pelo conjunto, no

comando.

Na mesma linha de argumentação, o processo eleitoral é tão importante porque

oferece meio objetivo legitimo de desejar em comum, de reduzir periodicamente a diversidade

a um denominador comum, estando tal função agregativa das eleições no centro do processo

deliberativo democrático. O aparecimento de autoridades reguladoras eleitorais autônomas se

alinha com este propósito, na medida em que tais entes voltam-se para a missão de assegurar

confiança e justiça a todas as fases do processo eleitoral, reconhecendo-se a necessidade de

uma terceira parte imparcial e reflexiva como premissa fundamental para legitimação de todo

o procedimento, cujo resultado é a escolha legítima de representantes eleitos. Nesse sentido, a

legitimidade das eleições significa resultado aceito por perdedores e vencedores, percepção de

legitimidade por todos os envolvidos para os representantes eleitos, redução de conflitos a

níveis toleráveis através de processo deliberativo racional.

Na sociedade contemporânea a pluralização da temporalidade e do espaço

deliberativo para o exercício democrático é uma exigência cada vez maior. A permanente

mutação social torna o pensamento de curto prazo uma ameaça constante, sendo necessário

para a manutenção dos laços sociais um parâmetro estável, função ocupada pela representação

através de princípios. A imparcialidade e a reflexividade são assim formas de representação

democrática que permitem a redução do abismo entre as escolhas majoritárias e a prática

democrática concreta, colaborando para o fortalecimento do sistema representativo como um

todo. Ao permitir a construção da vontade geral, enquanto resultado de acordos deliberativos

sob a forma de discursos diversos, em escalas de tempo e de espaço diferentes do momento

das urnas e dos mandatos políticos, tais manifestações concedem aos cidadãos e à sociedade

civil outras formas de controle sobre o poder político.

O processo eleitoral, nesse sentido, seria por excelência um canal complementar

para cidadãos realizarem controle social sobre a legislação eleitoral produzida e sobre os

resultados eleitorais alcançados, na medida em que concede às partes interessadas nas eleições

poderes para questionarem a atuação da própria Justiça Eleitoral e para apresentar pontos de

vista divergentes para a interpretação das normas eleitorais, colaborando para a construção de

sentidos e conteúdos legítimos associados aos sistema eleitoral. O processo eleitoral

funcionaria, nesse sentido, como espaço permanente para justificação das decisões políticas

envolvidas na escolha de representantes eleitos, como arena racional para redução de

desacordos políticos à níveis toleráveis.

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Os cidadãos já não se contentam em participar apenas no dia da votação, há uma

exigência por maior intervenção em todos os momentos e em todas as dimensões do exercício

democrático. Há exigências de implementação de meios para um intercâmbio aberto e efetivo,

para reconhecimento da batalha que se trava diariamente pela justificação de ações políticas e

governamentais em matéria eleitoral. Há ainda exigência de garantia de meios para troca

efetiva de informações entre a Justiça Eleitoral a e sociedade, que serve para o órgão eleitoral

como instrumento de ação para construção de sua legitimidade e para os cidadãos como

mecanismo de reconhecimento e controle. A justificação e a troca de informações são

processos interativos que se constituem como elementos essenciais da legitimidade da atuação

da Justiça Eleitoral contemporânea.

Nessa linha de pensamento, a atribuição de função regulatória autônoma à Justiça

Eleitoral deveria incorporar ao processo eleitoral novos aspectos democráticos para a gestão

de interesses privados, com ênfase para a legitimidade, efetividade, eficiência,

responsabilidade e controle. Não se trata mais de simplesmente punir fraudes e ilícitos

eleitorais, mas sim de direcionar o desenvolvimento do processo eleitoral conforme interesses

públicos juridicamente definidos, conforme as diretrizes da integridade eleitoral. O que, mais

uma vez, implica dizer: com níveis aceitáveis e racionalizados de desacordos que mantenham

os canais comunicativos do sistema político-jurídico preservados.

Todas essas considerações colaboraram para delimitar e redimensionar os

parâmetros de legitimidade para aferição de uma atuação legítima da Justiça Eleitoral.

