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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR
FACULDADE DE MEDICINA
DEPARTAMENTO DE SADE COMUNITRIA
CURSO DE PS-GRADUAO EM SADE PBLICA
RESDUOS SLIDOS DOMICILIARES, AMBIENTE E SADE:
(INTER)RELAES A PARTIR DA VISO DOS TRABALHADORES DO SISTEMA
DE GERENCIAMENTO DE RESDUOS SLIDOS DE FORTALEZA/CE
GEMMELLE OLIVEIRA SANTOS
FORTALEZA
2008
GEMMELLE OLIVEIRA SANTOS
RESDUOS SLIDOS DOMICILIARES, AMBIENTE E SADE:
(INTER)RELAES A PARTIR DA VISO DOS TRABALHADORES DO SISTEMA
DE GERENCIAMENTO DE RESDUOS SLIDOS DE FORTALEZA/CE
Dissertao apresentada ao Mestrado em
Sade Pblica pela Linha de Pesquisa:
Produo, Ambiente e Sade do
Departamento de Sade Comunitria da
Faculdade de Medicina da Universidade
Federal do Cear, como requisito parcial
para obteno do ttulo de mestre.
Orientadora: Prof. Dra. Raquel Maria Rigotto.
FORTALEZA
2008
S235r Santos, Gemmelle Oliveira
Resduos slidos domiciliares, ambiente e sade: (Inter)relaes a partir da Viso dos Trabalhadores do Sistema de Gerenciamento de Resduos Slidos de Fortaleza-CE. /Gemmelle Oliveira Santos. - Fortaleza, 2008. 149 f. : il. Orientadora: Profa. Dra. Raquel Maria Rigotto
Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal do Cear. Programa de Ps-Graduao em Sade Pblica.
1. Sade Ambiental. 2. Resduos Slidos. 3. Meio Ambiente. I. Rigotto, Raquel Maria (orient.). II. Ttulo.
CDD 614
GEMMELLE OLIVEIRA SANTOS
RESDUOS SLIDOS DOMICILIARES, AMBIENTE E SADE:
(INTER)RELAES A PARTIR DA VISO DOS TRABALHADORES DO SISTEMA
DE GERENCIAMENTO DE RESDUOS SLIDOS DE FORTALEZA/CE
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________
Profa. Dra. Raquel Maria Rigotto (Orientadora)
Universidade Federal do Cear - UFC
_____________________________
Prof(a). Dra. Mrcia Machado (Membro Interno)
Universidade Federal do Cear - UFC
______________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Ferreira da Silva (Membro Interno)
Universidade Federal do Cear - UFC
_____________________________
Prof(a). Dra. Maria Elisa Zanella (Membro Externo)
Universidade Federal do Cear - UFC
AGRADECIMENTOS
Deus por conceder mais um momento importante e de grande
enriquecimento intelectual na minha vida.
Aos garis e catadores entrevistados nessa pesquisa.
toda minha famlia pelo apoio e incentivo aos estudos.
Catarina de Brito Alves, por me deixar fazer parte da sua vida.
Fundao Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico
do Cear (FUNCAP) pela bolsa de mestrado concedida.
Ao Prof. Dr. Luiz Fernando Ferreira da Silva pela orientao da primeira etapa
da pesquisa e confiana depositada.
Profa. Dra. Raquel Maria Rigotto da Universidade Federal do Cear - UFC,
pelo acolhimento, orientao da segunda etapa da pesquisa, contribuies e
amizade.
Aos integrantes da banca examinadora pelo rigor e contribuies.
Aos professores Alberto Novais e Jaqueline Cararas pelos permanentes
incentivos e oportunidades.
Ao Diretor de Operaes da Empresa Municipal de Limpeza e Urbanizao
(EMLURB), Raimundo Csar Marques de S, pelas informaes.
Ao presidente e ao coordenador de trfego da concessionria responsvel
pela coleta de Resduos Slidos Domiciliares em Fortaleza/CE, pelo espao
concedido.
s secretrias do Mestrado em Sade Pblica da UFC, Zenaide e Dominik,
pela companhia e presteza.
Ao carssimo amigo Severino Alexandre por acreditar quando digo Que a
vida do Planeta Terra no a vida humana.
Aos amigos do mestrado Marco Tlio, Tatiana, Alexandre, Carlos Henrique e
Andr Moura, pelos dilogos estabelecidos.
Aos colegas e professores do Curso de Ps-Graduao em Sade Pblica da
Universidade Federal do Cear (UFC), que ajudaram direta ou indiretamente na
concretizao deste trabalho.
Ao Flvio - coordenador da Associao de Catadores do Jangurussu - pela
parceria e amizade.
Aos integrantes do Ncleo TRAMAS (Trabalho, Meio Ambiente e Sade para
a Sustentabilidade) pelas contribuies.
Aos meus pais Gerardo Albuquerque e Suzana Santos
e meus Irmos Karol Wojtyla e Germana Oliveira.
