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CAROLINA MARQUES DE CARVALHO O PAPEL DA MEMÓRIA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE EM FUGITIVE PIECES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: MESTRADO EM TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA Maio de 2005

CAROLINA MARQUES DE CARVALHO - ufsj.edu.br · Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de ... pela Companhia das Letras, sob o título

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CAROLINA MARQUES DE CARVALHO

O PAPEL DA MEMÓRIA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE EM FUGITIVE PIECES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: MESTRADO EM TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

Maio de 2005

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CAROLINA MARQUES DE CARVALHO

O PAPEL DA MEMÓRIA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE EM FUGITIVE PIECES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de São João Del-Rei, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura Linha de Pesquisa: Memória e Identidade Cultural

Orientadora: Profa. Dra. Magda Velloso Fernandes de Tolentino

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: MESTRADO EM TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

Maio de 2005

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CAROLINA MARQUES DE CARVALHO

O papel da memória na constituição da identidade em Fugitive Pieces

Banca Examinadora:

Profa. Dra. Magda Velloso Fernandes de Tolentino - UFSJ Orientadora

Profa. Dra. Lyslei de Sousa Nascimento – UFMG

Prof. Dra. Suely da Fonseca Quintana – UFSJ

Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras

03 de maio de 2005

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À minha razão de viver, meus filhos Gabriela e Luiz Felipe, ao alimento de minh’alma, meu amor, Témiston.

5

Senhor, obrigada por ter me concedido

a faculdade da leitura.

Magda você foi incansável em sua dedicação, carinho e principalmente em sua interminável busca pelo novo. Agradeço também à Universidade Federal de São João del-Rei, por acreditar na seriedade do curso de Letras, a todos os outros professores do curso que se mostraram presentes e dedicados ao nosso crescimento, e em especial à professora Suely que indiretamente contribuiu na concretização deste trabalho.

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“Time is a blind guide.”

Anne Michaels, in Fugitive Pieces

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RESUMO

Os estudos teóricos sobre identidade, memória, luto e nação, abordados ao longo

deste trabalho, visam a uma reflexão sobre as mudanças ocorridas no cenário

histórico e político do pós Segunda Guerra Mundial. A obra Fugitive Pieces de

Anne Michaels serve para exemplificar de que forma esses estudos foram sendo

realizados com o fim de explicar as transformações ocorridas e suas

conseqüências para todos que sobreviveram a ela. O texto ficcional, ao tratar

desse momento, incita uma reflexão a respeito dessas conseqüências diretas e

indiretas registradas na obra pelo olhar da personagem Jakob, cuja identidade

cultural é formada pelos diferentes espaços geográficos ocupados por ele durante

sua vida. Ao falar sobre a construção da escrita memorialística, principalmente

dessa personagem, a obra levanta uma questão sobre a utilidade dessa escrita

uma vez que ela serve para registrar os eventos desse período e contribuir para

uma escrita performática da história. Os vazios decorrentes da dificuldade que os

sobreviventes encontram em relatar seus eventos contribuem para construir um

posicionamento traumático frente às atrocidades da guerra e revelar a fragilidade

dessas pessoas em relação a suas próprias histórias. Além da reflexão que

discute a construção da identidade das personagens envolvidas na ficção e seu

processo de escrita – ou não – pelo viés da memória, o problema do luto na vida

desses sobreviventes, decorrente da incapacidade de enterrar seus mortos,

também foi abordado neste estudo, já que esse ritual é raramente vivido por

essas pessoas, o que gera conseqüências que contribuem para seu processo de

perda e desorientação tão presentes no mundo contemporâneo. O luto deve ser

visto como um ritual que auxilia na transposição desse posicionamento traumático

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permitindo a reconstrução da vida dessas pessoas. Também através desse

processo a reconstrução da identidade é percebida, pois auxilia a se retomar as

lembranças de um tempo que já se perdeu sem se levar em consideração

conceitos como certo ou errado, mas de diferente. A transposição através da qual

Jakob consegue reestabelecer seus vínculos afetivos e identitários, não deve ser

entendida como um processo de reterritorialização, um enraizamento territorial

como a palavra pode propor, pelo contrário, ela está mais próxima da fluidez do

conceito de identidade que a época pós-moderna exige por se estabelecer

justamente na comunhão de várias culturas.

ABSTRACT

Some theoretical studies on identity, memory, nation and mourning are

examined here in an endeavour at reflecting on the changes which took place in

the political and historical scenario after World War II. Anne Michaels’s novel,

Fugitive Pieces, is taken to exemplify how these studies explain the above

mentioned changes and the consequences suffered by those who survived the

war. Her novel incites us to reflect on these consequences, direct and indirect,

through the eyes of the main character Jakob, whose cultural identity is formed

along all the geographical spaces he occupies in his lifetime. Using the

memorialistic style of writing, the novel raises the question of the usefulness of

such a style, since it registers Post-war times and contributes to a performatic

writing of history. The difficulty the survivors of the holocaust present in narrating

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their experiences help build a frame of the trauma in face of the war atrocities and

also help to reveal the frailty of those people before their own history. Besides

reflecting on the construction of the identity of the characters in the novel, as well

as their process of writing – or not writing – through memory, the question of

mourning in the lives of the survivors who were unable to bury their dead is also

broached in this work; the burial ritual is very seldom completed by them, a fact

which will bring consequences that will contribute to their feeling of loss and

disorientation, so common in the contemporary world. Mourning must be seen as a

ritual which helps in the transition of their traumatic experiences into a

reconstruction of their lives. The reconstruction of their identity is also discussed in

the same process. The means through which Jakob achieves the re-establishment

of ties of affection and identity must not be understood as a process of

reterritorialisation, a territorial rooting as the word might lead one to suppose, but

rather as a fluidity in the conception of identity which post-modern times demand in

the communion of different cultures.

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SUMÁRIO

RESUMO ...................................................................................................... 07

1 INTRODUÇÃO............................................................................................ 11

2 TERRA NULLIUS........................................................................................ 30

3 OS CARREGADORES DE PEDRA............................................................ 62

4 A ESTAÇÃO INTERMEDIÁRIA................................................................... 91

5 PHOSPHORUS........................................................................................... 108

6 SEM UTILIDADE A MEMÓRIA MORRE..................................................... 114

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................... 119

BIBLIOGRAFIA...............................................................................................122

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1. INTRODUÇÃO

Após a Segunda Guerra Mundial muito se discutiu sobre as mudanças

no cenário histórico, geográfico e cultural do mundo. O relacionamento entre

países diferentes tornou-se, em grande escala, hostil e pacífico nas mesmas

proporções. As mudanças geopolíticas no leste europeu levantaram questões de

nacionalidade e patriotismo, assim como o processo de multiculturalismo que as

diásporas pós-coloniais sofreram. Tudo isso colaborou para que surgisse na

Inglaterra um grupo de teóricos que entendiam as questões culturais como

problemas intrinsecamente ligados a diferentes campos do conhecimento tais

como sociologia, antropologia, pscicologia, filosofia, literatura e áreas afins. Essas

áreas estavam de tal modo imbricadas e relacionadas à cultura que elas se

alinharam para, conjuntamente, explicar as modificações e transformações do

homem contemporâneo. Dentro desse clima de mudanças e assimilações, os

estudos sobre identidade e memória ganharam mais atenção pela sua grande

relevância dentro dos estudos culturais.

Um romance canadense me chamou a atenção por se inserir nesses

estudos sobre identidade e memória. Pelo viés memorialístico e por falar de um

tempo conflituoso que abriu as portas para os Estudos Culturais, o pós-guerra, a

obra serve ao propósito de exemplificar de que maneira as teorias sobre

identidade, memória, luto e nação podem ser apresentadas e assim reclamar uma

análise teórica que estude essa atenção dispensada à identidade no mundo

contemporâneo.

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No livro Fugitive Pieces de Anne Michaels percebi questões que lidavam

diretamente com os assuntos relacionados à construção de identidade que têm

sido discutidos ao longo do final do século XX e início deste. Outro aspecto da obra

que me chamou a atenção foi o fato de eu ter descoberto, através de consultas na

Internet a respeito do romance, que ele havia sido traduzido em várias línguas,

inclusive recebido uma tradução aqui no Brasil, pela Companhia das Letras, sob o

título Peças em Fuga e ter sido pouco difundido. Além disso, em 26 de janeiro de

2005 comemorou-se o fim da Segunda Guerra, data que leva em consideração a

libertação dos prisioneiros do maior campo de concentração nazista de que se tem

notícia, Auschwitz, na Polônia. Quando me interessei de fato em descobrir o que

poderia ser analisado à luz das teorias que discutem identidade e memória, reli o

livro e percebi a riqueza cultural de seu conteúdo.

O romance narra a história de um garoto judeu polonês desde os sete

anos de idade. Ele sobrevive ao ataque alemão em seu país quando a Alemanha

descumpre o Pacto de Varsóvia. É o início da Segunda Guerra Mundial. Jakob

Beer, o garoto, só sobrevive ao ataque porque se esconde atrás do papel de

parede do armário da copa de sua casa no momento em que uma bomba explode.

Após se dar conta de que seus pais haviam morrido e que sua irmã, Bella, havia

desaparecido, ele corre para se salvar. Em sua fuga, entre se esconder e tentar

sobreviver, Jakob é resgatado por um geólogo grego que fazia escavações em

Biskupin – um famoso sítio arqueológico na Polônia, também chamado de

Pompéia polonesa – durante a guerra, para escrever seu livro, Prestando falso

testemunho, um livro que registra como os nazistas haviam violado a arqueologia

polonesa para distorcer o passado. O sobrevivente é, então, levado para a Grécia

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e criado por Athanasious Roussos, o último de uma linhagem de marinheiros que

datava de 1700. Athos, como carinhosamente Jakob o chama, passa a ser o

koumbaros dele, seu padrinho. A infância de Jakob se passa na Grécia ao lado de

Athos e dos poucos amigos que eles tinham. Durante sua vida ao lado de seu

koumbaros, Jakob ouve muito sobre o que fora a guerra e tudo que esta envolvera.

Suas memórias de adulto recontam sua vida com um olhar mais maduro e mais

crítico e conseqüentemente, mais doloroso. Mais tarde, quando Athos recebe um

convite para lecionar em uma universidade no Canadá, eles se mudam para esse

país e lá Jakob passa sua adolescência e idade adulta. Em sua educação, o garoto

aprende grego, latim e hebraico, sob a alegação de seu padrinho de que ele

estaria “recordando o seu futuro”. Além disso, Athos ensina-lhe literatura e

geologia. Mais tarde, no Canadá, Jakob se interessa mais por literatura e passa a

fazer traduções de poemas do grego para o inglês para ganhar a vida. Jakob se

casa duas vezes. O primeiro casamento com Alex fracassa devido à solidão de

Jakob e sua dificuldade em se relacionar, dificuldade proveniente de sua

experiência de perdas. Seus constantes pesadelos o assombram por muito tempo.

Já sua segunda esposa, Michaela, o acompanha até a morte.

A história da vida de Jakob é escrita por ele próprio em um diário. Este

constitui suas memórias, que oscilam entre as lembranças de sua infância,

adolescência e idade adulta e os constantes pesadelos por causa de suas grandes

perdas. Sua irmã Bella é quem mais o incomoda, pelo fato da incerteza de sua

morte. Em um segundo momento do livro, o leitor é apresentado à personagem

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Ben, também judeu, filho de sobreviventes do Holocausto1 e residente no Canadá.

Ben, não o diminutivo de Benjamin como muitos devem imaginar, mas a palavra

hebraica para “filho”, conhece Jakob em uma festa na casa de um amigo e, quando

sabe de sua morte, vai até a Grécia para tentar encontrar o diário de Jakob. Ben se

diferencia de Jakob por viver sua cultura judaica e por ver em seus pais as

conseqüências da guerra – um homem e uma mulher calados e que viviam

isolados das outras pessoas como se desconfiassem de todos. Por ocasião da

morte de seus pais, Ben encontra uma fotografia deles com outras duas crianças,

Hannah e Paul, e descobre que tinha tido dois irmãos. Sua dor não é apenas a de

descobri-los, mas a de saber que seus pais guardaram esse segredo durante toda

sua vida. Um segredo de guerra. Uma experiência que não se troca. Descobrir que

seus irmãos não sobreviveram porque seus pais foram obrigados a ir para o gueto

foi um sofrimento que revelou a angústia de não poder sofrer o luto da perda.

As histórias de Jakob e Ben se confundem e ao mesmo tempo se fazem

diferentes. Jakob não é um judeu que conserva essa tradição como parte de sua

vida. Apesar de judeu por nascimento, ele se torna um homem com intervenções

culturais de origem grega e canadense, além da aquisição lingüística do inglês, do

latim e do hebraico. Um outro fator que diferencia uma personagem da outra é a

maneira como ambos lidam com a questão do luto. Tanto Jakob como Ben passam

por perdas muito fortes em suas vidas. O judeu-polonês perdeu seus pais e sua

irmã, mas por causa de Athos e do carinho que recebe dele consegue diminuir sua

dor e ao longo de sua vida é capaz de superar a perda. Já Ben não consegue

1 O termo Holocausto, empregado ao longo da dissertação, foi tomado de empréstimo dos autores utilizados para desenvolver toda a argumentação teórica, embora hoje haja uma tendência em se substituir esse termo pela palavra genocídio.

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superar seu sofrimento porque não teve de seus pais um suporte para entender e

minimizar as conseqüências que a guerra deixou.

O romance, ao abordar essas questões identitárias, levou-me a

aproximar esses problemas àqueles outros que os teóricos do pós-guerra

passaram a estudar. Além dos problemas causados pela guerra, outros fatores

estudados vinculados às descolonizações fazem-nos refletir sobre a situação

daquelas pessoas que construíram sua identidade de maneira heterogênea. As

questões que os teóricos mais levantam estão vinculadas diretamente aos fatores

de aculturação, transferências de culturas e imposição cultural que os povos

colonizados sofreram. Esses fatores geram conseqüências que determinam o perfil

do homem contemporâneo a partir de sua impossibilidade de ser entendido como

soberano, inteiro, científico. O homem fragmentado e sem uma identidade fixa, o

homem que não se faz por sua plena imobilidade é o retrato do homem

contemporâneo.

No trabalho que ora proponho realizar, o de refletir sobre questões de

identidade, pretendo usar o livro Fugitive Pieces para pontuar os itens abordados

na discussão teórica que será apresentada mais adiante. Nele a escritora aborda

questões culturais que não se vinculam diretamente ao multiculturalismo

decorrente dos países pós-colonizados, mas se aproxima do resultado sofrido por

aqueles povos, e percebo que a importância de seu trabalho atinge um âmbito

mais global do que local. O livro traz de volta à cena da história ocidental as

conseqüências da Segunda Guerra Mundial e, em decorrência disso, a autora

canadense reacende o problema vivido pelos judeus de antes e de agora. Entendo

que a obra não seja um texto em defesa desse povo, entretanto incita em quem a

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lê alguma reflexão a respeito das atrocidades que o Terceiro Reich ousou cometer.

Anne Michaels apresenta o resultado aviltante da guerra, no romance, por dois

olhares. O primeiro olhar é o do sobrevivente direto da guerra, Jakob Beer, e o

segundo do homem que testemunhou em seus pais a angústia da sobrevivência

dessa guerra. É importante marcar que a apresentação do primeiro olhar só é dada

ao leitor pelos olhos da segunda personagem, Ben, que em uma viagem à Grécia

encontra o diário de Jakob. É interessante notar, também, que o sobrevivente

direto do genocídio na Polônia foi capaz de achar o caminho de sua redenção,

enquanto o outro, que só viveu a guerra em segunda mão, através da reação dos

pais, tem mais dificuldade em se tornar inteiro.

Ao abordar o problema da dispersão dos judeus no pós-guerra, pelo viés

memorialístico, a escritora apresenta em seu texto a relação cultural que existiu

entre o sobrevivente do Holocausto, o polonês Jakob; um grego, Athos, que o

acolhe; a Grécia onde cresce; e um país que mais tarde os recebe: o Canadá.

Quando o leitor entra em contato com o mundo de Jakob através da leitura de Ben,

percebe ser inevitável o relacionamento entre essas três culturas, a judaica, a

grega e a canadense. A relevância que o narrador permite ao leitor destacar nessa

aproximação consiste na forma como ela é apresentada. O narrador mostra

questões relacionadas ao convívio familiar, ao processo de aquisição de uma

língua estrangeira e ao recebimento de uma nova cultura, o que vai nos levar a ter

um melhor esclarecimento dessa relação cultural. Mesmo sob a influência de

fatores culturais diferentes, Jakob é incentivado a manter a sua origem judaica. Da

mesma forma, a aquisição de novos espaços e novos conhecimentos inserem a

personagem em outras culturas. Essa aculturação aparentemente não revela um

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tom inquietante, pois a personagem, por ser muito jovem à época de seu resgate,

guarda apenas a lembrança de sua família e não esboça resistência para receber,

de Athos, ensinamentos sobre outras culturas. Essa lembrança familiar é o único

vínculo que Jakob tem com a ascendência judaica, entretanto é o suficiente para

que o narrador apresente ao leitor alguns dos problemas da guerra, desde a

entrada dos alemães na Polônia até o ostensivo ataque alemão ao povo grego

usando subterfúgios que justificassem a ofensiva. Entre eles cito as escavações de

sítios arqueológicos gregos que os alemães diziam se remeter a seus

antepassados.

O livro Fugitive Pieces de Anne Michaels apresenta questões marcantes

de identidade que estão intrinsecamente ligadas às preocupações atuais dos

teóricos dos Estudos Culturais. Essas questões se apresentam no romance pelo

viés da memória, que hoje se entende estar em estreita consonância com os

aspectos de identidade.

Dentro do objetivo geral deste trabalho, que é estudar as questões

teóricas sobre memória, identidade, luto e nação que a análise da obra permite, ao

exemplificar a aplicação de tais teorias tomarei como ponto de partida a

personagem Jakob por se apresentar ao leitor em sua incompletude e

fragmentação e por representar um momento histórico que comunga perda e

desorientação.

O capítulo Terra Nullius abordará a questão da memória. A história de

Jakob é contada por esse viés e por isso serão utilizadas as teorias sobre memória

segundo Henri Bergson (1990), Walter Benjamin (1993), Michel Pollak (1989) e

Benedict Anderson (1991). O teórico da filosofia, Henri Bergson, direciona seus

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estudos para a questão da memória do ponto de vista de sua ligação com o

espírito, propondo a divisão da memória em mente e matéria. O teórico tenta

relacionar esses dois pólos sob o conceito de imagem e percepção (ordem

material) e lembrança e memória (ordem espiritual).

A explicação de Bergson para a constituição da memória serve como

ponto de partida para que este trabalho seja executado. Além da relação entre

imagem/percepção e lembrança/memória é preciso estudar a dialética que essa

relação opera quando as lembranças são acionadas pela percepção.

Walter Benjamin (1993) esclarece como o advento da imprensa marcou

a história da humanidade da mesma forma que contribuiu para que a oralidade

fosse se silenciando. Se antes dela as narrativas eram marcadas pelo seu teor

oral, naquele momento de “progresso” ela foi substituída pela sua impressão no

papel. Ao teorizar sobre o narrador, Benjamin diz que o narrador que antecedeu

esse instante industrial se organizava a partir das imagens do marinheiro e do

artesão. Ambos constituíam metades do contador de histórias e dessa maneira

eles intercambiavam suas vozes fazendo com que a dialética da memória se

efetuasse. Mas na era da técnica não havia mais espaço para a oralidade, porque

as experiências intercambiáveis, que antes favoreciam a narrativa oral, tinham

sido substituídas pelo silêncio dos combatentes que retornavam da guerra.

Entendendo a memória como um processo que articula a lembrança e o

esquecimento de experiências; se essas se calam ou se empobrecem, a dialética

memória-esquecimento não ocorre porque há a escolha pelo silêncio. Embora a

memória inclua o silêncio como um fator que contribui para a constituição da

identidade, este se aproxima mais dos vazios que a memória não pretende reaver.

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Como complementação desse estudo relacional entre a lembrança e o

esquecimento, Anderson (1991) vai apresentar a dialética como um processo de

articulação entre o novo e o velho. Nessa aproximação, o teórico percebe os laços

que vinculam essas duas eras. O autor dá como exemplo os países que foram

colonizados e compartilharam com seus colonizadores uma língua, uma religião e

uma tradição.

Além disso, os teóricos dos Estudos Culturais levam em consideração a

minoria marginalizada em decorrência de sua situação social, política e/ou religiosa

envolvendo os aspectos culturais de todos os locais do globo terrestre. Na

verdade, esses autores estão escrevendo sobre as conseqüências e efeitos das

descolonizações que aconteceram nos séculos XIX e XX, das grandes guerras do

século XX e das diásporas que sucederam essas guerras. Os teóricos se

preocupam efetivamente com os resultados que as misturas culturais de todos

esses acontecimentos, guerra e descolonização, trazem.

Se antes Benjamin e Anderson deram uma ênfase maior à memória

individual ou restrita a um grupo, Pollak alarga seu alcance e discute a questão da

memória num âmbito muito maior. A operação dessa dialética memória-

esquecimento passa a fazer parte do contexto social. É interessante entender que

Pollak opera dentro do deslocamento do individual para o coletivo e assim ele

entende que as lembranças podem ocupar o espaço do privado, porém não

permanecem lá. Elas transitam do privado para o público e, ao se tornarem visíveis

e apreensíveis, passam a disputar um lugar com aquelas memórias que sempre

existiram somente no espaço público – as memórias coletivas das guerras, das

situações conflituosas, dos campos de concentração, se misturam àquelas que os

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livros de histórias tradicionais sempre contiveram. A problematização do ato de

narrar encontra seu reforço no aspecto social, segundo o autor, porque defronta

com as dificuldades de reintegração de seus autores. Essa dificuldade também se

revela na reintegração social depois de uma hecatombe.

O capítulo Os carregadores de Pedra vai apresentar uma análise

comparativa entre as personagens Jakob Beer e Ben, ambos de origem judaica,

apesar de essa ascendência se fazer mais presente em Ben. Neste capítulo, tomo

como ponto de partida a questão do luto. O problema do luto na vida daqueles que

não enterram seus mortos é um dos pontos fundamentais deste estudo. A teoria

do luto a ser observada passa pelos conceitos de luto “anormal” (abnormal

mourning) e luto “inaugurado” (inaugurated mourning) desenvolvidos pela filósofa

Gillian Rose (apud Parry, 2000). A tentativa de Rose é operar fora do discurso

iluminista da razão, do discurso do poder. Dessa maneira ela explica que os

sobreviventes do Holocausto sofrem com os fantasmas de seus mortos porque

eles não conseguem ou não podem enterrá-los devidamente. Esse sofrimento é

descrito por ela pelo viés do luto “anormal”, entendido como resposta àqueles

seres amados que não puderam ser enterrados e/ou velados; assim os mortos

não descansam e os que ficam vivos não conseguem recomeçar; e pelo viés do

luto “inaugurado” aquele que reconhece e aceita as leis que regem a ausência do

outro e permitem que o sofredor retome seu dia-a-dia e retome também as novas

e as velhas relações com aqueles que vivem. Rose acrescenta ainda em sua fala

o comprometimento político que é preciso se ter para com essas pessoas que

alcançaram o segundo tipo de entendimento.

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Torna-se possível pensar a obra Fugitive Pieces como uma resposta às

vozes assombradas de Auschwitz que se fizeram no silêncio e na perda de

metáforas dos vínculos familiares e pessoais antes tão marcados. A teoria do luto,

como foi dito anteriormente, é aplicada a dois personagens da obra: Jakob e Ben.

