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V . 5 N . 2 2 0 0 8 J U L / D E Z

Revista Devires Dossie Documentario Brasileiro Comtemporâneo

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Publicada conjuntamente pelos programas de pós-graduação em Comunicação e Antropologia da FAFICH-UFMG, a revista Devires procura associar os estudos do cinema ao domínio das Humanidades, em busca de uma interlocução entre as diferentes abordagens que tratam a escritura do filme em sua relação com as múltiplas formas de vida. Congregando autores de diferentes instituições do Brasil e do exterior, procura produzir uma publicação engajada nos debates teóricos e nas obras que refletem critica e intensamente o campo do cinema em sua longa tradição e nos dias de hoje. Published jointly by the post-graduate programs in Communications and Anthropology of FAFICH-UFMG, Devires magazine seeks to associate cinema studies with the field of Humanities, in search of a dialogue between different approaches that deal with the writing of films in its relation with multiple forms of life. Bringing together authors from different institutions, in Brazil and abroad, Devires seeks to create a publication engaged both in theoretical debates and in the artistic works that reflect, critically and intensely, the field of cinema.

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  • V . 5 N . 2 2 0 0 8J U L / D E Z

  • devires, belo horizonte, v. 5, n. 2, p. 1-184, jul/dez 2008periodicidade semestral issn: 1679-8503

  • D 495 DEVIRES cinema e humanidades / Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas (Fafich) v.5 n.2 (2008)

    SemestralISSN: 1679-8503

    1. Antropologia. 2. Cinema. 3. Comunicao. 4. Filosofia. 5. Fotografia. 6. Histria. 7. Letras. I. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas.

    Publicao da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas (Fafich) Universidade Federal de Minas Gerais UFMG

    Avenida Antnio Carlos, 6627 Pampulha 31270-901 Belo Horizonte MG Fone: (31) 3409-5050

    Conselho editorialAna Luza Carvalho (UFRGS) Andr Brasil (PUC-Minas)Cludia Mesquita (UFSC) Cristina Melo Teixeira (UFPE) Consuelo Lins (UFRJ)Cornlia Eckert (UFRGS) Denilson Lopes (UFRJ) Eduardo Vargas (UFMG) Jair Tadeu Fonseca (UFSC) Jean-Louis ComolliJoo Luiz Vieira (UFF) Jos Benjamin Picado (UFBA) Ismail Xavier (USP) Leandro Saraiva (UFSCar)Maurcio Lissovsky (UFRJ)Maurcio Vasconcelos (USP)Mrcio Serelle (PUC-MG)Marcius Freire (UNICAMP)Mateus Arajo SilvaPatrcia Franca (UFMG)Philippe Dubois (Paris III)Phillipe Lourdou (Paris X)Patricia Moran (UFMG)Rda Besmaa (Brown University)Regina Helena Silva (UFMG)Renato Athias (UFPE)Ronaldo Noronha (UFMG)Sabrina Sedlmayer (UFMG)Silvana Rodrigues Lopes (Universidade Nova Lisboa)Stella Senra Susana Dobal (UnB)Sylvia Novaes (USP)

    editoresAnna Karina BartolomeuCsar GuimaresCarlos M. Camargos MendonaRoberta VeigaRuben Caixeta de Queiroz

    Capa e projeto grfiCoBruno MartinsCarlos M. Camargos Mendona

    editorao eletrniCaBruno FabriFilipe Freitas Pedro Clio

    Coordenao de produoAlexandra Duarte Clarissa Vieira

    reviso - portugusIrene Ernest Dias

    traduo dos resumosAlice Loyola (francs)Marco Aurlio Alves (ingls)

    Curadoria de imagensConceio Bicalho

    imagensAntnio Milton Signorini Aroldo LacerdaElias MolHumberto Mundim Marcelo KraiserMaria do Cu DielMauro Henrique Tavares

    apoioGrupo de Pesquisa Poticas da ExperinciaFafich UFMG

    impressoLabel

    tiragem500

  • sumrio

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    74

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    184

    ApresentaoCsar Guimares

    dossi: documentrio brasileiro contemporneo

    Beleza do Horizonte: Uma viagem ao Brasil em novembrode 2005Jean-Louis Comolli

    Inventar para sugerir: notas sobre Santo Forte, de EduardoCoutinhoCldia Mesquita

    Na contramo do confessional: o ensasmo em Santiago, de Joo Moreira Salles, e Jogo de cena, de Eduardo CoutinhoIlana Feldman

    Jesus no mundo maravilha, uma carta aberta ao realizadorNewton CannitoCezar Migliorin

    Carapiru-Andrea, Spinoza: a variao dos afetos em Serrasda desordemAndr Brasil

    Cineastas indgenas e pensamento selvagemRuben Caixeta de Queiroz

    Fotograma comentado - Os tempo de Santiago Anna Karina Bartolomeu

    fora-de-campo

    Robert Kramer: tcnica, paixo e ideologiaJorge la Ferla

    Documentrio: problemas de mise en scne e o horror da guerra Cristian Borges

    Os encontros interculturais inesperados nos cinemas brasileiroe quebequenseHudson Moura

    Normas de publicao

    sumrio

  • 6 APRESENTAO / CSAR GUIMARES

    apresentao

    Os profetas das novas tecnologias, apressados em abolir nosso tempo (do qual se crem apartados), j lanaram seu vaticnio: o cinema, essa antiga arte do ndice, catador dos vestgios da experincia humana, no demorar a desaparecer de vez, substitudo pelos artifcios da imagerie de sntese, com seus cenrios e corpos virtuais, suas tramas interativas docilmente submetidas vontade do espectador, agora dispensado de lidar com a perda, pois os acontecimentos do jbilo morte, do mistrio ao gozo passaro a ser reversveis, reinicializveis, experimentados sob o princpio do videogame: se perdemos, podemos jogar outra vez, e se depois de longo esforo zeramos o jogo, as novas verses, encomendadas pelo fabricante, j nos esperam. O cinema, que por meio do encontro entre uma mquina e um corpo apanha a presena dos seres e dos eventos para projet-los na ausncia do que filmado, no cumpriu inteiramente o destino da esttica da desapario. Outras mquinas faro isso por ele, levssimas, imateriais, e de rigorosa astcia programada. Em breve ele ser to velho quanto aquela lanterna que maneira dos primeiros arquitetos e mestres vidraceiros da idade gtica, sobrepunha, opacidade das paredes, impalpveis criaes, sobrenaturais aparies multicores, onde se pintavam legendas como num vitral vacilante e efmero.1 Velhssima tecnologia, aposentada pelas mquinas que dispensaram o real (e, com ele, os corpos e a medida humana do olhar, bem como os aparatos de registro e reproduo) para simul-lo a partir do clculo, Cerberus em prontido contra o acaso e o risco. Essa mmia do movimento j se deteriorava, seus trapos mal escondiam a derrota na luta contra o tempo. Intil insistir, pois, em salvar o ser pela aparncia, celebrar essa passageira ressurreio na tela branca: melhor se valer dos

    1. PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Trad. Mrio Quintana.

    So Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 10.

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    simulacros, que conjuram toda angstia; eles, sim, levaro a cabo a desapario.2

    No se esperava mesmo muito dessa arte sem futuro: mal acaba de completar cem anos e uma interdio vem ameaar a inscrio verdadeira, selo da relao real de um tempo (aquele do registro), de um lugar (a cena), de um corpo (o ator) e de uma mquina (que assegura o registro).3 A inscrio verdadeira a clula documental de todo filme, mesmo o de fico. Onde quer que haja uma durao partilhada entre um corpo e uma cmera que registra sua presena, h inscrio verdadeira (a verdade, aqui, est na relao entre quem filma e quem filmado, e no no contedo da representao). Em pleno avano (melhor seria dizer ataque) da cena virtual sobre a inscrio verdadeira, nas arenas da sociedade do espetculo (reforada pelas estratgias do biopoder), eis que o cinema tantas vezes dado como morto ressurge em meio floresta amaznica arrasada pela brutal e ilegal extrao de madeira, na gleba de terra chamada Corumbiara, no sul de Rondnia. Mais uma vez (desde Lumire), o vento sopra onde quer (para lembrar o subttulo do filme de Bresson, Um condenado morte escapou), como nas palavras do Evangelho de So Joo. No documentrio, o vento do real que sopra em nossos ouvidos, e talvez somente ele, inesperado, fora de controle (ignora de onde vem e para onde vai escreve o evangelista), seja capaz de inaugurar uma vida nova para o espectador nos dias de hoje. isso o que Corumbiara, de Vincent Carelli, nos proporciona, surpreendentemente. Neste nmero que a Devires dedica ao documentrio brasileiro contemporneo, esse filme nos oferece, de maneira tristemente exemplar (mas sobretudo como ato de resistncia), aquela cena primitiva que, nos termos de Comolli, funda o encontro filmado (grau zero do cinema documentrio) e por que no dizer? a sua ontologia, enfim. Em 1995, nove anos depois da primeira tentativa de apanhar as provas de um massacre de ndios isolados, atribudo a fazendeiros da regio de Corumbiara, o cineasta, o sertanista e seu novo assistente, agora acompanhados de dois jornalistas do jornal O Estado de So Paulo, retornam cena do crime. Como uma diminuta mancha verde incrustada no cinza das queimadas e na terra de onde milhares de rvores foram arrancadas, o territrio dos ndios, com sua rocinha, teimava em sobreviver. De incio, o campo nada apanha, eles no comparecem ao

    2. BAZIN, Andr. Ontologia da imagem fotogrfica. In: XAVIER, Ismail (Org.). A experincia do cinema. Rio de Janeiro, Graal/Embrafilme, 1983, p. 121-128.

    3. COMOLLI Jean-Louis. Viagem documentria aos redutores de cabea, p. 143. Para poupar a repetio das referncias, adiantemos que todas as nossas remisses s noes desenvolvidas por Comolli foram extradas desse artigo e de um outro, Sob o risco do real, publicados na edio brasileira de Ver e poder: a inocncia perdida cinema, televiso, fico, documentrio. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008.

