CC Bezerra San Juan de La Cruz

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  • 8/12/2019 CC Bezerra San Juan de La Cruz

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    A experincia negativa do sagrado: elementosneoplatnicos na poesia San Juan de la Cruz.

    Cicero Cunha Bezerra*

    Josilene Simes Carvalho Bezerra**

    RESUMO:radicionalmente se atribui a Plotino a origem de uma interpretao da obra dePlato que ficou conhecida como Neoplatonismo1. Na base dessa filosofia estariauma ideia central: h um princpio originrio (o Uno) de toda multiplicidade(Mltiplo) que se define, paradoxalmente, como negativo. Esse trabalhotem como finalidade, pensar, a partir do aspecto negativo constitutivo daexperincia neoplatnica do divino, a recepo literria do neoplatonismo napoesia de San Juan de la Cruz em particular no seu poema Cntico Espiritual.

    Palavras-chave: Neoplatonismo. San Juan de la Cruz. Plotino. Literatura.Poesia.

    Consideraes iniciais

    Quando se trata da relao entre as tradies neoplatnica e crist, o primeiro passo para aconstruo de um caminho possvel de dilogo pensar alguns conceitos utilizados e, principalmente,o fundamento ontolgico que as sustenta. Nesse sentido, o Cntico Espiritual a prova cabal de que atradio crist, na sua formulao apoftica, segue uma linha interpretativa que remonta inegavelmenteao neoplatonismo plotiniano. Plotino ser amplamente lido graas sua estrutura tridica (o uno, o

    ser e a alma) e incorporado literatura sanjuaniana. A questo que propiciar uma viso negativa dosagrado reside, paradoxalmente, na busca de definio do que venha ser o verdadeiro conhecimentoou, o que seria o mesmo, a sabedoria.

    Se a dialtica, com todas as suas fases conduziria, em Plato, o filsofo compreenso dasrealidades inteligveis (ideas), em Plotino (205 d.C), a dialtica uma ferramenta que eleva o filsofoao extremo do prprio pensar. A consequncia desse pressuposto que a razo se reconhece comolimitada exigindo, de si mesma, sua transcendncia. Esse ir mais alm o que determinar a unioda inteligncia (nos) com o que lhe antecede, isto , o Uno. E como se d tal unio?

    O sentido do termo henosis, embora em sua complexidade, pode ser pensado em Plotino,como um processo, um evento ou uma experincia do pensamento. Em ltima instncia trata-se de

    uma compreenso, mediante a reflexo, em que a conscincia se supera e este superar-se passa a sercompreendido como a sua mxima possibilidade. H, portanto, como dissemos, no seio do prpriopensar, um impulso originrio que conduz o pensamento sua auto-superao ou como dir San Juanao voo, ascenso das sombras multiformes dos sentidos ao seio do amor desejado: Aprtalos, Amado,que voy de vuelo(CRUZ, 1993, p. 13).

    fundamental compreender, no entanto, que quando se fala em auto-superao, no se estdizendo que a conscinciaperca sua condio definidora anulando-se completamente. rata-se de umtema que extrapola nossa anlise e que deriva diretamente da relao exposta, por Plato no dilogoParmnides, entre a temporalidade, caracterstica do pensamento, e a instantaneidade (exaiphnes)como espao atemporal do encontro entre o uno e o mltiplo. Nesse sentido, unio no implica

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    perda de conscincia, mas uma adeso conscientedo pensamento com o que lhe transcende. Por isso aunio (henosis)exige uma compreenso filosfica e no psicolgica da conscincia.

    Dito de outro modo, na base da henosisse encontra, assim, uma necessidade de abertura, daprpria conscincia, ao incomensurvel. Segundo este modo de pensar, na prpria reflexo queo no reflexivo se mostra como limite do prprio pensamento. Esta afirmao interessante na

    medida em que aponta, na histria da filosofia, para uma tendncia em que o aspecto no reflexivopassa a ser, no o reconhecimento da falncia do pensamento, mas um elemento constitutivo para aexistncia filosfica entendida como homoiosis, isto , como a uma busca de assimilaoentre o modofragmentrio que caracteriza o pensar humano e seu fundamento pr-reflexivo. No podemos nosesquecer que para san Juan no h olhar humano, nem entendimento que veja e compreenda Aqueleque se esconde (CRUZ, 1993, p. 1).