Tem gente que chega at a jogar
pedra, chama a gente de urubu,
carnia, e d alimento a gente
estragado porque pensa que a gente
trabalha com o lixo e come lixo,
entendeu?!... (Entrevistado 5, gari).
LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Esquemas das vias de contato homem-lixo....................................................... 6 Figura 2 - Imagem de Satlite da rea do Lixo do Monte Castelo ................................... 40 Figura 3 - Imagem de Satlite da rea do Lixo da Barra do Cear.................................. 42 Figura 4 - Imagem de Satlite da rea do Lixo do Antnio Bezerra ................................ 45 Figura 5 - Imagem de Satlite da rea do Lixo do Henrique Jorge.................................. 46 Figura 6 - Catadores no Lixo do Jangurussu em 1996..................................................... 47 Figura 7 - Imagem de Satlite da rea do Lixo do Jangurussu........................................ 48 Figura 8 - Vista Parcial de um Morro de Lixo do Lixo do Jangurussu............................ 50 Figura 9 - Representao da Cadeia Produtiva dos RSD de Fortaleza ............................. 56 Figura 10 - Vista de um Caminho Coletor de RSD de Fortaleza e da Guarnio ............ 57 Figura 11 - Formas de Acondicionamento Correta e Incorreta dos RSD em Fortaleza ..... 58 Figura 12 - Trabalho de Coleta dos RSD e Vista Parcial do Trabalho da Equipe .............. 59 Figura 13 - Vista Lateral da Usina de Triagem do Jangurussu .......................................... 60 Figura 14 - Vista Parcial de uma Esteira de Usina de Triagem do Jangurussu ................. 62 Figura 15 - Vista do Ptio, de uma Esteira e dos Catadores da Usina de Triagem ........... 63 Figura 16 - Clulas Abertas para Compactao do RSD no ASMOC................................ 65 Figura 17 - Imagem de Satlite da rea do ASMOC.......................................................... 66 Figura 18 - Vista Frontal do Galpo da ASCAJAN............................................................. 70 Figura 19 - Vista Lateral do Caminho da ASCAJAN de 35m3 .......................................... 70 Figura 20 - Vista Parcial da Rampa da ASCAJAN para Triagem de Materiais .................. 71 Figura 21 - Alguns Materiais Reciclveis Recebidos pela ASCAJAN ................................ 72 Figura 22 - Vista Parcial de Alguns Integrantes da Usina de Triagem ............................... 77 Figura 23 - Segregao de Reciclveis na Usina de Triagem ........................................... 79
LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Vetores e Enfermidades relacionadas aos Resduos Slidos.......................... 6 Quadro 2 - Composio Gravimtrica do Lixo de Alguns Pases (%) ................................ 34 Quadro 3 - Componentes Mais Comuns da Composio Gravimtrica............................. 35 Quadro 4 - Microrganismos Patognicos nos Resduos Slidos........................................ 38 Quadro 5 - Materiais Separados nas Esteiras e Vendidos aos Deposeiros....................... 63 Quadro 6 - Distribuio da rea do Aterro Sanitrio de Caucaia por Setor ....................... 66 Quadro 7 - Quantidade de RSD Destinadas ao ASMOC em 2006 e 2007 ........................ 68 Quadro 8 - Materiais Reciclveis e Preos de Venda pela ASCAJAN............................... 72 Quadro 9 - Composio do Grupo de Trabalhadores Entrevistados por Setor.................. 75 Quadro 10 - Categorias Principais e Empricas Construdas na Pesquisa ........................ 76
LISTA DE SMBOLOS E ABREVIATURAS
ABNT - Associao Brasileira de Normas Tcnicas ASCAJAN - Associao dos Catadores do Jangurussu ASMOC - Aterro Sanitrio Metropolitano Oeste de Caucaia ASTEF - Associao Tcnico-Cientfica Engenheiro Paulo de Frotin CNEN - Comisso Nacional de Energia Nuclear CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente EMLURB - Empresa Municipal de Limpeza e Urbanizao FUNASA - Fundao Nacional de Sade IBAM - Instituto Brasileiro de Administrao Municipal IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica NBR - Norma Brasileira PET - PoliTereftalato de Etileno PNGRS - Poltica Nacional de Gesto de Resduos Slidos PNSB - Plano Nacional de Saneamento Bsico RAR - Resduos de Atividades Rurais RMF - Regio Metropolitana de Fortaleza RR - Rejeitos Radioativos RSD - Resduos Slidos Domiciliares RSI - Resduos Slidos Industriais RSS - Resduos de Servios de Sade RSU - Resduos Slidos Urbanos SEMACE - Superintendncia Estadual do Meio Ambiente SGRSD - Sistema de Gerenciamento de Resduos Slidos Domiciliares UFC - Universidade Federal do Cear OPAS - Organizao Pan-Americana de Sade
