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A Nova Escola Penal: Direito, controle social e exclusão no Brasil (1870-1920)
Carlos Martins Junior (DHI/ CPAQ/ UFMS)
É singular que, fazendo eles a República, não a fizeram de tal forma liberal que
pudessem dar lugar de professor a um negro. É singular essa República. (Lima
Barreto, 1953: 45)
Apresentação
A virada do século XIX para o século XX constituiu um momento de transformações
estruturais para o Brasil. A substituição da mão-de-obra escravista pela assalariada (gerando a
necessidade de normatizar o mercado de trabalho livre e de integrar principalmente o ex-
cativo a uma sociedade que começava a se conceber como uma comunidade de
trabalhadores), o advento da República (que teoricamente alargava a possibilidade de
participação, no jogo político, daqueles que não eram considerados parceiros dos grupos
sociais dominantes) e a expansão das atividades econômicas (as quais se refletiam no
crescimento físico e populacional dos centros urbanos) aumentaram a preocupação das
autoridades públicas e reformadores sociais em relação ao estado de “anarquia social” que
parecia ameaçar o país, o que, consequentemente, levou ao refinamento de mecanismos de
controle social, pautados na permanente vigilância e policiamento do cotidiano do liberto e do
trabalhador pobre em geral.
Nesse contexto marcado por um forte sentimento de insegurança, e no bojo do debate mais
amplo suscitado pela formulação, em 1876, da idéia do criminoso nato pelo médico-
antropólogo italiano Cesare Lombroso1, o Direito Penal brasileiro passaria por profunda
revisão conduzida, sobretudo, por um grupo de professores e magistrados vinculados à
Faculdade de Direito do Recife, entre os quais se destacaram os doutores João Vieira da
Araújo, João Marcolino Fragoso e Francisco José Viveiros de Castro, considerados os
responsáveis pela introdução e a divulgação da Nova Escola Penal no Brasil2.
Caracterizada por um discurso médico-científico de forte feição determinista, essa corrente do
Direito Penal passou a conferir conotação patológica ao ato “anti-social”, opondo-se
1 Professor de Medicina Legal da Faculdade de Turim, Cesare Lombroso (1836-1909) é considerado o fundador
da antropologia criminal italiana. Sua principal obra, O Homem Delinquente, publicada em 1876, expõe as
concepções sobre o criminoso nato, predisposto ao crime desde o nascimento em razão de fatores biológicos
atávicos, que podiam ser identificados nas características físicas e psicológicas do indivíduo 2 Também conhecida por Escola Positivista, Escola Científica ou, ainda, Escola Italiana do Direito Penal, para a
Nova Escola Penal o criminoso seria um doente ou “degenerado”, o crime um sintoma e a pena um tratamento.
Para uma visão mais aprofundada do assunto ver, entre outros, MARTINS JUNIOR, 1995; ALVAREZ, 2003;
FERLA, 2009.
veementemente ao eixo doutrinário da chamada Escola Clássica, consolidado em torno das
idéias de Beccaria, Bentham e Von Feurbach, que associava o crime ao livre arbítrio,
doravante apontado pelos partidários do Direito Positivista como uma abstração metafísica.
Assim, partido do pressuposto de que no espaço de tempo que se estende de 1870 a 1920 o
Direito Penal paulatinamente ocupou um lugar central nas discussões em torno dos principais
problemas nacionais, notadamente a ênfase dada às determinações raciais como fator
essencial na composição do povo e das causas da criminalidade, o objetivo deste artigo é, em
linhas gerais, traçar minimamente a trajetória e a recepção da Nova Escola Penal no Brasil,
bem como discutir, com base nos discursos de homens como Silvio Romero, Francisco José
Viveiros de Castro, João Vieira de Araújo e Marcolino Fragoso, entre outros, tanto as
premissas que levaram esses intelectuais a buscar saídas para a construção de uma possível
homogeneidade nacional a partir de um pensamento jurídico específico, quanto seus
desdobramentos no tocante à elaboração e manutenção de projetos estatais autoritários de
controle social dos populares, os quais contribuíram para manter a maior parte da população
(em particular parcela não-branca desta) distante da vida pública nacional.
