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CARREGANDO A ALDEIA DENTRO DE SI: O CAMINHO DE VOLTA DE CONCITA SOMPRÉ Hiran de Moura Possas 1 Resumo: Sob a voz embargada das lembranças, Concita Sompré, indígena e professora da Comunidade Kyikatêjê, Amazônia Oriental brasileira, mergulha nas turbulências de "sua" vida, avizinhando fatos da infância com os preconceitos visceralmente experimentados "em seu maior desafio": transformar vergonha em resistência. Presentificar essas confidências vem sendo um exercício de escuta e aprendizagens lentos, se mensurados por algumas ampulhetas centro-ocidentais, mas ressignificante, antes de tudo, para os limites da sociologia do conhecimento e, sobretudo, da epistemologia. Sendo ou não já um princípio simétrico, a pesquisa busca urdir por essa voz embargada, reconhecendo seus momentos oblíquos, e desejando que o caminho de volta dessa também etnógrafa seja desenhado por um processo relacional de equivalência, ou melhor, da busca "teóricometodológica" por isso. Palavras-Chave: Simetria; reverso; antropologia especulativa; eterno retorno. Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu. Clarice Lispector Tentativas de procedimentos descritivos-cruzados já deveriam ser experimentos majoritários frente ao que Viveiros de Castro (2015, p. 26) chama de antropologia versão Disney, àquelas insistindo em constituir “os outros absolutamente outros, isto é, como 1 Doutor em Comunicação e Semiótica. Docente Unifesspa/FECAMPO.

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CARREGANDO A ALDEIA DENTRO DE SI: O CAMINHO DE VOLTA

DE CONCITA SOMPRÉ

Hiran de Moura Possas1

Resumo: Sob a voz embargada das lembranças, Concita Sompré, indígena e professora

da Comunidade Kyikatêjê, Amazônia Oriental brasileira, mergulha nas turbulências de

"sua" vida, avizinhando fatos da infância com os preconceitos visceralmente

experimentados "em seu maior desafio": transformar vergonha em resistência.

Presentificar essas confidências vem sendo um exercício de escuta e aprendizagens

lentos, se mensurados por algumas ampulhetas centro-ocidentais, mas ressignificante,

antes de tudo, para os limites da sociologia do conhecimento e, sobretudo, da

epistemologia. Sendo ou não já um princípio simétrico, a pesquisa busca urdir por essa

voz embargada, reconhecendo seus momentos oblíquos, e desejando que o caminho de

volta dessa também etnógrafa seja desenhado por um processo relacional de equivalência,

ou melhor, da busca "teóricometodológica" por isso.

Palavras-Chave: Simetria; reverso; antropologia especulativa; eterno retorno.

Eu antes tinha querido ser os outros para

conhecer o que não era eu. Entendi então que

eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha

experiência maior seria ser o outro dos outros:

e o outro dos outros era eu.

Clarice Lispector

Tentativas de procedimentos descritivos-cruzados já deveriam ser experimentos

majoritários frente ao que Viveiros de Castro (2015, p. 26) chama de antropologia versão

Disney, àquelas insistindo em constituir “os outros absolutamente outros, isto é, como

1 Doutor em Comunicação e Semiótica. Docente Unifesspa/FECAMPO.

não-humanos, bestas, plantas, legião de viventes mantida a máxima distância do círculo

narcísico do “nós”. Quem sabe deveria-se, então, pedir ou imaginar um plano de

equivalência para tantos “eus”.

Rogar por isso não significa dizer que experimentações simétricas ou até mesmo

reversas sejam frequentes e facilmente executáveis. Pelo contrário! O cacique Kyikatêjê,

a partir da convivência com pesquisadores que já passaram e já se foram de sua aldeia

mostra-se, até certo ponto, cético com essa possibilidade: “vocês vêm aqui. Fazem teses

e livros e somem. Tá na hora de mudar. Tá na hora de fazer parceria”

(JAKUKREIKAPITI, 2015). Já seria a hora de executar uma “conexão entre campos

semânticos e também etnográficos – heterogêneos” (GOLDMAN; VIVEIROS DE

CASTRO et al, 2006, p.01).