RESUMO SANTOS, G. O. Resduos Slidos Domiciliares, Ambiente e Sade: (Inter)relaes a partir da Viso dos Trabalhadores do Sistema de Gerenciamento de Resduos Slidos de Fortaleza/CE. Dissertao de Mestrado. Programa de Ps-graduao em Sade Pblica. Universidade Federal do Cear, 2008. Como um dos produtos finais da lgica de desenvolvimento hegemnica, do crescimento populacional, dos avanos tecnolgicos e do aumento do consumo, os Resduos Slidos, comumente chamados por lixo, constituem hoje um problema (direto ou indireto) para o ambiente e para a sade pblica. Nessa perspectiva, essa pesquisa teve por objetivo geral compreender as (inter)relaes entre os Resduos Slidos Domiciliares (RSD), o ambiente e a sade a partir da viso de alguns trabalhadores do Sistema de Gerenciamento de RSD de Fortaleza/CE. Para tanto, realizamos reviso bibliogrfica, levantamento de informaes e imagens junto aos rgos competentes e pesquisa de campo constando de entrevistas semi-estruturadas com diferentes segmentos de trabalhadores que lidam com os RSD: garis, catadores da Usina de Triagem do Jangurussu e da Associao de Catadores do Jangurussu (ASCAJAN). Realizamos ainda registros fotogrficos, contatos as comunidades e observao direta. Aps realizao de 10 entrevistas, fizemos as transcries e sistematizamos as informaes chegando s seguintes categoriais sobre as (inter)relaes entre os RSD, o ambiente e a sade: O Trabalho, a Doena e a Sade, Os Significados do Lixo, Que Lixo Esse?, O Lixo e o Ambiente, O Trabalho com o Lixo e a Sociedade e Do Lixo a um Novo Horizonte. As perspectivas apresentadas pelos sujeitos mostraram um pouco do lugar de onde falam. Assim, os garis entrevistados falam de um lugar repleto de muito trabalho e esforo fsico e marcado por ms relaes de trabalho. Os integrantes da Usina de Triagem falam de um lugar abandonado pelos rgos competentes e sociedade, subordinado aos interesses de donos de depsitos e claramente propcio problemas ocupacionais. J os membros da ASCAJAN falam de um lugar mais salubre, entretanto com ganhos relativos reduzidos e que espera materiais reciclveis provenientes da solidariedade alheia. Trabalhar com os RSD no tem, para os entrevistados, uma nica representao ou sentido, sendo dotado de caractersticas positivas ou negativas, da dialtica incluso/excluso, sade/doena, orgulho/humilhao. Os depoimentos permitiram observar que h um cotidiano marcado por riscos ambientais e ocupacionais, omisso e/ou despreparo dos rgos competentes e da sociedade e ainda um trabalho que torna os envolvidos cada vez mais invisveis, alm da produo de RSD representar negativos impactos ambientais e sade pblica. Palavras-chaves: Sade Ambiental, Resduos Slidos, Meio Ambiente.
ABSTRACT SANTOS, G. O. Household Solid Residues, Environment and Health: inter(relations) from the view of the workers of the Management System of Solid Residues of Fortaleza/CE. Dissertao de Mestrado. Programa de Ps-graduao em Sade Pblica. Universidade Federal do Cear, 2008. As one of the final products of the hegemonic development logic, of the the population growth, of the technological advances and the increase in consumption, the Solid Waste, commonly called by garbage, today constitute a "problem" (direct or indirect) for the environment and public health. In this perspective, this research objectified understand the (inter)relations among the Household Solid Waste (HSW), the environment and health from the view of some workers of the Management System of HSW of Fortaleza/CE. Thus, were made bibliographical review, survey of informations and images with the responsible sectors and field research containing semi-structured interviews with different segments of workers who deal with HSW: garbage collectors, recycled garbage pickers from the Jangurussu Recycling Plant and the Jangurussu Recycled Garbage Pickers Association (ASCAJAN). Photographic records, contacts with the communities and direct observation were made. After accomplishment of 10 interviews, the transcripts and systematization of the informations were effected resulting in the following categories about the (inter)relations among HSW, environment, and health: " The Labor, Disease and Health", "The Meanings of Garbage", "What is This Garbage?", "The Garbage and the Environment", "The Work with Garbage and the Society" and "From Garbage to a New Horizon". The perspectives presented by the interviewed ones showed a little of "the place from where they speak". So, the garbage collectors speak of a place full of hard work and physical effort and marked by bad working relations. The members of the Recycling Plant speak of a place abandoned by the relevant authorities and society, subordinated to the deposits owners' interests and clearly propitious to occupational problems. Already the members of ASCAJAN speak of a place more salubrious, though with reduced earnings and that waits for recyclable materials from solidarity of others. Working with HSW does not have, to the interviewed, a single representation or meaning, but have positives and negatives characteristics, the dialectic inclusion-exclusion, health/disease, pride/humiliation. The testimony led to note that there is a daily marked by occupational and environmental risks, omissions and/or unpreparedness of the responsible sectors and society and also a job that makes the workers more invisible, beyond the production of HSW represents negative impacts, to the environment and to public health. Key-words: Environment Health, Solid Residues, Environment.
