Upload
haanh
View
219
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
CARLOS EDUARDO MACAGI
“SOB O DOMÍNIO DO MAL” (THE MANCHURIAN CANDIDATE):
PARANÓIA ANTICOMUNISTA NOS ESTADOS UNIDOS NAS DÉCADAS DE
1950 E 1960.
CURITIBA 2008
CARLOS EDUARDO MACAGI
“SOB O DOMÍNIO DO MAL” (THE MANCHURIAN CANDIDATE):
PARANÓIA ANTICOMUNISTA NOS ESTADOS UNIDOS NAS DÉCADAS DE
1950 E 1960.
Monografia apresentada como requisito à conclusão do Curso de Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná Orientador: Prof. Dr. José Roberto Braga
Portella
CURITIBA 2008
AGRADECIMENTOS
Ao professor José Roberto Braga Portella pela orientação, apoio e amizade
Ao professor Antonio César de Almeida Santos pela colaboração na realização deste trabalho
Aos professores José Josberto Montenegro Sousa e Dennison de Oliveira pelo incentivo
Resumo
O tema da monografia versa sobre uma representação cinematográfica a respeito da Guerra Fria. O estudo aborda como objeto a questão do imaginário norte-americano durante a Guerra Fria, mais especificamente os anos 1950, voltado à questão do medo e da paranóia com relação aos países pertencentes ao eixo político da URSS. Esse quesito será abordado sob um viés cultural e, para isso, foi selecionada uma produção cinematográfica como fonte primária. No caso, o thriller político “Sob o Domínio do Mal” (The Manchurian Candidate, 1962), o enredo envolve um soldado norte-americano que foi feito prisioneiro durante a Guerra da Coréia (1950 – 1953), onde sofreu lavagem cerebral a fim de se tornar um assassino a mando dos comunistas. Em um primeiro momento, busco levantar aspectos do contexto social, político e cultural em que o filme foi lançado, uma vez que, no decorrer do trabalho, pretendo problematizar o mesmo. Em segundo lugar, foi realizado um levantamento e seleção de uma metodologia específica, a fim de fornecer bases para análise do filme. Para isso, o estudo foi concentrado em três estudiosos: Marc Ferro, Roger Chartier e Christian Metz. Cada um desses autores fornece base metodológica para o tratamento da fonte e sua especificidade, mais particularmente na questão de produção de sentidos, tipologia da fonte e representações. Por último, foi estudado cuidadosamente a construção do suspense, através do roteiro, da montagem e demais fatores técnicos, como o diretor realiza uma sátira política ao macartismo, como aborda o outro e como é representada a sociedade norte-americana do fim da década de 1950. Palavras-chave: Guerra Fria. Cinema. Paranóia anticomunista.
Abstract
The subject of monograph is about a film representation about the Cold War. The study addresses as the subject the issue of the American imagination during the Cold War, more specifically the years 1950’s, returned to the issue of fear and paranoia of the countries belonging to the political influence of the USSR. This item was addressed from a cultural approach and for this reason and a film production was selected as a primary source. In this case, the political thriller The Manchurian Candidate (1962), the plot involves an American soldier who was taken prisoner during the Korean War (1950 - 1953), which has suffered brainwashing to become a murderer at the behest of the Communists. Firstly, seek to raise aspects of the social, political and cultural environment in which the film was pointed. Secondly, there was a selection of a specific methodology to provide bases for analysis of the film. For this reason, the study was concentrated in three scholars: Marc Ferro, Roger Chartier and Christian Metz. Each of these authors provides a methodological basis for the treatment of the source, particularly on the issue of production of meaning, specificity of the source and representations. Finally, it was carefully studied the building of suspense through the script, film editing and other technical factors, as the director holds a political satire to macarthysm and how the American Society of the end of the decade of 1950 is represented. Key words: Cold War. Movies. Anti-communism paranoia.
SUMÁRIO
1INTRODUÇÃO..................................................................................................................................................06
2 GUERRA FRIA, ANTICOMUNISMO E HOLLYWOOD: UM PANORAMA SOBRE A POLÍTICA,
SOCIEDADE E PRODUÇÃO CULTURAL NORTE-AMERICANA ..........................................................10
2.1 GUERRA FRIA...............................................................................................................................................10
2.1.1 Anticomunismo...........................................................................................................................................14
2.1.2 Sentimento de prosperidade na década de 1950...........................................................................................15
2.2 CINEMA HOLLYWOODIANO.....................................................................................................................17
2.2.1Ascensão e queda da era dos estúdios............................................................................................................17
2.2.2 Cinema hollywoodiano na década de 1950 e início de 1960........................................................................21
3 HISTÓRIA E CINEMA: SOBRE A VALIDADE E UTILIZAÇÃO DO FILME NO ESTUDO DA
HISTÓRIA...........................................................................................................................................................25
3.1 O USO DO FILME COMO FONTE HISTÓRICA........................................................................................25
3.2 REPRESENTAÇÕES E A HISTÓRIA CULTURAL DO SOCIAL..............................................................29
3.3 A PRODUÇÃO DE SENTIDO NO CINEMA................................................................................................32
3.4 SOBRE AS ESPECIFICIDADES DA INSTITUIÇÃO E DO DISCURSO CINEMATOGRÁFICO...........35
4 UMA REPRESENTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DA GUERRA FRIA: ANÁLISE DO FILME SOB
O DOMÍNIO DO MAL.......................................................................................................................................39
4.1 JOHN FRANKENHEIMER: O DIRETOR.....................................................................................................39
4.2 A PRODUÇÃO................................................................................................................................................41
4.3 O ENREDO E A CONSTRUÇÃO DO SUSPENSE.......................................................................................43
4.4 QUESTÕES TÉCNICAS................................................................................................................................47
4.5 OS PERSONAGENS E DIÁLOGOS..............................................................................................................48
4.5.1 Estereótipos sociais e referências comerciais no filme.................................................................................51
4.5.2 Ambigüidades e lacunas na construção dos personagens.............................................................................53
4.5.3 Sátira política: crítica ao macartismo...........................................................................................................56
4.5.4 Identidade norte-americana e paranóia a subversão de seus valores............................................................60
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................................................64
6 REFERÊNCIAS................................................................................................................................................66
7 ANEXOS............................................................................................................................................................68
7.1 CENA DO PESADELO..................................................................................................................................68
7.2 REFERÊNCIAS A ABRAHAM LINCOLN E SÍMBOLOS NACIONAIS....................................................69
6
1 INTRODUÇÃO
Em 1988, devido a recente reestréia do thriller político de 1962 nos cinema, o jornal The New York Times publica o seguinte artigo:
“Manchurian Candidate” (Sob o Domínio do Mal), antigo fracasso é agora um sucesso.
Por ALJEAN HARMETZ
Premissa: Para surpreender a todos Sob o Domínio do Mal, um filme de suspense 26 anos atrás, é um vencedor no box-office.
Uma semana atrás Sob o Domínio do Mal lotou todas sessões em Westside Pavilion mall em Los Angeles na semana de abertura. Realizado em 1962, o thriller sobre assassino que sofreu lavagem cerebral arrecadou 105.047 Dólares de tickets em sua primeira semana de reestréia em cinco cinemas. Assomado a 61.000 dólares em seis cinemas no fim de semana – cada um em Los Angeles, San Francisco, Boston, Washington, Seattle e Atlanta (...) O filme da United Artists – que foi relançado dos cinemas somente para despertar interesses para seu lançamento em vídeo cassete - agora expandiu para 50 cinemas em mais cidades, incluindo Nova York (...) Os astros de Sob o Domínio do Mal, Laurence Harvey como um veterano da Guerra da Coréia que foi programado como assassino para seus captores comunistas, Angela Lansbury interpreta sua mãe, e Frank Sinatra é um oficial da inteligência do exército que desvenda uma trama comunista envolvendo um senador dos Estados Unidos inspirado em Joseph R. McCarthy. Apesar de o filme ser baseado no Best-seller de Richard Condon de 1959, falhou [em sua estréia de 1962] por não fazer jus as expectativas do box office e foi considerado não lucrativo pelo estúdio. Porque o público fica na fila de Sob o Domínio do Mal quando dois filmes excelentes como Inferno Sem Saída e Apocalypse Now, fracassaram em seu relançamento no ano passado? O filme esteve a frente de seu tempo, humor negro misturado a melodrama e a comédia forçada (lapstick),'' disse Peter Rainer, crítico de filmes chefe do The Los Angeles Herald Examiner, após ver o filme pela primeira vez em 20 anos ''É sobre macartismo (…). Quando Angela Lansbury beija Laurence Harvey na boca, eu não posso imaginar como o público reagiu em 1962.'' (...) Há um comum mal entendido que Sob o Domínio do Mal foi retirado de cartaz [em 1962] por causa do assassinado do presidente Kennedy. A ressurreição do filme começou quando no ultimo outono quando Richard Roud o incluiu no Festival de Cinema de Nova York. ‘Sucesso que iniciou uma bola de neve’, disse Sr. Axelrod.1
Divulgado sob a frase premissa “O clássico arrepiante retorna” (“The chilling
classic returns”2) além de sua frase comercial original “Se você entrar na sessão cinco
minutos após o filme começar não saberá do que se trata! Quando você assistir vai jurar 1Tradução livre do autor. HARMETZ, Aljean. ‘Manchurian Candidate’, old failure, is now a hit. The
New York Times. February 24, 1988. Disponível em: <http://query.nytimes.com/gst/fullpage.html?res=940DE2D9113CF937A15751C0A96E948260&sec=&spon=&pagewanted=2 >. Acesso em: 20/11/08. 2 Id.
7
que nunca existiu algo como isso!”(“If you come in after five minutes begin, you won’t
now what It’is all about! When you’ve seen it all, you’ll swear there’s been anythimg
like it!”3), os norte-americanos no final da Guerra Fria fazem fila no cinema para assistir
o relançamento do filme Sob o Domínio do Mal4 , suspense político de 26 anos atrás
cujo enredo se sustenta em uma possível conspiração comunista de subverter a ordem
social estadunidense.
Apesar de fracasso de público em 1962, sua força no final dos anos 1980 se deve
ao mito criado em torno da película no transcorrer da Guerra Fria. Após um ano de seu
lançamento, o presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy é assassinado. Como o
enredo do filme se trata de um complô para assassinar figuras políticas, muitas pessoas
voltaram os olhares para a película, o que alimentou uma série de teorias conspiratórias.
Robert Ebert5 comenta a existência do recorrente boato que Lee Harvey Oswald, o
assassino de Kennedy, se inspirou no filme, ou outro que ele sofreu lavagem cerebral
para cometer o crime, como os personagens do filme. Logo, formou a opinião que o
filme saiu de cartaz por remorso de Frank Sinatra por se responsabilizar pelo assassinato
do presidente.
Ainda houve o caso do jornalista John Marks que em 1979 publicou a obra The
Search for the Manchurian Candidate6, através da qual alegava que, por meio de
pesquisas em arquivos da CIA, os casos de lavagem cerebral realmente aconteceram na
Guerra da Coréia, sendo que o livro o qual o filme foi adaptado baseado em fatos reais.
Tal fato não ficou restrito a morte de Kennedy, Fenton Bresler sugere no livro
“Who killed John Lennon?” que o assassino Mark Chapman serviu de “candidato da
Manchúria” para matar Lennon7. É importante ressaltar que a expressão “the
manchurian candidate” (candidato da manchúria) entra no vocabulário popular norte
americano para significar “um sujeito que foi hipnotizado e instruído a agir quando seus
controladores acionasse um gatilho psicológico”8. Por exemplo, o candidato a
presidência dos Estados Unidos em 2008, John McCain, ex prisioneiro da Guerra do
3 Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/sob-o-dominio-do-mal/sob-o-dominio-do-mal- poster03.jpg>. Acesso em: 20/11/08. 4 Sob o Domínio do Mal (The Manchurian Candidate. EUA, P&B, 1962, 127 min., M. C. United Artists & Frank Sinatra Trust Number 10, Dir. John Frankenheimer. Versão legendada e dublada.) 5 EBERT, Roger. Grandes filmes. Rio de janeiro: Ediouro, 2006. p. 458-463 6 MARKS, John. The Search for The Manchurian Candidate. Times Books, 1979 7 MARCUS, Greil. The Manchurian Candidate. London, BFI Film Classics, 2002.p. 33 8 EBERT, Op. Cit., 458
8
Vietnã, recebeu o apelido por ativistas de “the manchurian candidate” na década de
19909.
Na introdução de uma edição atual do romance que baseou o filme, o jornalista
Louis Menand afirma que a idéia da lavagem cerebral comunista não era um medo sem
fundamento. Menand levanta um número significativo de casos em que os prisioneiros
de guerra norte-americanos da Guerra da Coréia que colaboraram com os captores
comunistas, não quiseram voltar da Coréia e/ou declararam-se comunistas. O termo
lavagem cerebral foi popularizado pelo jornalista Edward Hunter que servira no Centro
de Operações Morais dos EUA na Ásia, segundo o qual é uma tradução literal de um
termo chinês recorrente na revolução chinesa. Com o final da Guerra da Coréia,
relatórios do exército e histórias de prisioneiros em jornais anunciavam que muitos
prisioneiros de guerra foram sujeitos a programas de doutrinação comunista. Além
disso, Menand cita uma série de produções acadêmicas de psicólogos que buscam
comprovar a viabilidade de realizar lavagem cerebral, o próprio filme cita esses ensaios.
O objetivo da monografia não é discorrer sobre a validade das discussões
levantadas como lavagem cerebral ou responsabilidade do filme pelo assassinado de
Kennedy, o que fascina é por que questões como essas são amplamente aceitas e
discutidas na sociedade norte-americana. Assim, através da utilização de Sob o Domínio
do Mal como fonte histórica, busco no transcorrer da pesquisa refletir sobre o
imaginário norte-americano, principalmente no diz respeito a questão do medo, da
paranóia, anticomunismo e histeria coletiva dos norte-americanos com relação aos
países pertencentes ao eixo político da URSS no anos 50 e 60, época em que o filme foi
produzido. Também abre possibilidades de discussões acerca da organização interna da
sociedade norte-americana, identidade nacional, valores difundidos, grupos sociais,
transformações no cotidiano na passagem dos anos 1950 e etc.
Para isso o trabalho foi dividido em três capítulos. No primeiro “Guerra Fria,
anticomunismo e Hollywood: um panorama sobre a retórica política, sociedade e
produção cultural norte-americana”, busco levantar aspectos do contexto sócio-político
em que o filme foi lançado, uma vez que, no decorrer do trabalho, pretendo
problematizar o mesmo. Em tal fase foram abordadas questões relativas ao discurso
diplomático norte-americano, anticomunismo político, relações internacionais,
inovações tecnológicas e mudanças no cotidiano dos estadunidenses entre a década de
9 MARCUS, Op. Cit., 44
9
1950 e início de 1960. Também foram levadas em consideração as mudanças ocorridas
no cinema hollywoodiano nas décadas de 1940 e 1950, com destaque para a queda da
Hollywood clássica, o surgimento dos filmes Cult, dos filmes noir, assim como,
produções da época que abordam temas políticos.
Na segunda parte, “História e Cinema: sobre a validade e utilização do filme no
estudo da História”, foi realizado um levantamento e seleção de uma metodologia
específica, a fim de sustentar a viabilidade do filme como fonte histórica, instituir
formas de estudar o social através de um recorte social e entender o discurso
cinematográfico em suas particularidades, como o significado é produzido, transmitido
e recebido.
O terceiro capítulo, “Representação cinematográfica da Guerra Fria: análise do
filme Sob o Domínio do Mal”, em primeiro lugar inicio com um levantamento sobre a
obra cinematográfica do diretor do filme, a obra literária da qual foi adaptado e processo
produtivo do filme para, a seguir, analisar do filme em si, mais especificamente na
questão que produção de sentido, como o suspense é construído, sátiras políticas e como
a sociedade norte-americana é representada.
10
2 GUERRA FRIA, ANTICOMUNISMO E HOLLYWOOD: UM PANORAMA SOBRE
A RETÓRICA POLÍTICA, SOCIEDADE E PRODUÇÃO CULTURAL NORTE-
AMERICANA
2.1 GUERRA FRIA
A Guerra Fria, apesar de entendida como recorte temporal que abarca o período
entre a explosão da bomba atômica em Hiroshima até o final da União Soviética, não
representa uma estrutura única e homogênea. A expressão “Guerra Fria” foi inicialmente
utilizada no final da década de 1940 para se referir uma rivalidade diplomática, equiparada a
uma guerra não declarada, entre os EUA e URSS. Alguns historiadores remontam o
surgimento do termo a Idade Média, em que o castelhano Don Juan Manoel o utilizou para
definir a relação entre os cristãos e muçulmanos na península Ibérica10. A fim de melhor
trabalhar a época alguns historiadores o subdividiram em períodos secundários. Fred
Halliday, por exemplo, a segmenta em 1ª Guerra Fria (1946 – 1953), período de antagonismo
oscilatório (1953 – 1969), détente (1969 – 1979) e 2ª Guerra Fria (a partir de 1979) de acordo
com o antagonismo nas relações políticas entre os norte-americanos e os soviéticos11.
As diversas análises sobre o período estão presas a retórica utilizadas pelas duas
superpotências durante a Guerra Fria, uma vez que a maioria dessas foram realizadas na
época ou por indivíduos que a vivenciaram. Essa retórica consistiu em, utilizando uma
expressão de Hobsbawn, uma “partida de tênis”12 entre dois lados, seja a favor do discurso
norte-americano seja do soviético. No livro O Século Sombrio13, o historiador Sidney
Munhoz divide a historiografia pertinente ao tema em correntes analíticas: a ortodoxia norte-
americana, a história oficial ou ortodoxia soviética, o revisionismo, o pós-revisionismo e o
corporativismo. Essas correntes basicamente dialogam entre si e respondem a visão
diplomática norte-americana e soviética.
10 MUNHOZ, Sidney. Guerra Fria: um debate interpretativo. In: O Século Sombrio: Uma História Geral do Século XX. SILVA, Francisco Carlos Teixeira (org.). Rio de Janeiro: Editora Campus/Elsevier, 2004. p. 263 11 Id., ibid., p.268 12 HOBSBAWN, Eric J. Era dos Extremos: o Breve Século XX (1914 – 1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 233 13 MUNHOZ. Op. cit.
11
Não aprofundados na discussão historiográfica de Sidney Munhoz, leva-se em conta
os escritos da New Left inglesa. O livro Exterminismo e Guerra Fria14, escrito e publicado
nos anos 1980, apresenta uma conjunto de artigos de renomados historiadores, como Edward
Thompson e Noam Chomsky, que se posicionam abertamente contra a política armamentista
norte-americana, divisão de classes e a “exploração imperialista”15 e propõe o socialismo
como caminho para uma sociedade mais pacífica.
Na obra A Era dos Extremos16, o historiador Eric Hobsbawn, apesar de também se
incluir na New Left, realiza uma análise mais distanciada tanto uma vez que sua obra abarca
um período mais amplo como a mesma foi escrita posteriormente e, portanto, diverge na
discussão de determinadas questões, a exemplo do medo de uma guerra nuclear sob um foco
diferente do livro citado acima. Mas isso não significa que Hobsbawn emite suas posições
acerca do período em que o próprio vivenciou: critica o “anticomunismo apocalíptico” e o
discurso da diplomacia norte-americana.
No livro, Hobsbawn caracteriza o século XX como a Era dos Extremos, sendo esses
contrapontos a era da catástrofe e a era de ouro. A era da catástrofe abarcou quase a primeira
metade do século, marcada pela primeira, segunda guerra mundial e pela a explosão nuclear
em Hiroshima, representou o maior genocídio da história da humanidade. Por outro lado, a
era de ouro, segunda metade do século, significou o período de maior avanço tecnológico e
científico até então, teve seu fim nos anos 1970. A Guerra Fria consiste em um período
amplo que não só representou o fim da chamada era da catástrofe e como o transcorrer os
anos dourados e o desmoronamento do mesmo.17
A partir disso Hobsbawn subdivide a Guerra Fria em períodos entre 1946 a 1970 e
1970 a 1991. Uma vez que a fonte trabalhada foi produzida no início da década de 1960 e
adaptada de um livro publicado na segunda metade da década de 1950, há a necessidade de
um enfoque mais específico nas respectivas décadas.