    A dialtica, enquanto espao discursivo-conceitual, impele ao Uno como o que lhe conferesentido. Diz W. Beierwaltes: A unio com o Uno determina a forma de vida filosfica na suatotalidade, tambm a reflexo no deve ser considerada como um ato isolado, somente cerebral; Areflexo transforma aquele que pensa no seu objeto(Ibid. p. 120).emos, com isso, uma profundarelao entre a filosofia, em sua forma dialtica, e a tica como fim ltimo de toda reflexo. Nocaso da poesia sanjuaniana, filosofia e poesia so faces de uma mesma experincia que, em ltimainstncia, de amor e, portanto, fundamentalmente, tica. Somente na compreenso da unidadeque se faz mltipla em suas formas que torna-se possvel uma vida filosfica compatvel com abase terica que a fundamenta e, tambm, com um modo de narrativa que pela sua fora e aberturapermite uma vivncia da beleza que revela beleza, ou dito de outro modo, da beleza que revela oBelo como fundamento e princpio de todo desejo.Na busca de assimilao com Uno, o sensvel,o temporal e o finito so superados (apharesis), mas no desprezados, em funo de uma mximaque norteia a reflexo neoplatnica que : eiso panta. A inteligncia (nos) como o espao em queSer e Pensarse do como unidade entre noesise noeton o que permite ao neoplatonismo postulara apharesiscomo condio de unificao. A alma como lugar do pensamento trs em si mesmo o

    imperativo da superao de tudo (aphele panta) como simplificao e caminho de unio com o Unoabsolutamente simples.Um tema bastante explorado por Werner Beierwaltes, fundamental para o que estamos aqui

    expondo, diz respeito ao carter imagtico que o mundo desempenha no Neoplatonismo. A ideiade que a realidade cpia de um arqutipo algo que remonta ao pensamento de Plato, masque assume no Neoplatonismo uma caracterstica muito especfica que integra o mundo ao sistemaprocessional. importante observar que quando tratamos da realidade como imagem estamos nosreferindo a todos os nveis posteriores ao uno. Seguindo a explicao de Beierwaltes (1991, p. 76)temos, em Plotino, uma estrutura que exemplificamos do seguinte modo:

    Uno

    Esprito- imagemdo Uno enquanto unidade entre ser e pensar.

    Alma em todas suas formas (Mundo, particular ou individual) imagemdo Esprito

    Mundo(Kosmos) imagemdo Esprito, como mundo inteligvel fundado no logosque refleteno mundo sensvel fundando-o e, tambm, da Alma, posto que dela que provm o movimento

    geracional e unitrio do mundo.

    Homem enquanto parte do cosmos imagemdo homem inteligvel.

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    importante notar que a matria, por carecer de limite e determinao, no figura comoimagem do uno, mas, tambm, no pode ser tomada como o seu contrrio. A matria, grau ltimo darealidade, potencia e nela o uno atua delimitando-a. No que se refere alma humana haveria umaprofunda relao entre o conhecimento de si e o uno, posto que pelo retorno do pensamento sobresi mesmo que o uno se d como o que funda o prprio ser. Nesse processo de contemplao, a alma

    se reconhece como participante, porm separada, ao mesmo tempo do mltiplo e da unidade que lhetranscende. Na EnadaVI, 7, 34,10 lemos:

    A alma no se d conta de que est no corpo (ote smatos ti aisthnetai),porque ela est nele (ti estn en aut); ela tambm no diz que outra coisa: no um homem (ouk nthropon), no animal (ou zoon), no um ser (ouk n),nem to pouco que o todo (oud pan) (PLOINO, 1938, p. 108).