Enquanto instituição de consenso, a Justiça Eleitoral atua para regular instituições de conflito,

ou seja, atua para regular a competição para acesso a cargos representativos. Embora

Habermas e Pierre Rosanvallon tenham elaborado seus argumentos partindo de pontos de

vista teóricos claramente distintos, ambos ofereceram colaborações muito significativas para

se pensar a atividade regulatória e a jurisdicional da Justiça Eleitoral. Todos os referenciais

teóricos utilizados tiveram por finalidade objetivos comuns: identificar o fio condutor que

possibilita a convivência democrática legitima e que fundamentos tornam legitimo o exercício

da atividade regulatória na democracia contemporânea. A regulação autônoma nos termos

aqui apresentada constitui-se como fenômeno novo que precisa ser avaliado quanto a seus

potenciais democráticos, caracterizando assim um problema de democracia.

Assim como para Habermas a divisão de poderes nas democracias

contemporâneas funda-se em princípios do Estado do Direito, nas formas de apropriação de

discursos e nos correspondentes processos exigidos para sua legitimação, diferenciando-se o

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exercício do poder político no Estado Democrático de Direito significativamente do exercício

desse poder no Estado Liberal e do Estado Social, também Pierre Rosanvallon elabora

reflexões sobre a democracia contemporânea na perspectiva das transformações sociais, em

face do aprofundamento da complexidade e velocidade das relações estabelecidas, para

demonstrar como tais transformações tiveram impacto e transformaram a arena política

trazendo novas exigências de legitimação.

As duas análises são encaminhadas no sentido de que o funcionamento de

autoridades reguladoras independentes e da jurisdição constitucional apresentam questões

novas no contexto da democracia contemporânea, caracterizando-se como questões que

precisam ser adequadamente problematizadas e analisadas com novos instrumentos e não com

as ferramentas teóricas tradicionalmente utilizadas pela cultura jurídica positivista, pela

tradição liberal.

O poder regulador tradicionalmente abordado pelo direito administrativo

apresenta-se como manifestação de uma burocracia prevista como neutra, como mera

executora de programas e políticas previstas pelo parlamento. A atividade regulatória

contemporânea não se enquadra nessa figura e refere-se à atuação da administração e da

justiça enquanto entes que se auto programam e, portanto, elaboraram políticas públicas,

realizam escolhas políticas entre meios e fins, perdendo sua característica de intermediários

neutros, ficando sujeitos à instrumentalização de suas práticas, se não houver suplementação

adequada de legitimidade para suas ações.

A atividade regulatória autônoma legítima funciona a serviço dos direitos

humanos previstos em tratados internacionais, a serviço dos princípios constitucionais e

precisa atuar como vetor para alinhamento de ações com as escolhas políticas e jurídicas

originadas do devido processo, com escolhas políticas e jurídicas que reflitam os anseios

sociais e que tenham sido filtradas por um processo racional.

Não há consenso firmado a respeito dos papéis de tais instituições, autoridades

reguladoras independentes e cortes constitucionais, que atuam ao lado dos poderes

tradicionais do Estado como novos centros deliberativos. Não há ainda consenso a respeito de

formas de legitimação para suas respectivas atuações, ou seja, trata-se de fenômeno em

desenvolvimento que não foi suficientemente compreendido e teorizado. A questão se torna

ainda mais complicada quando envolve a análise da atuação da Justiça Eleitoral, visto que tal

instituição tem por atribuição resguardar parte do processo político fundamental para o

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exercício democrático, ou seja, atua diretamente sobre um dos pilares da democracia

representativa: eleições periódicas.

Assim, vale ressaltar que tanto Habermas como Pierre Rosanvallon colocaram no

centro de suas análises a importância das eleições e dos direitos de participação no processo

democrático, tendo sido estas uma das principais razões para as teorias expostas pelos autores

terem sido escolhidas como referencial para se pensar criticamente a atividade da Justiça

Eleitoral.

Ambos apresentam ainda reflexões sobre legitimidade no exercício dos poderes

do Estado, sobre a divisão de poderes e apresentam propostas para análise das figuras

institucionais que passam a ganhar relevo no final do século XX, as agências reguladoras ou

autoridades reguladoras independentes e as cortes constitucionais, priorizando as

transformações na atuação e nos novos papéis, e colaborando decisivamente para a

compreensão da atuação da Justiça Eleitoral e das exigências de legitimidade que se

apresentam em tempos atuais.

