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Carolina Cardoso Dutra Evangelista1
Da meritocracia na educação a uma sociedade desescolarizada
Resumo
Este ensaio tenta discorrer sobre a sociedade meritocrática e sua inserção no
contexto da rede de ensino, para isso é dada uma contextualização de como
ocorreu esta inserção, primeiramente mundial e depois no contexto escolar
brasileiro com a ajuda da democratização do ensino. Analisa-se, também, que
este sistema, como política pública não funciona em uma sociedade e, talvez
apenas em grupos pequenos. É tratado também da meritocracia como razão para
uma “sociedade da desconfiança”, passando pela descrença no sistema de ensino,
até a ideia de uma sociedade “desescolarizada”.
Palavras-chave: Meritocracia, Educação, Sociedade
Desescolarizada, Sociedade da Desconfiança, Descrença
_______________
Introdução
Quando comecei a escrever este ensaio o primeiro título era: “Meritocracia só
funciona em time de futebol”. Uma alusão ao sistema meritocrático tão bem
implantado pelo técnico Tite, em 2012, que levou o Sport Club Corinthians
Paulista a ser consagrado campeão do Mundial Interclubes contra o time inglês,
muito melhor estruturado futebolística e economicamente, Chealsea. Na época, o
bordão do técnico do Corinthians sobre o sucesso virou moda, pois o sistema
pareceu funcionar com brilhantismo: “ME-RI-TO-CRA-CIA”. Como corintiana
doente e vendo o time em sua melhor fase, o “repeteco” do bordão era quase
inevitável e, com ele, a oportunidade de pensar sobre o tema também. Fui
chegando às minhas conclusões baseadas no senso comum e em experiências
empíricas, quis escrever sobre ele pensado na área da educação e assim comecei.
O objetivo do título no excerto era meramente chamar atenção, mas pelo leque
1 Mestranda na área de Ciência da Informação (ECA-USP). Bacharel em Letras, habilitação Português/Alemão (FFLCH-USP) e em Licenciada em Português e Alemão (FE-USP). Possui vasta experiência no mercado editorial, atuando em diversas publicações, incluindo didáticas.
de temas que foi a pesquisa foi desenvolvendo, escrever apenas sobre isso tornou-
se impossível.
Embora sempre presente no senso comum das sociedades individualistas e
igualitárias, modernas e tradicionais, a meritocracia é há muito um tema que gera
controvérsias (BARBOSA, 1999, p. 29foi tambémo,sistema me parecer tão injusto.
Temos pela definição dicionarizada de meritocracia2: o “predomínio numa
sociedade, organização, grupo, ocupação etc. daqueles que têm mais méritos (os
mais trabalhadores, mais dedicados, mais bem dotados intelectualmente etc.)”.
No sentido que aqui proponho, a palavra “meritocracia” apareceu provavelmente
pela primeira vez no livro Rise of the meritocracy, de Michael Young (1958), pois
para o autor, a meritocracia é “a caracterização de um sistema de governo ou
gestão que utiliza o mérito individual para a ascensão social e política”, seu livro
me interessou particularmente, pois uma das críticas que o autor fez sobre esse
sistema foi a alusão ao fato de que as medidas referentes a esse mérito, que pode
ser validado em inteligência ou esforço, não são muito específicas e, geralmente,
são arbitrárias, elegidas pela classe social ou modo de vida dominante.
Em minha hipótese inicial, não seria apenas em times de futebol que funciona de
maneira justa a meritocracia como sistema de oportunidades, mas talvez ela só
funcione realmente em tipos de comunidades reduzidas, em que as condições das
pessoas costumam ser restritas de distinção; dentro destes nichos, é habitual que
as chances das pessoas sejam similares, como, em times de futebol, ou mesmo
empresas em que os profissionais tenham currículos, objetivos e aspirações
parecidos – não adentrarei aqui, é claro, o contexto da lógica de mercado ou da
seleção que é feita para que se possa atingir esse tipo de comunidade. E por isso,
parto do pressuposto que não dá para se trabalhar pequenos nichos como “justos”
se a sociedade se mostra meritocrática como um todo. Assim, acabo por renegar
esta primeira hipótese e um clássico exemplo disso é nosso sistema de ensino,
altamente meritocrático.