Desejando ser menos outsider nos devires com os Kiykatêjê e não simplesmente

revisional em termos etnográficos, a pesquisa sustentando esse exercício múltiplo procura

também ressemantizar a compreensão sobre o que seria a categoria: intelectual. Coube

uma escolha intelectual diaspórica e cruzada.Tentativa de alargamento de universos

conceituais. Seria a opção pelo desenraizamento das amarras dos pensamentos fixos e

arrogantes para os “pensamentos selvagens”.

É de se apostar que os “intelectuais indígenas” estarão, assim, procedendo de

igual maneira, tendo algo a nos dizer com base em seus princípios

epistemológicos, não apenas sobre si, mas sobre nós, num efeito de

“antropologia cruzada”. (Dias Jr; Santos, 2009, p. 139)

O referido povo da floresta é originário da região de Tucuruí-PA e atualmente

vive na Terra Indígena (TI) Mãe Maria, Aldeia Kyikatêjê, localizada no Km 25 da BR

222, município de Bom Jesus do Tocantins, no sudeste do Pará. São heterodenominados

índios “Gavião”, classificados como povos do grupo Timbira, cuja língua é classificada

como da família linguística Jê-Timbira, do tronco Macro-Jê.

Nos últimos trinta anos este povo tem intensificado o contato com os não-

indígenas em função dos impactos e desterritorializações sofridos devido à construção da

UHE Tucuruí, abertura da BR-222 a implantação de linhas de transmissão de energia e

Estrada de Ferro Carajás, que corta a T. I. Mãe Maria.

Em 2014, com vistas a pretensão de se realizar um exercício cartográfico, em

parceria com os professores da língua indígena Kyikatêjê, para sistematização de seu

sistema ortográfico; elaboração de livros para a alfabetização na língua indígena e livros

de apoio didático ao ensino da língua, fomos apresentados à intelectual da floresta,

Concita Sompré, múltiplo Kyikatêjê: professora, estudante, mulher de cacique, presidente

de associação indígena, mãe, avó, mas, acima de tudo, capaz de carregar a aldeia dentro

de si: intensidade.

Figura 1: Concita Sompré

Fonte: Programa de Extensão Mito-Poéticas Orais: Repertórios “Tectônicos” em Devir

com a Educação Bilíngue

Dos frequentes e sucessivos encontros com Concita, percebi, desde já, a

desautoridade tradutória do projeto para os regimes de sentidos dos Kiykatêjê. Resolvi, a

partir de então, não explicar, nem interpretar, mas multiplicar e experimentar juntos.

Aqui, uma tentativa de afecção escrito-epistêmica chamada de amizade com o devido

empréstimo de Agamben (2009, p.90)

O amigo não é um outro eu, mas uma alteridade imanente na mesmidade, um

tornar-se outro do mesmo. No ponto que eu percebo a minha existência como

doce, a minha sensação é atravessada por um com-sentir que a desloca e

exporta para o amigo, para o outro mesmo. A amizade é essa des-subjetivação

no coração mesmo da sensação mais íntima de si.

A busca de um “Nós” não significa uma opção tranquila ou até mesmo marcada

pelo consenso e a harmonia. Pelo contrário, seria um campo de tensões ou zona de

instabilidade problematizando o que seria um eu no outro ou um eu com o outro. Sujeitos

tentando deixar seus lugares fixos, para as relações. “Morte” parcial de “sujeitos”

substantivados: “não há sujeitos, o que há são regimes e modos de subjetivação, com suas

linhas centrais e periféricas”. (ILHA, 2011, p.50)

Isso teria algumas implicações: “ ‘nós’ e ‘outros’ deixariam de ser unidades

homogêneas e autocontidas, resolvidas em seus próprios e incomensuráveis termos”

(ILHA, 2011, p.52). Avatares, em certo sentido, em - intimidades culturais - com as

ordens simbólicas históricas impostas aos exercícios etnográficos (HERZFELD, 1997)

Desse modo, des-subjetivações, mesmidades e “co-sentimentos”, sempre

experimentando tensões, deram novos contornos ao projeto e ao desejo também de

descrever uma narrativa sobre a trajetória diaspórica de Concita Sompré.

