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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP MARIA TEREZA LABATE MANTOVANINI CENTRO CLÍNICO E DE PESQUISA: UM ESTUDO SOBRE ALGUNS ASPECTOS DA CRISE DA PSICANÁLISE MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA SÃO PAULO 2007

CENTRO CLÍNICO E DE PESQUISA - livros01.livrosgratis.com.brlivros01.livrosgratis.com.br/cp040692.pdf · Psicologia Clínica sob a orientação ... agradeço ao Professor Luis Cláudio

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

MARIA TEREZA LABATE MANTOVANINI

CENTRO CLÍNICO E DE PESQUISA:

UM ESTUDO SOBRE ALGUNS ASPECTOS DA CRISE DA

PSICANÁLISE

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

SÃO PAULO

2007

Livros Grátis

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

MARIA TEREZA LABATE MANTOVANINI

CENTRO CLÍNICO E DE PESQUISA:

UM ESTUDO SOBRE ALGUNS ASPECTOS DA CRISE DA

PSICANÁLISE

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

Dissertação apresentada àBanca Examinadora da PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo,como exigência parcial paraobtenção do título de Mestre emPsicologia Clínica sob a orientaçãodo Prof. Doutor Luís CláudioMendonça Figueiredo

SÃO PAULO

2007

3

BANCA EXAMINADORA

_______________________

_______________________

_______________________

4

DEDICATÓRIA

A meus filhos, Laura e Vitor

5

AGRADECIMENTOS

No decorrer de todo o processo de pesquisa contei com a

colaboração inestimável de diversas pessoas que, em última instância,

foram responsáveis pelo término desse trabalho. A todos agradeço.

Ao Fabio Herrmann (in memorian), por ter me acolhido na PUC e

concordado em orientá-lo. À Leda Herrmann, cuja dedicação e experiência

possibilitaram que o trabalho viesse à luz.

À Maria da Penha Lanzoni, por ter acompanhado pacientemente os

primeiros passos dessa pesquisa.

Aos colegas e amigos do atual CAP, pela colaboração irrestrita

desde o inicio da pesquisa. À diretoria do Centro por ter cooperado

imensamente com a pesquisa, permitindo o acesso a documentos e ao

banco de dados. Uma menção especial à Dora Tognolli, por ter me

ensinado muito sobre pesquisa qualitativa fornecendo preciosas sugestões

sobre a elaboração dos roteiros e organização dos dados.

A meus pais, Carlos e Maria, pelo permanente incentivo aos estudos.

A meus irmãos, Maria Lucia e João Carlos, por possibilitarem, ao longo da

vida, inúmeras experiências em grupos. À Maria Cristina, um

agradecimento especial pela paciência de ler e reler meus rascunhos em

suas diversas fases, acrescentando sempre sugestões muito pertinentes.

Ao meu marido Fabio, cuja leitura sempre crítica e inteligente

ampliou meu universo de análise. Sua retaguarda foi imprescindível.

À Fernanda Sofio por sua generosa colaboração na tradução do

francês e ao Ciro Miguel pela versão para o inglês.

Finalmente, agradeço ao Professor Luis Cláudio Figueiredo por se

responsabilizar pelo término da orientação.

6

SUMÁRIO

1 – INTRODUÇÃO................................................................................ 11

2 - O CCP COMO SINTOMA DA CRISE DA PSICANÁLISE........... 21

• 2.1. A formulação do problema e o desenvolvimento dapesquisa........................................................................................ 21

• 2.2. Histórico da Psicanálise em São Paulo................................. 23

• 2.3. História dos Centros de Atendimento da SBPSP.................. 34

3 - A PESQUISA E OS DADOS OBTIDOS......................................... 43

• 3.1. Descrição da pesquisa........................................................... 43

• 3.2. Análise dos dados obtidos..................................................... 46

• 3.2.1. A crise da psicanálise e sua explicitação no CCP.... 47

• 3.2.2. A caracterização da demanda dos pacientes doCentro................................................................................ 55

4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................... 67

5 - BIBLIOGRAFIA.............................................................................. 75

7

LISTA DE TABELAS

TABELAS (Cap. 2.2):

1 - Candidatos Inscritos no Instituto entre 1974 e 1997, por sexo e

formação................................................................................................... 31

2 - Candidatos admitidos no Instituto entre 1998 e 2007, por sexo e

formação.................................................................................................. 32

8

RESUMO

CENTRO CLÍNICO E DE PESQUISA: UM ESTUDO SOBRE

ALGUNS ASPECTOS DA CRISE DA PSICANÁLISE

Maria Tereza Labate Mantovanini

Trata-se de uma análise cultural-ideológica do discurso dos

participantes do Centro Clínico e de Pesquisa da Sociedade Brasileira de

Psicanálise de São Paulo, tomando-o como sintoma do que está sendo

considerada a crise da psicanálise. Este estudo foi realizado mediante a

análise tanto dos documentos oficiais do Centro, quanto de entrevistas com

os membros do Corpo Diretivo e Analistas participantes da instituição. Por

meio das relações constituídas e evidenciadas pelo que denominei discurso

explícito, procurei chegar ao campo que o suporta, ou seja, o discurso

implícito que oculta.

Concluo que a crise se manifesta por algo não dito, a saber, a

diminuição da procura por análise, em especial nos padrões propostos pela

International Psychoanalytical Association, de quatro vezes por semana,

fato que gera alguns desdobramentos.

O primeiro deles diz respeito à própria sobrevivência da enquanto

prática terapêutica. Outros dois desdobramentos, de caráter mais subjetivo,

tratam da viabilidade profissional dos psicanalistas e de uma crise de

identidade dos mesmos.

Palavras- chave:

Crise da psicanálise, análise cultural-ideológica, discurso implícito e explícito, Centro

Clínico de Pesquisa,

9

ABSTRACT

This study is a cultural-ideological analysis towards the speech of the

participants of the Clinical and Research Center of the Brazilian

Psychoanalysis Society of São Paulo. The approach here is to understand it

as a symptom of what is being considered the crisis of Psychoanalysis. This

study was carried out by the analysis of official documents and interviews

with professionals (Psychoanalysts and Administration members) within

the institution. Through the constituted relations of the explicit discourse, I

tried to reveal the implicit concealed discourse that supports it.

The conclusion addresses this crisis as a result of something not

stated, e.g., the decrease in demand for psychoanalysis,

especially according to the standard requirements of the International

Psychoanalytical Association, namely, four sessions per week.

Consequently, this fact produces some important issues.

The first aspect concerns the psychoanalysis' survival as a

therapeutic practice per se. The other two deal more subjectively with the

psychoanalysts’ professional feasibility and their identity crisis.

Key-words:

Psychoanalysis crisis; cultural-ideological analysis; explicit and implicit discourses;

Clinical and Research Center.

10

EPÍGRAFE

“Ao contrário da obra de arte, aqui não há edifício terminado ou

por terminar; tanto e mais que os resultados, importa o trabalho da

reflexão e talvez seja sobretudo isso que um autor pode oferecer, se é que

ele pode oferecer alguma coisa. A apresentação do resultado como

totalidade sistemática e burilada, o que na verdade ele nunca é; ou

mesmo do processo de construção – como é tão freqüentemente o caso,

pedagógica mas falaciosamente, de tantas obras filosóficas – sob forma

de processo lógico ordenado e controlado, só reforça no leitor a ilusão

nefasta para a qual ele, como todos nós, já tende naturalmente, de que o

edifício foi construído para ele e doravante basta habitá-lo se assim lhe

apraz. Construir catedrais ou compor sinfonias não é pensar. A sinfonia,

se existe sinfonia, deve o leitor criá-la em seus próprios ouvidos.”

(Cornelius Castoriadis - A instituição imaginária da sociedade, 2007)

11

CAPÍTULO 1 - INTRODUÇÃO

Este estudo parte da constatação de um fato que, a partir do final

dos anos 90, passou a fazer parte da realidade dos consultórios

psicanalíticos: a diminuição da procura por análise. Uma das causas

alegadas para esse declínio é o alto custo, tornando a análise, na

concepção de muitos, uma opção de elite, restrita a um número cada vez

menor de pessoas.

Atendendo há vários anos em clínica particular e instituições,

venho observando uma mudança nos padrões de procura de análise e até

mesmo um crescente desinteresse por essa prática, que passou a ser

acusada por alguns de elitista, muito longa, muito cara, ineficiente, ou

todas as anteriores.

Fabio Herrmann, em um artigo sobre clínica extensa e psicanálise,

aborda a questão da assim chamada crise da psicanálise, por um vértice

que me pareceu muito profícuo. Este destaca o isolamento da clínica-

padrão, que vai se esgotando pela repetição mecânica de chavões,

distanciando-se do espírito inovador e investigativo do criador da

psicanálise. Diz ele: “A psicanálise de quatro vezes por semana, com o

desamparo da sexta interpretado pontualmente na segunda; o silêncio

reticente e o meio sorriso acolhedor que, juntos, prometem suspensão de

juízo; a heráldica escolástica que se apresenta já no contrato, com

orgulhosa discrição (eu trabalho dessa maneira, se lhe convier...); tudo

isto, com seus encantos, com seus defeitos, foi indo por água abaixo nos

últimos anos, deixando certa nostalgia, só de leve maculada por um grão

de má consciência. Que fizemos de errado?” (Herrmann, 2005, p.22).

À medida que fui pesquisando o tema, deparei-me com indagações

cada vez mais complexas. No texto a seguir, encontrei reflexões que

iluminaram, em boa parte, tais questões.

12

“Ora, o que atualmente ameaça a psicanálise não são as

psicoterapias, elas mesmas derivadas, via de regra, da própria prática

psicanalítica, nem os psiquiatras e suas drogas maravilhosas, cuja

indicação vai fazendo rodízio: síndrome do pânico, depressão, agora

estresse. O que nos ameaça é o nosso padrão”. (Herrmann, 2005, p.20).

O que vem a ser um padrão, segundo a definição de Herrmann?

“Padrão é uma lei reduzida à sua forma morta. Para que todos a

cumpram é preciso ordenar o mundo como se fosse um arquivo morto. Os

as no A, os bs no B, etc. Ora, quando estabelecemos um padrão médio,

não se pode evitar o fenômeno das médias: já no primário aprendi que,

em média, a gente se afoga em meio metro d’água. O padrão médio de

sensatez geral, em cada caso particular, é invariavelmente uma rematada

insensatez.” (Herrmann, 2005, p.21).

O julgamento de cada analista, em cada situação, deveria ser o

oposto do procedimento padrão. Para que isso aconteça, porém, o que é

necessário?

A técnica psicanalítica padrão, que consiste em: livre associação

do paciente, com sua contraparte na atenção flutuante do analista,

interpretações transferenciais, neutralidade, não é boa nem má em si

mesma. A questão que se coloca é o uso que é feito dessa técnica: “de

modo aberto como inspiração ou de modo fechado como um ritual”.

(Herrmann, 2005, p.19).

Como se pode depreender das citações acima, estamos lidando

com um esgotamento da clínica-padrão, que clama pelo pensamento

independente e criativo de cada analista envolvido na prática de analisar.

Outro aspecto da crise diz respeito à diminuição do número de

pacientes interessados em análise e ao concomitante aumento da

quantidade de analistas praticantes. É a chamada crise de mercado, que

afeta o modo de vida daqueles que têm a psicanálise como profissão.

13

Em um Colóquio promovido pela Sociedade Psicanalítica de Paris,

realizado em janeiro de 2006, André Green, seu organizador, assim se

expressa: “... é difícil datar com exatidão o início da tomada de

consciência da crise – isto pode remontar, com efeito, a um tempo bem

grande para trás, mas meados dos anos 50 parece uma data razoável –

durante muito tempo, congresso após congresso, escutávamos a

argumentação vinda de instâncias das mais responsáveis, insistindo

pesadamente na negação de tal crise. Foi preciso sensibilizar a IPA para

que se decidisse a investigar esse assunto espinhoso.” (Green, 2006,

p.232)1.

São múltiplas as faces da crise da psicanálise: teórica,

epistemológica e enquanto profissão, o que engloba também o problema

do mercado de pacientes.

Em 1977, a IPA (International Psychoanalytical Association)

constituiu um comitê de pesquisa com a finalidade de:

“(...) reconhecer a realidade da prática psicanalítica e tomar

medidas apropriadas com o fim de ajudar seus membros a defender sua

especificidade e a justificativa de seu treino em um campo cada vez mais

amplo das práticas psicanalíticas.” (Israel, 1999, p.14)2.

Com esse objetivo, foi elaborado um questionário, posteriormente

enviado a todas as Sociedades e grupos de estudos. O questionário, que

era bastante simples a fim de permitir obter em tempo menor um número

maior de respostas, continha perguntas qualitativas e quantitativas.

A seguir, apresento um resumo dos principais pontos dessa

pesquisa, transformada em relatório publicado por Paul Israel, em 1999.

Todos os psicanalistas da IPA que responderam o questionário

declararam trabalhar com psicoterapia individual face a face. Essas

1 Tradução minha2 Tradução minha.

14

terapias foram definidas como psicanalíticas e constituíam, excetuando-se

algumas variações regionais, a parte principal da prática dos membros que

não desempenhavam função de formação.

Green, no artigo anteriormente citado, assim se refere aos

resultados dessa pesquisa:

“Quando se pergunta sobre as causas profundas dessa situação,

constata-se que, em muitos países, ocorreu uma verdadeira fratura com o

passado. A clínica de hoje não se assemelha em nada à de antes. A

descrição da situação ideal é mais uma abstração, pois não traduz mais a

experiência concreta. O êxito da psicoterapia, que passou a ser preferida

à cura clássica, coloca, entretanto, os psicanalistas em concorrência com

os psicoterapeutas.

De qualquer forma, uma nova situação institucional é criada na

psicanálise. Com freqüência, os analistas entram em conflito em seus

países a fim de obter o reconhecimento oficial de suas atividades entre

outras associações de psicoterapeutas.” (Green, 2006, p.232/3)3.

Nas respostas recebidas da América do Norte, a maioria dos

membros expressava interesse pela ampliação do espectro de indicações

para o tratamento psicanalítico e via um continuum entre psicanálise e

psicoterapia. Ao mesmo tempo, existia preocupação com a perda de

limites entre ambas, assim como temor à perda de especificidade do

tratamento psicanalítico de pacientes neuróticos. Esta última opinião

reflete o medo da dissolução ou da perda de identidade da psicanálise.

