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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA MÁRCIO EDIMIR GONÇALVES LIBERAIS SIM, MAS SOBRETUDO REPUBLICANOS: A IDEOLOGIA DOS FARRAPOS ATRAVÉS DO PERIÓDICO O POVO. CURITIBA 2007

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ - historia.ufpr.br · Na primeira, discorro sobre o cabedal teórico metodológico que serviu de influência e norte durante tal pesquisa, relacionada

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

MÁRCIO EDIMIR GONÇALVES

LIBERAIS SIM, MAS SOBRETUDO REPUBLICANOS: A IDEOLOGIA DOS FARRAPOS

ATRAVÉS DO PERIÓDICO O POVO.

CURITIBA

2007

2

LIBERAIS SIM, MAS SOBRETUDO REPUBLICANOS: A IDEOLOGIA DOS FARRAPOS

ATRAVÉS DO PERIÓDICO O POVO.

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MÁRCIO EDIMIR GONÇALVES

LIBERAIS SIM, MAS SOBRETUDO REPUBLICANOS: A IDEOLOGIA DOS FARRAPOS

ATRAVÉS DO PERIÓDICO O POVO.

Monografia apresentado à disciplina Estágio

Supervisionado em Pesquisa Histórica HH067.

Orientador: Professor Doutor Renato Lopez

Leite

CURITIBA

2007

INDÍCE

INDÍCE..................................................................................................................................... 4

1 RESUMO............................................................................................................................... 5

2 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 6

3 METODOLOGIA ................................................................................................................ 8

4 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA .......................................................................................... 10

4.1 AMBIENTE INTELECTUAL NO PRIMEIRO REINADO E REGÊNCIA ........ 10

4.2 IDEOLOGIA FARROUPILHA ................................................................................ 13

4.3 LIBERALISMO .......................................................................................................... 28

4.4 REPUBLICANISMO.................................................................................................. 32

5 ESTUDO DE CASO: O POVO ......................................................................................... 36

6 CONCLUSÕES .................................................................................................................. 45

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................... 48

5

1 RESUMO

O objetivo deste trabalho1 é analisar e identificar a ideologia dos líderes da

República Rio-Grandense durante a Guerra dos Farrapos através de uma análise

comparativa entre a historiografia existente sobre o tema e uma fonte primária - no

caso, 160 edições de seu periódico oficial, O Povo. Enquadrando-se em um plano

geral de História das Idéias e usando como norte metodológico a História dos

Conceitos, o trabalho se foca nos conceitos relacionados à ideologia farroupilha,

tentando compreendê-los em seu contexto temporal de então.

Primeiro se realizou uma profunda revisão bibliográfica, cobrindo tanto obras

específicas sobre a Guerra dos Farrapos quanto obras ligadas à história geral do

Brasil. Também se analisou a historiografia referente ao liberalismo e republicanismo

no contexto do Brasil Imperial, tentando compreender o significo de cada um desses

conceitos no período.

Posteriormente foi feito um estudo de caso com as fontes primárias,

comparando-as com a revisão bibliográfica. Cada uma das edições foi analisada

individualmente, procurando identificar fatos, conceitos e discursos ligados a

ideologias que a historiografia aponta como próprias dos farrapos, tais como

liberalismo, republicanismo, democratismo, etc...

1 Esta monografia é uma versão revisada e ampliada do relatório resultante da bolsa de pesquisa PIBIC/CNPq no período 2006/2007. Tal relatório intitula “A evolução do discurso e ideário político dos farroupilhas através da análise dos periódicos O Continentino e O Povo.”, tendo sido apresentado no 15º Evinci, recebendo o primeiro lugar em seu setor.

6

2 INTRODUÇÃO

No dia 11 de setembro de 1836, após uma inesperada vitória militar em Seival,

o general farroupilha Antônio de Souza Neto proclamou a separação da Província de

São Pedro do Rio Grande do Sul do Império do Brasil e a fundação da República Rio-

Grandense. Este foi um momento de virada na história dos revoltosos sulistas, pois

marca a transformação definitiva de um movimento de protesto (ainda que com

caráter militar) iniciado em 20 de setembro de 1835 (com a deposição, pelas mãos dos

farrapos, de Antonio Braga da presidência do Rio Grande), para uma Nação

independente e agora em guerra com a nação da qual fizera parte anteriormente. Se

antes os farrapos lutavam por reinvindicações políticas dentro do sistema político do

Brasil Império, agora eles lutavam pela afirmação e manutenção de sua

independência.

Uma mudança e tanto, que levou um número significativo de estudiosos a se

debruçarem sobre o tema, bastante complexo, de como uma revolução que se iniciou

com reinvindicações político-administrativas (em especial a questão de

descentralização do governo) desbocou para um movimento republicano – posição

aparentemente contraditória, se considerarmos a posição declaradamente monarquista

de várias de suas lideranças2.

Uma parte da historiografia tradicional sobre o conflito costuma dar ênfase na

“inevitabilidade” da República: dado a intransigência do Império em relação às

propostas farroupilhas e sua violenta repressão ao movimento, não havia alternativa

para se alcançar tais objetivos, a não ser proclamando a própria independência.

Estudos recentes sobre o assunto também aceitam uma visão semelhante, ainda que de

forma mais elaborada. Para Helga Piccolo, por exemplo, a proclamação da Republica

Rio-Grandense foi um fim, não um meio3, utilizado para se garantir uma forma de

governo mais coerente com a retórica liberal dos lideres farrapos.

Mas será que a linha que separa o monarquista constitucional reformador (uma

forma possível de se classificar os farrapos inicialmente) e o republicano separatista é

tão tênue assim? Ou será que outras correntes ideológicas puderam ter influência

relevante no processo, paralelamente à retórica liberal? A intenção do seguinte

trabalho é analisar mais a fundo estas questões, focando no discurso e ideário político

2 Esta contradição é ilusória, como veremos mais à frente. 3 PICCOLO, Helga. A Guerra dos Farrapos e a Construção do Estado Nacional. In: FREITAS, Décio et al. A Revolução Farroupilha – História e Interpretação. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997. p. 52.

7

dos Farrapos, através de um estudo de caso, ao se comparar o conteúdo de um dos

periódicos farroupilhas com a historiografia sobre o tema.

Como fonte principal do estudo me vali da cópia digitalizada4 de quase 160

números do periódico, O Povo. Publicado durante 3 anos (1838-1840), este pequeno

jornal (entre 4 a 8 páginas por edição) fora concebido como um periódico educativo e

doutrinário por seus editores, porém, com o decorrer da Guerra, se tornou

gradativamente o “Diário Oficial” do governo Rio-Grandense, intercalando suas

matérias doutrinárias e filosóficas com decretos e ofícios do governo. Sendo assim,

trata-se de uma fonte riquíssima tanto sobre as posições políticas quanto sobre a

prática das mesmas, pelo governo Rio-Grandense. Utilizo tal periódico como um

estudo de caso, comparando seu conteúdo com as diversas posições encontradas na

historiografia sobre o tema.

Esta monografia se divide em três partes: metodologia, revisão bibliográfica e

estudo de caso. Na primeira, discorro sobre o cabedal teórico metodológico que serviu

de influência e norte durante tal pesquisa, relacionada à história das idéias e história

dos conceitos. Na segunda parte, faço um resumo sistemático sobre o que a

historiografia diz sobre o ideário político farroupilha, me focando tanto em trabalhos

especificamente focados nos farrapos, quanto aqueles de escopo mais amplo, voltados

à história do Brasil Império. Também apresento elementos historiográficos sobre o

Liberalismo e Republicanismo no Brasil – os dois conceitos mais recorrentes na

historiografia sobre o tema – além de discorrer sobre a tradição republicana como

algo além de uma simples forma de governo e como tal pode ser aplicada em relação

à história do Brasil Império e, conseqüentemente, da Guerra dos Farrapos.

4 Feitas pelo próprio autor desta monografia, em visita ao museu Hipólito José da Costa, em Porto Alegre.

8

3 METODOLOGIA

Foge do escopo desse trabalho fazer uma análise geral e definitiva sobre a

ideologia farroupilha e suas origens – para tanto seria necessária a produção de um

trabalho muito mais complexo, analisando todos os periódicos publicados antes e

depois da guerra, além de discursos, atas e correspondências entre os líderes do

movimento.

Porém, ao compararmos uma fonte primária relevante – no caso, o principal

periódico farroupilha – com uma compreensiva revisão bibliográfica sobre o tema,

podemos ter pelo menos uma visão relevante sobre o assunto de forma que seja

possível sugerir novas questões e novos caminhos de pesquisa quanto a Guerra dos

Farrapos através da História das Idéias, cujo cabedal metodológico nos serve de

modelo.

Segundo Robert Darnton, a partir dos anos 60 houve uma intensa ramificação

da História Intelectual, sendo que duas grandes tendências se destacaram. Uma deles

era mais voltada à história do livro e aos estudos de difusão de idéias como força

atuante na história. Era uma vertente predominantemente francesa, tendo como nomes

representativos historiadores de peso como Roger Chartier, Henri Jean Martin e

Roche Frederic Barber. A segunda vertente era mais forte na Inglaterra, mais voltada

à história do pensamento político através do “análise do discurso”. John Pocok e

Quentin Skinner seriam alguns dos representantes de renome desta variante5.

Meu trabalho se espelha mais na metodologia utilizada por esses últimos, em

específico na preocupação quanto a análise do discurso utilizado pelos farroupilhas e

definição dos conceitos utilizados por estes. A história dos conceitos, por si uma

ramificação deste vertente, serve como um instrumento metodológico para se

compreender a terminologia política e social relevante para um certo campo de

acontecimentos históricos6. Ou como define Reinhart Koselleck em sua obra Futuro

Passado:

“A história dos conceitos é, em primeiro lugar, um método especializado de crítica de fontes que atenta para o emprego de termos relevantes do ponto de vista social e

5 DARTON, Robert. Best-Sellers Proibidos na França Pré-Revolucionária. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p186. 6KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Rio de Janeiro: Editora Puc-Rio. p98

9

político e que analisa com particular empenho expressões fundamentais de conteúdo social ou político”7 A obrigação metodológica do historiador seria então interpretar e delimitar

conceitualmente os usos de linguagem de uma época específica, para então poder

compreender os conflitos políticos e sociais desta era8.

“Por quanto tempo permaneceu inalterado o conteúdo suposto de determinada forma lingüística, o quanto se alterou, de modo que, ao longo do tempo, também o significado do conceito tenha sido submetido a uma alteração histórica?”9

No que diz respeito à ideologia dos farrapos, isso quer dizer primeiro identificar

os conceitos utilizados pelos mesmos em fontes primárias e depois, através da

pesquisa historiográfica e/ou por outras fontes, identificar o que tal conceito

significava naquele contexto histórico. Isto é extremamente relevante em relação à

Guerra dos Farrapos, pois a historiografia sobre o tema costuma abusar na utilização

de vários conceitos (liberalismo, republicanismo, etc...) sem se preocupar em definir

historicamente tais conceitos, como possuíssem significados temporalmente

imutáveis.

É com essas considerações método lógicas em mente que fiz a revisão

bibliográfica e a posterior comparação das fontes primárias com a mesma.

7 Idem. p103. 8 Ibidem. p103 9 Ibidem. p105

10

4 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA 4.1 AMBIENTE INTELECTUAL NO PRIMEIRO REINADO E REGÊNCIA Antes de partirmos para a revisão bibliográfica sobre a ideologia farroupilha

em si vale a pena gastar alguns parágrafos sobre a situação peculiar do Brasil durante

a regência e início do segundo reinado (período em que ocorre a Guerra dos Farrapos)

no que diz respeito à história intelectual.