A pluralização de microssistemas jurídicos em face da tradicional tripartição de

poderes napoleônica, ao lado do exercício cotidiano ampliado de debates a respeito de temas

constitucionais e jurídicos nas cortes judiciais, trouxeram mudanças significativas para as

sociedades contemporâneas, e em especial para o Brasil. Não é à toa que houve uma explosão

de demandas perante o judiciário, a multiplicação de agências reguladoras, a multiplicação de

ouvidorias, movimentos evidentes em direção à transparência e maiores exigências de

accountability.

A ideia de sistemas setoriais e todo o desenvolvimento jurídico teórico a respeito

da atividade regulatória autônoma convergiram com as teorias da democracia apresentadas.

Há divergências que sempre precisarão ser reconhecidas, mas como ficou demonstrado, a

atividade regulatória autônoma com todas as transformações pontuadas de fato representa um

fenômeno novo e é nessa linha de desenvolvimento que se escolheu prosseguir.

Esses novos centros atomizados de manifestação de poder político deram

expressão a demandas por legitimidade que se encontravam reprimidas na sociedade e

construíram novos canais de expressão para a cidadania, aproximando-a do Estado. Nesse

formato, interesses mais sensíveis e imediatos encontraram meios para serem formulados.

No caso especifico da Justiça Eleitoral brasileira, objeto de estudo neste trabalho,

ficou clara a necessidade de contextualização democrática para sua análise. Um diagnóstico

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de suas competências em face do modelo normativo de democracia deliberativa evidenciou os

déficits de legitimidade que a atribuição das três competências típicas do Estado pode trazer

se não forem estabelecidas as formas correspondentes para formulação de discurso e

respectiva legitimação para cada uma dessas competências. Ficou claro ainda, os problemas

apontados por Habermas para instituições que dispõem simultaneamente de discursos de

fundamentação e de aplicação de normas, ou seja, que se auto programam sem os respectivos

procedimentos de legitimação.

Como a existência de autoridades reguladoras independentes é um fenômeno que

tem se multiplicado na contemporaneidade, colaborou ainda para compreensão do fenômeno

o ponto de vista específico apresentado sobre o tema por Pierre Rosanvallon. Ao propor o

autor o reconhecimento das dimensões múltiplas de uma democracia reflexiva, este reforçou a

importância de se ampliar exigências para uma dinâmica democrática para outras arenas

políticas tradicionais, demonstrando claramente que a prática deliberativa precisa ser

reconhecida como mecanismo democrático em outros espaços significativos para além do

parlamento.

Tanto a perspectiva de Habermas, democracia deliberativa, como a de Pierre

Rosanvallon, democracia reflexiva, convergem para a identificação do Estado Democrático de

Direito como um novo paradigma de Estado, no qual a busca pelo consenso - pela

coexistência, pela resolução harmônica e racional das divergências - e a participação

apresentam novas reivindicações de legitimidade e, portanto, novas exigências para a coesão

social.

A linguagem e a perspectiva de processo histórico apareceram como parâmetros

que balizam esforços para superação do paradigma de estado liberal e da filosofia da

consciência, para apreensão e inclusão dos elementos fáticos que sistematicamente “sobram”

na abordagem positivista. Há uma dimensão cooperativa claramente reconhecida que se

alimenta e se ampara em uma concepção de sistema jurídico radicalmente comprometida com

valores democráticos, reconhecidos inclusive em convenções e tratados internacionais de

direitos humanos, que após serem filtrados pelo devido processo deliberativo, ganha desenho

institucional sob a forma de princípios e de uma constituição prospectiva que irá orientar e

vincular todo o seu funcionamento. Há também um processo democrático histórico, que como

um romance em cadeia, conecta dimensões temporais e espaciais diferentes, resultando e

sendo resultado das diversas interações que ocorrem no tecido social. O direito assim como a

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democracia são feitos de linguagem e de ciclos temporais, e como tal, somente podem ser

conhecidos e fazer sentido em tempo, espaço, cultura e circunstâncias concretas.

Por outro lado, há uma dimensão estratégica que precisa ser considerada, e para

essa dimensão é que funcionam as ferramentas e modelos de análise, que podem servir de

grande auxílio para a realização de diagnósticos. As ferramentas contemporâneas disponíveis

para avaliação de processos regulatórios encaixam-se aqui: análises sobre assimetrias de

informação, falhas de mercado, externalidades, análises qualitativas e quantitativas, etc.,

fazem parte desse esforço.