Jakob Beer é um sobrevivente da invasão alemã na Polônia. Ainda criança ele vê

seus pais serem assassinados e sofre com o desaparecimento da irmã. Sua fuga

permite-lhe encontrar o geólogo grego, Athos. Desse encontro surge uma

cumplicidade muito grande. Dentre as muitas coisas que Athos ensina a Jakob,

encontra-se o ato de reverenciar os mortos, respeitá-los e deixá-los descansar.

Em princípio Jakob sofre diretamente os horrores da guerra, tendo pesadelos

intermináveis com sua família, principalmente com sua irmã. Mais tarde, já em seu

segundo casamento, ele consegue colocar em prática os ensinamentos de Athos

em relação a amar e se deixar ser amado. Assim, ele acaba por ultrapassar a

fronteira que existe entre os dois tipos de luto e consegue chegar no segundo,

consegue ser feliz e enterrar os fantasmas que o atormentaram por muitos anos.

Esse alcance já não acontece com a segunda personagem.

A história de Ben é um pouco diferente da história de Jakob. Seus pais

conseguiram escapar dos campos de concentração, mas perderam dois filhos na

guerra. O silêncio deles nunca permitiu que os fantasmas do Holocausto fossem

devidamente enterrados, embora Ben só pudesse entender isso após a morte do

pai. Até este morrer, ele nunca soubera da existência de seus irmãos. Ben não

consegue romper com seu sentimento de perda porque durante toda sua vida ele

não recebeu de seus pais explicações já que, também, eles mesmos não

conseguiram romper com o luto “anormal”. Também após a morte de seu pai, Ben

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vai à Grécia para recuperar o diário de memórias de Jakob e descobre que,

apesar de Jakob também ter sofrido com os horrores da guerra, este conseguira

se redimir e aceitar a ausência do outro. De volta para o Canadá, Ben tenta

restabelecer a relação conjugal com sua esposa Naomi. Ele muda seus

pensamentos em relação ao relacionamento de seus pais, o que o leva a tentar

aplicar esse aprendizado em seu próprio relacionamento. Essa mudança não é

clara no texto, o que faz com que o leitor pense que ela só se tornará possível se

Ben realmente se esforçar. Caso Ben consiga mudar, ele também estará

rompendo com as barreiras do luto “anormal” e estará conseguindo caminhar em

direção ao luto “inaugurado”. A posição de Ben corresponde, de acordo com Rose

(apud Parry, 2000) a uma definição de pós-modernismo – uma rejeição da razão

que se liga à tradição do pensamento do qual se deve libertar. Uma solução para

essa rejeição seria o que Jakob conseguira fazer, uma reorganização do velho

com a possibilidade de novas relações. Rose levanta também a importância de se

pensar nesse processo sem se deixar levar somente ou pelo indivíduo ou pelo

coletivo. Fugitive Pieces consegue esse desenvolvimento porque apresenta vidas

de sobreviventes do Holocausto sem se sucumbir ao singular.

Relacionar Jakob e Ben é possível porque na vida de ambos houve

mortes que não puderam ser lamentadas. Jakob perde seus pais. Já a perda de

sua irmã não traz a certeza da morte. Isso se transforma em um pesadelo que o

acompanha até sua maturidade. A perda de Ben é mais complexa, ela reflete uma

outra perda, aquela que seus pais não souberam digerir. Embora haja

semelhanças entre Jakob e Ben, eles contribuem para a constituição da

identidade judaica de maneira diferente. Jakob não vive sua cultura, ele não fala

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dela a não ser quando Athos o faz lembrá-la. Já Ben vive sua condição judaica

cada vez que se lembra do sofrimento e do silêncio de seu pai.

Com o propósito de estudar a questão da identidade, o capítulo A

estação intermediária pretende analisar de que maneira o texto da autora

canadense permite ao leitor identificar na personagem Jakob características que o

inserem no cenário contemporâneo onde o homem é apresentado como o

resultado das mudanças em todos os setores da sociedade: um homem sem

referência soberana e unilateral, um homem que se apresenta fragmentado e que

não pode mais ser mostrado em sua completude.

Porém, antes de caminharmos em direção à discussão sobre identidade

que o teórico Stuart Hall (2003) proporciona, tomemos como exemplo um outro

teórico da História que reflete sobre a problematização da aquisição lingüística

vinculada à tentativa de uma homogeneização identitária. Em seu trabalho sobre

nação e nacionalismo, Erik Hobsbawn (1990) explica a construção do pensamento

nacionalista vinculado à homogeneização da língua. Em fins do século XVIII e

início do século XIX, a organização territorial que constituía os Estados-Nação se

preocupava com as questões de etnia e língua. Naquele momento da história, um

estado se formava a partir da aproximação desses fatores. Na obra a ser estudada,

não se percebem questionamentos vinculados ao estudo de nacionalismo, mas a

teoria aplicada a esse estudo pode servir ao propósito da identidade. Quando

Hobsbawn retoma a questão da língua como unificadora e formadora de uma

memória coletiva, aproveito seu conceito para que possa aplicá-lo a uma

personagem que constrói sua identidade justamente na desconstrução da

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homogeneidade lingüística. Uma língua sem memória possibilita a Jakob construir

seu passado.

A diversidade lingüística à qual foi submetida a personagem Jakob e a

influência que essa diversidade exerce em seu processo de memória e não-

memória identitárias, conduz a narrativa dessa identidade móvel no romance pelo

processo dialético que os atos de lembrar e de esquecer encerram. Para tanto, é

necessário lembrar que a unidade lingüística serviu na ocasião do surgimento do

pensamento nacionalista para empregar-se como unificadora dos Estados-nação

que emergiam. Na obra estudada, não se pode falar em Estado-nação, tanto

porque o surgimento do Estado de Israel se deu logo após a guerra e porque

Jakob não apresenta vontade de retornar à Polônia ou desenvolver sua tradição

judaica. A teorização acerca da questão da língua passará pelo viés desta como

construtora de uma identidade plural. Ao mesmo tempo, essa unificação não se

encerra em uma nacionalidade porque Jakob adquire culturas que são diferentes,

mas que se complementam. Além de perceber a colaboração da diversidade de

línguas na obra, será preciso fazer um estudo para perceber de que maneira a

escrita memorialística em Fugitive Pieces é construída, apresentando questões

culturais que justifiquem sua análise como uma não-memória de Jakob e

conseqüentemente uma identidade móvel. Um aspecto que favorece a construção

da identidade móvel da personagem Jakob Beer se faz através da aquisição de

línguas estrangeiras que, para a personagem, serve como um artefato de fuga da

dolorida origem polonesa. Segundo Jakob, aprender a língua inglesa era aprender

um alfabeto sem memória e isso o facilitava recordar: “English could protect me; an

alphabet without memory” ( Michaels, 1998: 101). As memórias de Jakob que se

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vinculavam à aquisição do inglês eram as mesmas que lhe permitiram ultrapassar

as barreiras do luto. Ele passa a ser capaz de conviver com seu passado porque a

língua na qual ele se lembra não o compromete emocionalmente. Em um outro

momento do texto, quando ele tem contato com um comerciante, no Canadá, que

falava Ídiche, ele se sente ressentido, para ele essa língua era feita de consoantes

muito ásperas.

Esse cenário de pluralidade é explicado por Hall não do ponto de vista

da construção do pensamento nacionalista, mas do processo posterior a esse

pensamento, as descolonizações. De acordo com Stuart Hall (2003), em seu

estudo sobre a identidade cultural na pós-modernidade, o homem contemporâneo

não deve ser visto mais como nos séculos XVIII e XIX porque o cenário histórico

do século XX não permite pensar em um homem racional, soberano e científico

dividido em mente e matéria. As conseqüências das guerras mundiais e das

descolonizações influenciaram na mudança desse paradigma. Hall (1994) explica,

tendo como base essas descolonizações, que a identidade cultural de um povo

colonizado não é algo definido pelos seus colonizadores, mas sofre modificações,

da mesma forma em que exerce modificações. Ainda de acordo com o teórico, o

homem contemporâneo não segue a linha de pensamento que o explicava a partir

do verbo “ser”, porém o explica agora a partir do verbo “vir a ser”. Essa mudança

de pensamento ocorre porque dentro da constituição da identidade cultural pós-

moderna há rupturas e descontinuidades que fazem com que elas sejam pensadas

como algo que tem histórias e efeitos reais; como identidades que são construídas

pela memória, fatos, narrativas e fantasias; e que se torna um dos vários

posicionamentos possíveis servindo à instabilidade da constituição da identidade.

26

Para o autor, as identidades culturais devem ser pensadas nesse eixo de tensão

que existe entre ser e tornar-se. É justamente esse eixo de tensão, ou seja, a

instabilidade identitária, que chama a atenção na obra. Jakob serve para

exemplificar esse novo conceito de identidade do homem pós-moderno que Hall

preconiza.

A justificativa de se tomar esse conceito que explica o ato de “tornar-se”

dentro do que Hall estuda acerca da identidade cultural se faz porque, apesar de

estarmos analisando um judeu-polonês que não participa do processo chamado

descolonização, é possível pensar esse homem como fragmentado e com uma

profunda influência cultural exercida pelos espaços geográficos e humanos que ele

ocupa durante sua existência. O estudo sobre a identidade cultural dos povos

colonizados abriu a possibilidade de ampliarmos o olhar para as pessoas que por

um motivo diferente sofreram a influência de outras culturas que não se

assemelham à sua cultura original, mas cujo processo de aquisição pode ser

comparado ao da imposição cultural sofrida pelos povos colonizados. Para

entender esse argumento, é importante ter em mente a condição da personagem

Jakob: um judeu-polonês resgatado por um grego logo após uma bomba matar sua

família na Polônia. Dessa forma, Jakob recebe a influência da cultura grega. Mais

tarde ele se muda para o Canadá com seu padrinho e vai ser influenciado pela

cultura canadense. A personagem também carrega em si a cultura judaica. Ou

seja, Jakob não fez parte do processo descolonizador, mas sua situação de

sobrevivente da Segunda Guerra Mundial e o fato de ter sido criado fora de seu

país de origem, além de ter recebido influência de outras culturas, permite

estabelecer uma aproximação com as teorias que explicam as transformações a

27

que foram submetidos os povos colonizados, mesmo que o termo

desterritorializado explique melhor sua condição.

Essa problematização da interferência cultural sofrida pela personagem

Jakobe sua condição de influenciado pela cultura do outro levantam mais

questionamentos: a sensação de ser estrangeiro em si mesmo. Julia Kristeva

(1994) aborda esse assunto para falar que o conceito “estrangeiro” sofreu

mudanças na contemporaneidade. Kristeva explica que o antigo conceito foi

substituído por um outro que se aproxima mais do cenário histórico atual. Se antes

estrangeiro era a pessoa diferente e que de certa forma era um inimigo das

sociedades primitivas, hoje o estrangeiro está dentro de nós.

Para melhor clarificar os conceitos abordados neste trabalho, proponho

no último capítulo, Phosphorus, um estudo para demonstrar de que maneira a

história de Jakob pode contribuir para se afirmar que a História tradicional não é

mais contada de maneira linear. O conceito de narrativa performática de Homi

Bhabha (2003), desenvolvido em sua teorização, no qual a inserção de vozes

menores no processo de construção identitária de um povo é que faz com que o

discurso tradicional seja alterado, será tomado como base teórica. Esse novo

modo de continuar, ou ainda, de recontar a história por outros ângulos, instaura a

dúvida e se faz como uma sombra na tradição. Ao instaurar tal dúvida, as

pequenas vozes do Outro alimentam um processo concomitante ao da

performance denominado por suplementaridade, que também se faz presente e

desconstrói a noção de totalidade inaugurando a presença da diferença.

Entendemos suplementaridade como acréscimo e não substituição. Para

esclarecer tal conceito, é preciso retomar o que Jacques Derrida discute sobre isso

28

e que, ao anteceder Bhabha, dele se aproxima. Para Derrida, conforme Santiago

(1976), “suplemento” é algo que acrescenta ao todo em sua origem sem preencher

o vazio que a inaugura. Na verdade, o suplemento deve ser entendido como um

acréscimo que modifica sem substituir qualquer informação mas que, ao fazê-lo,

cria uma outra origem imaginada. De acordo com esse pensamento, a obra

Fugitive Pieces serve ao propósito do suplemento, pois permite uma outra leitura

acerca do que foi feito de um sobrevivente judeu da guerra e das conseqüências

trágicas para a família de outro judeu. Dessa maneira, a leitura da obra conduz o

leitor para o lado de fora do discurso tradicional. Ao mencionar o eixo performático

da narrativa na pós-modernidade, tanto quanto o eixo pedagógico, o que proponho

e entendo por relevante é o fato de que a personagem desterritorializada de Jakob

pode efetuar sua reterritorialização. De acordo com Bhabha, o eixo pedagógico é o

histórico, o tradicional. O eixo performático é a transformação diária, a assimilação

de outros valores e culturas. O ponto de cisão entre um e outro é o que constitui a

identidade nacional moderna. Ao fazer esse corte, o novo instaura a diferença que

é essencial na construção da identidade. De acordo com Renan (apud Bhabha),

essa cisão se caracteriza pelo conceito de plebiscito diário, que permite a escolha

e a construção de uma identidade a cada momento. Ainda que Bhabha esteja

teorizando a nação moderna, seu conceito pode ser aplicado para explicar como

Jakob colabora nesse plebiscito diário. Aos moldes de um pensamento que insere

e aceita o outro em sua diferença e que também o toma como parte da construção

do discurso tradicional, Jakob desconstrói sua tradição ao mesmo tempo em que

reflete sobre sua condição judaica quando apresenta as atrocidades cometidas

pelos alemães.

29

O trabalho, portanto, em sua totalidade, visa discutir as teorias modernas

sobre identidade, memória, luto e cultura e exemplificá-las com o romance de Anne

Michaels, Fugitive Pieces.

30

2: TERRA NULLIUS

He whispers again, dragging the listening heart of the young nurse beside him to wherever his mind is, into that well of memory he kept plunging into during those months before he died. Michael Ondaatje, In The English Patient

A história da vida de Jakob, como já foi dito, é contada pelo viés da

memória. Por esse motivo, neste capítulo, será necessário rever algumas teorias

que auxiliam o estudo da memória para que a análise da obra Fugitive Pieces

possa ser feita. Entendo que a relação entre lembrar e esquecer seja um processo

inerente à constituição da memória e por isso se faz tão relevante em seu estudo.

É uma articulação involuntária para que os fatos guardados pela lembrança se

transformem em memória. De acordo com alguns teóricos que estudam esse

processo, entre os quais destacamos: Henri Bergson (1990), Walter Benjamin

(1993), Michael Pollak (1989) e Benedict Anderson (1991), existe uma

aproximação entre a necessidade de lembrar e a vontade de esquecer para que se

constitua uma época, um tempo ou um acontecimento, tendo como elemento

propulsor a lembrança. Isso ocorre porque muitas vezes aquilo que queremos

lembrar faz parte de um período conflituoso ou dolorido que a nossa lembrança

procura esquecer; outras vezes faz parte de um momento de comemoração ou até

mesmo de superação que a nossa lembrança necessita reaver.

Lembrar nem sempre significa imaginar. A lembrança passa a estar mais

vinculada à vontade de se fazê-la; já a imaginação estaria mais relacionada a um

31

ato involuntário. A lembrança faz parte do campo do imaginário e precisa dele:

Imaginar não é lembrar-se. “Certamente uma lembrança, à medida que se atualiza,

tende a viver numa imagem; mas a recíproca não é verdadeira.” (Bergson, 1990:

111). Dessa forma a lembrança é o início da construção da memória e ela parte,

sem dúvida, dessa imagem quando voluntariamente existe o desejo da busca.

Para que se entenda o caminho a ser percorrido em relação às memórias de Jakob

Beer, faremos um estudo mais aprofundado do que Henri Bergson entende por

memória.

O teórico da filosofia direciona seus estudos para a questão da memória

do ponto de vista de sua ligação com o espírito. Em seu trabalho acerca da

constituição da memória, Bergson propõe a divisão da mesma em mente e

matéria. O teórico tenta relacionar esses dois pólos sob o conceito de imagem e

percepção (ordem material) e lembrança e memória (ordem espiritual). Para ele, a

memória serve para fazer a ligação entre o que se aplica ao campo do material e

ao campo do espiritual. De acordo com Bergson, o corpo que abriga essa

dualidade – mente e matéria – ocupa um lugar especial e é através dele que se

percebe o mundo. A percepção, o conceito que mais interessa à nossa análise, é

algo puramente material, uma ação da matéria que, por não existir isoladamente,

remete à lembrança, por sua vez uma ação do espírito oscilando entre lembrar e

perceber. Assim sendo, a imaginação, o ato involuntário, se auxilia da lembrança,

a ação voluntária, para trazer de volta os acontecimentos que ficaram registrados

no passado. Para o autor,

Em se tratando da percepção, ver-se-ão nela não mais que as sensações aglomeradas que a colorem; ignorar-se-ão as imagens rememoradas que formam seu núcleo obscuro. Em se tratando por

32

sua vez da imagem rememorada, ela será tomada como algo pronto, concebida no estado de fraca percepção, e fechar-se-ão os olhos à lembrança pura que essa imagem desenvolveu progressivamente. (Bergson, 1990: 110)

Bergson também argumenta que a percepção é na verdade uma construção da

imagem pura. Entretanto, essa imagem pura também utiliza a lembrança-imagem

para se constituir. Não há como se dizer onde começa uma e onde termina a outra.

Para trabalhar as lembranças e percebê-las, a memória se faz como um artefato

essencial, pois articula essa lembrança pura e sua percepção. Ela articula a

rememoração e a lembrança. Além da capacidade de relacionar fatos passados

com o instante presente e com o momento que ainda há de chegar, a memória

trabalha no campo da imaginação e da criatividade, permitindo, portanto, a

invenção do novo. Dentro de sua teoria sobre memória, para concretizar o

momento exato em que o registro do passado se torna visível, Bergson

desenvolveu uma representação do instante presente. Para o autor, esse instante

presente não é algo matematicamente fixado no tempo. Na verdade, o momento

presente pertence, ao mesmo tempo, ao passado e ao futuro. De acordo com a

explicação de Bergson, isso ocorre porque quando se fala do momento presente

ele já está se distanciando do sujeito, assim como também caminha em direção ao

futuro. Em suas palavras, “é preciso portanto que o estado psicológico que chamo

“meu presente” seja ao mesmo tempo uma percepção do passado imediato e uma

determinação do futuro imediato”. (Bergson, 1990: 113) É relevante observar os

instantes nos quais as lembranças acumuladas e assentadas em um passado

imóvel tocam o plano do presente para que se entenda como essa articulação é

33

feita. Bergson denominou essa representação de cone da memória. O cone da

memória de Bérgson, representado pela Fig. 1,

A B

P

S

Fig. 1 (Bergson, 1990: 125)

explica que a base AB contém as lembranças que foram se acumulando ao longo

do tempo e hoje fazem parte do passado, enquanto P significa o plano presente, o

instante do presente. Quando S, o vértice do cone, avança sem cessar tocando o

plano do presente, o plano representado pela letra P, a percepção que o presente

tem do que se foi, traz de volta a lembrança acumulada que se assentara na base

AB ao mesmo tempo em que a projeta para o futuro.

A explicação de Bergson para a constituição da memória, como um

processo que articula passado, presente e futuro, serve como ponto de partida

para que o presente estudo seja executado. Sua teorização acerca do

desenvolvimento da memória através de seu processamento revela a articulação

textual que Anne Michaels optou em usar para dar ao leitor uma sensação

semelhante à da articulação da própria memória. Todos os fatos apresentados no

texto de Anne Michaels em questão partem do momento presente e dele fazem

seu apelo ao passado ao mesmo tempo que se projeta para o futuro, pois é lá que

as conseqüências dessas ações habitam. Na teoria bergsoniana, esse apelo se faz

pela percepção que a(s) personagem(ns) de Fugitive Pieces te(ê)m dos

acontecimentos de sua(s) vida(s).

34

Além da relação entre imagem/percepção e lembrança/memória é

preciso estudar a dialética que essa relação entre lembrar e esquecer opera

quando as lembranças são acionadas pela percepção.

Para que estudemos melhor essa dialética, precisamos retomar à

condição de vida do homem em fins do século XIX e início do século XX. Esse

retorno se faz necessário porque houve uma modificação nas estratégias de

conservação da memória devido aos avanços tecnológicos. Houve uma invasão

tecnológica nesse momento, se levarmos em consideração o crescimento

industrial nos grandes centros urbanos do período. O desenvolvimento da

imprensa marcou a história da humanidade da mesma forma que contribuiu para

que a oralidade fosse se silenciando e dando lugar para outras formas de

narrativa. Se antes as narrativas eram marcadas pelo seu teor oral, transmitidas

de geração para geração, confiadas apenas na memória, naquele final do século

XIX ela foi substituída pela sua impressão no papel. Walter Benjamin (1993)

preocupado com as mudanças industriais que afetaram tanto a arte quanto a

técnica, estuda as transformações ocorridas no que diz respeito ao silenciar da

oralidade e à ascensão do processo escrito que entrava na era da

industrialização. Ele faz um retrocesso para explicar o que estava acontecendo.

Para Benjamin, o narrador que antecedeu esse instante industrial se organizava a

partir das imagens do marinheiro e do artesão. Aquele que era como o marinheiro,

que trazia consigo os conhecimentos do estrangeiro porque passara a vida inteira

viajando e trocando suas experiências com a do Outro e contribuindo para que a

narrativa da história fosse tecida, é visto como um tipo de narrador. Diferente dele,

porém complementar, há um outro, o camponês sedentário que envelhecia em

35

seu local de origem e carregava consigo a sabedoria que só a idade podia

proporcionar. Ele era o guardião da tradição, aquela pessoa que detinha o

conhecimento e que, quanto mais velho se tornava, mais sábio ficava. Na união

dessas duas representações encontrava-se a figura do artesão que, na verdade,

tecia a narrativa costurando as duas vozes. Isso provocou uma reflexão na

importância de se intercambiar essas vozes. A experiência é o que resulta da

narrativa delas. Na nomenclatura de Bhabha, o camponês se articularia no eixo

pedagógico e o marinheiro no performático. O que Benjamin diz é que, em razão

das transformações ocorridas no final do século XIX e início do século XX, sejam

elas relacionadas diretamente com a sociedade ou com a técnica, o homem se viu

entrando em uma era que não lhe permitia mais ser marinheiro ou camponês. Já

que, naquele período, a memória estava guardada na lembrança e na sapiência

dos velhos, ela se viu jogada à mercê de um momento tecnológico que não abria

suas portas para que ela pudesse se fazer presente. A modernidade matara a

experiência. Benjamin Ele levanta algumas questões quando fala da experiência

transmitida oralmente:

Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?O homem se preocupava, apenas, com o futuro. (Benjamin, 1993: 114)

O mundo se encaminhava para abrir as portas para o progresso. Lembrar deixava

de ser um fator importante na construção de uma sociedade tecnicizada porque

não se precisava confiar apenas na lembrança. Benjamin observou que, com o

36

desenvolvimento da técnica e com o advento da Primeira Guerra Mundial, o

cenário histórico havia sido transformado:

Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca (Benjamin, 1993: 115).

Não havia mais espaço para a oralidade, porque as experiências intercambiáveis,

que antes favoreciam a narrativa oral, tinham sido substituídas pelo silêncio dos

combatentes que retornavam da guerra.

Dessa forma e por esses motivos é que Benjamin se preocupou em

estudar de que maneira o silêncio do pós Primeira Guerra podia contribuir para

uma desistoricização dos fatos sócias daquele momento. Ele argumentava que

essa nova pobreza abria as portas para um cenário que desvinculava o patrimônio

cultural de todos nós.