Após a Segunda Guerra Mundial, Hobsbawn cita a ocorrência de um sentimento
dominante no qual a denominada era da catástrofe não havia chegado ao fim e qualquer
dilema econômico ou político poderia deflagrar uma próxima guerra, que resultaria em uma
destruição mútua e inevitável entre os EUA e a URSS e simbolizaria o fim da humanidade.
Além disso, havia a preocupação dos Estados Unidos com a estabilidade social e econômica
14 THOMPSON, Edward; DAVIS, Mike; BAHRO, Rudolf; MAGRI, Lucio; MEDVEDEU, Roy e Zhores; CHOMSKY, Noam; WOLFE, Alan. Exterminismo e Guerra Fria. New Left Review (org.). São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. 15Id., ibid., p. 8 16 HOBSBAWN. Op. cit. 17 Id., ibid., p. 15
12
do mundo assolado pela Segunda Guerra e o receio de que a URSS, as revoluções sociais e a
crescente influência do comunismo na política poderiam enfraquecer o poderio econômico
norte-americano, assim como, o sistema capitalista.
Devido a isso ocorreu uma incompatibilidade na aliança originada na Segunda
Guerra entre os EUA e a URSS que buscava combater um inimigo comum, a Alemanha
nazista. Mas talvez o argumento não sirva para explicar o discurso da política norte-
americana que apontava a união entre uma ideologia utópica, no caso o comunismo, e uma
grande potência, URSS, como uma ameaça potencial aos Estados Unidos. No caso, a ameaça
consiste em um possível expansionismo soviético que através de uma conspiração mundial
visava dominar o globo e corromper ideologicamente o mundo ocidental, com destaque nos
ideais de democracia e nos princípios cristãos18.
Hobsbawn enfatiza que na prática a URSS não possuía propósitos expansionistas,
pelo contrário, a superpotência posicionava defensivamente, uma vez que no final da
Segunda Guerra encontrava-se política, militar e economicamente insegura e precária diante
aos Estados Unidos, e, por isso, preferiu se utilizar da inflexibilidade nas relações políticas e
ausência de negociações como forma de se proteger19. Por isso, o discurso da política norte-
americana não se justifica se levar em consideração uma simples questão ideológica. Para o
historiador, os EUA iriam se contrapor a União Soviética independentemente do sistema
político adotado pelo país.
Apesar do discurso apocalíptico recorrente não só nos EUA mas como na URSS,
Hobsbawn aponta uma peculiaridade sobre a Guerra Fria. Essa consistiu no fato de que não
havia nenhuma uma ameaça concreta do possível desencadear da Terceira Guerra Mundial.
Em primeiro lugar, sempre houve uma divisão homogênea de poderes e zonas de influência
bem aceita entre as duas superpotências ao redor do globo. A partir disso, o cenário
internacional foi, com raras exceções, razoavelmente pacífico e estável até meados de 1970,
em que foi assolado por crises políticas e econômicas. Tanto os EUA como a URSS
enfrentavam-se ideologicamente, mas apesar disso, sempre evitaram qualquer tipo de
confronto militar direto, ocorrendo assim uma mútua cooperação20.
No momento em que a URSS obtém armas nucleares (1953), a guerra, como
instrumento político, passa a ser deixada de lado, a fim de evitar conseqüências catastróficas.
A partir de então, a ameaça de atacar com armas nucleares passa a ser utilizada como um
18 Id, ibid., p.229 19 Id, ibid., p.231 20 Id.
13
instrumento de negociação política. Apesar disso, o uso do armamento nunca foi
efetivamente cogitado, pois, ambas as superpotências reconheciam seus limites. Esse uso
ironicamente diplomático das armas nucleares ocorreu em casos com a tentativa dos EUA em
negociar paz na Guerra da Coréia e no Vietnã e da URSS em desocupar Suez em 1954.
Até mesmo durante as situações diplomáticas mais delicadas das décadas de 1950 e
1960, como a Guerra da Coréia (1950 -1953) e a Crise dos Mísseis de Cuba (1962), esse bom
senso entre as superpotências (militar, política e econômicas) pode ser identificado.
A Guerra da Coréia, juntamente com a Guerra do Vietnã (1969 – 1975), evidencia
que a disputa por zonas de influência foi mais acirrada no continente asiático. Isso ocorreu
uma vez que a efetivação do bloco soviético e a revolução comunista na China, fizeram os
EUA se preocupar cada vez mais com as possíveis ocorrências de revoltas sociais na Eurásia.
A Guerra da Coréia visava a disputa pela hegemonia política e econômica na península da
Coréia. A guerra foi travada pela Coréia do Sul, Estados Unidos e Reino Unido contra a
Coréia do Norte, por sua vez apoiada pela República Popular da China e a URSS, durou três
anos e foi responsável por uma média de três milhões de mortes. Mas apesar da instabilidade
política gerada pela guerra, os EUA e a URSS recusaram a se enfrentar diretamente, os
soviéticos nunca entraram oficialmente na disputa militar, já os governantes norte-
americanos mesmo sabendo do apoio militar não declarado da outra potência, mantiveram tal
informação em segredo do restante da nação.
Já a crise dos mísseis cubanos em 1962 foi um dos casos em que essa confiança
entre essas duas nações em uma mútua cooperação foi abalada. O presidente norte-americano
John Fitzgerald Kennedy (1917 – 1963) se elegeu em 1960, mesmo ano em que ocorreu o
incidente U2 (dilema político originado do abate de avião espião estadunidense em solo
russo). Através de sua campanha, era demonstrado como símbolo da juventude, energia e
ambição. Em contraste ao então presidente Dwight David Eisenhower (1890-1969), defendia
uma ação agressiva dos Estados Unidos com relação a União Soviética em face a guerra civil
no Vietnã e a revolução cubana (1959), que transformara Cuba em uma ameaça aos Estados
Unidos, por ser um país socialista que se situava a poucos quilômetros da costa norte-
americana, além de ser considerado um péssimo exemplo ao restante da América Latina.
Quando eleito, Kennedy incentivou investimentos na indústria armamentista e se
utilizou de uma diplomacia agressiva contra líder russo Nikita Khruschev (1894-1971)
inúmeras vezes. Não demorou para que Kennedy investisse em uma ação militar, no caso a
frustrada invasão da Baía dos Porcos que teve como objetivo derrubar o governo cubano. O
conflito dos mísseis teve origem quando em Outubro de 1962 o líder russo implantou mísseis
14
nucleares em Cuba. Tal ocorrido gerou um impasse nas relações diplomáticas entre os EUA e
URSS, a ponto de quase entrarem em uma guerra.
Por fim, a URSS cedeu as exigências norte-americanas de retirar os mísseis em
troca do desarmamento do armamento nuclear norte-americano posicionado na Turquia.
Porém, devido ao medo de uma possível agressão mútua, ambos os países apelaram a uma
negociação cautelosa e cooperação pacífica Kennedy finalmente mudou seu discurso que
visava o confronto para a reconciliação e ambos os presidentes concordaram em instalar a
“linha vermelha” que facilitaria a comunicação entre os governantes dos EUA e da URSS
durante épocas de crise21.
Dessa maneira, talvez somente a crescente disputa entre serviços secretos dos
governos dos países, tão explorada pela ficção, tenha sido a que mais se aproximava da
retórica da luta pela hegemonia. Por outro lado, comparado a disputa política direta entre as
superpotências, esse conflito não possuiu influencia significativa nas relações internacionais.
Assim, a rivalidade política de ambas as superpotências não implica
necessariamente em uma guerra de proporções significativas, mas é o bastante para o
confronto passar da razão para o âmbito da emoção. A partir dessa proposição, vale
considerar o papel do anticomunismo como forma de sustentar a ideologia norte-americana
com base na democracia.
2.1.1 Anticomunismo
Desde o final dos anos 1940 o FBI (Departamento Federal de Investigações),
principalmente sobre a liderança de J. F. Edgar Hoover (1895 – 1972), liderou uma série de
investigações de atividades contra-espionagem. Uma dessas investigações foi a realização de
um Comitê Parlamentar de Investigação de Atividades Anti-americanas, que perseguiu
escritores, executivos e produtores de Hollywood. Também concede-se um especial destaque
ao “caso Fuchs”, no qual em 1950 o físico inglês Klaus Fuchs foi acusado de fornecer
tecnologia nuclear para Moscou. O caso seguiu adiante e culminou na execução em 1953 do
casal Julius e Ethel Rosenberg por participar do suposto complô, mesma época em que se
cogitava a retaliação em massa das superpotências. Portanto, já havia um clima propício à
histeria anticomunista, mesmo que, até então essa se limitava ao caráter burocrático.
21 DIVINE, Robert A.; BREEN, T.H.; FREDRICKSON, George M.; WILLIAMS, R. Hal; ROBERTS, Randy. América: Passado e Presente. Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, 1992. p. 652 - 661
15
Somente com o senador republicano Joseph McCarthy (1908-1957) o
anticomunismo atinge o potencial político22. McCarthy iniciou uma campanha demagoga de
caça aos comunistas que se encontravam em solo norte-americano, posteriormente
denominada de macartismo ou caça as bruxas. No período de 1950 a 1954, McCarthy, sob a
alegação inicial da existência de espiões comunistas no Departamento de Estado, conduziu
inúmeras investigações em servidores públicos, políticos e, mais adiante, a militares, artistas,
cineastas e etc.
Hobsbawn aponta que caracterizar outra nação como um inimigo externo que
ameaça a existência dos norte-americanos, fundamentando uma histeria coletiva, consiste em
um argumento eficiente para justificar uma política externa ofensiva e sustentar, até mesmo
financeiramente, a plataforma política do estado23. A bem aceitação do anticomunismo na
sociedade norte-americana ocorreu devido ao fato do comunismo poder ser apontado como
uma contraposição ao “americanismo”, o qual seria baseado no individualismo e na empresa
privada. O historiador também menciona que os EUA foi o único país que os presidentes (a
exemplo de John F. Kennedy) eram eleitos com o propósito de combater o comunismo.
Sob essa perspectiva, a criação de um inimigo em comum como forma de
organização da política interna do país foi utilizada para fundamentar a retórica apocalíptica,
a corrida armamentista e a idéia de retaliação mútua da Guerra Fria. Uma vez que a
rivalidade com a URSS não representava uma real ameaça, não se trata simplesmente de lutar
contra o comunismo, mas de legitimar a supremacia política norte-americana ao redor do
globo.
2.1.2 Sentimento de prosperidade na década de 1950
Conjuntamente ao clima de instabilidade do final dos anos 1940 e metade dos anos
1950, o período que gira em torno de 1960 foi marcado por um relativo alívio na tensão das
relações internacionais e sentimento de prosperidade. Hobsbawn aponta a década de 1950 até
1970 como a Era de Ouro na qual ocorreu um período de prosperidade econômica nos países
“desenvolvidos” e resultou em um choque significativo no meio urbano e industrial.
A prosperidade econômica acompanhou uma significativa revolução tecnológica no
pós-guerra. Como modelo de sociedade industrial capitalista, os EUA exportaram os mais
variados bens e serviços dedicados ao mercado de massa, como automóveis, casas pré-
22 Id., Ibid., 232 23 Id.
16
fabricadas, indústria alimentícia e etc. Também houve um incentivo ao turismo internacional
na sociedade norte-americana. Bens móveis que antes eram tratados como luxo se
popularizaram, a exemplo de geladeiras, máquinas de lavar e telefones. O mercado também
foi assolado por produtos revolucionários como a televisão, fita magnética, LP, relógios
digitais, calculadoras, instrumentos portáteis, computadores e etc. Sem contar com a
crescente utilização da energia nuclear, progresso nos setores químicos e farmacêuticos,
mecanização da indústria e da agricultura que redefiniram o cotidiano dos países
economicamente ricos e pobres, esses em menor escala24.
Tudo isso conferiu uma forte impressão de prosperidade, esquecendo por um
momento problemas considerados intrínsecos ao capitalismo, como pobreza, desemprego e
instabilidade do sistema. Nesse momento, em contrapartida as depressões enfrentadas
anteriormente, Hobsbawn menciona que o capitalismo dá um grande salto. A reformulação
do capitalismo, a internacionalização da economia e de investimentos e a estabilização de
moedas possibilitaram uma política integrava liberalismo econômico com um modelo de
planejamento público formulado pelo estado, que atingiria seu auge com o estado de bem
estar social nos anos 197025.
Por outro lado, o progresso das ciências implica em um clima de insegurança e
medo. O avanço tecnológico acentuou o caráter da ciência como algo incompreensível que
evidencia a dependência do ser humano e desconstrói a ordem natural das coisas. Sendo que
o crescente investimento no campo militar, principalmente no que diz respeito ao armamento
de destruição em massa, leva em questionamento a utilidade das ciências e as apresentam
como algo de moral duvidosa, imprevisível e perigoso.
Isso repercute em uma necessidade cada vez mais freqüente de buscar formas de
frustrar as afirmações da ciência, apelando a crença em entidades sobrenaturais e metafísicas.
Também reflete nas obras de ficção científica, que abarcam uma perspectiva mais sombria e
ambígua da humanidade e seu futuro. Além disso, o temor da sociedade norte-americana
com relação a ciência ainda refletiu em uma significativa resistência a inovações
tecnológicas, principalmente no campo da medicina como medidas sanitárias e determinadas
formas de tratamento.
Frente a esse aperfeiçoamento tecnológico, não se pode ignorar o impacto
significativo dos meios de comunicação, principalmente no que diz respeito ao rádio de
24 Id., Ibid., 259 25 Id., Ibid., 263 - 267
17
massa, o cinema hollywoodiano, surgimento do disco de vinil (1950) e modernização da
imprensa.
2.2 CINEMA HOLLYWOODIANO
2.2.1 Ascensão e queda da era dos estúdios
No caso, destaca-se a ascensão do cinema hollywoodiano que se popularizou
inicialmente nos anos 1930, durante a depressão, uma vez que era uma forma de lazer barata
e acessível a todos os públicos para, logo após, se tornar um potencial veículo de massa
internacional e dominar o mercado de cinema ao redor do globo.
Durante a segunda guerra mundial, o cinema hollywoodiano encontrou o auge de
sua eficiência narrativa e comercial, nunca produziram tantos filmes até então (uma média de
476 filmes por ano), excedia a até mesmo a soma de todos filmes realizados em outros países
no mesmo ano. Hollywood nunca teve tamanha audiência e tantos lucros até então. O teórico
do cinema Robert B. Ray cita que os cinemas norte-americanos recebiam uma média de 80
milhões de espectadores por semana (soma que representava mais da metade da população
norte-americana da época), sendo que para cada dólar gasto em recreação nos EUA 83
centavos de dólar eram gastos nos cinemas. Tal época de prosperidade foi comumente
denominada como a era de ouro, período clássico ou era dos estúdios de Hollywood.26
Durante o período que compreende a década de 1930 e a primeira metade de 1940,
a grande maioria dos filmes norte-americanos foram produzidos, distribuídos e exibidos
pelos nove maiores estúdios de Hollywood: MGM (Metro Goldwyn Mayer), Twentieth
Century Fox, Warner Brothers, RKO (Radio Keith Orpheum), Paramount, Columbia,
Universal, United Artists e Disney.
Muitos atores de Hollywood iniciaram e tiveram o auge de sua carreira durante esse
período, devido ao sistema de divulgar de filmes através da promoção astros contratados pelo
estúdio, chamado de star system. A exemplo de Humphrey Bogart (1889 -1957), Clark Gable
(1901-1960), John Wayne (1907-1979), Gary Cooper (1901-1961), Mickey Rooney (1920- ),
Fred Astaire (1899-1987), Elizabeth Taylor (1932 - ), Errol Flynn (1909-1959), Spencer
Tracy (1900-1967), Katharine Hepburn (1907-2003), Roy Rogers (1911-1998), Carole
Lombard (1908–1942), Myrna Loy (1905-1993), Bette Davis (1908-1989) e etc.
26 Dados estatísticos retirados de: RAY, Robert B. A Certain Tendency of the Hollywood Cinema (1930 – 1980). New Jersey: Princeton, 1985. p. 25 e 26
18
Também, durante a Era de Ouro, foram estabelecidos os principais gêneros, e
subgêneros, dos filmes norte-americanos como o western, gangster, horror, ficção científica,
comédia screwball (de ritmo frenético e numerosos diálogos), melodramas voltados ao
público feminino, musical, biografias, swashbuckler (capa-e-espada) e o drama de época. No
mesmo período, diversos cineastas europeus renomados migraram para os Estados Unidos o
que moldou um estilo próprio de Hollywood, confundindo-se até mesmo como estilo
verdadeiramente internacional.
Apesar de nunca ser uniforme, a Hollywood clássica desenvolveu certa tendência
que definiu padrões formais e temáticos. Ray afirma que a fórmula de filmes criada por
Hollywood foi tão bem sucedida que passou a ser considerada como a essência do cinema e
qualquer tentativa de fugir desses padrões não significava somente um risco comercial mas
também de má compreensão da crítica de cinema27. Naturalmente, esses moldes se
modificaram no transcorrer do tempo, sendo que mesmo filmes tradicionais apresentaram
inovações e longas pretensamente originais apelaram a diversos recursos da era de ouro.
Robert B. Ray considera que esses padrões pré-definidos dos filmes
hollywoodianos foram definidos a partir de exigências comerciais, as demandas de mercado.
A partir disso, Ray enumera fatores internos e externos de modificações de demandas e,
consequentemente, de estratégias básicas de Hollywood. Sobre fatores internos entende-se:
inovações tecnológicas e artísticas, assim como, condições de produção, distribuição e
consumo. A respeito dos fatores externos pode-se compreender: inovações tecnológicas fora
do cinema (como a TV), a popularização de outras formas de entretenimento (como música
popular e esportes) e eventos históricos28.
No caso da Era de Ouro de Hollywood, enumera-se os seguintes fatores internos.
Em primeiro lugar, a utilização de som gravado no cinema com especial destaque aos
primeiros filmes falados, que não só contribuíram para eficiência comercial do cinema, uma
vez que se tornou acessível até mesmo para analfabetos, mas também, redefiniu a linguagem
cinematográfica particularmente no que diz respeito da atuação. Além disso, uma vez que a
da tecnologia de manipulação de som na época era concentrada por poucas empresas, os
produtores eram forçados a se preocuparem com a redução de custo e aumento da
produtividade, que influenciaram em uma produção crescente de películas.
Já os fatores externos principais consistem na depressão de 1929 e na Segunda
Guerra Mundial, os quais encorajaram na reformulação do cinema juntamente com as
27 RAY. Op cit. p. 130 28 Id., ibid., p. 28
19
preocupações acerca das tradições norte-americanas. A depressão, que trouxe consigo uma
taxa de desemprego até o momento nunca atingida nos EUA, fez os norte-americanos
questionarem a premissa dos Estados Unidos como terra das oportunidades e da prosperidade
o que juntamente com a segunda guerra, que pôs em xeque questões pertinentes a ideologia
dos EUA, gerou uma fraqueza política e, conseqüentemente, uma tentativa de reordenar seus
mitos.
Frente a essa discussão, Ray propõe que se entendermos os filmes como forma de
comunicar mitos e sonhos, sendo dependente disso a estabilidade social, a natureza comercial
de Hollywood exerceu um papel ligado a ideologia dominante e procurou minimizar o
choque ideológico norte-americano ao reafirmar sua cultura e ao apelar a enredos escapistas.
Dessa maneira, ao evocar mitos tradicionais da cultura norte-americana, o cinema comercial
hollywoodiano carrega consigo um forte propósito ideológico, atendendo a percepção do
público e reafirmando seus valores, através de aplicações de formas pré-estabelecidas29.
Porém, o que as décadas de 1930 e 1940 significaram um período de prosperidade
para o cinema comercial norte-americano, as décadas de 1940 e 1950 representaram uma
crise comercial da Hollywood Clássica.
Com o final da Segunda Guerra Mundial, houve em um primeiro momento,
conforme já discutido, um otimismo generalizado nos Estados Unidos, um sentimento de que
era uma nação vitoriosa, uma sociedade próspera e bem sucedida e o capitalismo geraria
tanta abundância que supririam os problemas sociais.
Isso contrastou com certo pessimismo gerado por empreitadas militares a exemplo
da Guerra da Coréia. Inicialmente planejada para ser uma invasão rápida, o confronto
inaugurou um novo tipo de guerra, em que não há vitoriosos nem derrotados, longa e
sangrenta até que uma trégua seja estabelecida. A demora da guerra deu margem a diversos
questionamentos acerca das justificativas para ações intervencionistas do governo
estadunidense, o que somado a demissão do general MacArthur30 (1880 – 1964), propiciou
uma confusão e frustração geral que minou determinados mitos da tradição norte-americana,
como de lutar para preservar o sonho americano e aceitar suas responsabilidades como líder
mundial. A desconstrução dessas tradições repercutiu em uma crise da auto-imagem norte-
americana e o debate se os EUA deveriam intervir na política externa ou aderir a um
isolamento político passou a se cristalizar31.