Ao contrário da América Espanhola, que cedo possuiu universidades e

tipografias próprias, a América Portuguesa até 1808 era totalmente dependente do

exterior em questão cultural, devido a legislação portuguesa que proibia a instalação

de tipografias na colônia. Logo, aqueles habitantes da América Portuguesa que

desejavam se informar, em geral dependiam de livros importados, sendo grande parte

deles proibida devido a censura oficial (ligada a Igreja) de grande número de

pensadores. Tal situação fez Moacyr Flores afirmar que, devido a isso, os farrapos

não desenvolveram idéias originais próprias10.

A falta de universidades na colônia teve efeitos específicos sobre a formação

da elite nacional e subseqüente formação do Estado-Nação brasileiro. José Murilo de

Carvalho em seu livro A Construção da Ordem desenvolve a idéia que a necessidade

de se enviar os filhos para serem educados em Coimbra gerou uma certa

homogeneidade entre a elite nacional, o que limitou o desenvolvimento de fortes

sentimentos nativistas/provincianos no Brasil - ao contrário do que ocorrera na

América Espanhola, que acabaria se dividindo em vários países devido a estes

sentimentos. Essa elite nacional em um primeiro momento se identificava não com

suas províncias natais, mas com a coroa portuguesa e, a partir de 1808 e

principalmente a partir da crise com as Cortes de Lisboa em 1820, passaria a se

identificar com o Reino do Brasil surgido em 1808 com a vinda da corte para o Rio de

janeiro.

Em relação à Guerra dos Farrapos, é importante frisar o fato que a província

destoava do resto do país quanto a esta formação homogênea de sua elite, sendo a

província que menos enviou estudantes para Coimbra11. Murilo de Carvalho relaciona

isso a constante relação problemática que a província teria com o governo central

durante todo o Império. 10 FLORES, Moacyr. Modelo Político dos Farrapos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p16 11 CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem & O Teatro das Sombras. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. p123

11

A partir da chegada da Corte ao Brasil, as leis contra tipografias foram

revogadas, universidades fundadas e todo um aparato cultural foi transplantado da

Europa para o Brasil. A abertura dos portos a nações amigas também trouxe um

influxo de estrangeiros ao Brasil, e com eles novas idéias, livros e influências. Essa

situação se intensificou após o fim dos conflitos armados da independência na década

de 20, como afirma Roderick Barman em sua análise do período.

”In Brazil the coming peace brought a decline in government vigilance and allowed an influx of migrants from continental Europe. Brazilians now experienced the full impact of the intellectual culture of Europe and North America. A key element in this new situation was the inflow into the port cities of foreigners of every calling and social rank”12

A influência estrangeira não se limitava a livros estrangeiros e visitantes em

portos brasileiros. Um fato pouco citado é que, assim como a armada Argentina, a

Marinha Imperial era composta de britânicos e outros elementos anglo-saxões, como

nos mostra Brian Vale em sua obra War betwixt Englishmen.

“And when Ambassador Robert Gordon complained in 1827 that the conflict between Brazil and Argentina…was essentially ‘a war betwixt Englishmen’ (in which definition Gordon – a Scot himself – included all subjects of King George whether English, Scottish or Irish), he was nor far from the truth. At that time, one-third of officers at the sea in the Brazilian Navy…and over one-sixth of the seamen were british. On the opposing side…two thirds of the Argentinian Navy´s officers and half of its sailors were men of Anglo Saxon origin. Most were British, but the republican hue of the regime also appealed to large numbers of North Americans”13

No caso da Armada brasileira, a sua própria reformulação como uma força

profissional capaz de combater os portugueses e debelar rebeliões durante a

independência deve-se a um inglês, o herói das guerras napoleônicas, Lord Cochrane -

que era então o Almirante em comando da armada (e mais tarde Marques do

Maranhão, por D. Pedro I). Cochrane era ligado ao movimento radical que mais tarde

seria responsável pela Ato de Reforma de 1832 na Inglaterra. Ele se retirou do Brasil

pouco depois da independência, mas vários de seus discípulos permaneceram, como

John Pascoe Grenfell, que teria importante destaque na elite Imperial posteriormente

(e sendo o responsável pelo combate naval contra os farrapos durante a revolta).

12 BARMAN, Roderick J. Brazil – The Forging of a Nation, 1798-1852. Stanford: Satanford university Press, 1988. p56. 13 VALE, Brian. A War Betwixt Englishmen. New York: I.B. Taurus, 2000. Preface IX

12

É difícil imaginar que a presença de tantos britânicos e anglo-saxões em

posição de destaque não tenha causado, ainda que indiretamente, a difusão de

conceitos e idéias anglo-saxãs em terras nacionais. Obviamente que isso não explica

por si só – nem mesmo pode ser considerado uma das principais causas – para o

grande peso das idéias políticas inglesas e norte-americanas no Brasil. Mas é um

elemento a mais para se compreender a difusão de tais idéias.

Veremos a seguir na revisão bibliográfica que o ideário político farrapo é um

amálgama de influências estrangeiras adaptado à realidade local. Porém, isso não é

precisa ser encarado como uma limitação do pensamento farroupilha, mas sim uma

característica comum da construção do discurso político em qualquer lugar, como nos

lembra José Murilo de Carvalho:

“Importar modelos, ou inspirar-se em exemplos externos, não era, assim, exclusividade dos republicanos brasileiros. Os próprios founding fathers americanos buscavam inspiração em idéias e instituições da Antiguidade, da Renascença, da Inglaterra e da França contemporâneas. A Revolução Francesa, por sua vez, tivera nos clássicos e no exemplo americano pontos de referência. O fenômeno de buscar modelos externos é universal”14

14 CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p22.

13

4.2 IDEOLOGIA FARROUPILHA Passando para o tema em si deste trabalho - a ideologia dos Farrapos - as

leituras foram bastante variadas, indo desde obras produzidas no fim do Império até

autores mais recentes. Não me limitei a obras que tratassem apenas da Guerra dos

Farrapos, mas também analisei obras de escopo mais amplo sobre o Brasil Imperial,

em especial o período regencial e início do segundo reinado – épocas nas quais a

questão dos farrapos se constituiu um assunto de peso na política nacional.

Ao analisar cada obra, me foquei nos diversos conceitos citados – liberalismo,

republicanismo, federalismo, democratismo, etc... – assim como na origem de tais

conceitos na realidade rio-grandenses e suas possíveis procedências externas – norte-

americanas, italianas, inglesas, platinas, etc...

É importante notar que a historiografia tradicional sobre a Guerra dos Farrapos

em geral se preocupa com facetas diversas da revolta, em especial as questões

militares e políticas. A questão ideológica sempre esteve presente desde os primeiros

trabalhos históricos (com destaque sobre a questão republicanismo/federalismo e

influências estrangeiras), mas estudos focados exclusivamente nesta questão surgiram

apenas no início dos anos 80. Logo, é bom estar ciente de que em grande parte das

obras citadas a seguir, a questão tratada – ideologia farroupilha – é muitas vezes um

assunto apenas tangencial em tais livros.

Durante grande parte do segundo reinado, a história da Guerra dos Farrapos

foi um assunto pouco tratado, quase um tabu – o que era esperado, considerando o

perigo que tal revolução representou para a unidade Imperial durante a regência. A

situação mudou a partir da década de 1870, quando o movimento republicano

brasileiro se fortaleceu e o interesse pela Farroupilha aumentou – afinal, tratava-se de

um experimento republicano no Brasil Império, ainda que não bem sucedido.

Neste contexto, surgiu a obra de Assis Brasil, História da Republica Rio

Grandense, em 187715. Tal obra pode ser enquadrada em um óbvio ambiente de

propaganda republicana, sendo o livro publicado pelo clube republicano do qual Assis

fazia parte, o Clube 20 de Setembro (data em comemoração ao início da Revolta, por

sinal). Mesmo assim, Assis consegue ser idôneo em sua análise da Revolução, que

classifica como liberal, porém sem conotação republicana em seu início.

15 BRASIL, Assis. História da República Rio-Grandense. Porto Alegre: Erus, 1982.

14

“No Rio Grande, a federação era a idéia culminante dentre todas as aspirações liberais, Nada, porém, autoriza a crer que houvesse por esse tempo definidas convicções republicanas; antes o certo é que, com excepção de Zambicari e alguns outros, discípulos seus, em pequeno número, a democracia era repelida por todos os patriotas liberais”16

Assis não se aprofunda quanto às influências externas – sejam diretas ou

literárias – dos farrapos. Porém ele cita a influência dos italianos, principalmente

representados na figura de Zambecari, como fundamentais. Tal posição seria perene

na historiografia do tema por pelo menos um século, até a obra de Moacyr Flores.

“Zambicari fez-se amar de todos os patriotas do Rio Grande, e pode ser considerado o seu verdadeiro e real diretor mental. Assim explica-se o influxo que exerciam no Rio Grande as doutrinas da Jovem Itália de Mazzini: apareciam ali através de Zambicari”17 p55-56

Assis elabora um eficiente argumento quanto a outro tema perene na

historiografia: a republicanismo como última opção dos rebeldes. Ele nos cita uma

interessante passagem de um discurso de Bento Gonçalves em 1843, onde o mesmo

deixa claro que foram obrigados a trocar os gritos de “Viva o imperador”, por “Viva a

República!” por falta de opções18. O autor conclui que a proclamação da republica

fora a única forma de manter a integridade dos ideais liberais da revolução.

“Os revolucionários, porém, apenas queriam a autonomia da província, sem que fosse roto o princípio da integridade da grande nação; entretanto, a incompatibilidade entre o regime dominante e esta grande aspiração evidenciou-se desde logo. A independência e a democracia, vieram fatalmente, com a única solução das idéias liberais bem entendidas”19 (p165)

Passando já para o início do século 20, mais precisamente em meados da

década de 1930, temos um dos momentos mais interessante da historiografia sobre a

Guerra dos Farrapos, decorrente do centenário da revolução. Neste contexto, dois

autores de posições divergentes se destacaram: Alfredo Varela e Souza Doca. No

tocante a história das idéias sobre o tema, a discussão entre os dois é riquíssima, pois

ainda que a obra de ambos tenha um escopo muito mais amplo do que a ideologia dos

16 Idem. p54 17 Ibidem. P55-56. 18 Discurso de Bento Gonçalves, 1843 apud BRASIL, Assis. Op. Cit. p211. 19 BRASIL, Assis. Op. Cit. p165.

15

farrapos, a polêmica surgida se deu em torno das idéias farroupilhas, em especial em

respeito a diferentes definições de conceitos como republicanismo e federação.

Varela escreveu cinco obras tratando o assunto, sendo a mais famosa delas a

História da Grande Revolução20, publicada em 1933, em 6 grandes volumes. Obra

densa, escrita em um português bastante rebuscado e cheio de metáforas e alusões a

história clássica, tal obra não é de fácil leitura, mas consiste em uma das obras mais

importantes da historiografia farroupilha, dado o escopo inigualável dela. Mais do que

qualquer outra, a obra de Varela tenta embarcar todos os elementos possíveis da

história da revolução farroupilha, indo dos aspectos políticos e militares, até

pormenores de intrigas e episódios pitorescos.

No que diz respeito ao ideário farroupilha, o autor acentua o caráter liberal dos

revoltosos, chamando a rebelião de “movimento armado liberal”21 e Bento Gonçalves

de um “caudilho liberal”22. Varela não elabora sobre as características desses

liberalismo farrapo, mas deixa claro que mais do que uma posição política, tal

liberalismo era também um aspecto intrínseco do caráter rio grandense, devido a sua

peculiar formação.