Entendendo a memória como um processo que articula a lembrança e o

esquecimento de experiências; se essas se calam ou se empobrecem, como

observou o teórico, a dialética memória-esquecimento não ocorre porque há a

escolha pelo silêncio. Por mais que a memória aguce a percepção para que ela

por sua vez chame de volta as vozes do passado, por mais que isso faça parte da

constituição da memória, o que Benjamin explica é que, nesse processo de

silenciar as experiências, o homem fez sua opção. O silêncio da experiência

resultou num esvaziamento da memória e conseqüente desistoricização dos fatos

sociais, assim como deixou em suspenso o intercambiar de experiências desse

37

período. Como um produto cruel de uma sociedade que entrava na era da técnica,

o silêncio passou a prevalecer e a tomar o lugar das conversas que teciam a

narrativa das experiências. É importante dizer que o texto benjaminiano ocupa

uma localização temporal que justifica sua teorização. A primeira edição desse

texto data da primeira metade do século XX e Walter Benjamin fala a partir desse

locus.

Segundo sua teorização acerca do silêncio, a memória não deixa de

existir, não é isso que Benjamin diz. Os dados armazenados na memória apenas

não são transferidos porque os combatentes não optam por falar sobre suas

experiências; ao contrário, eles optam por silenciar suas vozes devido à

desmoralização que essas experiências de guerras e de trincheiras são capazes

de proporcionar. Além disso, Benjamin admite a memória como um acontecimento

involuntário. Ela é, por sua vez, uma tentativa de reterritorialização, de se localizar

novamente. Porém, os combatentes que voltaram de seus campos de batalha

silenciosos e pobres em experiência que pudessem ser transmitidas se

perceberam abandonados em um novo cenário e não conseguiram se inserir

nesse novo contexto de reterritorialização. Não se inserindo, também não

puderam fazer parte daquela sociedade que havia permanecido em casa.

Essa opção pelo silêncio também é abordada por um outro teórico,

Michael Pollak (1989) e será retomada adiante. Dessa maneira e por causa

desses combatentes, mais uma vez, confirma-se a causa do silêncio. Embora a

memória inclua o silêncio como um fator que contribui para a constituição da

identidade, este silêncio se aproxima mais dos vazios que a memória não

pretende reaver. Assim ela oscila entre a necessidade de lembrar e a vontade de

38

esquecer. Retomando Bergson (1990), entende-se que, embora a percepção de

uma dor passada não possa ser sentida como a própria dor e sim como a

imaginação dela, isso não significa que a dor não existiu em sua origem. Em

outras palavras, a opção pelo silêncio não minimiza a dor ou a transforma em

mentira, apenas não a revive. No capítulo seguinte deste trabalho retomarei essa

questão da dor e do silêncio para falar de como o luto e conseqüentemente a

memória dessas pessoas que sofreram com as conseqüências da Segunda

Guerra Mundial são abordados no texto Fugitive Pieces.

Como complementação desse estudo relacional entre a lembrança e o

esquecimento, vejamos Anderson (1991), que vai apresentar a dialética como um

processo de articulação entre o novo e o velho. Nessa aproximação, ele percebe

os laços estreitos que vinculam essas duas situações, a experiência e a novidade.

O autor usa como exemplo os países que foram colonizados e compartilharam

com seus colonizadores uma língua, uma religião e uma tradição. Nesses casos, a

metrópole dispunha de aparatos ideológicos e burocráticos que permitiram a ela

manter sua dominação por um bom tempo. Mas o paralelismo dessas diferenças

culturais gerou conseqüências políticas muito decisivas, fazendo com que as

absorções culturais se operassem mutuamente.

Além dessa questão da dependência, o autor atenta para o fato de que

justamente nesse momento de dominação é que surge o sentimento de

pertencimento daquele povo colonizado que se caracterizou mais tarde pelo termo

nacionalismo. Daí derivaram os conceitos de Nação, Estado e Pátria, entre os

quais Pátria terá mais relevância na nossa análise. Entendendo Pátria como o

lugar de origem, especificamente a família, o núcleo mais íntimo e do qual se tem

39

maior referência, é que se torna possível pensar nosso protagonista Jakob Beer,

neste estudo aplicado à análise da obra em questão, como um homem sem Pátria

e ao mesmo tempo de outras pátrias.

Este sentimento de pertencimento dos povos dos países pós-

colonizados, como entende Anderson, foi o fator crucial para que a construção de

um pensamento, ao mesmo tempo desvinculado e dependente da metrópole,

aparecesse. A primeira tentativa de se pensar o nacionalismo vinculado à

construção de uma identidade foi a de se fazer um estudo genealógico para se

compreender o surgimento desse sentimento. Embora a análise de Fugitive

Pieces não passe pelo viés nacionalista, essa argumentação de Anderson se faz

necessária para entender como a construção da memória opera quando se pode

imaginar essa memória porque não há como reavê-la em sua totalidade. Fazendo

assim, os estudiosos que se preocupavam em constituir um tempo, buscariam a

memória de um lugar para construir sua origem. Em outras palavras, eles

buscariam algo que pudesse ser retomado como pertencente àquele povo e que

os vinculasse a seu passado histórico, ainda que de maneira imaginada e

construída. Esse processo imaginativo retoma o que Bergson entende por

memória: uma capacidade de relacionar passado, presente e futuro, além de

trabalhar no campo da imaginação. Porém, fazer um simples retorno nostálgico

aos ancestrais desses novos povos não era o bastante, ou melhor, não era

possível, porque eles não estavam mais vivos para narrar suas memórias ou suas

experiências. Por mais que os estudiosos pudessem construir essa genealogia,

soaria muito falso. Nesse impasse, Anderson chama a atenção aqui para a

solução encontrada: os nacionalistas narrariam pelos seus ancestrais e nesse

40

narrar eles também inseririam suas próprias vozes, criando uma origem. Aqui

também, nessa inserção das vozes dos narradores, haveria uma criação, porém

ela se tornaria mais “verdadeira” porque receberia de seus narradores suas

contribuições pessoais. Percebe-se nesse instante a ligação entre os textos de

Benjamin e Anderson, pois ambos compreenderam que, para se obter uma

narrativa, era necessário haver uma troca de experiências.

Em seu livro Imagined Comunities, Anderson diz:

After experiencing the physiological and emotional changes produced by puberty, it is impossible to ‘remember’ the consciousness of childhood. How many thousands of days passed between infancy and early adulthood vanish beyond direct recall! How strange it is to need another’s help to learn that this naked baby in the yellowed photograph, sprawled happily on the rug or cot, is you. The photograph, fine child of the age of mechanical reproduction, is only the most peremptory of a huge modern accumulation of documentary evidence (…) which simultaneously records a certain apparent of continuity and emphasizes its loss from memory. (Anderson, 1991: 204)2

e suas palavras evidenciam a necessidade de se recorrer a algo ou a alguém para

se reconstruir um tempo que já se perdeu. Na impossibilidade desse recuo ao

passado, a memória operaria em um menos que poderia ser entendido como um

menos que acrescentaria, pois esse menos permite a invenção da lembrança. Isso

quer dizer que, para preencher os vazios do passado, a memória imagina

situações que compõe o fato, mas que não o tornam mais ou menos real.

2 Depois de experimentar as mudanças psicológicas e emocionais produzidas pela puberdade, é impossível se lembrar da percepção da infância. Quantos milhares de dias se passaram entre a infância e o início da idade adulta banidos para trásalém da lembrança direta! Quão estranho é necessitar da ajuda de alguém para entender que este bebê nu na foto amarelada, espreguiçado sobre o tapete ou o berço é você. A fotografia, a criança da era da reprodução mecânica, é somente a mais decisiva de uma grande acumulação moderna de evidência documental (...) que simultaneamente grava uma certa continuidade aparente e enfatiza sua perda de memória. (m/ tradução)

41

Justamente pela circunstância da memória criar a lembrança é que se pode, mais

uma vez, dizer que ela não é linear. Ela possui falhas que são preenchidas não

para substituir o vazio na origem, mas para forjar essa origem. Nas palavras de

Jacques Derrida, a criação é um suplemento que não substitui, mas que modifica:

“O suplemento é uma adição, um significante disponível que se acrescenta para

substituir e suprir uma falta do lado do significado e fornecer o excesso de que é

preciso” (Derrida, apud Santiago, 1976:88). Pensando nesses termos, como

suplemento, é que Anderson dá a devida importância ao processo de entender o

pertencimento vinculado diretamente à questão da memória e também da

construção dessa memória.

Todavia, se ao fazer esse retorno tem-se uma narrativa de situações que

ficaram à margem dos acontecimentos, porque não se adequaram à narrativa

tradicional, o resultado dessa volta é uma narrativa performática, de acordo com a

teoria de Bhabha (2003). Bhabha defende que a construção da narrativa da nação

moderna passa pela tensão que habita no aspecto do pedagógico e do

performático. Essa tensão permite que se veja o povo como um objeto pedagógico

e um povo que se constrói na performance dessa narrativa:

O pedagógico funde sua autoridade narrativa na tradição do povo, descrita por Poulantzas como um momento de vir a ser designado por si próprio, encapsulado numa sucessão de momentos históricos que representa uma eternidade produzida por auto-geração. O performativo intervém na soberania da auto-geração da nação ao lançar uma sombra entre o povo como “imagem” e sua significação como um signo diferenciador do eu, distinto do Outro ou do de Fora (“outside”). ( Bhabha, 2003:209)

42

Além disso, Bhabha acrescenta ainda que o performático introduz um tempo que

se situa no entre-lugar através do vazio que pontua a diferença. A obra analisada

neste trabalho não discute a construção da nação judaica, mas apresenta em

contrapartida um elemento da nação judaica, o garoto judeu-polonês que é

deslocado para fora de sua tradição.

A narrativa performática, como explica Bhabha, foge à

convencionalidade da tradição. Ela instaura a dúvida desconstruindo a noção de

totalidade e acontece quando é possível pinçar na multidão as pessoas cujas

lembranças e performances que negam a tradição vão servir de suplemento à

origem de suas próprias narrativas enquanto cidadãos. As histórias das pessoas

que irão acrescentar dados ao fato contribuirão com suas vozes e suas

experiências privadas.

No texto de Pollak (1989), é evidente o uso que ele faz do percurso do

performático – a diferença dele para os autores anteriores se faz porque ele não

parte do individual. Pollak se preocupa com a abordagem sociológica da

coletividade. Se antes Benjamin e Anderson deram uma ênfase maior à memória

individual ou restrita a um grupo, Pollak alarga seu alcance e discute a questão da

memória num âmbito muito maior. A operação dessa dialética memória-

esquecimento passa a fazer parte do contexto social: “o que é comum a um grupo

e o que o diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de

pertencimento e as fronteiras sócio-culturais” (Pollak, 1989:03) É interessante

entender que Pollak opera dentro do deslocamento do individual para o coletivo e

assim ele entende que as lembranças podem ocupar o espaço do privado, porém

não permanecem lá. Elas transitam do privado para o público e, ao se tornarem

43

visíveis e apreensíveis, passam a disputar um lugar com aquelas memórias que

sempre existiram somente no espaço público – as memórias coletivas das guerras,

das situações conflituosas, dos campos de concentração, se misturam àquelas que

os livros de histórias tradicionais sempre contiveram. A problematização do ato de

narrar encontra seu reforço no aspecto social, segundo o autor, porque defronta

com as dificuldades de reintegração de seus autores. Segundo ele, para que essa

reintegração seja feita é preciso que haja uma escuta:

Assim como as razões de um tal silêncio são compreendidas no caso de antigos nazistas ou dos milhões de simpatizantes do regime, elas são difíceis de deslindar no caso das vítimas. Nesse caso, o silêncio tem razões bastante complexas. Para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa antes de mais nada encontrar uma escuta. (Pollak, 1989: 06)

As questões de fronteiras, pertencimento e outras afins são exploradas no

texto de Pollak tendo como exemplo os países do leste europeu. O autor utiliza,

dentre outros, a Alemanha, a Áustria e a Alsácia para falar do recrutamento militar

durante a Segunda Guerra Mundial e exemplificar a ditadura militar. Nesse último

país, o recrutamento foi forçado e os sobreviventes, ao retornarem para seu país

de origem, foram colocados de lado como se tivessem traído seu próprio povo.

Esses autores, que estudaram a construção da memória dentre outros

assuntos, servem como base teórica para que o estudo da personagem de Fugitive

Pieces possa ser efetuada levando em consideração os aspectos memorialísticos

de sua narrativa. Esta vai trazer ao leitor a história de Jakob Beer e nesse

desenrolar de acontecimentos o leitor será chamado a refletir sobre a

sobrevivência dele e as conseqüências da guerra sobre o povo judeu. Nessa

44

reflexão, Anne Michaels, a autora do livro, faz com que o leitor entre numa parte da

história da humanidade que não está inserida nos livros didáticos.

Na personagem principal do livro Fugitive Pieces, Jakob Beer, o estudo

de sua narrativa memorialística está diretamente vinculada ao papel que o silêncio

exerce na obra. Percebe-se o silêncio, face ao resultado da experiência vivida por

Jakob, por dois vieses. O primeiro pode ser considerado a falta de maturidade dele

para compreender sua situação de sobrevivente que convive naquele instante com

a situação da orfandade. O segundo se dá pelo distanciamento temporal que o ato

de escrever suas memórias tem para o fato acontecido. Nesse caso a personagem

pode optar pelo silêncio.

Jakob é um judeu-polonês que, aos sete anos de idade, escondido atrás

do papel de forro do armário da copa de sua casa, vê seus pais serem

assassinados durante a Segunda Guerra Mundial e depois percebe que sua irmã

mais velha havia desaparecido, como ele mesmo diz na seguinte passagem: “I was

still small enough to vanish behind the wallpaper in the cupboard, cramming my

head sideways between choking plaster and beams, eyelashes scraping”.3 (FP:

06). Embora a personagem guarde a memória do acontecido, é o adulto que narra

a história. Justamente por ser o adulto a narrar é que o conceito de percepção

bergsoniano se faz tão importante nesse estudo. Ele é que vai impulsionar a

narrativa, pois permite ao leitor entender o porquê de determinadas lembranças e o

porquê de determinados silêncios.

3 “Eu ainda era pequeno a ponto de sumir por trás do papel de forro do armário, apertando a cabeça de lado, sufocando entre o gesso e as traves, os cílios roçando.” Obs.: Essa e as demais traduções do texto literário usado como exemplificação da teoria estudada serão retirados da tradução do livro Fugitive Pieces, Peças em Fuga. Cf. Referências Bibliográficas.

45

De que maneira percebe-se a dialética memória-esquecimento no texto?

O adulto Jakob vai escrever a memória que ele guardou do fato e assim descrever

as circunstâncias da morte de seus pais com detalhes que o olhar da criança não

daria conta de minuciar. Ele, na verdade, está estabelecendo um diálogo entre o

velho e o novo. Por exemplo, ele descreve a cena de sua mãe costurando o botão

de sua camisa no instante em que os destroços de uma bomba atingem a porta de

sua casa, em razão da qual o pires que guardava o botão cai, fazendo com que o

barulho da queda parecesse, para Jakob adulto, o som de pequenos dentes

brancos repicando no chão:

The burst door. Wood ripped from hinges, cracking like ice under the shouts. Noises never heard before, torn from my father’s mouth. Then silence. My mother had been sewing a button on my shirt. She kept her buttons in a chipped saucer. I heard the rim of the saucer in circles on the floor. I heard the spray of buttons, little white teeth. (FP: 07)4

Percebe-se no tecido narrativo a urdidura que Jakob dá quando pinça de seu

passado algumas situações que constroem uma história maior: a narrativa de um

sobrevivente do holocausto.

Quando, na introdução deste trabalho, mencionei a relevância da obra

Fugitive Pieces, entendi que seu alcance era mais global do que local. A autora

parte do local, sem dúvida, do garoto judeu-polonês que sobrevive à explosão, e

para estudo de tal circunstância as teorias de Benjamin e Anderson se aplicam,

uma vez que elas se preocupam mais com o individual ou com o que se refere a

4 “A porta arrombada. Lascas de madeira saltando das dobradiças, estalando como gelo sob os gritos. Ruídos nunca ouvidos antes, arrancados da boca de meu pai. Depois, silêncio. Minha mãe estava pregando um botão em minha blusa. Ela guardava os botões num pires lascado. Ouvi a borda do pires em círculos no chão. Ouvi a chuva de botões, como dentinhos brancos.”

46

um pequeno grupo; entretanto, quando entendemos a obra como parte do global,

como uma abordagem acerca do que teria sido feito dos judeus na Segunda

Guerra Mundial, a teorização de Pollak é mais pertinente, pois ele parte do

particular para o coletivo.

A escrita das memórias de Jakob tem início na ocasião de seu retorno à

Grécia, país onde crescera. Na noite em que Jakob começa a escrever sua

história, a percepção das luzes da ilha grega chamam sua atenção. As luzes

percebidas pela janela de sua casa no alto da ilha trazem de volta a lembrança de

sua vida. Na passagem seguinte fica evidente essa digressão:

I watched the Easter procession and placed this parallel image, like other ghostly double exposures, carefully into orbit. On an inner shelf too high to reach. Even now, half a century later, writing this on a different Greek island, I look down to the remote lights of town and feel the heat of a lamp spreading up my sleeve. ( FP:18)5

Ele não começa a narrar suas memórias a partir desse instante, ele recua. As

luzes fazem apenas o papel da Madeleine proustiana, como uma invocação do

passado. Elas são a percepção necessária para que, como no cone de Bergson,

onde S, o vértice do cone, avança sem cessar tocando o plano do presente, o

plano representado pela letra P, a percepção que o presente tem do que se foi

traga de volta a lembrança acumulada que se assentara na base AB ao mesmo

tempo em que a projeta para o futuro (veja página 33). Quando Jakob se lembra da

infância dolorida na ilha, ao lado do grego Athos, ele também se lembra do porquê

5 “Olhei a procissão de Páscoa e pus essa imagem paralela, como outras duplas exposições fantasmagóricas, cuidadosamente em órbita. Numa prateleira interior alta demais para se alcançar. Ainda agora, meio século depois, escrevendo isto em uma outra ilha grega, olho as luzes remotas da cidade lá embaixo e ainda sinto o calor da lanterna subindo-me pela manga.”

47

e da maneira como ele chegou lá. Essa lembrança difícil é metaforizada pela frase

que ele próprio utiliza – On an inner shelf too high to reach (Numa prateleira interior

alta demais para se alcançar.). Parece que Jakob está dizendo que suas memórias

estão em um passado tão doloroso, tão distante e tão perto que se assemelha a

uma prateleira alta cujo alcance é difícil. Não é impossível, mas sua dificuldade é

tanta que para um garoto alcançar se torna quase impossível, não fosse a ajuda de

Athos.

Após a destruição de sua casa e de sua família, o garoto só sobrevive

porque é encontrado pelo geólogo grego, Athos, que, no decorrer da guerra, fazia

escavações em Biskupin – a Pompéia Polonesa – a cerca de 40 km a sudoeste de

Bydgoszcz, na Polônia. Ao ser salvo por Athos, é como se fosse dada a ele, Jakob,

a segunda chance de contar sua história. Nas palavras de Jakob adulto, vemos

que ele consegue perceber essa possibilidade: “No one is born just once. If you’re

lucky, you’ll emerge again in someone’s arms; or unlucky, wake when the long tale

of terror brushes the inside of your skull”6. (FP: 05) Nessas linhas percebe-se a

maturidade do adulto em entender que, ao ser encontrado pelo grego, ele na

verdade renascera e que seus pais não haviam tido a mesma sorte; suas palavras

contemplam as duas situações opostas. De acordo com o que o narrador

apresenta ao leitor, é possível perceber que não fora fácil negociar as lembranças

porque, devido à distância temporal de seus acontecimentos, o adulto precisou

imaginar muita coisa para preencher o vazio original de sua história. A história de

Jakob Beer é contada por ele mesmo em seu diário. Tudo aquilo que nós leitores

acreditamos ter sido vivenciado por ele está registrado em suas memórias. O olhar

6 “Ninguém nasce uma vez só. Se tiver sorte, você torna a emergir nos braços de alguém; se não tiver, você desperta quando a longa cauda do terror roça o seu crânio por dentro.”

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amadurecido do adulto permite ao leitor fazer essas inferências globais. Tudo

aquilo que ele viveu desde seu resgate até sua morte, tem um peso cultural muito

forte porque explica sua condição de um desterritorializado.

Quando Jakob resolveu escrever sob as luzes da ilha grega, ele se

proporcionou uma segunda história. O distanciamento temporal dos fatos não

minimizou os acontecimentos, pelo contrário, apenas permitiu a Jakob se fazer

mais forte para suportá-los. Isso fica visível quando o leitor percebe que a narração

de seus pesadelos vai se esvaindo com a solidificação de seu caráter, graças ao

intenso carinho de Athos: “The best teacher lodges an intent not in the mind but in

the heart. I know I must honour Athos’s lessons, especially one: to make love

necessary”7. (FP: 121)

A partir do momento em que o narrador apresenta sua história, a figura

de Athos domina grande parte do texto, porque ele reconstruiu Jakob no instante

em que o acolheu. De acordo com as palavras de Pollak (1989), Athos funciona

como a escuta de Jakob. O grego confiou seu conhecimento a Jakob na mesma

proporção em que foi capaz de participar da construção de seu caráter. Escutar o

que Jakob tem a dizer não significa sentar e ouvir sobre seu passado, mesmo

porque o passado anterior à sua ligação com Athos é muito curto, sete anos de

vida apenas, mas significa ouvir seus desabafos em relação à sua vida e ao

mesmo tempo falar sobre suas experiências, ou seja, intercambiar as vozes que

constroem a memória de que tanto Jakob se auxilia para escrever sua história.

Como explica Pollak, a audiência na vida dos sobreviventes funciona como um

7 “O melhor professor abriga uma intenção não na mente, mas no coração. Sei que devo honrar as lições de Athos, principalmente uma: tornar o amor necessário.”

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recurso na construção de uma época que se perdera em virtude dos

acontecimentos bruscos da guerra.

Jakob adulto dá-se conta de que há um embate muito forte entre as duas

histórias de sua vida: a que ele viveu até a morte de seus pais e aquela outra que

foi dada a ele no momento do encontro com Athos. Uma antes e outra depois da

guerra. Embora fosse ele muito pequeno quando resgatado, sua memória registrou

o fato. Entretanto, fora preciso um tempo de amadurecimento e silêncio para que

sua história pudesse ser narrada. Nesse distanciamento temporal, o adulto tem a

sensação de não ter testemunhado esses eventos:

I did not witness the most important events of my life. My deepest story must be told by a blind man, a prisoner of sound. From behind the wall, from underground. From the corner of a small house on a small island that juts like a bone from the skin of sea.8 (FP: 17)

O homem cego (blind man) a quem Jakob se refere na citação anterior é ele

próprio preso nas lembranças de seu passado, que o consumiram durante quase

toda sua vida. É uma negação do Jakob menino que vivenciou os piores fatos de

sua vida. Nesse ato de negação, Jakob está na verdade pedindo à sua memória

que não se lembre das situações difíceis de sua infância. Ele quer que a dor seja

menor. Talvez porque ele também esteja se referindo ao fato de não ter descoberto

ou “enxergado”, palavra que ele usa na citação acima, o que quer que tenha sido

feito de sua irmã Bella. Isso dá a sensação aparente de conforto, pois na

8 “Eu não testemunhei os acontecimentos mais importantes de minha vida. Minha história mais profunda tem de ser contada por um cego, um prisioneiro do som. De trás da parede, do subsolo. Do canto de uma casinha numa ilhota que se projeta como um osso na pele do mar.”

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ignorância do fato a dor parece ser menor. Ao mesmo tempo ele está mostrando

para o leitor que a história dele não deverá ser narrada apenas por ele e sim por

tantos outros judeus que deixaram seus diários escondidos nas paredes de suas

casas ou debaixo de seus assoalhos. A história de Jakob também está escrita nas

histórias de seus irmãos.