Tristeza, incompletude, culpa, martírio, vergonha e sensação de paraíso fazem

da narrativa da professora Kyikatêjê uma trama matafórica que, aos olhos de Saer (2009),

não seria uma esquiva, por imaturidade ou irresponsabilidade, dos rigores que o

tratamento da “verdade” exige, mas justamente para pôr em evidência o caráter complexo

da situação: um mergulho em sua turbulência ou no paradoxo próprio da ficção, quando

se recorre supostamente ao verossímil, para credibilizar o que ser quer dizer.

A antropologia especulativa é o saber desse como-ser, ou melhor, a dimensão

da perspectiva desse como-ser. Portanto, a descoberta de um mundo pela

antropologia especulativa não torna existente um mundo inexistente; torna

existente uma relação antes inexistente (mas subsistente, que sempre foi

possível) entre dois mundos, faz estes colidirem, se encontrarem; e faz o

explorador redescobrir a si mesmo, isto é, mudar de perspectiva, mudar a

perspectiva. A perspectiva da antropologia especulativa, assim, é a que deriva

desse encontro – não é a perspectiva de um mundo ou de outro, mas a de sua

tradução recíproca: uma entre-perspectiva, uma perspectiva caleidoscópica,

composta e atravessada por mais de uma perspectiva, como talvez toda

perspectiva, quando tornada corpo (textual ou xamânico), seja marca de um

encontro de perspectivas (NODARI, 2015, p.83)

Quando Deleuze se nega a fazer metáforas: “não faço metáforas”, isso acena para

uma linha de fuga dos sentidos habituais da referida figura de retórica. Ele contesta o

binarismo entre o próprio e o figurado, para fora desse domínio. Uma significação, quase

sempre, é contaminada por outra. A metáfora poderia ser, então, um espaço no qual nossa

experiência se estrutura e se transforma. (ZOURABICHVILI, 2005)

eu tenhu quarenta e cinco anus tenho cinco fiLHOS éh dois três homens e duas

mulheres tenhu um netinho de cinco aninhos eu fiz administração porque gostu

fiz meu curso técnico em área de administração então fiz administração e agora

eu tô entrando na área da licenciatura fazendo interculturalidade pela UEPA tô

nu:: penúltimo semestre [...] mi disseram que o curso ia ser ministrado dentro

da sa/dentro da aldeia eu mi senti assim (num) paraíso néh eu falei UM curso

de formação superior sendo ministrado dentro duma aldeia é inédito... então eu

fui fazer inscrição [...]porque eu mi sentia muito incompleta naum falando

minha língua i até um tempo atrás eu tinha vergonha disso quando eu chagava”

nus lugares que as pessoa falavam assim você é índia? sô cê FAla sua língua?

((abaixando a voz)) ai eu dizia assim naum:: ((elevando a voz e falando

rápido)) então você não é índia’ eu assumi aquilo como culpa i ficava com

vergonha i isso mi martirizo muito tempo quieu fiquei muito tempo com isso

vivi minha adolescência i:: o crescimento... então a forma como você interpreta

como você intendo o outro é que você se qualifica ai de igual pru outro [...]

entaum eu:: eu:: tinha essa essa essa tristeza dentro de mim por não falar a

língua i por muito tempo eu carreguei isso dentro de mim... MAS ai eu fiz u/um

caminhu - - por que que eu falo minha idade néh? - - Eu fiz um caminhu [...]

(SOMPRÉ, 2015)

Quem sabe a maioria dos exercícios etnográficos não tenham sido até hoje

especulativos?! Daí a impossibilidade de Viveiros de Castro (2015) e tantos outros

pesquisadores de concluirem ou quem sabe iniciarem seu anti-narciso. Rotações de

perspectivas e descolonização do pensamento parecem ínfimas se ainda comparadas ao

teatro perverso e inventado pela antropologia, congenitamente exotista e primitivista.