29 Id., ibid., p. 31 e 32 30 Veterano da segunda guerra, considerado um herói de guerra, que liderava as ações militares na Coréia 31 Id., ibid., p.134 e 137
20
Porém, enquanto a sociedade estadunidense debatia e reformulava sua noção de
identidade, a indústria hollywoodiana não acompanhou a transformação e continuou presa a
velhas fórmulas o que traria sérias conseqüências, uma vez que essa dependia da então ruída
auto-imagem suficiente dos EUA.
A indústria cinematográfica norte-americana já enfrentava dificuldades no final da
década de 1940. Em 1947, ocorreu a primeira caça às bruxas do congresso. Um ano após,
estúdios hollywoodianos sofreram um significativo prejuízo comercial originado pelo
chamado Caso Antitruste da Paramount Pictures que, como resultado, proibiu que uma
mesma companhia cinematográfica fosse responsável pela produção, distribuição e exibição
dos filmes, o mesmo caso também proibiu o uso do block-booking (em que os exibidores
deveriam pagar os filmes antes de serem produzidos). O caso antitruste prejudicou todos os
oito grandes estúdios de Hollywood (MGM, Paramount, 20th Century Fox, Warner Brothers,
RKO, Columbia, Universal e United Artists) e indiretamente os incentivou a investirem cada
vez mais na distribuição, que era mais rentável, e, por outro lado, desestimulou o processo de
produção, contrato em longo prazo com atores e etc. Além disso, o aumento e congelamento
da tarifas de importação da Europa, o que ocorreu entre 1947 e 1950, também foi fator uma
que dificultou economicamente os grandes estúdios de cinema norte-americanos.32
Como se não bastasse, o cinema comercial hollywoodiano foi prejudicado, a partir
dos anos 1950, por uma significativa fragmentação da audiência em massa. Em primeiro
lugar, deve-se levar em consideração a crescente popularização da TV como forma de
entretenimento. Robert B. Ray estima que entre 1946 e 1956 o número de residências com
televisão nos Estados Unidos passou de 8.000 para 35.000.000 casas33. Isso acarretou em um
grande prejuízo uma vez que as produtoras de cinema deveriam competir por patrocinadores
e audiência contra uma forma de entretenimento doméstica, popular e gratuita.
A fragmentação da audiência em massa também ocorreu devido a crescente
concorrência do cinema europeu. Houve diferentes respostas entre os norte-americanos com
relação as transformações ocorridas durante o pós-guerra. Essas respostas influíram na
demanda do cinema hollywoodiano, uma quantidade relevante de pessoas se desinteressou
pelos gêneros clássicos em prol dos filmes artes ou cult europeus, que consistiam em filmes
sérios, abstratos e pessimistas34. Com destaque aos filmes do neo-realismo italiano que
tiveram uma grande aceitação e criaram novas expectativas em relação as obras
32 Id., ibid., p. 130 33 Id., ibid., p. 132 34 Id., ibid., p. 140
21
cinematográficas, as quais deveriam ser mais críticas, complexas e próximas do “real”, e não
simplesmente, fictícias e escapistas. Apesar dos filmes hollywoodianos ainda serem
comercialmente melhor sucedidos, surge uma justificação elaborada para os filmes cult a
chamada teoria do autor, cujo principal defensor é Andrew Sarris (1928- ).
Ao posicionar os estúdios de hollywood como fábricas, padronizadoras,
desumanizadoras e ávidas por lucro, a teoria do autor posicionava os diretores, cujo estilo
pessoal se contrapunham aos filmes produzidos pelos estúdios, como os únicos que possuíam
um caráter verdadeiramente artístico, criativo e original. Outros teóricos do cinema como
Thomas Schatz se contrapõem a teoria do autor sob o argumento de que o estilo do filme não
se deve unicamente ao diretor e enfatiza a importância dos produtores no processo, sendo que
mesmo diretores de status privilegiados como John Ford (1894 -1973), Howard Hanks (1896
-1977), Frank Capra (1897-1991) e Alfred Hitchcock (1899-1980) na prática exerciam mais
funções de produtores do que de diretores de suas películas.35
2.2.2 Cinema hollywoodiano na década de 1950 e início de 1960
Frente a todas essas implicações, os produtores de Hollywood viram-se obrigados a
descobrir uma forma de se adaptar as diversas transformações do mundo pós-guerra com o
objetivo do mercado absorver seus discursos cinematográficos. Apesar da grande demanda
por inovação, em primeiro lugar, os produtores sentiram mais seguros em apostar em filmes
de sucesso garantido, geralmente baseados em best sellers, contos de fadas, contos bíblicos e
peças da Broadway. A exemplo de Moby Dick (1956), Os Três Mosqueteiros (The Three
Musketeers, 1948), Guerra e Paz (War and Peace, 1956), Joana D’Arc (Joan of Arc, 1948),
Cinderela (Cinderella, 1950), Os Cavaleiros da Távola Redonda (Knights of the Round
Table, 1953), 20.000 Léguas submarinas (20.000 Leagues Under the Sea, 1954).
Porém, a resposta mais efetiva de Hollywood foram os chamados “filmes
problema”36. Devido a crescente demanda e tolerância por filmes que abordam temas de
caráter social, Hollywood passou introduzir maior seriedade e responsabilidade social em
seus filmes como uma solução temporária para a crise comercial em que se encontrava. Os
velhos gêneros cinematográficos, antes de tudo voltados ao entretenimento, foram mesclados
a discussões relativas ao preconceito racial (Acorrentados, The Defiant Ones, 1958; Imitação
35 SCHATZ, Thomas. O Gênio do Sistema: a Era dos Estúdios em Hollywood. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 11 36 RAY. Op cit. p. 144 e 147
22
da Vida, Imitation of Life, 1959), problemas com bebidas e alcoolismo (O Homem do Braço
de Ouro, The Man With the Golden Arm, 1955; A Cruz da Minha Vida, Come Back Little
Sheba, 1952) gangues de adolescentes (Juventude Transviada, Rebel Without a Cause, 1955);
Sobre ameaça nuclear, destaca-se os filmes Limite de Segurança (Fail Safe, 1964),
em que uma falha em um computador militar dá ordem a esquadrão de bombardeio lançar
ogivas nucleares em direção a Moscou e ambas superpotências precisam se juntar a fim de
interceptar os caças e impedir uma Terceira Guerra Mundial; A Hora Final (On the Beach,
1964) sobre capitão de submarino e sua tripulação que com o desencadear da Terceira Guerra
Mundial fogem da radiação na costa da Austrália; Colossus: The Forbin Project (1970) em
que os EUA e a URSS criam um computador de inteligência artificial que liga as duas
nações, mas não demora para que o mesmo adquira inteligência própria e tome posse do
armamento nuclear de ambos os países e o ameacem de uma retaliação em massa caso não
cumpram suas exigências; O Dia em Que a Terra Parou (The Day The Earth Stood Still,
1951) ficção científica na qual alienígena pousa na terra trazendo consigo um robô capaz de
destruir a raça humana e anuncia que irá destruir a Terra caso os líderes mundiais não entrem
em um acordo de paz e parem de ameaçar a civilização terrestre e de outros planetas com seu
poder bélico.
Apesar de esses filmes serem a principio mais comprometidos aos problemas
sociais, os mesmos sempre acabavam apelando a moral conservadora, aos happy ends e a
velhas formas de contar histórias somadas a aprimorações técnicas. Aos musicais são
introduzidos novos cenários como ruas, paisagens abstratas e oníricas, além do exercício do
ballet (a exemplo de Cantando na Chuva, Singin’ In the Rain, 1952). Os westerns são
ampliados para épicos e abordam temas adultos como questões raciais e de classe além de
problemas psicológicos, como passividade, cobiça, egoísmo, orgulho, glamour, liberdade e
revolta (O Tesouro de Sierra Madre, The Treasure of Sierra Madre, 1948; Assim Caminha a
Humanidade, Giant, 1956; Os Brutos Também Amam, Shane, 1953; Álamo , 1960).
Apesar disso, os filmes épicos foram os grandes sucessos de audiência nos anos
1950. A “seriedade” de muitos desses filmes residiam em narrar histórias bíblicas por meio
de produções tecnicamente inovadoras. Isso ocorreu desde a primeira caça as bruxas do
congresso em 1947, muitos cineastas a fim de mostrarem-se politicamente neutros e não
serem enquadrados como comunistas apostaram em gêneros como musicais e épicos bíblicos.
Essas modificações ocorridas nos velhos gêneros garantiram a subsistência do
cinema comercial hollywoodianos. O sucesso de Box Office da primeira onda de “filmes
problema” garantiu a continuidade do gênero durante a década de 1950 e início dos 60.
23
Também não há como deixar de considerar a relevância do cinema noir nos Estados
Unidos. Determinados filmes abordam a sociedade norte-americana sob uma visão cínica e
pessimista. Nos filmes noir, personagens alienados e mau ajustados na sociedade, por vezes
anti-heróis fracos e corruptos, vagam em um mundo sem valores morais. O enredo
geralmente gira em torno de um assassinato ou roubo, rico em violência e erotismo, raras
vezes possuem finais felizes. O estilo visual dos filmes cria uma atmosfera de claustrofobia e
paranóia através de uma iluminação sombria, câmeras subjetivas, voice-over, flashbacks,
imagens distorcidas e fora de foco.37
Durante as décadas de 1940 e 1950, o cinema noir conquistou um espaço
significativo entre os filmes B, denominação criada para caracterizar produções comerciais
de baixo orçamento produzidos que eram passados juntamente tipo A, de grande orçamento,
em sessões duplas como estratégia comercial durante a depressão. Com o tempo um grande
número de cinemas passou a oferecer sessões duplas e com a crescente audiência de
Hollywood durante a era clássica, a demanda dos filmes noir aumentou, sendo que a crise do
cinema comercial norte-americano e a crescente aceitação de filmes problemas e cult
culminaram no auge dessas produções.
Os filmes dos anos 1940 abordavam predominantemente estórias de detetives
privados (Relíquia Macabra, The Maltese Falcon, 1941) e realismo urbano, como
dificuldades de veteranos da Segunda Guerra se reajustarem na sociedade (Pacto de Sangue,
Double Indemnity, 1944). Já nos anos 1950, predominaram questões a respeito de suicídio e
distúrbios psicológicos. Destaca-se que o macartismo e o crescente medo de um
exterminismo nuclear deram margem a estórias de personagens paranóicos tentando
compreender e sobreviver frente a um mundo hostil e assolado a ameaça comunista. È o caso
que filmes como o Anjo do Mal (Pick up on South Street,1953), no qual um batedor de
carteiras rouba acidentalmente uma bolsa que contém um microfilme com informações
secretas e passa a ser perseguido. Há ainda filmes que lidam com o tema do descontrole
mental com o estilo e enquadramentos dos filmes noir clássicos apesar de não serem
caracterizados como tal, que é caso de Paixões que Alucinam (Shock Corridor, 1963) e
Brainstorm (1965), dirigido pelo ator de filmes noir William Conrad, sem contar com o longa
Sob o Domínio do Mal (The Manchurian Candidate, 1962), a ser discutido posteriormente.
Outros filmes de espionagem que vale a pena destacar são: I Married a Communist
(1951), sobre executivo que envolvido com comunismo durante a depressão é chantageado
37 RUIZ, Ernesto A. Cinema Noir (1941/1958): uma aproximação histórica. Revista da SBPH, nº 19, 2000. p. 101 – 112.
24
em cumprir missões de sabotagem para uma organização comunista para não revelar seu
passado comprometedor; À Sombra da Noite (Night People, 1954), em que veterano de
guerra procura soldado seqüestrado em Berlim no pós-guerra; Fui um Comunista para o
FBI38 (I was a Communist For the FBI,1951).
Também não pode deixar de mencionar o filme 007: Missão em Moscou (From
Russia with Love,1963), segundo filme da série de espionagem mais bem sucedida do
cinema, precedido de 007 contra o Dr. No (Dr. No, 1962). No filme em questão, baseado na
obra de Ian Fleming, o protagonista James Bond ou 007 (Sean Connery, 1930 - ), agente
secreto britânico com licença para matar, viaja para a Turquia a fim de frustrar os planos da
organização terrorista SPECTRE, formada por russos e orientais apesar de ser citada como
uma organização internacional, apolítica e desvinculada de qualquer ideologia ou nação. O
enredo do filme não possui conclusão, portanto, os detalhes da conspiração terrorista, que
consiste em roubar toda a reserva de ouro norte-americana para gerar uma crise econômica
internacional, só são revelados na continuação 007 contra Goldfinger (Goldfinger, 1964).
Sem contar, o filme Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or How I Learned to Stop
Worrying and Love the Bomb, 1964), sátira repleta de humor negro dirigida por Stanley
Kubrick (1928 – 1999), e até hoje considerado um marco no cinema norte-americano durante
a Guerra Fria. O diretor trabalhou com os mais variados gêneros e realizou diversos filmes
polêmicos. Suas obras são marcadas por uma estética própria do diretor, um ceticismo com
relação a humanidade e, em alguns casos, por um caráter anti-militarista como 2001 – Uma
Odisséia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968), Laranja Mecânica (A Clockwork
Orange, 1971), Spartacus (1960), Nascido para Matar (Full metal jacket,1987) e etc.
Dr. Fantástico é carregado pelo estilo de Kubrick, o enredo parte do momento em
que o insano general norte-americano chamado Jack D. Ripper (referência ao serial killer
Jack, o Estripador) ordena um bombardeio nuclear na União Soviética o que causa uma crise
diplomática entre as duas superpotências e uma iminência de retaliação nuclear (coincidência
de enredo ou não Kubrick processou os produtores do filme Limite de Segurança, ver página
14, por plágio). O filme é repleto de detalhes, personagens caricaturados, ironias e
ambigüidades. Destaca-se sobretudo a atuação de Peter Sellers (Pantera Cor de Rosa) que
interpreta três personagens: o desastrado capitão inglês ajudante do general Ripper, o
medroso presidente dos EUA e o conselheiro nazista do presidente, Dr. Fantástico.
38 Curiosamente indicado Oscar de Melhor Documentário e, posteriormente, uma série de rádio.
25
3 HISTÓRIA E CINEMA: SOBRE A VALIDADE E UTILIZAÇÃO DO FILME NO
ESTUDO DA HISTÓRIA
3.1 O USO DO FILME COMO FONTE HISTÓRICA
Em um trabalho que irá considerar a obra cinematográfica como fonte histórica, não
se pode deixar de considerar a importância da historiografia de Marc Ferro, historiador
pertencente à chamada História Nova e o mais respeitado no uso do cinema na História, foi
um dos precursores por esse tipo de estudo, com inúmeras produções acadêmicas e grande
influência na historiografia dedicada a essa abordagem.
Por muito tempo foi questionado o fato de o filme ser ou não incluído no patamar de
fontes validas para o trabalho do historiador. Por vezes considerado onírico e de interpretação
imprecisa, o discurso cinematográfico surgiu após a História se constituir como tal e
determinados métodos de pesquisa serem estabelecidos.
Para introduzir seu argumento sobre a importância do filme como fonte histórica,
Marc Ferro realiza um panorama sobre a historiografia durante o século XX. O início do
século foi marcado por historiadores que glorificavam a nação em prol do Estado contando a
história de heróis que serviram a nação com base em determinadas condutas e valores
morais. Para moldar esse tipo de discurso tais historiadores escolheram uma metodologia
específica e hierarquizaram fontes de acordo com seus interesses, no caso, deram ênfase a
documentos do estado, manuscritos ou impressos39. Por isso, nesse momento, a História foi
em grande parte posta sob enfoque de diplomatas, magistrados, administradores, enfim,
homens de estado de maneira geral.
Em meados dos anos 1970, Marc ferro escreveu o artigo "O filme: uma contra-
análise da sociedade?", inicialmente publicado na coleção Faire de l'Histoire40 organizada
por Jacques Le Goff e Pierre Nora, a qual inaugurou a chamada terceira geração dos Annales.
Até essa publicação, que consiste no marco inicial da inclusão do cinema como fonte
histórica, Ferro cita que a chamada "revolução marxista"41 mudou a concepção de História e
juntamente trouxe novos métodos e uma nova hierarquia de fontes, dessa vez enfocando a
questão do modo de produção e luta de classes. A ascensão das ciências sociais, além de
39 FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 81 – 83. 40 FERRO, Marc. O Filme: uma contra-análise da Sociedade? In: História: Novos Objetos. (orgs.) LE GOFF, Jacques & NORA, Pierre. RJ: F. Alves, 1976. 41 FERRO, Marc, Op. Cit., 1992, P. 83
26
outras ciências humanas, também foi um fator de importância e agregou inúmeras
contribuições a História.
Com o tempo, os objetivos da História passam a ser outros, conforme destaca em
uma citação de Furet, o historiador a partir de determinados problemas orienta sua pesquisa
e, de acordo com suas necessidades, determina o método e a seleção de fontes utilizados.
Porém, alguns velhos hábitos permaneceram como no caso os historiadores dos Annales
enquadrados na história quantitativa, que apesar de enfatizar o estudo das estruturas de longa
duração ao invés dos acontecimentos, ainda utilizavam-se de fontes baseadas em séries de
preços e tabelas demográficas.
A partir disso Ferro questiona qual afinal seria a importância do filme para essas
metodologias de História que prezam cálculos e argumentos categorizados como racionais
em detrimento ao imaginário, uma vez que a película se resume a uma ficção, um discurso
maquiado, onírico e controlado seja pelo Estado ou pela ideologia dominante.
O historiador destaca que o cinema ao mesmo tempo fascina e inquieta. Fascina pelo
fato de parecer real e verdadeiro aos olhos do público e inquieta porque, mesmo controlado,
um filme testemunha por si, transcende o discurso manipulado, pois a câmera diz mais do
que quer mostrar e traz a tona lapsos da estrutura social, e, portanto, tem a capacidade de
destruir imagens fomentadas pelas instituições42.
Utilizando uma expressão de Marc Ferro:
A idéia de que um gesto poderia ser uma frase, ou um olhar um longo
discurso é completamente insuportável: isso não significa que a imagem, as
imagens sonoras, o grito dessa mocinha ou essa multidão amedrontada
constituem a matéria de outra história que não é a História, uma contra-
análise da sociedade?. 43.
A partir disso, o autor introduz a idéia do filme como forma de contra-história. Em
primeiro lugar, deve-se considerar a idéia de contra-história, tão veemente trabalhada por
Marc Ferro. Ferro cita o silêncio como primeira forma de contra-história, sendo que a
ausência de diálogo ou não reconhecimento de determinadas idéias representam o
comportamento de um grupo derrotado. A contra-história também remete ao deslocamento
do discurso para outros campos, como a poesia, o romance, literatura, festas, cinema e etc.,
42 Id., ibid., p. 85 43 Id., ibid., p. 86
27
que o possibilita contornar barreiras impostas de forma mais eficiente que outros discursos
que remetem ao “real”. Isso subentende uma batalha em torno das narrativas, de valores,
entre vencedores e conquistados, como formas de defesa e formação de identidade.
Por exemplo, Ferro aponta manifestações de contra-história em judeus, índios,
negros, árabes e latinos, com relação a sociedade norte-americana. Filmes de pouco recurso,
por exemplo, permite um grupo "tomar a palavra", o que o torna uma forma privilegiada de
contra-história.
O filme histórico consistiria em uma das formas dos cineastas trabalharem na
constituição da consciência histórica e identitária de uma sociedade, imagem que essa tem de
si e de seu passado. A partir de estudos históricos, o cineasta define como sustentar sua
demonstração e, para isso, escolhe fatos e descrições que o satisfaçam a si mesmo e quem
compartilha a mesma visão. Dessa forma, a ideologia do filme, entendido como um critério
de julgamento, transcende a competência profissional do cineasta.
Mas também, Ferro ressalta que a identidade e consciência histórica de uma
sociedade não se evidência somente através de narrativas sobre o passado, como os filmes
históricos44. Em termos de análise histórica, uma obra ficcional equivale a um filme
documentário ou histórico. Ao relacionar com Roger Chartier, que será melhor trabalhado
posteriormente, o filme uma vez entendido como representação, mais particularmente
analisado como desvio cultural, permite uma reflexão sobre a identidade do grupo que o
produz e o assiste.