Levando em consideração essa afirmação de Jakob da sensação que

tem de não ter testemunhado os eventos de sua vida, a dialética memória-

esquecimento, que opera na construção de texto, é percebida da seguinte forma:

há um narrador que viveu os acontecimentos – a criança – e um que escreve – o

adulto. O que viveu opera no campo do esquecimento, do silêncio e do

empobrecimento. O que escreve se preocupa com a lembrança, com a experiência

e com o intercambiamento dessas vozes. Se para o primeiro lembrar é sofrer, para

o segundo é desatar os nós do passado e resgatar sua história. Essa visão dos

dois Jakob nos leva a fazer uma reflexão sobre a focalização na narrativa. De

acordo com Shlomith Rinnon-Kenan (1996), a questão da focalização deve ser

entendida como um recurso usado para identificar sobre quem ou o quê se fala. No

texto de Anne Michaels, percebemos que o narrador final, a personagem Ben,

focaliza sua leitura em relação às memórias de Jakob em um tempo do passado

que pertence ao menino. Porém, como elas são insuficientes para relatar sua vida,

ele ora mantém a focalização no menino, ora a transfere para o adulto. O narrador

dessas memórias também influencia na perspectiva do leitor em relação ao que

está sendo narrado. Uma vez morto, Jakob não interfere naquilo que Ben, o

narrador, lê em suas anotações. Ben, em sua narrativa, revela ao leitor, na

segunda metade do livro, que as memórias de Jakob estão sendo contadas por

51

ele, como se estivesse alertando o leitor para não confundir as biografias. Depois

de saber disso, o leitor consegue perceber a leitura que Ben faz. Ela acompanha a

escrita de Jakob. É Ben também quem focaliza Jakob menino e Jakob adulto,

dando uma falsa sensação de linearidade temporal para o leitor. Entretanto, os

próprios cortes temporais operados por Jakob durante sua escrita descrevem uma

memória fragmentada que oscila constantemente entre suas lembranças e seu

momento presente. Essa fragmentação revela a instabilidade da memória porque a

memória não consegue estabelecer um rumo a ser seguido. Freqüentemente ela é

interrompida por um evento novo, novo no sentido de ser lembrado pela primeira

vez, não de ter acontecido como novidade. Essa interrupção não é desfeita a partir

do ponto em que a lembrança trouxe de volta um determinado evento e sim das

lembranças novas que acompanham esse evento e isso se reflete na focalização

do narrador. Os cortes mais marcantes durante a escrita das memórias de Jakob e

conseqüente leitura de Ben são revelados em rodos os momentos em que Jakob

pára sua narrativa e se lembra de sua irmã. Ela o “assombra” durante toda sua

vida. Nesses cortes, o foco narrativo é sempre no menino, não no adulto porque o

adulto não conviveu com a irmã, não presenciou as brincadeiras, embora o leitor

tenha a sensação de que o foco narrativo está em Jakob adulto. Essa focalização

em sua irmã desperta outra sensação ao leitor, a de que Jakob mantém seu

vinculo com seu passado apenas em se tratando de sua família.

Não está claro na narrativa que Jakob deseja retomar sua religião e sua

cultura. Parece-nos, como leitores, que seu vínculo com o passado está mais

ligado à sua família e a Athos. Para o processo do não-esquecimento da família e

de suas origens, Athos pôde contribuir durante a infância e puberdade de Jakob.

52

Ele lhe ensinou grego e latim e, com o objetivo de manter viva sua tradição judaica,

o hebraico. Nas palavras do narrador pode-se confirmar essa afirmação:

Athos didn’t want me to forget. He made me review my Hebrew alphabet. He said the same thing every day: “It’s your future you’re remembering.” He taught me the ornate Greek script, like a twisting twin of Hebrew. Both Hebrew and Greek, Athos liked to say, contain the ancient loneliness of ruins, “like a flute heard distantly down a hill-side of olives, or a voice calling to a boat from a shore.”9. (FP: 21)

Ele ensinou-lhe também o inglês, que para Jakob era uma língua

desmemoriada e conseqüentemente não o fazia lembrar de seu passado. Quando

mais tarde começou a escrever suas memórias, isso pôde ser confirmado: “And

later when I began to write the events of my childhood in a language foreign to their

happening, it was a revelation. English could protect me; an alphabet without

memory”10. (FP: 101) Ao conseguir escrever em uma língua que não apresentasse

uma sombra de seu passado, Jakob pôde perceber que o inglês seria bastante útil.

Ele conseguira revelar suas memórias de uma maneira que elas não o

machucavam tanto porque ele se sentia forte o bastante para escrevê-las: “On

Idhra I finally began to feel my English strong enough to carry experience. I became

obsessed by the palpable edge of sound”11 (FP: 162), pois sua fortaleza era como

uma representação das várias pátrias às quais Jakob pertenceu. Isso também nos

leva a refletir na possibilidade de Jakob ter escrito em Inglês para tornar os relatos 9 “Athos não queria que eu esquecesse. Fazia-me revisar meu alfabeto hebraico. Dizia a mesma coisa todo dia: ‘É os eu futuro que você está lembrando’. Ensinou-me a ornamentada escrita grega, como uma gêmea torta do hebraico. Tanto o hebraico como o grego, Athos gostava de dizer, têm a solidão antiga das ruínas, ‘como uma flauta ouvida à distância numa encosta de oliveiras, ou como uma voz chamando um barco da terra’.” 10 “E depois, quando comecei a registrar os eventos da minha infância numa língua estrangeira aos fatos narrados, foi uma revelação. O inglês me protegia; um alfabeto sem memória.” 11 “Em Idhra comecei a sentir meu inglês suficientemente forte para transmitir experiência. Estava obcecado pela palpabilidade do som.”

53

de sua vida menos pessoais, como se fosse a história de outra pessoa, um recurso

que utilizado para minimizar sua dor. Ele escreveu em inglês sobre a infância na

Grécia e a juventude no Canadá, além de ganhar a vida neste último país fazendo

traduções de poemas gregos para o inglês. Nessas traduções, Jakob percebeu

que não somente a língua mudava, mas um poema traduzido se transformava em

outro:

Translation is a kind of transubstantiation; one poem becomes another. You can choose your philosophy of translation just as you choose how to live: the free adaptation that sacrifices detail to meaning, the strict crib that sacrifices meaning to exactitude. The poet moves from life to language, the translator moves from language to life; both, like the immigrant, try to identify the invisible, what’s between the lines, the mysterious implications.12 (FP: 109)

Percebeu também que a tradução lhe dava uma lição de vida, de adaptação às

circunstâncias das quais não poderia fugir. As palavras de Jakob no que se refere

à tradução podem ser incorporadas ao estudo dessa matéria como teoria. Como

esse objetivo não cabe neste estudo, o que interessa aqui é perceber que ele vê a

tradução como uma lição de vida e, de certa forma, personaliza sua teoria

mostrando como ela – como sua própria vida – pode ser metaforizada como uma

tradução de geografias, línguas e culturas, fazendo com que ele se adapte àquilo

do qual não pode fugir.

Essas mudanças na vida de Jakob, relacionadas à aquisição de novas

culturas, favoreceram seu amadurecimento e também lhe permitiram falar de sua

12 “A tradução é uma espécie de transubstanciação; um poema transforma-se em outro. Você pode escolher a sua filosofia de tradução assim como escolhe a maneira de viver: a adaptação livre que sacrifica o detalhe pelo sentido, a versão literal que sacrifica o sentido pela exatidão. O poeta vai da vida para a língua, o tradutor vai da língua para a vida; ambos, como o imigrante, tentam identificar o invisível, o que está nas entrelinhas, as implicações misteriosas.”

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história. Outra contribuição dessa diversidade cultural foi a de minimizar os

constantes pesadelos que o garoto desejava nunca ter tido. Aos poucos eles foram

sendo substituídos por uma ausência de sua referência familiar. Como foi dito

anteriormente, eles foram desaparecendo na mesmo proporção em que Athos fora

ocupando sua vida. Embora Athos fosse para ele uma nova referência, seus pais e

sua irmã o assombraram tanto tempo porque fizeram parte de sua primeira Pátria.

Retomamos aqui o conceito de Pátria como aquele local imaginado, mais íntimo,

do qual Jakob pôde fazer parte e que lhe permitiu guardar suas lembranças de

pertencimento enquanto criança. O conceito de Pátria não se afirma num

sentimento de localização fixa, imóvel e única, como o território polonês poderia

ser, mas se faz num lugar imaginado que, ao ser acessado pela sua lembrança,

carrega em si um sentimento que conforta e permite a ele dizer: eu faço parte

daquele lugar, é meu lar, é minha origem, como a família de Jakob. Por esse

motivo, Athos não era parte da Pátria de Jakob, ele fazia parte de seu

repatriamento: “Even as a child, even as my blood-past was drained from me, I

understood that if I were strong enough to accept it, I was being offered a second

history”13. (FP: 20) Pois sabendo disso, constantemente Athos fazia com que

Jakob se recordasse de sua história. Ele queria que Jakob guardasse vivo na

memória suas referências judias, ao mesmo tempo em que ele próprio tentava

poupar o menino das atrocidades nazistas. No trecho seguinte percebe-se sua

agonia ao lembrar as palavras com que o amigo Ioannis descreve para Athos o

carregamento de judeus no navio visto da Bahia de Zakynthos:

13 “Mesmo em criança, mesmo com meu passado de sangue sugado de mim, eu compreendia que se fosse forte para aceitar aquilo, estava ganhando a chance de uma segunda história.”

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“The boat was overflowing. I saw it with my own eyes. The boat was so full of Jews from Corfu that when it reached Zakynthos harbour the soldiers couldn’t cram on a single soul. (…) My father and I waited at the edge of the square, to see what the Germans would do. Mr. Caro started to weep. He thought he was saved, you see, we all thought that, we weren’t thinking properly, and we weren’t thinking too that if our Jews were saved, it was because the Corfu Jews had been taken in their place” (…) Athos put his hands over his ears. (…) “No one knows where he is, my father heard he escaped by kaiki the same night we came to you. The archbishop stayed with the Jews, he wanted to get in the truck with them but the soldiers wouldn’t let him. He stood all day next to the truck, talking to the poor people inside…” He paused. “Maybe Jakob shouldn’t hear any more.” Athos looked uncertain. “Ioannis, he’s already heard so much.”14 (FP: 41-43)

As palavras de Athos se referiam não só ao que Jakob havia escutado do relato

de Ioannis, mas também à sua vivência da guerra no gueto na Polônia.

O repatriamento de Jakob não estava ligado ao território polonês, de lá

ele tinha apenas a lembrança de sua família, e algumas referências judias; já na

ilha grega ele encontrava seu lugar. E a partir de tudo que ouvia e aprendia,

encontrava também sua identidade de judeu. Athos também lhe ensinou geologia e

literatura e Jakob pôde usufruir desses ensinamentos para recontar sua história.

Além de reconstruir sua vida com os ensinamentos de Athos, Jakob pôde

reconstruir a história dos judeus na Polônia e, em conseqüência, a história da

14 “ ‘O barco estava superlotado. Vi com meus próprios olhos. O barco estava tão cheio de judeus de Corfu que quando chegou no porto de Zakynthos os soldados não conseguiram enfiar mais ninguém. (...) Meu pai e eu esperamos na beira da praça, para ver o que os alemães iam fazer. O velho Caro começou a chorar. Ele pensou que estava salvo, sabe, todo mundo pensou isso, mas a gente não estava pensando direito porque os judeus de Corfu tinham sido levados no lugar deles.’ (...) Athos pôs as mãos nas orelhas. (...) ‘Ninguém sabe onde ele está, meu pai ouviu dizer que ele escapou de kaiki na mesma noite em que a gente veio para a sua casa. O arcebispo ficou com os judeus, ele queria entrar no caminhão com ele, mas os soldados não deixaram. Ficou o di inteiro do lado do caminhão, conversando com os coitados lá dentro...’ Ele fez uma pausa. ‘Quem sabe era melhor Jakob não ouvir mais nada.’ Athos pareceu hesitar. ‘Ioannis, ele já ouviu demais.’ ”

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humanidade. Como a Terra fora formada, as camadas geológicas que cobriam o

Canadá, o sítio arqueológico de Biskupin, tudo isso passara a compor a memória

roubada de Jakob durante sua fuga pelo escuro da noite. Jakob jamais retornou à

Polônia, seu país de origem, seu Estado-Nação. Em momento algum durante a

narrativa ele a menciona. Sua ligação com a Polônia está localizada

exclusivamente na sua família. Esse conflito de pertencimento permaneceu dentro

de suas lembranças mesmo quando adulto:

I tried to bury images, to cover them with Greek and English words, with Athos’s stories, with all the geologic eras. With the walks Athos and I took every Sunday into the ravines. Years later I would try a different avalanche of facts: train schedules, camp records, statistics, methods of execution. But at night, my mother, my father, Bella, Mones, simply rose, shook the earth from their clothes, and waited15. (FP: 93)

Por isso a dificuldade de trocar suas experiências, porque ele só poderia

trocá-las com os mortos. Há uma passagem do texto que esclarece essa

afirmação: “I spent the day writing my letter to the dead and was answered at night

in my sleep”16. (FP: 19) Não tendo mantido vínculos com a Polônia, quem pôde

contribuir para esclarecer os incidentes de sua vida e do mundo naquele pós-

guerra fora Athos, na Grécia.

As referências da Polônia e da Grécia e posteriormente do Canadá são

revividas na memória de Jakob em momentos bem diferentes. É interessante

observar que ele vivia uma dualidade constante que o fazia judeu à noite e afilhado 15 “Eu tentava enterrar imagens, cobri-las com palavras gregas e inglesas, com as histórias de Athos, com todas as eras geológicas. Com os passeios que Athos e eu dávamos todos os domingos pelas ravinas. Anos depois, eu iria experimentar uma outra avalanche de fatos: horários de trens, registros de campos, estatísticas, métodos de execução. Mas, à noite, minha mãe, meu pai, Bella, Mones, simplesmente levantavam-se, sacudiam a terra das roupas e esperavam.” 16 “Passava o dia escrevendo minha carta aos mortos e a resposta vinha à noite, no sono.”

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de Athos durante o dia. Nas duas últimas citações fica evidente que o menino se

sentia diferente. Quando anoitecia ele se lembrava das almas que vagavam por

sobre as cidades, se lembrava de seus pais e de sua irmã. Lembrava-se dos

outros tantos judeus que haviam morrido. Lembrava-se da civilização e suas

atrocidades, da mulher que morrera de tanto ficar em pé, lembrava-se de um

garoto escondido em uma cratera, um garoto que ficara surdo e mudo além de ter

seus membros atrofiados. O peso de sua condição judia era um fardo difícil de

carregar. Durante o dia ele aprendia coisas novas que proporcionavam um certo

alívio, pois não faziam parte de sua primeira Pátria e condição judaica. Jakob vivia

duas vidas, ele tinha consciência de estar recebendo uma segunda história, a

história da formação da Terra, por exemplo, mas a sua própria história o prendia no

mundo dos mortos. Ele dormia pensado em sua família e o gosto do sangue de

seus pais era tão forte que quando ele acordava sabia que os havia acordado de

suas camas escuras. Apesar de Athos ter-lhe ensinado a reverenciar os mortos,

essa dualidade perdurou até seu casamento com sua segunda esposa, Michaela.

Somente com ela Jakob conseguiu entender que seus mortos precisavam

descansar e, principalmente, que a noite não era tão assustadora e que ele não

precisava mais temê-la:

Now I’m not afraid when harvesting darkness. I dig with my eyes into the night bedroom, Michaela’s clothes tangled with mine, books and shoes. A brass lamp from a ship’s cabin, from Maurice and Irena. Objects turn to relics before my eyes.17 (FP: 193)

17 “Agora não tenho mais medo na colheita do escuro. Mergulho meus olhos no quarto noturno, as roupas de Michaela enredadas nas minhas, livros e sapatos. Uma lâmpada de latão saída da cabine de um navio, presente de Maurice e Irena. Objetos transforma-se em relíquias diante dos meus olhos.”

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Na narrativa memorialista de Jakob Beer, o processo dialético memória-

esquecimento é utilizado para tecer e conduzir o fio narrativo da obra. Para tal, o

conflito entre a necessidade de lembrar do adulto e a vontade de esquecer da

criança pode ser lido, uma vez que o narrador não consegue se desvincular

sentimentalmente de sua história para contá-la. Além disso, na obra também é

interessante acompanhar o percurso do individual para o coletivo. A narrativa

passa pela vida de Jakob para inseri-la num contexto social maior, o dos

sobreviventes do Holocausto da Segunda Guerra Mundial. Em todas as suas

memórias, Jakob sempre insere as vozes dos mortos que precisavam ser

extravasadas por um narrador.

Dessa maneira pode-se dizer que a história de vida de Jakob é uma

construção narrativa porque ela parte do princípio de que há uma negociação

entre o fato acontecido e sua imaginação. Ao recontar sua vida, o narrador

reconstrói uma parte da história da humanidade e permite à sua memória um

tropeço na linearidade histórica tradicional. Ele opera dentro do campo do

performático, de acordo com o conceito de narrativa performática que Bhabha

(2003) utiliza. A frase de Anderson (1991) Esquecer é um fratricídio não reforça a

narrativa de Jakob, ela apenas diz o que pode acontecer quando se opta por não

lembrar. Jakob adulto não fez essa opção.

A construção da história de Jakob pelo viés da memória tem um

momento muito marcante no livro, talvez o ponto de partida de sua vida. Seu

padrinho grego, Athos, escrevia um livro, Bearing False Witness (Prestando Falso

Testemunho). Justamente pela agonia de Athos em relação às atrocidades

nazistas e principalmente à facilidade com que um companheiro de estudos seu se

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deixara vender aos nazistas é que o livro de Athos parece ter despertado, em

Jakob, a sensação da violação dos direitos da História. Além disso, percebemos

que Athos desejava que Jakob reconstruísse sua própria história e

conseqüentemente sua condição judaica dentro de uma transparência que não se

apresentasse sobre uma falsa aparência da verdade. Veja-se nestas passagens:

Bearing False Witness plagued Athos. It was his conscience; his record of how the Nazis abused archaelogy to fabricate the past. In 1939, Biskupin was already a famous site, already nicknamed the “Polish Pompeii”. But Biskupin was proof of an advanced culture that wasn’t German; Himmler ordered its obliteration. It wasn’t enough to own the future. The job of Himmler’s ss-Ahnenerbe – the Bureau of Ancestral Inheritance – was to conquer history. The policy of territorial expansion – lebensraum – devoured time as well as space. (…) “This week I found out that a man I went to school with in Viena was in the Ahnenerbe”. (…) “With Himmler paying his salary suddenly he found swastikas in every handful of dirt. This man, who’d been at the top of our prehistory class, actually presented the ‘Willendorf Venus’ to Himmler as proof that ‘Hottentots’ had been conquered by ancient Aryans! He falsified digs to prove that Greek civilization started in … neolithic Germany! Just so the Reich could feel justified in copying our temples for their glorious capital”18. (FP: 104)

As palavras de Athos demonstram que os nazistas sentiram a necessidade de

justificar suas conquistas da mesma forma que os países europeus que

conquistaram as colônias a partir do século XVI o fizeram. Ao perceber que a

18 “Prestando falso testemunho infernizava Athos. Era a consciência dele; o seu registro de como os nazistas violaram a arqueologia para distorcer o passado. Em 1939, Biskupin já era um sítio arqueológico famoso, apelidado ‘Pompéia polonesa’. Era, porém prova de uma avançada cultura não germânica; Himmler ordenou que fosse exterminada. A tarefa da ss-Ahnenerbe de Himmler – o Departamento de Herança Ancestral – era dominar a história. A política de expansão territorial – lebensraum – devorava o tempo além de devorar o espaço. (...) ‘Descobri esta semana que um homem que foi meu colega de escola em Viena fazia parte da Ahnenerbe.’ (...) ‘Com Himmler pagando o seu salário ele, de repente, passou a encontrar suásticas em qualquer punhado de terra. Esse sujeito, que era o primeiro aluno da nossa classe de pré-história, chegou a dar a ‘Vênus Willendorf’ de presente para Himmler como prova de que os ‘hotentotes’ haviam sido dominados pelos antigos arianos! Ele falsificou escavações para provar que a civilização grega havia começado na... Alemanha neolítica! Só para o Reich sentir que tinha razão em copiar os nossos templos na sua gloriosa capital.’”

60

história da humanidade podia ser facilmente forjada, percebemos como isso

também podia incomodar Jakob a ponto de ele levantar essa questão em suas

memórias. Parece que isso faz com que Jakob descubra a eficácia da arqueologia

que tanto encantava Athos e use essa arqueologia na construção de sua própria

identidade.

Na verdade, quando escrevemos nossas memórias estamos escavando

o nosso sítio arqueológico e buscando nele as evidências de nossa existência.

Justamente por termos autoridade sobre o nosso sítio é que se faz necessário

termos igualmente a seriedade e o comprometimento com o que narramos. A partir

do momento em que Jakob descobre que forjar o passado também faz parte da

história, o leitor tem a sensação de que ele não deseja isso. Jakob quer contar que

há o que é forjado, e ele diz isso; e há o que é verdadeiro. Suas memórias

parecem ao leitor verdadeiras, os fatos parecem ter de fato existido porque ele os

apresenta bastante claramente, mas ele faz questão de não enganar o leitor

quanto àquelas que foram construídas. Entendo que seu interesse em estar mais

próximo do que de fato aconteceu está diretamente ligado à necessidade de

denunciar a facilidade de forjar a história.

A personagem Jakob articula o processo dialético no qual a memória

opera para falar de sua vida. Ele começa testemunhando a morte de seus pais e

percebendo o sumiço de Bella. Cronologicamente o livro começa assim. O olhar

amadurecido do adulto revela detalhes que passariam despercebidos pelo olhar

aterrorizado da criança. Quando a bomba explode em sua casa, ele estava

escondido e sua mãe costurando sua camisa. Jakob percebe que ficara órfão. A

dor da perda que o adulto sente talvez seja narrável, a da criança não. Quando ele

61

corre no meio da floresta escura para continuar vivendo, ele ao mesmo tempo

inicia a estratégia de ocultar seu passado. O choque da perda parece anular um

menino que vivera antes da guerra, cabe a seu padrinho Athos reaver sua

identidade.

De acordo com Jakob: “There’s no absence, if there remains even the

memory of absence. Memory dies unless it’s given a use. Or as Athos might have

said: If one no longer has land but has the memory of land, then one can make a

map”19. (FP: 193) Jakob descobre isso no final de sua vida, quando ele escreve

suas memórias, construindo seu próprio mapa a partir de suas memórias. Para que

elas vivam é preciso que se façam delas registros úteis para quem quer que seja.

A utilidade de suas memórias serve a Ben, a outra personagem de Fugitive Pieces,

da qual vamos tratar no capítulo seguinte.

19 “Não existe ausência, se resta mesmo que apenas a memória d ausência. A lembrança morre a menos que tenha uso. Ou como diria Athos: ‘Se não tem mais a terra, mas se tem a lembrança da terra, então dá para se fazer um mapa.”

62

3: OS CARREGADORES DE PEDRA

Neste capítulo, tenho como propósito estudar o problema do luto nos

sobreviventes do Holocausto e dos traumas que as perdas humanas e morais

ocasionaram. Muito se tem teorizado a respeito das conseqüências de ações

ditatoriais e a conclusão à qual se chega é que os governos oprimiram toda e

qualquer manifestação de luto durante as ditaduras com o propósito de impedir

comoções públicas que pudessem comprometer o resultado de seus objetivos.