“Um bando de idéias novas”: a Faculdade de Direito do Recife
O século XIX representou o momento em que se tentou recriar, no Brasil, todo um aparato
institucional com a finalidade de resolver o dilema mais agudo do período: a construção de
uma sociedade que passava do regime tutelar colonial para o regime da lei como garantia de
igualdade entre os indivíduos. Nesse contexto histórico surgiram, entre várias outras
instituições de ensino superior, nossas duas faculdades de Direito, que a partir de 1828
começaram a funcionar em São Paulo e Pernambuco, às quais foi destinada a tarefa de formar
uma elite intelectual capaz de desenvolver um pensamento original, que desatrelasse nossa
cultura jurídica das amarras estrangeiras. Fundando novos modelos e imprimindo uma nova
imagem ao país, pretendia-se conferir à nação que se gestava uma nova constituição.
Originalmente instalada em Olinda e transferida para o Recife em 1854, a Faculdade de
Direito do Recife voltou-se, desde o início, para uma atividade doutrinária, diferenciando-se
da Faculdade de Direito de São Paulo, que se notabilizou por um perfil político liberal,
produzindo um grande número de bacharéis em Direito dedicados a importantes cargos no
cenário político nacional
O ano de 1879 foi decisivo para a Faculdade de Direito do Recife. A reforma curricular, que
implantou o ensino livre e dividiu o curso de Direito nas seções de Ciências Jurídicas e
Ciências Sociais, refletiu um momento no qual a instituição passava por uma guinada teórica,
assumindo o objetivo de dar ao Direito nacional um estatuto científico assentado nos mais
recentes modelos teóricos do evolucionismo, que no Recife tiveram larga aceitação após o
impulso difusor de Tobias Barreto.
Não obstante alguns autores considerarem exagerado o nome de “escola” para designar o
movimento de idéias ocorrido no Recife a partir do final da década de 1860, quase todos são
unânimes em reconhecer a importância de Tobias Barreto para o desenvolvimento da ebulição
intelectual que praticamente provocou uma “revolução do Direito brasileiro”, devido à
influência que o pensamento alemão teve em suas teses científicas e jurídicas. Conforme
Lemos Britto, o papel mais importante desempenhado por Tobias Barreto foi o de levar ao
conhecimento dos jovens estudantes de sua época as “doutrinas de Jhering e Hermann Post,
que aplicavam o darwinismo social ao Direito; o realismo científico de Buchner e o monismo
filosófico de Haeckel”, além de difundir o pensamento de autores como Spencer, Darwin,
Buckle, Littré, La Play ,Le Bon e Gobinal, entre outros (BRITO, 1939: 126).
Destacado polemista, detido particularmente nas questões de Direito Criminal e muitas vezes
criticado por ter sido homem de idéias gerais e não de particularidades das ciências jurídicas,
a personalidade de Tobias Barreto cristalizou-se no tempo quase como a de um herói mítico, a
ponto de ser apontado por autores mais contemporâneos, como o professor e magistrado
Hermes de Lima, como o verdadeiro fundador da nossa literatura penal, aquele que
trouxe para o foro e para a cátedra as primeiras e saudáveis reações contra o
conceito do crime como fenômeno moral, embora a prevenção a respeito da
sociologia lhe houvesse limitado a justa visão do crime, que não sendo, a seu ver,
nem um caso de patologia, nem de atavismo, passava à categoria de
monstruosidade ou irregularidade eliminável pela pena. Não se aprofundou, como
devera, na gênese dessas irregularidades; antes a essa tendência reagiu, no
desenvolvimento do seu próprio pensamento, pela convicção de que as raízes do
crime também se prendiam à natureza do delinquente (BRITTO, 1939: 239).