Se entender o filme, ficcional ou não, como aquilo que o cineasta julga ser
realidade, e não o 'real' propriamente dito, a contra-análise pode-se revelar de modo
involuntário, como em um conjunto de gestos, objetos, comportamentos, estruturas e
organizações sociais representados. Em um mero filme ficcional, essa questão pode ser mais
rica, uma vez que a função do mesmo não é informar.
Nos Estados Unidos, o cinema desempenhou um papel fundamental na consciência
histórica dessa sociedade, principalmente devido a sua grande importância na vida social e
cultural45. Através do cinema repercutem visões que dominaram a vida norte-americana
assim como suas críticas, contra-análise, tudo apresentado em diferentes representações
sobrepostas e estratificadas, na qual os mais variados grupos étnico-culturais legitimam sua
existência. Dessa forma, a questão de representações pode ser ligada ao argumento de Marc
Ferro.
44 FERRO, Marc. A História Vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 66 45 Id., ibid., p. 69
28
Se ainda levar em consideração a definição de imaginário por Evelyne Patlagean46,
que o define como um conjunto complexo de representações de uma determinada sociedade,
as quais extrapolam as constatações da experiência, pode-se entender o papel do cinema que,
como produto do mundo que o rodeia, revela questões referentes ao imaginário da sociedade.
Ferro denomina a camada dominante da sociedade norte-americana, que escreve a
chamada história-oficial, de W.A.S.P. (white anglo saxon protestant, anglo saxões brancos de
protestantes). Em contraposição a essa camada, há cineastas, a exemplo de Charles Chaplin e
Woody Allen, que não se incluem nesse grupo e criticam a WASP, realizando uma contra-
análise da sociedade. Também são postas em cheque as instituições militar, familiar, política
(em casos de repressões ideológicas como o macartismo), a imprensa, o racismo e etc.
Assim, utilizando-se uma expressão de Ferro: "mais do que os nunca, os Estados Unidos
interrogam sobre si"47.
A partir dessas considerações, Ferro enfatiza a relevância de analisar as imagens em
suas particularidades, não como uma mera ilustração ou confirmação de fontes escritas. As
significações do filme vão além do sentido semiológico48, em que Ferro propõe a leitura de
estudos de Christian Metz etc, e a analise do historiador não deve se resumir ao quesito
estético ou a história do cinema.
O historiador precisa tratar o filme como produto e testemunha e, portanto, associá-
lo ao mundo e a época que o produz, a relação do filme com o cineasta, a produção, o
público, a crítica, o governo etc. Com isso, procura evidenciar a realidade da obra que a
representa, aspectos da realidade mostrados involuntariamente, lapsos, ambigüidades,
incertezas e tensões49 entre o filme e a sociedade para assim encontrar o latente por trás do
aparente, o não-visível por traz visível. Tal análise pretende rearticular e desconstruir a
História apresentada como discurso ordenado e racional50.
Dessa forma, o discurso cinematográfico possibilita o historiador entrar em contato
com o inconsciente coletivo, zonas “psico-socio-históricas”. O filme, considerado ficção ou
não, é História, pois, conforme enfatiza Ferro, até mesmo o que não aconteceu, crenças,
46 PATLAGEAN, Evelyne. A história do imaginário. In: LE GOFF, Jaques. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 29. 47 Id., ibid., p. 75 48 FERRO, Marc, Op. Cit., 1976, p. 203 49 MORETTIN, Eduardo. O Cinema como Fonte Histórica na Obra de Marc Ferro. In: História e Cinema. (orgs.) CAPELATO, Maria Helena; MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos. São Paulo: Alameda, 2007. p. 103 50 FERRO, Marc, Op. Cit., 1992, p. 88
29
desejos, representações do real e o imaginário de uma sociedade fazem parte da história, pois
são o que movem a atividade humana51.
A partir dessa consideração sobre a validade e formas de abordagem do filme como
fonte histórica, há a necessidade de uma avaliação mais acirrada sobre as condições que
possibilitam o funcionamento da linguagem cinematográfica e seus respectivos mecanismos
de significação.
3.2 REPRESENTAÇÕES E A HISTÓRIA CULTURAL DO SOCIAL
Como o cinema integra essencialmente o campo cultural, não há como excluir do
trabalho questões metodológicas pertinentes levantadas pelo historiador Roger Chartier sobre
novas compreensões acerca dos bens e práticas culturais para a História. O artigo O Mundo
Como Representações52, originalmente publicado em 1989 na revista dos Annales, propõe,
a partir de um panorama sobre a formação dos Annales e o diálogo entre a História e as
ciências sociais, uma abordagem da história social sob o enfoque cultural, mais
especificamente sobre formas particulares de produção e apropriação de significado.
Em um primeiro momento, as ciências sociais desqualificaram o empirismo da
História e sua metodologia baseada nas Ciências Exatas. A partir disso, a história teve que se
adaptar agregando disciplinas como a etnologia, sociologia e demografia. Sob essa mudança,
foram fundamentados os pilares da escola dos Annales nos anos 1930, através dos quais o
estudo da chamada história das mentalidades ou psicologia histórica vieram em primeiro
plano, utilizando a lingüística, sociologia e antropologia. Porém, a história das mentalidades
ainda estava presa ao tratamento de fonte de forma quantitativa e serial. Dessa forma, a
História renovou sua legitimidade científica ao se apropriar de disciplinas que em um
primeiro momento ameaçaram sua viabilidade metodológica.
Nos anos 80 parece ocorrer o inverso na relação da História com as Ciências
Sociais. Chartier considera uma discussão vigente acerca de uma possível crise das ciências
sociais53, marcada pelo abandono de sistemas globais de interpretação como marxismo e
estruturalismo, que passam a ser considerados obsoletos. Nesse momento, aliadas
tradicionais como a geografia, a etnologia e a sociologia entram em crise e a História é
51 FERRO, Marc, Op. Cit., 1976, P. 20. 52 CHARTIER, Roger. O Mundo como Representação. Estudos avançados 11(5), 1991. p. 173 -191. 53 Id., ibid., p. 173.
30
assolada por diversas incertezas e indecisões. Isso repercute em um distanciamento da
História com as ciências sociais em prol de novos métodos, objetos e paradigmas críticos.
Chartier discorda com esse debate em pauta no meio acadêmico e salienta que a
mudança na historiografia não ocorreu devido uma crise das ciências sociais, uma desilusão
com relação ao marxismo e estruturalismo ou uma mudança de paradigma54. Mas sim, a um
distanciamento tomado com relação a procedimentos de pesquisa em um transcorrer de três
décadas.
Esse afastamento ocorreu através de três rupturas principais: a primeira realizada
com relação a história global, que voltava a uma análise dedicada a variados níveis da
totalidade social; em seguida, procedimentos de pesquisa delimitados em definições
territoriais e, por último, recortes sociais pré-estabelecidos. Através dessas renúncias, os
historiadores passaram a estabelecer novas compreensões sobre os funcionamentos sociais,
em detrimento do modelo braudeliano, assim como, de determinados conceitos e de divisões
rígidas de práticas sociais e bens materiais.55
Ao vivenciar essas renúncias e reordenamento da História, Roger Chartier levanta
considerações com base em sua experiência pessoal. Seu trabalho versa o estudo crítico dos
textos, história dos livros, da leitura e de demais práticas simbólicas. Além disso, sua
produção historiográfica se concentra nas transformações propiciadas pelos textos impressos
nas relações sociais e formação ideológica nos séculos XVII e XVIII.
Em seus trabalhos, busca realizar um choque entre o mundo do leitor e o mundo do
texto a fim de entender a construção de sentido durante a leitura como algo historicamente
determinado56. Assim, as formas de leitura variam com a época, o lugar e o meio social em
que é realizada. Por isso, as práticas culturais não estão simplesmente subordinadas ao social
como pregam princípios que fundamentavam a história social da cultura, que estigmatizava
bens culturais de acordo com recortes sociais globalizantes e pré-estabelecidos. Pelo
contrário, práticas culturais, como a leitura, por exemplo, estabelecem e subentendem uma
relação com o espaço e o outro.
Assim, através do estudo dos hábitos de leitura de determinada época, pode-se
compreender como o texto pode ser manipulado e entendido, com especial ênfase ao espaço
em que se constrói o sentido e, portanto, como o leitor recebe o texto. A recepção da obra
pelo público leitor não depende somente de suas competências e normas de leitura, mas
54 Id., ibid., p. 176. 55 Id., ibid., p. 176 e 177. 56 Id., ibid., p. 182.
31
também de como objeto cultural se apresenta, sua forma física, e como esse atinge quem o lê
e influí em sua interpretação.
Sob esse argumento, o pesquisador seria capaz de rearticular a relação entre recortes
sociais (estruturas objetivas como classes) e práticas culturais (discursos subjetivos, seja
valores ou comportamentos). Chartier considera que as segmentações sociais só existem a
partir das representações coletivas57, entendidas como relações do sujeito com o mundo
social em que vive, sua forma de ser e de se situar, guiada por valores que transcendem o
indivíduo. As representações implicam em uma relação entre um símbolo presente utilizado
para remeter a um objeto material ausente e, por vezes, remeter a um valor moral e subjetivo
através de imagens. A partir dessa relação que o sentido é construído.
Através das representações, grupos de pessoas com noções de realidade diferentes
definem sua identidade social e a legitimam através da manipulação de discursos. O que
implica em uma luta de representações através da qual cada grupo se utiliza de instrumentos
simbólicos para fazer crer, ver e legitimar divisões e hierarquias sociais.
A partir de então, as práticas e estruturas sociais só existem se produzidas pelas
representações, através das quais os indivíduos e grupos dão sentido ao seu mundo58. Por
isso, a importância de estudar a sociedade a partir de relações e tensão sob uma questão em
específica, no caso os desvios culturais que desmistificam categorias sociais concretas e
dadas a priori, uma vez que esses desvios culturais permitem entender as divisões sociais
como um processo dinâmico. Por isso, a necessidade de abandonar uma análise que submete
o bem cultural a uma caracterização de mentalidade e demais construções generalizadas de
ideologia ou visão de mundo. O discurso deve ser entendido em sua própria especificidade,
sua lógica e ambigüidades.59
Dessa forma, o estudo da história das práticas sociais, integrada a história das
representações (inscritas nos bens culturais ou produzidas pelos indivíduos), permite um
novo diálogo entre a história cultural e outras disciplinas, além de uma reformulação da
historiografia. Sob esse sentido, a história das representações não é nada mais do que a
história social das interpretações e da produção e apropriação de sentido, explícito ou
implícito60.
Chartier aponta o estudo das divisões de poder nos mecanismos de significação e
julgamentos intelectuais ou estéticos como uma fonte para o enriquecimento e reformulação
57 Conceituação originária da sociologia em resposta a noção de psiquiatria representação individual. 58 Id., ibid., p. 177, 183. 59 Id., ibid., p. 187 60 Id., ibid., p. 180.
32
das formas de interpretação dos Annales, tanto no que diz respeito a compreensões sobre
práticas culturais, representações como das divisões do mundo social. Dessa forma,
abandona-se uma história social baseada nas lutas econômicas em prol de estratégicas
simbólicas de produção de sentido que determinam a identidade, posições e relações de
grupos.
Ao transpor a metodologia proposta por Chartier para a pesquisa, o filme não será
abordado de “fora para dentro” como fazem alguns especialistas em história social do
cinema, que estudam o filme de maneira distanciada, como reflexo de um fator econômico e
social, mais voltados ao processo produtivo da película61. O estudo se especificará no filme
em si, na questão da produção de sentido, como a obra representa e dialoga com a sociedade
estadunidense e de que forma através dele é possível identificar questões pertinentes à
identidade norte-americana, sua maneira de ser e situar. O que não impede que o trabalho
dialogue com demais produções historiográficas e com bibliografia complementar que revele
particularidades do processo produtivo do filme, as quais permitem identificar e
problematizar o sentido da produção.
Isso repercute no estudo dos mecanismos de significação e na particularidade do
discurso utilizado como fonte no trabalho proposto, o cinema. Para um maior
aprofundamento da discussão acerca da especificidade do filme a fim de complementar o
debate sobre as representações, há a necessidade de considerar o trabalho de um estudioso
especializado na linguagem cinematográfica, no caso, o teórico do cinema e semiólogo
Christian Metz.
3.3 A PRODUÇÃO DE SENTIDO NO CINEMA
A produção acadêmica do semiólogo Christian Metz realizada em meados da década
de 1970 perdura até hoje nas discussões de teoria do cinema. O marco de sua carreira é
considerado como uma resenha da obra Esthetique et Psychologie du Cinema de Jean
Miltry. A partir da resenha Metz considera que a teoria do cinema precisaria de uma
reorientação. Seguindo essa premissa, Metz trabalha sistematicamente os principais teóricos
do cinema (Bazin, Eisenstein, Kracauer, Arnheim e etc). O autor abandona considerações
genéricas de Miltry e salienta a importância da análise das condições materiais que permitem
61 A exemplo de: SKLAR, Robert. História Social do Cinema Americano. São Paulo: Editora Culturix Ltda, 1975 e VALIM, Alexandre Busko. Apontamentos para uma História Social do Cinema no Estudo da Guerra Fria. Artigo apresentado no X Encontro Regional da História – ANPUH–RJ. UERJ, 2002
33
que o cinema funcione, o que corresponde a descrição exata dos processos de significação do
cinema, a semiótica62.
Assim, a semiologia é entendida como estudo da mecânica do filme, uma ciência
que analisa a forma pela qual o filme adquire significado e o transmite a platéia. Com essa
ciência Metz "pretende dominar as leis que tornam possível o ato de se ver um filme e
desvendar os padrões particulares de significação que dão aos filmes ou gêneros específicos
seu caráter especial” 63, deseja encontrar as grandes unidades significantes (denominadas
sintagmas) pelas quais os homens “transmitem significações humanas nas sociedades
humanas.” 64
Ao buscar incorporar certa cientificidade no cinema. Metz define o que seria a
matéria-prima da semiologia. A matéria prima fílmica (externa do filme) que corresponderia
a produção, a censura e a platéia e a matéria prima cinemática que corresponderia ao próprio
filme, sua estrutura em si.
Metz levanta a questão se o cinema consiste ou não em uma linguagem. O cinema
não possui a mesma mobilidade da linguagem verbal. Um filme é produzido através de cinco
materiais de expressão: imagens, traços gráficos ou material escrito, discurso gravado,
música gravada e efeitos sonoros gravados. Portanto, não existem o equivalente a fonemas,
monemas65, substantivos e palavras. Para o teórico, uma película se apresenta como um
conjunto de sentenças, afirmações e enunciados66.
As diferenças entre a linguagem escrita e a cinematográfica vão além dessa
consideração. A linguagem verbal é realizada entre pessoas que utilizam as palavras de
acordo com um "uso básico", um sistema pré-determinado para realizar determinadas
funções. Já a expressão cinematográfica é somente voltada a platéia, de forma que essa não
dialoga com as imagens. Também não existe um "uso básico" das imagens uma vez que elas
possuem um nível natural de expressão, pois o mundo se apresenta através da visão e as
imagens de um filme consistem em "representações realistas e os sons reproduções exatas
daquilo que se refere"67.
Dessa forma, os significantes e os significados do cinema são intimamente
conectados, vemos a imagem e juntamente entendemos o sentido que ela carrega, até mesmo
62 DUDLEY, Andrew J. As Principais Teorias do Cinema – Uma Introdução. Christian Metz e a Semiologia do Cinema. Jorge Zahar Editor LTDA, RJ, 1989. p. 211 63 Id., ibid., p.216 64 Id. 65 Aqui entendido como uma unidade mínima de significado 66 DUDLEY, Op. Cit., p. 220 67 Id., ibid., p.219.
34
em certos filmes abstratos ou muitos desenhos animados. Assim, o cinema não é uma
linguagem em si, mas um veículo de expressão, um "frágil sistema de comunicação"68 que
pode adquirir variadas formas, seja poético, seja prosaico.
Porém, o cinema se comporta como uma linguagem a medida que transmite
significado ao espectador. Por isso, Metz salienta o emprego de determinados conceitos da
teoria geral da comunicação, principalmente da lingüística tais como: código, mensagem,
sistema, texto, estrutura, paradigma e etc.
Apesar de merecerem serem levados em consideração, esses conceitos não serão
abordados a fundo no estudo aqui em questão. Resumidamente, a significação ocorre de
forma natural, mas para Metz, isso não quer dizer que essa ocorre de forma direta. Divide o
processo entre o significante, que é o que passa a mensagem, e o significado, que é a
mensagem em si. Esses dois, sujeitos são mediados por uma analogia, uma relação lógica,
chamada código (ou signo), que permite que uma mensagem seja entendida, sendo que forma
com que esse código é utilizado se denomina subcódigo.
Os códigos são ligados através de textos, um conjunto de mensagens sistematizadas
logicamente. O texto se organiza de duas formas: sintagmática, em que tudo é ligado e
esclarecido, e a paradigmática, cujo objetivo é criar ambigüidades. Os gêneros
cinematográficos não seriam nada mais do que determinados códigos que transcendem os
filmes. São exemplos de situação de codificação: interpretação, iluminação, figurino,
movimento de câmera e etc.
A fim de explicar mais a fundo a ligação entre significante e significado, pode se
dividira a analogia em dois tipos69. Em uma relação lógica de denotação, que se trata de uma
semelhança perceptiva manifestada como imagem ou som (ex.: uma imagem de um objeto
material usada para referir o próprio). E de conotação, que vai além da simples semelhança
visual ou sonora e carrega paralelamente um sentido metafórico, subjetivo, figurado,
subentendido (ex.: um objeto manifestado como imagem pode não se referir a questão
material, mas também, ao seu embargo simbólico).70
Mais adiante, o semiólogo aponta o plano como uma unidade mínima de análise da
película. O plano é entendido como um bloco de realidade de extensão infinita e indefinida
criada pelo cineasta que se apresenta como um enunciado. É através da oposição de planos,
durante a montagem, que o cineasta concede sentido ao filme.
68 Id., ibid., p. 220. 69 METZ, Christian. A Significação do Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 130 70 Nota-se que essas relações que fundamentam a significação trazem semelhanças com as relações de representação de Roger Chartier
35
Assim, a montagem consiste em uma articulação da realidade representada na tela,
uma tentativa de transformar o mundo em discurso, de modo que o discurso aparente real aos
olhos do expectador. Através do enredo o público tem contato com o significado, a função do
semiólogo é realizar o caminho inverso, consiste em encontrar o significante, entender como
os filmes são entendidos.
3.4 SOBRE AS ESPECIFICIDADES DA INSTITUIÇÃO E DO DISCURSO
CINEMATOGRÁFICO
Em um segundo momento sobre discussões levantadas por Christian Metz, vale
ressaltar a questão do cinema hollywoodiano, em suas formas tradicionais como de narração
e representação, além de fatores mais genéricos acerca da relação entre o discurso
cinematográfico e o expectador, com destaque ao conceito de impressão de realidade.
Para o semiólogo, a cinematografia hollywoodiana, entendida em sua forma atual, se
apresenta mais como uma instituição do que uma indústria propriamente dita71. Isso se deve
porque, além da simples questão comercial, os filmes são dotados de uma existência, não
basta que o filme seja produzido, mas que tenha lugar no indivíduo e na sociedade, parte se
do princípio que a película depende da vontade dos espectadores em assisti-la.
A partir dessa consideração, Metz reflete sobre o que motiva as pessoas a irem ao
cinema. A princípio o mais óbvio é considerar que consiste em uma questão ideológica, a
medida que os espectadores compartilham a mesma ideologia que os filmes que assistem.
Mas ainda há a posição simbólica na qual o expectador se submete ao assistir a história de
um filme, uma questão de desejo.
O filme tradicional é entendido "como uma realização formulada de um desejo não
formulado"72. Uma vez que o cinema hollywoodiano já sofreu uma série de regulagens, de
maneira que dispõe fórmulas preferenciais de desejo, entendidas como os gêneros
cinematográficos. Esses filmes moldados em determinados parâmetros consistem em um
imaginário protegido e consentido o qual apresenta a diegese (entendida como instância
representada no filme).