Em Alegorias da derrota (2003), Idelber Avelar estuda algumas obras literárias

latino-americanas que exemplificam de que maneira os fatos que sucederam às

ditaduras nos países estudados foram narrados. Avelar discute de que forma os

autores apresentam ao leitor as conseqüências dessas ditaduras e discute como a

falta do luto contribuiu para que houvesse uma lacuna na representação histórica

desses eventos. Em sua teorização a respeito do luto, o autor mostra, também, a

dificuldade dos sobreviventes do Holocausto em contarem suas história, já que

eles não conseguem relacionar a experiência vivida com o propósito da narrativa:

Se o trabalho de luto só pode ser levado a cabo através da narração de uma história, o dilema do sobrevivente reside no caráter incomensurável e irresolúvel dessa mediação entre experiência e narrativa: a organização diegética própria do horror vivido é percebida não só como uma intensificação do próprio sofrimento, mas, o que é pior, como uma traição ao sofrimento dos demais. O sobrevivente da hecatombe é vítima dessa “parálisis” simbólica: nunca narra o que deve ser narrado. A narrativa estaria sempre presa num mais ou numa falta, excessiva ou impotente para capturar o luto em toda sua dimensão. (Avelar, 2003: 235/236)

63

Além desses estudos acerca de como os sobreviventes de tais ditaduras e do

Holocausto lidavam ou lidam com a dificuldade de narrar suas experiências, os

trabalhos de Ernest Van Alphen (1999) e Marianne Hirsch (1999) das

reminiscências do Holocausto, das fotografias ou relatos de pessoas que

vivenciaram esse episódio contribuem para o enriquecimento do estudo. Neste

capítulo, o interesse se concentra em estudar a teoria do luto que se aplica aos

sobreviventes do Holocausto causado pela Segunda Guerra Mundial. Para ilustrar

essa teoria, será feita uma análise comparativa entre a apresentação das

personagens Jakob Beer e Ben, do livro Fugitive Pieces, ambos de origem

judaica. Tomo como ponto de partida a discussão a respeito de como os

sobreviventes do Holocausto lidavam e ainda lidam com a situação do luto no

decorrer do pós-guerra. Apesar da problematização do luto parecer mais marcante

na vida de Ben e parecer mais sutil na vida de Jakob e este ser a personagem

principal do livro, essa questão direciona a narrativa da segunda metade da obra

de modo a fazer o leitor se questionar o porquê dessa ênfase em Jakob. Através

do olhar carregado de sua cultura judaica, Ben aborda as questões relacionadas

ao Holocausto lendo nas memórias de Jakob as exemplificações de tais

atrocidades.

JAKOB

A obra é dividida em duas partes. A primeira relata a vida de Jakob

Beer. Na verdade é uma leitura de suas memórias para qual o leitor só vai se dar

conta quando a personagem Ben aparece na narrativa. A segunda parte conta a

64

história de Ben. Essa divisão explica a importância da segunda personagem. É ela

quem lê as memórias de Jakob para o leitor. É Ben quem, em sua leitura,

preenche a história da vida de Jakob, relatando através dessa história particular

uma história muito maior – a história dos sobreviventes do Holocausto. É Ben

quem fundamentalmente explica ao leitor como Jakob Beer conseguiu superar a

perda de sua família. Além disso, há certas diferenças de atitudes entre as duas

personagens que revelam o motivo da vontade de Ben em sair em busca das

memórias de Jakob, narrando-as para o leitor.

O problema do luto na vida daquelas pessoas que não podem enterrar

seus mortos é um dos pontos fundamentais de estudo neste capítulo. A teoria do

luto a ser observada no texto de Anne Michaels adota os conceitos de luto

“anormal” (abnormal mourning) e luto “inaugurado” (inaugurated mourning)

desenvolvidos pela filósofa Gillian Rose (apud Parry, 2000). Além deste assunto, a

teorização acerca da construção da memória desses sobreviventes se faz

importante, pois exemplifica como essas pessoas têm suas memórias

fragmentadas e confusas em relação aos acontecimentos da guerra e

principalmente em relação à própria construção da narrativa de suas vidas. Para

esta análise, o texto de Van Alphen contribuirá com seu estudo em relação à

dificuldade que a experiência traumática exerce sobre as narrativas a respeito do

Holocausto e principalmente de que forma esse episódio resumiu a condição

humana a nada, que de alguma forma, é complementado pelo estudo de Hirsch a

respeito das fotografias tiradas durante a Segunda Guerra Mundial e reforçado

pelo estudo de Avelar a respeito das narrativas que sucederam o sistema ditatorial

65

na América Latina se comparado em determinado momento ao período do pós-

guerra.

No primeiro assunto a ser abordado neste capítulo, a questão de como

os sobreviventes alcançam ou não o luto inaugurado, Rose explica que os

sobreviventes, diretos ou indiretos, do Holocausto sofrem com os fantasmas de

seus mortos porque eles não conseguem ou não podem enterrá-los e cumprir um

rito espiritual. Apesar da novidade dos estudos teóricos a respeito do problema do

luto, essa questão não é nova. Já Antígona, na Antigüidade, se expôs à ira do tio

Creonte, que havia proibido que se dessem funerais adequados ao príncipe

derrotado, buscando o luto inaugurado nas suas diversas tentativas de enterrar o

irmão Polinices, deixado na rua para apodrecer no local onde fora morto. Devido à

incapacidade de essas pessoas enterrarem seus mortos ou até mesmo de

tentarem salvá-los da morte, ainda que em vão, os sobreviventes do Holocausto,

como a personagem Jakob, se diferenciam das demais pessoas que também

passaram pelo sofrimento de perder entes queridos porque sua expressão a

respeito da morte não coincide com a das outras pessoas, já que, como bem

observou Avelar, não interessava aos governos responsáveis pelas atrocidades

que as pessoas manifestassem suas dores. Os homens que viveram a dor da

ausência característica dos sobreviventes acabam por desenvolver um tipo de

sofrimento peculiar que exprime suas agonias. Esse sofrimento é descrito por

Rose de duas maneiras. A primeira maneira é chamada por ela de luto “anormal”,

entendido como uma resposta dada àquelas pessoas cujos seres amados não

puderam ser enterrados e/ou velados. Devido às circunstâncias de suas mortes –

muitas vezes o ato de forçosamente abandonar seus filhos e parentes idosos nos

66

guetos; os constantes homicídios nos campos de concentração; a interminável

fome e a miséria constantes da guerra ou ainda a desnutrição e a dor – e pelo fato

de eles não terem sido enterrados devidamente, as pessoas que permaneciam

vivas acreditavam que esses mortos não “descansavam” – assim, os

sobreviventes não conseguiam recomeçar suas vidas e superar a ausência

daqueles que haviam perdido. Eles ficavam vagando moribundos e perplexos.

Jakob menino tem essa sensação de que os mortos estão em toda parte, menos

debaixo da terra. Ele acreditava que pedras eram colocadas sobre os túmulos

para prender os mortos. Segundo os costumes judaicos,

O costume de colocar uma pedra tumular (matzeivá em hebraico) remonta aos tempos de nossos patriarcas. É um ato de respeito pelos falecidos. Marcando visivelmente o local do sepultamento, asseguramos que os mortos não serão esquecidos, e sua sepultura não será profanada.20

Já o segundo tipo de luto explorado por Rose é entendido como luto

“inaugurado”. É um tipo de luto que reconhece e aceita as leis que regem a

ausência do outro e permite que o sofredor retome seu dia-a-dia e retome também

as novas e as velhas relações com aqueles que vivem. Nesse segundo exemplo,

a participação de terceiros é fundamental, pois serve como um sólido alicerce na

tentativa de recomeçar. A autora não deixa claro se as pessoas precisam

necessariamente viver o primeiro tipo de luto para, então, terem capacidade de

ultrapassar as barreiras que os separam e atingir o segundo tipo de luto. Rose usa

como exemplo o livro Fugitive Pieces, aqui estudado, dizendo que a personagem

20 Essa informação está disponível no site <http:// www.chevrakadisha.com.br/26htm>. Acesso em 30 de Março de 2005.

67

Jakob Beer consegue transpor essa barreira e viver o luto “inaugurado”. Ao

contrário do que acontece à segunda personagem, Ben.

Rose acrescenta ainda, em seu texto, a relevância do comprometimento

político que é preciso que se tenha para com essas pessoas que alcançaram o

segundo tipo de entendimento, uma vez que esse luto “inaugurado” é para ela ao

mesmo tempo espiritual e político e trabalha no nível do individual e do estado:

And such inaugurated mourning is ‘spiritual-political’ that is it works at the level of the individual and the state. It sustains the ‘transcendence of actual justice’ and it understands ‘that we... must constantly negotiate the actuality of being tyrannical’21. (Rose apud Parry, 2000)

Isso quer dizer que é preciso haver uma troca das experiências vividas durante a

guerra tanto pelos indivíduos em si quanto pela sociedade que os acolhe. É

necessário haver uma audiência que esteja pronta para ouvir o que essas

pessoas que ultrapassaram a fronteira do luto “anormal” para o luto “inaugurado”

têm a dizer, porque elas também precisam reconstruir suas vidas. É fundamental

no auxílio dessa transição do luto “anormal” para o “inaugurado” uma escuta

pronta a ouvir os sobreviventes. Avelar contribui nesse estudo a partir do

momento em que reflete sobre a artificialidade que se revela para os

sobreviventes relatarem suas experiências, porque a distância temporal entre o

fato e sua narrativa impede de certa forma que a audiência tenha a real dimensão

do que significou para eles aquela situação.

21 E tal luto inaugurado é “espiritual e político”, isto é, trabalha no nível do individual e do estado. Ele sustenta a “transcendência da justiça verdadeira” e entende “que nós... temos que negociar constantemente a verdade de sermos tirânicos”. (m/ tradução)

68

De acordo com S. J. Brison, outra autora que contribui no estudo das

conseqüências da Guerra na construção da memória dessas pessoas e

conseqüente narrativa das mesmas,

By constructing and telling a narrative of the trauma endured, and with the help of understanding listeners, the survivor begins not only to integrate the traumatic episode into a life with a before and after, but also to gain control over the occurrence of intrusive memories.22 (Brison, 1999: 46)

Tanto Rose, quanto Avelar e Brison, o comprometimento de terceiros com as

conseqüências da guerra sofre influências da mesma forma que influencia as

pessoas que não participaram diretamente dos eventos. Michael Pollak, explorado

com mais cautela em capítulo anterior, também preocupado com as questões da

construção da memória das pessoas que sobreviveram ao Holocausto, afirma

que:

Para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa antes de mais nada encontrar uma escuta. Em seu retorno, os deportados encontraram efetivamente essa escuta, mas rapidamente o investimento de todas as energias na reconstrução do pós-guerra exauriu a vontade de ouvir a mensagem culpabilizante dos horrores dos campos. (Pollak, 1989: 06)

Em sua citação, fica clara a ambivalência dessas escutas: nem sempre elas

conseguiram auxiliar na construção dessas memórias, mas por outro lado elas

fazem parte dessa construção. Não importa muito se o auxílio que o outro presta

22 Ao construir e contar a narrativa do trauma suportado, e com a ajuda da compreensão dos ouvintes, o sobrevivente começa não só a integrar o episódio traumático em uma vida com um antes e um depois, mas também obter controle sobre a ocorrência de memórias intrusas. (m/ tradução)

69

ao escutar o sobrevivente pode de fato solucionar um problema, o que importa é o

sobrevivente perceber que sua fala ainda pode ter uma audiência disposta a ouvi-

la.

De acordo com as ponderações teóricas mostradas anteriormente,

torna-se possível pensar a obra Fugitive Pieces como um exemplo de como a

literatura serve de resposta às vozes assombradas de Auschwitz que se fizeram

no silêncio e na perda de metáforas dos vínculos familiares e pessoais antes tão

marcados. No texto ficcional estudado neste trabalho, percebemos que há essa

escuta necessária à reconstrução das vidas dos sobreviventes assim como há

também a exemplificação de ambos os tipos de luto apresentados no início deste

capítulo. Para entender melhor essas questões percebo que o texto apresenta em

seu contexto personagens que se sobressaem no que diz respeito à solidão

causada pela guerra. Ainda que essa solidão não seja aquela ocasionada pela

ausência das pessoas e sim a solidão que expressa a incapacidade de se

relacionar com o outro, são bastante recorrentes, no romance, situações que

exemplificam esse segundo tipo de solidão.

Jakob Beer, a primeira personagem apresentada ao leitor, teve grande

dificuldade em se relacionar devido à sua resistência em amar. Talvez não apenas

uma resistência, mas um temor em relação às conseqüências de se deixar levar

por um sentimento tão ausente e tão novo em sua vida, já que ele perdera sua

família ainda muito jovem. Essa resistência parece ser transformada na

dificuldade de se relacionar com alguém por ter medo de perder esse alguém

assim como perdeu sua família, apesar de durante sua vida ele receber de Athos

todo o amor que este pôde oferecer.

70

De acordo com o compositor brasileiro Djavan: “O amor é um grande

laço, um passo pra uma armadilha / Um lobo correndo em círculos pra alimentar a

matilha...”23 Jakob não parece querer cair nessa armadilha, e assim como não foi

alimentado pelos seus pais. Ele apenas consegue se libertar dessa solidão ou se

deixar enlaçar por esse sentimento em dois momentos do texto. O primeiro é

através do convívio com Athos e da compreensão de que apesar da ausência de

seus pais e de sua irmã e apesar de não os ter enterrado não significa que sua

vida não tenha mais sentido. O outro momento é quando, aos cinqüenta e poucos

anos, casa-se com sua segunda esposa, Michaela.

Essa primeira narrativa do texto com a qual o leitor tem contato, da vida

de Jakob Beer, é apresentada ao leitor em fragmentos, da mesma forma como a

memória é constituída, que se passam desde sua infância até a idade adulta,

através das narrativas do texto que Jakob constrói aos sessenta anos, em Idhra,

uma ilha grega. A personagem perde seus pais e sua irmã em um gueto na

Polônia e não pode enterrá-los. Não pôde enterrar seus pais porque ele foge no

instante em que uma bomba explode, matando-os. Pior, ele se vê em uma fuga

sem ao menos evitar pisar no sangue de seus pais que se empoçava no chão. Já

sua irmã, ele não pôde enterrá-la justamente porque nunca soubera seu

paradeiro. Jakob jamais teve a certeza de sua morte. Ele fala dela durante toda a

narração de suas memórias com um vazio enorme dentro de si. Apesar das

circunstâncias de sua sobrevivência não serem as mais simples e banais pois ao

ficar órfão de pai e mãe e perde a irmã, ganha a figura de Athos, seu padrinho,

seu koumbaros, que assume uma importância crucial na sua vida. Athos dá o 23 DJAVAN. In: O talento de Djavan. LP Emi-Deon no 152422, 1985. Lado 1, faixa 2.

71

ensinamento de vida que Jakob não pôde receber de seus pais. Ele aprende a

valorizar sua cultura, ainda que do ponto de vista lingüístico, e aprende,

igualmente, a respeitar outros tantos judeus que não conseguiram se salvar:

While Athos taught me about anabatic and katabatic winds, Artic smoke, and the Spectre of the Bröcken, I didn’t know that Jews were being hanged from their thumbs in public squares. I didn’t know that when there were too many for the ovens, corpses were burned in open pits, flames ladled with human fat. I didn’t know that while I listened to the stories of explorers in the clean place, men were untangling limbs, the flesh of friends and neighbours, wives and daughters, coming off in their hands.24 (FP: 46)

Aprende através de Athos a reverenciar aqueles que já haviam partido. Aprende

de certa forma a aceitar as leis que regem a ausência do outro e compreende que

não é a ausência física que conta, mas a presença espiritual. Ao reverenciar seu

pai e sua mãe, Jakob percebe que faz não apenas uma reverência a seus pais,

mas a todas as almas que vagam agônicas por sobre as cidades que haviam sido

assoladas pelos nazistas e que precisavam ser lembradas por todos que haviam

ficado para que a humanidade soubesse das atrocidades alemãs.

As lições, através dos ensinamentos sobre arqueologia, geologia,

literatura e história, que Athos tanto insistia em dar para Jakob, preenchem suas

memórias e reconstróiem seu passado. As lições também auxiliam na

transposição do luto “anormal” para o luto ‘inaugurado”. Esse momento de

reconstrução talvez tenha sido ambiguamente eficaz: ele tanto favoreceu a

24 “Enquanto Athos me ensinava sobre os ventos anabáticos e catabáticos, sobre a fumaça do Ártico e o espectro de Bröcken, eu não sabia que judeus estavam sendo dependurados pelos polegares em praças públicas. Não sabia que quando havia corpos demais para os fornos, eles eram queimados em fossas abertas, as chamas alimentadas por gordura humana. Não sabia que enquanto ouvia as histórias dos exploradores dos lugares limpos do mundo (cobertos de neve, mordidos de sal) e dormia num lugar limpo, homens estavam desemaranhando membros, a carne de amigos e vizinhos,de esposas e filhas se descolando em suas mãos.

72

reconstrução de sua identidade como o colocou frente a frente com a crueldade

dos alemães para com seus irmãos judeus. Jakob se dá conta de que tantos

outros judeus precisavam ser reverenciados como seus pais:

But the dead surrounded us, an aurora over blue water. At night I choked against Bella’s round face, a doll’s face, immobile, inanimate, her hair floating behind her. These nightmares, in which my parents and my sister drowned with the Jews of Crete, continued for years, continued long after we’d moved to Toronto.25 (FP: 44)

Assim como ele exemplifica na citação anterior, os judeus rodeiam-no por toda

parte; eles não são apenas mortos que não haviam sido enterrados devidamente,

mas são fantasmas que vagam juntamente com seus pais e possivelmente sua

irmã e o fazem acreditar que eles são como uma aurora sobre a água azul do mar

de Creta. A referência à Creta se deve a esses homens que morreram durante a

guerra e que devem ser lembrados e narrados para que suas almas possam

descansar em paz. Refere-se também aos judeus que ficaram ilhados em Creta

no final da Segunda Guerra.

Os ensinamentos, o carinho e a aquisição de novas culturas,

apresentadas a Jakob por Athos, fazem com que pouco a pouco sua vida seja

novamente preenchida e principalmente completada no vazio que ficara pela

morte de sua família. Constantemente Athos ensina-lhe algo relacionado à

Arqueologia, Geologia, Paleontologia ou Botânica. Isso encanta Jakob: “Because

Athos’s love was paleobotany, because his heroes were rock and wood as well as

25 “Mas os mortos nos rodeavam, uma aurora sobre a água azul. De noite, solucei encostado ao rosto redondo de Bella, uma cara de boneca, imóvel, inanimada, os cabelos flutuando para trás. Esses pesadelos, nos quais meus pais e minha irmã morriam afogados junto com os judeus de Creta, continuaram durante anos, continuaram por muito tempo depois que nos mudamos para Toronto.”

73

human, I learned not only the history of men but the history of earth. I learned the

power we give to stones to hold human time.”26 (FP: 32) Durante toda sua

convivência com Athos, Jakob passa a observar o seu redor com olhos de quem

procura em cada recorte geográfico dos lugares por onde passa uma explicação

para os fenômenos de sua vida, assim como a compreensão da arqueologia de

sua própria existência que ele passara a buscar.

Apesar de todos esses ensinamentos estarem presentes na vida dele,

apesar de ser demorada a transformação do Jakob órfão e solitário em um

homem mais forte e capaz de amar, apesar de Jakob consumir quase toda sua

vida tendo constantes pesadelos com os mortos, principalmente com sua irmã, ele

consegue resgatar a si mesmo e ultrapassar as fronteiras amargas que o

prendiam no não entendimento da morte e no sofrimento que ele não chorou. Do

luto “anormal” para o luto “inaugurado” Jakob despendeu grande parte de sua

vida, mas nada foi em vão. Como ele mesmo reconheceu: “I know I must honour

Athos’s lessons, especially one: to make love necessary.”27 (FP: 121) Quando

Jakob percebe que ele não esteve sozinho e que Athos tentou a qualquer preço

transformá-lo em um homem com uma história, com memórias que podiam ser

escritas e narradas, o que o auxiliavam na dura tarefa de recontar sua vida antes

da guerra, Jakob pôde viver sem as antigas perturbações.

A trajetória de vida dessa personagem deixa de ser marcada apenas

pelo sentimento angustiante que a morte proporciona e passa a ser pensada pelo

sentimento da vida: o amor. Embora seu primeiro casamento não tenha sido bem

26 “Como o amor de Athos era paleontobotânica, como os seus heróis eram pêra e madeira além dos humanos, aprendi não só a história dos homens, mas a história da terra. Aprendi o poder que atribuíamos às pedras de reter o tempo humano.” 27 Cf. cit. 6.

74

sucedido, Jakob consegue se realizar em seu segundo. Isso também é algo para

o qual Athos colabora. Por ocasião da morte de seu koumbaros, Jakob já havia

conseguido reestabelecer boa parte de sua memória e reconstruir seu passado. A

ausência de Athos pôde ser experimentada como uma perda pela qual Jakob

chorou e viveu, ao contrário da de seus pais. Com a experiência do luto, Jakob

conseguiu romper com o trauma da perda e isso talvez o tenha ajudado a transpor

aquela fronteira crucial que o diferencia tanto da outra personagem, Ben. Athos

ajudou-o a transpor os limites do luto anormal para o luto inaugurado não só com

seus ensinamentos e com a sua insistência em fazer a memória prevalecer, mas

também pelo ato de sua morte, que deu a Jakob a oportunidade de enterrá-lo – e

através dele enterrar seus mortos anteriores, até aquele momento não enterrados.

BEN

A solidão de Ben, a outra personagem a ser analisada, é bem mais

marcante, pois ele a sente mesmo no convívio com seus pais e com sua esposa

Naomi. Como fruto de dois sobreviventes da guerra, Ben cresceu dentro de um

sentimento de vazio muito grande. Seus pais pareciam viver isoladamente em um

mundo à parte. Eles jamais conseguiram romper com as fronteiras do luto

“anormal”. Ben carrega esse estigma durante toda sua vida e, mesmo tentando

ser diferente, não obtém sucesso.

A segunda narrativa de Fugitive Pieces conta com uma personagem

que não teve a mesma “sorte” de Jakob. Apesar de ele próprio não ter vivido os

horrores dos campos de concentração, durante sua vida e com o convívio com os

75

pais Ben recebe a amarga influência da guerra. Ben, nome hebraico para “filho”,

em oposição ao diminutivo de Benjamin, como muitos podem pensar, e diferente

do nome hebraico Jacob28. De acordo com os registros bíblicos, Jacó, ao retornar

para seu povo recebeu o nome de Israel, o nome da terra do povo judeu e que,

tem uma história de vida marcada pelo sofrimento de seus pais. O primeiro grande

sofrimento deles foi conviver com a perda de seus dois primeiros filhos. Durante a

vida de seus pais, Ben pôde se dar conta de como a guerra os fizera prisioneiros

de suas próprias lembranças ou de suas tentativas de esquecimento. Com a

morte de seu pai e através da revelação de sua mãe à sua esposa Naomi, Ben

descobre que além dele seus pais haviam tido mais dois filhos que

desapareceram quando eles se viram obrigados a mudar para o gueto:

We think of photographs as the captured past. But some photographs are like DNA. In them you can read your whole future. My father is such a young man I barely recognize him. He poses in front of a piano, an infant in the bend of his arm. His other hand directs the face of a little girl towards the camera. (…) The woman standing beside him is my mother. (…) On the back floats a spidery date, June 1941, and two names. Hannah. Paul. I stared at both sides of the photograph a long time before I understood that there had been a daughter; and a son born just before the action. When my mother was forced into the guetto, twenty-four years old, her breasts were weeping with milk.29 (FP: 251/252)

28 JACOB. In: SÉGUIER, Jaime de. Dicionário Prático Ilustrado. Porto, Lello & Irmão – Editores, 1961. p. 1681. 29 “Pensamos em fotos como um pedaço de passado capturado. Mas algumas fotografias são como DNA. Nelas você pode ler todo o seu futuro. Meu pai é tão jovem que mal o reconheço. Está posando na frente de um piano, uma criança na curva do braço. Com a outra mão segura o rosto de uma menina pequena voltado para a câmera. (...) A mulher parada ao lado dele é minha mãe. (...) Nas costas flutuam os garranchos de uma data, junho de 1941, e dois nomes. Hannah. Paul. Olhei durante longo tempo os dois lados da fotografia antes de entender que tinha havido uma filha; e um filho nascido imediatamente antes da ação. Quando minha mãe foi forçada a ir para o gueto, aos vinte e quatro anos, seus seios estavam gotejando leite.”