“Entregues a si mesmos, na quase-anarquia do Pampa semi-deserta...os povoadores da Capitania em breve atingiram condições de dignidade pessoal...reconstituindo o caráter na vida trabalhadora e autônoma...épocas estas de tropelias e escândalos, encaminhadores ao apaixonado liberalismo, de que deu provas exuberantes, depois da independência, a forte alma popular”23

Varela se foca muito mais no republicanismo dos farrapos, que seria o

elemento principal da tese que move sua obra e mais tarde seria a causa da polêmica

com Souza Doca. Indo contra grande parte da historiografia – publicada antes e

depois de sua obra - autor coloca o republicanismo como objetivo principal e inicial

da revolta – a maioria dos farrapos teria sido sempre republicana24 - com a clara

intenção de se fundar uma República independente. Esse republicanismo estaria

ligado ao federalismo brasileiro que resultou na abdicação do Imperador em 1831,

mas cuja implementação fora abortada no período seguinte. Tal republicanismo teria

ressurgido mais tarde no Rio Grande do Sul e na Banda Oriental (Uruguai). Varela vai

20 VARELLA, Alfredo. História da grande Revolução. Porto Alegre:Livraria do Globo,1933. 21 Idem. Vol. 1. p417. 22 Ibidem. Vol. 2. p7. 23 Ibidem. Vol. 1. p121. 24 Ibidem. Vol. 1. p315.

16

ao extremo de classificar Bento Gonçalves – citado como monarquista por quase toda

a historiografia - como principal proponente de tal republicanismo.

“Nesta altura da pesquisa histórica, é afouteza responder às formuladas perguntas sobre a filiação revolucionária de Bento Gonçalves? Por certo que nenhuma temeridade há em afirmar as suas antigas ligações com os que antes de 1831 idearam uma revolução genuinamente brasileira. Não há alguma temeridade , por igual, no asseverar que pelo ano sobreseguinte, id est, em 1832, essas ligações quase interrompido se haviam. O caudilho liberal se voltava de todo para a primitiva fonte das inspirações regeneradoras da Província, buscando ele outras alianças, para libertá-la.”25

Seguindo seu raciocínio, Varela argumenta que a intenção posterior dos

Farrapos de criar uma federação brasileira se deve ao fato de não terem conseguido a

independência completa, nem reconhecimento de outras nações. Sendo assim, sobrava

a tentativa de transformar o resto do Brasil em uma federação de republicas. Assim se

explicaria a farta documentação de periódicos e discursos farroupilhas onde eles

clamam pela federação com o resto das províncias brasileiras.

Varela cita várias vezes a influência norte-americana nos farrapos, que teriam

uma predileção pelas instituições daquele país26. Porém, a influência maior, aquela

que definiria o republicanismo rio-grandense, seria o exemplo da Federação

Argentina, cuja existência servia de modelo para os revoltosos.

“O programa que se atribui aos farrapos e que era indiscutivelmente o de nossa áurea época, não foi instituído por eles: herdaram-no de outros, os que já eram homens fortes, criaturas pensantes, quando rebentou em Buenos Aires a luta da emancipação americana”27

Apesar da importância da obra por seu escopo (tal obra é referência quase

unânime na historiografia pós 1933, por exemplo), as conclusões de Varela são

bastante polêmicas e grande parte delas não encontrou eco entre os demais

historiadores. Pelo contrário, a obra gerou diversas respostas e correções na

historiografia subseqüente. Entre estes, Souza Doca se destacou ao divergir das

principais teses de Varela.

Souza Doca produziu livros sobre diversos assuntos relacionados à região

platina, indo da história geral do Rio Grande do Sul., até as causas da Guerra do

Paraguai. Um tema recorrente em suas obras é demonstração do caráter luso-brasileiro

25 Ibidem. Vol. 2. p7. 26 Ibidem. Vol. 1. p244 e p410. 27 Ibidem. Vol. 6. p5.

17

da região, em contraste àqueles que dão destaque aos elementos divergentes do Rio

Grande do Sul e a influência espanhola no mesmo.

Seguindo a mesma linha, tal autor escreveu O Sentido brasileiro da Revolução

Farroupila28, em 1935 em resposta ao modelo de influência platina defendido por

Alfredo Varela, apresentando como teoria alternativa que o principal modelo de

referência dos farrapos era o norte-americano, mais especificamente no conceito de

federação. O tal “sentido brasileiro” da revolução seria a intenção de construir uma

federação de republicas no lugar do Brasil império, tal qual os EUA eram uma

república de estados autônomos (vale lembrar que a Farroupilha ocorreu antes da

Guerra Civil Americana e o subseqüente fortalecimento da União). Para defender sua

tese, Doca se vale principalmente de comunicações da Câmara de Alegrete e de

artigos do jornal O REPUBLICANO, onde podemos ler, por exemplo que:

“Prescindindo porém dos exemplos que nos oferece a história antiga, vemos em nossos dias comprovadas as vantagens dessa forma de governo, pela felicidade que gozam os Estados Elvéticos e os norte-americanos.”29

Em 1935, Varela publicou um novo livro, Res Avita30, onde melhor elabora as

questões sobre o republicanismo farrapo, em especial respondendo as correções e

apontamentos feitos por Souza Doca.

Varela critica este último, alegando que o mesmo não sabe diferenciar

separatismo e federalismo da época (1835) em contraste com o significado dos termos

nos dias de hoje (no caso, em 1935). Também acusa de anacronismo a posição

daqueles que dizem que o Rio Grande era intrinsecamente brasileiro na época da

Farroupilha. Compara isso a situação na Inglaterra, onde a Escócia é parte da

Inglaterra, mas os ingleses não negam as lutas pela independência dos escoceses e

esses se orgulham de tais fatos31. O autor diz que tais criticas são resultado de um

nacionalismo burro, anacronismo e falta de conhecimento histórico.

"...acastelam-se em outros os dissentaneos, para teimosos resistirem aos que percebem o scenario historico, em toda a sua ampla magnificencia. Quizeram os nossos a democracia, mas nunca jamais com a quebra da unidade nacional estatuida na Carta de

28 DOCA, Emílio Fernandes de Souza. O sentido brasileiro da Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Globo, 1935. apud FLORES, Moacyr. Op. Cit. 29 Idem. p13-14. 30 VARELLA, Alfredo. Res Avita. Porto Alegre: Tipografia Lisboa,1935. 31 Idem. p53-54.

18

23 de Março, gritam a brados. Peneiro uma a uma as rasões que formulam para não capitular, e evidencio que o residuo que nos fica é da mais lamentável insignificância."32

Já na década de 60, Wlater Spalding produziu importantes obras sobre a

guerra dos Farrapos, entre elas A Epopéia Farroupilha33

. O livro de Walter Spalding,

além de trazer um pequeno resumo cronológico da guerra, tem como ponto focal duas

questões comuns na historiografia, como já visto: o caráter do republicanismo farrapo

(inerente ou reflexo das condições da guerra) e o separatismo do movimento.

Quanto a esta última questão, Spalding se posiciona enfaticamente contra tal

teoria e constrói um eficiente argumento baseado principalmente nas atas dos

discursos, proclamações e documentos farroupilhas antes e durante a guerra. A

retórica constante de tentativa de paz com o Império – porém em termos liberais – e

depois da independência, a preocupação em se dirigir aos brasileiros como amigos e

libertadores, tudo forma uma base sólida contra a teoria de união com as repúblicas

platinas.

Quanto à segunda questão, Spalding também se posiciona contrário,

argumentando que os farrapos eram liberais, porém não republicanos – esses seriam

uma minoria sem expressão.

Aqui o autor não consegue elaborar um argumento tão eficiente, se focando na

retórica de farrapos notoriamente monarquistas (como bento Gonçalves) sem se

aprofundar mais nos elementos republicanos do Movimento.

A questão sobre as origens ideológicas dos revoltosos é colocado em segundo

plano. No livro de Spalding, alguns poucos capítulos ainda são gastos sobre o assunto

(fala-se brevemente sobre a influência americana34 e italiana35), inclusive com uma

lista das principais obras filosóficas e/ou políticas lidas por lideres farrapos. Porém,

assim como Darton diz que não é possível definir as origens ideológicas da Revolução

Francesa simplesmente listando os livros proibidos mais lidos e vendidos36, também é

de pouca valia tal lista no contexto dos Farrapos se a mesma não estiver acompanhada

de uma análise mais ampla – o que não ocorre no livro de Spalding.

32 Ibidem p41. 33 SPALDING, Walter. A Epopéia Farroupilha. Rio de Janeiro: Bibliex, 1963. 34 Idem. p246. 35 Ibidem. P260. 36 DARTON, Robert. Op. Cit.. p. 185.

19

Nos final dos anos 1960 e início dos anos 1970, é publicada uma das obras

mais importantes da historiografia geral brasileira, a série História Geral da

Civilização Brasileira37, organizada por Sérgio Buarque de Holanda e publicada em

11 volumes, sendo 5 deles tratando-se do Brasil Imperial. Destes, o segundo é

importante para nossa pesquisa, por tratar do período no qual ocorreu a Guerra dos

Farrapos. Tratando-se de um livro mais focado nas questões centrais do Brasil, a

princípio a obra trata da “questão dos farrapos” no sul em relação ao governo do

Regente Feijó e como a hesitação deste para reprimir a mesma, devido a proximidades

ideológicas, acabou por enfraquecer sua posição como líder38.

Considerando a época em que foi escrito, durante a o início do domínio do

marxismo em nosso meio acadêmico, o livro tenta construir um meio termo entre a

visão materialista-histórica, que só enxerga razões econômicas na rebelião, e a visão

mais tradicional, ligada aos ideais liberais e a questão de autonomia da província

contra o governo central forte.

“Não basta, por certo, verificar que havia pressões do Governo Central contra a economia gaúcha para explicar a Guerra dos Farrapos, que assim ficaria reduzida a mero reflexo político de tensões econômicas. Mas não se pode, por outro lado, restringir a problemática da Revolução Farroupilha às lutas entre tendências liberais e tendências conservantistas e entre as idéias federativas-republicanas e o sistema monárquico. Sem minimizar o aspecto ideológico da revolução, é certo que havia de fato a instigá-la um anseio de reformulação da política tributária”39

Partindo deste princípio, aceitando o peso econômico na mesma, mas sem

relegar a ideologia a um segundo plano, o livro se volta à questão do conceito

federalista inerente ao republicanismo farrapo e se o mesmo possuía uma tendência

separatista ou não, A conclusão se aproxima mais à tese de Souza Doca do que a

proposta por Varela.

“É falaciosa, portanto, a análise da Revolução Farroupilha como um movimento separatista. Ao contrário, a revolta exprimiu uma tentativa externa para reorientar nos quadros da política imperial, as relações entre o poder central e a província”40

37 HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira – 2: O Brasil Monárquico, Volume 2. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1987. 38 Idem. p52. 39 Ibidem. p499. 40 Ibidem. p502.

20

O republicanismo dos farrapos é mostrado como reflexo das situações sociais,

que teria criado condições para uma revolta de protesto contra o governo central

monárquico se transformasse em um movimento separatista. Porém, o ideal claro em

todo o movimento – considerando os periódicos e discursos da época – seria o de

Federação (como autonomia dentro de uma União), não o de separatismo. Este teria

sido uma posição imposta pelas circunstâncias.

“Entretanto, ainda que na exasperação das questiúnculas entre as facções e na luta pela afirmação da camada dos estancieiros e exportadores no Rio Grande tenha passado, pouco a pouco, de uma reação contra o governo provincial que se identificou com um dos partidos do Império, à constituição de uma República autônoma, o ideal subjacente aos pronunciamentos de todos, porque coincide com as possibilidades concretas de desenvolvimento social do Rio Grande, era o de Federação”41

Então, no final dos anos 1970, surge a primeira obra de peso a se debruçar

exclusivamente sobre a ideologia dos farrapos – o livro de Moacyr Flores, O Modelo

Político dos Farrapos42 Nele, o autor passa levemente por alguns temas comuns a

historiografia tradicional, mas se atém mesmo em destrinchar e desvendar as

influências políticas que moldaram o pensamento político dos lideres da República

Rio-Grandense. Flores ataca frontalmente algumas teorias que considera sem

fundamento histórico, tal como a grande influência dos carbonários italianos na

Revolução Farroupilha – para o autor, a participação de italianos como Garibaldi e

Rosseti fora extremamente limitada, praticamente nula em termos ideológicos e

irrelevante em termos militares. O autor é enfático nesta posição, repetindo-a

enumeras vezes durante a obra.