  • 8 APRESENTAO / CSAR GUIMARES

    enquadramento que os aguarda, mas seus sons, seus passos no mato revelam que esto fora de campo, e que por um triz eles entraro no campo, capturados, filmados pela primeira vez. Como saberemos mais tarde (pelo relato da ndia Tiramantu), eles j nos olhavam a ns, os brancos, assim como o cineasta, os sertanistas e os jornalistas , eles nos observavam, fora do nosso campo. Um fora-de-campo mais radical, que ultrapassava em muito o visor da mquina e as nossas viseiras conceituais, j nos espreitava. Lentamente, duas figuras entram no campo, dois ndios, ainda indistintos (logo descobriremos que so dois irmos, uma mulher, Tiramantu, e um homem, Pur). De incio, sem saber o que fazer, a cmera faz um zoom in; insegura e presa ao seu lugar, ela puxa o desconhecido para perto, sem se mover; mas eles avanam, cautelosa e suavemente, e a cmera (assim como corpo que a sustenta), s pode esperar e refrear seu poder de intruso. Os olhares dos brancos tambm esperam: eles sabem-se olhados, pois tambm ocupam o campo do outro, so tambm vistos e perscrutados pela primeira vez. Aos poucos, o olhar regulado pela cmera obrigado a abandonar sua boa (e segura) distncia e a ocupar o limiar que pe em contato os corpos. Os dois ndios se aproximam, e quem toma a iniciativa do primeiro gesto? as mos se tocam. Aquele que filma tambm tocado, estende a mo, deixa-se reconhecer pelo toque, e a partir da surge um contato precrio, sustentado pelos dedos que se mantm unidos com delicadeza (impossvel saber quando soltar, por quanto tempo mais segurar). Na breve e intensa cena do primeiro contato, o olhar que enquadra e captura contm o seu avano no espao do outro para acolher o convite que vem dele; aceita ser conduzido, o que causa uma pequena vertigem, um descentramento, as coisas se desenquadram momentaneamente, desequilibradas, fora de foco. Como numa dana sem ensaio, Tiramantu e Pur conduzem a equipe para o centro da pequena aldeia. nessa regio onde a mata se encontra acuada pela ferocidade da expanso capitalista que o documentrio (e com ele todo o cinema!) reinaugura sua cena primitiva, atualizada pelos dilemas e impasses da sociedade na qual vivemos. Essa seqncia de Corumbiara exibe emblematicamente o terreno atual no qual se desenvolve o gesto documentrio, aberto tanto a confrontos quanto a alianas. Em nossa poca, ele no pode se contentar simplesmente em concorrer com as mquinas de viso

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    que se apressam em produzir a inscrio da realidade, sfregas em nos oferecer um gro de real que seja. O documentrio deve ir alm e tornar manifesta, na matria flmica, a realidade da inscrio, como tem insistido Comolli. Se o documentrio possui uma forma mutante, pois sua mise en scne atravessada pelas outras mises en scne criadas pelas instituies da vida social, a teorizao e a crtica que podemos desenvolver em torno da sua escritura devem tambm se manter atentas multiplicidade dos atos de criao que as obras sustentam. Este o esprito que guia os textos aqui reunidos. Consagrados a filmes de estilsticas bem distintas, os artigos percorrem as diferentes modalidades assumidas pelo encontro filmado, desde o seu grau zero (modulado pela escuta atenta ou pela violncia provocadora) at a sua teatralizao, passando pelos procedimentos do ensaio. Cremos que, com isso, conseguimos oferecer um panorama das linhas de fora que animam parte significativa da recente produo documentria brasileira.

    Csar Guimares

  • documentrio

  • b r a s i l e i r o

  • (IMAGEM)

  • jean-louis comolli

    Beleza do horizonte: uma viagemao Brasil em novembro de 2005

    Cineasta e terico do cinema

    DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 5, N. 2, P. 12-31, JUL/DEZ 2008

  • DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 5, N. 2, P. 12-31, JUL/DEZ 2008 15

    Nos primeiros dias no consegui, por assim dizer, sair do meu quarto, restringindo-me a fotografar pela varanda envidraada as duas favelas que ficam de frente para os vinte e dois andares do Quality Hotel, um dos mais novos de Belo Horizonte. Minhas sadas eram at o restaurante no trreo, italianizante e adequadamente chamado il Sarraceno. Menu: ravili, s vezes peito de frango grelhado, arroz de aafro. Uma taa de vinho cabernet brasileiro, robusto. Como era fcil tornar-se, em poucos dias, uma espcie de personagem nesse hotel: cumprimentavam-me quando eu chegava ao hall, no me viam sair, os porteiros sorriam para mim, as moas da recepo mostravam-se suavemente pacientes quando eu voltava para trocar uma chave desmagnetizada. Eu estava com medo? Talvez. Sentia-me bastante estrangeiro naquele novo mundo. No entanto, j havia ido duas vezes a Belo Horizonte, tinha amigos l, havia sido convidado por eles para dar um seminrio1, eu tinha todas as razes do mundo para estar vontade naquela cidade imensa, e ainda melhor na companhia daqueles amigos, Rosngela, Ruben, Augustin. Segundo um ritual ntimo, eu s havia conseguido sair de Paris esgotado por mil tarefas de ltima hora. Nessa chegada em cmera lenta e como que decomposta imagem a imagem, eu vivia uma trgua salvadora de alguns dias, uma viglia de armas na aurora de uma mudana de vida. O que no havia conseguido fazer em Paris, ler, dormir, fotografar, beber um pouco, eu estava fazendo no Brasil. Belo Horizonte uma cidade voluntarista. Foi concebida ex nihilo como absolutamente moderna. No fim do sculo XIX, as grandes fortunas de Ouro Preto, capital histrica de Minas Gerais (as minas de ouro e de diamante), por estarem imprensados naquela cidade colonial cheia de escarpas, precipcios, barrancos, gargantas e cornijas, decidiram conceber, de forma grandiosa, uma nova capital. Um plano ortogonal como o de Manhattan foi literalmente decalcado em um territrio mais vasto e mais aberto, verdade, do que o da cidade deixada para trs, mas igualmente acidentado. Como a potncia de um plano s muito raramente aceita as curvas e os contornos (e muito menos escadas!), em Belo Horizonte h ruas escarpadas impossveis de subir a p, a no ser com o auxlio das mos (posio em que me vi sem ter bebido nenhum copo alm da conta). O quadriculado no cede natureza, nem esta cede a ele. Beleza de um plano,

    1. Duas vezes por semana, durante cinco semanas, no mbito do Instituto de Estudos Avanados Transdisciplinares (IEAT, dirigido por Alfredo Gontijo), a convite de Ruben Caixeta, etnlogo, professor da UFMG, e de Csar Guimares, que ensina na mesma universidade no Programa de Ps-Graduao em Comunicao.

  • 16 BELEZA DO HORIZONTE / JEAN-LOUIS COMOLLI

    visto do alto. De baixo, o territrio se rebela contra o mapa. A divisa comtiana continua a flutuar na bandeira, Ordem e Progresso, mas o racionalismo implicado nesse programa beira a negao da realidade e supe uma f capaz no de remover as montanhas, mas de passar por cima delas. Bastava acreditar. Eu havia conhecido Ruben Caixeta de Queiroz quatro anos antes, quando o forumdoc2 organizou uma retrospectiva de meus documentrios em Belo Horizonte. Ruben havia, para a ocasio, traduzido no catlogo do festival alguns de meus textos e principalmente legendado em portugus, uma proeza, um que outro filme da srie Marseille contre Marseille. Ruben trabalha na Amaznia com os ndios Waiwai. O governo brasileiro o incumbiu de demarcar, junto com os ancios, os limites das terras outrora ocupadas pelas tribos, terras que, hoje, devem lhes ser restitudas. Essa vontade de fazer o mapa do passado (colonial), essa demarcao no espao e no tempo daquilo que foi espoliado e perdido, essa construo em que o tempo reencontrado serve para reencontrar o espao, tudo isso me parece bastante cinematogrfico, e ponho-me a imaginar o que John Ford poderia ter feito com isso. A lei e a f, dupla fatal que no poderia ter sido mais bem condensada do que o foi em Young Mr Lincoln (1939). No primeiro ano, havamos ido, em uma noite sem lua, assistir a uma sesso de candombl3 (tratava-se de um ritual caboclo). Ruben estava ao volante de um carrinho vermelho bastante avariado, mas as ruas logo transformadas em torrente pelas chuvas do novembro tropical estavam ainda mais avariadas, e havamos sado sem mapa ou coordenadas precisas, de forma que diante de uma fileira de casas baixas todas iguais, tivemos que pedir informaes a cada dois ou trs quilmetros, e rodar por aquelas ruas largas e vazias como estradas parando a cada posto de gasolina, os nicos pontos de venda de bebida ainda abertos. Mais longe, era mais longe. No fim, em algum lugar dentro de uma favela invisvel, desligvamos o motor a cada cinco metros para aguar os ouvidos: haveria a batida dos atabaques, pois a cerimnia j devia ter comeado. Ns nos guivamos na noite escura pelos ouvidos. Os atabaques se aproximavam. Lembro que uma de ns, Ginette Lavigne4, de vestido branco e guarda-chuva rosa como nas comdias musicais, tirou suas sapatilhas para atravessar a vau um lamaal que ainda nos separava do terreiro aonde amos. Todos os

    2. Festival do Filme Documentrio e Etnogrfico frum de

    antropologia, cinema e vdeo.

    3. Ver o livro de Roger Bastide, Le candombl de Bahia, Terre

    Humaine, 1957.

    4. Seu filme, La nuit du coup dtat (2001), estava sendo

    exibido no forumdoc, que a havia convidado.

  • DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 5, N. 2, P. 12-31, JUL/DEZ 2008 17

    nossos amigos brasileiros exclamaram; era um sinal favorvel, uma graa das divindades celebradas um pouco adiante na noite: o vestido continuava imaculado na lama que jorrava a cada passo de um de ns. Da cerimnia, guardo uma impresso de irrealidade. Tambm vestidos de branco, os adeptos giravam ao ritmo obstinado dos atabaques cruzados, mas seus passos, seus gestos eram suaves, envolventes, era uma coreografia mais deslizada do que danada. De tempos em tempos, um deles ia como que ao acaso em direo a um espectador, pegava-o pela mo, convidava-o a se levantar e o abraava: havia reconhecido nele, disseram-me, o sinal ou o trao de carter do deus que o habitava. Estranhamente, fui convidado, e, por minha vez, devolvi o beijo recebido. No fim, dividindo com Ruben uma dvida que no me largava (o lugar do espectador!), ouvi-o me responder: Eu creio na crena do outro. Frmula ritual, eu suponho, em etnologia. Logo me apropriei dela, para aplic-la ao cinema. daquela noite que data nossa amizade. Rosngela, que ensina msica e musicologia na UFMG, aconselha-me a ler o livro de Eduardo Viveiros de Castro5, A inconstncia da alma selvagem. Ela me acompanha at uma livraria, que no o tem mais, e a uma outra, onde conseguem encontrar um exemplar para ns. Como eu ainda continuo passando longas noites em meu quarto, comeo essa leitura em portugus, com a ajuda de um dicionrio de bolso. So as palavras do dia a dia que mais me faltam. Descubro alguns fragmentos da imensa literatura brasileira sobre os ndios da Amaznia. Viveiros de Castro cita longamente os escritos dos missionrios, jesutas principalmente, que nos sculos XVI e XVII se esforam em catequizar este ou aquele grupo daqueles ndios ento ainda numerosos. Cunhada pelo padre Antonio Vieira, em 1657, a oposio entre a esttua de mrmore e a esttua de murta, uma resistente ao cinzel do escultor, a outra dcil tesoura do jardineiro, mas a primeira imutvel e a segunda sempre cambiante e instvel, nos d a medida da inquietude, e mesmo da angstia, dos brancos diante daqueles ndios inapreensveis, que se apropriam avidamente dos significantes da f crist e parecem por ela moldados, sem renunciar sua prpria viso de mundo nem aos maus hbitos que no cessam de signific-los. Em lugar de fazer guerras de religio, escreve Viveiros de Castro, os ndios praticam uma religio da guerra.6

    5. Editora Cosac Naify, So Paulo, 2002.

    6. A esse respeito, cf., em particular, dois captulos de A inconstncia da alma selvagem: O mrmore e a murta: sobre a inconstncia da alma selvagem e Imanncia do inimigo (N.E.).