SUMRIO 1. INTRODUO ................................................................................................... 1 2. PROCEDIMENTOS METODOLGICOS........................................................... 11 3. A Questo dos Resduos Slidos ................................................................... 18
3.1 Consideraes Iniciais ................................................................................. 18 3.2 Resduos Slidos: Um olhar complementar ................................................. 27
3.2.1 Origens e Natureza dos Resduos Slidos ........................................... 29 3.2.2 Caractersticas dos Resduos Slidos .................................................. 33
4. RESULTADOS................................................................................................... 39
4.1 O SGRSD de Fortaleza/CE......................................................................... 39 4.2 A Cadeia Produtiva de RSD em Fortaleza/CE.......................................... 53 4.3 Conhecendo os Entrevistados e as Entrevistas ..................................... 73 4.4 As Categorias Apreendidas ...................................................................... 75
4.4.1 O Trabalho, a Doena e a Sade ....................................................... 76
4.4.1.1 Conhecendo o Trabalho ................................................................ 76 4.4.1.2 Trabalhando e Adoecendo............................................................. 88 4.4.1.3 Adoecendo e Buscando a Cura ..................................................... 93
4.4.2 Os Significados do Lixo ..................................................................... 96
4.4.2.1 O Lixo como Perigo ....................................................................... 96 4.4.2.2 O Lixo como Meio de Sobrevivncia ............................................. 99 4.4.2.3 O Trabalho com o Lixo como Necessidade ................................... 104
4.4.3 Que Lixo Esse? ................................................................................ 105 4.4.4 O Lixo e o Ambiente ........................................................................... 113 4.4.5 O Trabalho com o Lixo e a Sociedade .............................................. 120 4.4.6 Do Lixo a um Novo Horizonte ............................................................ 124
5. CONSIDERAES FINAIS ............................................................................... 128 6. REFERNCIAS.................................................................................................. 132 Apndice 1 - Formulrio de Conhecimento Geral dos Entrevistados ..................... 147 Apndice 2 - Roteiro da Entrevista Semi-estruturada ............................................ 148 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido........................................................ 149
1
1. INTRODUO
O crescimento populacional registrado na ltima metade do sculo,
acompanhado dos avanos tecnolgicos e do aumento do consumo gerou (e ainda
gera) uma grande quantidade e diversidade de resduos slidos1, que demandam
tratamento e/ou disposio adequada para se evitar problemas (diretos ou indiretos)
ambientais e de sade pblica.
Neste sentido, algumas alternativas2 vm sendo estudadas e aplicadas, no
mbito nacional, com o objetivo de tratar e/ou dispor adequadamente os resduos
slidos, dentre as quais merecem destaque a reciclagem (para a frao inorgnica
existente nos resduos slidos), a compostagem (para a frao orgnica), a
incinerao, pirlise ou microondas (para os resduos spticos) e o aterramento
sanitrio (para os resduos domiciliares).
Apesar dessas alternativas, vrias cidades fazem uso de lixes3 para dispor
seus resduos slidos, mas tal opo no recomendvel pelos conhecidos
problemas de contaminao ao ambiente decorrentes do chorume4 (lquido gerado
pela degradao anaerbica do material orgnico existente nos resduos slidos e
de fortes caractersticas fsico-qumicas e biolgicas) - e dos gases, especialmente
dixido de carbono (CO2) e metano (CH4), provenientes da digesto dos resduos.