“Giuseppe Garibaldi, Tito Livio Zambecari e Luigi Rosseti são apontados como fautores ou ideólogos do movimento liberal que criou a Republica Rio Grandense. No entanto, a contribuição ideológica destes três personagens foi nula, por ser antagônica aos princípios liberais dos farroupilhas e suas atuações militares classificam-se como mínimas no contexto bélico da República Rio Grandense”43

Para o autor, o modelo político dos farrapos era uma colcha de retalhos formada

por diversas influências externas.

41 Ibidem. p503. 42 FLORES, Moacyr. Modelo Político dos Farrapos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. 43 Idem. p. 49.

21

“Os farroupilhas não estruturaram idéias políticas originais, elas se relacionam no ideologismo universal dos intelectuais e políticos do século XIX, justamente porque, no processo político brasileiro, havia carência de teóricos por inexistência de universidade e imprensa no período colonial, com agravamento de que o Império derivava-se de Portugal, um Estado absolutista por tradição”44

Essas influências seriam sobretudo idéias liberais, principalmente aquelas vindas

do liberalismo anglo-saxão – tanto a monarquia constitucional inglesa quanto o

republicanismo americano seriam uma das referências dos farrapos. Já a Revolução

Francesa seria vista como um mau-exemplo a ser seguido, sendo continuamente

citada em tom pejorativo nos periódicos farroupilhas.

“Na historiografia da revolução farroupilha encontramos a afirmação comum de que a Revolução Francesa influiu e que até mesmo foi uma das causas do movimento rio-grandense. No entanto, os jornais liberais e monarquistas classificavam o período do terror como um aspecto negativo do sistema republicano. Marat e seus seguidores representavam a anarquia e a violência”45

Em 1988, o historiador canadense Roderick J. Barman publicou um ótimo

trabalho sobre a construção do Estado Brasileiro, chamado de Brazil – The Forging of

a nation, 1798 – 185246. Em seu livro, Barman pretende usar o Brasil como estudo de

caso na construção e formação de um Estado, em especial naqueles de “capitalismo

tardio”. Ele nos lembra que o próprio conceito de Nação-Estado não deixa de ser uma

ideologia em si só, mas devido à predominância dessa forma de organização no

mundo desde o século 18, tal fato muitas vezes é esquecido47. Apesar de ser uma

observação valiosa, foge do escopo deste trabalho analisar o conceito de Estado-

Nação como ideologia em si na Guerra dos Farrapos – ainda que fique claro que tal

conceito era presente e um dos motivadores da mesma. Não podemos esquecer que a

rebelião ocorre em um momento não apenas de consolidação (ou forging, como diz

Barman) do Estado-Nação brasileiro, mas sim de todos os países do Prata.

Barman considera que o processo iniciado pela chegada da família real no

Brasil (na verdade, iniciado quando tal plano é concebido) apenas se finaliza em

1852, com o fim das rebeliões que questionam a hegemonia do governo central no

Rio de Janeiro e lutam por maior autonomia provincial. Sendo a Guerra dos Farrapos

44 Ibidem. p. 16. 45 Ibidem. p. 31. 46 BARMAN, Roderick J. Brazil – The Forging of a Nation, 1798-1852. Stanford: Satanford university Press, 1988. 47 Idem. p. 1. e p. 2.

22

a mais longa dessas rebeliões, Barman analisa as razões ideológicas da mesma. Ao

contrário de grande parte da historiografia, Barman não se foca no aspecto liberal da

mesma – ele pouco cita o termo – mas sim em um conceito de ligação com as pátrias

locais (as províncias) em contraste com uma ligação o Reino do Brasil (criado em

1808 com a chegada da família real). O conflito com o governo central se daria

principalmente em relação a essa diferença de visão quanto ao papel das províncias e

do governo central. Os farrapos, assim como outros rebeldes, se viam como súditos

do Imperador, mas não sujeitos do governo do Rio de janeiro – que era considerado

apenas uma outra província em si. A relação das pátrias diversas deveria ser em

relação ao monarca, e não a um governo centralizador.

O que a historiografia brasileira chamaria de liberais exaltados (ou farrapos)

no período, Barman chama de nativistas. Assim como na Historia Geral da

Civilização Brasileira, a obra de Barman também cita o desgaste que a rebelião

causou no governo regencial liberal, devido a identificação ideológica do mesmo com

o movimento e sua falta de habilidade para lidar com o mesmo.

“In Rio Grande do Sul the new cabinet proved much less fortunate. Despite the Nativists´ belief that their common ideological outlook and former comradeship with the farrapos would anable then to arrange an honorable end to the rising, their emissary was used by the rebels simply to gain a breathing space”48

Ao se focar no conceito de autonomia das pátrias, o autor traz uma visão

diferenciada sobre a questão recorrente quanto ao republicanismo/federalismo dos

farrapos. Ele atribui o movimento inicial da revolução a uma tradição comum em

antigas monarquias, no período que antecede ao predomínio das Nações-Estados.

Seria uma tradição de protesto baseada na infalibilidade do Rei – sendo o monarca o

representante de Deus e grande pai de seu povo, qualquer problema ou injustiça no

governo não era decorrente de suas ações, mas sim de “maus” conselheiros. E tais

conselheiros poderiam ser depostos pelo povo, sem um ataque direto ao Rei. Tal

tradição teria um apelo bastante forte em um período como a regência onde, de fato, o

Imperador ainda não tinha relação com as ações do governo, devido a sua minoridade.

“…the risings were inspired by and conducted according to a political philosophy which antedated the concept of the nation. The purpose of the revolt was to defend the traditional, established right and liberty of the patrias…The resort to rebellon and the

48 Ibidem. p. 210.

23

accompanying replacement of local officials did not, according to this political tradition, imply any rejection or denial of obedience to the monarch…”49

Logo, o desejo da autonomia farrapo inicialmente se enquadrava sem

problemas no conceito monárquico do Império. Porém, tal tradição quase feudal de

rebelião não poderia ser aceito por um governo (a regência) que lutava para provar

sua legitimidade e vinha lidando há anos com espectro temível de desmembramento

do Império Brasileiro. Assim, a rebelião foi tratada duramente, a base das armas, sem

negociação com o movimento rebelde.

Tal situação criou um impasse, pois desistir da luta seria aceitar a legitimidade

de um governo central injusto (representado pela regência, não pelo Imperador, que

estava acima disso), sendo a outra alternativa uma guerra civil, cujo único resultado

favorável ao Rio Grande seria a vitória total contra o governo central Criou-se um

meio termo a essas duas opções, ao se proclamar uma Republica independente do

Império – porém com o intuito de ajudar a libertação das diversas outras províncias

brasileiras.

(Com a repressão) “…the rebels found themselves faced with a cruel dilemma: they had either to fight a bloody civil war to win total power at long odds and at the risk of social disorder – or to surrender unconditionally to an unrelenting government. The only means of escaping this dilemma was the dishonorable course of abandoning the cause and fleeing to safety…”50

Mais recentemente, outra leva de autores tem trabalhado com o tema. Sandra

Jatahy Pesavento também classifica a Revolução Farroupilha como um movimento

essencialmente liberal51, mas analisa a questão da ideologia por um viés materialista-

histórico, se valendo do conceito de ideologia segundo Gramsci.

“Toma-se aqui ideologia na acepção que deu Gramsci, ou seja, concepção de mundo que envolve uma norma de conduta adequada a ela. Portanto, para Gramsci não existe separação entre o pensar e o agir, entre a filosofia e o práxis político”52

Coerente com sua referência metodológica, Pesavento enquadra a Revolução

em um aspecto maior de um processo mundial de descolonização e expansão do

49 Ibidem. p. 215. 50 Ibidem. p. 216. 51 PESAVENTO, Sandra. op. cit. p. 16. 52 Idem. p. 7.

24

capitalismo, sendo a absorção das idéias liberais pelos farrapos resultado de uma

condição social-histórica específica.

“Entretanto, dentro do processo de descolonização em marcha e da expansão mundial do capitalismo, liberais eram tanto os portadores originais de tais idéias (a burguesia européia) quanto se diziam liberais os farroupilhas ou os artífices do Estado-Nacional centralizado e unitário contra os quais os rebeldes sulinos se insurgiam”

Segundo a autora, o liberalismo se mostra como algo de tom universal, porém

mascarando sua verdadeira função enquanto ideologia, que seria a preservação do

domínio burguês. Sendo assim, os farrapos ao aderirem ao liberalismo, não estavam

apenas copiando formas de pensar européias sem conexão com a realidade local. Pelo

contrário, as condições sociais e econômicas levaram ao surgimento de uma

mentalidade que ia ao encontro do liberalismo.

“Não é com a importação das idéias que os farrapos se tornaram liberais. O contexto histórico rio-grandense criou formas de agir e pensar liberais e as idéias européias só entraram e foram adotadas em função desta realidade”53.

Já o trabalho de Helga Iracema Landgraf Piciolo possui um viés bastante

diverso. Distante de uma análise materialista-histórica, ela não nega as influências

econômicas e sociais da revolta, mas enfatiza o lado ideológico da luta como

princípios claros, não apenas como mascaramento de motivos econômicos.

“A deposição do presidente Braga, marco simbólico do início da guerra dos Farrapos, revela que os ‘revolucionários’ tinham absorvido o ensinamento do liberalismo de que o uso da força para depois o governo era um direito que assistia ao cidadão como remédio para os males sociais. A federação, para os farrapos, era uma exigência porque constituía a solução para os males de que padecia a província e pela federação lutaram por cerca de nove anos. Portanto, a luta era por princípios bem definidos”54

A autora enquadra a questão da ideologia dos farrapos em um contexto mais

amplo da história brasileira, mais especificamente a construção do estado nacional no

período pós-independência. Nos lembrando que o termo farroupilha era usado na

década de 1820 como sinônimo de liberal exaltado55, ela também aceita o caráter

totalmente liberal do movimento.

53 ibidem. p. 22. 54 PICCOLO, Helga. op. cit. p. 52. 55 Idem. p. 46.

25

“O que estava em jogo era a liberdade que para o liberal se constituía em direito natural que cabia ao Estado defender. Segundo os liberais sul rio-grandenses, o sistema político imperial, até então, não assegurara essa liberdade. As reformas políticas eram, pois, necessárias para garanti-las”56

A revolução teria como objetivo uma reforma política feita a garantir os direitos

fundamentais pregados pela ideologia liberal. Sendo assim, a proclamação da

Republica foi um meio, não um fim, quando se viu que seria impossível conseguir tal

reforma dentro dos limites do Império.

“Frustradas as expectativas criadas pelas abdicação (do presidente da província” e pelo Ato Adicional, o governo central, acusado de manter uma política discriminatória em relação a província, seria desafiado com a proclamação da Republica em 12 de setembro de 1836. A separação foi uma estratégia, isto é, um meio e não um fim em si”57

No já citado trabalho de José Murilo de Carvalho, A Construção da Ordem & O

Teatro das Sombras58, o autor trata tangencialmente da Revolução Farroupilha,

contextualizando-a no ambiente de criação de um aparato estatal forte no começo do

Império. Para Murilo de Carvalho, a hegemonia Coimbrã que caracterizava a elite

imperial era menos presente no Rio Grande do Sul. Era esta unidade ideológica que

permitia uma certa unidade da recém independente América Portuguesa. Na falta da

mesma, a tendência era o separatismo.

“A importância política da concentração é iniludível. Boa parte do impulso autonomista, ou mesmo separatista, de províncias e regiões pode ser prevenida pela formação comum e pelos laços de amizade criados durante o período escolar...Os políticos que receberam sua formação no Brasil antes da Independência, sobretudo os padres, tendiam a se preocupar muito menos com a unidade do país e com o fortalecimento do poder central”59

A análise que Murilo de Carvalho faz da ideologia farroupilha e sua relação

com o estopim da rebelião é diretamente oposta à análise marxista de alguns autores.