Os modelos econômicos, sociais e políticos voltados para compreensão da questão

regulatória, se abordados de forma isolada do contexto atual, certamente podem levar a

conclusões bastante descoladas da realidade. Daí a importância de se estabelecer marcos

teóricos de democracia para apreciação crítica de instituições e de fenômenos jurídicos,

políticos e sociais. Não há inferência descomprometida, ou, de outra forma, se a ponte entre

fatos e normas, entre fatos e teorias, não for estabelecida, o que haverá, certamente, será

espaço preservado para a discricionariedade e para déficits de legitimidade.

Por esta razão é possível dizer que não há exatamente conflito entre a dimensão

cooperativa voltada para o entendimento com a participação influente de todos e a dimensão

estratégica voltada para fins. O próprio Habermas reconhece que o ser humano desempenha

papéis diversos, sendo um deles o de cidadão.

Lógica cooperativa e lógica estratégica, soberania popular e direito humanos,

direitos individuais e direitos coletivos, princípio majoritário e constitucionalismo,

instituições de conflito e instituições de consenso, são todas faces de uma mesma moeda.

O grande desafio que se apresenta é compreender como se estrutura um sistema

de direitos legítimo em meio a uma sociedade cada vez mais complexa e globalizada,

enquanto mecanismo de diálogo democrático, e para qual direção este e suas instituições

devem se orientar. E isso implica dizer que no Estado contemporâneo outros vetores devem

ser agregados à estrita legalidade formal para que suas ações sejam percebidas como

legítimas. Em relação ao objeto de estudo escolhido por esta pesquisa, a Justiça Eleitoral, o

vetor identificado foi o da integridade das eleições, tal como previsto por tratados e

convenções internacionais.

A gravidade e complexidade dos problemas contemporâneos ligados a corrupção

e desequilíbrios financeiros, em escala global, com potencial para enfraquecer as instituições

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e os valores da democracia, da ética e da justiça, trouxeram ameaças novas para a estabilidade

e a segurança das democracias contemporâneas.

A governança eleitoral e a realização de eleições com integridade, nesse sentido,

ganharam novo significado enquanto elo de ligação entre a qualidade da democracia e a

estabilidade social. A governança eleitoral atual, com seu objetivo de perseguir a integridade

eleitoral, tornou-se um dos novos e maiores desafios para a estabilidade democrática

contemporânea em face da fragmentação do interesse público e do enorme impacto que o

dinheiro desregulado, de origem indefinida passou a ter na política. Tais circunstâncias

levaram para outro patamar as relações estabelecidas no sistema eleitoral, atribuindo à

governança eleitoral atual papel radicalmente diferenciado e à missão institucional da Justiça

Eleitoral brasileira significado inteiramente novo.

Nesse novo contexto, órgãos eleitorais tiveram sua natureza modificada e

passaram a funcionar como autoridades reguladoras eleitorais representando uma nova forma

de manifestação de soberania popular, um dos meios para manter o interesse público no

comando. A nova arquitetura dos sistemas eleitorais deve ter por finalidade resguardar a

integridade e as condições de legitimidade do sistema representativo, preservando a

possibilidade de confronto legítimo de ideias e de interesses contrapostos, assim como a

construção do equilíbrio reflexivo.

O aparecimento de órgãos eleitorais autônomos é uma realidade incontestável da

governança eleitoral contemporânea, o que conduz a inevitáveis reflexões sobre as condições

de legitimidade para sua atuação, com questionamentos diversos sobre seus paradoxos,

insuficiências, limites, poderes e procedimentos envolvidos; sobre a emancipação cada vez

maior da esfera eleitoral de responsabilidades. A governança eleitoral, nesse sentido, é um

problema de democracia.