71 METZ, Christian. História/Discurso (nota sobre dois voyeurismos). In: A Experiência do Cinema. XAVIER, Ismail (org.). Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983. p. 404 72 Id., ibid., p. 404
36
O espectador adota duas posições com relação a película: ser-testemunha cujo
único objetivo é assistir o filme, e ser-ajudante, que trás vida, concede sentido ao filme, que
sem ser interpretado não passaria de um simples objeto.
O filme, por sua vez, sabe que é visto, mas finge não saber através de um jogo entre
o autor e o público de presença e ausência73. O filme é exibicionista uma vez que representa a
instituição cinematográfica através de um discurso (chegando, na opinião do semiólogo, a
substituir a literatura do século XIX semiologicamente, historicamente e sociologicamente).
O exibicionismo assume a ordem dos discursos e joga com identificações cruzadas como
eu/você, ativo/passivo, sujeito/objeto, ver/ser visto. Essas representações efetivam-se uma
vez que o que exibe não é o exibido, mas através dele, a exibição em si.
Em contrapartida, por meio da história o filme não é exibicionista, finge não saber
que é exibido, a medida que se esconde na parte textual do filme, sua história/enredo. A
película tem como objetivo dar a impressão ao expectador que está alheio deste e de sua
existência como tal, tal disfarce se fundamenta por meio de uma especialização institucional
(em um regime econômico estável e regulamentado). A partir disso, o filme se apresenta
como uma história contada por ninguém, em que o narrador se ausenta, mas que apesar disso
recebe um sentido, como um enunciado sem enunciador. A instituição cinematográfica prevê
um expectador imóvel, silencioso, alienado, passivo e concentrado.
O espectador, por seu lado, se satisfaz em negar que está sendo observado, pois,
deseja revelar a película e, ao mesmo tempo, ser surpreendido. O público não busca
necessariamente criar uma identificação com os personagens, mas sim, com uma instância
chamada de vidente. O vidente consiste em um sujeito puro, invisível e onividente que
acompanha o enredo sob uma perspectiva monocular, sem "eu", lugar e sinais. Assim, o
expectador se identifica com um "narrador-deus" a fim de tornar-se um "espectador-deus".
Sob essa perspectiva, "é a história que se exibe, a história que reina"74. Por isso,
torna-se importante considerar como o discurso se disfarça sob a chamada da impressão de
realidade75 no cinema. Através de teoria da impressão de realidade, Metz sustenta a
proposição de que um filme mais do que os demais ramos artísticos, passa ao expectador o
sentimento de assistir um espetáculo real e participar afetivamente e perceptivamente do
enredo. Um filme ficcional, tido como irreal, só é eficaz se o irreal se apresenta com
73 Id., ibid., p. 406 74 Id., ibid., p. 410. 75 METZ, Op. Cit., 1977, p. 16.
37
aparência de um acontecimento aos olhos do público, ou seja, "uma obra fantástica só é
fantástica se convencer (senão é apenas ridícula)"76.
O teórico considera que o filme acarreta um fator ambíguo chamado de realidade
parcial, pois, ao mesmo tempo traz consigo elementos que remetem a realidade, como o
tempo e o movimento, e outros que o relegam a ficção e ao imaginário, como a imagem
projetada e a ausência de materialidade. Assim como um filme é mais real do que uma
fotografia (em que há ausência de tempo e movimento), o mesmo não é tão real quanto o
teatro (posto na categoria de realidade total, a medida que possui materialidade) e devido a
isso não é “real” ao ponto de agredir a noção de realidade do público uma vez que esse
também se sente confortável estabelecer um certo distanciamento da representação.
Dessa forma, contraditoriamente, os elementos que aparentemente minam a
impressão de realidade fazem com que o expectador tente investir conscientemente uma
realidade e se engajar em uma atividade afetiva, intelectiva e perceptiva, fator denominado
de transferência da realidade77.
Conforme relevado, o filme se caracteriza por estar disposto em uma seqüência
temporal, seja o tempo em que a história da película discorre seja o tempo da exibição.
Diferente a descrição, que supõe que o exibido esteja estagnado no tempo, a narração implica
um sistema de transformações temporais exibidos por meio de um discurso, realizado por
uma instância narradora e distanciada no tempo e no espaço. Metz ainda remete a uma
consideração de Sartre78 que aponta a narração como uma lembrança a medida que se refere
a um acontecimento tido como encerrado, o que a confere um grau de irrealidade que o
relega ao imaginário. A partir disso, refere a narração como um "discurso fechado que
irrealiza uma seqüência temporal de acontecimentos"79.
Como visto, Metz entende o filme como um meio de expressão, uma forma de dizer,
contar algo. A partir disso, ressalta que as formas de dizer de um filme estão presas em
assuntos e conteúdos determinados, o que chama de pressões do dizível fílmico. O semiólogo
enumera três tipos de censura as quais os filmes estão sujeitos: econômica, baseada em
questões financeiras; política e ideológicas ambas realizadas por instituições.
O teórico denomina de verossímil80 um tipo de censura particularmente eficaz. Metz
cita Aristóteles que caracteriza o conceito como um conjunto do que é possível aos olhos do
76 Id., ibid., p. 17, 18. 77 Id., ibid., p. 25. 78 Id., ibid., p. 37. 79 Id., ibid., p. 42. 80Id., ibid., p. 228.
38
senso comum, uma redução do possível, cultural e arbitrária entre os possíveis reais. Em
outra consideração, trata o verossímil de forma paradigmática como convenção que prevê a
escolha. Desse modo, o verossímil não corresponde necessariamente ao “verdadeiro”, mas
filtra a maneira de tratar determinados assuntos.
Apesar da plausibilidade, o filme só se sustenta a medida que é autorizado por
discursos anteriores. O discurso nunca é copiado na integra, pois está a leitura do cineasta e a
intertextualidade com outros filmes. Como já visto isso ocorre no cinema a partir de assuntos
ou tons pré-estabelecidos81, enfim fórmulas da instituição cinematográfica, como os gêneros
fílmicos tradicionais. Metz divide esses assuntos em: o maravilhoso, cujo objetivo é
desnortear o expectador; o corriqueiro, discursos voltados ao humor, porém que se afastam
de problemas delicados da sociedade; o heróico, pretensamente utópico, e o dramático, que
possui uma função demagógica. Assim, a questão do verossímil acaba revelando uma
discussão estendida não só sobre a impressão de realidade, mas principalmente, sobre a
regulamentação da instituição cinematográfica.
Com base na produção acadêmica dos três estudiosos abordados, Marc Ferro, Roger
Chartier e Christian Metz, é possível dar forma a um método de pesquisa voltado a analisar o
filme “Sob o Domínio do Mal”, com a finalidade de identificar como o longa representa a
sociedade e a identidade social estadunidense, como discute questões do cotidiano, política e
cultura e, assim, apresenta elementos do imaginário norte-americano. Pretende trabalhar o
filme como uma representação, produto de sua época, o qual estabelece um jogo de presença
e ausência, real e imaginário com o espectador e revela lapsos e ambigüidades, desvios
culturais.
Para isso, é de suma importância estudar a fonte cinematográfica sob suas
particularidades, não só o que o filme representa, mas, conforme Metz, como o filme
representa, como funcionam seus mecanismos de significação, como o filme reproduz o
discurso de uma instituição e do cineasta e, ao mesmo tempo, tenta disfarçá-lo. Também cabe
analisar como o filme traz impressão da realidade, o que valida seu discurso, as censuras e
fórmulas pré-estabelecidas, assim como o filme fascina e se encontra tão próximo do
imaginário da época e da sociedade em que foi produzido.
81Id., ibid., p. 230.
39
4 REPRESENTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DA GUERRA FRIA: ANÁLISE DO
FILME SOB O DOMÍNIO DO MAL
4.1 JOHN FRANKENHEIMER: O DIRETOR
O diretor de Sob o Domínio do Mal, John Frankenheimer (1930 – 2002) é
considerado um dos maiores diretores de cinema que sugiram e foram inspirados
estilisticamente por dramas de televisão ao vivo, em ascensão na década de 1950.
Inicialmente realizava filmes para força aérea norte-americana, em 1954 começa sua carreira
em TV ao vivo, com o tempo se destacou em séries como Clímax!, um drama de pai e filho,
e, principalmente, Playhouse 9082.
Frankenheimer dirigiu seu primeiro filme em 1957, chamado The Young Stranger
(em português, No Labirinto do Vício), que juntamente com seus filmes seguintes, Juventude
Selvagem (The Young Savages, 1961) e O Anjo Violento (All Fall Down, 1962), versam
sobre problemas relativos a juventude marginalizada. Com o filme The Young Savages,
tomou conhecimento de atores como Burt Lancaster83 e Angela Lansbury84.
Durante sua carreira como cineasta realizou em torno de 28 filmes, naturalmente
cada um tem sua especificidade, mas muitos estudiosos consideram que suas realizações são
tão interligadas estilisticamente e tematicamente que se pode dividir sua cinematografia em
fases: a trilogia da paranóia, filmes de vida interiorana e de ação.
Além de sob o Domínio do Mal, considerado como parte da mesma trilogia,
rodou o filme Sete Dias em Maio (Seven Days in May, 1964), que nutre semelhança com
Sob o Domínio do Mal, que conta a história de oficial do exército Diggs (Kirk Douglas) que
realiza uma arriscada investigação sobre uma unidade secreta de militares, liderada pelo seu
superior general Scott (Burt Lancaster), suspeita de planejar um golpe de estado para
derrubar um polêmico presidente norte-americano de pouco prestígio que promove uma
política de desarmamento. O dilema do filme circunda a questão do desarmamento, por um
lado a política seria uma resolução pacífica para Guerra Fria, por outro deixaria os EUA
politicamente e militarmente vulneráveis aos soviéticos, uma vez que o armamento teria 82 No qual dirigiu 42 episódios, incluindo Forbidden Area, sobre sabotagem soviética; The Ninth Day, drama de ficção científica sobre um grupo de sobreviventes da segunda guerra; The Comedian, seu episódio mais famoso, sobre comediante histérico e manipulador (interpretado por Mickey Rooney). 83 Também diretor e produtor, com quem realizaou com Frankenheimer um total de seis filmes durante sua carreira, entre eles o drama, baseado em fatos reais, O Homem de Alcatraz (The Birdman of Alcatraz, 1962, mesmo ano de Sob o Domínio do Mal). 84 Que atuou no filme Anjo Violento de Frankenheimer e também interpretou a mãe manipuladora de Laurence Harvey em Sob o Domínio do Mal.
40
como função primordial manter a paz ao intimidar a outra nação. O desfecho da trama é
igualmente polêmico e ambíguo, Diggs entrega o general Scott apesar de admirá-lo, pois,
acha que as idéias devem ser debatidas através da democracia e não impostas através de um
golpe militar. Assim, como Sob o Domínio do Mal, o filme aborda questões polêmicas como
a representação dos soviéticos para os EUA, o medo de um exterminismo nuclear,
anticomunismo, macartismo85, diplomacia política norte-americana, identidade dos EUA
como nação, democracia e liberdade.
O longa O Segundo Rosto (Seconds, 1966) também é enquadrado por críticos como
parte da trilogia da paranóia. O filme não obteve sucesso por ser mais artístico, repleto de
cena oníricas, possuir referências ao cinema europeu e colocar o astro Rock Hudson em um
papel que não agradou seus fãs. A película conta a história de banqueiro infeliz que através
da ciência muda seu físico e sua identidade para se transformar em um ator famoso e
hedonista (interpretado por Rock Hudson).86
Outro filme enquadrado na trilogia, por vezes substituindo Sete Dias em Maio ou O
Segundo Rosto, consiste em O Documento Holcroft (The Holcroft Covernant, 1985)87. No
filme, Holcroft (Michael Caine), engenheiro norte-americano, descobre que é herdeiro de um
general nazista, que durante a Segunda Guerra desviou bilhões de dólares do Partido Nazista,
para que, após a guerra, fosse usada como forma de se redimir de seus atos. No transcorrer do
enredo, Holcroft deve realizar alianças duvidosas e passa a ser perseguido por uma
organização misteriosa.
Além da chamada trilogia da paranóia, alguns críticos caracterizam um conjunto de
seus filmes de drama que abordam a vida interiorana nos EUA. No caso, além de O Anjo
Violento, Os Pára-Quedistas Estão Chegando (The Gypsy Moths, 1969), sobre pára-
quedistas, com Burt Lancaster; O Pecado de um Xerife (I Walk the Line, 1970), em que um
xerife (Gregory Peck) se apaixona pela filha de um criminoso.
Porém, a grande maioria de seus filmes são do gênero de ação. Entre os mais
conhecidos destaca-se O Trem (The Train,1964), com Burt Lancaster, que conta uma história
baseada em fatos reais sobre a resistência francesa, durante a Segunda Guerra mundial,
tentando impedir um grande saque de obras de arte pelos nazistas, que estabelece o dilema
principal do filme, se obras de arte possuem mais valor do que a vida humana. Em seguida 85 Destaca-se cena na qual o presidente dos Estados Unidos compara o personagem de Burt Lancaster com o senador McCarthy. 86 A trama, baseada em episódio da série Twiling Zone, consiste em uma releitura de Fausto e em uma metáfora sobre a questão da identidade. 87 Baseado em um romance de Robert Ludlum e roteirizado por George Axelrod (Bonequinha de Luxo), também roteirista de Sob o Domínio do Mal.
41
realizou, Grand Prix (1966), drama sobre corredores de Formula 1, um episódio da série The
Hire, produzida pela BMW films, sem contar com seu último grande sucesso o filme policial
Ronin (1998), com Robert de Niro.88
Frankenheimer ainda realizou O Extraordinário Marinheiro (The Extraordinary
Seaman, 1969), sobre soldados norte-americanos perdidos em ilha do pacífico durante a
Segunda Guerra, com Mickey Rooney; O Ano da fúria (The Year of the Gun, 1991), thriller
sobre as brigadas vermelhas na Itália; Domingo Negro (Black Sunday, 1977), também sobre
terrorismo; Operação França 2 (French Connection II, 1975), clássico de máfia policial; A
Ilha do Dr. Moreau (The Island of Dr. Moreau, 1996), baseado na obra de H. G. Wells e um
dos últimos filmes de Marlon Brando (1924 – 2004).
Vale lembrar que o diretor ainda realizou películas para TV, sendo inclusive
premiado pelo Emmy por longas como Amazônia em Chamas (The Burning Season, 1994),
biografia do brasileiro Chico Mendes (com Raul Julia e Sonia Braga) e Attica - A Solução
Final (Against The Wall, 1987), drama baseado em fatos reais sobre a rebelião do presídio de
Attica (Nova Yorque), com Samuel Jackson. Frankenheimer também dirigiu os filmes da
campanha política de Robert Kennedy (irmão de John F. Kennedy) em 196889. Sua última
realização pouco antes de seu falecimento foi o filme de TV Bastidores da Guerra (Path to
War, 2002), que conta o início da Guerra do Vietnã no governo de Lyndon Johnson.
Assim, John Frankenheimer, mesmo que sob diversas fases cinematográficas, é
considerado um dos diretores mais inovadores e críticos de Hollywood, principalmente no
que diz respeito ao início da década de 1960. Em seus filmes, suas opiniões políticas, sociais
e filosóficas são expressas de forma muito forte, destacando-se no suspense, seus filmes são
repletos de ambigüidades, movimentos de câmera inusitados, referencias a TV ao vivo, muita
violência e temas polêmicos. Para o crítico, Stephen Bowie90, Frankenheimer, com
referências a Willian Wyler e Orson Welles, representa na história do cinema como uma
passagem chave da era clássica de Hollywood e a Nova Hollywood. Seu filme mais polêmico
e renomado pela crítica, Sob o Domínio do Mal não foge a regra.
4.2 A PRODUÇÃO
88 Através desses filmes, com especial destaque a Grand Prix, Frankenheimer revolucionou as filmagens de corridas automobilísticas, tornando-se referência em cenas de perseguição de automóveis 89 Segundo boatos foi ele que dirigiu o carro que o levara ao Hotel Ambassador onde fora assassinado. 90 BOWIE, Stephen. John Frankenheimer. Senses of Cinema, 2006. Disponível em: <http://www. sensesofcinema.com/contents/directors/06/frankenheimer.html >. Acesso em: 18/11/2008.
42
O filme se baseou na obra de Richard Condon(1915-1996), The Manchurian
Candidate, foi lançado em 1959 e tornou-se um Best seller. Antes de se dedicar aos
romances, Richard Condon inicialmente trabalhou como promotor de filmes da Disney como
Fantasia e Dumbo, com o tempo passou para outras produtoras largando a carreira em 1958
quando trabalhava para a United Artists. Devido ao grande contato com o meio
cinematográfico investiu na carreira de escritor91. O autor se tornou famoso devido ao
romance em questão e a partir de então consolidou sua carreira. Realizou outros trabalhos
como A Fria Morte (Winter Kills, 1974), Uma Infinidade de Espelhos (An Infinity of
Mirrors,1965) , Arigato (1972), O Silvo da Guilhotina (The Whisper of the Axe, 1976), A
Honra do Poderoso Prizzi (Prizzi’s Honor, 1982)92.
A produção do filme teve início quando o roteirista George Axelrod sugeriu a John
Frankenheimer, que havia recentemente migrado da TV para o cinema, que conferisse o
Best-Seller de Richard Condon. Leram o livro juntos e consideraram que daria um bom
filme. Asseguraram os direitos por 10.000 dólares e, em seguida, ofereceram suas propostas
sobre a adaptação do longa em Hollywood. O projeto proposto foi recusado por inúmeras
produtoras, que consideraram a película muito ‘explosiva’ e ‘anti-russa’. A preocupação de
ser “anti-russa” veio do fato de abordar uma questão delicada frente a abertura política
planejada por Kennedy na época e, aparentemente, contrariar a onda intelectual revisionista
que assolava o final da década de 50 nos EUA, que se contrapunha a ortodoxia norte-
americana e criticava sua visão diplomática.93
Com as rejeições, voaram para Florida e apresentaram o roteiro a Frank Sinatra
oferecendo-lhe papéis. Frank Sinatra (1915-1998) é considerado um dos cantores mais
prestigiados e polêmicos do século XX, além de um dos pioneiros da cultura pop, gravando
mais de 1.500 músicas durante a sua carreira.94
Ao tomar conhecimento da pré-produção de Sob o Domínio do Mal, Sinatra
apostou na idéia, escolheu o papel que desejava desempenhar e mediou as negociações com a
91 MENAND, Louis. Introduction. In: CONDON, Richard.The Manchurian Candidate. New York: Four Walls Eight Windows, 2003. p. vii 92 Adaptado por John Houston (Tesouro de Sierra Madre, Relíquia Macabra) para o cinema, rendeu grande bilheteria, sucesso de crítica e vencedor de um Oscar. Com Jack Nicholson e Angélica Houston. 93 MARCUS, Greil. The Manchurian Candidate. London, BFI Film Classicis, 2002. p. 40 94 Devido ao grande sucesso no meio musical, decide investir na carreira de ator, realizando em torno de 50 filmes durante a carreira, incluindo Onze Homens e um Segredo (Ocean’s Eleven, 1960) e A Volta ao Mundo em 80 Dias (Around the World in 80 Days, 1956). O ator também teve um especial interesse em papéis mais densos e chegou a receber o Oscar de Melhor Ator Codjunvante em A Um Passo da Eternidade (From Here to Eternity, 1953), foi indicado a Melhor Ator ao interpretar um viciado em heroína em O Homem do Braço de Ouro (The Man With The Golden Arm, 1955) e recebeu o Oscar humanitário em 1972.
43
United Artists, que controlava a distribuição de seus filmes. Há boatos que informam que
Sinatra chegou pedir para que o presidente Kennedy intercedesse ao seu favor e, assim,
devido a uma ligação do presidente a Arthur Krim (que, além de chefe do Comitê
Democrático Nacional, dirigia a United Artists) o filme foi aprovado. O filme estréia no fim
de 1962.95
Conforme visto, Sob o Domínio do Mal não é o único da época que versa sobre um
possível ataque comunista. Mesmo assim, o filme passa livre do grande ciclo de filmes de
Guerra Fria norte-americanos, seja dos “filmes propagandas” ou dos filmes de caráter
unicamente artístico e individual. Alguns críticos acreditam que o longa é muito ousado,
particular e niilista demais para sua época, tanto é que foi excluído de diversos festivais e foi
um fracasso de bilheteria em 1962.