Enquanto esta vê o discurso liberal farroupilha como mascarador de interesses

econômicos e de classe, Murilo vê o discurso autonomista como conseqüência da

56 Ibidem. p. 45. 57 ibidem. p. 56. 58 CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem & O Teatro das Sombras. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. 59 Idem. p. 62-63.

26

formação diferenciada da elite rio-grandense. O fator econômico - apesar de ser

relevante no estopim por causa das questões tarifárias – teria sido, na verdade, o fator

que limitou o separatismo gaúcho e permitiu sua permanência no grêmio brasileiro.

“O Rio Grande do Sul provavelmente não se separou da União apenas porque fortes laços econômicos a ela o ligavam. Sua rebelião deveu-se em parte a tentativa de modificar a política tarifária do governo central em relação ao charque. Apesar de sua especificidade em termos sociais, políticos e culturais em relação ao resto do país, o Rio Grande do Sul precisava do mercado imperial para seu produto básico, uma vez que não conseguia competir com os países do Prata. Não fosse isto, sua separação seria quase inevitável”60

Feita esta revisão bibliográfica sobre a historiografia do tema, é necessário

algumas observações gerais sobre a mesma. Podemos notar alguns pontos comuns

entre os vários autores, algumas unanimidades, alguns pontos polêmicos, além de

questões recorrentes.

O caráter “liberal” da revolta farroupilha é praticamente uma unanimidade na

historiografia – porém tal “liberalismo” raramente é definido ou conceituado, e

quando o é, normalmente é feito de forma passageira. Ora é apresentado como

“máscara” de aspectos econômicos, ora como “característica inerente” ao povo rio-

grandense. Não se especifica se esse liberalismo é ligado apenas a questões políticas,

sociais ou econômicas (ou a todas elas), nem quais pensadores liberais teriam

influenciado essa visão liberal. Um dos poucos autores a se preocupar mais em definir

o conceito de liberalismo farroupilha é Moacyr Flores, que o coloca como derivado do

Liberalismo Inglês, com certa influência norte-americana.

Outro termo recorrente é o “republicanismo” dos farrapos, mas nesse caso o

termo surge no meio de algumas questões perenes da historiografia, ligado ao

conceito de federação do movimento (separatista ou ligada a autonomia dentro de

uma união brasileira) e a relevância do republicanismo para o inicio do levante.

A maior parte dos autores trata o republicanismo farrapo como um reflexo da

impossibilidade de diálogo como Império e não como elemento ideológico

preponderante no início da rebelião – que iniciara como um movimento de

reinvindicações administrativas dentro do sistema monárquico. Quem mais se

distancia de tal posição é Varela, que defende o republicanismo como principal razão

da Guerra. Moacyr Flores defende uma posição mais eqüidistante das duas posições:

60 Ibidem. p. 201.

27

para ele o movimento farroupilha era dividido entre liberais monarquistas e liberais

republicanos. A rebelião não teria caráter republicano inicialmente, mas com o

desenrolar da guerra, a posição dos liberais republicanos cresceu e se fortaleceu, a tal

ponto que o caráter republicano e separatista da Revolução se tornou inquestionável.

Importante frisar que o republicanismo aqui surge basicamente como um ideal

de forma de governo – não como um conceito mais amplo de ética e costumes de

tradição republicana. Sobre esse aspecto, comentarei com mais detalhe a seguir.

Quanto às influências estrangeiras, as opiniões são diversas. Durante décadas,

a influência dos italianos, em especial dos conceitos da Jovem Itália, foi considerado

predominante no movimento farroupilha – curiosamente, nenhum autor até a

publicação da obra de Moacyr Flores comenta a incompatibilidade entre tais

conceitos democráticos (democratismo) e o liberalismo farrapo. A influência anglo-

saxã, na figura do Reino Unido, mas principalmente dos Estados Unidos, é citada por

uma boa parte dos autores, ainda que poucos elaborem a questão mais a fundo.

Varela, novamente, se destoa da historiografia geral, ao propor que a maior influência

ideológica dos farrapos não seria italiana, nem alemã, mas sim platina, mais

especificamente da Federação Argentina.

Tendo isso em mente, irei analisar com mais detalhe a bibliografia sobre

liberalismo e republicanismo no Brasil Império, dado a relevância de ambos os termos

sobre o assunto tratado.

28

4.3 LIBERALISMO

Como pode se ver, a definição do movimento como “liberal” é quase unânime

na historiografia sobre o tema – porém, é preciso ter em mente que “liberalismo” é um

termo de difícil definição, tendo significados diferentes dependendo do local e tempo

em que se encontra61. A história do liberalismo brasileiro no início do Império até o

Segundo Reinado (período onde se enquadra a Revolução Farroupilha) também é um

campo bastante polêmico, sendo que muitas vezes os autores possuem visões

totalmente dispares do que se trata o liberalismo e quais suas raízes e origens. Autoras

como Lúcia Maria Bastos P. Neves62 e Lucia Maria Paschoal Guimarães63 parecem

não conseguir diferenciar o liberalismo de tradição anglo-saxã, com o liberalismo

radical da Revolução Francesa (denominado democratismo segundo a tradição

ibérica64).

Em um trabalho mais coerente e elaborado, História do Liberalismo

Brasileiro65, Antonio Paim discorre sobre as origens e evolução do liberalismo

brasileiro. Segundo o autor, este tem suas origens basicamente a partir de influências

anglo-saxãs (inglesa e americana, principalmente), sendo a influência francesa

limitada ao liberalismo doutrinário, que nada mais era do que a versão francesa do

liberalismo inglês – e que nada tinha de semelhante com o liberalismo radical da

Revolução Francesa (também chamado na tradição portuguesa de democratismo).

Paim mostra a existência de uma corrente liberal luso-brasileira própria, cujos dois

maiores expoentes seriam Hipólito da Costa e Silvestre Pinheiro Ferreira66. Este

último seria responsável por aspectos peculiares e únicos do liberalismo luso-

brasileiro, diferenciando-o das tradições liberais estrangeiras, ao criar uma doutrina de

representação política independente de Burke e Stuart Mill. O liberalismo brasileiro –

especialmente após a marginalização dos elementos liberais exaltados – seria

principalmente ligado ao conceito de constitucionalidade, de Império da Lei, dando

61 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Cia das Letras, 1996. Skinner. p. 93. 62 NEVES, Lúcia Maria. Liberalismo Político no Brasil: Idéias, Representações e Prática. In: PEIXOTO, Antonio Carlos et al. Liberalismo no Brasil Imperial – Origens, Conceitos e Prática. Rio de Janeiro, Revan, 2001. 63 GUIMARÃES, Lúcia Maria. Liberalismo Moderado: Postulados Ideológicos e Práticas no Período Regencial. In: PEIXOTO, Antonio Carlos et al. Liberalismo no Brasil Imperial – Origens, Conceitos e Prática. Rio de Janeiro, Revan, 2001. 64 PAIM, Antonio. História do Liberalismo Brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998. p; 100; 65 ibidem 66 ibidem. p. 45-47, 52-53.

29

menor ênfase a outros aspectos fortes em outras tradições liberais, tais como a

representatividade.

“A denominação deste último não significa que encarne preferentemente o ponto de vista do sistema representativo. Na verdade, tanto conservadores como liberais encontravam-se nos marcos do liberalismo, isto é, daquela corrente de pensamento político que se bateu pela adoção de um Constituição e pela eliminação do poder absoluto do monarca, propugnando a sua divisão com uma parte da sociedade que, para tanto, elege representantes”67

A afirmação da existência de uma corrente liberal própria entra em contraste

com a visão de autores como Moacyr Flores e Sandra Pesavento – pois estes

consideram que as idéias liberais brasileiras são somente importadas, sem

originalidades, ainda que sofram adaptações e contextualizações locais.

“Os farroupilhas não estruturaram idéias políticas originais, elas se relacionam no ideologismo universal dos intelectuais e políticos do século XIX, justamente porque, no processo político brasileiro, havaí carência de teóricos por inexistência de universidade e imprensa no período colonial, com agravamento de que o Império derivava-se de Portugal, um Estado absolutista por tradição”68 (p16)

Para Paim, os farrapos seguiam a corrente dos liberais radicais do início do

Império, que confundiam o liberalismo com o democratismo69.Tendo sido excluídos

do debate político nos períodos da Regência e Segundo Reinado (segundo Paim, os

Partidos Conservador e Liberal que dominaram a política no Segundo Reinado eram

uma divisão dos liberais moderados do início do Império), tais liberais radicais teriam

evoluído para o separatismo puro.

“Embora a prática é que tivesse delimitado o agrupamento radical, ela distinguia-se dos moderados, antes de mais nada, pela maneira como encarava a doutrina liberal, confundindo-se com o que veio a ser denominado democratismo...O liberalismo pretendia o fracionamento do poder do monarca em nome da diversidade de interesses vigentes na sociedade, partindo da comprovação histórica de que a nobreza ou o funcionalismo burocrático não os representava...O democratismo partia de consideração diversa. Animava-o a convicção de que os tempos modernos conduziram os povos à sociedade racional. A educação faria de todos os homens seres morais. O obstáculo a semelhante proposta era a monarquia”70

67 Ibidem. p. 99. 68 FLORES, Moacyr. Op. Cit. p. 16. 69 Ibidem. .p.68. 79. 70 PAIM, Antonio. Op. Cit. p. 99-100.

30

Tal análise vai de encontro com grande parte da historiografia sobre a Guerra

dos Farrapos, onde quase sempre se mostra que os farroupilhas tinham uma visão

nada favorável à Revolução Francesa.

José Murilo de Carvalho, em Formação das Almas71, nos lembra que a

influência anglo-saxã se misturava a todo um cabedal misto de influências

estrangeiras na constituição institucional do Estado Brasileiro no início do Império,

criando uma situação bastante peculiar.

“O Império brasileiro realizara uma engenhosa combinação de elementos importados. Na organização política, inspirava-se no constitucionalismo inglês, via Benjamin Constant...em matéria administrativa...Portugal e da França. Por fim, até mesmo certas formulas anglo-americanas”72

O mesmo autor, no livro Construção da ordem & Teatro das Sombras73, se

posiciona de forma semelhante a Antonio Paim, ao ligar a influência americana e

inglesa aos liberais, enquanto os conservadores estariam mais ligados ao centralismo

francês. Mas é bom lembrar, que na visão de Murilo de Carvalho, todas essas

divergências se davam dentro de uma casta de dirigentes com mais afinidades

intelectuais do que divergências, fruto de uma formação semelhante (quase sempre

em Coimbra) e fortes laços empregadícios com o aparato estatal.

“...existiu no Brasil um grupo especial de políticos distintos do que se formou nos outros países da América latina. A especificidade desse grupo muito provavelmente não era devido à origem social. Ela se prendia à socialização e treinamento deliberadamente introduzidos para garantir determinada concepção de Estado e capacidade de governo. Houve divergências...Dividiam-se os conservadores, mais favoráveis à centralização do tipo francês, dos liberais entusiasmados com os modelos inglês e americano, mas sem se arriscarem ao salto republicano”74

O autor reforça a presença da influência Norte-Americana entre as demais, em

decorrência de falta de outros modelos que se assemelhassem ao Brasil. Os EUA, com

sua extensão territorial, sistema escravista e bem sucedida história republicana, era

um modelo muito mais atraente e civilizado do que as caóticas republicas latino-

americanas, cuja existência era decorrente de uma incapacidade de se manter a

71 CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 72 Idem. p. 23. 73 CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem & O Teatro das Sombras. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. 74 Idem. p. 124.

31

unidade do antigo Vice-Reino Espanhol – ou seja, uma constante lembrança do que

poderia ocorrer com o Brasil, cujo governo então lutava para manter a unidade da

antiga América Portuguesa.