A transformação da regulação eleitoral tradicional para a regulação eleitoral de

natureza autônoma, no Brasil, ocorreu como resultado dos diversos fatores já apontados ao

longo da presente investigação: a paulatina universalização do voto; a maior complexidade

das relações sociais fragmentadas e de massa; o novo papel do cidadão enquanto autor e

destinatário das normas de convivência comum na democracia contemporânea; das novas e

precárias formas de legitimidade; do reconhecimento da existência de instituições de conflito

e de instituições de consenso; da pauta principiológica do constitucionalismo contemporâneo

voltado para condições materiais de dignidade da pessoa humana e portanto prospectiva; da

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mudança para o paradigma de Estado Gerencial; e em especial pela mudança de natureza

jurídica de partidos políticos, após a Constituição de 1988. Todos esses fatores explicaram as

modificações trazidas para o sistema eleitoral brasileiro.

Nesse novo contexto, após análise da institucionalização da governança eleitoral

no Brasil, da estrutura e características de sua arquitetura institucional, conforme parâmetros

construídos ao longo da pesquisa, o órgão eleitoral brasileiro foi classificado como

Autoridade Reguladora Eleitoral com poderes híbridos. Essa estrutura de regulação autônoma

em matéria eleitoral foi inaugurada pela nova carta magna ao dar aos partidos políticos

natureza jurídica de direito privado, ao determinar que a filiação partidária é condição de

elegibilidade e que partidos políticos prestam conta de suas atividades para a Justiça Eleitoral.

No entanto, verificou-se que a esfera normativa e os procedimentos relacionados à nova

estrutura regulatória permaneceram sem as adaptações correspondentes na legislação

infraconstitucional. A nova regulação autônoma em matéria eleitoral ainda possui

institucionalização precária das suas três dimensões: poderes e funções delimitados,

mecanismos de enforcement previstos e eficiência avaliada em relação às fases dos ciclos

eleitorais. Esses foram os pontos críticos identificados relacionados à transição inacabada para

um novo sistema eleitoral legitimo, no Brasil.

A legitimidade do sistema eleitoral contemporâneo está diretamente relacionada

com o alinhamento do seu funcionamento a princípios internacionais de direitos humanos e

aos princípios constitucionais preconizados pela Constituição de 1988. Sem o

reconhecimento e institucionalização de todas as dimensões da regulação autônoma no âmbito

do sistema eleitoral, torna-se praticamente impossível gerar os incentivos necessários para a

realização de eleições integras, na extensão que tal conceito, atualmente, implica.

A realização de eleições íntegras abrange aspectos formais e substanciais e para

tanto pressupõe a institucionalização de instrumentos adequados e eficientes para alinhamento

e controle das ações de todos os envolvidos no processo eleitoral com as finalidades

constitucionais do sistema eleitoral. A realização de eleições íntegras é condição necessária

para a estabilidade social com respeito à dignidade humana, para funcionamento do estado

orientado pelo vetor justiça.

Como visto, a estabilidade social depende de paz e segurança, do

desenvolvimento econômico e do funcionamento do estado de direito com respeito aos

direitos humanos e, portanto, da credibilidade, reputação e funcionamento de suas

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instituições, conforme as finalidades do estado democrático contemporâneo. Por estas

precisas razões, a governança democrática, no estado democrático de direito, correlaciona-se

diretamente com a governança eleitoral direcionada para garantir a integridade das eleições,

na medida em que eleições são um dos pilares da democracia, pois determinam quem tem

acesso ao poder político e de que forma. Eleições determinam quem terá acesso à ordenação

da pauta de políticas públicas, priorizando ou preterindo interesses públicos diversos,

conduzindo a níveis toleráveis ou não as divergências sociais.

Eleições íntegras forjam o elo de legitimidade entre os cidadãos e o sistema

político. Eleições íntegras funcionam como um dos principais canais de acesso à arena

política, para organização e composição de interesses públicos. Eleições íntegras funcionam

como um dos meios de integração do tecido social, ao lado do dinheiro, e, portanto, como um

dos principais canais comunicativos para solução não violenta de conflitos. Representantes

eleitos sem legitimidade popular percebida pelos cidadãos colocam em risco as vias

democráticas para construção de consensos e ameaçam a estabilidade social. A qualidade da

governança eleitoral afeta a qualidade da democracia. A percepção de integridade eleitoral

possui o condão de influenciar os resultados do processo político com aumento ou redução da

legitimidade representativa. E a atuação dos órgãos eleitorais é uma das variáveis críticas para

a estabilidade democrática que já não pode mais ser ignorada ou subestimada.