2 HOUAISS. Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.
Voltada à educação, muitos defendem – e concordo – a hipótese de que em um
sistema educacional lidamos com pessoas diferentes, e mesmo que adaptado à
realidade da comunidade de uma escola, de um “pequeno” nicho, a meritocracia
não tratará a todos, necessariamente, com a igualdade e justiça que ela
supostamente pressupõe. E muito mais, uma escola meritocrática contribui para
a propagação e dá sustentação para uma sociedade baseada no sistema da
meritocracia, o que, segundo Souza (2013): “exacerba o individualismo e a
intolerância social, supervalorizando o sucesso e estigmatizando o fracasso, bem
como atribuindo exclusivamente ao indivíduo e às suas valências as
responsabilidades por seus sucessos e fracassos”.
A fuga da meritocracia desenfreada3
O artigo “Aquilo de que o humano é instrumento descartável: sensações teóricas”
de Eugênio Bucci (2009a) inicia citando o filósofo Baudrillard, cujo texto inspirou
o filme Matrix, dos irmãos Wachowskis, que simula o planeta terra em um futuro
em que a realidade é fruto de um poder único que controla todas as nossas ações.
Sob essa perspectiva, vivemos em uma cena escrita e dirigida por uma máquina
chamada Matrix. Os seres humanos são apenas peça de uma grande máquina e
não trabalham com o pensamento realmente criativo (apesar de não saberem).
Eles movem um mundo que, em realidade, não participa. Exatamente como nos
engenhos de açúcar antigamente, em que o escravo era só uma peça fazendo girar
a roda do moinho. Assim, o escravo, como os seres humanos da Matrix é a peça
que move um mundo que não governa.
Depois, o texto de Bucci apresenta a teoria de Charles Darwin, a Evolução das
Espécies, que postula, basicamente, que as espécies competem entre si: a que
melhor se adapta sobrevive. Bucci (2009a) e, antes dele Jacques Lacan (também
citado no artigo) acreditam que essa teoria pode ser lida “como a aplicação do
ideário liberal” à vida no planeta Terra, principalmente pela época em que ela foi
3 Este tópico foi livremente inspirado no texto: “Aquilo de que o humano é instrumento
descartável: sensações teóricas”, do Professor Dr. Eugênio Bucci. In: NOVAES, Adauto (Org.). A condição humana: as aventuras do homem em tempos de mutações. Rio de Janeiro: Agir e São Paulo: Edições SESC SP, 2009. p. 375-394.
apresentada à comunidade científica. A natureza, assim, seria a expressão final do
liberalismo.
Da teoria de Darwin temos uma metáfora da ação capitalista. Sobrevive quem
tem mais recursos para isso, assim como é no capitalismo o fenômeno da
hereditariedade: o capitalista acumula a riqueza e os meios de vida para sua
família, e compete com outros pela riqueza. “Por meio da ideia de que competir é
um valor vital, Darwin consagrou, indiretamente, a ação humana em busca da
sobrevivência (ou da riqueza) como um vetor natural, instintivo, vital” (Bucci,
2009). Portanto:
VIDA = MÉRITO
A teoria de Darwin prega, não só a “predação” que acontece dia a dia na natureza,
mas também como na sociedade econômica. Bucci (2009) faz ainda um paralelo:
“o espécime de Darwin é análogo ao empresário de Adam Smith” ... “o seu laissez-
faire na natureza reverbera a ‘livre’ iniciativa” (reverbera, assim, o próprio
liberalismo).
Contextualizando Darwin em sua época (ele viveu ente 1809 e 1882), o autor
lembra que o século XIX foram os anos da ascensão e propagação dos direitos
fundamentais, dos direitos sociais:
Prosperaram aí os valores da fraternidade e da igualdade,
mas, que fique bem claro, sem a liberdade econômica, que
supõe egoísmo e a ambição, a sociedade não avançará.