Motivados pelo espírito reformista de Tobias Barreto, o qual sobreviveu após sua morte no
pensamento de Silvio Romero, os bacharéis do Recife da chamada “geração de 1870”
passaram a se auto-definir como a “elite escolhida” para introduzir a modernidade cultural no
Brasil e imprimir ao Direito uma concepção estritamente científica. O alvo desses bacharéis
era limpar o saber jurídico de qualquer subjetivismo, substituindo os antigos padrões
religiosos e metafísicos da chamada Escola Clássica do Direito por modelos ancorados nas
teses cientificistas em voga, interpretadas de acordo com as pretensões de cada analista. Com
esse movimento, emergiu uma noção de ciência que fez com que a criminologia viesse a se
aliar à psiquiatria, à biologia evolutiva, à geologia e à antropologia física e determinista, entre
outras disciplinas.
Ao propor o rompimento com o “jus-naturalismo religioso” da Escola Clássica do Direito
(entendido como elemento que dava suporte à defesa do caráter imutável da monarquia), em
prol de uma visão laica do mundo (o correspondente do processo civilizatório que seguia seu
curso evolutivo), o discurso cientificista da nova geração de professores e magistrados do
Recife transformou-se numa arma apontada tanto para o “limbo da instituição acadêmica”,
quanto para uma série de instituições políticas e sociais estabelecidas. Nessa operação de
adaptação da ciência jurídica aos novos modelos científicos, residia uma tentativa de aplicar o
positivismo, o determinismo, o naturalismo evolucionista e o darwinismo social às
concepções da realidade nacional, em especial no que dizia respeito à compreensão de nossa
formação como povo e país. Tratava-se de buscar saídas para a construção de uma possível
homogeneidade nacional, o que implicava, segundo o tino teórico dos intelectuais do Recife,
sobretudo a partir dos estudos de Silvio Romero, enxergar no critério étnico a chave para
desvendar o problema brasileiro (SCWARCZ, 1993).
“Uma nação de mestiços é uma nação de criminosos”: Direito e “raça”
Para Silvio Romero a mestiçagem correspondia à luta das espécies no processo de
sobrevivência – visão bastante paradoxal, uma vez que a teoria evolucionista condenava o
hibridismo racial – e que, conseqüentemente, o mestiço significava “a coroação do branco”
no país e, com base nisso, inferiu que homogeneidade nacional e mestiçagem entrelaçavam-se
numa mesma relação. Sublinhe-se, porém, que embora acreditasse no valor da mestiçagem
para a formação do povo brasileiro, Silvio Romero jamais foi um partidário do ideal
iluminista da igualdade entre os homens, tendo sempre insistido no fato de que o
determinismo racial apenas comprovava que, em função de sua “inferioridade”, a raça negra
seria absorvida e suplantada pela branca na luta pela sobrevivência.
Essa tese foi compartilhada por um dos discípulos de Silvio Romero na Faculdade de Direito
do Recife, Francisco José Viveiros de Castro, que em 1894 escreveu:
O Brasil oferece nesse momento de sua evolução histórica, a um observador
competente, um fenômeno curioso a estudar, uma raça que se forma pela fusão de
três outras raças diferentes [...] E aqui na Capital Federal o problema ainda mais
se complica pela concorrência de estrangeiros de toda a Europa. [...] assiste-se a
mais uma comprovação da lei de Darwin, a raça mais forte suplantando a mais
fraca na luta pela existência. Os negros tendem a desaparecer absorvidos na raça
branca e desse cruzamento surge o tipo genuinamente nacional, influenciado pelo
clima, o mulato (CASTRO, 1895: VIII).
A partir daí, apoiado em considerações formuladas, em 1889, durante o II Congresso de
Antropologia Criminal, pela educadora francesa Clemence Royer, esclarecia Viveiros de
Castro que se era possível pensar na inevitabilidade do branqueamento da raça brasileira, não
era menos correto ter em mente que esse processo não viria acompanhado do que poderia ser
chamado de “branqueamento moral”, posto que a hereditariedade “atua com mais força nos
mestiços”. Para ele, a história, como demonstrara a queda do Império Romano, comprovava
que “os atos mais imorais, mais contrários à natureza humana” e à “natureza de todos os seres
organizados” multiplicavam-se em épocas de “grande civilização”, que eram aqueles em que
ocorriam os maiores cruzamentos de raça (CASTRO, 1895: VIII).