Na Europa, de maneira geral, apareceu uma situação específica: as

Sociedades conviviam com a formação psicanalítica e psicoterápica, feitas

pela mesma instituição. Da Noruega vem um dado muito significativo

para reflexão: embora as sessões de tratamento fossem reembolsadas

integralmente pelos seguros-saúde, qualquer que fosse sua freqüência,

15

poucos pacientes aceitavam comparecer quatro ou cinco vezes por

semana. Outro dado interessante: a Sociedade Britânica não enviou

resposta ao questionário.

A esse respeito, Green (2006, p.234) observa o seguinte:

“Sabemos que na Grã-Bretanha certos autores se recusaram a

tratar das relações entre psicanálise e psicoterapia; só há análise de

quatro ou cinco vezes por semana. Os ingleses não responderam ao

questionário da IPA e não forneceram razões para isso. Posteriormente,

uma pesquisa mostrou que as análises de quatro ou cinco vezes por

semana representavam em torno de 40% das atividades dos analistas. E

os outros 60% de que ninguém fala jamais?” 4

Entre os analistas da América Latina, a questão revelou-se

parecida. Por exemplo: os psicanalistas sempre treinaram psicoterapeutas

e, naquele momento, tanto uns como outros sofriam de severos problemas

de identidade. Os psicoterapeutas, formados como subproduto da

psicanálise, sentem-se tratados como bastardos e, reunidos em

associações, chamam a si mesmos psicanalistas, ou exercem pressão para

serem aceitos pela IPA.

“A psicoterapia é considerada uma atividade de segunda

categoria em comparação com a psicanálise.” 5 (Israel, 1999, p.16).

O comitê concluiu que a comunidade da IPA enfrentava naquele

momento (1997) dois perigos potenciais:

1. O de uma posição elitista e hegemônica; ou

2. Uma dissolução adaptativa pelas demandas tanto de mercado

social como do mercado psicoterapêutico.

Em ambos os casos, a psicanálise teria tudo o que perder, pois

seria a identidade dos analistas em treinamento que estaria em questão. 3 Tradução minha.4 Tradução minha.

16

No final dos anos 90, acontecem dois encontros dos Centros de

Difusão e Assistência Latino-Americanos, ligados à FEPAL (Federação

Latino-Americana de Psicanálise), onde se discute, prioritariamente, a

inserção desses Centros em seus respectivos ambientes social, cultural e

científico. O isolamento da psicanálise, restrita, o mais das vezes, à análise

de formação, é a preocupação prioritária desses encontros.

O primeiro deles realizou-se em Montevidéu, no ano de 1999 e o

segundo, no Rio de Janeiro, em 2000. A motivação para essas reuniões

pode ser buscada na preocupação da IPA tanto com a divulgação das

idéias propagadas pela psicanálise quanto com sua inserção em um

contexto social mais amplo.

Durante o ano de 1999, realizou-se na SBPSP uma série de fóruns,

cujo tema, Psicanálise e Psicoterapia, apontava para diversas dimensões

da crise da psicanálise, incluindo os aspectos relevantes da pesquisa da

IPA (1997) anteriormente citada, mas enfatizando questões de método.

No mesmo ano, foram publicados, em um número do Jornal de

Psicanálise (1999), vários artigos desses fóruns, dos quais destacarei

algumas colaborações. Primeiramente, um artigo de Eva (1999),

“Psicanálise, psicoterapia e afins” e, em seguida, “Psicanálise,

psicoterapia, crise e possibilidades da psicanálise”, de Castro (1999).

Ambos os autores enfatizam que a psicanálise não se caracteriza

por critérios formais, como uso do divã ou quantidade de sessões por

semana, mas principalmente pelo método de observação e técnica de

intervenção.

Eva afirma que seria praticamente impossível separar psicoterapia

e psicanálise, pelo menos do ponto de vista formal, mas que a procura

deve ser pela elucidação do método psicanalítico, como forma de manter a

psicanálise viva e criativa. 5 Tradução minha.

17

“Cabe, portanto, ao analista, este sim, por conhecer e validar o

método psicanalítico, criar condições e oferecer ao futuro analisando seu

método de trabalho. Assim irá, de preferência praticando seu modelo de

trabalho, criar para seu par, através da realização do que é sua

psicanálise, o outro – o analisando... Se for coerente minha

argumentação, os aspectos do setting formal serão decorrência de outro

setting, o do método psicanalítico.” (Eva, 1999, p.194).

Segundo Castro (1999, p.206),

“Os critérios formais são aqueles constituídos principalmente pelo

divã e o número de sessões. Penso que não se encontra nestes critérios a

caracterização da psicanálise; esta é, fundamentalmente, método de

observação e técnica de intervenção.”

Nesse mesmo número do Jornal, Herrmann (1999) afirma que a

distinção entre psicoterapias e psicanálise não é fundamental, pois o que

importa, tanto nesta quanto naquelas, é o que ele denomina função

terapêutica, ou seja, o desvelamento de um campo, mediante sua ruptura.

A definição de ruptura de campo diz respeito à desestabilização de

um sistema estruturado de representações e seu efeito não é apenas uma

abertura para o conhecimento, mas uma mudança vital. Segundo

Herrmann, a função terapêutica é a própria operação do método da

psicanálise.

A função terapêutica é a propriedade do método psicanalítico que

assegura inseparável convivência entre saber e cura, sendo que ela está

presente cada vez que se usa o método de ruptura de campo e isso não

depende de circunstâncias formais de enquadre.

Por volta de 2003, foi promulgada na França uma lei criando a

profissão de psicoterapeuta, cuja regulamentação gerou uma série de

discussões e mobilizações no meio ‘psi’. O Colóquio anteriormente citado

e dirigido por André Green parece inserir-se nesse movimento.

18

Segundo Bayle (2006, p.11), no pronunciamento de abertura do

Colóquio, a psicanálise foi atacada pelo viés dos resultados de sua prática.

Os psicanalistas consideraram esse ataque como um movimento dirigido

“à derrota do pensamento e à queda de uma ética em evolução”.

O artigo de Donnet (2006, p.20), apresentado no mesmo Colóquio,

aponta para a defesa armada pelos analistas – a defesa da análise de

formação do analista como forma privilegiada de introjeção da função

analítica, pela qual o analista pode manejar o tratamento e a cura,

definidos como “investigações transformadoras do psiquismo

inconsciente”.

Com o intuito de pensar o tema da crise da psicanálise, vou

delimitar meu estudo ao Centro Clinico e de Pesquisa (CCP), ligado à

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), tomando-o

como sintoma dessa crise. Vou transformá-lo em uma espécie de

laboratório, onde o preço cobrado não pode ser alegado como motivo para

a não adesão dos pacientes à análise.

O CCP é um Centro de Atendimento do qual participam analistas e

candidatos – os analistas em formação –, que se dividem em grupos,

coordenados por analistas mais experientes. Funciona como um centro de

triagem e encaminhamento de pacientes interessados em psicanálise e

cujas condições financeiras não permitem que a busquem nos moldes

tradicionais.

No Centro, certas características de nossa prática são postas em

relevo, muitas vezes acentuadas, com a condição vantajosa de se poder

pensar e conversar sobre elas em grupo. Isolados nos consultórios, os

analistas encontram dificuldade de trocar certas experiências, o que é

possível nas reuniões clínicas do Centro.

Faço parte desse Centro desde sua criação e venho observando a

pouca adesão à análise dos pacientes triados e encaminhados. Com isso

19

quero dizer que, em grande parte, eles não se dispõem a vir quatro vezes

por semana, mesmo pagando muito pouco. Outros começam a terapia com

menor número de sessões semanais e também não permanecem. Sentindo-

me profundamente identificada com esse grupo, a princípio foi difícil

tomar a distância necessária para um estudo. Ao iniciar minhas

investigações, porém, pude vislumbrar melhor como me colocar e situar o

tema a ser abordado.

Na entrevista com o Diretor do Centro, este me mostrou uma série

de documentos que antecederam sua criação, justificando a necessidade de

seu aparecimento naquele momento histórico. Isso reforçou a necessidade

de estudar com maior profundidade a crise da psicanálise, nos aspectos

mundiais e regionais.

Sendo assim, propus-me a investigar, inicialmente, questões

relacionadas à baixa adesão dos pacientes encaminhados pelo CCP. Em

minha experiência como integrante do Centro, grande número desses

pacientes, apesar de encontrarem condições favoráveis de preço e

freqüência, não permaneciam em atendimento. Alguns sequer

compareciam à primeira entrevista com o analista. Um dos tópicos que

minha pesquisa pretendeu captar refere-se à realidade do atendimento de

pacientes que não correspondem àqueles da clínica-padrão de várias

sessões semanais. Em um artigo de Jiménez (2006), encontrei a afirmação

de que o tempo médio de duração das terapias analíticas é bastante curto,

em torno de cinco a oito sessões. Poucos pacientes permanecem em

atendimento por longos períodos, fato muitas vezes nem notado pelos

analistas, pois acabam recebendo no consultório particular outros

pacientes que chegam e permanecem. No entanto, utilizo outro critério

para discutir o significado de permanecer em análise, uma vez que, em

minha formação, pude observar a psicanálise como um processo longo,

que requer um investimento que vai além das condições materiais. “Para

20

falar claramente, a psicanálise é sempre questão de longos períodos de

tempo, de meio ano ou de anos inteiros – de períodos maiores do que o

paciente espera.” (Freud, 1919, p.179).

Como mostra a bibliografia consultada, a crise da psicanálise na

Europa e EUA tem mais a ver com a validação da psicanálise clínica junto

às agências de seguridade social e ao declínio da procura pela formação

analítica. No Brasil, ela se expressa por um de seus sintomas, a diminuição

do mercado de trabalho para o psicanalista tradicional de consultório e o

aumento do número de psicoterapeutas, resultado, principalmente, da

maior oferta de cursos universitários de Psicologia.

A partir dessas observações e leituras iniciais, pude formular o

problema a ser estudado e elaborar um plano de pesquisa que serão

expostos nos próximos capítulos.

21

CAPÍTULO 2 - O CCP COMO SINTOMA DA CRISE DA

PSICANÁLISE

“Salomão disse: não há nada de novo sobre a face da

Terra. E tanto é assim, que Platão teve uma imaginação:

todo conhecimento não passa de lembrança, e então

Salomão deu sua sentença: toda novidade não passa

de esquecimento. Frente ao que Freud acrescentou:

pretensão à originalidade não passa de onipotência.”

(Francis Bacon, 1625, modificado de acordo com o

avanço da ciência desde então. In:Paulo César Sandler, 1997)

Neste capítulo, tomando o CCP como sintoma da crise da

psicanálise, procedo, primeiramente, à formulação mais precisa de meu

problema de estudo nesta dissertação e à exposição do tipo de pesquisa

que realizei. Em seguida, como subsídio a esse estudo, pareceu-me

imprescindível considerar a história da psicanálise em São Paulo e dos

diversos tipos de Centro de Atendimento que abrigou, pois uma crise e

seus sintomas não surgem espontaneamente, carregam uma história.

2.1. A formulação do problema e o desenvolvimento da pesquisa

Neste item, vou tratar mais pormenorizadamente de meu estudo do

CCP como sintoma da crise da psicanálise. Trata-se de uma pesquisa

qualitativa, realizada por meio de consultas à bibliografia referente à

história da psicanálise em São Paulo e à história dos Centros de

Atendimento da SBPSP, documentação sobre o Centro, entrevistas com

seus integrantes e um questionário enviado aos integrantes do meu grupo.

Após participar como membro de um dos grupos da Primeira

Jornada de Avaliação do CCP, realizada em agosto de 2004, tive a idéia de

22

estudar mais profundamente algumas questões ali apontadas. Ao tomar o

CCP como um sintoma da crise da psicanálise acima exposta e já

consultando documentos e colegas, foi-me possível chegar a formular

mais precisamente o problema que estava investigando. A adesão dos

pacientes ao tratamento deixou de ser o foco principal de meu problema.

Durante a Jornada e no exame inicial dos documentos produzidos naquela

ocasião, como, por exemplo, a justificativa para a criação do CCP, e das

entrevistas com os participantes do Centro, foram-se evidenciando dois

discursos manifestos. Em um deles, o dos diretores, a ênfase era posta

sobre a divulgação da psicanálise na comunidade como opção de

tratamento para problemas psíquicos e sobre a necessidade de pacientes

para que os candidatos pudessem completar a formação. Reconhecia-se a

diminuição de pacientes interessados em análise, assim como o imperativo

de mudança dos modelos tradicionais. Esse discurso se fundamentava em

uma determinação da IPA, que apontava para uma crise na psicanálise,

restrita então, praticamente, à análise de formação. Em outros discursos,

dos representantes dos grupos de trabalho, o foco estava na chamada

clínica social. A crise dos consultórios era mencionada em um único

documento, uma voz isolada. Dessa forma, foi possível encontrar, nesse

conjunto de documentos e depoimentos, outros sentidos além dos

explicitados. Meu problema, então, passou a constituir-se na investigação

desses discursos, à procura daquilo que continham, mas não podia ser

manifestado. Ou seja, a identificação, no discurso explícito que ouvia ou

lia, do discurso implícito que carregava.

Meu estudo caracteriza-se, então, como um trabalho de Clínica

Extensa, segundo a concepção de Herrmann (2005), aquela que, utilizando

o método da psicanálise, centra-se na consideração dos campos

inaparentes que sustentam as relações manifestas, seja na clínica de

pacientes, seja em recortes do real humano. Particularmente, trata-se de

23

uma análise cultural-ideológica do CCP que, através das relações

constituídas e evidenciadas pelo que denominei discurso explícito, busca

chegar ao campo que o suporta, isto é, o discurso implícito que esconde.

Nas palavras de Fabio Herrmann: “(...) por campo havemos de

entender o conjunto de determinações inaparentes que dotam de sentido

qualquer relação humana, da qual a comunicação verbal é tão só o

paradigma.” (Herrmann, 2001, p.27).

Procurei contemplar todos os grupos que funcionavam no CCP no

período em que a pesquisa foi realizada, sendo este também o critério para

a escolha dos entrevistados. Havia oito grupos de adultos, um de crianças

e outro de família. A análise da pesquisa vai compor o capítulo 3 desta

dissertação.

2.2. Histórico da Psicanálise em São Paulo

Segundo Sagawa (1994), a história da psicanálise em São Paulo se

inicia na década de 20, a partir do interesse de dois médicos psiquiatras:

Francisco Franco da Rocha (1864-1933) e Durval Marcondes (1899-

1981).

Franco da Rocha foi professor de Clínica Neuropsiquiátrica da

Faculdade de Medicina de São Paulo e tinha entre os alunos Durval

Marcondes. Conta a história que, a partir de uma aula inaugural de Franco

da Rocha em 1919, versando sobre a doutrina de Freud, foi despertado o

interesse desse discípulo pela psicanálise.