Portanto, o que alguns passaram a chamar de “darwinismo
social” é, desde logo, contrabalançado pela vigência de
direitos fundamentais, que redundariam mais tarde
também nos direitos sociais.
Assim, não foi só a meritocracia que ascendeu naquele século, mas os direitos
sociais também. Esses direitos vinham para deixar a sociedade mais igualitária,
porque se fosse depender apenas da economia, em tese, sempre haveria pessoas
com recursos insuficientes para a sobrevivência. Apenas a conquista do pensar
sobre esses direitos significou que a humanidade evoluiu como sociedade, a
conquista deles significava a evolução para um estado civilizado. No entanto, o
questionamento que faço é sobre o quanto a sociedade a qual estamos inseridos,
é realmente “civilizada”, quanto os direitos sociais alcançados suprem a
necessidade de uma sociedade tão revigorada pelos simulacros da meritocracia?
O sistema meritocrático e a desconfiança provocada
Eles não suprem. Mesmo com todos os direitos conquistados, continuamos
selecionando e diferindo exacerbadamente. “Toda a seleção de um é a rejeição de
muitos” (Young, 1958). E analisando significadamente, é muito difícil mensurar o
que uma rejeição pode causar na individualidade do ser social. O ser humano, ao
nascer, segundo Freud, já é castrado e vive sempre em busca do objeto de sua
castração4. Este ser nem sempre está preparado para lidar com a rejeição, e a
possibilidade dessa rejeição, causada pelo sistema meritocrático exacerbado, gera
uma sensação de eterna desconfiança que nos é intrínseca, que não é natural, mas
que já nos acostumamos.
A socióloga Claudine Haroche, do Centre National de Recherche Scientifique da
França, em seu artigo “O inavaliável em uma sociedade de desconfiança” (2010),
fala da “sociedade da desconfiança”, em que os valores podem ser difusos e
mutáveis, pois se baseia no medo causado pela constante avaliação que passamos
em nossas vidas, que vem desde o nascimento até nossa morte, que não respeita a
individualidade do ser; e que homogeneízam as pessoas.
Seguindo este raciocínio, em meu ponto de vista, o sistema meritocrático
contribui para uma sociedade contrária ao que ele propõe inicialmente. Em vez
de justiça, é a sensação da falta dela que ele propaga. Muito da sensação de que a
vida é “injusta”, que temos a impressão de estar em nossa essência pelo simples
fato de sermos “humanos”, parece-me vir da ideia da sociedade moldada pelas
questões do mérito.
4 Para um melhor entendimento ver o texto de Eugênio Bucci e Rafael Venâncio: “O Valor de
Gozo: um conceito para a crítica da indústria do imaginário”. MATRIZes, v. 8, n. 1, São Paulo, p. 141-158, jan.-jun. 2014.
A meritocracia no contexto escolar
Foi na Revolução Intelectual, que teve início na Inglaterra em 1870, que o mérito
se tornou árbitro decisivo na sociedade moderna ocidental em detrimento da
hierarquização de pai para filho5. Nessa época, em várias áreas a hereditariedade
foi sendo substituída pela compensação do talento. As guerras do século XX
foram, que se intensificaram e foram o ápice da competição entre nações,
representaram grande justificativa para o princípio do mérito. Os testes de
crianças nas escolas elementares que entrariam no serviço militar eram por
mérito, pelo medo da nação perder as guerras na(s) qual(is) estava inserida, a
escola incorporou definitivamente a base meritocrática. Muito disso foi postulado
pelo pensamento tecnocrata, que diferente da meritocracia, mas muitas vezes
complementar a ela, é fundamentado na supremacia técnica:
O pensamento moderno tecnoburocrático, que prima pela
ênfase no desenvolvimento, no progresso e na eficiência,
através do ideal de que uma nação deve fazer o melhor uso
de seu material humano (...), foi responsável para que as
escolas e as empresas tenham adotado progressivamente o
critério do mérito. (Toledo Piza, 1985)
Foi em busca do sonho de oportunidades iguais, que denunciavam a herança da
propriedade intelectual que o processo de mudança social legitimou uma
sociedade do mérito, que acabou apropriando seu sistema de ensino baseada
nessa premissa. E minha hipótese é que a democratização do ensino ajudou a
difundir este sistema no Brasil.