4.3 O ENREDO E A CONSTRUÇÃO DO SUSPENSE
A obra cinematográfica utilizada como fonte primária consiste no thriller político
“Sob o Domínio do Mal” (The Manchurian Candidate, 1962)96,o enredo envolve um soldado
norte-americano que foi feito prisioneiro durante a Guerra da Coréia (1950 – 1953), onde
sofreu lavagem cerebral a fim de se tornar um assassino a mando dos comunistas e norte-
americanos traidores, sendo que no desenrolar da trama os personagens centrais investigam a
estratégia comunista de infiltrar-se no governo norte-americano substituindo via assassinatos
seletivos a figuras políticas. O plano final dos controladores é que, durante a convenção de
nomeação de candidatos republicanos a presidente e vice-presidente dos Estados Unidos, o
personagem controlado (Raymond Shaw) assassine o candidato a presidência. Em um
momento de histeria, o candidato a vice-presidência (senador Iselin), a mando de sua esposa,
mãe de Shaw e comparsa dos comunistas, ampararia o candidato morto e concederia um
discurso inflamado que lhe garantiria o caminho para a presidência. Assim de forma irônica e
contraditória, os Iselin, com a ajuda dos comunistas, alimentariam a histeria anticomunista
norte-americana a fim de ascender ao poder.
Como o filme é de suspense investigativo, o roteiro está todo estruturado para nunca
revelar todos elementos do enredo. Assim, o expectador não é onividente, quando tem
conhecimento além dos personagens ainda está a preso a vontade do roteirista (este sim
95 MARCUS, Op. Cit., p. 34 96 Sob o Domínio do Mal (The Manchurian Candidate. EUA, P&B, 1962, 127 min., M. C. United Artists & Frank Sinatra Trust Number 10, Dir. John Frankenheimer. Versão legendada e dublada.)
44
onividente) cuja finalidade é deixá-lo no suspense e continuar assistindo o filme na
expectativa “o que vai acontecer em seguida”. Para isso o filme é marcado por uma série de
pontos de virada a fim de prender a atenção do expectador. Destaca-se um ponto particular da
película, o enredo principal envolve uma quantidade significativa de personagens. Diferente
de outros filmes, o diretor não opta por dedicar a meia hora inicial do filme para apresentar e
explorar todos personagens, a protagonista por exemplo só aparece após os primeiros 40
minutos do filme, somente após a primeira hora do filme, ocorre um flashback que explica o
ódio de Raymond por sua mãe e apresenta seu par romântico.
Pelo contrário, o inicio do longa é dedicado quase exclusivamente para construção
do suspense, em menos de cinco minutos de filme os soldados norte-americanos são
capturados pelos comunistas e um salto no tempo para volta dos soldados aos EUA deixa em
branco o que ocorreu com os mesmos. O roteirista não perde tempo explicando através de
diálogos a versão oficial do que ocorreu com os soldados, por isso, um narrador voice-over a
conta brevemente e desaparece pelo resto do filme. Em menos de quinze minutos, Marco tem
o primeiro sonho, no qual Yen Lo explica detalhadamente o processo de lavagem cerebral
pelo qual sofreram, contrariando a versão oficial, e termina com Shaw estrangulando um
colega e Marco acordando aos berros. Em menos de dez minutos, ocorre o segundo sonho
com outro membro da patrulha, que continua o sonho de Marco, que demonstra Yen Lo
forjando a “versão oficial do fatos” e Raymond atira na cabeça de outro soldado, com direito
a muito sangue. Com se não bastasse, logo após, Raymond recebe um telefonema com os
primeiros comandos de seu controlador, ir a um hospital em determinado horário, em tal
lugar encontra Yen Lo, já não em sonho, que o ordena a matar seu chefe. Assim, na primeira
meia hora de filme, uma quantidade significativa de informação é passada para o expectador,
ocorrem três assassinatos a sangue frio, e a problemática do longa não é mais “o que
realmente ocorreu com os soldados?” mas “Porque foram manipulados? Qual é o plano dos
comunistas?”.
Com exceção a cena em que Marco luta karatê com Chunjin, na próxima hora do
filme não há mais nenhuma cena de assassinato ou violência e Yen Lo não aparece. Durante
essa hora, depois que conseguiu conquistar a audiência, que o roteirista decide explorar os
personagens, há cena de amizade entre Marco e Shaw, cenas de amor entre Marco e Rose e
Shaw e Jocie e a sátira política de Iselin. Somente após, uma hora e quinze Shaw recebe uma
ordem por acidente e se joga em um lago do Central Park e alguns minutos Sra. Iselin é
revelada como a controladora de Shaw, momento de virada do crucial do filme, pois,
finalmente, após a ausência de Yen Lo, um inimigo é definido.
45
O longa possui outro ponto de virada quando Raymond mata sua própria esposa,
Jocie Jordan, depois de uma hora de filme sem assassinar ninguém recebe ordens para matar
seu sogro, porém, a entrada de Jocie na sala e sua morte é algo repentino e inesperado,
principalmente após dedicar uma parte significativa para o amor platônico de ambos os
personagens. Cena de romance não eram meramente um artifício remanescente da
Hollywood clássica para atrair o público feminino, mas também, uma preparação, quanto
maior o significado de uma relação para os personagens maior é a perda da mesma. Após o
assassinato, o expectador sente que a estória saiu fora do controle, do previsível, e teme que
rumos poderá tomar.
Por isso, nenhum momento se iguala a construção de tensão no final do filme. Após,
Marco tentar reverter a lavagem cerebral de Shaw utilizando o baralho, Shaw recebe uma
ligação e diz que está sendo chamado pelo seu controlador para receber o plano, sua mãe.
Vale lembrar que até o momento Marco não tinha realizado que a Sra. Iselin estava por trás
de tudo apesar do expectador, durante o filme todo, estar sempre a frente de suas
investigações. Marco dá seu número de telefone e lembra Raymond que o condicionamento
foi rompido, ele por sua vez não responde e apenas sai da sala, deixando o expectador em
dúvida se o plano do major funcionou ou não, sentindo se inseguro do que Shaw é capaz. Na
cena após, a Sra. Iselin explica detalhadamente o plano e revela suas intenções, Shaw deve
atirar o candidato a presidência com um rifle após falar determinada frase. A partir desse
momento o dilema se transforma para “Será que Shaw vai assassinar o candidato a
presidência e os planos de sua mãe irão se realizar?”.
Shaw entra no Madison Square Garden vazio vestido de padre e a cena o acompanha
por todo caminho até o lugar em que realizará o tiro. Na próxima cena mostra Marco
assistindo impaciente a convenção pela TV, começa a caminhar de um lado para o outro,
incomodado porque Shaw não ligou, se lamentando que estragou tudo e que “Raymond é
deles e sempre vai ser”97, por fim, decide ir até a cerimônia. A câmera está posicionada
dentro do carro me alta velocidade por trás de Marco mostrando o mesmo olhando pela
janela para entrada do local lotada de gente. Logo após, demonstra o mesmo local o interior
do local cheio de pessoas, onde ocorre uma grande movimentação e energia. Isso concede
uma nova dimensão ao filme, até então restrito a poucos figurantes e voltado unicamente aos
problemas dos personagens centrais, a multidão festejando, dos mais variados estados dos
97 Id., ibid., min. 116
46
EUA, em um recinto claustrofóbico carrega uma sensação de que algo grande está prestes a
ocorrer e qualquer falha repercutirá conseqüências catastróficas.
O clímax é trabalhado de forma magistral. Em primeiro lugar, há um momento em
que o hino dos Estados Unidos é cantado e enquanto isso mostra a ação em quatro núcleos a
cantora do hino, os Iselin ansiosos (“Pare com isso. ele nunca errou com um rifle nas mãos”,
“Estamos dentro como o Flynn)98, Raymond montando o rifle e Marco em posição de sentido
o procurando. Interessante notar que a tensão da cena é construída sob um período de tempo
pré-estabelecido, não um tempo cronológico, mas a duração do hino e do discurso do
candidato. Com o final do hino, Raymond acaba de carregar a arma, o candidato começar o
discurso e Marco um mero palpite corre para onde Shaw está a fim de impedi-lo. Marco
corre pelo mesmo caminho que Shaw percorrera em uma cena anterior, então o expectador
sabe a que distância um está do outro. O cena não precisa de trilha sonora e o próprio
discurso do candidato é o bastante pois o expectador fica 4 minutos ansioso esperando ouvir
frase “Não pediria a nenhum cidadão americano em defesa da liberdade mais do que eu daria,
minha vida antes da minha liberdade”, quando Shaw deve atirar. E Shaw após colocar a balas
no rifle, passa a mirar e a câmera mostra a visão através da mira telescópica, apontada
diretamente para a cabeça do candidato. Quando a cena finalmente chega ao seu fim, o
candidato diz “Não pediria a nenhum cidadão americano em defesa da liberdade”, pára para
tossir e retoma “mais do que eu daria, minha vida antes da minha liberdade”, fica claro que
Marco não vai alcançar Shaw a tempo, a Sra. Iselin segura no braço de seu marido e em um
último momento Raymond vira a mira para o casal e os mata, atirando na testa e levando as
pessoas da convenção ao desespero, contrariando toda preparação que induzia que ainda
estava controlado. Coloca calmamente sua medalha de honra, Marco entra no recinto logo
atrás, quase levando um tiro, Shaw diz “Você não conseguiria, o exército também não. Por
isso não liguei”99, aponta arma para própria cabeça, a câmera mostra o rosto de choque de
Marco seguido do som do disparo que se transforma em som de trovão de cena seguinte.
Assim, Frankenheimer e Axelrod conduzem a trama conduzindo um intriga bem amarrada e
realista em que, no caso dessa cena, a montagem se destaca.
98 Id., ibid., min. 119 e 120; no original, “We're in like Flynn, lover”, expressão popular nos EUA utilizada para ilustrar sentimentos de determinação e convicção. 99 Id., ibid., min. 124
47
4.4 QUESTÕES TÉCNICAS
O filme em questão é apresentado em preto-e-branco. A primeira película colorida
foi Vaidade e Beleza (Becky Sharp, 1935) e a partir de então diversos filmes foram
realizados dessa maneira, porém, ainda houve por muito tempo uma grande aceitação popular
e também preferência de diretores pelo preto-e-branco, Frankenheimer foi um desses
cineastas que somente a partir da metade da década de 1960 abandonou o cinema preto-e-
branco. Aparentemente, Sob o Domínio do Mal é propositalmente preto-e-branco
A fotografia é clara e bonita. Sobre a questão do foco cinematográfico, vale a pena
comentar uma cena em que o personagem de Frank Sinatra se utiliza da carta de baralho
rainha de ouros funciona como “gatilho psicológico” e revela-se como meio dos comunistas
lhe darem ordens, para quebrar a lavagem cerebral de Laurence Harvey. O diálogo ocorre
todo enquadrado em uma distância focal curta, enquadrando o rosto dos atores, partindo do
princípio que um está olhando o outro de frente. Porém, enquanto o rosto de Harvey é nítido,
o de Sinatra está borrado. O engraçado é que muitos críticos elogiaram a cena, como o rosto
desfocado de Sinatra representasse a mente conturbada do personagem de Harvey. Somente
após o diretor revelou ser uma simples falha técnica.
Outra exceção na fotografia, dessa vez intencional, ocorre no início da película.
Quando Coréia é representada a fotografia é escura e os personagens encontram-se em
campos amplos e desertos, quando aparecem nativos se resumem a prostitutas ou um guia
que, por fim, revela-se um traidor, na cena após os soldados são capturados e levados do
local por helicóptero. O diretor Frankenheimer ainda brinca com os reflexos de vidros e
espelhos, por vezes não filma os atores diretamente mas enfoca quadros e quaisquer
superfícies que refletem os personagens.
Os cenários interiores são privilegiados, por vezes cenas de Nova York são
demonstradas. Com especial destaque ao QG do exército , uma sala com uma imagem do
planeta terra e relógios apontando diversos fusos horários.
O som do filme não teve muita atenção do diretor. A trilha sonora é sutil e as vezes
quase imperceptível. Por vezes ocorre uma preocupação nesse sentido a exemplo som de tiro
se transformar em som de trovão etc.
Sobre a montagem, O filme Sob o Domínio do Mal inaugurou a chamada “realidade
virtual” no cinema, o que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de melhor montagem. Na cena
em questão, o personagem major Bennett Marco (Frank Sinatra) tem pesadelos sobre o lapso
48
de tempo em que foram capturados e voltaram para casa. Seu sonho é demonstrado sob duas
perspectivas.100
Na primeira, os soldados do pelotão início do filme estão em uma cansativa reunião
de um clube de jardinagem, a câmera explora o cenário repleto de plantas e senhora bondosas
em uma panorâmica de 360º graus. Quando a câmera volta a posição inicial, todo cenário e
personagens, exceto os soldados, mostrados na panorâmica não estão lá. Os soldados
encontram-se no palco de uma conferência na Manchúria (norte da China) assistida por
coreanos, chineses e soviéticos, e apresentada pelo chinês Yen Lo (Khigh Dhiegh), psicólogo
intelectual e bem-humorado. Tudo isso em um cenário marcado pelo modernismo russo e
retratos de diversas autoridades comunistas, entre ele Stalin e Mao Tse Tung.101
Através de um inteligente recurso de montagem, o diretor trabalha com duas
realidades que coexistem no mesmo tempo e espaço, do clube de jardinagem e da
conferência comunista. Com o decorrer do discurso, são realizadas inúmeras brincadeiras
com a montagem, realizando uma fusão de realidades, por vezes os comunistas encontram-se
no clube de jardinagem, outras as senhoras do clube estão no auditório comunista. Também
ocorre um caso interessante, no decorrer da apresentação Yen Lo dialoga como os ouvintes,
sendo que cada comunista corresponde a uma determinada senhora do clube de jardinagem,
assim os diálogos intercalam entre as duas diferentes representações do mesmo personagem.
Depois de uma discussão acadêmica citando diversos psicólogos famosos versando
sobre lavagem cerebral e apresentando os soldados como cobaias, Yen Lo como
demonstração de seu experimento pede ao sargento Raymond Shaw que assassine dois
soldados a sangue frio. As cenas de assassinato são exageradas e violentas e os personagens
que a sonhavam acordam gritando histericamente.
Assim, a cena dá a impressão que mostra um acontecimento passado seja pela visão
consciente dos soldados que pensavam estar no clube e a versão inconsciente, revelada
somente em sonhos e corresponde a parte não hipnotizada dos personagens, que mostra o que
ocorria atrás da primeira visão.
Vale destacar que em determinada parte filme102, quando outro personagem do
batalhão, de origem afro-descendente, tem o mesmo sonho, as senhoras do clube de
jardinagem são negras e não caucasianas, como o sonho do personagem de Sinatra, tal fato
100 Ver ANEXO 7.1 CENA DO PESADELO, página 68 e 69 101 Id., ibid., min. 11 - 17 102 Id., ibid., min. 22 - 25
49
demonstra que apesar intencionalmente controlada, os personagens adicionam elementos
próprios a sua ilusão.
4.5 OS PERSONAGENS E DIÁLOGOS
Um estudo mais acirrado dos personagens permite levantar dilemas específicos
dentro da obra cinematográfica. O major Bennett Marco (Frank Sinatra) se assemelha ao
investigador clássico dos filmes noir, o personagem, confuso e ambíguo, conduz a narrativa
através de seus dilemas pessoais, revelando mistérios intrínsecos ao enredo principal
apresentado pelo enredo. Marco é sobretudo um personagem conturbado. Em primeiro um
momento, assolado por pesadelos, passa a desconfiar até que ponto se seus pesadelos são
reais ou apenas está delirando. Isso repercute em sua dificuldade de se readaptar a sociedade
com o fim da guerra, quando conta sobre seus sonhos para seus superiores, esses procuram
afastá-lo da inteligência e o movem para relações públicas o que, com seu fracasso na
mesma, repercute em sua dispensa por motivos de saúde, alegando que sofreu algum trauma
e não está em condições psicológicas para servir o exército. Durante praticamente o filme
inteiro, o personagem de Sinatra veste um uniforme militar repleto de insígnias, somente
quando é afastado passa a usar terno. Marco também um leitor compulsivo, em uma cena,
quando seu superior lhe faz uma visita, passa um bom tempo enumerando os livros que está
lendo, todos de temas mais variados103. Para ter noção do estado psicológico que atinge
Marco, destaca-se a cena do trem em que Sinatra está suando, tremendo e não consegue
acender um cigarro, derrubando em sua bebida, quando se irrita, sai da sala derrubando a
mesa e se encosta em uma parede em um vagão vazio104. Porém, apesar de seu forte estresse,
o major não desiste de suas convicções e vai para Nova York se encontrar o Raymond.
Quando toma conhecimento de outro ex-soldado da patrulha que possui os mesmos
pesadelos, Marco se restabelece psicologicamente volta a rir, se apaixona e encara a situação
determinado, simpatiza e torna amigo de Raymond, que antes odiava, assim, por um
momento parece que tudo se encaminha para seu desfecho. Somente com o final trágico do
Raymond, Sinatra cai novamente em prantos.
103 Entre os livros encontram-se “Os princípios da administração moderna”, “A história da pirataria”, “Pinturas de Orozco”, “Teatro moderno francês”, “Jurisprudência da máfia na administração”, “Doenças de cavalos”, “Escolhas étnicas dos árabes” e romances de Joyce Cary. Id., ibid., min. 39 104 Id., ibid., min. 42 e 43
50
O personagem Chunjin (Henry Silva105, 1928 - ) é o coreano interprete e guia da
patrulha. que segundo brincadeira de soldado norte-americano diz que nasceu a três km de
todo lugar que foram da Coréia para provar seus argumentos, leva os soldados para a
armadilha dos chineses e cumprimenta militar oriental após a captura dos mesmos. Após a
cena, o personagem fica em segundo plano e, até metade do longa, reaparece somente no
sonho dos soldados, fazendo anotações durante a reunião comunista. Chunjin consegue visto
nos EUA do senador Iselin ao provar que trabalhava para seu enteado no exército, sob o
argumento de que ele é um “grande homem que salvou sua vida”106, e passa a trabalhar de
mordomo de Raymond Shaw, mais adiante revela-se como espião da Sra. Iselin no escritório
do filho. Não se pode deixar de comentar a cena em que o personagem de Frank Sinatra se
encontra com Henry Silva no escritório de Shaw, quando vê Chunjin, Marco parte para a
agressão física sem pensar duas vezes, a quem considere que essa é a primeira cena de luta de
karatê em um filme hollywoodiano. Apesar de parecer um personagem secundário, Chujin
tem um papel importante na película, ele é uma conexão entre a Guerra da Coréia, os
pesadelos e o “mundo real” dos personagens nos EUA, sua presença causa uma
desconfiança, a impressão de que alguma coisa de errado, caso contrário Marco estaria
apenas delirando.
Outro personagem oriental de suma importância a ser analisado é o psicólogo chinês
que realizou a lavagem cerebral nos soldados estadunidenses, o personagem Yen Lo,
interpretado por Khigh Dhiegh (1910 -1991)107. Yen Lo aparece primeiramente no sonho de
Sinatra que ocorre em um seminário científico na região da Manchúria, atual nordeste da
China. Na reunião declara-se cientista do Instituto Pavlov108. Durante o encontro, Yen Lo
comunica ser viável a lavagem cerebral para fazer o ser humano cometer atos repulsivos a
sua natureza, diferentemente do afirmado por outros estudiosos.
Para embasar sua teoria cita publicações científicas como “Experiments in the
hypnotic production of anti-social and self injurious behavior” (literalmente, a produção de
comportamento anti-social sob hipnose) de Brennan, publicado em 1942; “Experiments in
the hypnotic production of crime” (experimentos em hipnose produzindo crime), Wells,
105 O ator Henry Silva (1928 - ) possui descendência espanhola e italiana e atuou em filmes de temas variados, sempre se destacando no papel de vilão e contracenou com Frank Sinatra nos filmes Onze Homens e um Segredo e Contratado para matar (Contract on Cherry Street, 1977). 106 Id., ibid., min. 49 107 Também trabalhou com Frankenheimer no filme O Segundo Rosto e, mas, se destacou em famosas séries de TV como Havaí 5-O, Missão Impossível, Kung Fu, Khan! e A Ilha da Fantasia, atuando em grande parte como oriental, apesar de sua descendência africana. 108 O instituto realmente existe e foi criado durante a União Soviética pelo fisiologista Ivan Pavlov que inaugurou o estudo do reflexo condicionado.