1 O termo resduos slidos permite mudar a relao entre as pessoas e o que descartam. Favorece entender, entre outras coisas, que o descartado por um determinado grupo social pode ter valor para outro e no traz a idia de sujeira, de rejeito ou mesmo pejorativa que o termo lixo carrega. Foi do nosso interesse sempre utilizar o termo resduos slidos pelos motivos acima, mesmo ouvindo de alguns entrevistados o termo lixo. importante destacar que o discernimento entre esses conceitos no est claro na literatura, pois muitos autores, inclusive alguns lidos aqui, no fazem essa distino conceitual e, por vezes, fazem uma simples alternncia entre tais termos. Nobre diferenciao conceitual feita, por exemplo, por Abreu (2001), Zaneti (2006) e Pereira Neto (2007). 2 Falamos das alternativas utilizadas para a resoluo da questo dos resduos slidos porque muito comum encontr-las sob esse olhar na literatura e porque o lado tecnolgico tem sempre ocupado lugar privilegiado quando o tema ambiental, notadamente quando se fala na questo dos resduos slidos. Entretanto, acreditamos que a temtica aqui discutida exige uma mudana de olhar, de educao e da prpria cultura, de forma individual e coletiva, se no quisermos sempre remediar e sim prevenir, pensando na perspectiva da sustentabilidade, na qualidade de vida e no cuidar da Terra, trazida por Boff (2003). 3 Segundo Castilhos Jnior et al (2003), o depsito de resduos slidos a cu aberto ou lixo uma forma de deposio desordenada sem compactao ou cobertura dos resduos, o que propicia a poluio do solo, ar e gua, bem como a proliferao de vetores de doenas. Provavelmente, o lixo representa o modo mais primitivo para a destinao dos resduos slidos, por no considerar os impactos ambientais gerados nem o risco sade das comunidades (SANTOS, 2007). Do ponto de vista econmico, as cidades ou regies que ainda possuem este tipo de disposio de resduos podem perder atratividade nos investimentos privados, particularmente na rea do turismo como bem lembrou BNB (1999). Alm disso, acabam excludas da lista internacional de financiamento, pois se encontram fora da lgica da Agenda 21 e do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) por possuir um sistema to rudimentar para tratar seus resduos slidos. 4 A concentrao mdia do valor poluente do chorume chega a ser dez vezes mais superior ao valor poluente do esgoto domiciliar (PEREIRA NETO, 2007).
2
Apesar desse reconhecimento, 63,6% dos municpios do Brasil dispem seus
resduos slidos em lixo conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica -
IBGE (2002). Na mesma situao, apenas oito municpios5 do Estado do Cear -
que produz 10.150,5 toneladas/dia - Fortaleza, Caucaia, Maracana, Maranguape,
Pacatuba, Aquiraz, Eusbio e Sobral - no utilizam lixo como alternativa para
destino final dos seus resduos slidos.
Desse modo, o tema resduos slidos no tem recebido a ateno
necessria por parte do poder pblico da maioria dos municpios brasileiros e
cearenses e, com isso, [...] compromete-se cada vez mais a j combalida sade da
populao, bem como se degradam os recursos naturais, especialmente o solo e os
recursos hdricos (INSTITUTO BRASILEIRO DE ADMINISTRAO MUNICIPAL -
IBAM, 2001, p.1).
Contraditoriamente:
A responsabilidade pela proteo do meio ambiente, pelo combate poluio e pela oferta de saneamento bsico a todos os cidados brasileiros est prevista na Constituio Federal, que deixa ainda, a cargo dos municpios, legislar sobre assuntos de interesse local e de organizao dos servios pblicos. Por isto, e por tradio, a gesto da limpeza urbana e dos resduos slidos gerados em seu territrio de responsabilidade dos municpios (IBGE, 2002, p.49).
Portanto, a estrutura constitucional do municpio brasileiro assegura ao nvel
local a autonomia para organizar seus servios pblicos, em especial, com relao
destinao final de seus resduos slidos. Porm, fica na responsabilidade do
Estado a fiscalizao ambiental e na responsabilidade da Unio, a definio das
normas gerais como nos trouxe BANCO DO NORDESTE DO BRASIL - BNB (1999).
Apesar da responsabilidade, observamos na literatura - Acurio et al (1997),
Calderoni (1999), IBAM (2001), IBGE (2002), Castilhos Jnior et al (2003), Mota
(2003), Alves et al (2006), Santos et al (2006), Zaneti (2006), Santos (2007), - que a
maioria dos municpios brasileiros encontra-se fragilizado (tcnica e
financeiramente), a ponto de no conseguir adotar nenhuma alternativa de
5 Informao verbal conseguida com um tcnico da Superintendncia Estadual do Meio Ambiente (SEMACE) em entrevista realizada.
3
tratamento e/ou disposio adequada para suas inmeras toneladas de resduos
slidos, nem desenvolve atividades educativas e voltadas, por exemplo, no-
gerao com suas comunidades.
Na perspectiva de Sisinno (2002, p.13):
[...] as prefeituras - responsveis pela coleta, transporte e destino final dos resduos produzidos nas cidades - muitas vezes esbarram na deficincia de verbas e de preparo tcnico de seus funcionrios, alm da falta de cobrana por parte da populao e de vontade poltica, uma vez que muitos polticos consideram que lixo no d voto.
Ainda segundo a autora:
Muitas prefeituras, rgos de fiscalizao ambiental e companhias de limpeza urbana esto despreparados para o levantamento e organizao de dados sobre a produo e destino dos resduos slidos urbanos e industriais (SISINNO, 2002, p.14).
Sob tais perspectivas, os resduos slidos, especialmente os de origem
domiciliar6, se tornam um grande problema ambiental e de sade pblica para a
maioria dos estados e cidades brasileiras, assumindo uma magnitude alarmante e
que se agrava cada vez mais com o crescimento desordenado das cidades, a
utilizao predatria da natureza e a manuteno de hbitos de consumo
insustentveis.