    Estamos diante da clssica analogia entre amante eamado, isto , a contemplao se converteem unio amorosa do mesmo modo que o pensamento em luz-originria. Na relao amante/amado reside uma ideia fundamental na tradio neoplatnica e que ser, como veremos central na

    poesia sanjuaniana, a saber, que entre o mltiplo e uno existe uma relao de unidade nadiferena.Unidade do pensamento que permanece fiel sua estrutura racional e que, portanto, unifica o que lhe diferente (o mltiplo). decisivo compreender o aspecto relacionaldo pensamento plotiniano dadoque, somente assim, pode-se entender porque o xtase plotiniano no um transe, mas, como bemdefine W. Beierwaltes, um adentrar na experincia do pensamentoque se reconhece fundado na unidadee determinado por ela (BEIERWALES, 1992, p. 129). Em sendo assim, a consequncia derivada darelao imagem-paradigma no de excluso ou negao, mas de participao, isto , de compreensode que h uma conexo, sob o signo da luz, entre o nfimo e o infinito que permite pensarmos em umaunidade-diferenciada que , essencialmente, dialtica e, enquanto tal, um desafio ao pensamento.

    H, assim, um aspecto paradoxal de dupla transcendncia instaurado pela reflexo plotiniana:

    transcendncia do pensamento com relao razo e do xtase com relao ao pensamento. Comose pode observar, o postulado de uma transcendncia/imanente, j que no se d fora do pensamento,mas no pensamento mesmo e, enquanto tal impulsiona-o a superar-se, no de fcil compreenso.Unidade na multiplicidade sem confuso a marca de um fundamento que, enquanto simplicidadeabsoluta, sem fundo e, neste sentido, no se reduz a nenhum ente em particular. O pensar umaquesto de relaoe no de coincidncia.

    A consequncia do que estamos aqui expondo que a mstica passa a ser pensada fora de ummisticismo comum que separa xtase e mundo. A mstica de raiz neoplatnica presenana qual oser se d em seu aspecto mais plenoao pensamento, sem a dicotomia sujeito/objeto, permanecendo,no entanto, a diferenacom o que lhe transcende: o uno. Um trecho do Cntico Espiritual exemplarpara o que estamos aqui afirmando:

    Oh cristalina fuente,si en esos tus semblantes plateadosformases de repentelos ojos deseadosque tengo en mis entraas dibujados! (CRUZ, 1993, p. 12).

    Plotino inicia a Eneada V, 2afirmando que o uno todas as coisas e nenhuma delas (t henpnta ka oud n). Essa afirmao tem como ponto de partida o fato de que se existe algo que,enquanto princpio originrio, no pode ser derivado, necessrio que este seja completamente livre

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    de toda dualidade. Com razo, Agns Pigler ressalta uma dupla natureza no sistema henolgicoplotiniano, a saber: que a processo implica em uma descontinuidade entre o uno e as hipstasesderivadas e, que esta derivao se mantm enquanto continuidadeautoprodutora do uno (PIGLER,2003, p. 257). Esta observao importante dado ser comum, por parte de alguns intrpretes, umaviso completamente separatista entre o uno e o mltiplo em Plotino. Seguindo essa perspectiva,

    perde-se por completo o cerne do pensamento neoplatnico que, ao contrrio de distanciar, emboramantendo uma diferenciao, postula a unidade entre o uno, absolutamente simples, e o mltiplocomo manifestao una na diversidade prpria das coisas que so posteriores ao seu princpio pr-ontolgico. Sendo o uno diverso de tudo (pnton heteron) , por isso mesmo, identidade pura2.

    Uma passagem das Eneadas decisiva para o que foi dito:

    Assim todas as coisas so o primeiro e no so o primeiro (pnta d tauta ekeinoska ouk ekeinos); elas so o primeiro porque dele devem; elas no so o primeiro,porque aquele permanece em si mesmo, dando-lhes existncia (PLOINO,1931, p. 35).