Em 1927, Durval Marcondes toma a iniciativa de fundar a

Sociedade Brasileira de Psicanálise, que foi a primeira instituição

psicanalítica da América Latina. Visava promover reuniões científicas,

congregar interessados no estudo da psicanálise e fazer divulgação

24

psicanalítica por meio de cursos, palestras, artigos e entrevistas na

imprensa local.

Apesar da origem médica, a difusão da psicanálise em São Paulo

está ligada ao Movimento Modernista e ao ensino ministrado na Escola de

Sociologia e Política.

Encontrei em Azambuja (1995), citando Reinaldo Lobo (1994),

uma afirmação que corrobora esta idéia:

“Na década de 20, o Brasil, através das revoluções ‘tenentistas’

(em 22, 24 e 27), de sua intensa industrialização, e de sua

democratização, viveu a sua ‘Revolução Francesa’ (na expressão de

Lobo). São Paulo vivia, além disso, um clima de efervescência não apenas

em torno da psicanálise, mas da revolução modernista com início na

Semana de 22. Nesse clima democrático e modernizador surge a figura de

Durval Marcondes. Ele era um democrata, um estudioso, um indivíduo

com grande energia, um articulador. O fato de ter participado do

Movimento Modernista é um dos indicadores de como a psicanálise fez

parte da nossa modernização, ligada ao Iluminismo, assim como o

começo da Primeira República estivera ligado ao Positivismo (Lobo).

Essa poderosa inserção cultural e social da psicanálise entre nós é uma

marca distintiva da nossa identidade.” (Azambuja, 1995, p.36).

Depois de alguns anos, essa primeira Sociedade havia cumprido a

finalidade de estimular estudos e divulgar a psicanálise, sendo, então,

desativada. Tudo indica que, naquele momento, não havia a intenção

explícita de ser reconhecida pela IPA.

No entanto, em 1930, Durval Marcondes recebe de Max Eitingon,

presidente da IPA e um dos fundadores do Instituto de Psicanálise de

Berlim, uma publicação que diz respeito ao sistema de formação

psicanalítica ali desenvolvido. Este se tornou o modelo de formação

adotado por todas as Sociedades filiadas à IPA, baseado em três critérios:

25

análise didática, supervisão de dois casos clínicos e cursos teórico-

técnicos. Azambuja (1995, p.36) aponta para essa mudança:

“A função de Durval Marcondes como primeiro interlocutor local,

inicialmente de Freud e posteriormente da IPA, tinha como perspectiva,

como apontou Sagawa, a inserção da psicanálise não apenas em São

Paulo, mas no Brasil e até mesmo na América Latina. Essa perspectiva

sofre uma reviravolta em 1930, época em que o Instituto de Berlim torna-

se ‘modelo de formação psicanalítica adotado por todas as filiais da IPA,

baseado em três critérios fundamentais: análise didática, supervisão dos

casos clínicos e cursos teórico-técnicos’”.

Durval Marcondes empenha-se na implantação desse sistema aqui

e a isso se dedica durante quase dez anos. Para tornar possível a formação

de analistas, porém, era necessária a presença de um didata.

Por essa época, na Europa, os sinais da Segunda Guerra e da

perseguição aos judeus fizeram com que alguns analistas passassem a

imigrar para países que os acolhessem.

Alguns historiadores afirmam que, em 1932, o jovem psicanalista

René Spitz teria manifestado, em correspondência a Durval Marcondes, o

desejo de vir ao Brasil. Entretanto, a carta concordando com sua vinda não

teria chegado, pois eram tempos da Revolução Constitucionalista em São

Paulo. Ao não receber resposta, Spitz acabou indo para os EUA. De

qualquer maneira, foram feitas outras tentativas de trazer algum analista

didata para São Paulo.

Finalmente, no Congresso Psicanalítico Internacional de

Marienbad (agosto de 1936), Ernest Jones, então presidente da IPA, ficou

sabendo que a Dra. Adelheid Koch pretendia emigrar da Europa. Jones

lembrou-se imediatamente de Durval Marcondes. A Dra. Koch recebe

autorização de Jones e de Otto Fenichel para exercer funções didáticas e

desembarca em São Paulo no mesmo ano. Mas inicia o trabalho de

26

formação de analistas apenas em 1937, no consultório particular do Dr.

Durval Marcondes.

Os primeiros candidatos a analista aceitos pela Dra. Koch foram:

Durval Marcondes, Darcy de Mendonça Uchôa, Flávio Dias e Virgínia

Bicudo. Os três primeiros eram médicos. Virgínia Bicudo era professora

normalista, educadora sanitária pelo Instituto de Higiene da Universidade

de São Paulo e bacharel em Ciências Sociais pela Escola de Sociologia e

Política. Foi a primeira candidata ‘não-médica’.

Sagawa descreve particularidades desse primeiro momento:

“Nessa época não existia, no Brasil, nem a formação nem a

profissão de psicólogo. Virgínia Bicudo imprimiu uma marca distintiva e

duradoura no núcleo inicial do Grupo Psicanalítico de São Paulo: o de

aceitar candidatos não-médicos, com formação universitária em áreas

conexas à da Medicina.” (Sagawa, 1994, p.18).

Ainda segundo ele,

“Em 1944 formou-se o Grupo Psicanalítico de São Paulo,

composto pela Dra. Koch e por cinco analistas formados por ela,

incluindo os já citados e Frank Philips. Foi eleita também uma comissão

de ensino, escolhida entre os membros efetivos, para ‘promover,

organizar e fiscalizar’ a formação psicanalítica.” (Sagawa, 1994, p.19).

Mais de um ano após ser constituído, o grupo recebe autorização

para funcionar como ‘Sociedade Provisória’. Por essa época, novos

profissionais se juntam à equipe inicial: Henrique Mendes, Isaías Melshon

e Mario Yahn, com formação médica, e Lygia Alcântara Amaral,

professora, educadora sanitária e visitadora psiquiátrica da Clínica de

Orientação Infantil no Serviço de Higiene Mental Escolar, dirigido por

Durval Marcondes. O grupo almeja o reconhecimento oficial da IPA, e

passa a trabalhar nesse sentido.

27

Em 1946, Frank Philips muda-se para Londres e ali faz contactos a

fim de obter de Ernest Jones o reconhecimento definitivo da Sociedade.

Inicia também uma re-análise com Melanie Klein e posteriormente com

Bion, o que virá a ter uma grande influência no futuro da Sociedade.

O grupo provisório precisava de outro analista didata, além da Dra.

Koch, para conseguir tornar-se oficial, porque o didata não podia analisar,

coordenar grupos de estudo e supervisionar o mesmo candidato. Mantêm-

se diversos contactos por carta com a IPA, até que, em 1950, chega ao

Brasil o didata Théon Spanudis, vindo de Viena, onde fizera formação.

Com sua chegada, as normas da formação são finalmente cumpridas e, em

1951, no Congresso Internacional de Amsterdã, a Sociedade recebe o

reconhecimento oficial, passando a se chamar Sociedade Brasileira de

Psicanálise de São Paulo (SBPSP), a primeira filiada à IPA no Brasil.

Estava formada a primeira geração de analistas de São Paulo.

Durante os anos 50, começa a haver um aumento da procura pela

formação psicanalítica, principalmente entre médicos.

“A SBPSP era a única instituição paulista de formação a

responder a essas demandas. Esse monopólio se consolidou a partir de

1960.

O monopólio da formação ipeísta só será rompido com o

nascimento de novas escolas de formação e o aparecimento de novas

correntes teóricas e práticas psicoterapêuticas, ao longo dos anos 1970,

durante o período que ficou conhecido como o do “boom das práticas

psi’, e cujos efeitos de sua disseminação no social produziu no Brasil o

fenômeno que Castel chamou de cultura psicanalítica. Esse processo

caminhou paralelamente ao desenvolvimento da sociedade brasileira

ditado por uma política econômica de industrialização acelerada, pelo

crescimento de uma classe média urbana e por um contexto político de

28

clivagem ideológica que culminou com o endurecimento do regime militar

a partir de dezembro de 1968.” (Oliveira, 2006, p.232).

Segundo Sagawa, em 1958 é proposta a criação do Instituto de

Psicanálise da SBPSP, com a finalidade de organizar a formação dos

candidatos a analista; só em 1960, porém, constitui-se a primeira diretoria,

presidida por Mário Yahn. A demanda de candidatos cresceu muito,

obrigando a uma organização mais complexa do sistema de formação.

A segunda geração de analistas, composta principalmente por

médicos, vai se formar a partir dos anos 60. Em 1960, Virgínia Bicudo

volta de uma viagem a Londres, onde estivera por cinco anos, trazendo as

concepções kleinianas que, de certa forma, rompiam com a formação

ortodoxa freudiana de Marcondes e Koch. É ela também quem menciona

Bion pela primeira vez em uma reunião da Sociedade, embora, ao que

parece, somente pelo fato de ele ser um analista kleiniano.

Oliveira nos informa que:

“Foi também Bicudo quem colocou em funcionamento os

dispositivos de seleção e formação, assim como os de estruturação da

Instituição. Por meio dela, a Sociedade passou a contar, entre outros,

com um secretariado e se engajou na construção da nova sede.”

(Oliveira, 2006, p.253).

Segundo Oliveira (2006), entre 1961 e 1970 foram aceitos no

Instituto 61 candidatos. Para ela, esse crescimento foi acompanhado de um

fechamento da instituição sobre si mesma e uma centralização de poder,

desaparecendo, assim, o espírito familiar do início da vida societária.

Quanto ao caráter do ensino teórico, encontramos:

“(...) no período anterior à criação do Instituto, nos anos 40 e

parte dos anos 50, a parte teórica da formação se dava em reuniões

realizadas na residência e consultório de Durval Marcondes sem a

formalização de um curso teórico, tal como existe hoje. No entanto,

29

estando sob a direção e responsabilidade quase que exclusiva de Adelheid

Koch, seguia os padrões de ensino da IPA. Desde 1962 até hoje, o curso

teórico está montado sobre temas pilares: A) cursos versando sobre temas

teóricos da psicanálise, B) cursos de teoria da técnica psicanalítica e C)

seminários clínicos.” (Vannucchi et al., 1995, p.52).

Durante os anos 60, a fila para análise didática aumentava sempre,

chegando a quatro anos de espera. Essa situação perdura até meados da

década seguinte, enquanto a SBPSP detinha o monopólio da formação.

“Os anos 60 foram marcados por duas características de

renovação psicanalítica: uma científica, outra geracional. A primeira

ficou por conta das primeiras e vagas referências a Bion. A segunda por

conta de novos analistas que, embora tivessem acabado de ser eleitos

como membros da SBPSP, assumiram, rapidamente, os principais cargos

eletivos, nos anos 70.” (Sagawa, 1994, p.26).

Com o retorno de Frank Philips ao Brasil, em 1969, um novo

período se inicia. Toda a nova geração de analistas vai ser influenciada por

ele e pela idéias de Bion. A formação torna-se mais sofisticada e elitizada.

Essa situação é exemplificada pela entrevista que Amélia Vasconcelos

concedeu ao Jornal de Psicanálise (Vannuchi e Herrmann, 1996, p.131):

“Com a vinda de Frank Philips para São Paulo subitamente o

preço da análise triplicou: Foi a inflação philipiana. Não me lembro das

cifras exatas, mas se meu paciente de supervisão me pagava, por sessão,

cinco cruzeiros na época, eu pagava 15 a sessão de análise didática e a

supervisão, de repente passei a pagar como que 50. Isso restringiu muito

a possibilidade de formação, pois tínhamos que trabalhar muito mais

para cumprir os compromissos assumidos, reduzindo com isso o tempo

disponível para estudo.”

Nos anos 70 e 80, a Sociedade atingiu um nível clínico e científico

bastante complexo, coincidindo com um grande prestígio e prosperidade

30

dos analistas, que podiam escolher pacientes, cobrarem o que achassem

justo por seu trabalho, e ninguém sequer questionava a freqüência de

quatro vezes por semana.

“Existe um mercado de ‘psico-utilidades’, o qual é avidamente

disputado. E nesse mercado o psicanalista ocupa o cume da hierarquia e,

nessa faixa privilegiada, há um combate por melhores posições de lucros

financeiros, prestígio social e institucional.” (Rocha, 1990, p.105).

A grande procura por análise e a situação bastante confortável dos

analistas, do ponto de vista econômico, atraía cada vez mais candidatos

para a formação, apesar do alto custo.

Na década de 70, a situação começa a mudar, pois, conforme

estudo de Candiota (1976, p.17), o aumento dos valores cobrados em

análise vai restringindo a camada social que pode arcar com o custo – ela

passa a ser de 0,2% da população economicamente ativa de São Paulo. A

formação não pode mais ser financiada apenas com o trabalho de

consultório, o que leva a uma mudança de perfil dos candidatos.

A partir de meados dos anos 80, essa mudança se torna evidente,

como informa Oliveira (2006, p.267), por meio da tabela abaixo, exposta

em seu livro:

31

Tabela 1 - Candidatos Inscritos no Instituto entre 1974 e 1997, por sexo

e formação

Ano Homens Mulheres Médicos Não-Médicos Total

1974/1975 48 22 58 12 70

1976 53 26 61 18 79

1977/1978 64 40 75 29 104

1982/1983 94 90 111 73 184

1985 95 139 112 122 234

1989 94 150 105 139 244

1992 76 197 98 175 273

1993 88 209 112 185 297

1997 74 207 97 184 281

A profissão torna-se mais feminina e menos médica. Colabora para

isso a abertura de diversos cursos de Psicologia.

A meu pedido, a secretaria da SBPSP realizou uma pesquisa para

obtenção dos dados referentes aos anos subseqüentes, de 1998 a 2007.

Contudo, eles se referem aos candidatos que foram selecionados em cada

ano, e não ao total dos inscritos no Instituto. Embora não sejam dados

equivalentes, parecem manter a tendência apontada por Oliveira.

32

Tabela 2 - Candidatos admitidos no Instituto entre 1998 e 2007, por

sexo e formação

Ano Homens Mulheres Médicos Não -Médicos Total

1998 2 21 1 22 23

1999 4 12 3 13 16

2000 4 36 3 37 40

2001 1 7 1 7 8

2002 10 44 6 48 54

2003 n.d. n.d. n.d. n.d. n.d.