José Mario Pires Azanha (2004) discorre em seu artigo “Democratização do
ensino: vicissitudes da ideia no ensino paulista” acerca da apropriação de
qualquer ideologia6 sobre o ideal da democracia7, ele fala de um ponto histórico
5 Ver Toledo Piza, apud Young, 1985, p. 212-213.
6 Saliento aqui os postulados sobre ideologia de Louis Althusser em seu livro Aparelhos
ideológicos do estado, que olham a ideologia do plano social e são citados e didaticamente explicados por Cassian (2005) e Bucci (1997). Althusser diz: 1. “A ideologia é uma ‘representação’ da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência.” – no caso da democratização do ensino, é perceptível como a apropriação do ideal da democracia foi determinante em como as pessoas iriam agir em sociedade (historicamente, a apropriação da
“em que foi a premissa fundamental de todas as posições: a valorização do ideal
democrático” que mesmo com certas controvérsias, “todos concordaram na
‘aceitação da democracia como a mais alta forma de organização política e
social’8” (Azanha, 2004). E é por essa aceitação e pela ambiguidade da noção de
democracia, ainda segundo Azanha, que a noção de “ensino democrático” se
distorceu. Neste período, os governos pelo mundo tomaram o ensino como
responsabilidade sua e o disponibilizaram como obrigatório. Em alguns países
com sucessivas reformas e melhorias, essa “democratização” atingiu um ensino
público dito de “qualidade” – mesmo que sirva apenas para a reprodução de um
sistema, para a reprodução da “sociedade do espetáculo”9.
Em nome do ensino democrático, deu-se a “democratização do ensino” – o ensino
para todos –, que se mostrou tão aceitável e tomou forma de solução quase
milagrosa para diversos problemas, o qual a educação estava inserida no Brasil10 –
principalmente como bloqueio do crescimento econômico.
No País, a falácia da “democratização” foi ainda maior, ainda mais ilusória do que
em outros lugares. Em grande parte das abordagens das políticas públicas, as
medidas adotadas acabaram por diminuir a qualidade do ensino, com o intuito de
que se abrangesse mais pessoas. Como exemplo, cito a Reforma Sampaio Dória,
instituída pelo então diretor de instrução pública do Estado de São Paulo em 1920
(Azenha, 2004). À época, havia a necessidade de duplicar a rede de ensino para
abranger toda a população que precisava ser escolarizada, precisava-se erradicar,
de uma vez por todas, o analfabetismo, sem grandes recursos financeiros para tal.
democracia levou a suposta “democratização” do ensino, da cultura dentre outras coisas); 2. “A ideologia tem existência material.”: é a própria ideologia da democracia, neste exemplo, que traça o plano de ação; e 3. “A ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos”: no exemplo, a interpelação da ideologia foi tamanha, que fez com que o indivíduo enquanto sujeito pensasse no ideal para o coletivo. 7 Para Weber, a democracia é uma operação impessoal, que dá condições para que o estado não
seja clientelista, não seja privado, para que o estado seja administrado sem amor ou ódio (Weber, 1994). 8 Azanha cita nestas aspas o estudo: McKleon, R. (Ed.) Democracy in a world of tensions (a
symposium prepared by Unesco), The University of Chicago Press, 1951. 9 Ver o texto “O olho que vaza”, de Eugênio Bucci em que o autor explica que o “espetáculo do
mundo” é o trabalho. 10
Veja o texto de J. Nagel citado por Azanha (2004): “Educação e sociedade na Primeira República”, E. P. U. – EDUSP, São Paulo, 1974, p. 206-207.