Ficcionalizar, desse modo, pelo caminho diaspórico de Concita “começaria”

quando seu pai, indígena Xerente, peregrinando de aldeia em aldeia2, graças as políticas

públicas “inclusivas” do SPI e da FUNAI, quando deslocavam, removiam e

desintegravam etnias pelo Brasil. O então jovem Xerente aportou em um convento jesuíta,

em São Paulo, graças a uma jovem clara e alta, Guarani. Já devidamente “raptada”, o

casal “desceu” o rio Araguaia, morou com os Karajás até a chegada na cidade de

Marabá/PA:

meu pai foi pará nesse conventu i lá ele raptó minha mãe... ((risos)) i ai eu tô

contando um pouco dessa história porque vocês... começam’ vocês tem que

entendê um pouco néh? porque que muitos índios vem pararem vários lugares

néh? teve um um ciclo ai pra ele tê ido parado em algum lugar... i ai a gente

veio descendo Rio Aragua::ia chegamos à Marabá na década de setenta

(SOMPRÉ, 2015)

Durante a década de 70, com cerca de 3 anos, Concita lembra da chegada no bairro

Amapá, hoje chamado de Cidade Nova, em Marabá. Todos sabiam indicar a “casa” dos

índios. A relação com os moradores, segundo suas remotas lembranças, era pacífica e

constituiu laços até hoje: “temos uma relação muito forti ali no Amapá foi um bairro qui

nos acolheu [...]” (SOMPRÉ, 2015).

2 Segundo Concita, seu pai , após um conflito familiar, foi remanejado para várias aldeias: Passou pelos

Karajás e pelos Kraôs.

As década de 70/80, para Concita, foram intensas e sua memória somada aos

jornais da época conseguem evocar parte das cenas genocidas envolvendo indígenas e a

construção da rodovia Transamazônica.

A história dos Arara, embora pouco conhecida, é igualmente trágica (e haverá,

para os índios, história que não seja trágica neste país e em quase todos os

demais?). Eles conseguiram fugir à ofensiva realizada pelo SPI entre 1952 e

1960 para 'pacificar' diversas tribos indígenas dos vales do Tocantins, Xingu e

Tapajós, consideradas ameaçadoras à economia regional por defenderem suas

terras, terras estas que continham seringais ou castanhais cobiçados pelo

'branco'.

Fugindo dos seringalistas e donos de castanhais – e também do SPI – os Arara

penetraram no interior da floresta arrasados por doenças, falta de alimento e

mudança de ambiente. Fizeram sua aldeia a aproximadamente 100 quilômetros

de Altamira e reiniciaram a vida. Foram surpreendidos pelas pesadas máquinas

que abriam, em 1970, a Transamazônica: suas habitações, roças e pertences

foram abandonados na fuga às pressas. Continuaram os Arara fugindo para o

sul.

No início de 1971, um grupo de trabalho formado pela Funai (chefiado pelo

falecido e saudoso antropólogo Eduardo Galvão, com participação de mais três

antropólogos do Museu Goeldi) reconheceu que os grupos ainda não

pacificados que se encontravam na rota da estrada, 'além de constituírem

minoria, parecem não possuir a força agressiva então demonstrada pelos

Kayapó. (CANDIDO SÁ, 1971)

Na década de 80, a família de repertórios simbólicos múltiplos muda-se para a

Reserva Mãe Maria, política pública compensatória do governo federal para

“territorializar” povos indígenas da região ou não. Povos Jês, Guaranis e, até mesmo

Kupês3, compuseram esse espaço com dimensões interativas. Seriam encontros

neocoloniais ditados por relações entre colonizadores e colonizados, não em termos da

separação ou segregação, mas em termos da presença comum, interação, entendimentos e

práticas interligadas. (PRATT, 1999)

Também, em 80, a passagem da estrada de ferro Carajás pela Reserva Mãe Maria,

possiblitou a esses sujeitos de trajetórias cruzadas, mas já sob a alcunha do termo redutor

Gavião, “compensações” indenizatórias, na maioria das vezes, refutadas com a interdição

da passagem dos minérios em suas terras.

chega lá u:: grandi agronegóciu né? ai vê aquela terra linda maravilhosa com

aqueli tantão di arvores qui dá um ocxi/um oxigênio PERFEItu prus nossus

pulmão/ não aqui tem MUI::ta madeira vau derrubá i plantá soja vamu fazê

dissu aqui um gandi::... um gandi agronegóciu... vamu produzi vami fazê vamu

acontece ai tá aí... né?... . intão somus traxadus di preguiçósus porque u nossu

3 Denominação para não indígena.

tempu não é u tempu du brancu... MAS AÍ tão tentando trazê u tempu pra cá

né?... (SOMPRÉ, 2015)