2004 5 14 4 15 19

2005 3 18 3 18 21

2006 0 16 0 16 16

2007 1 14 0 15 15

Embora a procura ainda fosse grande, a SBPSP já não detinha a

exclusividade da formação, como podemos constatar pela citação de

Rocha (1990, p.86):

“(...) Houve em São Paulo, no final dos anos 1970 e começo dos

1980, um crescimento intenso do número de entidades que têm na

psicanálise seu eixo central. Como decorrência também se deu um

aumento de psicanalistas, tanto provenientes das inúmeras instituições

alternativas ou não oficiais, como da chamada oficial, a SBPSP.”

Rocha ainda menciona um artigo publicado pela Folha:

33

“Na edição da Folha de São Paulo, de 5 de maio de 1989, o

articulista Paulo César Souza escreveu um pequeno artigo que tem por

titulo ‘Psicanálise é Surto no Brasil’. Ali nos informa que é imenso o

número de aspirantes a psicanalistas em nosso país, afirmando que ‘os

motivos são de natureza econômica e social’. No Brasil, um psiquiatra ou

psicólogo empregado numa instituição ganha miseravelmente. Logo, a

maioria dos estudantes quer se tornar psicanalista.” (Rocha, 1990, p.89).

A profissão de psicanalista exercia uma grande atração sobre os

profissionais da saúde, pois era bem remunerada e garantia um status

social diferenciado.

Essa situação, vivida pelos analistas até meados dos anos 90,

começa a se modificar rapidamente, coincidindo com o empobrecimento

da classe média que, mesmo continuando a procurar análise, pode pagar

cada vez menos por ela.

Além disso, há o aumento da oferta de terapias, medicamentosas

ou de outras linhas de abordagem, que passam a concorrer diretamente

com a psicanálise.

Oliveira (2006, p.277) faz referência a uma pesquisa da ABP

realizada em 1998, que retrata a seguinte realidade: “Os analisandos

fazem, em média, duas a três sessões por semana; cada analista possui

cerca de 11,5 analisandos, principalmente adultos. Outro dado

importante: 42% dos analistas das Sociedades Brasileiras, associadas à

IPA, tiveram sua renda diminuída desde 1996. Essa baixa já havia sido

constatada em outra pesquisa encomendada em 1992, pela mesma ABP”.

A psicanálise nasceu e se revelou em nosso meio como uma

profissão de prestígio social e econômico. Mas no final dos anos 90 e

início de 2000, essa realidade vai mudar.

O CCP é criado quando a crise de mercado passa a atingir os

analistas como um todo, e não só os candidatos à formação.

34

2.3. História dos Centros de Atendimento da SBPSP

A história dos Ambulatórios e dos Centros de Atendimento da

SBPSP está ligada diretamente, por um lado, à formação de novos analistas

e, por outro, à difusão da psicanálise enquanto prática terapêutica. Penso

que podemos traçar um paralelo entre estas duas histórias.

Tudo começa por volta de 1964/1965, quando é instalado o

Ambulatório concebido pela Professora Virgínia Leone Bicudo, então

diretora do Instituto da SBPSP.

No início, o Ambulatório responsabilizava-se pelo

encaminhamento, aos candidatos, dos pacientes para supervisão oficial. Os

candidatos entregavam à Sociedade o que recebiam como pagamento, e

esta lhes forneciam supervisão. O candidato não pagava diretamente ao

supervisor.

Cecil Rezze, em entrevista ao Jornal de Psicanálise (Vannuchi e

Herrmann, 1996, p.130/1), conta que:

“(....) havia um problema específico, que de certa maneira

continua a existir hoje, o do custo da formação. Naquela época nós

tínhamos uma outra queixa, relativa à supervisão oficial. O paciente que

iríamos atender como caso de supervisão não podia ser de nossa clínica,

era indicado pelo Instituto. Nesse momento deixávamos de pagar pelo

curso, mas tínhamos de destinar ao Instituto metade dos honorários

recebidos daquele paciente.”

O Ambulatório funcionou por mais de dez anos sem ser

reconhecido como integrante do organograma da SBPSP. Segundo

levantamento feito por Lanzoni e Nóbrega (1999), só em 1975 aparece

uma referência ao Ambulatório Clínico no regulamento do Instituto, como

tendo o objetivo de permitir a pacientes com poucos recursos econômicos

35

o acesso ao tratamento. Não se menciona a intenção de fornecer pacientes

a candidatos.

Ainda segundo os mesmos autores, no início dos anos 70, com a

saída de Dona Virgínia da diretoria do Instituto, o Ambulatório é

reestruturado, ficando sob responsabilidade do Secretário do Instituto. A

triagem de pacientes começa a ser feita pelos candidatos. Estes criam uma

Associação, o Centro de Estudos Luis Vizzoni, que passa a se incumbir de

organizar o Ambulatório, ainda vinculado ao Secretário do Instituto.

Na reforma dos estatutos e regulamentos da Sociedade, em 1984, o

Ambulatório não é mais contemplado, perdendo o vínculo oficial com a

Sociedade, com o Instituto e com a Associação dos Candidatos, criando-se

assim uma situação sui generis. Ele deixa de existir juridicamente, embora

continue funcionando.

Mesmo nessa condição de informalidade, o Ambulatório, que

muda de nome para Serviço de Atendimento, acaba por ser fechado, em

1986. Lanzoni e Nóbrega informam que ele simplesmente pára de

funcionar. A partir de pesquisas e entrevistas, os autores propõem como

hipótese mais provável, que os próprios candidatos tenham se

desinteressado dele. No entanto, há registros oficiais de sua reabertura em

setembro de 1987, por solicitação dos candidatos, tendo sido

acompanhado pelo Secretário do Instituto durante cinco anos.

A partir dessa data, seu funcionamento passa a ser coordenado

pelos próprios candidatos, que se organizam para tanto.

Em 1997, o Serviço de Atendimento (SAT) volta a ser

oficialmente reconhecido, integrando a Comissão de Comunidade e

Cultura da SBPSP, mas continua sob responsabilidade exclusiva dos

candidatos.

Por essa época, ainda segundo Lanzoni e Nóbrega, o número de

participantes do SAT havia crescido significativamente. Em contrapartida,

36

diminuíra a demanda de pacientes. Dessa forma, era difícil prover

pacientes a serem atendidos quatro vezes por semana, para as supervisões

oficiais. Eram os primeiros sintomas da crise da psicanálise que começava

a se instalar, mas ainda não era nomeada.

Essa situação estimula o aparecimento de uma proposta de

pesquisa, para melhor estudar o fenômeno.

No início de 2000, a diretoria do SAT, sob coordenação de Maria

Rosa Maris Sales, realiza uma pesquisa visando levantar dados do período

de 1998 até aquela data. Utilizou-se para tanto um questionário: enviaram-

se 78 deles pelo correio, dos quais foram respondidos 62.

O objetivo do questionário era obter as seguintes informações: se

os encaminhamentos chegavam aos consultórios, se os pacientes

iniciavam a análise, tempo de duração e freqüência semanal de sessões.

Cabe ressaltar que, naquele momento, muitas experiências tinham sido

tentadas e testadas na prática, em relação à recepção e triagem de

pacientes.

Alguns dados relevantes das respostas:

• O total de encaminhamentos no período estudado foi de 171.

• Destes, 105 (61%) entraram em contato com o analista, e 91

compareceram à primeira entrevista.

• Dos 71 (42%) encaminhados que iniciaram a análise, 37

(22%) permaneceram;

• Dos que se mantiveram em análise, 21 realizavam até duas

sessões por semana e 16, entre três e quatro.

• Em média, foram encaminhados 2,8 pacientes a cada membro

analista do SAT, dos quais 1,2 iniciaram a análise e 0,6 permaneceram.

Após anos de discussão e experimentação, as triagens eram mais

bem feitas e uma percentagem maior de pacientes (61%) procurava os

analistas indicados. Ainda assim, os dados mostram que só mantinham o

37

tratamento aproximadamente 22% dos que o iniciavam; destes, 9,5% com

a freqüência semanal de três ou quatro sessões.

Essa pesquisa não chegou a ser mais bem utilizada, pois, em 2000,

com a eleição da nova Diretoria da SBPSP, o SAT começa a ser

desativado e substituído pelo Centro Clínico e de Pesquisa, ligado ao

recém-criado Setor III.

Foi difícil viver o processo na época, não só pelo caráter definitivo

do fechamento, mas, sobretudo, porque a experiência acumulada pelo

SAT não pôde ser aproveitada. Em um artigo publicado na revista IDE em

dezembro de 2002, o grupo assim se manifesta:

“(...) Encerramos nossas atividades, após mais de um ano de

elaboração lenta e sofrida do anúncio do nosso fechamento, numa

reunião com 70% dos participantes, na qual brindamos ao trabalho

realizado e homenageamos colegas antigos, num clima de orgulho e dever

cumprido.” (Integrantes do SAT, 2002, p.152/3).

O SAT pertencia à história da Sociedade de Psicanálise, era um

serviço composto e dirigido principalmente por candidatos e cumpria

diversas funções além da formação:

“(...) Inicialmente, o objetivo principal deste Serviço era o

provimento de pacientes a serem atendidos quatro vezes por semana, para

os candidatos em formação. Observamos que cumpria outras funções,

como atender ao interesse de diversificação da clientela dos consultórios,

oferecer um espaço de convivência aos candidatos, o que favorecia o

desenvolvimento de uma consciência institucional; ainda, se constituiu

numa alternativa de inserção na instituição para candidatos novos.”

(Integrantes do SAT, 2002, p.152).

Já o CCP – embora isto não fosse muito claro para quem, como eu,

estava vivendo o processo – surge em outro momento histórico, de crise

38

nos consultórios em geral. A Sociedade toma para si a organização do

Centro como uma forma de responder institucionalmente a essa crise.

O fato de a experiência do SAT não ter sido aproveitada acarretou

uma série de conseqüências desagradáveis para o funcionamento inicial do

Centro. Certos temas, como processos de triagem, diagnóstico de

pacientes, número de sessões semanais, que haviam sido exaustivamente

discutidos pelos integrantes do Serviço, voltaram a aparecer, tratados

como se não houvesse experiências anteriores pertinentes e conhecimento

acumulado a respeito deles.

A criação do Centro é feita a partir da determinação da nova

diretoria e sua fundamentação teórica está baseada em vários documentos

referentes à criação de Centros semelhantes em países latino-americanos e

europeus. A necessidade e importância de sua criação naquele momento

são atribuídas à constatação, como mostrado nesses documentos, de que as

Sociedades de Psicanálise estavam vivendo um processo de fechamento e

declínio. Matteo (1992), em texto elaborado para um encontro do Centro

de Atendimento da Sociedade do Uruguai, afirma que, após dificuldades

iniciais de aceitação, a psicanálise viveu, no Uruguai, um período de

grande desenvolvimento e popularização, mas, naquele momento, estava

em declínio, fechada em si mesma, restrita à psicanálise de formação. A

situação era a mesma em São Paulo, naquele momento.

No final dos anos 90, diminuiu a procura por análise, a ponto de

chamar a atenção da IPA, que passou a pressionar os filiados para se

abrirem para a sociedade como um todo, deixando de ser somente um

local de transmissão da psicanálise, encerrado em si mesmo. Isso seria

condição para a sobrevivência da psicanálise como terapia.

O exame dos documentos mencionados acima mostra que a

preocupação com os rumos do ensino e da divulgação da psicanálise

começou há alguns anos. Quando se reduziu o padrão de procura, os

39

analistas tiveram de pensar no que estavam oferecendo aos pacientes, e

isso fez aumentar o interesse por pesquisa, divulgação e assistência. A

necessidade de ter uma fonte de encaminhamento de pessoas interessadas

em fazer psicanálise torna-se premente. O fato é que, a partir dessas

constatações, a diretoria da SBPSP eleita em 2000 cria um novo setor,

denominado Setor III. Este se voltaria para atividades englobando

contactos com instituições comunitárias, como Universidades, e uma

clínica dirigida ao atendimento de uma suposta população de baixa renda,

para a qual a análise comum estaria fora de alcance, pelo alto custo.

Serviria também ao interesse dos candidatos, de terem pacientes quatro

vezes por semana para completar a formação com as supervisões oficiais.

Diversas Sociedades de Psicanálise já possuíam, há muito, Centros

de atendimento. Apenas na América Latina, Sociedades como as do

Uruguai, do Peru e da Argentina dispunham de Centros funcionando havia

mais de dez anos.

Em 1999, como foi mencionado na Introdução, realizou-se em

Montevidéu o Primeiro Encontro de Diretores dos Centros de Difusão da

América Latina, patrocinado pelo Comitê de Psicanálise e Sociedade da

Associação Psicanalítica Internacional, por meio de seus representantes na

América Latina. Do Encontro participaram a Sociedade Psicanalítica do

Uruguai, a Sociedade Peruana, a Associação Psicanalítica de Córdoba, a

Associação Chilena, a Sociedade de Mendonza e a SBPSP que, na época,

não tinha Centro de Atendimento oficial, mas um Serviço de

Atendimento, gerido pelos próprios candidatos (SAT).

Em outubro de 2000, um segundo encontro foi realizado no Rio de

Janeiro, organizado pelas Sociedades de lá. No mesmo ano, conforme já

foi dito, fora criado o Centro oficial da SBPSP, com o nome de Centro

Clínico e de Pesquisa, incluindo entre seus propósitos a pesquisa. De 2000

40

a 2002, o Centro vai sendo organizado, mas o atendimento dos pacientes

continua sob responsabilidade do SAT.

Desde sua criação, o CCP integra o organograma da SBPSP,

diretamente vinculado à Diretoria de Cultura e Comunidade. Tem por

finalidade o atendimento clínico de pacientes que procuram a Sociedade,

configurando-se como Centro de Atendimento à comunidade. Uma de

suas funções fundamentais é proporcionar pacientes para os analistas em

formação.

O Centro agora ocupa a antiga sede da SBPSP, onde uma

Assistente Social, que tem a função de secretária, encarrega-se de atender

os telefonemas de quem procura o serviço, para agendar a data da

inscrição. Esta deve ser feita pessoalmente, pois o paciente precisa

preencher uma ficha, assinar um termo de compromisso e pagar uma taxa.

O paciente era informado de que seria procurado por um analista

para uma entrevista de triagem. Nesta, o triagista preenche um protocolo

constando de quatro partes, sendo a primeira uma entrevista livre; a

segunda, dados de anamnese clássica; a terceira, aspectos psicodinâmicos

específicos e hipótese diagnóstica com base no CID-10; a quarta e última,

a ser preenchida no decorrer do tratamento, tratava da evolução do

paciente.