76

Hannah e Paul, seus dois irmãos, foram vítimas do sistema caótico que o

Terceiro Reich representou. Nessa passagem, percebemos que os pais de Ben

servem como exemplificação de uma representação do luto “anormal”. Eles não

rompem a fronteira do silêncio, nem tampouco consideram as poucas pessoas

com as quais conviviam, seu filho Ben, sua nora Naomi, ou os próprios vizinhos,

parceiras na tentativa de se desfazerem dos grilhões da guerra e pessoas com

quem conversar sobre essa e outras possíveis perdas. Entre as pessoas que

sofreram traumas como o Holocausto, é comum essa dificuldade de se relacionar

com os outros e principalmente de conseguir falar sobre seus traumas, como

explica Ernest Van Alphen (1999), autor que será abordado adiante. Há um

impasse muito grande entre a dor da perda e o sentimento de incapacidade de

relatar os episódios da guerra. Ben percebe essa dor de seus pais através da

fotografia de seus irmãos que durante tanto tempo esteve escondida nos

pertences daqueles. Ao dizer que o leite pingava dos seios de sua mãe quando

ela fora obrigada a ir para o gueto, Ben está falando também de tantas outras

mulheres que passaram pela mesma situação e não amamentaram seus filhos. A

alusão ao leite não está explícita na foto, ela é feita tendo base a época da

fotografia.

Em um estudo sobre as fotografias tiradas durante o Holocausto,

Marianne Hirsch (1999) explica que tanto as fotografias que serviram ao apelo

público quanto aquelas reservadas ao convívio familiar representam um momento

da história da humanidade que muitas pessoas desejam esquecer. A autora

identifica essas fotografias através dos termos Postmemory e Heteropathic

77

Memory and Identification (Pós-memória e Memória e Identificação Heteropática).

Segundo a autora, Postmemory,

As I conceive it, postmemory is not an identity position, but a space of remembrance, more broadly available through cultural and public, and not merely individual and personal, acts of remembrance, identification, and projection. It is a question of adopting the traumatic experiences – and thus also the memories – of others as one’s own, or more precisely, as experiences one might oneself have had, and of inscribing them into one’s own life story. 30 (Hirsch, 1999: 8-9)

Dentro dessa concepção, Hirsch explica que, as pessoas fotografadas nem

sempre são as mesmas que sobreviveram ao Holocausto e puderam se rever. Às

vezes, são familiares das vítimas ali representadas ou a própria sociedade quando

se depara com as publicações das fotos em jornais ou revistas, etc. Dessa

maneira elas não fazem parte da memória imediata daquele acontecimento, mas

se inserem nesse cenário apresentado pelas fotos, transformando-o em sua

própria memória, como uma memória tardia ou posterior. No caso de Ben vemos

que ele não está fotografado, é sua família anterior que está na foto. Esse

confronto de gerações, a de seus pais e a sua própria, reflete o quanto a memória

tardia que ele adquire do fato influencia sua vida. Quando as fotos são reveladas

ao olhar de quem não participou diretamente do Holocausto, elas se inserem em

um novo momento histórico, o da lembrança daquele acontecimento que ao

mesmo tempo o trás de volta à contemporaneidade para que um novo olhar possa

30 Da maneira como eu entendo isso, postmemory não é uma posição de identidade, mas um espaço de lembrança, mais amplamente disponível através do cultural e do público, e não só meramente do individual e do pessoal, atos de lembrança, identificação, e projeção. É uma questão de adotar as experiências traumáticas – e também as memórias – dos outros como dela própria, ou, mais precisamente, como experiências que alguém poderia ter tido, e inscrevê-las em sua própria história de vida. (m/ tradução)

78

ser dado. O outro termo utilizado pela autora para falar sobre as fotografias,

Heteropathic Memory and Identification, implica em uma relação mais próxima da

fotografia e das pessoas que a vêem. Nas palavras de Hirsch, “Heteropathic

memory (feeling and suffering with the others) means, as I understand it, the ability

to say, ‘It could have been me; it was me also,’ and, at the same time, ‘but it was

not me.’”31 (Hirsch, 1999: 9). Seria uma relação mais familiar ou grupal diferente

da relação existente que o termo Postmemory encerra. Como exemplificação

desse termo, podemos retomar o que Ben comenta sobre o leite pingando do seio

de sua mãe e isso, sob seu olhar adulto, revela a dor que a mãe possa ter sentido

por ocasião daquele ato. Ben retoma da fotografia um momento da história que

não está lá, fotografado juntamente com seus dois irmãos, mas que a data

exposta na parede da foto revela.

Para Hirsch, em ambos os casos, Postmemory e Heteropathic

Identification, há uma distância enorme que deve ser transposta com o objetivo de

conectar o antes e o agora, porém, precisamente em se tratando do Holocausto,

essa ponte não pode ser feita. Há uma monumental e imensurável distância, de

acordo com a autora, que permanece mesmo entre as pessoas que, fazendo parte

do segundo termo explicado por ela – Heteropathic Identification –, tentam

transpô-la como no caso da segunda personagem Ben, que nisso não obtém

sucesso. Além das observações feitas pela autora, Salman Rushdie (1992), na

primeira parte de seu livro Imaginary Homelands, reflete sobre uma fotografia de sua

casa na Índia. Sua reflexão serve como apoio ao que Hirsch coloca como um

passado que pode ser tomado como nosso e sobreposto ao nosso presente sem

31 Memória heteropática (sentir e sofrer com os outros) significa, na maneira como eu a entendo, a capacidade de dizer, ‘Poderia ter sido comigo; foi comigo também,’ e, ao mesmo tempo, ‘mas não era eu.’

79

que necessariamente esse passado substitua o presente. Rushdie diz que aquela

foto pendurada na parede não é um passado estrangeiro e sim um presente que

deve ser visto como estrangeiro: “But the photograph tells me to invert this idea; it

reminds me that it’s my present that is foreign, and that the past is home, albeit a lost

home in a lost city in the mists of lost time.”32 (Rushdie, 1992: 09). Essa inversão de

olhar é também o que sugere Hirsch, pois uma vez que se olha como algo que

também é seu, que faz parte de seu arcabouço histórico, fica mais evidente como o

passado e o presente não possuem ou podem possuir uma ponte para uni-los –

afinal eles são a mesma coisa em dimensões temporais que se complementam.

Paralelo à dificuldade em lidar com a perda de seus dois primeiros

filhos, o outro sofrimento dos pais de Ben pode ser observado tendo em vista a

incapacidade psicológica que eles tiveram em nomear seu terceiro filho, com

medo de que o anjo da morte o levasse: “They hoped that if they did not name me,

the Angel of death might pass by. Ben, not from Benjamin, but merely ‘ben’ – the

Hebrew Word for son.”33 (FP: 252). Por isso ele é simplesmente Ben, o filho

inominado.

Além da questão do luto, percebemos outra questão também bastante

marcante no texto – a dificuldade de reestabelecimento de um sentimento mais

humano pode ser observada nesse núcleo familiar. Não só os pais de Ben se

vêem a mercê do destino, como também eles não conseguem criar sua trajetória.

A sensação que o leitor tem é que o tempo parou para eles no instante em que a

guerra começou. As lembranças deles estão intrinsicamente ligadas à essa 32 Mas a fotografia me diz para inverter essa idéia; ela me lembra que meu presente é que é estrangeiro, e que o passado é meu lar, embora um lar perdido em uma cidade perdida na névoas de um tempo perdido. (m/ tradução) 33 “Tinham a esperança de que se não me dessem um nome, o anjo da morte passaria por mim. Ben, não Benjamin, mas simplesmente ben – a palavra hebraica para filho.”

80

guerra. Não há como se desvencilhar dessas lembranças. Há uma comunhão de

episódios na obra – o luto “anormal” e o silêncio dos pais de Ben – que permitem

fazer uma análise da constituição da memória desses sobreviventes do

Holocausto em um ponto de partida que parece aniquilar a condição humana.

A incapacidade dialógica dos pais de Ben pode ser estudada de acordo

com Ernst Van Alphen em seu texto sobre experiência, memória e trauma. De

acordo com o teórico,

In different ways they have argued that experience is not so direct and unmediated as is usually assumed, but is fundamentally discursive. Experience depends on discourse to come about; forms of experience do not just depend on the event or history that is being experienced, but also on the discourse in which the event is expressed/thought/conceptualized.34 (Alphen, 1999: 24).

Retomando o que diz Walter Benjamin a respeito do que representa a

experiência para os sobreviventes das guerras, em que ele se situa

particularmente no pós Primeira Guerra Mundial, a guerra matou a experiência na

mesma proporção que permitiu que o silêncio se fizesse mais presente entre

esses homens, e assim as experiências antes intercambiadas e representantes de

uma época deram lugar a um esvaziamento histórico muito grande. Para Benjamin

os combatentes voltaram silenciosos dos campos de batalha sem ter de fato o que

narrar. Já Gillian Rose estuda as conseqüências da guerra do ponto de vista do

luto, o luto “anormal” e o ‘luto inaugurado” explicados no início deste capítulo e

34 De diferentes formas eles têm discutido que a experiência não é tão direta e não mediada como é comumente assumida, mas é fundamentalmente discursiva. A experiência depende do discurso para vir à tona; as formas de experiência não dependem somente do evento ou da história que esteja sendo experimentado, mas também do discurso no qual o evento é expressado/pensado/conceitualizado. (m/ tradução)

81

que é, de certa forma, reforçado pelo que Avelar estuda no que diz respeito

particularmente à narrativa sobre o luto que se constituiu na América Latina pós-

ditadura e que contribuiu, sem dúvida, para os estudos sobre o luto de uma

maneira mais abrangente. Ernst Van Alphen por sua vez, entende que a

experiência, aquela experiência benjaminiana, depende da elaboração discursiva

para vir à tona. Fica evidente que todos os autores abordados acima estejam

falando basicamente as mesmas coisas, ainda que o primeiro deles tenha escrito

na primeira metade do século XX e praticamente apenas no final dele os outros

autores tenham se manifestado. O que interessa ao estudo deste trabalho é

entender que, de acordo com eles, o fim da experiência intercambiada, como bem

explicou Benjamin, trouxe conseqüências muito devastadoras e que,

principalmente a Primeira Guerra deve ser responsabilizada por elas porque

acabou diminuindo, ou talvez excluindo, a troca de vivências que constrói todo o

universo dos acontecimentos e que principalmente serve como artefato histórico

para estudos posteriores. Sem a narrativa coletiva ou individual do fato, a memória

fica restrita a quem o vivenciou e, quando este indivíduo morre, a história morre

com ele.

Alphen se propõe a estudar não a experiência em si, na troca das vozes

que a compõe, como percebemos em Walter Benjamin, mas ele se preocupa com

a experiência fracassada, aquela que para ele compõe o cenário histórico

contemporâneo: “To take my case, I shall focus not on experience but rather on

what I call ‘failed experience’, that is, trauma.”35 (Alphen, 1999: 25) O autor explica

que seu interesse pelo trauma se deve ao fato de que precisamente esse trauma

35 No meu caso, devo focalizar não na experiência, mas naquilo que chamo de “experiência fracassada”, que é o trauma. (m/ tradução)

82

impossibilita a experiência e conseqüentemente a memorização de um

acontecimento. Isso interessa ao trabalho, pois Alphen usa como exemplo dessa

situação de desnorteio os sobreviventes do Holocausto e sua incapacidade de

expressar ou narrar seu passado. Essa incapacidade se aplica muito bem aos

pais de Ben.

O autor apresenta quatro problemas que envolvem os sobreviventes do

Holocausto em relação à experiência e sua respectiva representação:

1. Ambiguous actantial position: one is neither subject nor object of the events, or one is both at the same time; 2. total negation of any actantial position or subjectivity; 3. the lack of a plot or narrative frame, by means of which the events can be narrated as a meaningful coherence; 4. the plots or narrative frames that are available or that are inflicted are unacceptable, because they do not do justice to the way in which one partakes in the events. 36(Alphen, 1999: 28)

O primeiro problema apresentado por ele consiste justamente na

dificuldade dos sobreviventes de se identificarem como o sujeito ou o objeto da

guerra. De acordo com o relato de uma mulher, mãe, apresentado por Alphen em

seu texto, ela se coloca como alguém que não era ela no momento em que a

mesma “permitiu” que seu bebê fosse levado de seu colo pelos alemães nazistas.

Há a dificuldade de se expressar como alguém que participou daquele horror.

Claro, como mãe ela pensa, no mínimo, em salvar seu bebê. Ela nega sua

participação na morte de seu filho ao mesmo tempo em que se culpa pelo

36 1. Posição de ação ambígua: a pessoa não é nem o sujeito nem o objeto dos eventos, ou a pessoa é as duas coisas ao mesmo tempo; 2. total negociação de qualquer osição acionada ou subjetiva; 3. escassez de um enredo ou estrutura narrativa, pelos meios dos quais os eventos podem ser narrados como coerência significativa; 4. os enredos ou estruturas narrativas que estão disponíveis ou que estão infligidos são inaceitáveis, porque não fazem justiça à forma como alguém participa dos eventos. (m/ tradução)

83

acontecimento. A confusão que a guerra provoca não permite que esses

sobreviventes consigam elaborar um discurso que represente a experiência vivida

por eles. A negação do eu, como no relato da mulher, mostra a dificuldade em

elaborar um passado que possa ser rememorado ou um passado do qual essas

pessoas se sintam parte. Essa incapacidade narrativa gera conseqüências que

vão além da desorientação psicológica, pois de muitas formas ela colabora para

que os vários fatos atrozes sejam omitidos e assim a história coletiva acaba por

ser constituída em fragmentos. No caso dos pais de Ben, percebe-se no seu

silêncio a negação de seu status de sujeito, ao mesmo tempo em que assumem

esse status ao conservarem o fato.

Já o segundo problema apresentado por Van Alphen nega a

subjetividade humana e reduz o homem a nada. Sob essas circunstâncias, nada

pode fazer o ser humano. Sob o poder dos nazistas, o máximo que eles podiam

fazer era acatar as decisões impostas e viver como animais à espera do final do

dia, sem perspectiva alguma do amanhã. Muitas vezes, esse acatar de decisões

significava sacrificar seu irmão para tentar salvar a si próprio. O filme Cinzas da

Guerra37 (The Gray Zone - 2003) do diretor Tim Blake Nelson, mostra com clareza

o trabalho dos judeus nos crematórios do 12º comando especial de Auschwitz,

que viviam o torturante dilema moral de matar seus companheiros em troca de

mais alguns meses de vida. Além desse “egoísmo” em busca da sobrevivência,

Alphen explica esse segundo problema como uma falta de escolha, os homens

dos crematórios não escolhiam matar, pelo contrário eles não queriam era morrer:

o sobrevivente do Holocausto nas mãos dos nazistas acabava por matar seu

37 THE GRAY zone. Direção: Tim Blake. Intérpretes: David Arquette; Steve Buscemi; Harvey Keitel; Natasha Lyonne;Mira Sorvino. California Films, 2003. 1 fita de vídeo (90 min), VHS, son, color, legendado.

84

interior e essa morte resultava na falta de narrativas memoráveis. Viver como se

não houvesse o amanhã deveria ser o lema dos campos de concentração. Não

havia esperança de um dia melhor. Isso fazia com que quem vivia nos campos

estabelecesse uma memória fugaz. Um artifício de defesa contra a permanência

de suas lembranças de outrora. Alphen diz que: “A killed self has no experiences,

not to mention narratable memories.”38 (Alphen, 1999: 33). Isso também se aplica

aos pais de Ben que sobreviveram ao campo, ainda que não tenham sobrevivido

às lembranças de antes do Holocausto, e tenham negado sua subjetividade

negando-se a falar de suas perdas.

Como terceiro problema relacionado ao trauma sofrido pelos

sobreviventes, Alphen denomina o Holocausto como uma narrativa do vazio. Para

ele a experiência de acontecimentos não é um fato isolado e sim um

acontecimento que detém uma história anterior e que continua no presente. Pelo

menos, segundo ele, é assim que experimentamos e representamos os

acontecimentos e os transformamos em acontecimentos com uma seqüência

contínua:

Events never stand on their own. We experience events not as isolated happenings, and happenings cannot be experienced in isolation. Events always have a prehistory, and they are themselves again the prehistory of events that are still going to happen. I do not suggest that this continuity is present in reality. Reality is rather a discontinuous chaos. It is, however, the form in which we experience and represent events that turn events into a continuous sequence. We experience events from the perspective of narrative frameworks in terms of which these events can be understood as meaningful.39 (Van Alphen, 1999: 33)

38 Um ego morto não tem experiências, nem tão pouco memórias narráveis. (m/ tradução) 39 Os eventos nunca permanecem sozinhos. Não os experimentamos como acontecimentos isolados, e os acontecimentos não podem ser experimentados isoladamente. Os eventos sempre têm uma história anterior, e eles mesmos são novamente a história anterior dos eventos que ainda estão por vir. Não estou sugerindo que essa continuidade esteja presente na realidade. A realidade é, antes, um caos descontínuo. Entretanto, a forma

85

Ainda em relação ao terceiro problema, o autor conclui que, justamente

pelo fato de o Holocausto não fazer parte de nenhuma estrutura convencional,

torna-se praticamente impossível falar em experiência e conseqüente lembrança

ou representação dela. A citação de Van Alphen mostra como, no vazio da pós-

experiência de Auschwitz, os pais de Ben levam ao seu dia-a-dia a continuidade

do seu deslocamento social.

Finalmente, o autor apresenta o último problema levantado como sendo

o Holocausto a negação de estruturas narrativas, o que reforça o argumento do

parágrafo anterior. Ainda que a convivência nos campos de concentração tenha

sido reduzida às suas respectivas representações em museus e memoriais, elas

ainda se fazem bastantes presentes, irreconhecíveis e inaceitáveis por parte dos

sobreviventes. Não há uma integração que comungue passado, presente e futuro

e isso gera conseqüências muito devastadoras. Como foi explicado

anteriormente, a sensação da morte do eu permanece, e essas pessoas que

sobreviveram aos horrores da guerra vivem como se estivessem mortas,

incapazes de se relacionarem com as outras – e continuarem a viver como mortas

é no mínimo não-narrável. Por isso entendemos como fora difícil para os pais de

Ben se relacionarem com as outras pessoas, uma vez que eles não conseguiam

intercambiar suas experiências.

As palavras de Van Alphen servem como exemplo de como pode ter

sido o passado dos pais da personagem Ben. Embora o texto de Anne Michaels

não mencione como eles sobreviveram ao Holocausto, a narrativa de seu estilo de

como experimentamos e representamos os eventos é que os torna uma seqüência contínua. Nós os experimentamos através da perspectiva de estruturas narrativas nos moldes dos quais esses eventos podem ser entendidos como significativos. (m/ tradução)

86

vida mostra que eles eram pessoas isoladas dos outros e que tinham medo de se

relacionarem mesmo vivendo em um país tão distante da guerra, o Canadá: “Our

neighboors soon understood my parents wanted privacy. My mother nodded a

hello as she scurried in and out. My father parked as near as he could to the back

door, which faced out the river…”40 (FP: 243). Parece ao leitor que os pais de Ben

passaram por todos aqueles problemas enumerados por Alphen. Eles ou

perderam a memória de suas vidas do antes da guerra ou preferiram silenciar.

Eles também parecem ter sofrido com a aniquilação da condição humana nos

campos de concentração e perdem igualmente a confiança nos outros. Por

exemplo, no caso da enchente que houve no local em que os pais de Ben

moraram logo que chegaram ao Canadá, em conseqüência da qual o governo

canadense deu uma quantia em dinheiro para cada família que tinha sido

devastada pela águas, percebemos que seus pais não conseguiram entender ou

aceitar tal ajuda, que talvez parecesse artificial a seus olhos:

The government distributed restitution payments to those whose house had been washed way. It was only after my parents died that I discovered they hadn’t touched the money. They must have been afraid that someday the authorities would ask for it back.41 (FP: 246).

Os pais de Ben não tocaram no dinheiro porque tinham medo do que poderia

acontecer a eles posteriormente, já que eram estrangeiros. Essa atitude serve

como um reforço do que tem sido dito a respeito dos sobreviventes do Holocausto 40 “Nossos vizinhos logo entenderam que meus pais queriam privacidade. Minha mãe acenava com a cabeça uma saudação quando corria para fora e para dentro. Meu pai estacionava o carro o mais próximo possível da porta dos fundos, que dava para o rio, ...” 41 “O governo distribuiu pagamentos de restituição àqueles cujas casas forma destruídas. Só depois da morte de meus pais descobri que não haviam tocado no dinheiro. Devem ter ficado com medo de que algum dia as autoridades fossem pedi-lo de volta.”

87

que não puderam reconstruir suas vidas, seja do ponto de vista material, seja do

ponto de vista psicológico. Além disso, os pais de Ben, assim como aquela mulher

que perdera seu filho no gueto, como relata Van Alphen, perderam seus dois filhos

e, de acordo com este, essa perda parece bloquear a comunicação deles com o

mundo pós-guerra. A redução do homem ao presente, ao hoje, parece também ter

sido imposta àquele casal, pois eles estavam sempre remexendo em malas e

papéis que poderiam narrar por eles. Era um álbum vivo de suas vidas.

JAKOB e BEN

Tanto a explicação teórica de Rose no que concerne o estudo do luto

das pessoas que não puderam enterrar seus mortos e que conseguem – ou não –

lidar com esse fato, quanto o trabalho de Van Alphen que estuda como a memória

dos sobreviventes do Holocausto opera ainda que de maneira fragmentada,

contribuem para estabelecer um vínculo entre as personagens Jakob e Ben

mesmo que esse vínculo seja efetuado apenas para mostrar as divergências que

operam na vida de ambos.

A história de Ben é um pouco diferente da história de Jakob. Seus pais

conseguiram escapar dos campos de concentração, mas perderam dois filhos na

guerra. O silêncio deles nunca permitiu que os fantasmas do Holocausto fossem

devidamente enterrados, embora Ben só pudesse entender isso após a morte do

pai. Ben não consegue romper com seu sentimento de perda porque durante toda

sua vida ele não recebeu de seus pais explicações, já que, também, eles mesmos

não conseguiram romper com o luto “anormal”. Também após a morte de seu pai,

88

Ben vai à Grécia para ajudar Maurice Salman, amigo incomum de Jakob e dele

próprio, a recuperar as anotações de Jakob. Ben e sua esposa Naomi não vivam

bem naquela ocasião e ela havia sugerido uma separação, o que a ele soara

razoável. Idhra, a ilha grega onde Jakob passara seus últimos dias, o acolheu

muito bem e, em meio a algumas escavações no amontoado de coisas de Jakob,

ele consegue encontrar o diário de memórias. A descoberta de que, apesar de

Jakob também ter sofrido com os horrores da guerra, ele conseguira se redimir e

aceitar a ausência do outro contribuiu em parte para que pequenas modificações

pudessem ser feitas na vida de Ben. Nas anotações de Jakob, Ben encontra

poemas que haviam sido escritos para Michaela, encontra as esperanças de um

futuro melhor e a construção de uma nova identidade pluralícia. Através do ato de

escrever suas memórias e deixá-las assim registradas para a posteridade, Jakob

contribui em grande escala para romper finalmente com todas as barreiras de sua

história. A escrita tem um tom redentor em sua vida, pois a partir dela ele enterra

os fantasmas que o assombraram durante sua existência, registrando suas

memórias para que elas não se perdessem com o tempo. Entretanto, o mesmo

não pode ser dito de Ben, pois seu papel de leitor faz com que ele se depare com

uma realidade que, mesmo semelhante a sua, não pode ser imitada. Ainda que

ele interprete nas palavras de Jakob as soluções para seus problemas ele será

apenas um leitor das memórias de Jakob assim como foi apenas um ouvinte do

silêncio de seus pais. Ele não registrou sua vida, porque tudo para ele é de

segunda mão. Segundo Philippe Artières (1998), a prática de arquivar os fatos de

nossas vidas faz parte de um arquivamento maior, uma escrita pública que não se

perde com o passar do tempo:

89

Prática íntima, o arquivamento do eu muitas vezes tem uma função pública. Pois arquivar a própria vida é definitivamente uma maneira de publicar a própria vida, é escrever o livro da própria vida que sobreviverá ao tempo e à morte. (Artières, 1998: 32)

Essa escrita não faz parte da vida de Ben, pois ela não é feita, mesmo porque

suas experiências não o fazem refletir sobre seu passado, não auxiliando na

superação de suas perdas.