A sociedade moderna vive, portanto, um paradoxo; ao mesmo tempo em que aumenta a preocupao com o esgotamento dos recursos naturais, que pouco disseminada, permanece o encorajamento dos hbitos de consumo indiscriminados, veiculados especialmente pelos meios de comunicao de massa, com elevado potencial de impacto em nvel global e intergeracional (BNB, 1999, p.230).
Comungam com essa discusso outros autores, dentre os quais merecem
destaque Freire Dias (2003) e Porto (2007). O primeiro autor postula que:
[...] esse cenrio nos conduziu a uma situao de autntica emergncia planetria, marcada por toda uma srie de graves problemas estreitamente relacionados: contaminao e degradao dos ecossistemas, esgotamento
6 Falamos aqui dos resduos slidos domiciliares porque eles foram o foco dessa pesquisa, mas fizemos breves consideraes sobre os demais tipos de resduos no referencial terico da pesquisa.
4
de recursos ambientais, conflitos destrutivos, perda de diversidade biolgica e cultural (FREIRE DIAS, 2003, p.66).
J Porto (2007, p.43) defende que:
[...] a atual civilizao vive uma poca extremamente contraditria, em que se destacam opostos radicais: de um lado, a produo abundante de riquezas materiais com o potencial de livrar a humanidade de uma srie de mazelas e misrias; de outro, a concentrao mesquinha de riquezas acompanhada da misria humana e da degradao scio-ambiental.
Ainda segundo Porto (2007, p.43-44),
Alcanamos um estgio de conhecimento tcnico-cientfico e circulao de informaes que, em tese, possibilitariam nveis de organizao social e desenvolvimento humano em extenses inimaginveis em qualquer perodo histrico passado, que permitiriam libertar o ser humano da fome e das privaes materiais mais prementes. Entretanto, os problemas sociais e ambientais tornam-se crescentemente mais abrangentes, complexos e ameaadores.
Inserida nesse cenrio e, semelhante s grandes cidades brasileiras,
Fortaleza/CE apresenta crnicos problemas urbanos, ambientais e de saneamento
que desafiam, numa perspectiva ampliada, tanto as gestes municipais quanto a
sociedade. Seu alarmante inchao urbano somado especulao imobiliria, por
exemplo, provocam uma excessiva impermeabilizao dos solos, devastao de
reas verdes e aterramento de recursos hdricos.
Alm desses problemas, a gesto scio-ambiental dos Resduos Slidos
Domiciliares (RSD) gerados em Fortaleza/CE representa outro grave desafio.
Conforme o IBGE (2002) so produzidas diariamente 2.375 toneladas na cidade,
porm, informaes obtidas apontam para 3.000 toneladas/dia7.
Para tratar e/ou dispor adequadamente tais resduos, Fortaleza/CE dispe,
desde 1998, de um Sistema8 de Gerenciamento formado por Coleta Domiciliar,
Usina de Triagem e Aterramento Sanitrio. Na operao desse sistema, muitos
trabalhadores so mobilizados diariamente e submetidos ao contato dirio (direto ou
7 Informao verbal obtida junto ao atual diretor da Empresa Municipal de Limpeza Urbana (EMLURB). 8 Utilizamos o termo Sistema porque esta a expresso usada pela gesto pblica local responsvel pela temtica dos Resduos Slidos Domiciliares (RSD). Observamos, inclusive, que esse termo empregado pela gesto pblica para designar o caminho dos RSD, ou seja, onde os resduos so dispostos pela populao, como so coletados e para onde so enviados, portanto, defendemos que a expresso servio - no lugar de sistema - seria mais apropriada.
5
indireto) com diversos tipos de resduos slidos e pouco se conhece sobre as
repercusses desses resduos na sade dessas pessoas e no ambiente.
Os RSD, por conterem uma parcela de cada material que chega ao interior
das residncias (absorventes higinicos, lenos de papel, fraldas, sobras de
alimentos, pilhas, baterias, leos, vasilhames de solventes, tintas, produtos de
limpeza, cosmticos, remdios, vidros, papis, plsticos, metais, etc.) podem abrigar
um amplo espectro de organismos patognicos, elementos txicos ou serem por si
s um risco para a sade dos trabalhadores que realizam a coleta, a segregao, o
transporte ou mesmo o aterramento sanitrio.
Apesar deste reconhecimento, so escassas as pesquisas realizadas na
capital cearense sobre o assunto. Isto se d, em parte, pelo fato de existirem poucos
centros de pesquisas que lidam com a questo dos resduos slidos municipais, e
tambm pelo fato de que, na maioria das vezes, os trabalhos desenvolvidos -
Marques (1999), Filho (2001), Soares (2004) e Firmeza (2005) - no voltaram seus
objetivos para esse olhar, ou seja, para a trade RSD-ambiente-sade.