Um dos principais objetos da Reforma era reorganizar o ensino básico, que
passou a ter sua obrigatoriedade não mais a partir dos sete, mas a partir dos nove
anos, as séries foram concentradas e o ensino primário obrigatório passou a ter
duração não mais de quatro, mas de dois anos. A Reforma, munida do ideal
democrático optou pelo mínimo para todos ao melhor para poucos. Nas palavras
de Azanha (2004): “Esta trivialidade do credo democrático em educação, tão
facilmente aceita no plano teórico, parece que causa repugnância na prática,
porque exaspera a sensibilidade pedagógica dos especialistas preocupados com a
qualidade do ensino.”
No entanto, o próprio Azanha defende a “inevitabilidade e desejabilidade de
planos para a educação”11. Considera-a vencedora, porque hoje a exigência de um
plano educacional foi um triunfo elencado pela Constituição. Azanha extrapola
suas considerações aos planos sociais, fala sobre “a necessidade de planos como
uma aspiração politicamente assentada”, para que se viva em sociedade é
necessário os planos governamentais, e esses planos são sim outra conquista
social – junto com os direitos civis, já mencionados. Hoje, por exemplo, é
praticamente impossível, na nossa sociedade, um candidato se eleger sem colocar
em pauta seus planos diretivos.
No entanto, há quem tenha uma ligeira discordância quando o caso é a educação.
Em Educação para além do capital, o filósofo húngaro István Mészaros critica, de
certa forma, planos como esses, apelando para concepção de educação mais
vasta:
Apenas a mais vasta concepção de educação nos pode
ajudar a insistir no objetivo de uma mudança
verdadeiramente radical proporcionando alavancas que
rompam a lógica mistificadora do capital. (...), cair na
tentação dos arranjos institucionais formais (...) significa
permanecer aprisionado dentro do círculo vicioso
institucionalmente articulado e protegido desta lógica
11 AZANHA, José Mário Pires. “Política e planos de educação no Brasil: alguns pontos para
reflexão”. Caderno de Pesquisa, n. 85, pp. 70-78, 1993.
autointeressada do capital. Esta última forma de encarar
tanto os problemas em si mesmos como as suas soluções
“realistas” é cuidadosamente cultivada e propagandeada nas
nossas sociedades, enquanto que a alternativa genuína e de
alcance amplo e prático é desqualificada aprioristicamente
e afastada bombasticamente como sendo “gestos políticos”.
Esta espécie de aproximação é incuravelmente elitista
mesmo quando se pretende democrática. Porque limita
tanto a educação como a atividade intelectual da maneira
mais estreita possível, como é a única forma certa e
adequada de preservar os “padrões civilizados” daqueles
destinados a “educar” e governar, contra a “anarquia e a
subversão”. Simultaneamente exclui a esmagadora maioria
da humanidade do âmbito da ação como sujeitos, e
condena-os para sempre a serem apenas influenciados
como objetos (e manipulados no mesmo sentido), em nome
da presumida superioridade da elite: “meritocrática”,
“tecnocrática”, “empresarial”, ou o que quer que seja.
Esta passagem de Mészaros é interessante porque ele critica os processos de
mudanças graduais, os quais chama de resoluções “realistas”, dizendo que
estamos “conformados” com elas. Ele coloca “realistas” entre aspas porque são
realmente realistas apenas para alguns setores da sociedade. E estes “setores
realistas” que desqualificam qualquer transformação social profunda, a visão
elitista chama de “política de formalidades” qualquer medida mais aprofundada.
Mészaros coloca este termo também entre aspas para transcrever um discurso
comum hoje em dia: a política, ao ver de muitos, seria uma mera formalidade
frente aos interesses do mercado.
Mais adiante ele fala e critica a educação tecnocrata, seguida dos estudos de
Gramsci, que argumentava energicamente “...que não há qualquer atividade
humana da qual se possa excluir toda a intervenção intelectual – o homo faber
não pode ser separado do homo sapiens”. Gramsci difere o trabalho fabril da
atividade intelectual que pode ser realizada pelo ser humano, ressaltando a crítica
à educação tecnocrata e meritocrática.