Partindo de uma reflexão que opunha no mestiço a presença de inteligência à ausência de
consciência, advertia Viveiros de Castro que se os “híbridos”, no Brasil, não podiam ser
considerados degenerados a priori, e se, ao contrário, “algumas vezes eram dotados de
energia vital e de inteligência”, era preciso admitir, de outra parte, que essa inteligência
tornava-se tanto mais ativa e poderosa quanto maior o refreio imposto pela consciência. Vai
daí que, naquele final de século, uma grave ameaça pairava sobre o país, pois se vivia uma
época das mais fecundas para o aumento da criminalidade e da corrupção dos costumes, à
medida que “os mestiços, a par de uma inteligência largamente desenvolvida, são baldos de
senso moral e propensos à lubricidade” (CASTRO, 1894: 163-164; CASTRO, 1895: VIII).
O jurista completava seu raciocínio afirmando que da troca inter-racial que se processava no
país, o legado dos não-brancos para a constituição do povo e da nação seria uma espécie de
“’mestiçamento moral”, na expressão utilizada por Silvio Romero para definir a influência
negra sobre a formação da raça brasileira.3 Assim, do ponto de vista de Viveiros de Castro, se
em seus aspectos positivos a mestiçagem manifestava-se pela produção de um tipo nacional
inteligente e fisicamente vigoroso devido, fundamentalmente, às influências de um meio
natural que lhe dava maior resistência e capacidade de adestramento para o trabalho, em seu
aspecto negativo o processo de miscigenação racial expressava-se através da tendência
demonstrada pelo mestiço em agir conduzido por impulsos mórbidos incontroláveis, em
especial os impulsos sexuais, o que lhe conferia como principal traço de caráter a “propensão
para a sensualidade e o amor”. Frente a isso, Viveiros de Castro chegava a questionar se os
brasileiros já estariam na degenerescência ou se apenas apresentavam uma “aberração do
instinto sexual” (CASTRO, 1895: IX).
Seguindo a mesma linha de raciocínio, em artigo publicado no ano de 1919 pela Revista
Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, o doutor Joaquim Pimenta questionava:
Somos o que somos será porque sejamos uma sub-raça, num país de mestiços, uma
fusão de elementos étnicos inferiores ou porque sejamos uma nacionalidade em vias
3 Silvio Romero referia-se especialmente à influência das amas-de-leite negras sobre as famílias brancas.
ROMERO, 1943: 294.
de formação, o que explica o estado de delinqüência social do povo brasileiro?
(PIMENTA, 1919: 54)
Portanto, a preocupação dos juristas de Pernambuco para com o fenômeno da criminalidade, a
qual fez com que o Direito Penal viesse a ocupar lugar central nas discussões em torno dos
principais problemas nacionais, destacando-se entre eles a ênfase dada às determinações
raciais como fator essencial na composição do povo, não foi acidental. Ao contrário fez parte
de um debate específico que, tendo como eixo a apreensão do comportamento do homem
delinqüente, apontava para o problema mais abrangente de referir os fatores criminógenos à
“anarquia das raças” reinante no país e a conseqüente necessidade de legislar sobre ela a
partir de um Código Penal científico e genuinamente nacional. Nesse processo, caberia aos
penalistas fixar os limites da liberdade coletiva e individual, bem como a determinação da
realidade das punições e do grau de periculosidade da delinqüência. Noutros termos, tudo
funcionava como se para o campo da criminalística devessem convergir as questões mais
prementes sobre os rumos da nação.