    H um elemento estrutural, tambm herdado da viso platnica, que mantm a dinamicidadeentre o uno e o mltiplo e que constitui um dos aspectos fundamentais para uma viso mstica noneoplatonismo: o amor (Eros). Embora se atribua ao Banqueteplatnico a fonte da ertica plotiniana preciso no desconsiderar alguns dos seus aspectos originais. Segundo A. Pigler (2002, p. 11), aoriginalidade de Plotino residiria no fato do alexandrino colocar o amor no corao do uno comocausa da processo e raiz do real. De fato, o amor como energia vital que ordena, diferenciandoe mantendo a vida, algo difcil de ser encontrado em Plato j que para ele o amor se relacionacom alma e no com o Bem. Assim, essa inovao uma consequncia do postulado do uno comosuperabundncia geradora e do amor, no apenas como uma fora intermediria (damon), mas comopotncia fundamental do prprio uno que uni e separa os seres (PIGLER, 2002, p. 23) ou, como dir

    San Juan de la Cruz, chama de amor viva.

    San Juan de la Cruz e a experincia ertico-negativa de Deus

    E. M. Cioran, no seu livro De lgrimas e de Santos (2008, p. 28), diz que aproximar-se dossantos como ouvir msica ou visitar bibliotecas. Nessa perspectiva, podemos dizer que ao se ler San

    Juan preciso dirigir todo esforo dos instintos em funo de um outro mundo. Outro mundo que expresso de um tipo de experincia da vida que conduz a um modo distinto de sentimento. Umaideia parece ser condutora dos versos sanjuanianos, qual seja: entrega incondicional ao amor.

    Para esse aspecto de entrega, a cano XXII decisiva:

    Entrado se ha la esposaen el ameno huerto deseado,y a su sabor reposa,el cuelo reclinadoSobre los dulces brazos del Amado (CRUZ, 1993, p. 587).

    rata-se da entrada como encontro. Havendo cumprido todos os passos que caracterizama mortificao espiritual, a alma renasce para a vida plena de gozo. O ameno horto a imagemutilizada para caracterizar Deus como deleitoso e suave. O horto3como transformao que implica nodesposrio espiritual , assim, o fim da poesia do Cntico Espiritual. O descanso a consumao de

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    uma vida que tem no aperfeioamento espiritual seu ponto central e na paz seu fim. Diz San Juan nocomentrio Cano XXII: E, por isso, ele o ameno e desejado horto. Porque todo desejo e fim daalma e de Deus em todas as obras da alma, a consumao e perfeio deste estado, pelo que a almanunca descansa at chegar a ele (CRUZ, 1993, p.712).

    O que a alma alcana a completa integrao com o Amado sob forma de unio espiritual. A

    participao, antes sob forma parcial, encontra seu apogeu e o que era metade encontra sua totalidade.Amante e Amado transformados. importante sublinhar, como j dissemos anteriormente ao tratarmosde Plotino, que no se trata de perda de identidade, isto , no desposrio Alma e Deus so um edois simultaneamente. Sobre este ponto diz San Juan na Cano XXII, 3: Porque, as como en laconsumacin del matrimonio carnal son dos en una carne, como dice la divina Escritura (Gn 2, 24),as tambin, consumado este matrimonio espiritual entre Dios y el alma, son dos naturalezas en unespritu y amor (CRUZ, 1993, p. 685).

    Uma vez mais so acertadas as palavras de Cioran quando diz que a vida de Deus equivale morte da criatura. Numa de suas referncias a San Juan, ele afirma ser a solido o que une Deuse o homem. Solido entendida como imagem da unio deliciosa e inexpressvel tpica dos msticos.

    Diz ele referindo-se a San Juan: solido humana e o deserto infinito de Deus se tornam delciainexpressvel, anunciadora de sua identificao completa (CIORAN, 2008, p. 67).A fortaleza, indispensvel em todo processo asctico, representada sob a figura do colo. A

    alma que venceu todos os percalos que impendem uma viso direta de Deus, agora, repousa reclinadanos seus braos. Assim descrito o encontro na cano citada anteriormente. Se o colo a imagem dafortaleza da alma, os braos do Amado representam o prmio merecido e o amparo dispensado porDeus. Na verdade estamos diante, uma vez mais, de uma das mais bonitas passagens do texto Cnticosdos Cnticos. A referncia, citada pelo prprio San Juan, a passagem 8, 1 dos Cnticos: Quem dera,irmo, que te amamentasses aos seios de minha me, para que, encontrando-te a ss fora, eu te pudessebeijar, sem que ningum me desprezasse (BBLIA DE JERUSLEM, 2004, p.1101).