Sabemos que o discurso de Mészaros, na maioria de sua obra é por uma
sociedade que clame por uma política de transição, o que fica bem explícito no
subtítulo de seu livro Para além do capital: “rumo a uma teoria da transição”, mas
entendemos que no caso da educação, o filósofo tende a ser mais radical.
Além disso, ainda sobre o contexto escolar, vamos ao encontro da tese da já
citada pensadora Claudine Haroche: as avaliações meritocráticas nas escolas, isto
é, as mais tradicionais e completas de austeridade, com notas afixadas e com
modelos únicos para todos, sem distinção, são também quantificadas por valores
que não respeitam o ser humano, são uma afronta a individualidade.
***
A relação com a mercadoria
“A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual, pelas suas
propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. A natureza
dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia, não altera
nada na coisa” (Marx, 1985). Pode-se inferir dessa frase, que tudo pode ser
mercadoria, tudo o que o ser humano em sociedade pode precisar, pode ter um
valor de troca e seu valor de gozo, duas coisas diferentes12. A própria informação,
desde o princípio do capitalismo era tida como mercadoria (cito aqui o famoso
exemplo das rotas marítimas que eram vendidas a preços caríssimos para as
expedições marítimas). Deste panorama, infere-se também que a educação foi
colocada desde o mesmo princípio, como mercadoria. E a conquista da
mercadoria, por si só, tem uma relação com o mérito, já que apenas a pessoa que
possa trocá-la por algo que o valha têm o mérito de merecê-la. Estamos, aqui,
expandindo o conceito de mérito – e saindo, solenemente, do conceito de
meritocracia –, não para concluir o que já estabelecido por este trabalho, mas
12
Segundo Bucci o valor de troca da mercadoria é o valor dado pela sua imagem e o valor de gozo é a “medida da satisfação” do cliente depois da compra da mercadoria. Ver o texto: “O Valor de Gozo: um conceito para a crítica da indústria do imaginário”. MATRIZes, v. 8, n. 1, São Paulo, p. 141-158, jan.-jun 2014.
para sublinhar o quão complexa é esta questão na nossa sociedade. Marx contesta
não só os valores meritocráticos13, muitas vezes impostos pelo Estado, sobretudo
no caso da educação; ele contesta o próprio Estado ideal e buscado por Hegel,
além, de todo o postulado econômico, dizendo que ele não existe, e muito menos
é universal. Esse Estado é só o resultado de uma luta ferrenha de classes, é a
classe dominante chamando o seu ideal de universal, e universalizando-o através
do simulacro da meritocracia.
Descrença
Observando linearmente, a diferença entre o início e o término do século XX,
segundo Toledo Piza (1985) é que nos tempos mais recentes, vemos
concretamente a luta de classes e as formas de inteligência divididas entre essas
classes como processo social, ou seja, as “formas de inteligência” mais bem
remuneradas economicamente, geralmente,14 pertencem aos que fazem parte das
classes dominantes, dos que já detém o capital, tornando a passagem de uma
classe social para outra mais difícil. Toledo Piza cita uma frase do livro de Young15
“a civilização não depende da massa sólida, mas da minoria criativa”, como base
para explicação dessa mudança de paradigmas na detenção da inteligência. Hoje,
conseguimos observar uma tendência intensificada desse pensamento em muito
dos atores da educação brasileira.
Vemos o empobrecimento dos valores da instituição escola para seus jovens
usuários, que deixam de ser agentes do sistema educacional, para se tornarem
meros “frequentadores”, já que estar ali, muitas vezes, não representará
mudanças efetivas em sua vida, pelo contrário, representará apenas a reprodução
do seu já estabelecido papel social em um sistema que precisará dele apenas
como uma engrenagem, não como protagonista16. É exatamente esse tipo de
13
O marxismo percebia que os homens eram ao mesmo tempo iguais e desiguais. 14
Frisei a palavra geralmente na passagem a fim de salientar o fato de saber e assumir que há exceções, que podem não ser tão raras. 15
YOUNG, Michael. The rise of the meritocracy (classics in organization and management series). Nova Jersey: Transaction Publishers, 1994.