Sob tal cenrio, esta pesquisa se apresenta como relevante por:
i) preencher parte da lacuna deixada na literatura pertinente, notadamente na local;
ii) proporcionar que seus resultados sirvam de apoio formulao de um novo
sistema de gesto de resduos ou ao aprimoramento do existente;
iii) fomentar reflexes para o desenvolvimento de programas voltados sade dos
trabalhadores envolvidos no trabalho com o lixo9
iv) fornecer e sistematizar todo um histrico da problemtica dos RSD de
Fortaleza/CE em termos de ambiente e sade importante para prticas de educao
ambiental.
9 Utilizamos aqui a expresso trabalho com o lixo porque ela comum gesto pblica local. Portanto, o termo Resduos Slidos Domiciliares - RSD no utilizado e isso significa, na melhor das hipteses, que a gesto pblica possui uma arcaica viso acerca daquilo que descartado pela populao, que todo o universo de potencialidades inerentes cadeia produtiva dos RSD desprezado e que o incio de uma nova cultura sobre os excessos no tem apoio pblico.
6
Nesse sentido, os problemas advindos dos RSD so aqueles que podem
causar impactos negativos (diretos ou indiretos) ao ar, solo, gua, fauna, flora e a
sade humana. Portanto, os resduos no devem ser desprezados no estudo da
estrutura epidemiolgica, uma vez que pela sua variada composio, podem conter
agentes biolgicos patognicos e/ou substncias qumicas que podem alcanar o
ser humano (SISINNO, 2002, p.35).
A qualidade de vida humana pode ser afetada pelos RSD de vrias formas:
quando os RSD transmitem doenas diretamente ou por vetores abrigados; quando
causam acidentes (tanto terrestres quanto martimos e areos); quando adentram
nas residncias em decorrncias de inundaes; quando exalam odores ao se
degradarem; quando os RSD so ingeridos pelas comunidades de catadores e;
quando esses resduos limitam a aquisio de recursos para o municpio em
decorrncia do descaso com o tema.
A Figura 1 traz um esquema das vias de contato lixo-homem segundo Heller
(1998) e sinteticamente explica as trajetrias a partir das quais pode ocorrer
transmisso de doenas oriundas da disposio inadequada do RSD. Notamos que,
dada diversidade de vias e, especialmente, a ao dos vetores - biolgicos e
mecnicos - o raio de influncia dos resduos muito extenso.
Figura 1 - Esquemas das vias de contato homem-lixo.
Fonte: NAJM (s.d.) apud Heller (1998) /(*) Adaptado por Heller.
7
O Quadro 1 apresenta toda uma diversidade de vetores e enfermidades
relacionadas aos resduos slidos.
Quadro 1 - Vetores e Enfermidades relacionadas aos Resduos Slidos.
Vetores Forma de Transmisso Enfemidades
Rato e Pulga
Mordida, urina, fezes e picada Leptospirose, Peste
Bubnica, Tifo murino
Mosca
Asas, patas, corpo, fezes e saliva Febre tifide, Clera, Amebase, Disenteria, Giardase, Ascaridase
Mosquito
Picada Malria, Febre amarela, Dengue, Leishimaniose
Barata
Asas, patas, corpo e fezes Febre tifide, Clera,
Giardase Gado e Porco
Ingesto de carne contaminada Tenase, Cisticercose
Co e Gato Urina e fezes Toxoplasmose Fonte: Adaptado de FUNASA (1999).
Alm destes vetores, os urubus que so atrados pela matria orgnica em
decomposio encontrada no lixo podem albergar o agente da toxoplasmose
(LEITE, ROCHA e VENNCIO, 1990 apud SISINNO, 2002), constituindo-se
igualmente em um risco para as aeronaves que circulam nas proximidades de reas
de despejo de RSD.
Esse risco de acidente com avies somado ao descaso com o destino final
dos resduos slidos fez com que Fortaleza, por exemplo, adiasse em 01 ano a
construo do Aeroporto Internacional Pinto Martins porque os organismos
internacionais de financiamento no liberavam o dinheiro enquanto a cidade no
resolvesse a questo do Lixo do Jangurussu - situado em plena rea urbana.
Alguns estudos realizados no Brasil tm apontado para uma possvel
Associao entre o manejo inadequado de resduos slidos urbanos e o aumento de
eventos mrbidos, notadamente diarria e parasitoses intestinais, em crianas
(CATAPRETA e HELLER, 1999 apud RGO, BARRETO e KILLINGER, 2002).
8
Cabe observar que os problemas de sade associados aos RSD ou mesmo
as vias de contato se potencializam quando lembramos das populaes residentes
nas proximidades de lixes ou aterros sanitrios, pois a grande maioria vive em
precrias habitaes e so submetidas a problemas sanitrios10 e ambientais.