O eterno retorno ou o caminho de volta de Concita compreendido e interpretado

com/como Deleuze (1997, p.384) não seria retorno da mesma ao mesmo, pelo contrário:

O eterno retorno é bem o Semelhante, a repetição e a identidade não preexistem

ao retorno do que revém. Eles não qualificam de início isto que revém, eles

não se confundem absolutamente com seu retorno. Não é o mesmo que revém,

não é o semelhante que revém, mas o Mesmo é o revir disto que revém, quer

dizer do Diferente, o semelhante é o revir do que revém, quer dizer do

Dessemelhante. A repetição no eterno retorno é o mesmo, mas enquanto ele se

diz unicamente da diferença e do diferente.

Eterno retorno convertido em repetição selecionadora. Rompimento com um

suposto movimento circular. Seria justamento a distenção dessa trajetória circular e o

resultado do jogo da vontade de viver e de extrair da vida aquilo que, para Concita (2015),

pode ser estranho, insignificante, mas necessário. Para Concita, é indispensável, além de

falar de seu dia a dia na aldeia, citar sua passagem e de outros indígenas pelo desprezo da

universidade; pelo preconceito e pelos estranhamentos com o tempo corrido dos Kupês:

“O que se reepte sempre é a diferença, a emergência de uma novidade, uma diferença que

é a afirmação da positividade e não da negatividade: a reptição é uma trangressão do que

está aí” (HUR, 2013, p. 186)

MAS EU sei qui si eu valorizá aquilu i eu saí dessi mundu aondi eu vivo eu

num vou consegui mi adaptá é o qui acontece com us us nossus estudanti qui

chega nas universidadi... elis QUEREM tá aqui nessi mundu... mas elis não tão

sendo preparadu pra istá aqui... néh?... intão o que qui aconteci?... vem pra cá...

o professor tá falandu eli não tá conseguindo intendê até mesmo porque as

palavras qui tão sendo falada né? são palavras... como diz a:: o linguajá são

grego néh?... ali mal tá entendendu o português ai eli não vai entende mais

ainda... SÓ QUI eli tem um:: diferencial ainda eli tem vergonha di pergunta...

ali tem vergonha di abri a boCA... i si... fala in publicu... i ai eli fica caladu...

ai eli voltó pa dúvida... não entendeu’ u qui foi pedidu... não conségui pedi

ajuda i eli si fecha i ai eli retorna... chamadu di incompetenti não conseguiu

porque teve uma fala di um professor di medicina,... qui chamo um índio achu

qui é um índio Wai Wai... na sala di aula eli falô “não sei porque você tá aqui...

você não consegui entende o qui a genti fala pédi”... você tá:: já nu:: achu qui

no terceiro ou no quartu período a turma já tava lá na franti eli continuava lá...

“si eu fossi você eu voltava pra sua tribu... voltava pra sua aldeia lá você vai

ser mais útil do que aqui”... uma fala di um professor di medicina... uma das/...

i eli disse assim “não eu vó ficá... eu vó fica... eu vó aprendê... eu sei qui eu vó

aprendê”... ((chorando)) intão existi issu essa/essi impedimentu...

Concita coleciona falas de experiências indígenas na universidade consonantes

com os números bem guardados das universidades para a significativa evasão indígena.

Concita (2015) questiona o fato de que as políticas de inclusão se resumirem apenas ao

acesso à academia. Seria preciso também garantir permanência:

alguém qui/ vai prepará alguma coisa pra si adequá a nóis... mais issu vai mudá

a partir di hoji... creio eu... porque as pessoas/ o sistema são feitos di pessoas...

quein tá por tras do sistema dus programas são as pessoas’... intão si a

universidadi não prepara as pessoas pra recebê... naum trabalha as pessoas qui

vão trabalhá com o sistema pra recebê as pessoas a genti nunca vai sair da

mesmice...