  • 18 BELEZA DO HORIZONTE / JEAN-LOUIS COMOLLI

    Eles prometem parar de lutar, parar de matar, parar de comer seus inimigos, mas no cumprem suas promessas. A f, a convico, a obedincia, a submisso ao princpio do chefe ou do rei so exatamente, segundo os jesutas, aquilo que falta aos ndios para que creiam de forma durvel em Deus e respeitem a disciplina dos mandamentos. Como crer sem obedecer?, perguntam-se. A lei vem em socorro da f. O que podem a ordem e o progresso contra a inconstncia da alma selvagem? Os ndios Arawet, que Viveiros de Castro, etnlogo, conhece bem, vem a sua identidade, o seu destino no alm-morte, o seu prprio estatuto de seres humanos, dependerem da existncia do inimigo. Imperiosa necessidade da guerra, que define o inimigo para que o inimigo defina o grupo. Matar o inimigo o leva a ser transformado por ele, habitado por ele: aquele que mata no come a carne de sua vtima, ele se torna aquele que vai levar a sua palavra, com a distino entre Eu e o Outro girando em torno do par vivo/morto. Do quarto do Quality, vejo ressurgir a ambivalncia fundamental da figura do inimigo filmado.7 No estamos, verdade, nos matando ou nos devorando, o inimigo e seu cineasta, mas o gesto documentrio favorece uma espcie de movimento fusional, na prpria cena da filmagem, entre aquele que filma e aquele que filmado, ainda que sejam inimigos. Isso atestado, aqui e ali, na srie Marseille contre Marseille, e melhor ainda ( o que se prope) no filme de Avi Mograbi: Comment jai appris surmonter ma peur et aimer Arik Sharon (1997). Filmar, o que Mograbi nos permite ver, se expor potncia do outro que, no filme, regula soberanamente os pares maiores presena/ausncia, doao/retirada, cumplicidade/distncia, que articulam sentido, mise en scne e, melhor ainda, determinam a prpria possibilidade de se fazer filme. O outro filmado organiza o filme. Curiosa coincidncia, no fim de seu filme Mograbi cuja alma e corpo se alquebraram no hostil campo de refugiados canta em uma espcie de karaok delirante um refro de extrema direita glria de Bibi (Nethanyaou). Entre os Arawet, o inimigo morto volta da morada dos deuses com novos cantos e novas palavras que aprende com aquele que o matou... No sei o que vai mudar, agora que brancos levaram para os ndios da Amaznia cmeras mini-DV e que esses ndios esto filmando a si mesmos.8 Passa a acontecer uma representao do

    7. Cf. Trafic n 24 e Voir et pouvoir (Verdier, 2004), p. 282 e 400.

    8. No forumdoc havia uma Oficina de Realizadores Indgenas,

    dirigida por Divino Tserewahu, do povo Xavante, animador do

    projeto Vdeo nas Aldeias, e autor-diretor de Wapte Mnhono,

    a iniciao do jovem xavante (1999), que reunia um coletivo

    de jovens diretores indgenas (esse termo, que aqui

    empregado, imagino eu, em um sentido literal, para mim continua

    marcado pela arrogncia colonial). Mas em toda a Amrica

    Latina, e no apenas no Brasil, um cinema indgena hoje uma realidade. Festivais exibem esses

    filmes; recentemente houve em Toulouse os 18os Encontros

    dos Cinemas da Amrica Latina, que exibiram filmes ndios

    (ouso dizer). Como no ver nesse movimento de fundo uma

    espcie de nova era do cinema: um cinema que seus prprios

    selvagens tomaram para si? Os famosos antropfagos evocados por Andr Bazin, longe de comer

    o operador, passariam agora a pegar a cmera... E talvez tenha

    chegado o tempo de ver esses ndios, virando suas cmeras

    em outro sentido, comeando a filmar tambm os brancos,

    ainda detentores de uma parte majoritria do que resta de poder esgarado no cinema. Ruben, por sua vez, que filma os Waiwai, no deixou de lhes mostrar como usar as cmeras e deixou-as com eles.

    Logo poderemos ver o que eles fizeram com elas.

  • DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 5, N. 2, P. 12-31, JUL/DEZ 2008 19

    mundo indgena por dentro, se que a cmera pode se tornar parte desse dentro; ocorrer sem dvida tambm uma concretizao daquilo que foi o sonho carnavalesco de Jean Rouch: o etnlogo estudado por seus prprios sujeitos. Apenas observo que, apesar de terem passado a manejar cmeras e microcomputadores, os ndios ainda no entraram de fato nos departamentos de etnologia das universidades brasileiras a no ser como objetos de estudo. A etnologia dos ndios da Amaznia mobiliza no Brasil centenas de pesquisadores; me parece, contudo, que no crculo desses antroplogos ainda faltam profissionais formados para virem a desenvolver estudos etnolgicos cujos objetos sejam os europeus, ou mesmo os brasileiros. Os alunos de msica de Rosngela cantam com os ndios Maxakali9, anotam com eles msicas e letras trata-se, mais uma vez, de cantos trazidos pelos espritos e cujo sentido os homens no compreendem, e podem apenas repetir de forma mais ou menos hbil: poesia e msica transcendem aqueles, humanos, que so seus instrumentos. Volto ao livro de Viveiros de Castro: para os Tupinamb, os missionrios so rapidamente comparados aos carabas (feiticeiros), e a eles foram atribudos, como queles, as protees mgicas que convm aos profetas errantes ou senhores da fala. Cantos e palavras constituem a trama de uma ligao com os deuses, e, levados por esse comrcio com o alm, tm fora proftica. Errncia, palavra, canto, profecia, poderes mgicos esto ligados. Rosngela convidou alguns Maxakali, msicos, poetas, pintores, para vir a Belo Horizonte tocar sua msica e mostrar seus desenhos.10 Os ndios desembarcam na UFMG. Telefonam para a tribo, freqentam as lanchonetes do imenso campus, do cursos de msica e canto para os estudantes (a maioria brancos). Vendo as tomadas (filmes e fotos) dessa visita de papis invertidos, tenho a impresso de que o Brasil feito de uma infinidade de fronteiras interiores, visveis ou no, que se apagam e se refazem medida que so transpostas. A realidade mltipla do pas parece escapar a qualquer tomada firme, e nisso que talvez esteja aquilo que anima e legitima o procedimento documentrio, e fascina, enlouquece, os documentaristas brasileiros: o fato de que o que est em jogo nesse incontrolvel e mesmo impensvel territrio, nesse povo mltiplo, nessas divises no abolidas, um radical no-domnio, uma complexidade jamais verdadeiramente encetada, uma

    9. Que vivem em um vasto territrio no nordeste de Minas Gerais, sul da Bahia.

    10. Vi, na casa de Rosngela, alguns desses desenhos, de Z Antonino Maxakali (a maior parte) e de Gilmar Maxakali: muito bonitos, ligando em cores vivas e formas leves as plantas, os homens e os animais. Eles devem ilustrar um futuro livro sobre os cantos sagrados. Rosngela me diz que talvez no se trate de ilustrao, mas antes de uma forma de escritura. Os Maxakali se apropriam da escrita alfabtica codificada por um lingista (evangelista) norte-americano para escrever uma lngua nunca escrita por eles. Mas acham muito importante que sempre haja com eles um desenhista. Alguns meses depois de minha partida, escreve-me Augustin, os Maxakali eram convidados pela UFMG de forma mais oficial, para uma temporada de 15 dias, como artistas visitantes, nas escolas de Msica e de Artes Cnicas: Um grande passo frente, escreve Augustin, no que diz respeito ao reconhecimento, pelo meio acadmico, de outros saberes e outras formas de pensar, rumo a novas fraternidades intelectuais.

  • 20 BELEZA DO HORIZONTE / JEAN-LOUIS COMOLLI

    fabulosa cascata de epifanias imprevisveis e renovadas que nada podem suscitar alm de um desejo imenso, insacivel, frustrado, mstico. Terra em transes.11 As mos se abrem para apreend-la, a realidade foge. Mas ela est aqui, sempre, manifesta, assim que lhe damos as costas. Seria preciso inverter a frmula de Philip K. Dyck o que a realidade? Aquilo que no desaparece quando eu deixo de acreditar em uma outra: quanto mais eu acredito, mais a realidade inapreensvel, e quanto mais ela inapreensvel, mais eu acredito nela. Como vi apenas alguns poucos documentrios brasileiros recentes no forumdoc ou logo depois, gostaria de evitar qualquer generalizao. Todavia, grande a tentao de associar alguns desses filmes, improvveis amostras, a uma categoria literria hoje desaparecida: os exempla.12 O que filmado no so personagens ilustres ou santos propriamente ditos: ningum mais, ningum menos do que o homem comum brasileiro. Filmado, ele simplesmente se tornou mais exemplar do que era. Aqui, como sempre mas talvez mais do que alhures, a cinematografia documentria singulariza.13 que os cineastas brasileiros encontram ou vo procurar ao longo dos caminhos, das ruas ou dos corredores de edifcios, toda uma coleo de seres que tm apenas uma coisa em comum: eles so nicos, so originais. Quaisquer que sejam as categorias e classes que o formam, o povo filmado aparece aqui composto de um nmero incalculvel de indivduos inclassificveis. Cada homem filmado como um tesouro vivo de particularidades que vem enriquecer a conscincia de uma comunidade que inclui os espectadores pois os espectadores brasileiros riem nos documentrios brasileiros, riem daqueles traos de carter por vezes tratados como caricatura. Como bem diz o subttulo de uma das obras emblemticas dessa paixo pela distino, Edifcio Master (2002), de Eduardo Coutinho um filme sobre pessoas como voc e eu , se essas pessoas esto parte, o esto como cada um de ns, como todos ns. Coutinho e suas trs equipes14

    se instalam em um edifcio residencial de Copacabana, durante um ms, para filmar seus novos vizinhos e inquilinos desse conjunto de 12 andares, com 23 apartamentos cada. Coutinho filma suas equipes de filmagem trabalhando, e a si mesmo. Os corredores, as telas de vigilncia, os elevadores servem de coador para a passagem em revista dos locatrios, todas e

    12. O exemplum uma historieta dada como verdica e destinada

    a ser inserida em um sermo para convencer um auditrio

    com uma lio salzutar que tem valor de exemplo. As primeiras

    compilaes de exempla surgem por volta de 1250. Servem ao

    mesmo tempo de catlogo para os pregadores e de leitura

    piedosa para o pblico letrado. (Nota da BNF). Sublinho o uso

    desses fragmentos de narrativas sob a forma de catlogos.

    13. Sabemos que o cinema documentrio inicialmente

    cinema, no que ele se ope vivamente ao mundo da informao, das mdias,

    reportagens, revistas etc.

    11. Foi, evidentemente, o cinema de Glauber Rocha (at onde pude perceber) que mais inflamou essa

    dimenso extrema, excessiva, excedente e obsessiva de uma

    sociedade e de uma histria explosivas.

    14. Sobre o trabalho e a obra de Coutinho, remeto ao livro de Consuelo Lins: O documentrio

    de Eduardo Coutinho: televiso, cinema e vdeo. Rio

    de Janeiro, JZE, 2004. As trs equipes que filmam durante um ms exprimem um certo

    sobreaquecimento do dispositivo. A fala est em toda parte, em

    todos os andares, o Edifcio Master uma casa de falas

    superpostas j desde a filmagem.