A Nova Escola Penal no Brasil
O fato é que, a partir de Tobias Barreto e, principalmente, com Silvio Romero, o Direito,
combinado à Antropologia e à Psiquiatria, por exemplo, emergia como uma ciência que se
auto-delegava a prerrogativa de determinar os instintos e os problemas nacionais. Tendo por
pressuposto que aquelas seriam algumas das disciplinas que ajudariam o saber jurídico a
espantar o fantasma do subjetivismo, acreditavam os bacharéis do Recife do pós-1870 que
garantir a modernidade significava assumir o apego a certos modelos teóricos e autores que
tinham o fator raça como elemento central de análise, em especial no que concernia aos
fatores criminógenos. Nesse contexto ganharam força, entre os juristas da escola do Recife, as
teses da escola italiana de antropologia criminal, que a partir dos trabalhos de Cesare
Lombroso, Luigi Garofalo e Enrico Ferri passou a estudar a criminalidade privilegiando a
análise dos caracteres biológicos e sociais do homem delinqüente.
Ao final do século XIX, João Vieira de Araújo, João Marcolino Fragoso e Francisco José
Viveiros de Castro, três juristas oriundos da Faculdade de Direito do Recife, aceitaram quase
incondicionalmente as teses da antropologia criminal. A partir dos seus trabalhos, as idéias do
médico-antropólogo italiano Cesare Lombroso receberam forte impulso divulgador no Brasil.
Desses três autores, Francisco José Viveiros de Castro revelou-se o mais preocupado com a
“demonstração e a didática”. Combativo e ousado, no prefácio de A Nova Escola Penal, livro
de “divulgação” publicado em 1894, atribuía à ignorância dos magistrados, professores e
advogados a incompreensão das teses de Lombroso, Ferri e Lacassagne (CASTRO, 1894:
IX.). Não obstante essa combatividade muitas vezes chegou a deslizar no terreno teórico,
como exemplifica o fato de ter omitido – por uma questão estratégica ou devido à dificuldade
em se aprofundar no assunto, visto ter escrito seus artigos para o jornal O Paiz “um tanto à
ligeira”, no calor da querela com os clássicos – o debate travado, em 1892, entre italianos e
franceses no Congresso de Antropologia Criminal realizado em Bruxelas, do qual saíram
definitivamente abaladas as conclusões de Lombroso (DARMON, 1991).
Por sua vez, nas respostas aos oponentes do direito positivista o professor João Marcolino
Fragoso detinha-se na discussão da reputação dos críticos e no esclarecimento do que
entendia ser o real significado das objeções feitas a Cesare Lombroso por teóricos como
Tarde, Topinard, Codajiani, Carnevale, Manouvier e Joly. Segundo Evaristo de Moraes,
“nesse mister demonstrava o doutor Fragoso invulgar erudição e probidade científica”, e o
“injusto menosprezo” por ele recebido por parte daqueles que pretenderam historiar a
trajetória da Nova Escola Penal no Brasil deveu-se, acima de tudo, ao fato do título dado por
ele à sua tese, Do Genóide Alítrico, ter sido incompreendido à época, “mas que nada mais
significava que a expressão utilizada pelo autor para designar o criminoso típico lombrosiano,
estando o livro voltado para a demonstração da veracidade das constatações do médico
italiano a respeito do criminoso nato”. (MORAES, 1939: 148)
Mas foi no professor João Vieira de Araújo que a antropologia criminal encontrou seu maior
teórico no país. Ao que tudo indica foi ele o primeiro brasileiro a mostrar-se mais bem
informado a respeito das idéias criminológicas de Lombroso, Ferri e Garofalo, sendo
considerado o introdutor da Nova Escola Penal no Brasil. O marco inicial foi a publicação,
1884, do livro Ensaio de Direito Penal ou Repetições Escritas sobre o Código Penal do
Império, no qual João Vieira de Araújo destacava “a necessidade de analisar a legislação
nacional de um ponto de vista filosófico mais ‘moderno’, ponto de vista este que, no campo
do Direito Criminal, seria representado sobretudo pela obra de Lombroso” (ALVAREZ,
1996: 49).
Porém, foi com a publicação, em 1889, de seu Comentário Filosófico Cientifico do Código
Criminal e, posteriormente, em 1891, com a publicação pela revista Giusriprudenza Civile e
Penale Nella Vitta Sociale do texto “La sciense criminale al Brasile”, no qual noticiava o
acolhimento no Brasil da escola que denominava de “positivismo- naturalista”, que o doutor
João Vieira de Araújo passou a ser reconhecido internacionalmente como um dos mais
autênticos adeptos e propagandistas das idéias de Lombroso, tendo seu nome citado por
Havelock Ellis e Frassatti nas obras The Criminal e La Nuova Scuola di Diritto Penale in
Itália ed all’ Stero, respectivamente.