Ao final dessa entrevista, o cliente era informado de que deveria

aguardar uma reunião clínica, em que se determinaria qual analista o

atenderia; este iria procurá-lo. A partir daí, a relação entre paciente e

analista não tinha mais a interferência da instituição. A espera pelo

encaminhamento podia durar de uma semana a mais de um mês. Os casos

eram triados nos grupos. Os protocolos dos pacientes eram distribuídos

pela secretária, dependendo das possibilidades desses grupos de discuti-

los. Cada coordenador determinava a quantidade de casos para discussão

na reunião mensal, baseado em consenso da equipe. Nessas reuniões

41

clínicas, as triagens eram debatidas e, caso se considerasse que se tratava

de um paciente para análise, um analista se dispunha a recebê-lo. Caso

contrário, ele poderia ser encaminhado pelo triagista para algum recurso

da comunidade. Aliás, este tinha a liberdade de fazer tal encaminhamento

mesmo sem passar pela reunião, se constatasse que a indicação adequada

ao paciente não era a análise. O triagista não podia atender em análise o

paciente que triava. Não se estabelecia valor mínimo para as sessões,

sendo este um ponto a ser tratado entre analista e paciente.

Nas reuniões mensais, o grupo discutia, além dos casos para

encaminhamento, as normas de funcionamento do Centro. Por exemplo, a

regra de que o triagista não deveria atender os pacientes que triava foi uma

das mais contestadas. A obrigatoriedade de preenchimento do protocolo

também. O tempo decorrido entre a triagem e o atendimento era um tema

que preocupava os analistas, assim como a precariedade financeira e

emocional dos pacientes que procuravam o Centro.

A fim de contribuir para a formação dos candidatos, alguns

analistas-didatas se ofereceram para supervisionar os atendimentos

cobrando preços acessíveis, proporcionais ao que os pacientes pagavam.

Perdiam-se muitos pacientes na longa espera entre a triagem e o

encaminhamento. Mesmo depois que o próprio triagista passou a poder

atender o paciente, a desistência não diminuiu muito. Em minha

experiência, só uma pequena minoria permanecia em análise por mais de

seis meses.

Após dois anos, em agosto de 2004, é feita uma Jornada para

avaliar o funcionamento do CCP. Nesta, representantes dos diversos

grupos se expressam por escrito, e os Diretores do Setor III e do Centro se

manifestam por discursos.

42

A organização inicial, com variações próprias de cada grupo, vai

se manter até o início de 2005, quando nova Diretoria da SBPSP é eleita,

introduzindo modificações:

1. O nome muda para Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP).

2. O processo de triagem sofre uma alteração: o paciente que

procura o CAP deve comparecer pessoalmente e responder, por escrito,

por que procurou e como acha que a psicanálise pode ajudá-lo. Esses

escritos serão lidos nas reuniões mensais dos grupos e os analistas vão

escolhendo os casos, de acordo com disponibilidades pessoais. O antigo

protocolo deixa de ser utilizado.

Realizei a coleta de dados com os participantes do CCP no início

de 2005, antes da posse da nova diretoria da SBPSP e da implantação das

mudanças expostas.

43

CAPÍTULO 3 – A PESQUISA E OS DADOS OBTIDOS

Calma.É preciso ter calma no Brasilcalminacalmariancalmogencalmovita.

Que negócio é esse de ansiedade?Não quero ver ninguém ansioso.O cordão dos ansiosos enfrentemos:ansipanansiex ansiax ansiolax,ansiopax, amigos!

Discurso de Primavera e algumas sombrasCarlos Drummond de Andrade

Este capítulo está dedicado à exposição da pesquisa mencionada na

Introdução. Vou dividi-lo em dois itens: no primeiro, descrevo mais

detalhadamente como a pesquisa foi realizada, bem como seus sujeitos:

documentos e entrevistas com representantes dos diversos tipos de

participantes do CCP. No segundo, passo à análise dos dados obtidos.

Organizei o processo da seguinte maneira: entre aspas, cito o que considero

o discurso explícito nas falas das entrevistas e nos documentos escritos.

Farei minha análise desses discursos por meio de comentários às vezes

como interpretações dos textos, às vezes como pequenas observações,

procurando revelar como se mostra o que designei como discurso implícito.

3.1. Descrição da pesquisa

Os aspectos mais gerais de minha pesquisa já foram descritos no

capítulo 2. Agora passo a detalhá-la melhor.

44

Ela compreendeu uma pesquisa bibliográfica sobre a história da

psicanálise em São Paulo, dos Centros de Atendimento, abrangendo, mais

especificamente, o histórico dos Centros de Atendimento da SBPSP e a

crise da psicanálise. Nesse sentido, analisei documentos, livros, artigos,

estatutos e cartas de intenção, ou seja, documentos e bibliografia tratando

dos seguintes assuntos:

1. Históricos sobre a introdução e difusão da psicanálise na

cidade de São Paulo;

2. Históricos da criação do Instituto de Formação da SBPSP e

sua função na institucionalização da psicanálise em São Paulo;

3. Histórico dos Ambulatórios da SBPSP;

4. Documentos que antecederam a criação do CCP;

5. Estatutos e normas de funcionamento do Centro;

6. Discurso gravado e transcrito do Diretor do Setor III, por

ocasião da Primeira Jornada de Avaliação do CCP;

7. Bibliografia disponível sobre a crise da psicanálise.

Em paralelo, foram realizadas entrevistas e questionários com os

participantes do CCP: o Diretor, a Secretária/Assistente Social,

coordenadores e analistas participantes dos grupos, inclusive do meu.

A análise dos itens 1, 2 e 3 já foi realizada anteriormente, mais

precisamente no capítulo 2. Da mesma forma, o item 7, a saber, a crise da

psicanálise, já foi contemplado no capítulo 1, a Introdução.

A investigação do Centro compreende o período que vai de 2002 a

2005, desde o início de seu funcionamento até a eleição de nova Diretoria

da SBPSP, que instituiu diversas mudanças nos processos de atendimento.

Comecei por uma pesquisa mais focada nos participantes do CCP,

mediante entrevistas com eles, realizadas durante a transição de uma

diretoria para a outra, entre os meses de fevereiro e maio de 2005.

45

Nessas conversas com os colegas, procurei manter uma espécie de

‘atenção flutuante’, no sentido de torná-las o mais abertas possível, para

que os temas relevantes emergissem naturalmente.

Levava comigo um pequeno gravador e um roteiro básico. À

medida que a conversa transcorria, fazia perguntas para esclarecer um

ponto ou outro. As entrevistas foram gravadas e transcritas.

Ao diretor e coordenadores, solicitei que discorressem mais

amplamente sobre sua experiência no Centro. Com a secretária, procurei

me informar de como era o processo de atendimento, compreendendo a

sistemática iniciada pela ligação telefônica da pessoa à procura de análise,

até a entrevista de triagem e o encaminhamento para um analista. Um

curioso desdobramento dessa entrevista foi a revelação de uma série de

informações sobre os potenciais analisandos, até então não registradas

formalmente. Cito como exemplo, o grau de angústia vivido por certas

pessoas, transformando o primeiro contacto com a secretária, a princípio

burocrático, em ocasião para longos desabafos e pedidos de ajuda.

Constavam do meu roteiro básico para os demais analistas as

seguintes perguntas:

1. Por que trabalha no Centro e desde quando?

2. Quais as principais dificuldades que encontra no seu trabalho?

3. Está atendendo, atualmente, algum paciente no Centro?

4. Vê alguma diferença entre seus pacientes da clínica particular

e os do Centro?

A partir da avaliação dessas entrevistas, considerei apropriado

aplicar um questionário aos participantes do meu grupo, por ter com eles

maior proximidade. O foco principal estava em avaliar as razões da

permanência ou não, em análise, dos pacientes que procuravam o Centro,

com ênfase na visão dos analistas a respeito. Estava em busca de mais

46

dados sobre o ponto de vista destes analistas quanto à suposta pequena

adesão dos pacientes à análise, um dos sintomas da crise da psicanálise.

Dos treze questionários enviados, obtive sete respostas.

As perguntas eram as seguintes:

1. Desde quando participa do Centro Clínico e de Pesquisa

(CCP)?

2. Até hoje, quantos pacientes recebeu?

3. Quantos pacientes atende atualmente?

4. Que hipóteses faz para os pacientes que não ficaram?

5. Que hipóteses faz para os pacientes que ficaram?

Um ponto a ressaltar foi o grau de compromisso dos participantes

no processo. Isso foi expresso, por exemplo, no fato de alguns colegas, ao

saberem que eu estava realizando as entrevistas, pedirem para ser

entrevistados. Outros sugeriam que abordasse este ou aquele assunto a

respeito dos atendimentos. Todos pareciam satisfeitos em poder falar de

sua experiência.

3.2. Análise dos dados obtidos

Passo agora a descrever e analisar o conteúdo das entrevistas e

documentos citados nos itens 4, 5 e 6.

Trabalhei os dados agrupando os sujeitos da pesquisa em duas

categorias. A primeira, que denominei Corpo Diretivo, compreende as

entrevistas com o diretor do Centro, coordenadores de grupo e a

secretária/assistente social, bem como os documentos relativos à criação e

organização do Centro e aqueles apresentados na Primeira Jornada de

Avaliação do CCP. Os analistas que atendem os pacientes que procuram o

Centro formam a segunda categoria, a dos Analistas.

47

Defini dois eixos orientadores para a análise dos dados obtidos na

pesquisa:

1) Crise da psicanálise e sua explicitação no CCP.

2) Caracterização da demanda dos pacientes do Centro.

As respostas dos membros de meu grupo aos questionários foram

analisadas privilegiando o segundo eixo.

O procedimento adotado foi o de selecionar trechos das entrevistas

(sem identificar o entrevistado) e dos documentos em que esses eixos de

análise mostravam-se mais claramente. Em minhas considerações,

procurei ater-me ao objetivo desta dissertação, isto é, de, pelo discurso

explícito expresso, indicar as pontas do discurso implícito que não pode

ser enunciado. Nessa trajetória analítica, pude ir construindo uma

interpretação que, em conjunto, mostrou-se conclusiva. Por isso me decidi

por um capítulo final de considerações gerais sobre o desenvolvimento da

dissertação.

3.2.1. A crise da psicanálise e sua explicitação no CCP

Em diversos trechos do discurso do Corpo Diretivo, é possível

identificar uma estreita relação entre as razões alegadas para a criação do

Centro e a crise da psicanálise. Senão vejamos:

“... mas o objetivo está bem em função de uma política que é da

Associação Psicanalítica Internacional, a IPA, preocupada

especificamente com a questão de que a psicanálise comme il faut, como

se entende, de quatro vezes por semana, dentro do referencial proposto,

das exigências da formação, estava muito restrita a analistas, e não era

uma opção de busca das pessoas da comunidade, comuns.”

Ou ainda, esclarecendo como o Centro foi pensado:

48

“ (...) tudo dentro de uma política que não é local, é internacional,

da IPA, de tornar a psicanálise mais conhecida para enfrentar essa crise

que é de desconhecimento da psicanálise e também das forças da

psiquiatria, (...) que torna a psicanálise uma coisa meio assustadora para

as pessoas, rara, de muito tempo.”

Os motivos explicitamente relacionados às recomendações da IPA,

porém, não escondem a constatação de que a crise não se restringe a uma

questão interna à própria psicanálise, mas sinaliza sua perda progressiva

de legitimidade enquanto opção terapêutica. Neste sentido o trecho

seguinte é paradigmático:

“(...) é um empobrecimento porque, na verdade, a gente percebe

isso aqui de maneira quase caricata. Até no meio médico a psicanálise... é

uma coisa assim: quatro vezes por semana parece que é do tempo do

Freud e só.”

Nessas menções à crise, encontro uma formulação, não manifesta,

da psicanálise identificada com a clínica-padrão e apresentando problemas

em sua prática. No trecho que selecionei abaixo, porém, a crise é

explicitamente relacionada à separação que ocorre entre o conhecimento

psicanalítico possível e as condições nas quais sua prática é realizada,

ressaltando a necessidade de repensá-las:

“(...) A psicanálise enquanto conhecimento, enquanto corpo

teórico que surgiu para dar conta de certa dimensão da humanidade

moderna, (...) eu acho que não está morta. Ao contrario, está muito viva.

Agora, as condições de sua prática, isto é outra coisa. São questões de

outra natureza, de como a psicanálise vai ser consumida no mercado

produtivo (...) não é da natureza do conhecimento. (...) O conhecimento

psicanalítico não tem que mudar; ao contrário, ele está extremamente

vivo (...)

49

Podemos ler nos documentos oficiais da criação do Centro uma

referência específica à crise. Em trecho das considerações iniciais do

‘Anteprojeto para a Implantação de um III Setor na Sociedade

Brasileira de Psicanálise de São Paulo’, reproduzido abaixo, menciona-

se a diminuição da procura por análise como fator de encolhimento do

mercado de trabalho dos analistas:

“Mesmo nos setores envolvidos, de alguma forma, com a área da

saúde mental, como os médicos, estudantes de medicina, assistentes

sociais, etc., não é raro encontrar:

a) Um desconhecimento das diferenças entre o que são e que

funções desempenham um psiquiatra, um psicólogo, um psicoterapeuta e

um psicanalista;

b) Uma oposição irracional a tudo que tem a ver com essas

especializações.

São condições que põem em risco a atividade da psicanálise e

ameaçam a sobrevivência do psicanalista, uma vez que já não prevalece

aquela situação economicamente confortável existente há alguns anos. E

acreditamos que não devemos ter pudor em confessá-lo, pois estamos

seguros de que o legítimo interesse dos psicanalistas, que aponta para a

necessidade de ampliação de seu mercado de trabalho, não se opõe à

ampliação de suas ações, visando atuar sobre uma demanda populacional

excluída, também por razões sócio-econômicas.”

A uma leitura rápida, poderia parecer que um dos principais

fatores envolvidos na crise da psicanálise seria a falta de conhecimento de

sua atuação por parte da população em geral, incluindo os profissionais de

saúde mental. Entretanto, se assim fosse, bastaria uma ação de divulgação

e esclarecimento por parte da SBPSP para sanar o problema.

O excesso de oferta e a dificuldade para discriminar o que de fato

tem valor ou não, no mercado das terapias, também é designado como

50

fator componente da crise. O trecho abaixo, no entanto, revela uma

apreensão com a concorrência que o movimento psicanalítico, dito oficial,

passou a ter de enfrentar e, implicitamente, aponta para o não dito do

encolhimento da oferta de pacientes:

“Outro fator importante foi uma questão que não é só nossa, mas

uma questão mundial talvez, provocada pela proliferação de técnicas,

pela expansão da medicação e do atendimento psiquiátrico, que mostrou

a necessidade de realmente darmos uma empurrada e levar a psicanálise

mais claramente para fora.”