    Como se pode ver, San Juan mantm a mesma ideia j presente em Salomo de uma certairmandade entre a alma e Deus. O beijo, como ele mesmo explica, o smbolo da superao detoda temporalidade marca dos apetites mundanos. O matrimnio espiritual tambm tem o sentido dereconstruoda natureza decada do homem. precisamente debaixo de uma macieira que o encontro narrado. Diz a CanoXXIII:

    Debajo del manzano,all conmigo fuiste desposada,all te di la mano,y fuiste reparadadonde tu madre fuera violada (CRUZ, 1993, p. 689).

    A rvore do matrimnio, tambm associada rvore do sacrifcio (Ado), ou seja, em que naturezahumana (Me) foi violada, segundo a narrativa do Gnese, agora reconduzida pela rvore da vida a umanova experincia que renasce da morte graas ao aperfeioamento espiritual do homem. Apaziguadasob a rvore da vida a alma encontra seu leito que no outro seno o prprio Deus. Se atentarmos paraos contedos das ltimas Canes aqui citadas, veremos algumas ideias que representam a ascenso daalma a Deus: a) Riqueza de dons; b) Fortaleza; c) Perfeio; d) Paz espiritual.

    odas essas virtudes permitem o acesso ao leito florido como metfora da unio com Deus.Essa imagem retirada do Cntico de Salomo(1,15) utilizada por San Juan para expressar o estadoem que virtude e perfeio compartem uma mesma realidade. Uma realidade que descrita pela cor

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    prpura e que tem sua origem no texto bblico que a utiliza como aluso caridade. Nesta linhade pensamento, a alma est coberta de prpura j que ordenou sua natureza mediante a caridade(CRUZ, 1993, p. 695).

    San Juan na Cano XXVrelata trs mercsque so utilizadas pela alma para louvar o Amado:suavidade, visita de amor e abundncia de caridade. A suavidade serve de amparo na ascenso ao

    Amado; j a visita de amor como chamas que ao arderem inflamam a alma de desejo e anseiosque, finalmente, culminam no exerccio embriagador da caridade. Diz ele:

    A zaga de tu huellalas jvenes discurren al caminoal toque de centella,al adobado vino;emisiones del blsamo divino (CRUZ, 1993, p.697).

    Dentro das imagens que remontam aos aspectos profanos, o vinho recorrente na poesiasanjuaniana. A ltima estrofe da CanoXXV d o tom inicial que se desenvolve de maneira mais

    central na CanoXXVI. ambm na Cano XXV feita aluso ao temperado vinho que inundade aroma. Baseando-se na distino entre vinho novo e velho, San Juan realiza uma anlise em que afora da alma associada imagem encorpada de um vinho que ferve por dentro, isto , em sua Elvino aejo tiene ya digerida la hez ya asentada (CRUZ, 1993, p. 700). Ao contrrio de um vinhonovo, o velho expressa a qualidade inerente sua maturidade4. A imagem perfeita para exemplificaro estado da alma dado que, quanto mais velho for um vinho, mais fora e suavidade parece possuir.Semelhantemente, a alma conduzida pelo exerccio das purificaes ao estado de perfeio a quetorna imagem do vinho do amor (CRUZ, 1993, p. 732).

    Vejamos a Cano XXVI:

    En la interior bodega

    de mi Amado beb, y, cuando salapor toda aquesta vega,ya cosa no saba,y el ganado perd que antes segua (CRUZ, 1993, p. 702).

    Como se pode constatar, a alma bebe do Amado o vinho em sua adega interior que descritacomo o ltimo grau de amor em que se pode colocar nesta vida5. A adega pode ser interpretadacomo a mais profunda reserva ou ltimo degrau que separa a alma de Deus. San Juan explica que aunio perfeita com Deus requer uma ascenso e que muitas almas alcanam as primeiras adegas, massomente a alma perfeitamente moldada pelo exerccio das virtudes, pode alcanar a transformao:porque el mismo Dios es el que se le comunica con admirable gloria (de) transformacin de ella enl [...] (CRUZ, 1993, p. 704).