Ao contrário de Viveiros de Castro, nas respostas que enviava aos mais intransigentes críticos
do direito positivista João Vieira de Araújo esforçou-se sempre em manter o mais alto nível
de rigor teórico na exposição das idéias. Contra os argumentos de que Lombroso exagerava
ao tipificar os criminosos e os loucos com base na exclusiva verificação de uma constituição
anatômica mal formada, João Vieira de Araújo afirmava que a anatomia para a “nova ciência”
era apenas “um fundo de quadro, um apêndice da psicologia criminal” que, por sua vez,
dependia de uma “base anatômica sob o risco de se transformar em pura quimera” (ARAUJO,
1889: 180). Para ele, o mérito de Lombroso foi o de aplicar os estudos desenvolvidos pela
frenologia exclusivamente no “genus homo”, criando no campo da criminologia uma “síntese
de conhecimentos obtidos pelos processos científicos da observação e da experiência no
estudo do homem criminoso, considerado por todos os seus caracteres somáticos e psíquicos”
(ARAUJO, 1889: 181).
De acordo com João Vieira de Araújo, a genialidade e a atualidade de Lombroso
relacionavam-se ao fato dele ter baseado suas teses na idéia que regia a ciência moderna de
seu tempo, de que o homem devia ser estudado “nos próprios elementos indissolúveis que o
compõem com todas as suas qualidades físicas e psíquicas, como agente e agido no ambiente
que o circunda e que é o meio em que se pode conceber vivo” (ARAUJO, 1889: 181). Em
última análise, esse jurista brasileiro considerava que a síntese criada por Lombroso,
permitindo a associação entre a antropologia criminal, a psiquiatria e as ciências penais,
desembocou não só no estudo do crime como uma ação humana, mas também na visão da
pena como reação social e dos sistemas de uma aplicação e execução por meios eficazes, que
correspondiam ao “designo final da suprema função de punir que exerce o estado” (ARAUJO,
1889: 182).
Sempre em comum acordo com Lombroso, afirmava Araújo que a genialidade e a loucura
eram duas qualidades que ora podiam andar associadas, ora dissociadas, sendo, por outro
lado, uma “verdade inegável” que a inteligência e o senso moral poderiam aparecer
desencontrados no mesmo indivíduo. Desta forma, como ato exclusivamente humano, o
crime, o suicídio e a loucura confundiam-se e se substituíam, revelando o estado de
anormalidade psíquica do seu agente. Daí ser indispensável o estudo do homem criminoso de
uma perspectiva estritamente médico-antropológica, sem que isso viesse a constituir uma
ameaça de invasão ou substituição da ciência jurídica pela medicina como postulavam os
“metafísicos”. Tomando por principio ser o crime um fenômeno complexo de ação puramente
humana e cuja origem podia ser reduzida a fatores de ordem física, social e individual,
justamente as “três ordens de influência predominante no cosmos”, o doutor João Vieira de
Araújo atacava a base de sustentação teórica da Escola Clássica do Direito, afirmando que a
tese do livre arbítrio, ou responsabilidade moral, não passava de um “hábito mental”, uma
“fantasmagoria” sobrevivendo em “espíritos superficiais” que não conseguiam distinguir
entre o homem são e o louco. Do seu ponto de vista, no mundo moderno ninguém em sã
consciência poderia mais admitir que o indivíduo enlouquecesse ou cometesse crimes por
vontade própria. Para ele tal procedimento somente se reforçava a responsabilidade individual
sobre o social, retirando-se do Estado um dever que deveria ser o seu: o de reconhecer o
direito de garantia dos honestos e pacíficos contra malfeitores e desonestos, fossem loucos ou
sãos; exatamente o estado de coisas que a Nova Escola Penal pretendia inverter (ARAUJO,
1889: 183- 184).