“Uma primeira dificuldade em formular ideologia própria refere-se ainda ao ponto anterior. Não havia exemplo de país que oferecesse suficiente paralelismo em termos de características históricas a ponto de servir de referência mais concreta. Os países da América Latina não apresentavam as necessárias credenciais de civilização. Restavam os Estados Unidos, que possuíam em comum com o Brasil a escravidão mas que, mesmo assim, e antes de acabar com ela, se achavam firmemente orientados na rota do progresso e civilização. Esse país já tinha inspirado algumas das reformas descentralizantes da Regência e era o modelo predileto de alguns liberais como Tavares bastos”75

Em um ponto não muito elaborado por Paim, José Murilo de Carvalho

argumenta que a posição liberal no Brasil era muito mais relacionada ao liberalismo

político do que ao liberalismo econômico. Ainda que a obra de Adam Smith e a

“ciência econômica” (que basicamente se resumia a visão liberal, então) fossem

respeitadas, em geral tais “liberais” tomavam uma posição pragmática e utilitarista,

negando a aplicação de medidas liberais econômicas no Brasil, valendo-se como

desculpa certas peculiaridades do país, que o deixariam em posição de não

aplicabilidade de tais preceitos liberais.

“Em mais de uma ocasião tiveram os conselheiros oportunidade de manifestar-se a respeito da liberdade de industria e de comércio, em geral tomando a Inglaterra como referência. O quadro que as atas nos revelam é o de uns poucos adeptos fervorosos do liberalismo, como Maranguape e Souza Franco, de maioria que se mostra em princípio favorável, mas que a ele se opõe tendo em vista circunstâncias brasílicas, e de outros poucos que se atreviam a negar a validade científica aos princípios liberais”76

Esse é um ponto importante a ser frisado se pensarmos o liberalismo farrapo

dentro do contexto maior do liberalismo brasileiro – pois o liberalismo econômico não

está no topo das exigências farroupilhas. Inclusive algumas de suas posições são

claramente anti-liberais, como o desejo de taxar o charque estrangeiro que entra no

Brasil.

75 Ibidem. p. 344. 76 Ibidem. p. 337.

32

4.4 REPUBLICANISMO O segundo termo mais citado na historiografia é “republicanismo” – é o termo

que está diretamente ligado à polêmica surgida durante o centenário da Revolução,

entre Varela e Souza Doca. O termo está intrinsecamente ligado à questão da

interpretação que os farrapos davam ao conceito de Federação quando clamavam por

uma federação com as diversas províncias brasileiras. Para autores como Varela e

Moacy Flores, a idéia de federação dos farrapos era inseparável do conceito de

república77 e tal federação não estava ligada a um conceito de maior autonomia dentro

união brasileira78 - posição defendida por Doca e outros autores.

Tendo em vista a importância do conceito para o nosso estudo, vale a pena

tentar conceituar o que era entendido como republicanismo no início do Brasil

Império.

José Murilo de Carvalho, em seu livro Formação das Almas79, nos dá um

norte quanto ao republicanismo de então. Seu livro tem como tema principal o uso da

simbologia e imagens na tentativa de simbolizar o regime Republicano pós 1889,

porém seu segundo capítulo trata da tradição republicana no Brasil, sendo assim

diretamente ligado ao período que trabalhamos aqui.

O autor identifica duas tradições republicanas, separadas por dois conceitos

diferentes de liberdade, uma seria uma liberdade dos antigos, ligada a liberdade do

homem como homem público, pertencente a uma comunidade. A outra seria a

liberdade do homem moderno, uma liberdade do homem privado que abriria mão de

sua posição de homem público a partir de um sistema representativo. O principal

representante da liberdade moderna seria os Estados Unidos da América80 - que seria

uma das principais influências no republicanismo brasileiro antes da predominância

do positivismo. Já o republicanismo francês da Revolução seria um representante da

liberdade dos antigos.

“...o termidoriano Constant, inimigo dos jacobinos mas também de Napoleão, atribuía os males da Revolução de 1789 a influência de filósofos como Mably e Rousseau, defensores de um tipo de liberdade que não mais se adaptaria aos tempos modernos”81

77 FLORES, Moacyr. Op. Cit. p. 120. 78 Idem. p. 126. 79 CARVALHO, José Murilo de. Op. Cit. 80 Idem. p. 18. 81 Idem. p. 17.

33

Uma forte influência norte-americana no republicanismo de então entra em

sintonia com uma parte da historiografia revisada sobre os farrapos. O comentário

sobre as diferentes concepções de liberdade ligadas ao republicanismo também é

importante, pois nos remete a um aspecto que não é tratado na historiografia sobre a

Revolução Farroupilha (ou mesmo sobre o Brasil Imperial em geral): o

republicanismo como algo maior do que uma simples forma de governo, mas sim uma

visão de mundo, um estilo de vida, ligado a uma certa concepção de liberdade e do

mundo.

Gordon S. Wood, em sua obra sobre a independência americana, The

Radicalism of the American Revolution82, identifica o republicanismo como a

ideologia da ilustração83, um estilo de vida ligado a valores que mais tarde se

entrecruzaram com conceitos liberais.

“Certainly it stood for something other than a set of political institutions based on popular election. IN fact, republicanism was not to be reduced to a mere form of government at all; instead it was what Franco Venturi has called a “a form of life”, ideal, and values entirely compatible with monarchical institutions in the past and became increasingly and ideal which could exist in a monarchy”84 (p96)

Wood diz que o republicanismo não substituiu a monarquia absolutista no

século XVIII, mas a corroeu internamente, debilitando-a e mudando-a internamente,

de forma que se mesclou com aquela que em algumas situações, tal qual na Inglaterra,

onde monarquia e republicanismo se tornaram indistinguíveis85. O autor cita autores

como David Hume e Montesquieu para corroborar suas afirmações – o primeiro

também citava a mescla entre Monarquia e Republica; o segundo dizia que não

existiam mais monarquias puras na Europa e a Inglaterra seria uma Republica

fantasiada de Monarquia. O livro de Wood demonstra como esta tradição republicana

se mesclou aos conceitos liberais criando algo único e revolucionário no processo de

independência e consolidação da mesma nos EUA.

Em relação ao Brasil, estas afirmações são relevantes em dois pontos. Primeiro,

a noção de que o republicanismo pode existir dentro da Monarquia nos permite uma

visão mais ampla da situação política dentro do contexto da Regência e inicio do

Segundo Reinado. O próprio regente Feijó considerava que o Brasil era uma 82 WOOD, Gordon. The Radicalism of the American Revolution. New York: Vintage Books, 1992. 83 Idem. p. 100. 84 Ibidem. p. 96. 85 Ibidem. p. 98.

34

monarquia apenas em nome, tendo na prática o mesmo sistema e instituições dos

EUA. Roderick Barman, ao citar o irmão de José Bonifácio, Antônio Carlos, também

nos dá uma mostra dessa proximidade e/ou integração possível entre republicanismo

dentro da monarquia.

“A brazilian of liberal views could maintain in 1817 the necessity of being republican and can today be a monarchist…the republican, being able to obtain from monarchy what he had sought from a federal republic, no surprisingly changes sides”86

Este insight é importante em termos de compreensão do movimento farroupilha,

pois grande parte da historiografia se debate sobre como um movimento de

contestação dentro do sistema monárquico se torna de repente um movimento

republicano, declarando independência e elegendo como presidente um conhecido

monarquista. Se aceitarmos a posição do republicanismo como mais do que um

sistema de governo, mas também como um sistema de valores, a compreensão dos

acontecimentos fica mais clara, pois a decisão de se proclamar uma Republica como

resposta a intransigência Imperial se torna algo mais coerente e menos radicalmente

inesperado.

O segundo ponto é o republicanismo como um estilo de vida, um sistema de

valores. Baseado em um conceito de liberdade como não-dominação, esse

republicanismo pregava a exigência de um cidadão republicano ativo e virtuoso – e

livre - para a existência de uma sociedade bem sucedida.

“Liberty was realized when the citizens were virtuous – that is, willing to sacrifice their

private interests for the sake of the community, including serving in public office

without pecuniary rewards…This virtue could be found only in a republic of equal,

active and independent citizens. To be completely virtuous citizens, men – never

women, because it was assumed they were never independent – had tobe free from

dependence and from petty interests of the marketplace. Any loss of independence and

virtue was corruption”87

É fácil pensar como uma visão dessa poderia ter apelo em uma Província cuja

história se mistura à luta militar com os espanhóis e cujas batalhas eram travadas não

por um exército profissional, mas sim por uma milícia cidadã, a Guarda Nacional.

Bom notar que essa ênfase no republicano não-egoísta contrasta com uma visão

86 BARMAN, Roderick J. Op. Cit. p. 99. 87 WOOD, Gordon. Op. Cit. p. 104.

35

puramente liberal, onde cada indivíduo agindo de forma egoísta leva indiretamente a

um bem maior a nação como um todo.

Mas temos subsídios para afirmar que tal “tradição republicana” teria tido

influência no ideário político dos farrapos? Como veremos a seguir, minha análise do

periódico O POVO indica que possivelmente sim. Mas nos atendo a historiografia,

podemos justapor as recorrentes afirmações da influência inglesa e norte-americana

com a análise feita por Gordon Wood (além de outros autores, como Pocock88) sobre

a importância desta tradição nestes dois países. Sendo assim, ao utilizarem tais países

como modelos, os farrapos estariam emulando esta tradição, cientes ou não.

Ainda que não existam trabalhos sobre esta tradição republicana quanto aos

farrapos, existe algo relacionado a mesma na situação política no início do Império: a

obra de Renato Lopes Leite, Republicanos e Libertários89. Em seu estudo sobre João

Soares Lisboa, editor do jornal Correio do Rio de Janeiro no período pré e pós-

independência, o autor expõe a influência desta tradição republicana no

republicanismo brasileiro na época90. Tendo isto em mente, é possível extrapolar,

ainda que com bastante cuidado, a existência do mesmo tipo de tradição influenciando

o discurso farroupilha.

88 POCOCK, John G. A. The Machiavellian Moment. Princeton: Princeton University Press, 2003 89 LEITE, Renato Lopes. Republicanos e Libertários – Pensadores radicais no Rio de Janeiro (1822). Rio de Janeiro: Civilização Brasileiro, 2000. 90 Ibidem. p. 305.

36

5 ESTUDO DE CASO: O POVO

Feita a revisão bibliográfica, agora podemos contrastar as informações

historiográficas com uma fonte primária, em um estudo de caso. Como já dito, minhas

fontes foram 160 números do periódico farroupilha O Povo, jornal surgido

inicialmente como veículo de doutrinação ideológica que, com o decorrer do tempo,

se tornou uma espécie de “Diário Oficial” da República Rio-Grandense. Cada um dos

jornais foi digitalizado pessoalmente pelo autor desta monografia, no museu Hipólito

José da Costa, em Porto Alegre.

De todos os periódicos editados na região – farroupilhas ou legalistas - durante

o período da Guerra, O Povo é o mais citado na historiografia. Logo, o contato e

análise direta com o periódico nos dá uma base muito mais sólida para interpretar e

avaliar os trabalhos históricos sobre o tema – seja concordando ou discordando, mas

agora com uma base muito mais forte de argumentação.

Ao ler o jornal superficialmente, é fácil perceber por que uma geração inteira

de estudiosos aceitou a hipótese de que a influência ideológica dos carbonários e da

Jovem Itália havia sido determinante no movimento. Pois, já no primeiro número,

podemos ler uma citação da Jovem Itália no cabeçalho - citação que acompanharia o

jornal até seu último número:

“O poder que dirige a revolução tem que preparar os ânimos dos Cidadãos aos sentimentos de fraternidade, modéstia e igualdade e desinteressado e ardente amor a Pátria”91

O editorial inicial também diz que os ideais da Jovem Itália iriam nortear o

periódico. Segue-se um breve texto sobre a importância de se inculcar valores

“democráticos” no povo durante uma revolução, preparando-o para a vida de

liberdade pós-revolução. O jornalista é colocado como alguém cuja verdadeira função

é educar92.