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    todos tomados em sua singularidade (sero filmados 37, o que d uma idia da galeria de tipos). A porta de um apartamento se abre, surge um rosto em primeiro plano. Essa mulher, esse homem, imediatamente entra (ou j entrou) em sua fala, que se abre como a caixa de Pandora. Nenhuma, nenhum deles , no entanto, chamado a se tornar personagem no sentido que o teatro, o romance, o cinema e mesmo o cinema documentrio (Nanook)15 deram a esse lugar particular da passagem da pessoa filmada (ator ou no) para o outro lado, aquele das dimenses imaginrias e das construes narrativas que tecem as falas e os corpos em um destino cinematogrfico de retomadas e de ecos. Aqui, as pessoas filmadas continuam, decididamente, a ser casos particulares. como se os pedaos do real filmados fossem to fascinantes como tais que ele tivesse sido previamente exaurido de qualquer desenvolvimento ficcional. Extraordinrios demais para entrar em uma narrao, surpreendentes demais para serem desdobrados em uma narrativa, a esses seres de cinema s resta aparecerem e desaparecerem. Seguindo o mesmo modelo da visita ou da revista, so filmados os moradores de um bairro popular do Rio de Janeiro, no filme de Cristiana Grumbach, Morro da Conceio (2005). Vistas fixas das ruas do bairro fazem a ligao entre as entrevistas filmadas com algumas das interessantes figuras que ali vivem. Exotismo do cotidiano. O que se ouve interessante, inslito, instrutivo. O espectador est em um lugar exclamativo. Efeitos de realidade, efeitos de sucesso de tipos que impedem, aqui tambm, qualquer tomada de fico. Creio que o cinema documentrio se oferece naturalmente tomada ficcional a partir do momento em que no lhe tiramos o flego, em que o deixamos respirar (ver adiante); e todo corpo filmado se nimba com uma aura de fico se no for restringido por um quadro espaotemporal demasiado sistemtico e rgido, se no for preso em uma vitrine. Ser preciso, para se colocar diante da fulgurante variedade dos habitantes do Brasil, abrir um catlogo e reduzir o gesto artstico sua consulta? A mesma questo se coloca para O fim do sem fim, de Beto Magalhes, Cao Guimares e Lucas Bambozzi (2004), que desenrola seu percurso de uma ponta outra do pas atravs de dez estados. Como caadores de snarks, os cineastas procuram a avis rara. Homens e mulheres que praticam ofcios curiosos, atividades

    15. Remeto ao meu artigo mes hroques cherchent corps rotiques, Voir et pouvoir, p. 356-366.

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    estranhas e obsoletas, aparecem para dar testemunho de um Brasil da margem, onde persistem as pequenas paixes, as manias inocentes, os biscateiros, tudo o que resiste sem fim quilo que o filme no nomeia, essa mundializao neoliberal que atingiu o Brasil bem antes de atingir a Europa de Thatcher e Blair. Esse filme , portanto, til. Como no lamentar o fato de que ele se limita frmula do magazine e no se arrisca mais a levar mais longe o encontro com esses seres parte, visto que estes nos so mostrados como ao mesmo tempo excepcionais e ameaados de extino? Vou me deter em uma outra dimenso desses filmes, sem dvida a mais forte: a filmagem da fala popular. Nos momentos mais intensos das entrevistas enfiadas como prolas, surge aqui e ali uma maneira de falar, um tom, profticos. Isso explcito no caso do iluminado que abre O fim do sem fim: ele apresenta a si mesmo como um profeta Eu sou, diz ele, o ps-popular mestre dos mestres!. Mas muitos daquelas e daqueles que se cruzam no mesmo filme ou nos filmes de Coutinho e de C. Grumbach partilham com ele, de forma menos delirante, essa inflexo proftica. As palavras so proferidas como se fosse a ltima vez, fala definitiva, quase messinica, dita, ou antes lanada, por algum que se sente acuado. Eu filmei a fala de todo tipo de gente, ricos e pobres, fortes e fracos, durante mais de vinte anos, tornando-me, em suma, um ouvido atento: tenho a impresso de ter observado, como efeito da prpria operao cinematogrfica, efeito analtico, que a fala se mostra no mais das vezes como frgil, embasbacada. Vejamos o caso de Samy Goromido, no entanto filmado, ele tambm, contra a parede em Les esprits de Koniambo (2004): sua fala crivada de dvidas, habitada por silncios, bem ao contrrio do impulso de invocao que parece convir a essa outra parte do mesmo trpico de Capricrnio. Os moradores de Copacabana, do morro da Conceio, de todo o Brasil, tm sobre o devir presente do mundo e de seu lugar uma fala no exatamente perfurada por suspeitas, no exatamente fendida por indeciso. Trata-se de comrcio com os deuses e a morte? No impossvel, se realmente se trata disso, que a palavra proftica e o jogo do cinema tenham pontos de contato. Reter sentido quando este se evapora em todos os lados, quando este desaparece. Como enquanto presente que o profeta se inscreve no filme, a palavra filmada torna-se tanto aquilo que

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    conjura quanto aquilo que anuncia. Vamos a Betim, cidade industrial vizinha a Belo Horizonte. Noite, carros lanados em uma cortina compacta de chuva, flashes dos faris de caminho, como o indefectvel clich ofuscante dos filmes de terror. Chegamos ao terreiro do pai Raunei Cacique. Dois ptios sucessivos, um coberto, acolhem aquelas e aqueles que vo participar, espectadores ou iniciados, do candombl desta noite. Pouqussimas velas quebram a escurido, aqui e ali: as chuvas incessantes fizeram a rede eltrica explodir. O terreno do primeiro ptio est inundado. Andamos dentro dgua. Quando a luz volta, em torno de meia-noite, estamos do outro lado, em uma grande sala onde a cerimnia acontece. No fundo, a porta que d para o cmodo proibido, protegida por uma cortina. Em volta, cadeiras que os ajudantes dispem a cada chegada de espectadores. Mas ficaremos de p por quase toda a noite. No centro, um poste cercado de prateleiras, estatuetas, lmpadas. Os dois amigos de Rosngela que nos levaram at l, Angelo Nonato e Natale Cardoso, so musiclogos e trabalham com os ritmos dos atabaques no candombl. Eles nos dizem que esse terreiro conhecido pela excelncia de seus tocadores de atabaque. No atabaque maior, Rogrio Patrcio desempenha o papel de maestro. ele que d o sinal das entradas, das rupturas, das modulaes. Os trs tambores se superpem segundo as linhas cruzadas de uma polirritmia extremamente complexa e mvel; ao mesmo tempo, os trs msicos batem com toda a fora sobre a pele dos atabaques. Combinao de violncia e sutileza. A potncia sonora dos atabaques em nada impede o desenvolvimento de uma delicada renda de contrapontos. Como no pensar na unio contraditria de desencadeamento e encadeamento dos sons no free jazz? Deflagrao e organizao. Ordem em plena desordem. A irracionalidade que se une ao clculo no gesto artstico. A msica do candombl atualiza, aqui e agora, em tempo real, uma luta sem fim entre ausncia e presena, transcendncia e imanncia, determinao divina proeminente e sua encarnao, provisria, precria, frgil, incontrolvel, no corpo habitado do iniciado. So mulheres que giram em torno da pilastra central. Suntuosamente vestidas como na Bahia, enormes, imensas, mammas imemoriais, elas deslizam como que ralentando em uma repetio obsessiva dos mesmos gestos, passos, movimentos giratrios, crculos e

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    figuras. A cerimnia em homenagem a Oxum, divindade das guas doces, que est sendo festejada (a chuva compareceu ao encontro marcado). Nessa noite, baixaram Ogum, o guerreiro, Oxssi, que escolheu o corpo do pai, Ians, empunhando a espada, tambm guerreira, e Oxal, o pai de todos, a paz. A paz, a guerra: velha questo. Combinao dos contrrios que se celebram em conjunto. Na passagem dos deuses que se abrigam nos corpos danantes, levantamos as mos, com as palmas frente, em sinal de abertura. O amigo musiclogo nos diz, sussurrando, que so os atabaques que lanam os tempos e os atos da cerimnia. O pai que comanda no terreiro e forma os discpulos no est ali toa. A msica determina a mise en scne. Uma batida diferente, um toque a mais, um ritmo quebrado de outro modo, e as danarinas mudam de sentido, ou seus gestos se aceleram, se interrompem. Que deuses viro esta noite ocupar os corpos a eles consagrados? So os atabaques que o dizem em sua lngua, e as frmulas cantadas em iorub pelo alab nada mais fazem do que repetir o que os tambores disseram, pois a msica ditada pelos prprios deuses em sua linguagem musical, e o que se ouve ressoar no couro dos tambores so as suas vozes. Quando as divindades baixam em suas adoradoras, comea o transe. um transe calmo, livre de qualquer histeria: o contrrio do clich. Ficamos surpresos com essa suavidade. As possudas deslizam, cada vez mais lentamente, de olhos fechados. Ficaram leves como um sopro. Duas ajudantes as acompanham, prontas para apoi-las em caso de desfalecimento. No interviro: apenas os atabaques irrompem; a dana, por sua vez, chama a ateno pela graa. Muitas vezes, ao longo daquelas horas, eu me perguntei como o cinema poderia registrar algo daquela doura, de um lado, daquela violncia, de outro, sem trair nem uma nem outra. O enquadramento, por si s, histeriza a cena: enquadrar, vitrinizar, intensificar. Seria preciso enquadrar tudo em plano aberto e fixo, eu dizia a mim mesmo. Ou, ento, filmar apenas os rostos extticos daquelas mulheres suavemente possudas, aqueles olhos fechados, aquela concentrao. Transdisciplinaridade: Csar Guimares havia organizado, paralelamente ao seminrio, uma srie de encontros em torno de alguns filmes, com alunos e professores das outras faculdades da UFMG. Houve debates muito envolventes nesses encontros16, lembro bem da discusso que se seguiu projeo de LAffaire sofri

    16. Mostrei Disneyland mon mieux pays natal (2002), de

    Arnaud des Pallires, aos filsofos; Close up (1990), de

    Abbas Kiarostami, aos literatos; LAffaire sofri (2001) aos juristas;

    La Vraie vie dans les bureaux (1993) aos pesquisadores das

    cincias da educao e do mundo do trabalho (estes ltimos filmes

    meus). Eles estavam descobrindo esses filmes, minhas proposies

    podiam lhes parecer novas, mas os debates se concentravam no

    essencial: anlise do sistema de escritura do filme, retorno dessa

    anlise s questes sobre o lugar do cinema no mundo atual.

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    na Faculdade de Direito. A pequena sala de projeo estava cheia. Estvamos comeando com mais de uma hora de atraso. Csar traduzia para mim as intervenes dos espectadores. Eles estavam ali, diziam, no apenas como estudantes e professores, mas como militantes. Como para Carlo Ginzburg, para eles as questes do direito no eram abstratas, e se encarnavam. Trabalhavam com moradores das favelas de Belo Horizonte, formando-os no tocante conscincia e reivindicao de seus direitos. Direito a moradia, a gua, a escola, a vias pblicas etc. Faziam isso no mbito da universidade, nos Plos Reprodutores de Cidadania. Era uma disciplina, um ensino, uma prtica didtica. Estvamos longe da rue dAssas ou de Dauphine.17 No dia seguinte minha chegada, Augustin e Rosngela haviam me levado casa de um de seus amigos, arquiteto, que mora no sublime arranha-cu todo ondulado, em curvas suaves, construdo em pleno centro de Belo Horizonte pelo jovem Oscar Niemeyer. Foi s no fim de minha temporada que entendi que aquele arquiteto, Paulo Dimas Menezes, tambm estava engajado em um programa de ao com moradores de favelas, voltado para a aduo e a gesto da gua. Trata-se, disse ele, basicamente de uma experincia de co-gesto, levada a cabo em acordo com os cidados que moram no prprio lugar dessas aes, segundo princpios de autonomia e mtodos de democracia direta. Seria antes um socialismo libertrio ou uma anarquia pragmtica, esclarece ele, que se prope a suplementar a ao pblica onde esta cruelmente insuficiente, por exemplo na questo das guas, objeto de um consenso entre os cidados de diferentes classes sociais, credos e nveis de educao, que geralmente se encontram, na poltica, em campos antagonistas ou concorrentes. Dito de outra maneira, onde o Estado e as diferentes formas de poder local e regional dividem e opem, a ao poltica cidad rene e agrega. Vejo nessa prtica extremamente pensada a conjugao do racional e do razovel que talvez faltasse aos fundadores da cidade. Ser que o cinema brasileiro se aproximou dessas experincias sociais e polticas? Espero que sim. No seria mais preciso juntar um feixe de encontros, mas sim acompanhar o desenrolar de uma ao em uma determinada durao narrar. bem verdade que na estrada da narrativa documentria um obstculo maior se ergue. Se as pessoas filmadas nos trs filmes citados no se tornam personagens de filme, no apenas porque

    17. O autor refere-se Universit Paris-II, ou Universit Panthon-Assas (freqentemente chamada Assas), e Universit Paris-Dauphine, dois dos mais tradicionais cursos superiores de direito na Frana (N.T.).