Se Viveiros de Castro, Marcolino Fragoso e João Vieira de Araújo são arrolados como os
maiores adeptos e propagadores da Nova Escola Penal no Brasil, vários nomes merecem
destaque pela postura simpática em relação ao direito positivista. Se no Recife Clovis
Bevilaqua mantivera-se mais reservado quanto à antropologia criminal, Adelino Filho e
Martins Junior, dois de seus colegas de professorado, foram imediatamente atraídos para as
teses de Lombroso, influenciados por João Vieira de Araújo.
Também na Bahia, devido ao impulso dado pelo doutor Nina Rodrigues aos estudos de
Medicina Legal, alguns jovens estudantes da época passaram a se interessar pela antropologia
criminal, destacando-se entre eles Manuel Calmon e Afrânio Peixoto que, como médico
legista no Distrito Federal, inspirou a criação do Instituto de Identificação do Rio de Janeiro
(CORRÊA.
Em São Paulo, através da tese Classificação dos Criminosos, o delegado Candido Motta
também mostrava uma atitude simpática em relação às idéias de Lombroso, Ferri e Garofalo.
Finalmente, resta destacar o advogado sergipano Ciro Azevedo, futuro diplomata e
governador de seu estado, como o primeiro a apresentar, na pratica, perante o júri, as teses
abraçadas pela Nova Escola Penal. Isso se deu por ocasião em que Azevedo se propôs a
defender Adelino de Sousa Leite, empregado de uma carvoaria acusado de ter matado seu
patrão a marteladas em 1885, imitando, segundo Evaristo de Moraes, outro crime cometido
em Campinas por Almeida Junior, do qual fez vitima um mercador de escravos de nome
Menezes (MORAES, 1939: 149).
Considerações Finais
Frente ao exposto, pode-se concluir afirmando que, durante as três últimas décadas do século
XIX, a tese lombrosiana, orientadora da escola positivista de criminologia, de que o homem
só agiria por impulso universal de suas tendências hereditárias – fato que praticamente
eliminava sua responsabilização criminal apriorística – ameaçou promover uma verdadeira
revolução no campo do saber criminológico e jurídico, haja vista que a “descoberta” do
criminoso nato implicou o ponto de partida de uma efervescência de idéias a respeito da
natureza do homem delinqüente e a abertura de um amplo debate em torno da medicalização
do crime.
Embora possuíssem pontos de vista discordantes sobre a definição do real fator da
criminalidade, antropólogos italianos e sociólogos franceses concordavam que, do mesmo
modo que existia uma etiologia e uma profilaxia para as doenças infecciosas como a sífilis e a
tuberculose (o maior flagelo da saúde na época), também haveria uma etiologia e profilaxia
do crime, que era percebido pelos reformadores sociais como o maior flagelo social do final
do século. Por analogia, a tuberculose e a criminalidade permearam o imaginário dos
criminólogos positivistas como males que apresentavam vários pontos em comum. Tanto uma
quanto a outra proliferariam em meios urbanos insalubres, sem ventilação satisfatória, onde
campeavam a promiscuidade e a libertinagem, podendo ser contraídas em múltiplos locais
como os balcões de bares, bordéis, internatos e quartéis devido a diversos fatores, tais como a
falta de estrutura familiar, a educação viciosa, a má literatura e a imprensa, além, é claro, de
más-formações de origem congênita transmitidas hereditariamente.
Assim, médicos e juristas abraçaram a tese de que, de maneira idêntica á proliferação da
tuberculose, o aumento da criminalidade gerava a necessidade de “tomadas de consciência”
fundadas em objetivos sanitários e políticos de primeira ordem. Isso implica afirmar que o
combate ao crime estava intimamente relacionado à implantação de programas concretos de
reformas sociais visando, principalmente, à eliminação dos bolsões de miséria, reconhecidos
como substratos produtores da delinqüência de crianças e jovens e como locais de onde
rescendia a ameaça política permanente de um estado de guerra revolucionária, bem como à
promoção de progressos na instrução, apontada como um dos mais eficazes antídotos contra o
crime.