De volta ao Canadá, Ben tenta restabelecer a relação conjugal com sua

esposa Naomi. Ele muda seus pensamentos em relação ao relacionamento de

seus pais, o que o leva a tentar aplicar esse aprendizado lido nas memórias de

Jakob em seu próprio relacionamento. Essa mudança não é clara no texto, o que

faz com que o leitor pense que ela só se tornará possível se Ben realmente fizer a

tentativa. Caso Ben consiga mudar, ele também estará rompendo com as

barreiras do luto “anormal” e estará conseguindo caminhar em direção ao luto

“inaugurado”. A posição de Ben corresponde, de acordo com Rose (apud Parry,

2000) a uma definição de pós-modernismo – uma rejeição da razão que se liga à

tradição do pensamento do qual se deve libertar. Uma solução para essa rejeição

seria o que Jakob conseguira fazer, uma reorganização do velho com a

possibilidade de novas relações. Rose levanta também a importância de se

pensar nesse processo de transição do “luto anormal” para o “luto inaugurado”

sem se deixar levar somente pelo individual ou pelo coletivo. Fugitive Pieces

consegue esse desenvolvimento porque apresenta vidas de sobreviventes do

Holocausto sem se sucumbir ao singular.

90

Relacionar Jakob e Ben é possível porque na vida de ambos houve

mortes que não puderam ser lamentadas. Jakob perde seus pais. Já a perda de

sua irmã não traz a certeza da morte. Isso se transforma em um pesadelo que o

acompanha até sua maturidade. A perda de Ben é mais complexa, ela reflete uma

outra perda, aquela que seus pais não souberam digerir. Embora haja

semelhanças entre Jakob e Ben, eles contribuem para a constituição da

identidade judaica diaspórica de maneira diferente. Jakob não vive sua cultura, da

mesma forma que Ben, ele não fala dela a não ser quando Athos o faz lembrá-la.

Já Ben vive sua condição judaica, principalmente, cada vez que se lembra do

sofrimento e do silêncio de seu pai.

91

4: A ESTAÇÃO INTERMEDIÁRIA

Este capítulo pretende discutir a desconstrução da identidade cultural na

pós-modernidade pelo viés da memória. Essa questão se encontra intrinsicamente

ligada a processos políticos, sociais e econômicos e também a modificações no

que concerne o estudo das ciências humanas, mais precisamente após a 2ª

Guerra Mundial, com o surgimento dos Estudos Culturais na Inglaterra. Esse

processo se encontra dentro de outro, chamado globalização, que teve e ainda tem

um resultado cultural muito forte. Entende-se que a força de um processo chamado

globalização tem o efeito de deslocar, romper e fragmentar aquilo que antes era

entendido como unificado e fixo – as identidades centradas e fechadas de uma

cultura nacional, como bem observou Stuart Hall:

A assim chamada ‘crise de identidade’ é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (Hall,2003:07).

Para o autor, o que está em jogo na questão das identidades é o próprio jogo de

identidades uma vez que elas se tornaram uma celebração móvel. Em um ensaio

intitulado Cultural Identity and Diaspora (1994), Stuart Hall discute principalmente

como se deve pensar a identidade cultural hoje depois do processo de

descolonização. Para ele há duas maneiras de se fazer isso. A primeira consiste

em pensá-la como uma identidade dividida, imposta e artificial. De que maneira?

Ora, por ser imposta ela deixa o indivíduo estático, imutável como sendo uma

imposição do colonizador. Dividida porque o indivíduo precisa viver entre a sua

92

cultura e a do colonizador e principalmente viver as duas culturas. Esse sempre foi

o ponto de vista do colonizador, que de certa forma se aplica também a qualquer

outro povo que se sinta oprimido pela imposição cultural do Outro. A segunda

maneira levanta um ponto significativo de mudança nesse paradigma, um ponto

que faz a diferença crucial entre esta e a outra maneira de se estudar a identidade

cultural. Essa mudança consiste em pensar a identidade como algo que se torna e

não algo que “é”. Há rupturas e descontinuidades que devem ser levadas em

consideração. As identidades culturais vêm de algum lugar e têm histórias. Elas

são assunto no jogo da história, da cultura e do poder. É apenas do segundo ponto

de vista que se devem entender as mudanças no estudo das identidades. A idéia

de alteridade muda a concepção de identidade cultural. Para Hall (1994), a

identidade cultural não é uma essência fixa, não é um espírito universal e

transcendental, não significa um por todos, não tem uma origem fixa da qual

partimos em direção a um fim e para a qual retornamos, não é meramente um

fantasma. A identidade é alguma coisa viva que tem histórias que levam a efeitos

reais, matérias ou simbólicos. Ela é construída pela memória, fantasia, fatos,

narrativas ou mitos. É um posicionamento, um ponto de identificação instável. Para

o teórico, é importante se pensar a diferença como intrínseca à continuidade. A

inscrição da diferença é específica e crítica. Não deve ser tomada como uma

representação cuja estrutura é binária.

Tomando como base teórica a discussão de Stuart Hall sobre as

transformações ocorridas no que se entende por identidade na pós-modernidade,

analisaremos aqui de que maneira a personagem Jakob serve como um exemplo

de identidade formada na multiplicidade cultural provocada, neste caso, pela

93

ocorrência da Segunda Guerra Mundial. A personagem possui características que

a inserem no cenário contemporâneo e dessa forma é possível estudar a

constituição identitária de Jakob feita a partir das várias influências sofridas por ele

em todos os ambientes geográficos pelos quais ele passou durante sua vida. Sua

identidade não se faz na singularidade da cultura judaica. No pós-guerra, momento

da história representado no romance que foi tomado como corpus deste trabalho, o

homem é apresentado por seus estudiosos como o resultado das mudanças em

todos os setores da sociedade: um homem sem referência soberana e unilateral

como aquele que serviu de base do estudo cartesiano, um homem que se

apresenta fragmentado e que não pode mais ser mostrado em sua completude,

visto que ele influencia outras culturas na mesma proporção que sofre influências

delas. Essas influências sofridas pelo homem contemporâneo são apresentadas

por Hall como o resultado das descolonizações que o mundo presenciou no final

do século XIX e durante quase todo o século XX. Uma vez responsáveis pelo

mosaico cultural que se forma no interior de um indivíduo, essas influências

determinam a identidade desse indivíduo. De acordo com Hall (2003), em seu

estudo sobre a identidade cultural na pós-modernidade, o homem contemporâneo

não deve ser visto mais como nos séculos XVIII e XIX porque o cenário histórico

do século XX não permite pensar em um homem racional, soberano e dividido em

mente e matéria. As conseqüências das guerras mundiais e das descolonizações

tiveram influência na mudança desse paradigma. Hall explica, tendo como base

essas descolonizações que fizeram parte do cenário dos séculos XIX e XX, que a

identidade cultural de um povo colonizado não é algo definido pelos seus

colonizadores, mas sofre modificações, como também propicia mudanças no outro.

94

O homem contemporâneo não segue mais a linha de pensamento que o explicava

a partir do verbo “ser”, sendo explicado agora, a partir do verbo “tornar-se” – ou

dito de outra forma “vir a ser”. Essa mudança de pensamento ocorre porque dentro

da constituição da identidade cultural pós-moderna há rupturas e descontinuidades

que fazem com que elas sejam pensadas como algo que tem histórias e efeitos

reais; como identidades que são construídas pela memória, pelos fatos, pelas

narrativas e pelas fantasias; e que se torna um dos vários posicionamentos

possíveis servindo à instabilidade da constituição da identidade. Para Hall, as

identidades culturais devem ser pensadas nesse eixo de tensão que existe entre

ser e tornar-se, entre o que é fixo e o que se faz na fluidez.

Antes de nos aprofundarmos nesta questão do “tornar-se”, que explica

de uma certa forma a situação da personagem Jakob aqui estudada, é necessário

fazer um levantamento histórico das transformações ocorridas no que se entende

por identidade. O homem pós-moderno tem uma consciência do nascimento e da

morte da concepção de sujeito moderno e justamente por ter essa consciência é

que ele se vê jogado à mercê da História, como será esclarecido a seguir.

Para Hall, a concepção de sujeito nasce com o Humanismo

Renascentista e com o Iluminismo do século XVIII, quando o homem é visto como

o centro do universo. O indivíduo é, na época, considerado como soberano,

racional, como um homem explicado pela ciência, apenas pela ciência, e de acordo

com essa concepção ele é dividido em mente e matéria como coisas distintas. Já a

morte dessa concepção acontece quando as ciências sociais passam a perceber

que esse sujeito já não é mais capaz de ocupar um lugar dentro desse tipo de

sociedade, criticando, dessa forma, a individualização racional do sujeito

95

cartesiano. Nesse deslocamento temporal do Iluminismo para o século XX e com a

transformação marcante efetuada pelas duas grandes guerras, o homem perdeu

seu ponto de referência individual e social e se viu jogando com o próprio limite de

sua construção identitária. Se levarmos em consideração principalmente os povos

do leste europeu e os judeus do pós-guerra, perceberemos que esse homem

contemporâneo não pôde mais se fixar em seu local de origem porque ele

percebeu a fragilidade e a instabilidade desse lugar, assim como não pôde

encontrar na história um fim para se agarrar, porque o conceito de telos que se

vincula à história, um fim redentor ao qual a história pretendia chegar, perdeu seu

valor no jogo das relações humanas. Com essas transformações, os estudiosos

da cultura passaram a perceber como os problemas sobre identidade têm um

vínculo muito estreito com a questão cultural.

Para entender o descentramento do sujeito cartesiano citado

anteriormente, quando as ciências humanas deixam de creditar ao homem uma

importância soberana, é preciso recorrer às três concepções de identidade, que

explicam o sujeito em seu respectivo tempo, apresentadas por Hall em sua obra:

a) sujeito do Iluminismo, b) sujeito sociológico e c) sujeito pós-moderno. O sujeito do iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou “idêntico” a ele – ao longo da existência do indivíduo. (...) A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com “outras pessoas importantes para ele”, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava.

96

(...) O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. (...) Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. (Hall, 2003: 10-12)

Dentre essas três visões de sujeito, a última é a que mais interessa aqui, visto que

as transformações que acompanharam a pós-modernidade reforçam-na mais de

perto. A idéia de descontinuidade identitária dentro do processo de globalização

permite pensar no processo de fragmentação e seus possíveis resultados. Essa

idéia teve início com a própria modernidade e apresenta suas conseqüências

sobre as identidades culturais, de modo a desintegrá-las ou reforçá-las ao mesmo

tempo em que permite o surgimento de novas identidades.

Ao discutir a descentralização do sujeito cartesiano e o espaço ocupado

pela identidade cultural na pós-modernidade, Hall revela a fragilidade do conceito

de espaço. O espaço passa a ser visto como um conceito móvel, oscilante, e

essas identidades não procuram suas origens em um espaço fixo, mas em seu

diálogo com as outras áreas do conhecimento – História, Filosofia, Sociologia,

Antropologia – diminuindo as fronteiras existentes entre elas. Nesse diálogo, as

identidades se favorecem percebendo que podem reconstruir seu passado

histórico de uma maneira contrária à arbitrariedade da imposição cultural. De que

forma? A partir do momento em que a identidade cultural passa a ser estudada

não apenas vinculada à origem e por isso autônoma no que diz respeito à sua

formação, mas como tendo um forte reforço no que diz respeito às outras áreas do

conhecimento, seus estudiosos conseguem retirar os subsídios que interessam ao

97

estudo da identidade na contemporaneidade. Podemos exemplificar, tomando

como amostra, os países colonizados. Não importa quando estes países

tornaram-se nação, importa o sentimento que o tornar-se nação revela. A

identidade cultural se firma e afirma como tal não apenas pela origem daqueles

povos colonizados, mas pelas influências que os colonizadores tiverem sobre

eles. As conseqüências dessas descolonizações não se fazem como o marco de

um novo estado, pelo contrário, se fazem como reforço de um desejo anterior à

consumação desse estado, já que o processo de independências revela o desejo

anterior que determinado povo tem de se tornar tão soberano quanto seu antigo

colonizador. De acordo com a história das descolonizações, vemos que há um

anseio pela liberdade de expressão cultural de quem se viu colonizado por muito

tempo – é claro que esse anseio não foi o único responsável pelas

independências, a história também deixa claro os interesses econômicos e

políticos dos envolvidos no processo.

O texto de Hall apresenta mais de perto a questão desse

descentramento do pensamento voltado pela unidade do sujeito relacionando-o

com a mudança do cenário histórico durante a modernidade. Em virtude de todas

as descolonizações antes ou depois das guerras e das diásporas que as

sucederam, esse cenário histórico já não se torna o local de origem da identidade

e sim o espaço ocupado por ela. Analisado como espaço, o cenário histórico se

torna também, assim como a identidade cultural, um espaço oscilante. Esse

espaço passou a predominar por ter um significado mais flutuante que o de lugar.

O conceito de lugar se aproxima mais do conceito de raiz ou pertencimento.

Podemos exemplificar essa mudança tomando como modelo, novamente, Jakob.

98

Ele pertencia a um lugar fixo, a Polônia, sua terra natal. Entretanto sua identidade

cultural não se fez na Polônia, pelo contrário, ela se fez em todos os espaços

móveis que ele ocupou – a Grécia e o Canadá. Da Polônia ele tinha apenas a

referência familiar, nem mesmo a referência religiosa, referência essa que ele

readquiriu sob a influência grega e canadense de seu koumbaros.

Essa mudança de paradigma ocorreu tendo em vista a própria fluidez da

sociedade, como bem observou o sociólogo Anthony Giddens:

Em condições de modernidade, o lugar se torna cada vez mais fantasmagórico: isto é, os locais são completamente penetrados e moldados em termos de influências sociais bem distante deles. O que estrutura o local não é simplesmente o que está presente na cena; a ‘forma visível’ do local oculta as relações distanciadas que determinam sua natureza. (Giddens,1991:27)

Essas relações distanciadas são substancialmente importantes na constituição de

um procedimento inerente a desconstrução da identidade – o procedimento da

memória. Uma vez que se entende essa constituição como um artefato rico no

que se refere à identidade, a memória será o fio condutor da elaboração de seu

próprio discurso. Dentro da memória estará toda a relação entre lembrar e

esquecer que constitui esse processo. Retomando a explicação dada por Benedict

Anderson, em Imagined Comunities (1991), essa questão da memória permeia

todo o discurso que se faz para entender como a identidade cultural se transforma

em seu interior, transformando igualmente quem a influencia. Assim como Hall,

Anderson dá como exemplo dessa influência cultural os países colonizados.

O homem contemporâneo passou a perceber que sua identidade

nacional era formada e transformada no interior de sua representação, a cultura. A

99

cultura nacional foi uma característica marcante na industrialização e um forte

dispositivo da modernidade. Esse modo de construir sentidos, chamado de

cultura, produzia sentidos, também, sobre a nação, criando identidades que

Anderson (1991) chamou de comunidades imaginadas. Essa forma de se pensar

a nação como produto de uma identidade cultural se prendia à memória do

passado, a um desejo de viver em conjunto e à perpetuação da herança.

Anderson explica a maneira como os representantes de certa cultura agiam para

falar de seus povos. Eles retroagiam no tempo e explicavam seus costumes e

atitudes de acordo com seus antepassados, incluindo suas próprias vozes para

complementar o discurso. Isso acontecia como uma forte tentativa de não deixar

morrer suas tradições; o que eles não percebiam ou preferiam não perceber é que

mesmo suas tradições estavam sendo recontadas sob influências de seus

colonizadores.

Entretanto, com as modificações geográficas ocorridas em decorrência

das guerras do século XX, percebeu-se a inaplicabilidade desses fatores, ou seja,

era impossível recorrer ao passado exclusivamente para rever a memória perdida.

A dispersão de alguns povos, a destruição de alguns estados e a fragilidade do

conceito de lugar favoreceram a possibilidade de se reconstruir um povo ou uma

nação sob forte influência de outras culturas. Segundo Hall, as culturas nacionais

devem ser vistas como um dispositivo discursivo que representa a diferença como

unidade ou identidade, sendo essas identidades heterogêneas e complexas.

A construção da identidade passou a se beneficiar da memória coletiva

ou individual que serviu de subsídio para sua construção e/ou desconstrução,

relacionando-se mais de perto com as questões históricas e culturais acima

100

mencionadas. A contribuição da memória se faz na medida em que busca na

lembrança das pessoas os fatos vivenciados por elas ou pelos seus

antepassados. Assim, a memória propõe reaver a importância cultural que esses

fatos representam, memória perdida graças à distância temporal entre

acontecimento e o lembrar esse acontecimento e também graças ao

esquecimento proposital que a história tradicional sempre impôs. Existe um quê

de utilidade ao retomar da memória os acontecimentos que originalmente se

tentou esquecer. Essa utilidade se faz presente na desconstrução de discursos

hegemônicos acerca dos grandes fatos que marcaram a humanidade ao longo de

sua história. No que se relaciona à identidade, esse processo de esquecimento,

que na verdade revela mais do que oculta, é o responsável para que haja uma

retomada da importância da memória. A relevância consiste em buscar naquilo

que se tenta esquecer ou omitir os detalhes que completam os fatos. A memória

reconstruída fornece àquelas pessoas que não vivenciaram a história, relatos de

acontecimentos muito importantes para a sua constituição identitária. A escritora

canadense Anne Michaels, em uma entrevista dada ao Jornal do Brasil42, em

1997, por ocasião do lançamento da tradução do livro aqui no Brasil, livro cujo

estudo está sendo desenvolvido neste trabalho, alega que sem utilidade a

memória morre.

Quando as pessoas buscam construir um discurso que as une como um

grupo que comunga os mesmos interesses, é preciso que haja um subsídio

cultural que sirva de alicerce nessa construção. Dentro da memória, esse alicerce

pode ser encontrado e reconduzido para seu lugar já que ele possui toda a

42 MICHAELS, Anne. “Sem utilidade a memória morre”. Jornal do Brasil, sábado, 17 de Maio de 1997. p. 6. entrevista concedida a Cláudia Nina.

101

matéria prima. Retomando o que Benjamin explica sobre o conceito de

experiência como sendo um intercambiar de vozes que constitui um discurso

acerca de qualquer assunto, e que é alimentado pela memória de seus

interlocutores, entendemos que a memória é o próprio alicerce que subsidia a

comunhão de interesses de um grupo que deseja contar ou recontar fatos que

estão dentro da história ou que permaneceram fora dela por algum tempo. É

importante salientar, ainda, que esse alicerce não é tão rígido, imóvel e perene

quanto essa palavra possa querer dizer. Na verdade, a memória oferece apenas

fragmentos da lembrança de maneira parcial. Em outras palavras, de cada um se

tem apenas um lado da história. A contribuição de várias vozes é que vai

sustentar, de fato, o discurso que constrói uma identidade. É por isso que o

conceito de experiência foi tão importante no capítulo em que se estuda memória:

para se entender a necessidade de comungar várias vozes – se não há troca, não

há narrativa, a memória fica sem utilidade. Sendo assim, respeitando a

diversidade, o discurso acerca da identidade que entra na era da pós-

modernidade, quer assim desconstruir a homogeneização cultural da identidade.

Apesar do processo dialético da memória-esquecimento parecer um ato de

simples rememoração, ele vai além dessa busca nostálgica implicando em um

diálogo do antes com o depois.

Segundo a teoria da memória de Bergson (1990), estudada com mais

cautela no primeiro capítulo, encontram-se três tipos de memória: a) a lembrança

pura, aquela que seria a percepção nascente, b) a lembrança-imagem, que

relaciona a lembrança-pura com a percepção e c) a percepção, que é justamente

o resultado desse relacionamento. Para se trabalhar com a questão da memória

102

será mais proveitoso que se atente para o terceiro tipo, apesar de se saber que

eles se relacionam e que não existem individualmente. A percepção se faz

importante aqui porque é ela quem dá cor às rememorações e é ela que permite

que essas rememorações sejam retomadas sem serem simplificadas em sua

busca. Se pensarmos, por exemplo, em fatos que ocorreram durante a Segunda

Guerra Mundial, como o Holocausto, é possível entender o jogo da memória. Hoje,

mais de meio século já se passou e se fazem presentes as várias vozes desse

horror. O mundo inteiro presenciou a guerra e por algum tempo se calou, como foi

explicado no capítulo anterior, em que tanto a questão do luto quanto a questão

do trauma foram essenciais para a discussão desse problema. Mas, a

contemporaneidade e o presente discurso a respeito da identidade cultural, cujos

estudos foram sendo fortalecidos na segunda metade do século XX, retomaram o

problema e reavivaram sua discussão. O fato “Holocausto” não pode ser apagado

da história da humanidade, mas tem sido rasurado ao ser reconstruído. O que se

pretende dizer com rasura, é a impossibilidade de se apagar o Holocausto da

história, e fazer da época uma verdadeira tábula rasa para se começar de novo.

Assim como na antiguidade os palimpsestos detinham as marcas da escrita

apagada e ao receberem novas escritas rasuravam a anterior, as novas versões

das atrocidades da Segunda Guerra Mundial serão suplementos – segundo o

conceito derridiano, elas serão rasuras. As novas versões que recontarão a

Segunda Guerra sempre conterão as marcas da anterior. Ao rever a história

tradicional projetou-se a possibilidade de se ponderar a questão cultural e sua

concomitante discriminação por parte dos historiadores que até então se

dedicavam à parcialidade dos acontecimentos. Dentre o espaço temporal dos

103

acontecimentos e o momento de sua análise, há, inevitavelmente, um

esvaziamento histórico muito grande que permite sua reconstrução do ponto de

vista das minorias. A lembrança-pura e a percepção dos fatos estão ligadas por

um tênue fio temporal. Daí a dialética do esquecimento / lembrança que constitui a

memória.

Para se lembrarem dos horrores da guerra, foi preciso que os judeus se

esquecessem dela primeiro. Ao reaver suas lembranças, as pessoas que sofreram

direta ou indiretamente com o Holocausto fazem seus relatos como tentativa de se

organizarem como aquele grupo que se identifica com o não identificável: as

atrocidades nazistas. Em outras palavras, elas fazem parte de uma comunidade

imaginada com um sentimento de pertencimento a um locus determinado: a

comunidade judaica. Não importa se eles tinham na ocasião da guerra uma

mesma origem territorial, importava a questão cultural de sua origem: ser judeu.