51
1941; “Conditioned reflex therapy” (terapia reflexiva condicionada) de Andrew Salter, 1949;
“Primary violence motivation” (motivação a violência) de Krasnogorski; “The unilateral
suggestion to self destruction” (indução a autodestruição), Serov.109 Todos os livros citados
realmente existem o que da uma nova dimensão ao personagem e ao filme, uma vez que
desbanca conceitos concretos de ficção e realidade e induz o expectador a pensar se a
lavagem cerebral é realmente possível, fortalecendo a impressão de realidade do filme.
A outro aspecto interessante na personalidade de Yen Lo. Diferentemente, de outros
vilões do filme, como os generais russos e chineses, a mãe e padrasto de Raymond, o
psicólogo chinês é educado, sarcástico e bem humorado. Destaca-se a cena em que, já nos
EUA, se encontra com Zilkov (Albert Paulsen), agente comunista infiltrado os Estados
Unidos dono de um hospital o qual funciona normalmente e acima de suspeita a fim de
realizar um check-up de Raymond antes de entregarem a seu controlador norte-americano.
Yen Lo frente ao indivíduo, caracteristicamente suspeita, trabalhador, sério e preocupado,
comenta: “devia ter senso de humor, nada como uma boa gargalhada para diminuir o tédio”.
Quando Zilkov declara orgulhoso de que seu hospital é “uma das únicas operações soviéticas
nos EUA que teve lucro no último ano fiscal”, o personagem de Dhiegh satiriza: “Cuidado!
O capitalismo é contagioso!”.110 O hospital que funciona como uma organização comunista
secreta representa uns Estados Unidos que os comunistas não invadem através de conquistas
militares e territoriais mas que eles já invadiram e se encontram infiltrados no próprio
capitalismo.
As inúmeras referências do filme a elementos do cotidiano dos anos 1960 consiste
em algo particularmente interessante. Em determinado ponto da película, Marco compara a
Yen Lo com Fu Manchu111, em outra cena a Sra. Iselin se refere a Chunjin debochadamente
com Chu Chin Chow112. Dessa forma, os orientais, coreanos, chineses e até árabes, são
tratados de forma estereotipada no filme. Mas até quanto o diretor não justamente satirizar
esse estereótipo?
4.5.1 Estereótipos sociais e referências comerciais no filme
109 Id., ibid., min.14 110 Id., ibid., min. 31 e 32 111 Oriental de longos bigodes mestre do crime das obras de Sax Rohmer (1883 – 1959) que alimentou o estereótipo de chineses como misteriosos e atraídos pelo obscuro. 112 Título de uma comédia musical estadunidense famosa durante a primeira metade do século XX, que se trata de uma adaptação para o teatro de Ali Baba e os 40 ladrões.
52
Sobre a questão do estereótipo, vale ressaltar dois aspectos interessantes que
desmistificam o filme como uma mera reprodução do conservadorismo norte-americano.
Quando Marco está preso na delegacia, o policial que o mantêm sob custódia atende o
telefone e fala em espanhol com um parente, revelando-se como um possível imigrante da
América Latina. O psicólogo do exército mostrado como um personagem inteligente, bem
humorado e funcionário competente que acompanha Raymond nas investigações, possui
descendência afro-americana. Assim, dois personagens dados como marginalizados pelo que
Marc Ferro denomina de WASP (camada social formada de anglo-saxões brancos e
protestantes) ocupam cargos importantes e respeitados na sociedade, um policial, que
representa a lei, e um psicólogo, que representa o setor intelectual. Vale lembrar que o filme
foi rodado na década de 1960, na qual a discussão em prol dos direitos civis dos negros foi
um dos assuntos políticos mais debatidos nos EUA.113
No início do filme, uma prostituta coreana aparece folheando a revista norte-
americana “Movie Life”, a cafetina fala inglês e toca jazz no recinto, provavelmente essa
questão se refira a uma ocidentalização no lado coreano que apóia os estadunidenses. Quando
Yen Lo se despede de Zilkov, diz que vai passar a tarde comprando roupas para sua mulher
na Macy’s114. Sem contar que durante o sonho de Sinatra pergunta aos soldados de estão
gostando do cigarro que lhes ofereceu, quando aprovam brinca: “Tastes good like a cigarette
should”115 .
Mas as referências do filme não se resumem a questão do oriental. Marco aparece
lendo New York Post, quando Raymond passa na frente de um anúncio da cerveja Schlitz,
Iselin usa o ketchup da marca Heinz, também aparecem camisetas Louis Geller, sapatos
Regal, chapéus Adam.116 Em certo ponto, Sra. Iselin comenta que todos os apartamentos de
Nova York tem ar condicionados, também aparecem roupas, retroprojetores, telefones,
edifícios e automóveis da época, assim o filme torna-se uma maneira interessante de estudar
a sociedade norte-americana em meados de 1960. A imprensa é mostrada diversas vezes,
aparelhos de televisão aparecem freqüentemente no filme, tanto em cenários domésticos
como em lugares públicos, Marco e Rosie passam de taxi na frente de um cinema que exibe
Pinóquio da Disney (1940) e Piratas de Tortuga (1961). Freud, Churchill Groucho Marx são
113 DIVINE; BREEN; FREDRICKSON; WILLIAMS; ROBERTS, Op. Cit, p.645 e 646. 114 Loja de departamentos norte-americana de grande sucesso comercial. Id., ibid., min. 34 115 Traduzido como “gosto bom, de cigarro bom”, se trata de uma clara alusão ao jingle dos comerciais do cigarro da marca Winston. Id., ibid., min.13 116 Id., ibid., min. 100, 74, 52, 117
53
citados no filme, sem contar com peças como Romeu e Julieta, Leonard Sillman's New Faces
e Orestes.
Em determinados momentos, o filme apela ao sensualismo o que se restringe a
mostrar personagens femininas semi-nuas, geralmente da cintura para cima, como é o caso
das coreanas do prostíbulo e do par romântico de Raymond, Jocelyn que tira a camisa,
ficando só de maio e shorts, com o pretexto de fazer um torniquete para impedir veneno de
cobra se espalhe pelo corpo de Shaw. Cenas eróticas com claro apelo ao público masculino,
sendo que talvez somente Frank Sinatra e cenas de romance bastem para o feminino.
4.5.2 Ambigüidades e lacunas na construção dos personagens.
Fechando esse significativo parêntese, outro personagem do filme é a atriz principal
Janet Leigh (1927 – 2004)117, no papel de Eugenie Rose. A personagem só aparece a partir da
segunda metade do filme para fazer par romântico com personagem de Frank Sinatra,
Bennett Marco. Ambos se conhecem no trem, logo após, Marco sair violentamente do vagão
ao se irritar por não conseguir acender o cigarro, Rosie o segue acende um cigarro e flerta
com o militar, dando seu número de telefone e endereço. Quando Marco é preso por espancar
Chunjin no escritório de Shaw, por ser solitário e não ter ninguém para ligar, contata
justamente Rosie que declara sua paixão por ele e que largou seu noivo. Assim, entre os dois
personagens cresce um amor platônico e repentino, a momentos dedicados para ilustrar a
situação cotidiana do casal, uma inclusive que Marco a pede em casamento. A personagem
ainda se destaca por possuir um humor sutil realizando uma série de comentários ambíguos,
inteligentes e sarcásticos devido a um bom uso de palavras. Mas o que intriga diversos
críticos e dá uma nova dimensão a não somente a personagem mas também ao filme, é o
dialogo ambíguo e desconexo entre ela e Marco quando se conhecem no trem. Em
determinado momento, Rosie ajuda Marco a acender um cigarro e segue o diálogo:
EUGENIE ROSE - Maryland é um estado bonito
BENNETT MARCO - Isto aqui é Delaware
EUGENIE ROSE - Eu sei. Eu fui um dos trabalhadores (as) chineses (as) que
construiu a ferrovia - nota-se que Rosie não aparenta ser chinesa fisicamente
- Mesmo assim Maryland é um estado bonito. Assim como Ohio
117 Atriz que havia se tornado celebre com a famosa cena do chuveiro do filme Psicose (Psycho, 1960) de Alfred Hitchcock, além de trabalhar com Orson Welles no filme A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958).
54
BENNETT MARCO - Acho que sim. Columbus é a cidade do futebol. -
Quando Marco pergunta se ela trabalha no ramo de ferrovias (“You in the
railroad business”) Rosie, por sua vez, responde
EUGENIE ROSE - Não estou mais. Porém se me permite... você deveria ter
perguntado... ‘Você está nos trilhos? ’ (‘Are you in the railroad line?’).- Logo
após, Rose pergunta onde Marco mora. Ele explica que não possui uma
residência fixa porque é do exército de tal. Comentam sobre a região que
Marco nasceu.
BENNETT MARCO - Qual é o seu nome?
EUGENIE ROSE - Eugenie
(...)
BENNETT MARCO - Sua amigas a chamam de Jennie?
EUGENIE ROSE - Não ainda bem. Mas você pode me chamar assim.
BENNETT MARCO - Como elas a chamam?
EUGENIE ROSE - Rosie - BENNETT MARCO - Porque?
EUGENIE ROSE - Meu nome completo (my full name) é Eugenie Rose. Dos
dois nomes, sempre gostei mais de Rosie. Cheira sabonete e cerveja. Eugenie
é mais frágil.
BENNETT MARCO - Quando perguntei seu nome, você disse Eugenie
EUGENIE ROSE - Pode ser que eu estivesse menos frágil naquele momento
(no original, “It’s quite possible I was feeling more or less fragile at that
instant”, É possível que estivesse me sentindo mais ou menos frágil naquele
instante)
BENNETT MARCO - Nunca consegui entender o que isso quer dizer (I
could never figure out what that phrase meant ‘more or less’, Eu nunca
entenderia o que aquela frase significou ‘mais ou menos’)
BENNETT MARCO - Você é árabe (Are you Arabic?) - lembrando que a
personagem aparenta ser de origem caucasiana.
EUGENIE ROSE - Não
Marco se apresenta, explica porque se chama Bennett. Após isso Rosie
pergunta:
EUGENIE ROSE - Você é árabe? - Não - Mais uma pergunta, (Let me put in
another way, me deixa colocar de outra forma) você é casado? - Não. E
Você?-Não
Após uma breve pausa Marco pergunta:
BENNETT MARCO - Qual é o seu sobrenome?
55
EUGENIE ROSE - Cheney- lembrando que havia explicado anteriormente
que seu nome completo era somente “Eugenie Rose” - Eu sou assistente de
produção de um cara chamado Justin que marcou duas na temporada.118.
Após isso enfatiza seu endereço e telefone duas vezes cada, enquanto Marco olha
distraído para o nada, pergunta mais de uma vez “Você consegue lembrar?.
A conversa finaliza com Marco dizendo que vai visitar “velho amigo”, no meio da
fala Rose repete seu número de telefone.
A cena faz o espectador questionar se o personagem não está sendo controlado no
momento, tendo visões ou recebendo um código dos controladores. Por que Rosie diz em
certo ponto que é um dos chineses que construíram a rodovia? Por que corrige Marco sobre a
forma que deveria ter usado expressões? Por que diz em um primeiro momento que seu nome
completo é Eugenie Rose e depois diz que seu sobrenome é Cheney? Porque tanto um como
outro personagem por vezes responde e pergunta coisas desconexas da conversas, como
“você é árabe”? Será que Eugenie se trata de uma agente comunista e controladora de Marco
sendo que durante a cena tenta passar uma ordem? Ou talvez ele seja uma reprodução de
Marco assim como as senhoras do clube de jardinagem? Ainda há a possibilidade que Rosie
é uma pessoa bem humorada de humor inteligente que brinca com jogo de palavras. Ou será
que Marco não está alucinando e trocando as palavras de Rosie devido ao seu forte estresse
mental e alguma disfunção possibilitada pela lavagem cerebral?
A partir desse momento, o espectador deixa de entender a paranóia do personagem e
passa a senti-la. O espectador sente-se confuso e não consegue estabelecer limites entre a
imaginação e a realidade, pois, se vê em um mundo de sonhos e alucinações em que deve
reconstruir constantemente a realidade ficcional ao procurar veracidade na consciência
mediadora dos personagens.
Porém, a atriz que se destaca no filme é, sem dúvida, Angela Lansbury (1925 -)119.
No filme em questão, a atriz encarna a personagem Eleanor Iselin, mãe zelosa de Raymond
Shaw ao ponto de ser super protetora e cínica, sempre procurando regular a vida do filho.
Destaca-se um momento curioso do filme em que descreve detalhadamente como quer que
seja frito um bife para seu filho.
118 Id., Ibid., min. 43 - 46 119 Durante sua carreira não só se destacou no cinema, mas também em TVs e peças da Broadway, sendo indicada três vezes para o Oscar, dezoito vezes para o Emmy e vencedora de seis globos de ouro, que incluí a atuação nos filmes O Retrato de Dorian Gray (The Picture of Dorian Gray, 1946), Sob o Domínio do Mal e a série Assassinato por escrito (Murder, she wrote, 1984 – 1996).
56
4.5.3 Sátira política: crítica ao macartismo
A personagem também possui uma forte influência na política e é apresentada como
uma rica demagoga norte-americana, chefe de 15 organizações patrióticas. Porém, grande
parte de seu poder político é exercida através de seu marido e padrasto de Shaw John Yerkes
Iselin, interpretado pelo ator James Gregory (1911 -2002)120. O senador é demonstrado como
um personagem infantil, ingênuo e extravagante, que esbanja dinheiro dos eleitores em avião
particular e casa de veraneio e está constantemente bêbado. Como está a beira da das eleições
e deseja se reeleger, conduz uma campanha que se apóia no fato de seu enteado, que chama
de “filho” diante da TV, ser considerado um herói de guerra e em um discurso político
anticomunista e sensacionalista, se promove como “Big John”. Porém, sua campanha é
guiada por sua esposa, sendo o senador um simples instrumento na mão da Sra. Iselin. Com o
passar do filme, Sr. Iselin ganha popularidade ao incitar medo a população, política
denominada pelo filme de “isenlismo”, e, com isso, torna-se candidato a vice-presidente do
partido republicano.
A fim de aprofundar a questão dos pais de Shaw, destaca-se a cena em que o
senador Iselin, sob ordens de sua esposa, interrompe o discurso de TV do Secretário de
Defesa, que justifica cortes orçamentários no setor armamentista, sob a alegação de possuir
uma lista de funcionários do departamento de defesa norte-americano conhecidos pelo
secretário como membros do Partido Comunista. Interessante notar que o recinto está
cercado por diversas câmeras, ao lado dos atores existe uma televisão que demonstram como
esses estariam representados na TV, em dúvida uma brincadeira do diretor tendo em vista sua
carreira na TV ao vivo. Voltando ao escândalo de Iselin, este revela ao espectador como
falso, uma vez que Iselin demora a estabelecer um consenso sobre número de comunistas, em
determinada parte do filme são 270, outra 104, 275 e, por fim, somente durante uma
discussão com sua esposa, vide diálogo que segue o parágrafo, fixa em um número
específico:
SENADOR ISELIN - Eu ficaria mais feliz se concordássemos no
número de comunistas que estão no departamento de defesa. Quer
dizer, você muda de idéia o tempo todo parece que sou um idiota –
refletido em um retrato de Abraham Lincoln
120 Que trabalhou em diversas peças da Broadway e inclusive em filmes de treinamento do exército (em que um trecho aparece no documentário The Atomic Café, 1982).
57
SRA. ISELIN - Vai parecer mais idiota se não fizer o que eu mandar!
Sobre o que estão dizendo e o que dizem, por todo país? Dizem ‘Há
comunistas no Departamento de Defesa!’? Claro que não! Dizem
‘Quantos comunistas há no Departamento de Defesa?’. Então pare de
falar como um especialista repentino e vá dizer o que deve dizer!.
SENADOR ISELIN - Vamos lá!- chateado.
SRA. ISELIN - Desculpe, meu bem. Seria melhor se chegássemos a
um único número?
SENADOR ISELIN - Um número único e simples para eu me lembrar
depois
No próximo plano mostra a Sra. Iselin olhando de forma perspicaz o
pote de ketchup que seu marido utiliza na refeição, no seguinte o
senador encontra-se em meio a diversos jornalistas, entre eles
Raymond Shaw, onde anuncia:
SENADOR ISELIN - Há exatamente 57 membros cadastrados do
partido comunista no departamento de defesa! - e frente ao tumulto
causado por seu anúncio - Ordem!121.
Em outro momento do filme, Sra. Iselin diz: “Você é bom em muitas coisas mas
pensar não é uma delas (...) continue gritando ordem para as câmeras de TV que eu faço o
resto”.
O personagem senador Iselin consiste em uma clara sátira ao senador Joseph
MacCarthy, político que durante os anos 50, como já dito, liderou investigações agressivas
contra o governo norte-americano e demais pessoas suspeitas de simpatizarem com o
comunismo. Conforme o crítico de cinema Roger Ebert122, o diretor do filme John
Frankenheimer afirmou criticar o Macartismo. Até mesmo as aparições do personagem em
público do personagem são baseadas aos mínimos detalhes nas audiências, campanhas e
aparições na TV de McCarthy. Conforme anteriormente destacado, o filme Sete Dias em
Maio de Frankenheimer também possui uma crítica, dessa vez mais direta ao Macartismo.
Ao se revelar controladora de Shaw e o chamá-lo para uma última missão. A Sra.
Iselin finalmente revela seus planos:
SRA. ISELIN - O alvo é a cabeça do candidato à presidência. E Johnny
vai se levantar, carregar o corpo nos seus braços, bem na frente do 121 Id., Ibid., min. 50 - 52 122 EBERT, Roger. Grandes Filmes. Rio de janeiro: Ediouro, 2006. p. 458-463
58
microfone e vai falar. O discurso é curto mas é arrebatador. Foi
elaborado por 8 anos aqui e na Rússia. Pedirei que alguém remova o
corpo para Johnny ficar sozinho à frente das câmeras todo
ensangüentado, relutando aceitar ajuda, defendendo os EUA com a
própria vida. Levando a nação de telespectadores à histeria. E nos
levar a casa branca com poderes que farão da corte marcial uma
anarquia. Isso é muito importante... quero que atire na cabeça dois
minutos depois de começar o discurso, dependendo que como lê sob
pressão. Deve atingi-lo quando terminar a frase ‘Não pedirei a nenhum
cidadão americana na defesa da liberdade mais do que eu daria, minha
vida antes da minha liberdade.’123.
Assim, o plano seria que Shaw assassine o candidato a presidência, o cargo político
mais influente do país, provocando um sentimento de fragilidade e histeria no povo norte-
americano, possibilitando o que garantiria o caminho de Iselin para a presidência e de sua
esposa indiretamente. Dessa maneira, de forma irônica e contraditória, os Iselin, com a ajuda
dos comunistas, alimentariam a histeria anticomunista norte-americana a fim de ascender ao
poder. Em outra revelação do filme, Sra. Iselin esclarece que não sabia que justamente seu
filho seria utilizado como assassino pelos comunistas e promete que após o marido assumir a
presidência irá vingar o filho.
Outra cena particularmente interessante de citar para aprofundar em ambos os
personagens consiste na festa a fantasia realizada pela Sra. Iselin com a finalidade de casar
Raymond Shaw. Em primeiro plano a câmera está focada em uma comida que forma o
desenho da bandeira dos Estados Unidos quando entra em campo uma mão segurando uma
espátula e arranca um pedaço das estrelas da bandeira e o passa em cima de um biscoito de
água e sal. A trilha sonora se inicia com um som arrastado de um instrumento de sopro que
se transforma em uma música agitada e festa a medida que a câmera acompanha movimento
da mão revelando que essas são do senador Iselin, fantasiado de Lincoln, em um tenda de
circo repleta de balões de festa. O senador vira para seus amigos bajuladores vestidos de
bobos da corte e demais fantasias extravagantes e diz: “É caviar polonês!”. Essa breve
passagem de alguns segundos ilustra o meio repleto de extravagância e bajulação em que os
personagens vivem. Sendo que a destruição simbólica da bandeira sob forma de uma comida
123 Id., Ibid., min. 50 e 51
59
luxuosa por Iselin representa uma sátira do diretor com relação a sua irresponsabilidade
política.