Exatamente por isso, ao refutarem as acusações dos juristas clássicos de que a antropologia
criminal colocava em risco toda a ciência do Direito, na medida em que tendia a subordiná-la
à Medicina, magistrados e professores brasileiros partidários do Direito cientifico afirmavam
que as idéias em desenvolvimento na Europa abriram novos horizontes ao Direito Penal,
elevando-o definitivamente, como a economia política, ao nível de uma ciência social.
A correlação entre economia política e direito cientifico não era, neste contexto, gratuita ou
destituída de significado. Na realidade ela revelava toda a apreensão dos juristas para com a
existência e o comportamento de uma multidão inconformada, gerada pelo inchamento das
cidades brasileiras no final do século XIX. Universo urbano este composto por largas fatias
das camadas medias, anteriormente “mal agasalhadas pelos figurinos políticos do Império”,
somadas a uma “arraia miúda turbulenta”, em que figuravam tanto trabalhadores pobres
quanto vagabundos e mendigos (imigrantes e ex-escravos), “homens errantes, sem pátria nem
família; grupos de feição combativa”, como haviam demonstrado por ocasião dos levantes
urbanos como a Revolta do Vintém em 1880 (e, posteriormente, durante a Revolta da
Vacina), e cooptável, como ficou patente no final dos anos oitenta, quando o movimento
abolicionista recrutou seus pares não apenas nos setores mais avançados das camadas médias,
mas também entre a “plebe urbana desordeira, transformada em linha de frente nos meetings
abolicionistas e nos confrontos de rua, jamais titubeando em enfrentar as forças identificadas
com a ordem escravocrata” (CASTRO, 1894: 187).
Numa sociedade sacudida por forte turbulência decorrente de transformações econômicas,
sociais e políticas trazidas pelo avanço da ordem capitalista, da emancipação da mão-de-obra
escravista e da consolidação do regime republicano, mais do que nunca se tornava necessário
conhecer a nação que se transformava, a fim de se evitar, pela “confusão de corpos” e
“anarquia de raças”, a degenerescência física e moral do povo. Exatamente por isso, no Brasil,
a antropologia criminal parecia adequar-se perfeitamente às necessidades de ordenamento da
nação. Através dela, sobretudo os teóricos do Direito Penal oriundos da Faculdade de Direito
do Recife acreditavam ter encontrado o estatuto cientifico que os capacitaria a conhecer o
povo mais de perto e a definir os novos rumos do país.
Partindo da premissa de que o criminoso era o resultado da somatória dos caracteres físicos de
sua raça e de sua correlação com o meio, juristas e criminólogos brasileiros passaram a definir
seu fenótipo como o “espelho da alma”, no qual se refletiam as virtudes e os vícios. Por essa
interpretação, nas características físicas do povo estariam estampadas e poderiam ser
reconhecidas as marcas da criminalidade e dos fracassos de um país. A esse respeito,
traduzindo toda a inquietação que tomou conta dos bacharéis do Recife à época, em artigo
para a Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, onde relacionava a teorias da
antropologia criminal e a realidade nacional, escreveu o professor Laurindo Leão que “uma
nação de mestiços é uma nação de criminosos” (LEÃO, 1892: 89).
Enfim, passando por um lento processo de evolução, carente de um tipo único, de uma raça
delimitada, a nação ficava, na concepção dos nossos juristas, sujeita às tentações da
criminalidade e à ameaça de ser lançada no abismo da loucura. A questão fundamental a ser
respondida era a de saber como conciliar esse discurso determinista com o material humano
concreto aqui disponível. Dilema cuja solução parecia estar no desencadeamento, municiado
por um aparelho jurídico informado nas concepções do Direito cientifico, de um processo de
higienização dos hábitos e das práticas cotidianas dos populares, principalmente aqueles que
diziam respeito às formas de organização familiar, lazer, sociabilidade e às relações afetivo-
sexuais, capaz de corrigir os desvios de comportamento provocados pelo ritmo acelerado do
processo civilizatório em curso.
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