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    so impedidas pela frmula da sucesso de tipos de que falei acima: em cada um dos encontros que esses filmes ordenam, o corpo falante filmado cortado, recortado, retalhado, aparado. Esses cortes no corpo e na fala filmados so visveis enquanto tais. Mudanas bruscas, solavancos, faltas nfimas na imagem do corpo falante, ele renunciou continuidade que torna o corte invisvel e a montagem insensvel. H duas maneiras de montar a fala filmada, que na verdade so duas maneiras de pensar o gesto cinematogrfico. Pode-se montar a fala in com uma decupagem que autoriza continuidades espaotemporais lgicas. O que se atinge o efeito de continuidade. E, com isso, o como se (fico) de uma liberdade e de uma autonomia do corpo falante filmado. Pode-se tambm, como ocorre nesses trs filmes, cortar no interior do plano, da tomada, e dessa maneira marcar, visivelmente, que se trata de cortes. bem verdade que sempre se pode no ver esse golpes abertos e incisivos, ou no pensar neles. Pode-se ainda, como no meu caso, sofr-los. Por qu? Assinaturas do controle que o diretor retoma contra a livre associao da fala lanada, contra a liberdade de um tremor prprio do corpo falante filmado, esses cortes no plano me dizem que cortar um poder que se afirma como vontade de escolher para mim, para oferec-los a mim os melhores pedaos. Confisso de uma vontade de potncia, sem dvida; confisso de uma solicitude insuportvel em relao a mim, sim. Mas, e alm disso? Uma lgica se revela: a do melhor, do extra, no queremos perder nada. Manter as melhores rplicas, fazer de uma seqncia uma antologia dessas prolas. Tanto pior para o corpo, para a situao, para a prpria cena. Tanto pior para os restos onde se refugiam o real, o impensado, o resduo. Pois cortar a fala in , evidentemente, cortar na representao do corpo, virtualiz-lo ainda mais, trat-lo como uma figura disposio. atribuir fala uma espcie de potncia extracorporal, encarn-la para logo desencarn-la passar do elo ao Verbo e do Verbo religio. tambm recusar fala filmada aquela materialidade significante que a faz ser, no cinema, no apenas sons, mas imagens: a fonao uma mobilizao visvel do corpo. Cortada no plano, a fala mostrada como algo que transcende o corpo que a porta; esse corpo, a cada instante suscetvel de ser desfeito e literalmente de-composto por um salto de si mesmo para si mesmo, despojado de qualquer durao, sopro, respirao.

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    Essa forma de montagem acentua, intensifica, reenquadra, disciplina. Ela realiza o sacrifcio do corpo no filme, que tambm sacrifcio do tempo do corpo e da fala, esse tempo que se abre para a outra cena. A fala escolhida, calibrada, controlada no ps-corte da montagem marcada, como tal, por uma vontade de potncia e de ordem, exprime, desesperadamente, o pouco de errncia que resta agarrada aos passos do profeta. Recorte, citao, exemplificao do Verbo. Ordem e progresso? Augustin de Tugny, arquiteto de interiores e professor de histria da arte, me convida para conduzir uma oficina com o grupo de trabalho que se rene regularmente na UFMG. Trata-se de um ateli de escrita, cito, em torno da necessidade de superar a ordem disciplinar do pensamento moderno para repensar uma cincia que no se elabore sobre o princpio de excluso dos saberes outros. Vou dar um depoimento sobre um desses saberes outros, o de uma prtica de cinema documentrio, em torno do lugar do espectador. O arquiteto Paulo Dimas tambm participa desse grupo, regido por Cssio Higa, gegrafo. Com eles, cerca de dez mulheres, gegrafas, mdica, psicloga, engenheira, publicitria, sociloga... Um livro est em pauta: Subverso da ordem disciplinar. Nem tudo est perdido. Eu me pergunto se as duas esttuas, mrmore e murta, poderiam ser apenas uma. Picasso dizia, sorrindo, que convinha, sim, imitar a natureza como Aristteles exigia mas fazendo como a rvore: deixar crescerem seus galhos e se cobrir de folhas. No primeiro domingo de minha temporada, eu havia acompanhado Rosngela, Augustin e seu filho Constantin a uma festa de Congado, em um dos bairros da periferia de Belo Horizonte, Olhos dgua, encarapitado em um ponto alto, e que no uma favela (tem ruas e lojas), mas cuja populao no muito diferente das que vivem nessas reas. Ali, as peles negras dominam amplamente. Festejava-se Nossa Senhora do Rosrio com uma reunio de vrios grupos de percusso, danarinos e danarinas, vindos de outros bairros ou cidades do entorno, todos uniformizados, com seus estandartes e suas insgnias, e cada um com seus ritmos e toques particulares. A festa comeava com uma orao Virgem em uma minscula capela onde o Rei e a Rainha do cortejo esperavam, prestando-se de bom grado s fotografias18, ele um ancio descarnado, ela uma jovem vestida de branco e com diadema na cabea, ambos negros e radiantes

    18. Uma amiga de Rosngela, Juliana Alvarenga, artista plstica, filmou toda a festa.

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    de alegria. Em seguida seriam coroados no cmodo principal de um casebre onde no cabiam mais do que cinco pessoas e conduzidos, em procisso atrs da esttua da Virgem, escoltados por oficiais com espadas de madeira, por cima da estrada, ao longo da ferrovia, entre as casas baixas feitas de tijolos de cimento, at a igreja empoleirada no alto de uma colina, em um asilo para idosos toda a caminhada, e as danas, ao som incessante dos tambores. Seguamos o grupo amigo do Congo Velho do Rosrio, conduzido por Damio dos Reis, impressionantemente digno e vontade em seu terno branco, logo frente das blusas azuis das danarinas. Estvamos em terra catlica. Haveria uma missa rezada por um padre (branco). Mas os tambores diziam outra coisa. No eram os ndios de alma inconstante, eram os filhos dos escravos libertos que celebravam com sua msica a frica perdida. A missa foi um momento de enfrentamento magnfico: aos cnticos salmodiados pelo oficiante e pelos fiis vinham se opor, em irresistveis ondas sonoras, o bater dos tambores. Estava claro para mim que havia ali duas leis, duas fs. A marca africana estaria se perdendo, dizem meus amigos, ou no mnimo perdendo terreno diante da ofensiva incrivelmente poderosa violenta das seitas evanglicas e batistas de inspirao e financiamento norte-americanos. Desde sua fundao, Belo Horizonte um imenso canteiro de obras. Os arranha-cus ali brotam, envelhecem, e so substitudos. Dois desses grandes edifcios erguidos no centro da cidade so um gigantesco centro comercial, o Diamond Mall, e a Igreja do Cristo-Rei, que ocupa um quarteiro inteiro. Sntese genial, mesmo que tardia, esse Cristo Rei que condensa em si o poder e a f. Basta, alis, ligar a televiso no quarto do Quality para ver, entre os canais comerciais, locais e nacionais, as sete ou oito emissoras que mostram ininterruptamente multides imensas reunidas diante de um altar onde, de microfone em punho, o televangelista do momento os incita a confessarem seus pecados e a reconhecer o quanto a nova f que os habita cura tanto seu infortnio moral quanto o financeiro. Sob as duas espcies do esprito e da matria, a riqueza lhes prometida. Os deuses do candombl que falam pela voz dos atabaques no podem realizar tais proezas. E como os escravos deportados da frica extraam o ouro e o diamante das minas do estado em benefcio do capital ento nascente, seus descendentes acumulam hoje essas riquezas

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    nos altares dos templo, como quem faz um investimento a longo prazo. Todas essas multides imprensadas sob as cmeras de televiso so negras. Os que seguram o microfone (e os cordes da bolsa) seriam ainda, com bastante freqncia, brancos. Como eu no via muitos estudantes negros na UFMG, a no ser alguns poucos nos cursos de direito e de cincias da educao, e os negros com quem eu cruzava pareciam quase sempre estar trabalhando, e no consumindo, na lanchonete, a questo acabou por se impor. Foi em Braslia que tivemos a resposta. Jos Jorge de Carvalho nos convidou, Ginette Lavigne e eu, para uma degustao de cachaas. A cidade de Niemeyer havia nos parecido deslumbrante de simplicidade, de graciosidade. A catedral , aos meus olhos, a mais bela da Criao, flutuamos nela, como os seus anjos suspensos, em uma luz interior que um perfeito ato de f, e no me surpreende que seja obra de um comunista. Jos Jorge participa ativamente da luta das organizaes negras por uma igualdade de fato (e no somente de direito), especialmente no que concerne ao acesso s universidades (os negros representam algo em torno de 47% da populao total, mas menos de 10% dos estudantes, menos de 1% dos quadros de formao superior e dos dirigentes polticos).19 O sistema universitrio brasileiro, muito complexo, muito seletivo (pelo mrito e pelo dinheiro) a chave da produo, ou antes da reproduo, das elites do pas. Essas elites so majoritariamente brancas, em um pas onde o credo proclamado o culto da mestiagem. Nas praias, sim; nas escolas, no exatamente; e muito menos nos belos bairros de Belo Horizonte, onde os negros so, no mais das vezes, porteiros, e no moradores dos prdios. Em compensao, eles moram nas favelas, numerosas, imensas, que fazem um cinturo negro em torno da cidade branca. Vemos os mais robustos deles passando, de dia, noite, de madrugada, esfarrapados, empurrando ou puxando as fabulosas charretes onde so empilhados os papeles que, pouco antes, embalaram os bens de consumo destinados s classes mdias, atualmente americanizadas. Que haja excees, eu no duvido. E mais misturas do que aparece no centro da cidade. Em cinco semanas, pude v-lo algumas vezes. Havamos nos encontrado para jantar, com Ruben e Csar, no bar do Careca, no bairro perifrico de Cachoeirinha. Estvamos comendo uma vaca atolada, acompanhada de algumas Bohemias. Chovia a cntaros. Havia

    19. Para saber mais sobre o assunto, veja-se o livro-dossi de Jos Jorge de Carvalho, Incluso tnica e racial no Brasil (Atar Editorial, So Paulo, 2005). Essas cifras me remetem ausncia quase completa de dirigentes e de representantes polticos, na Frana, oriundos da emigrao e que tenham nomes rabes ou africanos. Cf. Nos deux marseilleises e Rves de France Marseille (2002), na srie Marseille contre Marseille.