    O ato de beber6 citado como imagem da difuso no corpo, no caso da alma, do amor de Deus.Assim como a bebida se difunde por todas as veias, Deus comunica sua sabedoria transformadora demodo pleno e sem mediaes. Entendimento e vontade esto inteira disposio para Deus. Atravsdo entendimento a alma alcana a sabedoria e pela vontade o amor. Bebi do meu amado se traduzem uma outra frase que diz: metime dentro de la bodega secreta y orden em m caridad (CRUZ,1993, p. 704). interessante observar que o entendimento, como uma faculdade que conduz aoconhecimento se deixa embriagar pelo vinho do amor. Sem negar que o conhecimento conduziriaao objeto desejado, San Juan explica que o amor, infundido por Deus, pode propiciar uma maior

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    unio sem que haja aumento da capacidade de conhecimento. Diz ele: Y esto experimentado estd emuchos espirituales, los cuales muchas veces se ven arder en amor de Dios sin tener ms distintainteligencia que antes (CRUZ, 1993, p. 704).

    Um dado importante diz respeito s consequncias da alma haver bebido, isto , embriagada,nada sabe, nada conhece. Esse desconhecimento admiravelmente o smbolo de um saber que

    mais que conhecer e, neste sentido , ao fim e ao cabo, unio: All me dio su pecho, all me enseociencia muy sabrosa (CRUZ, 1993, p. xxvi).

    A expresso da estrofe XXVI: Quando saa, reflete bem o sentido empregado por San Juan.Com ela no se quer dizer que a alma abandona a unio, mas por estar presa a uma vida marcada pelatemporalidade inerente s coisas mortais, j no se reconhece como parte, mas livre na imensidade domundo (XXVI, 12). por isso que San Juan afirma que a alma, embora unida substancialmente, nopermanece sempre atrelada a Deus. Neste retornar ao mundo, ocorre precisamente o esquecimento.

    A alma mergulhada na sabedoria do amor de Deus enfrenta a realidade sombria da aparncia queconverte o mundo em sombras comparado com a luz sobrenatural antes contemplada.

    Uma frase bem se aproxima do que San Juan entende por sabedoria: o que maior sabedoria

    diante dos homens, loucura diante de Deus (BBLIA DE JERUSALM, 2004, I Corntios, cap. 3,vers. 19, p. 1996). Portanto, sabedoria divina e cincia humana so dois polos de uma experincia demundo em que uma (a divina) planificao amorosa e a outra (a humana) insipincia e, portanto,loucura comparada ao amor de Deus. San Juan chega a comparar o estado de alma embebida no amordivino com o estado originrio de Ado. A superao do pecado original pelo aperfeioamento davirtude o caminho utilizado pelo poeta para representar o pice da relao unitiva entre Deus e ohomem.

    O verso seguinte da mesma CanoXXVI, 17 fecha o que foi dito: y el ganado perd que antessegua (CRUZ, 1993, p. 708). O que poderia ser pensado a partir da imagem de rebanho presentenesta frase? o prprio San Juan que explica: aunque ms espiritual sea, siempre le queda algnganadillo de apetitos y gustillos y otras imperfecciones suyas[...] (CRUZ, 1993, p. 708). Como seconstata, entre o mundo sensvel e o espiritual h uma distncia que tem como marca principal oabandono ao transitrio e efmero, ou melhor, ao apego as coisas que no conduzem ao aperfeioamentomoral. Os apegos so como ferrugem que corri a alma como ao metal. Deixar o rebanho , assim,superar o temor, as dores e penetrar na adega serena onde se encontra o melhor vinho.

    Pode-se dizer que entre a palavra potica e a espiritualidade h uma unidade em que o desejo deunificao tem como ponto inicial, mas tambm final, uma experincia esttica do mundo que, emltima instncia caracteriza-se como superao de toda forma e imagem. o voo solitrio to presentena tradio neoplatnica:

    En la soledad viva,

    Y en soledad ha puesto ya s unido,Y en soledad la guaA solas su querido,ambin en soledad de amor herido (CRUZ, 1993, p. 740).