A memória de Concita dá saltos desafiando quaisquer tentativas de precisão

descritiva. Esse espiral de lembranças, ora difusos, múltiplos e caóticos, ora lineares faz

passado, presente e futuro segmentares e descontínuos: “Por mais que o eterno retorno

possa afetar o passado e o presente, ele concerne diretamente ao futuro, a um

transbordamento produzido pelo futuro.” (HUR, 2013, p. 187)

Mostras disso é o salto que Concita costuma fazer quando suma memória,

enquanto multiplicidade, salteia do passado ao futuro para externar sua preocupação com

a Escola Kyikatêjê. A professora demonstra preocupação com o uma grade curricular

confinando e determinando que os saberes ancestrais fiquem reservados a um dia da

semana: a sexta feira. Concita compreende que a Escola seria, paradoxalmente, um

dispositivo, plantado na aldeia, nascido das relações do Estado com o Capital

reproduzindo e fortalecendo um projeto civilizador, no qual a gestão da colonização visa

ao ordenamento do “espoliado”, na exploração e expropriação de suas riquezas incluindo

seus saberes e a liberdade e o direito de representação. Por outro lado, compreende ser

possível transformá-la em contra dispositivo, pelas culturas letradas, uma tentativa de

rasura às representações canhestras historicamente recebidas pelos povos indígenas.

Agamben (2009b), sobre a categoria dispositivo, o vê como instrumento decisivo

de consolidação do capitalismo, não havendo um só instante da vida que não seja

modelado, contaminado ou controlado por ele. O filósofo italiano também se preocupa

de quais modos – e aqui incluo o povo de Concita – poderiam ser tecidas estratégias no

cotidiano com esses instrumentos modeladores: “nós vemos a escola como um forte

aliado não como um obstáculo mas como forte aliado”. (SOMPRÉ, 2015)

A armadilha de novamente se recair, pela Escola da aldeia, em processos de

reconfiguração das alteridades minoritárias, é refutada pelo desejo de Concita em ocupar

espaços de poder mediante alianças também com os aparelhos do Estado. Seria,

possivelmente, uma renúncia parcial dos horizontes ocidentais, para quem sabe,

reconfigurá-la a uma constelação mais ampla de saberes (SANTOS, 2010).

Concita crê no que chama de uma Escola intercultural reconhecendo o direito à

diferença e a luta contra todas as formas de discriminação e desigualdade social. Lugar

da promoção de relações dialógicas e igualitárias entre pessoas e grupos que pertencem a

universos culturais diferentes, trabalhando os conflitos inerentes a esta realidade. Não

ignora as relações de poder presentes nas relações sociais, interpessoais e pedagógicas,

um reconhecimento de conflitos, procurando estratégias mais adequadas para enfrentá-

los.

então a escola ela tem esse papel; ela tem essa importância muito grande no

que está sendo ensinado desde a base ... se aquilo que está sendo ensinado vai

valorizar o meu eu enquanto Kyikatêjê vai valorizar minha cultura enquanto

Kyikatêjê vai fortalecer meu pertencimento. Kyikatêjê eu vou ser o primeiro a

ser o defensor da minha língua eu vou querer a falar a minha língua eu vou

querer defender a minha língua eu vou querer tomar como primeira vontade de

aprender a língua então é eu eu sujeito eu querendo a mudança eu querendo ter

orgulho daquilo que é meu ... porque eu não posso chegar para você e colocar

em você uma cultura ... você tem que querer abraçar aquela cultura viver aquela

cultura se identificar com aquela cultura e a partir daí você tem como fazer

alguma coisa. (SOMPRÉ, 2015)

As crianças precisam aprender a gíria4, segundo a professora e a liderança

kyikatêjê, Não há pensamento fora da linguagem e a escritura pode fornecer subsídios

tanto de reflexão quanto de ação. Os movimentos de desconstruções discursivas não são

construídos apenas por estruturas do fora. Também são possíveis e eficazes quando

ajustam seus “golpes” habitando as estruturas reguladoras. Isso é difícil e há horas que

não sabemos como fazer.

hoje eu tenho uma filha de quatro aninhos né? e ela está me chamando de ĩnxê

... ĩnxê que é mãe e ĩnxũ que é pai ... alguém disse para ela na sala de aula não

sei se foi o professor de língua não sei se foi a coleguinha e ela tomou isso e

não fala mais mãe ... não fala mãe mais não fala isso tem uns dois meses ... e

eu comecei a me perguntar o quê que está acontecendo com ela? por que que

ela está me chamando de ĩnxê e o pai de ĩnxũ? e não mudou mais não está

falando mais o Português o quê que está acontecendo com ela? Então eu

comecei a observar ela ... e eu comecei a observar que ela gosta ... ela gosta de

dançar ela gosta de pintar ... (SOMPRÉ, 2015)