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    um jogo na televiso ligada no fundo do salo, captando a ateno de todos os convivas, negros e brancos misturados, como na tela. E quando as luzes se apagaram, trouxeram velas. A tev estava desligada. Bebamos ao futuro, que nenhum de ns podia mais ver claramente. Em outra ocasio, havamos ido com um dos alunos de Rosngela, Gelson Luiz da Silva, violonista, cantor, compositor e poeta, a algum lugar perdido da cidade, ouvir samba no bar do Agostinho. Volta no tempo rumo aos anos 50. Um violonista negro, Joo Carvalho, chamado Trisquei Sete Cordas, professor de Gelson, um acordeonista branco de nome italiano, uma cantora negra, Maria Antnia. O samba triste e tocado sem efeitos, sem movimentos, ou quase, com os tempos apenas acentuados, d uma impresso deletria, de uma saudade impossvel de conter. Exatamente a mesma que sinto hoje ao lembrar de Belo Horizonte.

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    Referncias

    CARVALHO, Jos Jorge de. Incluso tnica e racial no Brasil. So Paulo: Atar Editorial, 2005.

    COMOLLI, Jean-Louis. Voir et pouvoir - Linnocence perdue: cinema, tlvision, fiction et documentaire. Paris: Verdier, 2004.

    LINS, Consuelo. O documentrio de Eduardo Coutinho: televiso, cinema e vdeo. Rio de Janeiro: JZE, 2004.

    VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstncia da alma selvagem. So Paulo: Editora Cosac Naify, 2002.

  • (IMAGEM)

  • claudia mesquita

    Inventar para sugerir1: notas sobre Santo forte, de Eduardo Coutinho

    Doutora em Cincias da Comunicao pela ECA-USPProfessora do curso de Cinema da UFSC

    DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 5, N. 2, P. 32-55, JUL/DEZ 2008

  • Resumo: Meu esforo neste ensaio trabalhar a articulao delicada entre tema e forma (escolhas de abordagem e estilo de composio) em um filme que um divisor de guas: Santo forte (1999), de Eduardo Coutinho. Ambiciono, neste movimento, tocar tambm a multiplicidade de questes implicada na relao entre o documentrio, a pesquisa em cincias humanas e uma temtica especfica: a religio no Brasil. Com base na inveno de um recorte peculiar e de um mtodo (priso espacial e abordagem quase exclusiva via entrevistas), o filme alcana a sugesto de uma trama complexa (espcie de objeto invisvel) que inclui padres culturais e narrativos, de imaginrio e de modos de ser, entrevistos em narrativas em que religio assunto de conversa.

    Palavras-chave: Eduardo Coutinho. Documentrio. Religio. Narrativas. Dilogo.

    Abstract: My endeavor in this essay is to work out the subtle connection between theme and form (approaching choices and compositional style) in a sea change movie: Santo forte (1999), by Eduardo Coutinho. By doing that, I also aim at touching the plethora of questions involved with the relation between documentary, human sciences research, and the specific topic of religion in Brazil. Based upon the invention of a peculiar selection and a method (spatial prison and approaches almost exclusively via interviews), the movie reaches the suggestion of a complex weave (a kind of invisible object) that includes cultural and narrative patterns, as well as patterns concerning the imaginary and the ways of being, suggested by narratives in which religion is the topic of conversation.

    Keywords: Eduardo Coutinho. Documentary. Religion. Narrative. Dialogue.

    Rsum: Cet essai a pour but de travailler larticulation dlicate entre le thme et la forme (choix dabordage et de style de composition) dans un film qui a marqu son poque: Santo forte (1999), de Eduardo Coutinho. Je veux, dans ce mouvement, toucher aussi la multiplicit de questions qui est implique dans la relation entre le documentaire, la recherche en sciences humaines et une thmatique spcifique : la religion au Brsil. Ayant comme base linvention dune coupure inhrente et dune mthode (prision spatiale et abordage presque exclusif au moyen dinterviews), le film prsente une trame complexe (espce dobjet invisible) qui inclut des patrons culturels et narratifs, de limaginaire et de manires dtre, entrevus dans des rcits o la religion est sujet de conversation.

    Mots-cls: Eduardo Coutinho. Documentaire. Religion. Rcits. Dialogue.

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    Pois os tempos mudam (...). Os mtodos gastam-se, os estmulos deixam de surtir efeito.Aparecem novos problemas, exigindo novos processos. A realidade se altera, e para represent-la devemos alterar os processos de representao. Nada surge do nada, o novo nasce do velho, mas nem por isso deixa de ser novo.

    Bertolt Brecht, 1938

    talvez porque quando algum conta uma histria (seja ela a mais banal ou a mais suja), esse algum torna-se, por um momento, o senhor do filme. No apenas porque ele d o tom com seus lbios, mas porque se d o tempo de aceder (s ele conhece o fim) a uma certa satisfao (...). O prazer de contar uma histria no mais prerrogativa do cineasta, ela se dissemina, partilhada.

    Serge Daney, sobre Le Thtre des matires (1977), de Jean-Claude Biette

    Poucos meses separaram, em 1999, o lanamento de F (Ricardo Dias) daquele de Santo forte (Eduardo Coutinho). Era um momento de retomada da produo no cinema brasileiro, e parecia uma coincidncia significativa a apario de dois longas-metragens documentais que tematizavam, de modos bem distintos, a experincia religiosa. No que a pauta fosse nova. Ao contrrio: certamente presente desde os anos 60, com a emergncia do documentrio crtico em tempos de Cinema Novo, a temtica religiosa nunca sara totalmente de foco, mantendo-se, com diferentes recortes e abordagens, como problema recorrente nos documentrios sociais parecia mesmo se tratar, para os cineastas, de um tema especialmente bom para pensar a sociedade brasileira.2 Podemos at nos perguntar, de sada, se algo do impacto de Santo forte, quando de seu lanamento, h dez anos, deve ser atribudo sua temtica. Sem dvida havia no filme a proposio de uma forma lapidada e consciente; mas, com ela, Santo forte sugeria traos da religiosidade (sentimentos, crenas e prticas) numa favela do Rio de Janeiro em fins do sculo XX caractersticas que, para mim, espectadora de classe mdia no religiosa, produziam o impacto de revelaes. Desdobrando perguntas,

    1. Empresto essa expresso da anlise que empreendeu Antonio Candido do romance Grande serto: veredas, de Joo Guimares Rosa (O homem dos avessos). Comparando Rosa a Euclides da Cunha, Candido diz que a atitude do primeiro em relao obra de arte que em algum nvel busca representar a realidade de inventar para sugerir; a do segundo, de constatar para explicar (Rosa, 1994: 79). Este ensaio uma verso modificada e reduzida de um captulo de minha tese de doutorado, Deus est no particular, defendida na Escola de Comunicaes e Artes (ECA/USP) em maio de 2006. Agradeo a Ismail Xavier, orientador do trabalho, pelo apoio, incentivo e inspirao; e a Leandro Saraiva, pela amizade e interlocuo constantes.

    2. Empresto a idia de Eduardo Coutinho, que, citando Lvi-Strauss, afirmou em entrevista que religio e comida so temas bons para pensar o Brasil (COUTINHO, 1999).

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    para lembrar Brecht: seriam essas revelaes produto de uma forma cinematogrfica nova, de uma nova maneira de indagar, olhar, ou representar o mundo? Ou estariam postas tambm por um momento novo da sociedade e da religiosidade no Brasil (que exigia, por seu turno, renovadas formas de aproximao e representao)? Sem querer buscar no cinema documental, de modo esquemtico, um espelho da conjuntura, seria ingnuo tambm recusar o tema e sua historicidade. Assim, meu interesse pelo jogo entre documentrio e religio, a partir de Santo forte, deve tambm indagar o movimento do mundo, que no explica o filme, mas o atravessa, mesmo que a contrapelo. Num lugar delicado, espcie de entre-dois entre as escolhas estticas e a sugesto da experincia religiosa de pessoas reais, numa localidade , busco situar esta anlise.

    ***

    Santo forte (1999) um documentrio de significativa radicalizao esttica, se considerarmos o percurso de Eduardo Coutinho como realizador de filmes documentais, iniciado no cinema com Cabra marcado para morrer (1984). Marco inaugural de seu trabalho recente, pode ser descrito, sinteticamente, como um filme minimalista, que logra produzir sentidos com poucos elementos e procedimentos recorrentes, de modo a construir na montagem uma forma rigorosa e mnima, erigida sobre supresses. Realizado em Vila Parque da Cidade, na zona sul do Rio de Janeiro, em 1997, o filme compe-se basicamente da montagem de entrevistas com 11 moradores da favela, que narram experincias religiosas e mgicas, e enunciam pensamentos sobre a religio. O cerne dessa radicalizao, portanto, , de um lado, a filmagem praticamente exclusiva de entrevistas; a nfase na palavra falada, enunciada nas conversas entre diretor e sujeitos filmados. A essa valorizao do personagem como fala, performance narrativa, corresponde, de outro lado, uma minimizao, na montagem, dos recursos narrativos, bastante reduzidos.3 H, como escreveu Ismail Xavier (2003: 51), uma identidade radical entre construo de personagem e conversa, outros recursos sendo descartados.

    3. Opo que se observa fortemente a partir de

    Santo forte, podendo ser estendida (com variaes) aos documentrios posteriores de

    Coutinho, como Babilnia 2000 (2000), Edifcio Master (2002),

    Pees (2004) e O fim e o princpio (2005). A partir de Jogo de cena (2007), soma-se a tal privilgio

    fala uma guinada reflexiva, tornando-se dominante uma problematizao do prprio

    mtodo

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    O filme se inicia com um prlogo que introduz o espectador a seu projeto esttico.4 Trata-se da primeira apario do personagem Andr. Nele esto presentes todos os elementos e procedimentos (advindos do trabalho de filmagem ou de montagem) que se tornam padres em Santo forte. Enumero-os a seguir: 1. Cada sujeito, em regra, corresponde a uma seqncia no filme: um espao distinguido (quase sempre o da casa), um tempo bem demarcado em sua estrutura. 2. Os sujeitos filmados no tm suas falas montadas em paralelo, compondo seqncias temticas, nem tm contato entre si, no decorrer do filme. 3. O filme no apresenta salvo por duas excees registros de manifestaes institucionalizadas e coletivas da religio; toda a experincia que ele contm aquela narrada pelos sujeitos filmados; Santo forte apresenta, portanto, as performances de narradores. 4. Para alm da situao majoritria da entrevista, h dois padres de planos intrusos, alheios atuao dos sujeitos filmados, includos na montagem: planos fixos que retratam estatuetas de entidades da umbanda (santos); e planos fixos de cmodos no interior da casa de alguns entrevistados, sem presena humana (ambientes onde supostamente teria acontecido alguma comunicao religiosa, segundo as narrativas). 5. No h narrao over; cenas da equipe em campo, do prprio diretor e sobretudo sua voz na interlocuo com os sujeitos caracterizam a nfase no momento da filmagem, numa proposta manifesta de filme como resultado de encontros, cuja enunciao elaborada a quente, minimizando o recurso a procedimentos de totalizao, interpretao ou criao posterior de sentidos (na montagem). O nico contraponto so os planos intrusos, que tambm operam como elementos de conexo entre os diferentes narradores. Feita essa apresentao dos padres de enunciao, uma questo inicial poderia ser posta: qual o objeto de Santo forte? Seria difcil afirmar que se trata de um filme sobre a religio, entendida como conjunto de manifestaes concretas, preexistentes, disponveis para o registro. Por outro lado, composto com narrativas de poucos indivduos, no se trata de um filme exclusivamente voltado para histrias individuais ou experincias singulares (como, mais fortemente, Edifcio Master),