16 Este jovem está estaria inserido em uma espécie de Matrix?
sociedade que Young preconiza em seu livro, baseada no conceito já defasado do
QI (coeficiente de inteligência) e do esforço individual. Uma sociedade em que
“Não há revoluções, somente o acréscimo lento de mudanças incessantes que
reproduzem o passado enquanto o transformam.”17 (Young, 1994).
Soma-se a isso, que tal sensação de descrédito no sistema educacional brasileiro é
visível também no fato de que nem o próprio sistema consegue se reproduzir por
meio deste ensino defasado. A imprensa está sempre a expor notícias sobre a falta
de mão de obra qualificada18, influenciando e inserindo a sensação de descrédito,
mesmo que tacitamente, na opinião pública19.
A educação está circunscrita, hoje, e na história do País como um todo, muito
mais como um “distanciador” social do que uma escolha20. Com uma visão ainda,
no início do século XX, a educação demarcava os lugares do privilégio (a exemplo
da República das Oligarquias; o voto de cabresto, entre outros). Mudamos. Com a
democratização do ensino passamos para um estágio diferente. Mas ainda há um
caminho árduo para uma escola justa.
Desescolarização como meio
Ivan Illich, pensador e polímata austríaco, já no início dos anos 1970, vai além na
sensação de descrédito do sistema do ensino. Ele não fala de uma “sensação”,
sequer restringe o descrédito ao sistema educacional brasileiro, em seu Sociedade
sem escolas, defende o fim da institucionalização da sociedade: “Não é possível
uma educação universal através da escola.”, ele diz que preconizando uma atitude
em que o sujeito buscará transformar sua vida, a escola como instituição, se
17
E por isso, quando se faz um estudo histórico sobre determinado assunto, muitas vezes temos a sensação de vivermos loopings históricos. 18
Veja: “Falta de mão de obra especializada se agrava e atinge 91% das empresas” (matéria de Renée Pereira, em O Estado de São Paulo, de 12 de janeiro 2014); e “Pesquisa revela que falta de mão de obra qualificada prejudica empresas” (matéria do Bom Dia Brasil, de 29 de outubro de 2013). 19
Usando o conceito de Habermas, citado por Bucci e Venâncio: “opinião pública é o recurso por meio do qual a esfera pública faz a mediação entre o estado e a sociedade”. (Bucci, 2014). 20
Até bem pouco tempo, há 44 anos, o Brasil contava com pouco menos de cinco milhões matriculados no Ensino Médio Veja: IBGE, Séries Estatísticas Retrospectivas, 1970; IBGE, Estatísticas da Educação Nacional, 1960-1971; INEP/MEC, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, n. 101.
esvaece. O autor cita brevemente a palavra latina schola, que significa “tempo
ocioso”, “folga”. Em tempos em que até o olhar e o entretenimento21 podem ser
considerados “força de trabalho”, em nossa sociedade moderna e supramoderna22,
a “folga” também foi roubada da escola.
Para completar, Illich vê a escola como forma de “emburrecimento” dos alunos,
uma instituição que não é transformadora, e sim formadora. Ser meramente
“formadora”, em nosso tempo, acaba sendo insuficiente, já que está muito mais
perto de apenas moldar os alunos para a reprodução do sistema do que para uma
real transformação social. Ele relaciona, sobretudo, os estudantes de baixa renda,
que no Brasil são, em geral, os alunos da rede pública de ensino:
Muitos estudantes, especialmente os mais pobres,
percebem intuitivamente o que a escola faz por eles. Ela os
escolariza para confundir processo com substância.
Alcançado isto, uma nova lógica entra em jogo: quanto
mais longa a escolaridade, melhores os resultados; ou,
então, a graduação leva ao sucesso. O aluno é, desse modo,
“escolarizado” a confundir ensino com aprendizagem,
obtenção de graus com educação, diploma com
competência, fluência no falar com capacidade de dizer
algo novo. (Illich, 1985)
E não é só a escola, como instituição que está fadada ao fracasso na concepção de
Illich. Ele elenca também, em uma lógica única, que as instituições que devem ser
mantidas na sociedade são as que contribuem para para ela, não as que fazem os
seres humanos agirem como dependentes. Essas instituições não transformam o
ser, apenas o utilizam como forma de sua própria manutenção.