Desse ponto de vista a constituição identitária passa pelo viés da constituição

cultural do individuo e da memória que ele tem dela. Se entendermos nesses

termos, o vínculo identitário não precisa estar ligado ao Estado, aquela dimensão

territorial que determina uma nação, ao contrário, pode estar ligado apenas às

questões culturais que identificam determinados grupos.

A constituição da identidade cultural a partir do século XX deve ser

entendida como uma constituição fragmentada e que opera em ruínas, assim

como a memória. Se a memória oferece apenas parte da história, na comunhão

de várias vozes ter-se-á então um mosaico de identidades a partir de um discurso

que através da heterogeneidade reconstrói o todo. Caso contrário, será repetida a

velha hegemonia da razão ocidental.

104

A justificativa de se tomar Jakob, personagem analisada na obra, como

ilustração, está no fato de que é possível pensar esse homem como fragmentado e

com uma profunda influência cultural exercida pelos espaços geográficos e

humanos que ele ocupa durante sua existência. Apesar de estarmos analisando

um judeu-polonês que não participa do processo chamado descolonização nem

tampouco se insere na questão da diáspora, essas teorias sobre identidade cultural

se aplicam bem a ele. O estudo sobre a identidade cultural dos povos colonizados

abriu a possibilidade de ampliarmos o olhar para as pessoas que por um motivo

diferente sofreram a influência de outras culturas que não se assemelham à sua

cultural original, mas cujo processo de aquisição pode ser comparado ao da

imposição cultural sofrida pelos povos colonizados. Para entender esses

argumentos é importante ter em mente a condição da personagem Jakob: um

judeu-polonês resgatado por um grego logo após uma bomba matar sua família na

Polônia. Dessa forma, Jakob recebe a influência da cultura grega. Mais tarde ele

se muda para o Canadá com seu padrinho e vai ser inserido na cultura canadense.

A personagem também carrega em si a cultura judaica. Ou seja, Jakob não fez

parte do processo descolonizador, mas sua situação de sobrevivente da Segunda

Guerra Mundial e o fato de ter sido criado fora de sua família e seu país de origem,

além de ter recebido influência de outras culturas, permite estabelecer uma

aproximação com as teorias que explicam as transformações a que foram

submetidos os povos colonizados. Além da problematização da interferência

cultural sofrida pela personagem, sua condição de influenciado pela cultura do

outro levanta mais questionamentos. A sensação de ser estrangeiro em si mesmo

passa a assombrá-lo.

105

Julia Kristeva (1994) aborda esse assunto para falar da mudança de

paradigma que o conceito da palavra estrangeiro sofreu na contemporaneidade.

Ela explica que o antigo conceito foi substituído por um outro que se aproxima mais

do cenário histórico atual. Se antes estrangeiro era a pessoa que se diferenciava

do grupo, o inimigo das sociedades primitivas, hoje ele habita dentro de nós. De

acordo com Kristeva:

Estrangeiro: raiva estrangulada no fundo de minha garganta, anjo negro turvando a transparência, traço opaco, insondável. Símbolo do ódio e do outro, o estrangeiro não é nem a vítima romântica de nossa preguiça habitual, nem o intruso responsável por todos os males da cidade. Nem a revelação a caminho, nem o adversário imediato a ser eliminado para pacificar o grupo. Estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia. Por reconhecê-lo em nós, poupamo-nos de ter que detestá-lo em si mesmo. (Kristeva, 1994: 09)

Entendido dessa forma, percebemos que Jakob faz com que o leitor o

perceba como um estrangeiro dentro de si mesmo. Sua situação de Outro o

impede de exercer sua tradição judaica, de manter seu primeiro casamento com

Alex e de aceitar a morte de sua irmã. A angústia de ser diferente e de ter perdido

sua referência fazem de Jakob um homem sem ponto de partida nem chegada. É

justamente esse sentimento de estrangeirismo que faz de Jakob um exemplo do

conceito de identidade cultural no mundo pós-moderno. A inaplicabilidade do

conceito cartesiano é que revela a fluidez que se tornou presente no indivíduo do

século XX em resultado de todos os seus acontecimentos.

A trajetória de vida dessa personagem é construída em cima de um

alicerce extremamente móvel. Seu único ponto de referência é um grego cristão

106

que é apaixonado por Geologia, Arqueologia e as demais ciências naturais e que o

molda segundo suas próprias crenças. O que contribui para uma abertura cultural

maior é a sensibilidade do grego para perceber a necessidade que Jakob

apresenta em resgatar alguns aspectos de sua cultura. Quando Jakob ouve falar

das atrocidades nazistas (conferir citação da página 55) ele se depara com uma

realidade da qual ele não havia se dado conta. Jakob percebe que sua história não

era somente aquela que estava sendo construída ao lado de seu kumbarous. Era

também a história do povo judeu. Depois de escutar o que acontecera aos judeus

de Corfu, Jakob relata que “As he spoke, the room filled with shouts. The water

rose around us, bullets tearing the surface for those who took too long to drown.

Then the peaceful blue sheen of the Aegean slipped shut again.”43 (FP : 43) Athos

não pôde contribuir para que Jakob fosse inteiramente um judeu, mas de alguma

forma, ainda que tentando proteger Jakob, ele mostra de que forma ele precisa

respeitar sua primeira cultura para então estar pronto para receber o que tanto a

Grécia quanto o Canadá podem oferecer. Desde o princípio, o leitor percebe que

Jakob será reconstruído; ele próprio um mosaico colado cuja cola será a influência

cultural do Outro. Pelo viés da memória, Jakob conta a história de sua vida e de

como ele se tornou um cidadão do mundo. Um cidadão que em qualquer lugar que

estivesse ele seria sempre um judeu perdido da Segunda Guerra, sem pai ou mãe

e ao mesmo tempo um grego por destino e um canadense por necessidade. No

seu cotidiano Jakob não falava sua língua, o ídiche, e nem falava grego.

Trabalhava como tradutor de poemas do grego para o inglês: “(...) I was doing

43 Enquanto ele falava, a sala encheu-se de gritos. A água à nossa volta, balas cortando a superfície para aqueles que demoravam demais para morrer afogados. Depois, o pacífico brilho azul do Egeu tornou a se fechar.

107

translations now in earnest and worked at home (...). I was also translating Greek

poems for Kostas’s friend in London. And for a while I taught night-school English to

other immigrants.”44 (FP: 134).

Em termos lingüísticos a constituição de Jakob era tão múltipla quanto

sua identidade. Ele aprendera todas aquelas línguas assim como também o latim.

Porém nem toda a riqueza intelectual que recebera de seu padrinho pôde lhe

oferecer estabilidade. Sua segurança só pôde ser percebida mais tarde quando ele

conseguira enfrentar a morte:

Our relation to the dead continues to change because we continue to love them. All afternoon conversations that winter on Idhra, with Athos or with Bella, while it grew dark. As in any conversation, sometimes they answered me, sometimes they didn’t.45 (FP: 165)

A construção da identidade de Jakob perpassa todos esses obstáculos

que, ao invés de prejudicarem sua formação, na verdade são a força vitalizante de

sua construção.

44 (...) agora que vivia de traduções e trabalhava em casa. (...) Eu também traduzia poemas gregos para o amigo de Kostas em Londres. 45 Nossa relação com os mortos continua mudando porque continuamos a amá-los. Todas as conversas naquele inverno em Idhra, com Athos ou Bella, enquanto escurecia. Como em qualquer conversa, às vezes eles me respondiam, às vezes não.

108

5. PHOSPHORUS

Por trás da história desordenada dos governos, das guerras e da fome, desenham-se histórias, quase imóveis ao olhar – história com um suave declive: histórias dos caminhos marítimos, história do trigo ou das minas de ouro, história da seca e da irrigação, história da rotação das culturas, história do equilíbrio obtido pela espécie humana entre a fome e a proliferação. Michel Foucault, In A arqueologia do saber

Neste capítulo em que pretendo abordar a questão da descontrução do

discurso tradicional e para melhor clarificar os conceitos abordados neste trabalho,

proponho um estudo com a intenção de demonstrar de que maneira a história de

Jakob, personagem de Fugitive Pieces, pode contribuir para se afirmar que a

História tradicional não é mais contada de maneira linear. A escolha dessa

personagem foi feita pelo fato de que ela exemplifica a situação das minorias

marginalizadas pela tradição historicista. Dentro dessa perspectiva, proponho

refletir sobre o conceito de narrativa performática de Homi Bhabha (2003),

desenvolvido em sua teorização a cerca da narrativa da nação moderna, no qual a

inserção de vozes menores no processo de construção identitária de um povo é

que faz com que o discurso tradicional seja alterado. Esse novo modo de

continuar, ou ainda, de recontar a história por outros ângulos, instaura a dúvida e

se faz como uma sombra na tradição.

O texto de Bhabha estuda a construção da narrativa da nação moderna.

Para explicá-la, o autor toma emprestado de Jacques Derrida um termo que serve

109

como explicação para essa construção – disseminação, que deve ser entendida

como fratura e/ou nascimento. Esse termo está relacionado com a própria

experiência de migração pela qual Bhabha passou, sua dispersão e reunião na

diáspora:

Reuniões de exilados, emigrados e refugiados, reunindo-se às margens de culturas ‘estrangeiras’; reunindo-se nas fronteiras nos guetos ou cafés de centros de cidade; reunião na meia-vida, meia-luz de línguas estrangeiras, ou na estranha fluência da língua do outro; reunindo os sinais de aprovação e aceitação, títulos, discursos, disciplinas; reunindo as memórias de subdesenvolvimento, de outros mundos vividos retroativamente; reunindo o passado num ritual de revificação; reunido o presente. Também a reunião de povos na diáspora: contratados, migrantes, refugiados, a reunião de estatísticas incriminatórias, performance educacional, estatutos legais, status de imigração – a genealogia daquela figura solitária que John Berguer denominou o sétimo homem. A reunião de nuvens às quais o poeta palestino Mohamoud Darwish pergunta ‘Para onde devem voar os pássaros depois do último céu?’(Bhabha, 2003: 06)

O objetivo principal do autor não é debater as experiências nacionalistas, ao

contrário, é questionar a certeza histórica desses movimentos tendo como objeto

de estudo a nação, mais especificamente, as estratégias narrativas da nação.

Neste capítulo da dissertação, a intenção de usar esse texto teórico se explica

porque estaremos entendendo a nação não como território e sim como algo que se

relaciona aos problemas de identidade e cultura e que permite pensá-la fora de um

território fixo, como no caso dos judeus.

De acordo com Bhabha, a nação deve ser pensada de forma “obscura e

ubíqua de viver a localidade da cultura” (2003:06) e se apresenta como uma escrita

dupla e ambivalente. Para o autor, não interessa o tempo homogêneo e vazio do

relógio e do calendário que seguiu a era da reprodutibilidade técnica como também

110

discutiu Walter Benjamim (1993). O que se propõe é fazer uma crítica à

perspectiva historicista com uma proposta de uma teoria itinerante que seja capaz

de resistir à equivalência linear e horizontal dos eventos. Bhabha entende que a

escrita da nação exige uma escrita dupla que cruze a estrutura do tradicional e do

novo. Para que esse cruzamento aconteça, Bhabha explica que a narrativa da

nação é uma narrativa dividida entre o eixo pedagógico e performático. O eixo

pedagógico se faz através do objeto histórico de uma pedagogia nacionalista. Ele é

um ensino cujo sujeito representa esse objeto histórico. Já o eixo performático

entende o sujeito como parte de um processo de significação com uma

temporalidade menos palpável interrompendo por vezes o eixo pedagógico, “o

performativo introduz a temporalidade do entre-lugar (‘in-between’), através da

lacuna ou ‘vazio’ do significante que pontua a diferença lingüística” (Bhabha,

2003:20). Bhabha propõe pensar o povo em um tempo performático. Nessa

proposta, o discurso das minorias situa-se no eixo de tensão entre o pedagógico e

performático reconhecendo o status da cultura nacional sem celebrá-la porque o

passado deve ser visto como eventos anteriores que introduzem diferenças no

presente. Pensar a nação desse ponto de vista instaura dúvidas no que se refere à

história tradicional.

Ao instaurar tal dúvida, as pequenas vozes do Outro alimentam um

processo concomitante ao da performance denominado por suplementaridade, que

também se faz presente e desconstrói a noção de totalidade inaugurando a

presença da diferença. Entendemos suplementaridade como acréscimo e não

substituição. Para esclarecer tal conceito, é preciso retomar o que Jacques Derrida

discute sobre isso e que, ao anteceder Bhabha, dele se aproxima. Para Derrida, de

111

acordo com Santiago (1976) como foi dito anteriormente, “suplemento” é algo que

acrescenta ao todo em sua origem sem preencher o vazio que a inaugura. Na

verdade, o suplemento deve ser entendido como um acréscimo que modifica sem

substituir qualquer informação, mas que ao fazê-lo cria uma outra origem

imaginada. De acordo com esse pensamento, a obra Fugitive Pieces serve ao

propósito do suplemento, pois permite uma outra leitura acerca do que foi feito de

um sobrevivente judeu da guerra e das conseqüências trágicas para a família de

outro personagem também judeu. Dessa maneira, a leitura da obra conduz o leitor

para o lado de fora do discurso tradicional. Ao mencionar o eixo performático da

narrativa na pós-modernidade, tanto quanto o eixo pedagógico, o que proponho e

entendo por relevante é o fato de que a personagem desterritorializada de Jakob

pode efetuar sua reterritorialização. De acordo com Bhabha, o eixo identitário é

aquele ponto de cisão entre o tradicional e o novo. Ao fazer esse corte, o novo

instaura a diferença que é essencial na construção da identidade. De acordo com

Renan (apud Bhabha), essa cisão se caracteriza pelo conceito de plebiscito diário,

que permite a escolha e a construção de uma identidade a cada momento em que

esquecer se torna um “menos na origem” que ao mesmo tempo acrescenta novas

informações nessa origem. Ainda que Bhabha esteja teorizando a nação moderna,

seu conceito pode ser aplicado para explicar como Jakob colabora nesse plebiscito

diário. Aos moldes de um pensamento que insere e aceita o outro em sua

diferença e que também o toma como parte da construção do discurso tradicional,

Jakob desconstrói sua tradição ao mesmo tempo em que reflete sobre sua

condição judaica quando apresenta as atrocidades cometidas pelos alemães. De

acordo com o texto de Bhabha, “A diferença cultural deve ser encontrada onde a

112

perda de sentido entra, como um corte, na representação da plenitude das

demandas de cultura” (Bhabha, 2003: 45). Isso faz com que a personagem de

Fugitive Pieces exerça esse papel de corte na linearidade histórica do discurso

tradicional por ser fruto de experiências vivenciadas, subjetivas.

Na verdade, Jakob contraria toda e qualquer possibilidade de

sobrevivência. Ele tem apenas sete anos de idade quando se vê diante de seus

pais mortos no chão. Em sua fuga pela floresta ele passa fome, frio e medo. Perde

também seu ponto de referência, sua pátria, sua família. Ao crescer ao lado de

Athos ele não retoma sua cultura e não a vive dentro dos parâmetros tradicionais.

Ele a revive nas atrocidades alemãs, nos relatos que ouve durante sua infância e

adolescência e na tentativa intelectual de Athos de reconstruí-lo. Nos livros

pedagógicos que estudamos ao longo de nossas vidas muito se omitiu a respeito

das pequenas vozes sobreviventes dos escombros da Segunda Guerra Mundial.

Os Estudos Culturais e sua expansão têm permitido, há algum tempo, retomar

esses pequenos discursos e inseri-los dentro do discurso tradicional,

desconstruindo-o. A história de vida de Jakob representa muito mais essa

desconstrução. Um judeu que não exerce sua tradição, um polonês que ganha a

vida traduzindo poemas gregos para o inglês, um grego de coração que vive quase

toda sua vida no Canadá, Jakob é por assim dizer desterritorializado no que se

entende por raiz, pertencimento. Ele não tem uma estabilidade territorial porque, na

verdade, não há como se fixar a algum lugar, e principalmente porque, como foi

discutido no capítulo anterior, o conceito de raiz perdeu seu efeito na pós-

modernidade dando lugar a um outro bem mais fluido, o conceito de espaço

oscilante. Entretanto, se Jakob puder ser entendido como o sujeito explicado pelo

113

eixo identitário de Bhabha, ele tende a se reterritorializar. Como entender esse

processo sem correr o risco de retomar o discurso tradicional? Num primeiro

momento é preciso entender o pós-guerra como um tempo de grandes

transformações no mundo. Existe uma outra redistribuição da cultura. O espaço do

pós-guerra também sofre modificações com uma demanda do global. Devido a

essas mudanças não é possível mais pensar a identidade como algo “natural’, ela

é cultural. Ora, se entendemos que a identidade é cultural, então entendemos

como a formação identitária de Jakob se insere na nova constituição do pós-

guerra. As grandes transformações no mundo se situam em todas as áreas do

conhecimento. Principalmente porque começou a se perceber que a ideologia,

presente no discurso tradicional, não respondia eficazmente aos questionamentos

dos sobreviventes da guerra, uma vez que eram embasadas em discursos

hegemônicos que pouco se preocupavam com os eventos particulares que

realmente sustentavam tais discursos. Por esse motivo, os Estudos Culturais

contribuíram para que houvesse uma desconstrução do pensamento historiográfico

tradicional ao chamar para si as áreas que não se excluíam – a Antropologia, a

Filosofia, a Sociologia, a História e as Artes, pelo contrário, se aproximavam.

114

6. SEM UTILIDADE A MEMÓRIA MORRE

Já não coleciono selos. O mundo me inquizila. Tem países demais, geografias demais. (...) Agora coleciono cacos de louça quebrada há muito tempo. (...) O caco vem da terra como fruto a me aguardar, segredo que morta cozinheira ali depôs para que um dia eu desvendasse. Lavrar, lavrar com mãos impacientes um ouro desprezado por todos da família. Bichos pequeninos fogem de revolvido lar subterrâneo. Vidros agressivos Ferem os dedos, preço de descobrimento: a coleção e seu sinal de sangue; a coleção e seu risco de tétano; a coleção que nenhum outro imita. (...) Carlos Drummond de Andrade, “Coleção de cacos”, In: Boitempo

Os questionamentos e estudos a cerca das modificações no cenário

pós-guerra, nos levam a perceber que os teóricos vêm desenvolvendo suas

argumentações de modo a tentar interpretar essas transformações pelas quais

elas passaram e comunngar todas as áreas do conhecimento e assim, eles

passaram a entender o homem dessa época também de forma heterogênea e

fragmentada.

115

No romance escolhido para ilustrar as teorias sobre memória, identidade

cultural, luto e desterritorialização, cujas teorias foram exploradas ao longo dos

capítulos desse trabalho, percebemos de que forma podemos entender essas

mudanças. Do ponto de vista da memória, a personagem consegue exemplificar

de que forma a dialética memória-esquecimento opera quando há a necessidade

de se lembrar, entretanto há igualmente uma vontade de esquecer devido às

circunstâncias que ocasionaram os fatos. As teorias estudadas sobre esse

assunto, principalmente com a colaboração de Walter Benjamin e seu estudo

sobre o conceito de experiência, permitiu uma análise do silêncio dos

sobreviventes do Holocausto. Além desse teórico, Bergson, ao estudar a

constituição da memória do ponto de vista filosófico, ajudou a entender esse

processo de lembrar que a memória encerra e foi de grande valia seu conceito

sobre percepção. Com ele, percebemos de que forma Jakob se fez lembrar de

sua infância e adolescência para refletir sobre sua vida e caminhar com a ajuda de

Athos. Anderson colaborou com seu estudo sobre a constituição da identidade das

comunidades imaginadas, termo usado para explicar o surgimento das nações

modernas, tendo como subsídio a memória. Seu argumento sobre a importância

de se relacionar o velho e o novo favoreceu o estudo sobre a relação que se

opera na memória quando se necessita inserir nos fatos acontecidos, as

sensações do presente, influenciando-os inevitavelmente. Com a contribuição

desses autores pudemos entender que o processo que articula a lembrança e o

esquecimento, como exemplificado através dos fatos da vida de Jakob, reflete sua

condição de um sobrevivente órfão da Segunda Guerra Mundial.

116

Anne Michaels diz em sua entrevista que ela não teve nenhuma

experiência pessoal nem familiar com o Holocausto, talvez, a autoridade com a

qual ela se investiu para escrever um romance tão multi-cultural se baseie no fato

de o Canadá ser um país que recebe como imigrantes tantas nacionalidades

européias e, nas últimas décadas, do oriente. Isso traz ao Canadá a abertura para

uma ampla discussão sobre as trocas de influências culturais das quais seu

romance é tão rico. A autora afirma também que, quanto mais distantes da guerra

mais aptos a falar sobre ela estamos. Talvez por isso Jakob só comece a escrever

suas memórias quase quarenta anos depois de sua fuga da Polônia. Ele dá uma

utilidade a seus relatos já que mantém viva a memória de sua vida, escrita em seu

diário. De acordo com Artières, ele arquiva a própria vida.

Não só do ponto de vista memorialístico, mas também a partir de uma

reflexão sobre a manifestação do luto por parte dos sobreviventes do Holocausto,

a obra permitiu que fossem lidas em seu texto as exemplificações dos estudos de

teóricos do luto, dos traumas e das reminiscências da guerra. De acordo com

Rose, dentro desse assunto sobre o luto, discutimos as questões sobre a maneira

de se entender o processo do luto e suas conseqüências, que revelam a

fragilidade do ser humano. Há, como foi discutido no capítulo Os carregadores de

pedra, uma necessidade de se viver o luto para se entender o que a morte

representa e, se não se vive esse tempo, o homem não consegue lidar muito bem

com as questões que o seguem. O luto é apenas uma das conseqüências da

guerra, pois os traumas sofridos pelos sobreviventes também fazem parte desse

arsenal de decorrências. Quando antes falei do estudo de Walter Benjamin a

respeito do silêncio dos sobreviventes, de certa forma estava falando também

117

desse silêncio como resultado de um trauma irrecuperável. Dentro desse

pensamento, os estudos de Van Alphen contribuíram para entender o porquê

desse silêncio. Os cacos que se juntam a esse trauma, as reminiscências da

guerra, fotografias, relatos, etc, como bem observou a teórica Hirsch, resultam em

um estudo que de certa forma reflete o cenário pós-guerra. Um cenário tão

fragmentado quanto a própria memória.

Esse cenário fragmentado pôde também ser observado de certa forma

no estudo sobre as transformações ocorridas do ponto de vista do que se entende

por identidade cultural no panorama pós-moderno, segundo Hall. Essas mudanças

transformaram o conceito de identidade cultural e levantaram questões como a

fragilidade do homem contemporâneo em relação à sua necessidade de se sentir

estável em um universo tão instável. Esse novo modo de ver o homem também

pôde ser exemplificado no texto de Anne Michaels, pois sua personagem, Jakob,

representa essa total fragmentação e desorientação pós-moderna.

Finalmente, pudemos ver de que forma essa desorientação é corrigida,

ainda que sua correção não esteja relacionada aos conceitos de certo ou errado,

mas de diferente, e pudemos tomar mais uma vez a construção identitária da

personagem Jakob para exemplificar essa situação. Jakob, como foi explicado no

último capítulo desse trabalho, deve ser entendido como alguém de fora que conta

a história de sua vida, sem se sucumbir à tradição porque é ao mesmo tempo

alguém de dentro. Ele narra dentro do que Bhabha chamou de narrativa

performática, pois sua contribuição faz um corte transversal na narrativa

tradicional. Assim, é possível para a personagem fazer sua reterritorialização.

Esse processo se revela na articulação das culturas que ele recebe e no uso da

118

língua inglesa em diversas instâncias: como ganha-pão e como veículo para

retomar suas memórias com menos dor para ganhar a vida. Sua reterritorialização

não se vincula à raiz dessa palavra, pelo contrário, está muito mais próxima da

fluidez do conceito de identidade que a época pós-moderna reclama.

119

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