    4. Como escreve Consuelo Lins (2004: 104), esta efetivamente a seqncia de abertura, contendo uma espcie de condensado do que veremos ao longo do filme, como se Coutinho quisesse colocar logo de sada para o espectador, o mais abertamente possvel, as regras do seu jogo. A forma de Santo forte, construda pela equao de poucos elementos, no ser totalmente padronizada ou seriada

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    uma vez que as conversas gravitam em torno do grande tema, em muitos sentidos compartilhado: a vivncia religiosa. O filme, em resumo, produz sentidos a partir das conversas entre uma equipe de cinema e alguns moradores de Vila Parque da Cidade, tendo a religio como assunto principal. Mas, cabe-nos examinar: que sentidos so esses? Que experincias Santo forte logra sugerir, e como? De que maneira sua forma expe e sublinha contedos (religiosos, existenciais, morais) produzidos nas narrativas? Que imaginrio religioso aparece em Santo forte? Diferentemente de Boca de lixo (1992) ou Santa Marta (1987), trabalhos anteriores de Coutinho, Santo forte no procura criar, visual ou tematicamente, uma comunidade de experincia.4 Se h a definio do recorte espacial como condio do mtodo (de maneira a aprofundar o olhar e evitar que a escolha dos entrevistados siga critrios de tipicidade ou representatividade), Coutinho no refora, na montagem, a noo abstrata de grupo social que partilha experincias e padres culturais. H apenas uma seqncia, a segunda, que opera no sentido de uma contextualizao mais clssica. De modo geral, delegado a ns, espectadores, o trabalho de relacionar as vivncias e modos de narrar dos personagens se quisermos e pudermos. A cultura religiosa comum deve ser percebida, em suma, na radical afirmao da percepo, vivncia e expresso individuais. Mas, embora no reduza as narrativas individuais (tratando-as como sintoma ou resduo de caractersticas estruturais do campo religioso, por exemplo), Santo forte no s parte de um enfoque circunscrito a uma localidade, como relaciona as narrativas dos sujeitos filmados, mediante discretos (mas decisivos) procedimentos. Por meio deles, umbandistas declarados, ex-umbandistas que abraaram uma crena evanglica mas continuam afirmando a existncia de exus e pombagiras, e tambm catlicos no praticantes cujas histrias incluem a presena de santos e crenas da umbanda tm suas histrias relacionadas. Os planos intrusos pontuam presenas recorrentes nas narrativas de todos, figurando traos de um plano simblico compartilhado (espcie de objeto invisvel), que as histrias vo pouco a pouco tramando. H que investigar, portanto, o que o filme sugere com o conjunto de suas escolhas. Partindo da descrio e anlise detida de alguns segmentos (de modo a endossar, na abordagem deste

    4. Empresto a expresso do texto O narrador: consideraes

    sobre a obra de Nikolai Leskov, de Walter Benjamin (Brasiliense,

    1985), que a utiliza para caracterizar situaes em que o narrador de histrias e seus

    ouvintes partilham experincias comuns.

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    ensaio, a autonomia conferida pelo diretor a cada seqncia/personagem), tentarei cercar o objeto de Santo forte, bem como investigar as hipteses (ainda que oblquas, ainda que discretas) que o filme produz sobre a experincia religiosa dos moradores de Vila Parque da Cidade.

    ***

    Andr, o primeiro entrevistado, aparece sentado na sala de sua casa. Conta uma histria cujos personagens so ele mesmo, sua esposa e algumas entidades da umbanda. Marilena mdium, incorpora espritos; Andr conta do momento em que descobriu essa caracterstica da esposa: numa mesma noite, Marilena recebeu dois de seus guias, a Pombagira Maria Navalha e a Vov. Andr conta bem, descrevendo pormenores e interpretando os personagens envolvidos na cena vivida, que reconstitui sozinho. Quando aparece Maria Navalha, por exemplo, incorporada na esposa (toda esquisita, toda torta), ele assume o papel da Pombagira e fala como ela, em discurso direto: Eu vou te matar. S que ela no quer deixar. O que que voc quer perder? Quer perder uma perna, quer perder um brao?. E volta ao papel de Andr no dilogo com a entidade, incorporada em Marilena: Uai, eu no fiz nada de errado! Por que que vai tirar um rgo meu assim?. Quando a Pombagira entra em cena na narrativa, o filme justape entrevista um plano breve em que se v uma estatueta de gesso, filmada contra fundo neutro. Um pouco depois, a vez da apario da Vov, tambm relacionada, pela montagem, ao plano de uma imagem do santo.5 Quando Andr enuncia os conselhos que lhe deu a Vov, outro plano fixo justaposto ao relato: vemos o ambiente de um quarto de dormir sem janelas e com paredes sem reboco, iluminado pelo abajur posicionado ao lado da cama. O quarto est vazio, no h ningum no ambiente. Na banda sonora, silncio. Esse tipo de plano, mais ambicioso do que as imagens de santos, no prope uma representao (convencionada) para o que no visvel, mas parece recolocar o enigma. Consideradas pequenas variaes, seu carter interrogativo e aberto se repete a cada apario. Esse primeiro segmento estrategicamente posicionado apresenta, alm dos padres formais de Santo forte, outros

    5. Entre os 11 personagens de Santo forte, oito tero imagens de santos justapostas s suas entrevistas. Esse procedimento aparentemente pouco ambicioso e com propsito ilustrativo ser um dos raros elos a relacionar os personagens (afora a evidncia de que partilham um local de moradia, como fica claro na segunda seqncia).

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    traos que cabe apontar. Em primeiro lugar, de forma e contedo narrativos (refiro-me, aqui, s narrativas dos sujeitos filmados). A performance de Andr limita-se narrao de uma histria. Ao contar, ele encena os dilogos entre os personagens envolvidos. Podemos dizer que quase tudo se reduz a conversa: entre Andr e Marilena, entre Andr e as entidades. A conversa com o diretor do filme provoca o recontar de outras conversas vividas. Conversas dentro de conversas. Esse intenso dialogismo ser uma das marcas de Santo forte. Andr conta que testemunhou uma incorporao e dialogou com as entidades que baixaram em Marilena. O narrador, portanto, conta uma histria umbandista6 no seu retorno, em outro segmento do filme, ele se dir catlico apostlico romano. Duas premissas que da podemos extrair: 1) O filme no aposta na fala sobre a religio como proselitismo ou afirmao doutrinria, mas como narrativa casos que recriam vivncias e ajudam a significar o dia-a-dia; 2) Santo forte est interessado exclusivamente na religiosidade subjetiva, nas vivncias individuais e na maneira como os sujeitos representam a presena do sobrenatural em suas vidas (no na religio como imagem objetiva, capturada em manifestaes institucionalizadas ou rituais coletivos). Mais at: nada existe fora da narrao, produzida em funo da presena da equipe de filmagem: ausente o narrador Andr, o ambiente da casa, espao para sua performance e lugar da cena que reconstitui e interpreta, aparece vazio em silncio.7 No decorrer do filme, veremos que essas imagens de cmodos empobrecidos so tambm coerentes com a religiosidade manifesta por quase todos os sujeitos (transcorrida fora de instituies de culto, no tempo do cotidiano e no espao da casa), endossada pela abordagem de Santo forte (que investe em afirmaes, vivncias e performances subjetivas expressas em entrevistas individuais). A doutrina umbandista no transmitida por Andr mediante a invocao de saberes especiais, de livros sobre o assunto ou de dogmas enunciados de forma rigorosa e genrica. Ela apresentada mediante a dramatizao de uma conversa que teve com a Vov (o santo) que baixou em Marilena, sua esposa, numa noite prosaica de sono. Tudo se encerra em conversas, que Andr dramatiza conversando com Coutinho. H muito de vivencial, informal e no mediado nessa forma de interao com as pessoas e com os santos. Construindo-se via conversa, olho no

    6. A moral da histria institucionalmente umbandista,

    conforme conselho final dado pela Vov: por ser mdium, Marilena deve se iniciar no

    santo, comparecer a um centro esprita, para controlar a

    presena dos espritos em sua vida e, assim, evitar morrer

    louca.

    7. A leitura mais corrente para os planos vazios, estimulada

    por Coutinho, v neles sugesto da intangibilidade da comunicao com os espritos. Nessa pequena cena aberta

    pretender-se-ia, assim, uma reposio do mistrio, a ser imaginado e preenchido pelo

    espectador. o que sugere Carlos Alberto de Mattos: Nessas

    tomadas impactantes, ele refora o mistrio do invisvel.

    Parafraseando Wittgenstein (Sobre o que no se pode falar,

    deve-se calar), est a sugerir: Aquilo que no se pode ver no

    se deve mostrar (MATTOS, 2003: 70).

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    olho, o filme de Coutinho parece endossar um modo interpessoal de lidar com o mundo, baseado na experincia e familiar para os sujeitos entrevistados.8 Andr catlico, mas conta uma histria umbandista e tem imagens de santos da umbanda justapostas a sua entrevista. Outras pessoas estas sim declaradamente umbandistas tero suas falas relacionadas a imagens do mesmo padro, no decurso do filme. Pelas histrias, trama-se pouco a pouco um enredado universo de referncias simblicas e culturais, um repertrio narrativo, que se manifesta no apenas no contedo das histrias, mas na maneira de narrar: conversando. Nesse repertrio, independentemente da crena que se professe (ou que no se professe), os espritos geralmente santos e orixs da umbanda aparecem na vida cotidiana, interagindo com os homens, com quem travam dilogos coloquiais. Espritos domsticos, visitam a casa e prescindem do espao coletivo de culto para se manifestar.9

    ***

    A segunda seqncia de Santo forte , em relao ao conjunto, bem peculiar. A seu modo informativa, expe a circunstncia de realizao, o recorte espacial, a atuao da equipe de filmagem e, atravs de falas mais curtas, uma espcie de senso comum religioso em Vila Parque da Cidade , reportando um solo cultural compartilhado (e, como esperado, sincrtico), de onde o filme nos encaminhar para as entrevistas em profundidade com seus poucos personagens. Ela explicita, em resumo, a moldura na qual o experimento do filme ser desenvolvido. No prlogo, o filme nos lanara no interior da sala de Andr. Entramos nesse espao rigorosamente privado sem qualquer mediao: sem saber, por exemplo, onde essa casa est situada. L dentro, ouvimos histrias de intimidade, casos pessoais. apenas na segunda seqncia que ser feita a mediao entre espao privado e pblico, apresentando Vila Parque da Cidade e introduzindo a temtica a que o filme parece visar. O tema explicitado a partir da cena pblica (imagens de arquivo da missa rezada pelo Papa no Rio de Janeiro em 5 de outubro de 1997), e o retorno para o espao privado feito atravs da interveno mostrada em cena da equipe de cinema. H, assim, uma espcie de antecipao, que estabelece uma hierarquia: a primeira

    8. Na umbanda, os santos (espritos desencarnados) incorporam em seus cavalos para conversar com os vivos: aconselhar, receitar, prescrever frmulas e tabus. A relao entre dois, olho no olho, pessoal: o indivduo tem obrigaes religiosas centradas na sua relao com o santo, ditadas pela reciprocidade; o santo incorpora para se relacionar com outros indivduos necessitados de conselho ou de ajuda. Essa relao de pessoa para pessoa se repe na histria de Andr. Ele conversa de igual para igual com os espritos que baixam em Marilena. O dilogo o termo de contato e comunicao, a ponte com o sobrenatural. Nas narrativas, reconhecido ao indivduo, portanto, um papel ativo na relao com seres no terrenos.