Lendo o primeiro número, é fácil concluir que a Jovem Itália era um

referencial importante aos farrapos. Porém isso não passa de uma ilusão, pois a leitura

dos números subseqüentes mostra que as referências às mesmas começam a diminuir,

até que desaparecem por completo, antes mesmo do término do primeiro ano de

publicação do jornal. Tal observação se encaixa bem com a posição de Moacyr 91 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 1. 92 idem

37

Flores, que nega qualquer relevância as influências italianas93. Segundo este autor, o

pouco que havia de ideologia da Jovem Itália no periódico era fruto individual do

italiano Rosseti, que era um dos editores O Povo. Como tais idéias não eram aceitas

pelos líderes do movimento, Rosseti acabou tendo desentendimentos com os mesmos

e foi afastado do jornal – o que explica o desaparecimento de qualquer referência a

Jovem Itália posteriormente (com exceção da citação no cabeçalho).

Quanto ao liberalismo – citado com unanimidade na historiografia como a

ideologia dos farrapos – ele é raramente citado por nome e também é raro encontrar

situações onde os Rio-Grandenses se classifiquem como liberais. O que é inesperado,

considerado a ênfase no liberalismo dos farrapos existente na historiografia.

Isso não quer dizer que tais estudos estejam errados – pois, se por um lado o

liberalismo não surge nominalmente com muita freqüência, por outro algumas de suas

instituições intrínsecas são usadas até a exaustão, em especial os conceitos de Império

da Lei e o Direito a Propriedade.

A descrição do Império como um governo tirano que desrespeita as leis é

recorrente durante quase todos os números do jornal. Por exemplo, já no primeiro

número, temos uma crônica com tom indignado, protestando contra o tratamento

indevido dado pelo Império a um dos prisioneiros farrapos, Francisco Xavier Ferreira

(de quase setenta anos). Interessante notar que grande parte da indignação se deve não

apenas aos maus tratos, mas pelo fato da prisão e seu processo serem

inconstitucionais, como pode se ver nesta passagem:

“Surpreendido depois em Porto Alegre pela de reação de 15 de julho de 1836, com a qual a perfídia desafiou-nos, Francisco Xavier Ferreira nos foi violentamente arrancado. Subitamente conduzido para a Capital do Império, onde - contra o disposto das leis pátrias, que mandam instruir processo no lugar onde foi cometido o crime – é aí julgado. Mas, se lhe formasse este processo, e fosse condenado, nos poderíamos ter lastimado suas sorte, porém teríamos tido que nos submeter ao rigor das leis – ao contrário, como não era nem processável, nem condenável, foi - como seus outros companheiros de infortúnio daquela época infausta, esquecido em uma fétida cadeia, onde gemeu longamente, até não podendo nossos inimigos violar mais abertamente os mais invioláveis predicados da justiça, obteve então ordem de Hábeas Corpus.”94

A reafirmação da defesa da propriedade durante a Guerra é uma das

preocupações perenes dos editores do jornal – é claro o intuito de mostrar a Republica

Rio-Grandense como um governo que respeita os direitos universais do homem como

93 FLORES, Moacyr. op. cit. p. 49. 94 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 1.

38

dita o liberalismo, em especial a propriedade. Por exemplo, na edição 38 do jornal, o

presidente Bento Gonçalves, ao anunciar a mudança da capital para Cassapava, tenta

manter a calma dos cidadãos da república ao reafirmar seu compromisso com estes

valores.

“Vós atrevesses por uma crise revolucionária, mas vosso asilo nunca foi violado; a liberdade, a segurança individual e vossas propriedades constantemente têm sido protegidas e respeitadas, e continuarão a sê-lo enquanto lhe prestardes vossa espontânea cooperação”95

O papel de defensores da propriedade dos rio-grandenses é constantemente

comparado com as ações do Império Brasileiro, como já dito, sempre caracterizado

como não respeitador da propriedade. Tais desrespeitos são colocados como um dos

motivos pelo qual os rio-grandenses foram “obrigados” se desligarem da união

brasileira. Tais desrespeitos teriam raízes ainda no período colonial, continuando por

décadas durante o Império. Por exemplo, na edição 10 do periódico, temos um longo

artigo onde se reclama do desrespeito ao direito a propriedade, que era praticado pelo

governo de Portugal e depois pelo Governo do Brasil, que durante as guerras contra as

nações orientais desrespeitava o direito de propriedade dos rio-grandenses96.

Em varias das edições entre as 160 analisadas, podemos encontrar este tipo de

retórica liberal – porém, como dito, os termos liberalismo e liberal são raramente

utilizados. Em contraste, temos o uso recorrente e abundante dos termos republica e

republicanismo. É curioso notar como muitas características liberais, são classificadas

no periódico como exemplos de virtudes de um verdadeiro republicano, como nesta

passagem na edição 10, onde a defesa da propriedade é colocada como obrigação de

um republicano.

“Todos os que se vangloriarem do heróico nome de homens livres, ou republicanos, devem unanimente atacar e perseguir todo o governo que chegue a violar o direito a propriedade de seus cidadãos e dos cidadãos das nações neutras ou amigas”97

Mais à frente, na mesma edição, o texto retorna a mesma argumentação:

95 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 38. 96 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 10. 97 idem

39

“Republicano é sinônimo de homem livre; homem livre é aquele que sabe respeitar a propriedade alheia, e todos os direitos de seus semelhantes e quer que sua propriedade e os seus direitos sejam garantidos...”98

A ode a Republica como a panacéia para todos os males é uma constante

durante toda a publicação do periódico. Na edição 155, em uma proclamação em

comemoração aos 5 anos da Revolução, a grande preocupação é reafirmar a posição

republicana do movimento. A enaltação da Republica continua nos números

seguintes, como podemos notar nesta passagem da edição 156:

“E o futuro, o reino de Deus, o reino da Igualdade pregado pelo Cristianismo é a Republica...”99

É neste contexto que é relevante nos remetermos ao conceito de tradição

republicana – como citado na revisão bibliográfica - como algo além de uma simples

forma de governo, mas sim como um conjunto de valores, um estilo de vida, conceito

esses elaborado nas obras de Wood100 e Pocock101. Lembrando também a obra de

Renato Lopes Leite, Republicanos e Libertários, nela o autor recupera a importância e

penetração de uma certa tradição republicana que teria sido bastante influente no

período da independência brasileira. Mas tal tradição, em geral, foi ignorada na

historiografia sobre o tema102. Avaliando a bibliografia lida e a posterior análise das

fontes, posso dizer que algo semelhante ocorre quanto à historiografia sobre os

farrapos. As abundantes referências a republica e/ou republicanismo são

simplesmente consideradas provenientes da vertente republicana do liberalismo, sem

se ater a possíveis diferenças ideológicas. Curiosamente, Moacyr Flores, um dos mais

proeminentes estudiosos do tema, chegou a esbarrar nesta questão, quando diz que:

“A forma republicana é muito mais exemplificada nos jornais farroupilhas com Roma de que com os Estados Unidos da América do Norte, justamente porque os rio-grandenses, como os brasileiros, possuíam uma cultura latina.”103

Isso vai ao encontro do que Renato Lopes Leite no diz sobre a tradição

republicana, ao citar a explicação de Philip Pettit sobre o assunto:

98 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 120. 99 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 156. 100 WOOD, Gordon. Op. Cit.. 101 POCOCK, John G. A. Op. Cit. 102 LEITE, Renato Lopes. op. cit. p. 52. 103FLORES, Moacyr. op. cit. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 91.

40

“Ao falar de republicanismo, me refiro à larga tradição republicana – e em realidade, à ampla tradição republicana – que chegou a converter-se em foco principal de interesse de uma recente escola de historiografia acadêmica. Essa tradição teve suas origens em Roma clássica, e está associada em particular ao nome de Cícero.”104

Apesar de Moacyr Flores ter esbarrado nesta ligação, ele não deu importância

a mesma, classificou tais influências simplesmente como parte da ideologia dos

liberais republicanos. Em nossa análise do periódico O Povo encontramos uma

situação diferente do que afirma Flores: neste jornal há muito mais referências aos

EUA do que a Roma, e o mesmo é constantemente usado como exemplo a ser seguido

pelos Rio Grandenses.

Talvez esse seja o elo perdido entre esta tradição republicana e o movimento

farroupilha. Se considerarmos os trabalhos de autores como Gordon S. Wood, o peso

dessa tradição na independência americana é extremamente relevante – é exatamente

este período da história americana, o período da independência, o mais citado pelos

farroupilhas em O POVO.

Um editorial na edição 40, por exemplo, diz que todas as independências nas

Américas começaram em 1776 e são devedoras da independência Americana. O

americanos do sul seguiram bem o exemplo de seus irmãos no norte, mas erraram ao

aceitar governos que nada tinham de comum com a realidade americana e sim com a

realidade européia. O Brasil, ao aceitar Dom Pedro I, seria o melhor exemplo disso105.

E, ao se colocarem como aqueles que trarão a liberdade ao resto das províncias

brasileiras (outro tema comum do periódico), eles citam o exemplo dos americanos e

como eles estabeleceram um ideal a ser seguido:

“...e sem ir contra a vontade de Deus não poderíamos nos abandonar em uma insensata alegria no meio dos clamores da Humanidade, nem gozarmos em uma apática tranqüilidade dos bens que Ele nos compartia sem compadecer-nos das misérias dos outros. Seus são nossos males. Devemos unir-nos à eles para cortá-los. Washington e Franklin proclamando a Independência Americana cometeram-nos a esta obrigação”106

O exemplo americano é colocado em primeiríssimo plano, a ponto de

afirmarem que toda a América independente é devedora dos Estados Unidos:

104 Philip Pettit. Republicanismo: uma teoria sobre la ibertad y el gobierno. Barcelona: Paidós, 1999. p. 39. apud LEITE, Renato Lopes. op. cit. p. 299. 105 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 40. 106 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 40.

41

“O 1776 traçava o programa dos acontecimentos do século XIX...se a América Espanhola em 1810 e o Brasil em 1823 proclamavam sua independência, são devedores de tanta audácia à revolução Norte-Americana de quarenta anos antes.”107

Mas é bom notar que a influência americana é sempre citada em termos de

influência republicana, não liberal – o que reforça a possível ponte da tradição

republicana através da influência norte-americana. Logo, quando o periódico, em sua

edição 70, publica um artigo do Aurora Fluminense elogiando Washington, eles o

fazem colocando-o como exemplo de republicano108. O mesmo pode ser notado na

edição 56, onde quase todo o jornal é preenchido com um longo artigo biográfico

sobre o mesmo Washington. Também podemos citar uma passagem da edição 156,

onde fica claro o comprometimento dos farrapos com a idéia republicana:

“O espírito Americano tende evidentemente À Republica. Neste vasto continente povoado de Governos Democráticos um Império não é mais que uma anomalia incompatível com as luzes do século e que há de finalmente desaparecer”.

A influência republicana se relaciona a outra questão perene da historiografia:

a definição do federalismo farroupilha – tema que foi a principal causa da polêmica

entre Varela e Souza Doca e cuja relevância continua presente em trabalhos atuais.

Varela é enfático ao dizer que o conceito de Federação farroupilha não se inseria em

um conceito de maior autonomia em uma União e nem mesmo de exclusividade com

as províncias brasileiras. Moacyr Flores é um pouco menos radical, mas também

enfatiza o aspecto autônomo da Republica Rio Grandense e independente de uma

pretensão de União brasileira. O que podemos ler nas edições do O POVO sobre o

assunto?