4 Uso recorrente para a língua dita étnica.

Se há uma experimentação simétrica com Concita, poderíamos citar nossa

experimentação na tentativa de se reconfigurar a língua dita étnica para as cenas

cotidianas da vida. Resolvemos com a orientação de uma equipe multidisciplinar, a partir

da disponibilização de alguns recursos da universidade federal do sul e sudeste do pará,

construir um livreto para uso da Escola. Recorremos a temáticas da escolha dos indígenas,

assim como, a partir de um sistema ortográfico apresentando pelos professores indígenas,

decodificamos narrativas, dentre as quais a corrida de tora:

Kêka me kuprõ, me hõ tokto me nã nõ xun kaxuwa. Kêka pen pàr hô kre to te.

Kêka me wyr pen jato. Kêka jũm te nõrõxwyn wyr te. Kêka jũm kôt te. Kêka mã pe

puxwyry to te. Kêka mã pe kaxuwa kupy me to hõ kre hõ poro tom õ. Kêka jũm xare

aipen mã amne kôt amjijiko. Kêka jũm me wyry kume. Kêka jũm to kà jũm pea hàk, pea

pàn. Kêka jũm kupàn aihĩ wapê ta proro tom õ kume. Kêka me prara me hapôi me mpo

nã kà. Kêka ne ĩnkrere kãm kre. Kêka me kumrã. Kêka me kupu hô. Kêka me kà pê me

apà.

Em tradução livre, a corrida de tora embaraça a natureza aos corpos, às cores, aos

suores e às vozes. Extraídos das matas, troncos gigantescos de samaumeira aguardam as

mãos artesãs de quem vai transformá-los em toras aos homens e às mulheres.

Devidamente secas, pela ação do calor, em simbiose com um tempo incompreensível para

algumas ampulhetas ocidentais, essas esculturas gigantescas ganham cores e formatos.

Suas extremidades são escavadas por mãos-ferramentas-artesãs, mais tarde dando cores

de urucum à superfície do tronco. Devidamente toras, a “brincadeira”, talvez uma

necessidade de se abrir mão parcialmente do supralógico em favor de incerteza, imana o

jogo à vida pelas medidas do risco e do prazer. Risco constante, segundo os Kyikatêjês,

de afastamento progressivo de suas matrizes culturais. Prazer, na ação de lembrar. Esse

jogo confere a esses sujeitos a possibilidade da conquista de vitórias, fictícias ou não

sobre inimigos históricos. As regras do jogo escapam das lentes de câmeras. O corpo se

faz e se entrelaça em um desejo agônico de comunicar e de lembrar.

Figura 2: Corrida de Tora

Fonte: Programa de Extensão Mito-Poéticas Orais: Repertórios “Tectônicos” em Devir

com a Educação Bilíngue

Pensando com Isabelle Stengers (2007 ), se a política são os humanos e o cosmos

são as coisas, os gestos e desejos de Concita parecem dialogar com a palavra

"cosmopolítica". É necessário perceber, com outros olhos, os diferentes modos de habitar

o mundo, mas que em algum momento se encontram.

Cosmos é multiplicidade de mundos. Pensando nessa perspectiva, até que ponto a

Escola Kyikatêjê leva em consideração o patrimônio imaterial desse povo da floresta?

Em que sentido a política deve ser estendida nesse outros cosmos? Como se dá sua

imbricação com os saberes ancestrais? Como visualizar a cosmopolítica coms

representação de mundos? Os Kyikatêjês falam por quem e pelo que?

O caminho de Concita é múltiplo, mas nesse quiasma a professora escolheu sua

bússola em busca de uma indianidade: Escola Tataki Kyikatêjê.

REFERÊNCIAS

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NODARI, Alexandre. A Literatura como Antropologia Especulativa. Revista da

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Foto.

PROGRAMA DE EXTENSÃO MITO-POÉTICAS ORAIS: REPERTÓRIOS

“TECTÔNICOS” EM DEVIR COM A EDUCAÇÃO BILÍNGUE. Corrida de Tora. 1

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