    9. Como no perceber (pela religiosidade domstica e pela presena de entidades no cotidiano) semelhanas com o culto aos santos no catolicismo popular? Para uma introduo ao tema, o melhor caminho oferecido por Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973).

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    seqncia, com Andr, antecipa as regras do jogo flmico, antes mesmo da introduo ao lugar, ao momento de realizao e ao tema (que viriam, convencionalmente, primeiro). O cinema faz seu jogo, decisivo na maneira como a temtica ser filtrada e composta. Aps as imagens curtas reportando a presena do Papa, planos areos introduzem o recorte eleito pelo documentrio: vemos Vila Parque da Cidade de fora, numa area que investiga a superfcie do morro, em movimento. Na banda sonora, a continuao da reza da multido que acompanhava a missa do Papa (uma ave-maria) prope continuidade entre os dois espaos, como se o ethos catlico costurasse distintas localidades e grupos sociais, pairando sobre toda a cidade, sobre toda a sociedade.10 Adentramos o espao da favela com a equipe, que se desloca pelo morro, p no cho e som direto. Nada de narrao ou letreiros: as primeiras informaes sobre o lugar nos so transmitidas numa conversa entre Coutinho e Vera, personagem do filme e guia da equipe no local. Aps a chegada a uma casa, passa-se a uma pequena srie de depoimentos. So aparies breves (s um dos sujeitos filmados, Braulino, reaparecer no filme para uma entrevista em profundidade), relacionadas pela temtica e situao comuns: todos assistem missa do Papa na TV e conversam a respeito com Coutinho. Seu Braulino, por exemplo, diz timidamente que catlico mas tem seu lado esprita; incorpora alguns pretos velhos, mas prefere no avanar neste assunto. Helosa diz que esprita, mas que na abertura de seu terreiro reza vrias oraes catlicas; est contente de ver o Papa e receber sua beno pela TV, e critica o pessoal da Universal, que andou dizendo que a presena do Papa tudo iluso. Vanilda canta com Roberto Carlos (na televiso) e conta que fez uma promessa enquanto assistia missa do Papa: foi direto a Deus (no passou por nenhum santo) para solicitar a graa de ter um filho. Ao menos trs contedos centrais a aparecem: o sincretismo e a relao entre catolicismo e religies afro-brasileiras, vividos pelos fiis como complementaridade pacfica; a presena desestabilizadora da Igreja Universal do Reino de Deus e de outras neopentecostais que, como escreveu Regina Novaes, introduzem novas interpretaes sobre os acontecimentos da vida, interferem sobre as disputas entre o bem e o mal e colocam outra escolha no campo de possibilidades de

    10. Escreve Consuelo Lins sobre esta introduo seqncia: So imagens rpidas, feitas

    pela televiso, e esto ali para marcar a nossa base religiosa.

    com esse catolicismo oficial que as religies presentes no filme

    necessariamente se relacionam (LINS, 2004: 105).

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    Vila Parque da Cidade (2003: 81-82); e a evidncia da casa e do cotidiano como espao e tempo do sagrado, lugar de relao direta com os espritos, santos e deuses, dispensando a mediao de especialistas, o tempo do ritual ou a presena em espaos pblicos de culto. No retorno ao privado, portanto, no h apenas a apropriao domstica do que se observa na cena mais ampla (o ritual catlico de massas), mas a introduo de novos contedos e novas prticas. No por acaso, a seqncia est emoldurada por dois planos significativos: uma area externa que traz a primeira vista de Vila Parque da Cidade; um plano geral da cidade do Rio de Janeiro, vista de dentro (do morro), que faz a transio entre este segmento e o prximo. O plano areo, de fora, era comentado por uma ave-maria gerada noutro contexto; o plano de transio, visto de dentro, som ambiente, inserido aps uma srie de curtos depoimentos em que se constata, no mnimo, a no-exclusividade do catolicismo entre as opes religiosas dos moradores do lugar. Adentramos um universo, entramos em suas casas. De dentro, pensemos como o filme sugere os seus mistrios. Antes, um aspecto que cabe indicar: a religio domstica comporta efetivamente uma nova (mas nem to nova) mediao: a da televiso, que traz para dentro de casa a missa do Papa, ritual da religiosidade brasileira oficial assistido no filme por catlicos apostlicos romanos que praticam a umbanda mas, de modo geral, no freqentam mais terreiros. na televiso que veremos as poucas imagens de cultos e rituais coletivos mostrados em Santo forte, e comentados pelos sujeitos filmados. visvel, nas estratgias do filme, uma aposta na apropriao privada dos rituais pblicos coerente com o movimento geral de privatizao da experincia religiosa que acaba por aparecer de modo significativo em Santo forte.11

    ***

    O espao de dona Thereza o quintal de sua casa. Ela aparece sentada numa cadeira de vime, sob um varal de roupas sustentado por um bambu. Ao seu lado, h uma mesinha/jirau de madeira; ao fundo, v-se uma casa de alvenaria, sem reboco, com a porta entreaberta. Dona Thereza comea seu relato, instada por Coutinho, mostrando as pulseiras no prprio brao: Cada

    11. Num momento de (ainda) incontestvel hegemonia catlica (1968), Maria Isaura Pereira de Queiroz escrevia: Pode-se afirmar que pelo menos dois tipos de catolicismo coexistiram sempre no pas: o catolicismo oficial e um catolicismo popular. Esta dualidade antiga: J no perodo colonial, escreve Roger Bastide, encontramos dois catolicismos diferentes e muitas vezes em oposio: o catolicismo domstico dos primeiros colonos (...) e o catolicismo mais romano, mais universalista, das ordens religiosas (Bastide, 1951). Em todos os pases existiu sempre oposio entre as necessidades religiosas espontaneamente formuladas pela massa da populao, aliadas conservao de antigas tradies religiosas, e a estrutura de uma hierarquia sacerdotal, sustentada por um dogmatismo mais ou menos rgido (PEREIRA DE QUEIROZ, 1973: 72-73). No nova, portanto, a existncia de uma contrapartida popular religiosidade oficial no Brasil. O que a segunda seqncia de Santo forte mostra bem que essa religiosidade popular e domstica, nessa favela na metrpole carioca em fins do sculo XX, h muito no tem como referncia exclusiva o catolicismo. Outras prticas e doutrinas (com protagonismo ao menos narrativo do espiritismo umbandista) participam desta fluida composio.

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    guia dessas uma firmeza, uma segurana, e cada guia dessas pertence a um orix. Assim como seu corpo (e os enfeites usados) aparecem de sada implicados na narrativa, o mesmo acontecer com o espao de sua casa. Dos personagens do filme, somente ela se dedica a histrias de reencarnao, herana kardecista na doutrina umbandista. O tema fornece a matria para uma de suas melhores histrias: aquela que reporta a ocasio em que dona Thereza descobriu ter sido, noutra vida, uma rainha do Egito, primeira das narrativas exemplares que conta. Ela comea chamando a ateno para o espao do acontecido, a casa que vemos no fundo do enquadramento, para onde aponta: S que era barraco de tbua naquela poca, que eu lutei muito para fazer assim, de tijolo. E continua o caso, dramatizando um dilogo entre ela e uma antiga vizinha (Marta), que, de visita, teria visto uma rainha no corpo de dona Thereza.12 o motivo para que nossa narradora procure o centro esprita linha branca freqentado por seus patres, onde busca esclarecer e confirmar a histria da rainha. Dona Thereza dramatiza o dilogo com dona Sara, chefe do centro:

    Escuta aqui: eu nunca tive conforto na vida. Sempre vivi nas favela, nas casa ruim [ela vira o corpo, apontando para o cenrio atrs de si], nos barro, nas lama, nunca tive nada, e tudo que eu tenho, o pouco que eu tenho [refaz o mesmo gesto], eu tenho que lutar muito para ter. Agora, por que que eu sou assim? S gosto de vitrine cara, s gosto de cristais, essas coisas que eu sei que no pra mim?

    Dona Sara confirma que Thereza foi mesmo uma rainha noutra vida, senhora de muitas riquezas, e que no apaga tudo: A gente sempre traz nesta vida alguma coisa da outra vida que ns fomos. Importante notar como, na encenao do dilogo, ao incorporar o seu ambiente presente e mostr-lo ao interlocutor e cmera (Sempre vivi nas casa ruim), dona Thereza abre a cena participao dos novos interlocutores sua performance se faz teatro (caso em que se dramatiza a conversa com a personagem ausente), mas tambm conversa presente com Coutinho e equipe, recado bem dado na arena pblica criada pela cmera. A confirmao da rainha motivo para interpretao e atribuio de sentido (de ordem sobrenatural) sua experincia de vida. Dona Thereza est com a dvida da rainha do Egito

    12. Que foi Marta, que voc t me olhando to espantada?

    Mas eu no vi a senhora, dona Thereza, eu vi uma rainha!

    Rainha? Voc t brincando. Vi. A senhora eu no vi, eu vi uma

    rainha. A senhora foi rainha em outras vidas? Isso a eu no sei.

    Eu nem sei o que que eu fui em outras vidas, e vim nessa.

  • DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 5, N. 2, P. 32-55, JUL/DEZ 2008 45

    e por isso vive assim num gesto, ela se refere novamente ao cenrio da entrevista, sua casa, incorporada ao relato como elemento significante. Dessa maneira, ilustrando o narrado com o que prximo e visvel, dona Thereza atualiza os sentidos e a moral de sua histria (por isso eu vivo assim), advertindo seu interlocutor e a platia potencial: 1) Da conscincia que tem de sua condio, que assume sem travos ou constrangimentos, e da qual se apropria criativamente; 2) Da relatividade de sua visvel e presente situao. Sendo assim, a narrativa de dona Thereza no apenas caso, recontar de histrias interessantes, estimulada pelo diretor, ciente de que o agrada. tambm organizao e interpretao da experincia de vida, que ela apresenta como contraditria, posto que, embora pobre e analfabeta, seja sensvel e complexa, pessoa que gosta de coisa fina (essas coisas que eu sei que no pra mim), e que nessa condio materialmente precria est em funo de um destino maior mas est, afinal, s de passagem. Suas histrias so exemplares contando-as, dona Thereza se vale da tradio religiosa esprita (com seu infindvel repertrio de histrias de outras vidas) para se apresentar como algum mais do que as aparncias fariam supor. As histrias de dona Thereza tambm expressam uma moralidade marcada por forte dimenso religiosa, em que uma srie de preceitos, valores, normas e interpretaes relacionados a uma ordem sobrenatural parecem vlidos para pensar, narrar e dar sentido experincia (no raro desordenada) da vida.13 Atuando como uma espcie de narradora clssica, ela extrai ditos, normas de vida e preceitos morais de sua narrao. Para explicar a Coutinho, por exemplo, por que criou os filhos sozinha, diz que no deu muita sorte, que a sorte no nasceu para todos. E ao dizer que o marido era muito ruim, extrai a norma de que a ruindade demais destri.14 Na narrativa de dona Thereza, apenas uma entidade representada em gesso justaposta. Trata-se da amada Vov Cambina, sua guia na umbanda (No esquea esse nome! Vov Cam-bi-na, diz energicamente a Coutinho, dedo em riste em gesto de advertncia).15 Aqui, diferentemente do que vimos com Andr, difcil no perceber a relao de ident