O fechamento da psicanálise dentro das instituições de

transmissão, seu suposto descompasso com o mundo atual revela-se agora

como um problema de conseqüências sérias, conforme sugere o seguinte

depoimento:

“O que se verificou é que ela, a psicanálise, nos meios culturais e

científicos, se ligava ainda muito a um modelo tradicional, freudiano, em

que o paciente se deita no divã, o analista não fala, a pessoa fica ali dez

anos, nem sempre com bons resultados. Quem é que tem tempo, dinheiro e

vontade de fazer isto? Ninguém. Então se tentou dar uma visão, mostrar

outra perspectiva da psicanálise como podendo interferir no mundo,

contribuir com o mundo, por meio de várias outras possibilidades.”

No entanto não existe consenso em relação à conveniência de

divulgar a psicanálise; teme-se o risco de vulgarizá-la, tornando-a um

produto de fácil consumo, para atender pressões de mercado.

Acompanhando a citação abaixo, referente ao documento ‘Anteprojeto

para a Implantação de um III Setor na Sociedade Brasileira de

Psicanálise de São Paulo’, podemos ver alusões a esse medo:

“Há uma série de outras questões que estão nas (inter) entrelinhas

dessa exposição. Só para citar algumas:

51

a) a necessidade de manter a formação de psicanalistas tão

rigorosa quanto vem sendo até agora;

b) o risco, freqüentemente lembrado por alguns analistas, de que

uma proposta de extensão possa implicar a tendência a se afastar do

método original em prol de versões de menor ou nenhum valor, tendo em

vista a resistência que indivíduos ou grupos opõem ao crescimento

mental; ou ainda o risco de uma apropriação, em que a transmissão

implique assumir o modelo acadêmico;

c) a preocupação de que a oferta da possibilidade de

atendimento com menor número de sessões semanais ponha em descrédito

a necessidade das quatro ou cinco sessões, quando pretendemos nos ater

ao método e à formação psicanalítica.”

Os resultados da pesquisa feita pela IPA em 1997 e relatada por

Israel (1999) são recordados para reforçar a necessidade de levar em conta

os sinais de mudança na realidade da clínica atual:

“(...) Na verdade, esta foi e continua a ser uma política proposta

pela Associação Internacional que, em suas pesquisas e enquetes,

verificou, como nós também já sabíamos, que a psicanálise estava cada

vez mais ligada à psicanálise de formação, quer dizer, quem fazia

realmente análise eram os pretendentes a analistas; fora disto, os

pacientes se submetiam a um atendimento psicanalítico duas vezes,

naquela época, ou três vezes no máximo por semana (...)”

Questões ligadas à formação de novos analistas e à dificuldade de

encontrar pacientes que se adeqüem à clínica-padrão também se revelam

no discurso desse grupo, na alegação da possibilidade que o Centro

oferece para “garimpar pacientes de quatro vezes por semana”:

“O Centro Clínico não é uma clínica de atendimento

psicanalítico, porque é mais um centro de triagem, é onde você vai

52

verificar se a gente pode ir a outros lugares da comunidade garimpar

pacientes para a psicanálise de quatro vezes por semana.”

Ou nesta outra afirmação:

“A clínica foi constituída com um objetivo muito específico, tentar

promover, e tentar contribuir para com os candidatos em formação. De

que maneira? Oferecendo pacientes para supervisão com quatro ou três

sessões semanais a custo muito baixo, simbólico, ou até mesmo sem custo,

quase sem remuneração, buscando, na verdade, beneficiar os candidatos,

tentando oferecer pacientes para supervisão e atendimento três ou quatro

vezes por semana.”

A formação dos novos analistas é, nos depoimentos recolhidos e

documentos consultados, considerada de fundamental importância para a

sobrevivência da psicanálise enquanto profissão e da instituição

psicanalítica como órgão de transmissão de um saber. Quando diminuem

os pacientes disponíveis para as condições exigidas pela formação,

segundo os padrões da IPA, aparece, ao mesmo tempo e

contraditoriamente, por um lado, a defesa da preservação desses padrões,

agora restritos à formação, e, por outro, a necessidade de alterá-los:

“Foi verificado também como era difícil que os candidatos

tivessem pacientes quatro vezes por semana ou três vezes para supervisão,

sendo a chamada psicanálise nos moldes da IPA, como a psicanálise de

formação, restrita aos candidatos em formação.”

“Esta nunca foi uma situação desejada pela IPA. Nunca foi

desejada por nós aqui também, porque, na verdade, nós não acreditamos

que um candidato a psicanalista, uma pessoa em formação, possa se

submeter à análise quatro vezes por semana e, por outro lado, atender

seus pacientes apenas duas ou uma vez por semana. Não acreditamos que

isto seja uma experiência que integre o modelo analítico (tripé). Nós

achamos que todo o mundo pode atender uma ou duas vezes por semana

53

por escolha pessoal, mas, como psicanalista, deve não só se submeter à

psicanálise, passar pelo processo psicanalítico, como também desenvolver

o processo com o paciente. Esta foi uma das questões que levou a IPA a

pensar muito na necessidade de se criarem clínicas, de se criarem setores

de divulgação e de expansão.”

Assim, a criação do Centro vai se mostrando, ao mesmo tempo,

como uma resposta institucional da Sociedade aos problemas que foram

surgindo na formação, segundo os padrões recomendados pela IPA:

“(...) uma recomendação de que a Sociedade de Psicanálise fizesse

alguma coisa pela comunidade e pela formação, então, quer dizer, o centro

clínico está apoiado principalmente nisso daí.”

A crise de mercado, apesar de mencionada em citações anteriores, fica

camuflada, como mostra o trecho abaixo, pela necessidade de o Centro atrair

pacientes para os candidatos em formação e também divulgar a psicanálise

para uma população que, de outra forma, não teria acesso a ela:

“(...) o objetivo é uma coisa, é uma via de duas mãos, quer dizer, é

trazer benefícios para nós, analistas, e nós que cuidamos da formação de

analistas que estão propiciados a candidatos, que possam ter pacientes quatro

vezes por semana mais facilmente, e também fazer com que outros segmentos

da população que não os iniciados, os familiares de analistas, voltem a

descobrir, a saber, que é uma coisa viva e que tem uma função.”

A importância dada à prática do atendimento nos moldes-padrão,

como forma de introjeção da função analítica, é ressaltada nesta afirmação:

“(…) mas o primordial é prover pacientes quatro vezes por

semana para quem quer e precisa ter essa experiência, além do universo

de nós, analistas, e de analistas em formação que fazem sua análise, mas

precisam ter essa experiência de também praticar. Porque eu acho que

um analista formado pode fazer muita coisa, assim, tendo esse viés, mas,

54

para adquirir o viés, a gente acha que é importante a análise pessoal de

quatro vezes por semana e a experiência de analisar.”

Entretanto, para além dos objetivos da formação, vai se revelando

outra realidade na própria negação de que o Centro atenderia ao objetivo

de encaminhar pacientes para analistas de um modo geral:

“Em nenhum momento o objetivo foi oferecer pacientes para

analistas que estavam sem pacientes, em nenhum momento foi

desenvolver uma psicoterapia psicanalítica, que, sem ter nada contra, não

é e nem nunca foi o objetivo principal do Setor III.”

A realidade do Centro desvela outro panorama, segundo

declarações do Corpo Diretivo:

“Há uma procura dos pacientes, que é grande, e dos psicanalistas

por pacientes, inclusive uma demanda muito grande de psicanalistas que

me ligam porque querem pacientes também. Está mudando um pouco.

Vejo que há psicanalistas que querem pacientes para o consultório

mesmo, não só para formação (...) justamente por essa mudança do social

que a gente tem, a situação socioeconômica que a gente vem enfrentando

hoje em dia (...)”

“(...) não é objetivo do Centro Clínico encher os consultórios das

pessoas que não têm pacientes, mas eu vejo que as coisas funcionam assim.”

Quanto aos Analistas, suas observações sobre a crise estão muito

ligadas ao dia-a-dia do atendimento clínico, e eles se manifestam às vezes

com humor:

“(...) A pessoa quer ir para o Rio de Janeiro e eu quero levá-la

para São Petersburgo, vôo de Concorde... Mas eu não quero São

Petersburgo. O Rio está bom (...). Você entende? (...) e ainda ficar

olhando a paisagem por onde a gente passa.”

Outras vezes com um tom de amargor e crítica:

55

“(...) nós estamos ficando velhos, a nossa linguagem está

ultrapassada, a gente tem que se reeditar de alguma forma, e aí entra até

aquela coisa do marketing, onde nós estamos? Em nenhum lugar.”

Às vezes com dramaticidade:

“Primeiro você precisa convencer o paciente daquilo que você faz

e não ir enfiando a faca nele.”

Entretanto, essas manifestações revelam uma espécie de

inadequação entre o que é exigido pela formação e a realidade das pessoas

que procuram o Centro, entre a proposta dos analistas e o que esperam os

pacientes. Como avaliar essa questão? Uma possibilidade é considerar que

é próprio e característico do trabalho analítico analisar e não atender às

demandas dos pacientes. No entanto, os depoimentos revelam que os

próprios Analistas, o mais das vezes, também não se sentem confortáveis

com as condições exigidas pela clínica-padrão.

Este ponto mereceria uma investigação mais profunda. No

momento, lanço algumas questões relacionadas ao tema. Os candidatos e

os próprios analistas vêm se deparando com uma clínica que está mudando

e que necessita ser pensada. Como desenvolver recursos que são teóricos,

técnicos e de personalidade para dar conta de refletir sobre ela? A análise

pessoal, os cursos teóricos e as supervisões constituem o tradicional tripé

onde se assenta a formação. A manutenção de critérios formais da técnica

identificada com A psicanálise estará colaborando para o desenvolvimento

de um pensamento independente? O analista, uma vez completado o

período de formação dentro dos moldes-padrão, poderá exercer uma

clínica em outro formato chamando-a de psicanalítica? Tenho me

deparado com respostas diversas e às vezes conflitantes para essas

questões, mas não foi meu propósito explorá-las neste estudo.

3.2.2. A caracterização da demanda dos pacientes do Centro

56

Passo agora a tecer considerações sobre algumas características

dos pacientes que procuram o Centro, de acordo com os dados revelados

nas entrevistas. Para tanto, reproduzo trechos destas. Esses relatos são

importantes, a meu ver, na medida em que permitem responder se há ou

não uma diferença marcante entre eles e aqueles que compõem a clínica

‘normal’. Sempre, cabe reiterar, tendo em mente não só a crise da

psicanálise, mas como se apresenta a clínica atual.

Logo que o CCP começou a funcionar, passou a atender a procura

antes dirigida ao SAT. À época da pesquisa, havia uma grande demanda

de potenciais pacientes, a ponto de ter sido necessário limitar as inscrições

mensais para que os grupos pudessem absorvê-las. Entretanto, podemos

questionar se esta era, efetivamente, uma procura por análise, segundo as

observações do Corpo Diretivo:

“(...) No início teve muito (...) agora diminuiu... de as pessoas

procurarem achando que era um serviço social, gratuito. Aconteceu então

isso: já tinha que triar por telefone, porque R$ 20,00 para quem não pode

pagar nada é muito, para se inscrever e não fazer nada.”

“(...) aberto o Centro Clínico, as pessoas que o procuravam,

inicialmente, eram pessoas que sequer tinham condições financeiras para

pagar a condução até lá. Acho isso muito, muito intrigante, inclusive,

como é que essas pessoas tiveram acesso à informação de que a

Sociedade tinha aberto o atendimento, se não tinham noção do que é

psicanálise, que seria um atendimento diversificado, ou mais qualificado

de alguma maneira.”

Alguns membros desse grupo também fazem ou fizeram triagens e

possuem uma experiência direta com os pacientes que procuram o Centro.

Assim, puderam fazer considerações pessoais sobre essa demanda:

57

“Olha, não tenho muita clareza não, eu acho que, do ponto de

vista psíquico (isso é o que me interessa), do ponto de vista psíquico não

tem muita diferença, embora, claro, hoje é uma questão que está na

ordem do dia; é a questão, digamos assim, do universo simbólico, fruto da

modernidade, das relações de classe, etc. e deve haver alguma diferença,

mas, do ponto de vista psíquico, até onde eu vejo (...)”

Embora no início tenham acorrido pacientes muito diversos, a

demanda também é composta por pessoas que não podem ser consideradas

como totalmente desprovidas de recursos econômicos ou culturais:

“(...) Faculdades de Medicina: tem muita gente de lá, e de

Faculdades de Psicologia; tem vindo muito estudante, pessoas que sabem

alguma coisa sobre análise, já ouviram falar, valorizam a Sociedade de

psicanálise; pessoas que precisam, mas não têm os meios, ou em

situações quase que marginais (...) Não seria bem a palavra (...) mas que

estão fora, com todo esse processo econômico (...)”

São apontadas certas diferenças de conotação mais sociológica:

“(...) são pessoas vinculadas a diferentes estratos de classe,

comparados com aqueles do nosso consultório. Às vezes, digamos assim,

a fenomenologia externa, os sintomas, as histórias ou as estórias que

aparecem, às vezes elas são muito dramáticas... Tocam-nos como seres

humanos, nos tocam do ponto de vista político, nos emocionam pela

miséria, mas eu acho que essa é outra questão. Do ponto de vista

psíquico, se a gente pretende oferecer uma atividade psicanalítica, acho

que não tem muita diferença. Agora, do ponto de vista da caracterização

da clientela, claro que também há certa diferença, mas não muita, porque

também, desde o começo (acho), procurou-se estimular ou privilegiar

certas áreas de encaminhamento, como faculdades, escolas de Psicologia,

etc., etc., o que não impede que apareçam muitas outras categorias, como

58

operários, desempregados e pessoas gravemente comprometidas do ponto

de vista social e psíquico (....)”

Porém, não são consideradas diferenças psicopatológicas:

“É, não vejo muita diferença não, de problemática não, é mais de

perfil social. Há muitas pessoas que são migrantes, do Norte, Nordeste,

pessoas do Pará, de lugares assim mais incomuns de migração típica

para São Paulo.”

“Acho que são nichos mais periféricos... não são pessoas que

moram nos Jardins, nesse circuito; às vezes mesmo pessoas que têm nível

superior, como eu já vi, advogados, mas (...) de origem mais humilde,

mais remotos.”

Voltado a um vértice mais psicanalítico, o grupo pode, então,

expressar que as diferenças tornam-se mais tênues:

“Agora, uma vez sendo possível estabelecer um contrato a partir

da triagem, acho que a questão fica praticamente como no consultório; é

possível que as atuações sejam maiores, mas isso depende também do

analista, de levar em consideração esses aspectos.”