21
Para saber mais, ver: Bucci, Eugênio. “Em torno da instância da imagem ao vivo”. MATRIZes, ano 3, n. 1, p. 65-79, ago./dez. 2009; e “O olho que vaza o olho”. In: NOVAES, Adauto (org.). A experiência do pensamento. São Paulo: Edições Sesc-SP, 2010, pp. 289-321. 22
Conceito de Marc Augé, que considera que ainda não ultrapassamos os tempos modernos, discordando do conceito de pós-modernidade do pensador David Harvey. Marc Augé é citado por Egênio Bucci em “Ubiquidade e instantaneidade no telespaço público: algum pensamento sobre televisão”. Caligrama, v. 2, p. 1-27, 2007.
O autor cita o exemplo das instituições sociais que trabalham desta forma, pois
em seu entendimento, esse tipo de instituição não deveria existir, pois elas só
existem porque há um problema. A regra é simples, se não existisse o problema,
não se precisaria dessas instituições. Enxerga-se a escola assim delineada como
uma dessas instituições, que hoje coloca a formação das pessoas como solução,
sendo que teria de fazer muito mais. Para Illich, a escola não consegue
transformar, por conta da maneira de como está institucionalizada.
O aprender está, afinal, muito além da institucionalização:
Pobres e ricos dependem igualmente de escolas e hospitais
que dirigem suas vidas, formam sua visão de mundo e
definem para eles o que é legítimo e o que não é. O
medicar-se a si próprio é considerado irresponsabilidade; o
aprender por si próprio é olhado com desconfiança; a
organização comunitária, quando não é financiada por
aqueles que estão no poder, é tida como forma de agressão
ou subversão. (Illich, 1985)
Comentários finais
O debate sobre o ensino, seja ele público ou privado, é um assunto da esfera
pública, por isso a discussão sobre mudanças viáveis em um sistema escolarizado
e meritocrático como o nosso serão debatidas e enfrentadas com muito mais
cautela e implicará muito mais tempo, muito mais gerações do que o desejado.
Mas o fato é que não há como pensar meritocracia sem estourarmos a bolha. Nós
como professores, jornalistas, cidadãos ou seres sociais sabemos que a vida social
é bem mais complexa do pequenas comunidades ou grupos. A vida em toda a sua
totalidade não pode ser pautada nos pequenos círculos sociais – uma empresa,
um time de futebol. Não vivemos também em uma tela de vídeo game em que
esforço, sucesso e riqueza sempre parecem ser uma premiação “justa”. Os
“esforços” dados por cada um são relativos, são diferentes e individuais, e isso é
decisivo na hora de educar e transformar nossas crianças, pois “habilidade,
conhecimento, importância” são valores individuais “e não valores sociais
universais (direito à vida, justiça, liberdade, solidariedade, etc.)” (Souza, 2013).
Por isso, pensamos em uma escola cada vez mais abrangente, quanto mais fatos
sociais forem aceitos por elas, mais comportamentos sociais serão considerados
bem-sucedidos.
Quando comecei a escrever este ensaio já não acreditava na meritocracia
implicada no sistema educacional, agora tenho dúvidas também sobre a
escolarização como melhor maneira de transformar as pessoas
No entanto, sabemos que a história da humanidade, sobretudo a história da
sociedade civil, é feita de processos e passagens, é só percorrendo um estágio, que
atingiremos outro. Nossa história é fadada ao desafio constante. Assim, o
processo de concepção das escolas, da criação das escolas públicas, da
democratização da escola foram extremamente importantes. Processos esses que
foram necessários e nos levaram a pensar em uma sociedade desescolarizada,
mesmo ela sendo hoje quase uma utopia.
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