O primeiro aspecto que salta os olhos é - ao contrário da tese destes dois

historiadores e se aproximando mais da análise de Souza Doca, Spalding e outros - a

ênfase dos farroupilhas em se proclamarem como irmãos dos brasileiros e, mais do

que isso, salvadores do Brasil através da Republica e da Federação. Esta

brasilianidade do movimento se revela de várias formas. Por exemplo, na edição 2, é

feito um paralelo da Revolução Farroupilha e do Revolta Baiana do ano anterior – e

os rio-grandenses se comprometem a socorrer a província irmã, caos necessário.

107 idem 108 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 70.

42

“E nos estamos persuadidos que os nosso irmãos da Bahia não tardarão a vingar as barbáries e os ultrajes experimentados por parte da infame facção lusitana que assola a terra de Vera Cruz, e fazemos votos pelo triunfo de suas armas, assegurando lhes que voaremos em seu socorro, logo que os novos acontecimentos que se preparam nos concedam assim o cumprir”109

Os farrapos se colocam não apenas como um movimento contra o governo

Imperial, mas sim como um exemplo que serve de modelo para o resto do Brasil,

como neste editorial da edição 6, em comemoração a 3 anos de Republica:

“O 20 de setembro em 1835 raiou funesto ao Império e marcou na história da América Brasileir uma nova era...Os efeitos morais e históricos desta assinalada vitória cedo se farão sentir sobre toda a America Brasileira...A Revolução assenta-se hoje sobre bases inabaláveis. Não podemos recear que ela seja nunca subjugada. Seu progresso é infalível; e nós não tardaremos a desfrutar dos sacrifícios que sobre o altar da pátria cada um de nós tem feito; mas não esquecemos que o princípio vital da República é a virtude, que neste dia cinco milhões de brasileiros celebram a nova era e pensam em nós com em quem estão fundadas suas esperanças.”110

Mas a posição dos rio-grandenses quanto ao Brasil não se limita a exemplo

retórico. Pelo menos no discurso, os Farroupilhas colocam como obrigação pessoal a

libertação do Brasil. Um exemplo disto é a edição 19, onde, após se comentar notícias

sobre o Rio de Janeiro, é feito o seguinte chamado aos militares rio-grandenses:

“Distintos militares e cidadões soldados da república, a vós me dirijo agora!...um pouco mais de paciência...a nossa causa assim o exige, e assim exige também a causa do Brasil, cuja liberdade perdida temos de reaver, tarefa magnânima e mais digna de vós!!!”111

Tal retórica continua até o fim do periódico. Em uma das últimas edições, a

156, podemos ver a colocação da Republica Rio Grandense como aquela que iniciou a

revolução “brasileira”.

“O Rio Grande porém é o rochedo contra o qual vieram a embotar-se todos os seus esforços. O Rio-Grande a quem coube a glória de iniciar a revolução brasileira e de continuar a derrota do inimigo das liberdades comuns...”112

109 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 2. 110 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 6. 111 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 19. 112 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 156.

43

Tais citações reforçam um caráter brasileiro no conceito de Federação

farroupilha – mas seria esse um aspecto limitador de uma possível federação com as

repúblicas do prata? A posição de Varela e Moacyr Flores nos indica que tal união

seria possível – no caso de Varela, tal união seria um dos objetivos da Revolução.

Porém o discurso oficial apresentado em O POVO, difere dessa leitura. Por exemplo,

já no número 3, temos um Manifesto de Bento Gonçalves onde ele justifica a

separação da província enumerando cada um dos desmandos do governo Imperial em

relação ao Rio Grande do Sul, com ênfase na acusação falsa de que a Província

pretendia se separar e se unir aos Orientais – acusação classificada de “delírio” pelo

presidente113. Já na edição 58, o mesmo Bento Gonçalves reafirma a seus cidadãos de

a Republica não se aliará às repúblicas da região, a não ser que o Império faça o

mesmo.

“Cidadãos republicanos: a expulsão do nosso território da vil escravatura imperialista será obra toda vossa; e somente serão chamados nossos amigos quando algum vil desertor da causa americana entrar como aliado do coroado tirano brasileiro na luta que contra ele sustentamos.”114

A última questão sobre o federalismo farroupilha, e que se liga diretamente a

influência norte-americana, é se o mesmo tinha um sentido de maior autonomia

dentro de uma União, tal como nos Estados Unidos, ou um sentido separatista. Um

momento interessante para a análise da questão ocorre quando os farroupilhas,

condizentes com seu discurso de libertadores brasileiros, invadem Santa Catarina e

proclamam uma nova Republica. Assim, na edição 54, temos a publicação de uma

proclamação de Bento Gonçalves ao povo de Lages, na nova Republica:

“Com vós outros me congratulo pela heróica resolução, que tomastes aderindo a causa sagrada da Republica Rio Grandense e incorporando vós de vosso próprio motu a esta grande e ilustre família, que como irmãos vos recebe entre seus braços. Fiel aos princípios de equidade e de universal Justiça, estranha a toda idéia de ambição e de conquista a Republica, que vos receve com entusiasmo com o número de seus filhos, que une o vosso ao seu território formando com ele a mais sólida e compacta integridade”115

O mais interessante aqui é a ênfase na união entre as duas republicas e, mais

relevante ainda, a idéia de que ao se transformar em Republica, Santa Catarina passou

113 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 3. 114 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 58. 115 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 54.

44

a se unir territorialmente ao Rio Grande do Sul. Se tal trecho ainda deixa alguma

dúvida quanto ao conceito de Federação como União nos moldes norte-americanos,

uma nova proclamação de Bento Gonçalves tira essas dúvidas, na edição 94. Nela se

afirma que Santa Catarina agora faz parte do Rio Grande do Sul.

“Sim, todo o continente de Santa Catarina já forma parte integrante da República Rio Grandense; aquele povo brioso, reassumindo seus direitos soberanos e ligado pelo estreito laço federal aos rio-grandenses e mui pronto o pendão da liberdade brilhará gloriosa nas ameias da cidade de Desterro.”116

Note como o “laço federal” é usado no sentido de União. Ao se proclamarem

como salvadores do Brasil e pretenderem uma Federação Brasileira, tais citações

remetem mais a uma união como a norte-americana e não a federação solta e abstrata

como a proposta na tese de Varela.

116 O POVO. Piratini/Cassapava: Typographia Republicana Rio-Grandense, n. 94.

45

6 CONCLUSÕES

A presente monografia se dividiu em duas partes. Na primeira, foi realizada

uma revisão bibliográfica em relação ao discurso político dos farrapos. Para tanto

foram pesquisadas obras voltadas diretamente a Guerra dos Farrapos, obras sobre o

Brasil Império e outras correlatas.

Tal análise permitiu se notar certos consensos, disensos e polêmicas sobre o

assunto na historiografia. Por exemplo, o liberalismo é citado unanimente como a

principal característica ideológica dos farroupilhas – ainda que o significado temporal

do conceito liberalismo seja mal definido. Na verdade, apenas um dos autores

pesquisados, Moacyr Flores, tem uma real preocupação em definir o termo.

O republicanismo também é recorrente na historiografia, mas com

interpretações variadas. A mais freqüente, defendida por um bom número de autores,

defende o republicanismo farrapo como decorrente da intransigência imperial e não

como algo inato ao movimento. Em posição diametralmente oposta, se encontra a tese

de Varela, que coloca o republicanismo como causa primal do movimento. Moacyr

Flores adota um meio-termo, defendendo a tese de que o movimento era dividido

entre liberais monárquicos e liberais republicanos. A partir da falta de possibilidade

de diálogo com o Império, os republicanos passaram a ter predomínio entre os

revoltosos.

A questão do republicanismo farrapo é quase sempre relacionada à questão do

conceito de federação defendido pelos revoltosos – se ligado a uma maior autonomia

dentro de uma União como a norte-americana ou se ligado a um separatismo. Vale

notar que a historiografia costuma tratar republicanismo basicamente como uma

forma de governo. Neste trabalho, tentei contrapor esta noção, citando estudos sobre a

tradição republicana como um conjunto de valores, um estilo de vida. E como tal

tradição foi importante na independência norte-americana – que por sua vez foi uma

importante influência ideológica no movimento dos farroupilhas.

Na segunda parte do trabalho, foi realizado um estudo de caso, comparando a

revisão bibliográfica feita com uma fonte primária – mais precisamente, 160 números

do periódico O Povo. A analise do periódico nos leva a crer que, apesar do

liberalismo claro em várias passagens, há uma ênfase muito mais forte e explicita no

discurso Farroupilha quanto ao republicanismo. Mesmo a influência norte-americana,

citada por muitos autores e reforçada em nossa análise, se mostra mais relacionada à

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tradição republicana do que ao liberalismo. O liberalismo é claro pela ênfase nas

“Leis da humanidade” e direitos naturais, porém tal influência é apagada se

comparada com a ênfase dado ao republicanismo no periódico.

Nota-se isso claramente pelas raríssimas ocorrências do termo liberal e/ou

liberalismo enquanto, por outro lado, os conceitos de republica e sistema republicano

são citados inúmeras vezes. O termo “republicano” também é o mais utilizado para se

definir não somente o cidadão Rio-Grandense, mas como todo homem de bem e

valores.

Podemos ligar isto há uma tradição republicana existente no país desde antes

do processo da independência – e fundamental nesta – que poderia ter se mantido até

a eclosão da Revolução Farroupilha. Esta tradição não se resume a uma simples forma

de governo, mas sim a um sistema de valores, a um estilo de vida, baseado em um

certo conceito de liberdade e em um cidadão republicano ativo e valoroso.

Considerando que tal tradição republicana teve papel preponderante na

Independência Americana e esta última é constantemente utilizada pelos farrapos

como exemplo a ser seguido, podemos considerar uma possível difusão indireta deste

ideal republicano para os farrapos, através do modelo norte-americano. Pois a análise

do periódico mostra que a influência norte-americana em diversas facetas, como no

conceito de federalismo farroupilha, emulando uma união como a norte-americana.

Isso abre o caminho para respostas mais satisfatórias a algumas das questões

perenes na historiografia sobre a Revolução Farroupilha, tais como:

1) Por que a Revolução passou de protesto federalista-constitucional para uma

secessão republicana? E como se explica a atuação de lideres farrapos

sabendo-se que muitos deles eram monarquista, como o próprio Presidente

Bento Gonçalves?

Ao se aceitar a teoria da tradição republicana como influência, essa questão deixa

de ter sua razão de ser, pois nesta tradição a Republica não é incompatível com a

monarquia a princípio. O que importa aqui é a liberdade como não-domínio, uma fuga

da arbitrariedade possibilitada pelas leis e autoridade. Sendo assim, é possível a

republica em uma monarquia – desde que exista um governo constitucional.

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2) A aparente incoerência dos farrapos quanto a aspectos do ideário liberal, em

especial no que tange a economia – por exemplo, a defesa de medidas

protecionistas contra o charque estrangeiro.

Se aceitarmos que a influência republicana é mais determinante, ou pelo menos

equivalente, do que a liberal, o posicionamento dos farrapos passa a ser mais coerente,

pois podemos interpretar as incoerências com a retórica liberal como pontos onde a

influência republicana é mais marcante. Inclusive alguns autores demonstram a

existência de pontos em comum nas duas doutrinas - era comum alguns liberais

adotarem a tradição republicana também117. Esse poderia muito bem ser o caso dos

líderes farrapos.

Por fim, vale lembrar que foge do escopo deste trabalho querer questionar e/ou

revisar toda a historiografia sobre a ideologia farroupilha. O que este estudo de caso

permite é certos apontamentos e certos questionamentos sobre algumas posições

consagradas que podem ser tema de estudos mais aprofundados daqui para frente.

Para isso seria necessária uma pesquisa mais abrangente, comparando diferentes

periódicos farroupilhas, periódicos imperiais, além de outras fontes relevantes.

117 LEITE, Renato Lopes. op. cit. p. 304-305.

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BIBLIOGRAFIA

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