Mas talvez o fato que chama mais atenção são as fantasias escolhidas pelos
personagens, mais destacadamente a Sra Iselin que aparece logo após como pastora faz uma
alusão ao fato de ser uma personagem manipuladora tanto nas questões familiares como
políticas. Também destaca-se que o Sr. Iselin se fantasia de Abraham Lincoln, popular
presidente norte-americano e o único assassinado até então. O personagem histórico também
aparece em quadros e esculturas na residência dos Iselin, essa questão é carregada de uma
forte ironia e demonstra Lincoln como julgador que está impossibilitado de impedir a
iminente catástrofe.124
Ainda vale destacar os inimigos políticos dos Iselin, Holborn Gaines (Lloyd
Corrigan) e Thomas Jordan (John MacGyver). No filme, Holborn Gaines se trata de um dos
jornalistas políticos mais respeitados dos EUA que em seus artigos critica a Iselin. Ao voltar
da guerra, Raymond Shaw pede emprego ao jornalista e passa a trabalhar como assistente de
pesquisa em seu escritório em Nova York, “Holborn Gaines, o comunista?”, “Ele não é
comunista, mãe. Na verdade é um republicano” “Descobrimos que ambos detestamos você e
Johnny”125. Mais adiante, Yen Lo ordena Shaw, sob hipnose, a matar Gaines como teste
antes de entregá-lo ao seu controlador norte-americano e para que Shaw consiga uma
promoção. A cena do assassinato é a única em que aparece o jornalista idoso, Raymond entra
em seu quarto a noite enquanto está sozinho lendo na cama ao lado de um tabuleiro de xadrez
com uma partida em andamento, o que constrói a idéia que é uma pessoa intelectual. Gaines
o recebe amistosamente, demonstrando intimidade com Shaw, que é demonstrado de costas
durante toda cena, a medida que se aproxima da vitima a trilha sonora fica cada vez mais
intensa, chega ao seu auge e silencia quando a câmara enfoca a parte escura o paletó de
Raymond ocorrendo uma transição de cena.
O senador Thomas Jordan é outro inimigo político dos Iselin e também conquista a
simpatia de Shaw que se apaixona por sua filha. A Sra. Iselin o chama de comunista e
subversivo e o ataca através do seguinte argumento:
SRA. ISELIN - Estamos em uma guerra, uma Guerra Fria. Mas vai
piorar até que todos homens, mulheres e crianças desse país
levantem-se e digam se estão do lado da liberdade e dos direitos ou
124 Ver ANEXO 7.2 REFERÊNCIAS A ABRAHAM LINCOLN E SÍMBOLOS NACIONAIS, p. 69 125 Id., Ibid., min. 09 e 10
60
do lado dos Thomas Jordans desse país. Mostrarei que esse homem é
mau e que se dedica a destruir o que você, eu, Johnny e todo cidadão
americano...126 .
Já Jordan ironiza para Raymond “O maior atrativo na sua mãe é a tendência de se
referir a quem discorda com ela como comunista.”127, quando vai a contragosto para festa a
fantasia para alegrar sua filha declara que se encontra em um “covil fascista”, ele é a única
pessoa sem fantasia e fica isolado em seu canto, desconfortado por ver Iselin se exibindo na
festa. Quando, na mesma festa, a Sra. Iselin o pergunta se vai tentar bloquear John Iselin se
tentar uma nomeação a vice-presidência, Jordan responde que vai fazer todo possível para
bloqueá-lo “alguns acham Johnny um palhaço. Eu não acho. Eu desprezo John Iselin e tudo o
que o Isenlismo quer dizer. Se ele fosse patrocinado pelos soviéticos não fazia tão mal ao
país do que já faz agora”128. Assim, Thomas Jordan seria o modelo de político exemplar, que
por sua vez contracena freqüentemente com uma escultura de águia, animal nacional dos
EUA que representa a liberdade129, e que reconhece os perigos do anticomunismo político,
segundo os parâmetros do diretor que faz o expectador se simpatizar com sua causa. No
transcorrer do filme, a disputa dos candidatos ficam cada vez mais acirradas e novamente
através de Shaw a Sra. Iselin o assassina.
4.5.4 Identidade norte-americana e paranóia a subversão de seus valores
O personagem mais relevante para o estudo é sem dúvida Raymond Shaw, realizado
por Laurence Harvey (1928 – 1973)130. Uma das perguntas que guia o filme é quem
Raymond Shaw é realmente. Logo no início do filme, Shaw passa como um “estraga
prazeres”, que não se socializa e não nutre a mínima simpatia com outros membros de sua
patrulha. Porém, o lapso de tempo entre a captura do batalhão por militares inimigos e o
retorno de Shaw para os EUA, muda drasticamente a visão do personagem. Na cena em que é
recebido por uma parada organizada por sua mãe no aeroporto é tratado como um herói de
guerra, que recebe a medalha de honra das mãos do presidente, sendo que segundo o filme
durante a Guerra da Coréia somente 77 soldados de 5.720.000 receberam o mérito. Segundo
126 Id., Ibid., min. 72 e 73 127 Id., Ibid., min. 70 128 Id., Ibid., min.87 e 88 129 Ver ANEXO 7.2, p. 67 130 Atuou em filmes como Os Cavaleiros da Távola Redonda, O Álamo e recebeu indicações para o Oscar e Globo de Ouro.
61
o narrado por sua patrulha, Shaw salvou sozinho seus companheiros, derrotando uma
companhia inteira de inimigos, e os conduziu novamente a segurança depois de três dias
perdidos. Quando perguntados sobre seus sentimentos com relação a Raymond, outros
membros da patrulha sempre utilizam a mesma expressão: “Raymond Shaw é o ser humano
mais valente, gentil e sincero que conheci” (no original, Raymond Shaw is the bravest,
kindest, warmest and the most wonderfull human beeing I’ve ever know in all my life).
Porém, os sonhos mostram o oposto em que Raymond assassina friamente dois de seus
colegas a mando de Yen Lo. Nesse ponto, o filme trabalha habilmente com a questão do que
é real e o que é delírio, se são seus sonhos ou suas memórias, se Raymond realmente os
salvou ou foram condicionados, manipulados, a pensar de certa forma.
Em determinado momento do filme Marco diz:
BENNET MARCO - Tem algo estranho sobre mim, sobre Raymond
Shaw, sobre a Medalha de Honra. O psiquiatra perguntou o que eu e
o resto da patrulha achávamos de Raymond. Ouviu o que eu disse?
‘Raymond Shaw é o ser humano mais valente, gentil e sincero que
conheci’ Agora mesmo eu acho isso. Mas lá no fundo algo me diz
que isso não é verdade. Não é verdade. Não é difícil gostar dele. É
impossível gostar dele. Ele é o ser humano mais repulsivo que eu já
conheci na minha vida.131
Até o próprio Raymond parece incomodado com a situação quando diz para Marco
de outro soldado que lhe enviou uma carta: “Sabe quanto os rapazes me odiavam. Não tanto
quanto eu a eles. Mas o engraçado foi que ele me disse que eu era seu melhor amigo no
exército. Eu, seu melhor amigo no exército? Coitado...”.
Quando perguntado como se sente perante a parada que o aguarda no aeroporto
Shaw, marcado por seu sarcasmo e mau humor, responde: “Como o Capitão Idiota dos gibis
de ficção científica”. Mas durante o filme, o personagem passa por um arco. Quando
reencontra seu amor de adolescência, Jocelyn Jordan (Leslie Parrish), filha do senador
Thomas Jordan, com quem se casa no mesmo dia, se transforma de uma pessoa “não amável”
para um sujeito feliz e bem humorado, o que faz o expectador considerar por um momento se
o amor curou Shaw de se condicionamento. Quando é ordenado a executar Thomas Jordan,
131 Id. Ibid. min. 40
62
também a mata, por ser cúmplice, Shaw cai em depressão e infelicidade apesar de não saber
que é o assassino.
Outra questão importante com relação ao personagem de Raymond Shaw é a relação
com sua mãe Eleanor Iselin. Shaw odeia declaradamente sua mãe, apesar de ao mesmo
tempo se sentir culpado por odiá-la, e a culpa por sua infelicidade e intrusão em sua vida
privada, ao destruir seu relacionamento com Jocelyn Jordan, única cena de flashback do
filme. Mesmo antes de sofre a lavagem cerebral, Shaw possuía uma tendência a ser fraco e
submisso frente sua mãe, “ela sempre ganha, nunca pude ganhar dela, ainda não posso”. Em
certo momento do filme, Sinatra se lembra de Yen Lo explicando porque a rainha de ouro foi
escolhida como “gatilho psicológico” de Raymond: “A rainha de ouros é muito sugestiva, a
mãe amada e odiada de Raymond”.
Após mandar que Raymond assassine o candidato a presidência, a Sra. Iselin
esclarece que não sabia que justamente seu filho seria utilizado como assassino pelos
comunistas e promete que após o marido assumir a presidência irá vingar o filho. A Sra.
Iselin se despede do seu filho com um beijo na boca, revelando intenções incestuosas, o que
traria muita polêmica na época de exibição do filme, no livro em que o longa foi baseado os
dois dormem juntos, talvez a intenção do diretor seja justamente chocar o expectador levando
a Sra. Shaw a beira do moralmente repulsivo para sociedade puritana norte-americana.
Assim, ocorre um complexo de Édipo entre a Sra. Iselin e Raymond e, talvez como
referência a necessidade da morte simbólica dos pais, indicada por Freud como medida
crucial para o indivíduo definir sua identidade, Shaw assassina sua própria mãe e seu
padrasto, finalmente rompendo suas amarras com a personagem.
Por último, não se pode deixar de destacar a própria questão da lavagem cerebral.
Raymond é condicionado a assassinar sem possuir o mínimo controle de si próprio De acordo
com o que afirma Yen Lo em determinado ponto do filme, Shaw seria o assassino perfeito,
um americano comum (“produtivo, sóbrio e respeitado”), treinado para matar e sem
lembrança de ter matado, portanto, livre do medo, da culpa (“esses sintomas da culpa”) e, se
bem utilizado, de suspeitas.132 O filme aborda uma paranóia diferente de um ataque nuclear
soviético, os comunistas não invadem os norte-americanos territorialmente, mas sim, na
mente. A partir desse momento não tem controle sobre si mesmo, privado de sua consciência,
identidade, livre-arbítrio, sua “alma” e incapaz de avaliar moralmente suas ações, liberdades
pregadas pelos norte-americanos, o sujeito não passa de um mero fantoche. Uma questão
132 Id. Ibid. min. 33
63
particular do filme é que tanto Raymond Shaw como Bennett Marco, mocinhos com quem o
expectador é induzido a gostar são ao mesmo tempo os instrumentos dos inimigos, não
sabem para que são usados e nem como se proteger, e a audiência passa a temer o que eles
são capazes de fazer. O maior exemplo é a cena em que Raymond assassina sua própria
esposa em estado de transe sem ao mínimo excitar.
Ao encontrar o sogro na cozinha que o recebe cordialmente contando o sucesso de
sua carreira, Shaw responde “É bom ouvir isso senhor”, sempre com sua expressão de
sonâmbulo, que enfatiza a mudança de personalidade do personagem, logo após, atira no
peito do senador, o tiro atravessa a caixa de leite, o qual escorrer simulando sangue.
Enquanto está dando um segundo tiro na cabeça do sogro, sua mulher entra na sala e
Raymond também a mata, em seguida, sai a casa com a mesma expressão de apatia mas com
lagrimas saindo de seus olhos significando que sabe o que aconteceu e sofre por isso mas
não tem controle sobre si mesmo.
No final do filme, após assassinar sua mãe e seu padrasto na convenção, Raymond
se suicida, a autopunição do personagem principal também pode remeter a elementos da
tragédia grega, na qual o sujeito, que se vê como alguém corrupto e imperdoável, não suporta
a dor e se mata. Na última cena do filme, Marco lê para Rose, voltado para câmera, uma
citação sobre Raymond em um livro chamado A História Acobertada dos EUA: “Forçado a
cometer atos indizíveis pelo inimigo que capturou sua alma e seu espírito, está livre agora e
no final deu sua própria vida para salvar este país”. Shaw acaba como o herói norte-
americano que se sacrifica para seu país desistindo da vida para preservar a ordem de sua
nação e sua liberdade individual, como diria o candidato a presidência no clímax da película,
“não pedirei a nenhum norte-americano em defesa de sua liberdade mais do que eu daria.
Minha vida antes da minha liberdade”. Um personagem característico dos anos 1950, em que
possui virtudes morais e integridade dos heróis da era de ouro de Hollywood, é problemático,
confuso, infeliz que, por fim, de suicida, mas o que não impede que consiga sua redenção no
final ao realizar um ato heróico e que expectador crie um sentimento de empatia com relação
ao mesmo.
64
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise do filme é possível remeter sobre de que forma a Guerra Fria
é representada. Primeiramente, o filme demonstra o sentimento de prosperidade nos
EUA das décadas de 1950 e 1960. Através do filme pode-se deslumbrar a revolução
tecnológica do período, popularização de bens de consumo, com especial destaque ao
televisor e o progresso científico, nesse caso a psicologia usada como instrumento
político perigoso.
A película também é produto de um período de transformações ocorridas no
cinema hollywoodiano, que devido a uma significativa crise comercial e a uma crise de
identidade da época que pôs em xeque os velhos mitos norte-americanos, teve que se
adaptar para sustentar seu status político e social. O que se seguiu foi um abandono das
formulas tradicionais dos gêneros cinematográficos e o surgimento de “filmes
problema”, mais sérios e com forte caráter social juntamente com a cada vez maior
popularização do cinema noir, tendências em que Sob o Domínio do Mal está integrado.
O longa também ilustra elementos do discurso diplomático norte-americano
como forma de reafirmação de sua identidade em detrimento dos comunistas. Porém,
em nenhuma cena é citado a questão do exterminismo nuclear, os comunistas não
desejam atacar os Estados Unidos militarmente mas sim ideologicamente, instituindo
suas vontades forçadamente através de lavagem cerebral corrompendo valores tão
prezados pelo senso comum capitalista, individualismo, democracia e livre-arbítrio.
Sob outra perspectiva, o comunismo não pretende invadir os EUA, pois já estão
infiltrados através de organizações e agentes que andam e agem livremente no país,
assim remetendo ao anticomunismo. O estudioso inglês Greil Marcus se fascina com a
mística que envolve o longa e o relega ao imaginário e ao folclore norte-americano.
Para ele, ao refletir sobre as polêmicas discussões que o filme propiciou sobre lavagem
cerebral e assassinatos de figuras públicas, como Kennedy, comenta sobre sua
capacidade de despertar um sentimento de que talvez exista algo por traz da rotina, algo
incômodo e secreto, de que nos Estados Unidos a vida pública é violada por uma
conspiração ou um crime privado, trazendo à tona a questão da paranóia.
O que Sob o Domínio do Mal previu – o que atuou, apresentou e adiantou – foi o estado de espírito que acompanharia os assassinatos que seguiram, essas violações da vida pública americana. Previu a sensação de que os eventos que formam nossas vidas acontecem em um mundo invisível, que não temos acesso, que nunca
65
podemos explicar. Se o sonho é a memória do futuro, este é o futuro que Sob o Domínio do Mal lembrou.133
Dessa forma, o filme explora a histeria e paranóia anticomunista como forma de
incorporar suspense e tensão a película, além dar legitimidade ao discurso
cinematográfico como enquadrante da classificação thriller político e realismo a ponto
de fomentar discussões futuras. Não necessariamente contraditório, Sob o Domínio do
Mal realiza uma crítica ácida com relação ao macartismo, que se apropria da histeria
anticomunista como ferramenta política. O núcleo de personagens políticos que
almejam dar um golpe de estado, ao levar a nação a histeria para ocupar o cargo de
presidência, são caracterizados por sua política agressiva em que acusam qualquer um
que não compartilha de seus ideais de comunista, agente do mal e traidor. Também,
utilizam-se de argumentos falsos para incitar medo a população, não seguem nenhuma
moral ou ideais além da cobiça pelo poder e assassinam seus opositores, tudo isso
maquiado através um discurso demagogo. Sem contar que ainda há uma significativa a
sátira política do filme com relação a Joseph McCarthy, o personagem que o representa
é extravagante, bêbado, infantil, sensacionalista, irresponsável e apático aos problemas
da nação.
Devido essas particularidades, o filme é considerado por críticos como “a sátira
mais sofisticada já produzida em Hollywood”, pois não possui um alvo em particular,
como esquerda ou direita, estrangeiro ou nacional, e sim “a própria noção de que é
possível encarar a política em seu valor nominal”.134 Assim, o filme nutre uma certa
tendência de desconstruir e criar paradigmas, carregada ao mesmo tempo de elementos
que o conferem uma forte impressão de realidade e além outros que, dialeticamente,
guiam o espectador a um mundo onírico, surreal e incerto. Devido a inúmeras
discussões levantadas no transcorrer da pesquisa, a obra cinematográfica pode ser
encarada como, conforme caracterizado por Marc Ferro, parte do campo das diferentes
representações sobrepostas e estratificadas através das quais os norte-americanos
questionam sobre si.
133 MARCUS, Greil. The Manchurian Candidate. London, BFI Film Classics, 2002. p.75 134 EBERT, Roger. Grandes Filmes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. p. 463
66
6 REFERÊNCIAS
Sob o Domínio do Mal (The Manchurian Candidate. EUA, 1 filme, P&B, sonoro, 1962, 127 min., M. C. United Artists & Frank Sinatra Trust Number 10, Dir. John Frankenheimer. Versão legendada e dublada.) BOWIE, S. John Frankenheimer. Senses of Cinema, 2006. Disponível em: ttp://www. sensesofcinema.com/contents/directors/06/frankenheimer.html >. Acesso em: 18/11/2008. CHARTIER, R. O Mundo como Representação. Estudos avançados 11(5), 1991.p.173 -191. DIVINE, R.A.; BREEN, T.H.; FREDRICKSON, G.M.; WILLIAMS, R.H.; ROBERTS, R. América: Passado e Presente. Rio de Janeiro: Editorial Nórdica, 1992. DUDLEY, A.J. As Principais Teorias do Cinema – Uma Introdução. Christian Metz e a Semiologia do Cinema. Jorge Zahar Editor LTDA, RJ, 1989. EBERT, R. Grandes Filmes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. FERRO, M. A História Vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989. FERRO, M. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. FERRO, M. O Filme: uma contra-análise da Sociedade? In: História: Novos Objetos. (orgs.) LE GOFF, Jacques & NORA, Pierre. RJ: F. Alves, 1976. HARMETZ, A. ‘Manchurian Candidate’, old failure, is now a hit. The New York Times. 24/02/1988. Disponível em: <http://query.nytimes.com/gst/fullpage.html?res=940DE2D9 113CF937A15751C0A96E948260&sec=&spon=&pagewanted=1>. Acesso em: 20/11/08. HOBSBAWN, E.J. Era dos Extremos: o Breve Século XX (1914 – 1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. MARCUS, Gl. The Manchurian Candidate. London, BFI Film Classics, 2002 MARKS, J. The Search for The Manchurian Candidate. Times Books, 1979
67
MENAND, L. Introduction. In: CONDON, R. The Manchurian Candidate. New York: Four Walls Eight Windows, 2003. METZ, C. História/Discurso (nota sobre dois voyeurismos). In: A Experiência do Cinema. XAVIER, Ismail (org.). Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983. METZ, C. A Significação do Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972 . MORETTIN, E. O Cinema como Fonte Histórica na Obra de Marc Ferro. In: História e Cinema. (orgs.) CAPELATO, M.H.; MORETTIN, E.; NAPOLITANO, M.. São Paulo: Alameda, 2007. MUNHOZ, S. Guerra Fria: um debate interpretativo. In: O Século Sombrio: Uma História Geral do Século XX. SILVA, Francisco Carlos Teixeira (org.). Rio de Janeiro: Editora Campus/Elsevier, 2004. PATLAGEAN, E. A história do imaginário. In: LE GOFF, Jaques. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990. RAY, R. B. A Certain Tendency of the Hollywood Cinema (1930 – 1980). New Jersey: Princeton, 1985. RUIZ,E.A.Cinema Noir (1941/1958):uma aproximação histórica.Revista da SBPH, nº 19, 2000. SCHATZ, T. O Gênio do Sistema: a Era dos Estúdios em Hollywood. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. SKLAR, R. História Social do Cinema Americano. São Paulo: Editora Culturix Ltda, 1975 THOMPSON, E.; DAVIS, M.; BAHRO, R.; MAGRI, L.; MEDVEDEU, R.e Z.; CHOMSKY, N.; WOLFE, A. Exterminismo e Guerra Fria. New Left Review (org.). São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. VALIM, A.B. Apontamentos para uma História Social do Cinema no Estudo da Guerra Fria. Artigo apresentado no X Encontro Regional da História – ANPUH–RJ. UERJ, 2002