“(...) acho que qualquer pessoa, independente da relação de

classe, eu acho que vai ter consciente, inconsciente, angústia, desejo,

sentido da vida, da morte, inveja, objeto interno, idealização,

destrutividade, agressividade, eu acho que tudo isso deve estar presente

na mente de qualquer pessoa.”

“Agora, as pessoas em si, com certeza, na sua globalidade,

obviamente elas são diferentes, mas do ponto de vista do vértice analítico,

não vai ter muita diferença.”

“Só tenho visto casos interessantes. Interessante que eu digo é

como cliente psicanalítico.”

59

Contudo, no decorrer das entrevistas, certas características, muito

peculiares à população que procura atendimento no Centro, vão se

revelando:

“São pessoas mais comprometidas no desenvolvimento

psicológico, cabendo um diagnóstico de personalidade borderline:

pessoas envolvidas com drogas, álcool, exaltadas, com uma urgência

para serem atendidas, ‘tudo é para ontem’. Eu acho que não está fácil

trabalhar analiticamente,... tem também essa coisa da medicina para

considerar, nunca se divulgou tanto na mídia a questão do diagnóstico, nunca

se foi nessa premissa de esvaziar a responsabilidade do sujeito, que um auto-

questionamento importe; então, é muito comum enquadrar o sofrimento

relacionado com a doença, com os sintomas de uma doença e aí a medicina

responde melhor: ‘Como é que se trata isso? ’, ‘O que eu tomo? ’. A pessoa já

vem com essa pergunta; ela não diz: ‘Eu não sei o que está se passando

comigo’, mas: ‘O que eu tomo? ’ Pelo que ouvi no Fantástico e vi na Veja, eu

tenho síndrome não sei do quê, ou tenho transtorno não sei o que lá, então

vim saber qual o melhor remédio que tenho que tomar’.”

Na explicação do entrevistado, trata-se de ‘mal dos tempos

modernos’. As pessoas não estão dispostas a esperar, querem

imediatismos:

“(...) eu acho que é um mal dos tempos modernos, as pessoas

querem ser atendidas imediatamente do jeito que elas querem. São

pessoas com um comprometimento de origem, de famílias

desestruturadas, genitores com doença mental, principalmente, famílias

desestruturadas.”

Outra categoria psicopatológica começa a aparecer nos

diagnósticos de caso:

“Era uma pessoa, uma personalidade narcísica com uma falha

básica muito importante.”

60

O fato de que um serviço de atendimento como o Centro atraia

certo tipo de paciente fica explícito neste depoimento:

“São pessoas que fazem uso perverso da instituição: têm

disponibilidade financeira, mas não querem pagar nada. Por exemplo:

uma paciente dizia ter pago trezentos reais em uma consulta com um

psiquiatra e queria dispor de cem reais por mês para o analista. Então eu

chamo de perverso neste sentido, de não se dispor a investir mesmo, e

procurar o Centro Clínico tendo condições de procurar um consultório

particular. Ou, mesmo estando no Centro, se dispor a pagar mais.”

Os próximos depoimentos referem-se a como o Corpo Diretivo vê

o desafio de analistas em formação lidarem com os tipos de paciente

descritos acima. A possibilidade de se manterem pensando analiticamente,

mesmo em situações frustrantes, é frisada neste depoimento:

“(...) o pagamento, eu acho que (...) essas, sim, são questões

complexas, nem Freud nos deu receita sobre isso, a gente tenta (...)

pensar diante das nossas precariedades, dos nossos limites. Mas, se um

analista de fato se submeteu a uma análise, não só formalmente, mas que

tenha aprendido (...) eu acho que nessas questões ele vai podendo

discriminar os limites e também a precariedade. Se a gente puder

perceber isso, acho que o trabalho fica mais ‘fácil’, pelo menos a questão

é mais com a gente. Se você se veste com a camisa-de-força da

onipotência e acha que pode resolver tudo, é muito complicado.”

Ressalta-se a importância da análise pessoal para o

desenvolvimento da capacidade de pensar e da função analítica, conforme

podemos ver a seguir:

“Eu acho que análise (...) que a experiência analítica permite a

você ver se aquela pessoa pode, a partir dessa experiência de reencontro,

ir se re-metaforizando; incorporar aquilo que o analista vai oferecendo

como modelo de metáfora, com modelo de observação. Será sempre o

61

paciente o árbitro epistemológico final, como diria Habermas, quer dizer,

esse é um conhecimento que se faz muito por extensão e familiaridade, o

conhecimento analítico não tem uma prova.”

Os Analistas, que fazem triagens e atendem pacientes, também se

manifestam. Encontrei afirmações sobre não haver diferença marcante

entre os pacientes particulares e os que vêm através do Centro, quanto ao

que esperam da análise e às expectativas imediatistas de cura:

“Sabe o que eu estava pensando, e eu não sei se no final das

contas, quando o paciente chega ao consultório, se ele é muito diferente

do paciente que vem para a gente, você também não sente isso?”

“Eu diria que é muito parecido com o que acontece com a clínica

da gente, não acho tão diferente, acho até um pouco pior, porque a

pessoa vem numa situação de precisão, ou ela se coloca assim – a gente

nunca sabe se é real – mas ela tem pouco dinheiro, ela procura um

órgão, quase uma ONG, para ter psicanálise a um preço acessível.”

O que podemos perceber mediante os depoimentos é que há

desconforto, por parte dos Analistas, em atender em tais condições de

preço e horário:

“Já existe a questão econômica, é muita dificuldade de horário e,

ainda por cima, há uma exigência da parte dos pacientes de que a gente

esteja totalmente à disposição, até mais do que um paciente particular.”

“(...) então assim tem muita resistência e muita exigência em

relação à disponibilidade da nossa parte, eu não me coloco tão

disponível.”

As exigências da clínica-padrão, porém, quando confrontadas com

as expectativas e as condições das pessoas que procuram, também

apareceram como questionáveis:

“A gente topou esse jogo, mas eu tenho muito problema. Há

muitos problemas de resistência ou de idealização da psicanálise. São

62

pessoas que vêm às vezes querendo resolver um problema emergencial,

vão se separar, estão sem emprego, e chegam lá e vão desmistificando o

que a gente faz e não gostam. Tem muita gente que não gosta do trabalho

porque espera uma coisa mágica, que num mês resolva a questão do

casamento, do trabalho, e quando vê que não é assim, que a gente não

tem nenhuma solução, as pessoas também vão embora, não ficam, mas

isso também acontece na clínica normal da gente.”

“(...) o que eu acho esquisito é chegar uma pessoa lá e a gente

enfiar a faca, acho isso muito estranho, sempre me incomodou, porque eu

acho que é construído. Tem assim como a gente vive a vida moderna, a

pressa, a disponibilidade, as pessoas não lêem hoje, nem livro se lê

inteiro, você vê coisas na Internet, é tudo muito fragmentado, e chega a

pessoa lá e você fala quatro vezes por semana, isso é uma coisa que eu

acho que é um pouco violenta...”

Parecer haver uma expectativa, por parte dos Analistas, de que o

Centro selecione pacientes que se disponham a fazer análise no modelo-

padrão, ou seja, quatro vezes por semana:

“(...) eu tenho experiência com população de baixa renda, mas eu

queria estar atendendo numa instituição que fosse a Sociedade de

Psicanálise... a minha idéia é que esses pacientes estariam vindo de outra

forma, estariam vindo pacientes para análise (...) já pacientes um pouco

mais trabalhados, o que não acontece. O que percebo é que os pacientes

que ‘vingam’ são de classe média, de nível universitário, em começo de

carreira, ou empobrecidos circunstancialmente, ou jovens. São pessoas

capazes e no momento querendo pensar sobre a própria vida, mesmo que

elas não saibam disso. Quando você começa a trabalhar e fazer, de um

paciente qualquer, um paciente de análise, percebo que são esses os

pacientes que ficam. Eu tenho pacientes há bastante tempo do Centro

Clínico (...)”

63

Outra observação feita pelos Analistas é que pacientes com

perturbações mais sérias geralmente não permanecem em análise:

“O que eu percebo é que pessoas muito perturbadas não ficam.”

Assim, destaco, no discurso explícito dos Analistas, uma

expectativa de conseguir, por meio de uma triagem institucional, pacientes

que queiram e possam fazer análise segundo o modelo aprendido na

formação. Entretanto, acabam se deparando, na maior parte das vezes,

com pacientes difíceis que não permanecem em atendimento. Identifico,

em trechos como os que destaco abaixo, uma condição essencial para que

a parceria analítica prossiga: a disponibilidade do paciente, ele querer

fazer análise. A disponibilidade do analista é fundamental, mas precisa

existir a contraparte:

“(...) nós queremos mais que eles.”

“Acho que são pacientes que não ficam mesmo, porque não são

pacientes que querem fazer análise, que querem ter um investimento nesse

nível, de uma procura, de um ‘se debruçar’ sobre si.”

As respostas dos Analistas do meu grupo, obtidas por meio dos

questionários, vêm corroborar algumas das observações acima. Critérios

de analisabilidade vão sendo estabelecidos, embora nem sempre nomeados

como tais, fazendo parte do discurso implícito.

Assim, os pacientes que são estudantes universitários ou jovens

profissionais em início de carreira são considerados mais promissores.

Aqueles capazes de contacto com emoções e desejos e que, além disso,

possuam condições de pensar a própria vida são, também, os passíveis de

serem analisados. Penso que esses critérios, além de refletirem uma

experiência real de atendimento e de observação de quem fica ou não em

análise, possuem certo componente de idealização não explicitado, mas

que permeia as expectativas dos analistas. Chego até a pensar que

pacientes com as características acima não precisariam de atendimento, a

64

não ser como um desejo de expansão da própria vida mental. São casos

raros em minha experiência.

A capacidade de persistir em situações difíceis, que também pode

ser chamada de capacidade de tolerância à frustração, encontra-se entre os

critérios apontados pelo grupo para a permanência em atendimento. Um

alto grau de angústia foi considerado um bom motivo para prosseguir em

análise, desde que associado à capacidade de tolerar a dependência do

analista, transformando a situação analítica em uma ‘situação de conforto

muito mais que de confronto’.

A possibilidade de depender de alguém, pelo tempo necessário

para que algum trabalho seja feito, está entre as condições de permanência

dos pacientes. Entretanto, os colegas apontam que a dependência muito

grande, no sentido de esperar um ‘milagre’, como seria o analista poder

curá-los sem sua participação, não é uma condição favorável. Nesses

casos, a decepção com os resultados e mesmo com a própria proposta

terapêutica é rápida, e fatal para a continuidade da terapia. Assim sendo,

posso concluir que, para esses colegas, tanto a resistência a depender,

quanto o depender para se ver livre de qualquer responsabilidade pela sua

melhora, por parte dos pacientes, constituem uma dupla de opostos que

interfere, de maneira negativa, no prosseguimento da análise.

Finalizando esta análise, pude observar que os Analistas do meu

grupo expressam mais livremente as dificuldades que encontram com os

pacientes do Centro, do que os colegas entrevistados. Um deles assim se

manifestou: “Os pacientes do Centro são iguais aos do consultório, só

que piores.”

Embora possa parecer uma afirmação paradoxal, proponho que se

pense se ela não contém a expressão de certa perplexidade do grupo frente

às pessoas que os procuram e que, mesmo encontrando condições bastante

favoráveis em relação a honorários e horários, não permanecem em

65

atendimento. O contacto com essa perplexidade trouxe-me a necessidade

de, ao mesmo tempo, tomar uma distância e me aproximar para poder

analisar mais detidamente o fenômeno. Parece que estamos frente a uma

clínica que vai adquirindo características diferentes das de outrora. A

análise dos dados de minha pesquisa autoriza-me a afirmar que a

mudança, porém, é percebida sem contornos muito definidos. Assemelha-

se, em princípio, a um fantasma que ora causa incômodo, ora assusta, mas

que talvez não passe de uma nova realidade necessitando ser pensada.

Nesse caso, estaríamos frente a um desafio à nossa capacidade de lidar

com situações indefinidas e frustrantes.

Como procurei demonstrar ao longo da dissertação, ao tomar o

CCP como sintoma da crise da psicanálise, tal como ela se desenha nos

dias de hoje, foi possível penetrar os meandros de sua constituição

sintomática. O Centro recebe da instituição o papel de ser seu agente

externo de atuação clínica na sociedade mais ampla. É um desbravador

que tem que ser inventado, mas nos moldes prescritos pela IPA. Esse

papel é tomado pelos candidatos e analistas da Sociedade como a chance

de ampliar a própria clínica privada, ainda que cobrando menos. Mas,

como chance de clínica, esse papel do Centro não pode ser pensado nem

falado. É o implícito que se cala, diante do explícito da função social,

estabelecendo-se uma falta de coerência entre o que se diz (a relação) e o

que se cala (o campo). Parece-me que é na vigência desse campo do

discurso implícito que o desafio que apontei acima fica mais difícil de ser

enfrentado.

Nas conclusões do relatório de Paul Israel (1999, p.16) sobre a

pesquisa da IPA (1997), encontrei algumas considerações que confirmam

a extensão e complexidade do tema, que inclui mudança na clínica atual:

“El interés apasionado aunque cauteloso que la mayoría de

analistas y sus Asociaciones ponen en este tema demuestra que las

66

transformaciones históricas y socioeconómicas de las últimas décadas

han introducido un cambio importante en la perspectiva de la práctica

psicoanalítica. Si bien los institutos de entrenamiento están

indudablemente conscientes de estos cambios, en general no han sido

capaces de integrarlos, debido precisamente a la ausencia de claridad

acerca del estatus teórico y de identidad de tratamiento de pacientes fuera

de la cura clásica. El hecho sigue siendo que estos pacientes constituyen

cada vez más la clientela habitual de los psicoanalistas – al punto que

sus consultorios parecen cada vez más salas de espera de ciertos centros

públicos dedicados a consultas y tratamientos psicoanalíticos. ‘Uno

encuentra adultos jóvenes que sufren conflictos ligados al narcisismo

(depresiones) y a la identidad (sufrimiento existencial, casos borderline)

junto con numerosos pacientes con desórdenes somáticos y de

comportamiento (en particular desórdenes de la alimentación): la

evolución de esta clientela parece reflejar las transformaciones que han

ocurrido en los últimos treinta años en el campo de la cultura así como

a nivel socioeconómico y a nivel de las referencias de identificación

familiar y comunitaria’ ( he citado a J-L Donnet en su proyecto de

definición del funcionamiento del Centro para Consultas y Tratamiento

Psicoanalítico que está ligado a la SPP).”