A promoção de eleições com integridade pressupõe órgãos eleitorais

independentes, profissionais e eficientes com capacidade para conduzir processos eleitorais

transparentes, com credibilidade técnica que entreguem eleições percebidas como livres,

justas e confiáveis. Pressupõe órgãos eleitorais e práticas partidárias que assegurem a todos

reais possibilidades de acesso à arena política para ordenação e composição dos diversos

interesses públicos. A competência dos órgãos eleitorais e a percepção popular a respeito da

sua atuação delimitam a percepção e a confiança na integridade das eleições, e, portanto, nos

seus resultados, legitimando ou não os representantes eleitos. Nos países em processo de

amadurecimento e estabilização democrática, como o Brasil, a atuação dos órgãos de gestão

eleitoral é especialmente importante.

A estrutura regulatória institucionalizada pela legislação eleitoral, a governança

eleitoral, determina a forma e a velocidade com a qual os órgãos eleitorais poderão lidar com

questionamentos e desvios de finalidade do processo eleitoral. A ausência de estrutura

regulatória suficientemente prevista para a competição eleitoral – e, portanto, a definição de

papéis e responsabilidades para todos os envolvidos - demonstra carência de

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comprometimento político e a adoção de reformas políticas de fachada, sem empenho real

para abraçar o ethos democrático que torna um órgão de gestão eleitoral efetivo (GLOBAL

COMMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 5).

Em síntese, verifica-se uma necessária mudança de perspectiva para avaliação da

governança eleitoral brasileira, com especial ênfase para a avaliação dos papéis, competências

e responsabilidades associadas com os partidos políticos, com a Justiça Eleitoral e demais

partes interessadas, a fim de alinhar suas ações com os pré-requisitos de adequação e justiça

da nova ordem constitucional.

Nessa nova perspectiva, a Justiça Eleitoral não é um órgão equivalente aos demais

órgãos do Poder Judiciário. Sua função preponderante não é apenas a função jurisdicional

tradicional. O uso de procedimento análogo ao judicial como meio para processamento da

regulação eleitoral não descaracteriza seus poderes e a amplitude que sua ação regulatória

deve ter, ao contrário, torna mais complexa uma análise crítica de sua atuação legítima. A

Justiça Eleitoral brasileira é uma Autoridade Reguladora Eleitoral, com funções híbridas, e

sua missão é assegurar a legitimidade do processo eleitoral, é garantir a integridade das

eleições em todas as fases do ciclo eleitoral, consideradas suas diferentes temporalidades.

Essa constatação abre uma nova frente para pesquisas e impõe a utilização de

novas lentes para avaliação e adequação do sistema eleitoral brasileiro, tanto para

enfrentamento de suas lacunas de legitimidade; como para justificação das escolhas

envolvidas na condução dos assuntos eleitorais pela Justiça Eleitoral que, em razão da forma

como a arquitetura do sistema eleitoral brasileiro foi institucionalizada, forma de Autoridade

Reguladora Eleitoral híbrida, apresenta permanente conflito no exercício de todas as suas

atribuições.

A Justiça Eleitoral tem por missão regular, organizar e solucionar as disputas

decorrentes do processo eleitoral. O exercício conjunto de tais atividades implica no manejo

concomitante das diversas formas de discurso próprias do sistema de direitos, que envolvem

forma de legitimação diferenciadas. O exercício conjunto de tais atividades pelo mesmo órgão

eleitoral necessariamente implica na avaliação de custos e benefícios, quanto à ordenação de

prioridades para atendimento a essas diversas funções. Uma ordenação equivocada de

prioridades, principalmente em razão da escassez de recursos, e das enormes exigências dos

ciclos eleitorais de curto prazo, podem comprometer a legitimidade da regulação eleitoral de

curto, médio e longo prazo, e, portanto, a estabilidade social.

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Eleições, partidos políticos e candidaturas devem ser efetivamente regulados. A

regulação deve atender aos pressupostos da regulação autônoma legítima, tanto no que se

refere à produção normativa quanto aos mecanismos de enforcement previstos e à eficiência.

Sem essas adequações, reformas políticas são insuficientes, a realização de eleições com

integridade fica profundamente comprometida e o sistema democrático sujeito à erosão de

seus fundamentos.

É preciso completar a transição.

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