    Plotino como intrprete do Eros platnico, pode ser tomado como referncia central dentroda tradio pag para a elevao caracterizada, por San Juan, como montanha cujo pice acontemplao divina.

    Com isso podemos afirmar que a ideia basilar da mstica sanjuaniana reside no fato de quetoda afirmao, embora vlida do ponto de vista daquele que diz (a alma) , em ltima instncia,

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    este trabalho integrando erotismo e poesia como unidade que faz da palavra potica transgressodalinguagem formal e, consequentemente, abertura para uma vivncia espiritual pela via da literatura.

    Nessa perspectiva, podemos compreender como o erotismo e o sagrado, no caso especficoda mstica sanjuaniana, convergem em uma unidade que, nas palavras Lpez Castro (1998, p. 53),revela a condio do poeta. O papel do Eros, neste sentido, decisivo, posto que a unidade entre

    o sagrado e profano ocorre graas ao contexto religioso em que o ertico se manifesta. A busca daunidade perdida um tema que recorre todo este trabalho e tem como finalidade expressar o ncleodo pensamento sanjuaniano, qual seja: a unio da alma com Deus.

    A utilizao do ertico, nos moldes aqui apresentado, uma mostra de que possvel, a partirde autores como San Juan de la Cruz, vislumbrar uma experincia da linguagem que, longe de todopsicologismo e reducionismo moral se configura como uma novidade que desconstri, dentro da tradiocrist, a ambivalncia entre corpo e esprito(CASRO, 1998, p. 68). Por ltimo, poesia, mstica, filosofiae msica, formam, tambm, uma unidade que exige, do leitor da obra sanjuaniana, um distanciamentoda interpretao formal de um texto para o mergulho na vida e no esprito de uma poca.

    Assim como San Juan, Plotino postula o caminho que conduz felicidade como exerccio

    das virtudes. interessante observar que o tratadoI, 2, 19 comea exatamente com uma associaocuriosa entre uma fuga do mundo, espao dos males, e o assemelhar-se a deus. Plotino cita Platono Teeteto8(176 a)como ponto de partida para a sua reflexo: Posto que os males residem aqui epor necessidade circulam a regio do mundo e posto que alma deseja fugir dos males, necessriofugirmos daqui. E em que consiste tal fuga? A resposta exatamente a platnica: assemelhar-se adeus(homoiothenai theo)9. A questo que se segue : como se d tal assimilao? Adentramos assim naanlise das virtudes cvicas e as superiores. As chamadas virtudes cvicas (politiks legomnas arets)so as mesmas presentes na Repblica de Plato: prudncia, coragem, temperana e justia. Essasvirtudes so tidas como reguladoras dos temperamentos e apetites e, portanto, so louvadas comoalgo a ser perseguido pelo sbio, no entanto, recorrendo uma vez mais Plato, Plotino na EnadaI,2as define como purificadoras, isto , so virtudes necessrias unio, no entanto, no por elas quea assimilao a deus ocorre (PLOINO, 1924, p. 39).

    Na EneadaIII, 8, 6-35 vemos Plotino referendar o que foi dito acima: No somente ele tendea se unificar e a se isolar das coisas exteriores, mas volta-se para si mesmo e tem em nele todas ascoisas; a vida consiste em um contnuo exerccio contemplativo de uma vida originriaque definidacomo inteleco primeira (nesis) a qual se segue uma vida segundaque inteleco segunda (deutranesis) e uma terceira vidaque ltima inteleco (eskhte nesis) (En. III, 8, 20) (PLOINO, 1925,p. 163). No fundo, regressamos ao sistema das hipstases na qual o uno potncia de tudo ( dnamiston pnton) e sem o qual nenhuma vida pode existir.