67

CAPÍTULO 4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

“P.A. Todos os Institutos são mortos; portanto, como

todos os objetos inanimados, seguem leis e sub-leis

que são compreensíveis dentro dos limites do

entendimento humano. Entretanto, como

estas Instituições são compostas de pessoas

e indivíduos, que são susceptíveis de

desenvolvimento, a Instituição começa

a ceder à pressão.” (Bion, W. R., 1996).

Nos capítulos anteriores, apresentei os aspectos que considero mais

relevantes para o desenvolvimento do meu tema: uma análise cultural-

ideológica do CCP, tomando-o como um sintoma de uma situação mais

ampla que chamei de crise da psicanálise. Nessa análise, através das

relações constituídas pelo que denominei de discurso explícito, procurei

evidenciar, ao longo do capítulo anterior, o campo que as suporta, ou seja,

o discurso implícito que ocultam.

Meu estudo caracterizou-se, então, como um trabalho de Clínica

Extensa, segundo a concepção de Herrmann (2005), aquela que, utilizando

o método da psicanálise, centra-se na consideração dos campos inaparentes

que sustentam as relações manifestas, seja na clínica de pacientes, seja em

recortes do real humano.

Na Introdução, situei minha preocupação com uma das

manifestações da crise da psicanálise, ou seja, a diminuição da procura de

pacientes a partir do final dos anos 90 e que permanece até hoje. Até então,

apesar de ser menos experiente, na minha própria clínica, não encontrava

qualquer dificuldade em atender diversas pessoas quatro ou mais vezes por

semana, por longos períodos. Estava iniciando a formação na SBPSP e,

68

naquele momento, achei que poderia ser uma dificuldade minha a

diminuição da clínica psicanalítica propriamente dita, de acordo com os

padrões exigidos pela formação. A participação no SAT e depois no CCP

trouxe uma dimensão mais ampla para essa questão da clínica, por meio do

contacto com diversos colegas que viviam experiências semelhantes.

Assim, surgiu a necessidade de investigar a questão mais amplamente.

No capítulo sobre o Histórico, creio ter demonstrado que a profissão

de psicanalista sofreu uma mudança ao longo das últimas décadas.

O monopólio da formação psicanalítica pela SBPSP começa a

declinar em meados dos anos 70 e termina no final dos 80. A clínica-

padrão, sustentada pela SBPSP e exigida de seus candidatos, é atingida em

cheio com a proliferação de formações que não seguem os padrões da IPA.

O universo dos psicanalistas, que era predominantemente formado

por médicos e homens, vai mudando de perfil. Mesmo na SBPSP, a partir

de meados dos anos 80, vai se impondo uma maioria de mulheres e não-

médicos (basicamente psicólogos).

A profissão torna-se mais feminina e menos médica. Como

curiosidade, esse dado parece acompanhar uma tendência da sociedade

como um todo. O crescimento do número de mulheres na psicanálise deve-

se também à maior inserção feminina no mercado de trabalho, como pode

ser verificado pelas pesquisas mensais de emprego e desemprego realizadas

pela Fundação SEADE, em parceria com o DIEESE6.

A renda dos analistas cai, como mostram duas pesquisas da ABP –

1992 e 1998, citadas anteriormente. A partir de 2001, encontrei referências

à queda de renda da classe média.7

6 Em todas as pesquisas mensais, há um levantamento do nível de ocupação por gênero. Cf.<www.seade.gov.br>.7 “Nos últimos cinco anos, a classe média (considerando os que recebem mais de 3 salários mínimos ouR$ 1.050) viu a criação de empregos e a renda decrescerem, aponta estudo divulgado pela MBAssociados”. InfoMoney em 12/12/06– <www.infomoney.com.br>

69

Com base nesses dados, podemos pensar que o mercado de trabalho

dos psicanalistas ficou mais competitivo. Concessões à clínica-padrão

precisam ser feitas e são, mas não podem ser consideradas oficialmente,

pelo menos no que diz respeito à formação. Estas pressões são mais

fortemente vividas pelos candidatos à formação do Instituto de Psicanálise

da SBPSP.

Em 1999, uma série de jornadas realizadas pela Diretoria Científica

da SBPSP traz o assunto à baila. No mesmo ano, ele volta a ser discutido

em um número do Jornal de Psicanálise que é lançado com o tema

‘Psicoterapia: Mal-Estar na Psicanálise?’. Dada a sua complexidade, era

natural que surgissem distintos posicionamentos sobre a questão. Os

debates se centravam principalmente na distinção entre psicoterapia e

psicanálise. Já mencionei na Introdução algumas das idéias debatidas na

ocasião e, em parte, publicadas no Jornal de Psicanálise.

Da mesma forma, a história dos Ambulatórios e Centros de

Atendimento da SBPSP traz indícios de mudanças que estavam ocorrendo.

Ao acompanhar atentamente tal história, vemos que esse Ambulatório,

desde sua criação até meados dos anos 90, guardadas as especificidades de

cada época, tinha a finalidade de colaborar para a formação dos candidatos,

oferecendo pacientes para as supervisões oficiais. A partir desse momento,

incluindo-se aí o próprio SAT, torna-se uma fonte de encaminhamentos

para analistas em formação ou não. Sinal de que os tempos estavam

mudando?

Conforme já assinalamos, nos últimos anos do funcionamento do

SAT, foram tentadas diversas experiências de triagem. As mudanças nos

processos de triagem já estavam relacionadas à constatação da baixa adesão

dos pacientes. Com a nova triagem, foram obtidos bons resultados na

recepção e encaminhamento dos pacientes, mas isto por si só não garantiu a

permanência em análise. Com efeito, na pesquisa promovida pelo SAT e

70

mencionada no capítulo 2, fica claro que, no período de dois anos, dos 171

pacientes encaminhados, somente 37 permaneceram em análise, dos quais

apenas 5 eram pacientes de quatro vezes por semana e outros 11, de três

sessões semanais.

A posterior criação do CCP não utilizou os resultados dessa

pesquisa, nem a experiência acumulada, tendo de se defrontar com

problemas provavelmente já encaminhados pelo SAT no trabalho

desenvolvido. Em termos mais claros, é razoável supor que já era

demasiado reduzido o número de pacientes dispostos a se submeterem a

uma análise nos moldes da clínica-padrão, independentemente da criação

de um novo Centro. Entendemos, no entanto, que se trata de uma dimensão

da política institucional, que buscava solução para problemas que atingem a

instituição como um todo e a sobrevivência da profissão de psicanalista, em

particular. Entretanto, a diminuição na procura, por parte dos pacientes, é

sintoma de um fenômeno bastante complexo, que requer maiores

investigações.

Herrmann (2002 ) apresenta algumas idéias para se pensar sobre esse

tema. Para ele, a crise da psicanálise não se reduz à falência da clínica-

padrão ou mesmo à falta de pacientes, mas diz respeito àquilo que ele

denomina a psicanálise como resistência à Psicanálise. Fala da

transformação de teorias psicanalíticas em um saber acabado, como, por

exemplo, a teoria do inconsciente vista como fato e não como hipótese

operativa. Isso geraria uma paralisação das descobertas ou, dizendo de

outro modo, um afastamento do espírito de descoberta que caracterizou os

grandes mestres da psicanálise, como Freud, Melanie Klein, Lacan e Bion,

para citar alguns. A crise atual é, portanto, para ele, tanto da clínica-padrão

quanto da teoria-padrão a ela ligada. Esta, reificada, transformada em fato,

constituiria uma resistência ao desenvolvimento da teoria psicanalítica

enquanto ciência do homem moderno. A própria teoria criaria uma camisa-

71

de-força para o desenvolvimento da psicanálise. Para Herrmann (2002), a

saída para o impasse seria uma extensão da clínica para além do padrão,

acompanhada do que denominou ‘alta teoria’, um pensar sobre as teorias

para além da região da metapsicologia. Diz ele:

“Estendida a clínica, já não temos os pacientes habituais. Outras

patologias impõem-se, outros suportes da psique não necessariamente

individuais, novas modalidades de prática no próprio consultório,

algumas, aliás, muito antigas.” (Herrmann, 2002, p.19).

Outros autores também vêem, na diminuição da procura por análise,

aspectos mais ligados a mudanças culturais e psicopatológicas.

Ahumada (1997), por exemplo, identifica a crise da psicanálise com

uma crise da cultura inerente à sociedade global. Nesta, o pensar, a auto-

reflexão é substituída pelo uso da mente como músculo, significando que é

utilizada basicamente para expulsar excitações em vez de contê-las e as

elaborar. Nesse sentido, ele identifica na sociedade atual uma crise no

pensar reflexivo acerca de si mesmo e o surgimento do que ele, citando

Gaddini (1992), vem a chamar de psicopatologias de gratificação

peremptória.

Seguindo uma linha semelhante de pensamento, Rocha Barros

(1999) afirma que a psicanálise é uma disciplina cujo saber se constitui por

crises, necessárias para que o conhecimento não fique estagnado. No

entanto, no mais das vezes, quando se aponta para crise, está se falando de

crise de mercado: a psicanálise precisaria inovar para agradar aos pacientes

consumidores e agradar-lhes seria oferecer alívio imediato. Diz que a

verdadeira inovação provém do questionamento dos fundamentos da

psicanálise e não da adaptação às demandas do mercado.

Ambos posicionam-se contra uma divulgação simplificadora da

psicanálise, tornando-a aparentemente um produto de fácil consumo.

Argumentam que a experiência psicanalítica necessita ser vivida na

72

situação de análise para ser compreendida, senão corre o risco de se tornar

um conhecimento teórico, porém distante do que é psicanálise.

Todos os autores acima citados concordam em um aspecto, qual seja,

a necessidade de retomar o espírito investigativo que caracterizou os

pioneiros da psicanálise, como possibilidade de superação criativa da crise.

No entanto, não existe concordância no que diz respeito à clínica-padrão.

Enquanto, para Herrmann (2002), aferrar-se a ela seria uma espécie de

suicídio para o psicanalista e um afundar da própria teoria psicanalítica,

Rocha Barros (1999) faz uma crítica às tentativas de mudança do setting

psicanalítico para atender pressões de mercado. A questão parece ser: o que

caracteriza a psicanálise? E que mudanças podem ser feitas sem que se

perca sua especificidade? Não existe concordância, sequer, sobre o que

define o método psicanalítico. Herrmann alerta para não se confundir

método com técnica, pois isso poria em risco o desenvolvimento de nossa

ainda não ciência (Herrmann, 2002, p.16), que poderia dissipar-se junto

com o desaparecimento da clínica-padrão.

Retomando, podemos afirmar que, em princípio, a crise da

psicanálise é teórica, cultural e enquanto profissão, o que inclui a

concorrência com psicoterapias e outra formas de abordagem dos

problemas mentais, com, por exemplo, medicação.

Ao longo da dissertação, procurei mostrar que a crise da psicanálise

pode ser abordada de vários vértices, e que, ao que tudo indica, é uma crise

mundial, muito embora possa ter características locais. Procurei expor as

visões de analistas praticantes, de diversos autores, assim como os

discursos da instituição oficial de formação da IPA em São Paulo, através

de seus documentos, registros e entrevistas com os dirigentes do CCP.

Enfim, a todos dei voz.

O encolhimento do mercado de pacientes, em especial dos que

aceitam se submeter à clínica-padrão, pode ser visto como uma

73

manifestação sintomática desta crise muito mais profunda da psicanálise.

Ela parece ter no mínimo três desdobramentos, ainda não ditos, que

necessitam ser abertamente discutidos, pois, do contrário, tendem a se

perpetuar. O primeiro, sem dúvida alguma, diz respeito à própria

sobrevivência da psicanálise enquanto prática terapêutica, na medida em

que se constata uma crescente dificuldade para formar analistas dentro dos

padrões exigidos pela IPA, por conta da diminuição no número de novos

pacientes; ou seja, parece haver uma crise objetiva de reprodução da

atividade psicanalítica dentro dos padrões clássicos.

Vejo, ainda, dois outros desdobramentos, de caráter mais subjetivo,

provocados pela contínua redução de pacientes, quais sejam: a viabilidade

profissional dos psicanalistas e uma crise de identidade dos mesmos.

Apesar de mencionada apenas uma vez nos documentos oficiais8, é

crescente a dificuldade para se estabelecer profissionalmente como

psicanalista, mesmo para aqueles com vários anos de experiência, inclusive

quando vêm realizando atendimentos com freqüências inferiores às

determinadas pela IPA. Se a isso for associada a perda de prestígio do

psicanalista junto à sociedade – quando mais não seja por conta do

surgimento de inúmeras ofertas de outras terapias, inclusive

medicamentosas –, parece possível afirmar que estamos vivendo uma crise

que atinge nossa identidade profissional. Uma das manifestações dessa

crise de identidade é a sensação de que a redução de nossa clínica é um

problema exclusivo de competência pessoal.

Em suma, são esses, a meu ver, os suportes do discurso implícito,

aquele que não pode ser dito nem mencionado, que vêm provocando um

crescente movimento, tanto no âmbito da instituição – SBPSP/CCP –,

como de seus participantes, no sentido de lidar com a questão da crise da

74

psicanálise por meio da criação e posterior reformulação do Centro Clínico.

Movimento que atrai, em número cada vez maior, analistas membros

associados e efetivos para os grupos que o constituem. Unir-se, todavia, é

insuficiente.

Assumir explicitamente os pontos expostos nos parágrafos anteriores

parece ser um bom começo, na medida em que possibilita pensar de modo

mais extenso sobre a crise e seu sintoma. Esta, contudo, é uma crise de

grande complexidade, cujo encaminhamento demandará profundas

reflexões e espíritos muito abertos, como bem coloca Adorno, ainda que se

referisse a outras circunstâncias:

"Não se pode esperar, nem mesmo procurar uma resposta

simples à questão levantada por tais problemas. Alternativas que

impliquem o dever forçado de optar por esta ou por aquela definição,

ainda que fosse apenas no plano teórico, são já em si mesmas situações

coercitivas, estabelecidas à imagem daquelas que encontramos numa

sociedade não-livre e impostas ao espírito, cujo papel deveria ser o de

fazer o possível para quebrar essa não liberdade, ao preço de uma

reflexão profunda sobre essas alternativas." (Adorno, 1968)

8 Vide, no capítulo 3: “... São condições que põem em risco a atividade da psicanálise e ameaçam asobrevivência do psicanalista, uma vez que já não prevalece aquela situação economicamenteconfortável existente há alguns anos..

75

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