    Uma imagem que bem representa o processo de contemplao e ascenso do mltiplo para oUno , sem dvida, a do escultor presente na Enada1, 6 (9), 5; o escultor de uma esttua que deve

    ser bela, remover tudo o que impede a manifestao das belas linhas no mrmore. Esta metfora aque melhor se emprega quando se trata do movimento de converso (epistroph) mediante a apharesisplotiniana. Por certo, a presena dos mitos algo constante nas Enadas e se associam perfeitamentea proposta plotiniana de ascenso das imagens (eiknes) e das sombras (skia) luz que o beminteligvel. Narciso, Ulisses, so personagens de uma odissia em que a alma, ansiando por regressar ptria, supera as belezas corpreas (ta en smasi kal) em direo a beleza da qual elas so imagens(En. I,6(8),5). Estamos, sem dvida, tratando da dialtica platnica na sua forma de anagog, ou seja,na ascenso da multiplicidade unidade que, para Plotino, expresso do Belo como hyprkalonepara San Juan a face negativa e luminosa de Deus.

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    Te negative experience of the sacred: Neoplatonic elements in the poetry of San Juande la Cruz

    ABSR AC:Te origin of an interpretation of the works of Plato which came to be known

    as neoplatonism is usually atributed to Plotinus. Tere is a central idea at thecore of this philosophy: there is an originary principle of all multiplicity which,paradoxically, can be defined as negative. Tis paper aims at addressing,considering the negative aspect which constitutes the neoplatonic experienceof the divine, the literary reception of neoplatonism in the poetry of San Juande la Cruz, particularly in his poem Spiritual Anthem.

    Keywords:Neoplatonism. San Juan de la Cruz. Plotinus. Litterature. Poetry.

    Notas explicativas

    * Doutor em Filosofia, Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe.** Mestre em Letras, Professora do Instituto Federal de Sergipe.1 imprescindvel saber que a filiao de Plotino ao pensamento de Plato est margeada por originalidades e

    diferenas que o fazem no um mero exegeta de Plato, mas um pensador fronteirio que foi capaz de criar umametafsica prpria. Sobre essa temtica ver: (PIGLER, 2002, p. 10).

    2 Sobre o tema do uno como diferena absoluta ver: BEIERWALES, W. Identit e differenza. rad. Salvatore Saini.Milano: Vita e Pensiero, 1989. p. 54

    3 Vale observar que o recurso aos elementos naturais como plantas, rvores, horto, comum na literatura cortes econstitui uma das suas caractersticas centrais. Frases do tipo: desde que a vi fora do horto/ por pouco no me vimorto so comuns em textos que tratam do amor corts na literatura barroca e no cristianismo. Sobre o tema ver:(PAZ, 1994, p. 82).

    4 A relao entre o vinho velho e novo se encontra origina lmente nos textos do EclesisticoIX, 14 e IX, 15 que dizem

    respectivamente: no deixes o amigo antigo, porque o novo no ser semelhante a ele, o amigo novo como ovinho novo; ele se far velho, e tu o bebers com gosto.5 San Juan refere-se a sete graus ou dons.6 Referncia ao Cntico dos CnticosII, 4: introduziu-me na adega secreta, e ordenou em mim a caridade.7 Para Rafael Boeta Calvo a experincia da noite limtrofe e constitui o smbolo mximo que perfaz grande parte

    dos escritos de San Juan. A noite como o espao, diz ele, onde o mundo suspenso e tudo desaparece estabelecendo,com isso, o abismo da alma frente o absoluto (Cf. CALVO, 2000, p. 44).

    8 Diz Scrates no eeteto: certo, Teodoro. Porm no possvel eliminar os males foroso haver sempre o que seoponha ao bem nem mudarem-se eles para o meio dos deuses. inevitvel circularem nesta regio, pelo meio da natureza

    perecvel. Daqui nasce para ns o dever de procurar fugir quantoantes daqui para o alto (PLAO, 1988, p. 49).9 Michele Abbate, baseando-se no testemunho de Marino, discpulo e bigrafo de Proclo, ressalta a influncia que o

    Teetetodesempenhou no pensamento, no apenas de Proclo, mas de neoplatnicos do seu entorno que interpretarama dinivizao platnica como expresso da mxima espiritualizao do homem. Cf. ABBAE, 2008, p. 5

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    Recebido em: 31 de maio de 2012Aprovado em: 13 de novembro de 2012