Refletindo sobre esse cenrio Sisinno (2002, p.36) nos traz que:
Todos esses problemas influenciam negativamente a sade das populaes residentes nas proximidades das reas de disposio de resduos: populaes que muitas vezes j se encontravam no local antes do incio da instalao dessas reas ou se mudaram para as redondezas devido falta de melhores condies de moradia.
Ozonoff, Colten e Cupples (1987) apud Sisinno (2002) demonstraram como
resultado de seu estudo em moradores residentes nas proximidades de vrias reas
de disposio de resduos perigosos que estes apresentavam maior incidncia de
sintomas respiratrios (respirao ofegante, tosse, resfriados persistentes, etc.),
problemas cardacos e casos de anemia, comparados com um grupo controle,
localizado mais afastado dessas reas.
Observamos em Acurio et al (1997) sete principais problemas de sade
associados s substncias presentes nos locais de disposio de resduos
perigosos: i) anomalias imunolgicas; ii) cncer; iii) danos ao aparelho reprodutor e
defeitos de nascena; iv) doenas respiratrias e pulmonares; v) problemas
hepticos; vi) problemas neurolgicos e; vii) problemas renais. Ainda segundo os
autores, os problemas que mais preocupam as comunidades afetadas pela
disposio de resduos perigosos so: cncer, efeitos neurolgicos e defeitos de
nascena.
Outras formas de abordar a temtica dos resduos slidos foram encontradas
nos trabalhos de Marques (1999) e Firmeza (2005), que analisaram aos RSD sob a
dimenso da reciclagem; Filho (2001) e Soares (2004), que conceberam o mesmo
assunto sob o foco da destinao final e da gesto; Vieira (2004) e Santos et al
10 Segundo a Organizao Pan-Americana de Sade - OPAS (1999) os problemas decorrentes de deficincias no saneamento bsico seguem minando a sade de milhes de pessoas na Amrica Latina e Caribe: a diarria ainda responsvel pela morte de 80.000 crianas/ano na regio enquanto que a combinao de gua potvel e esgotamento sanitrio com educao sanitria pode reduzir 25% dos casos de diarria, 29% de ascaridase e 55% da mortalidade infantil em geral.
9
(2006), que trataram da questo dos RSD sob a dimenso da educao ambiental;
Ensinas (2003) e Alves et al (2006), que trabalharam a questo dos RSD sob o foco
da gerao de energia.
Alm dos trabalhos citados, observamos outras publicaes sobre a temtica
dos RSD: as que trazem consideraes sobre o comportamento das pessoas em
relao aos resduos que produzem como nos trouxe Bursztyn (2003), Zaneti (2006)
e Pereira Neto (2007).
Observamos que h uma linha unindo os autores no que diz respeito
afirmao de que as pessoas adotam posturas de rejeio e/ou desprezo em
relao ao que chamam de lixo ou aquilo que pem para fora das suas
residncias. como se cada ser humano tivesse em seu imaginrio a idia de que
os RSD representam aquilo que no presta mais, que deve ser afastado o mais
rpido possvel da sua frente ou que algum deve cuidar, etc.
Cabe lembrar que um dos frutos desse olhar, na sociedade vigente, o
comportamento que as pessoas, de modo geral, adotam para com os trabalhadores
envolvidos na coleta seletiva (chamados de catadores) e para com os envolvidos na
coleta formal de RSD (chamados de garis11); comportamento de estigmatizao -
que seria, conforme entendemos em Nascimento (2003), uma situao na qual o
indivduo est inabilitado para a aceitao social plena.
Desse modo, grupos especficos de trabalhadores esto diariamente em
contato com aquilo que os outros no querem mais, portanto, lidando com as
sobras (Zaneti, 2006) - que conferem riscos sade - e sofrendo as conseqncias
- a exemplo do preconceito - desse trabalho.
Foi refletindo sobre essas questes que tivemos o interesse em desenvolver
essa pesquisa sob a seguinte pergunta de partida: como alguns trabalhadores do
11A denominao gari, dada aos coletores de lixo, surgiu na dcada de 40, com a empresa "Irmos Gari", que prestava servios de coleta e transporte de lixo at seu destino final. Em funo deste trabalho e sua permanncia nesta execuo, os coletores de lixo passaram a ser chamados de Garis, e esta denominao, ainda, perpetua em todo o Brasil (FERREIRA DOS SANTOS, 1999). importante dizer que outra denominao dada a estes trabalhadores a de "lixeiro", que, ao nosso ver, vulgariza a atividade profissional exercida, pois traz um ncleo simblico depreciativo.
10
Sistema de Gerenciamento de Resduos Slidos Domiciliares (SGRDS) de
Fortaleza/CE compreendem as (inter)relaes entre os RSD, o ambiente e sua
sade?
Para buscar responder a esta pergunta construiu-se uma metodologia
baseada em entrevistas com alguns garis e catadores da Usina de Triagem do
Jangurussu e de uma Associao de Catadores, porque acreditamos que eles so
pessoas que conhecem e compreendem profundamente essa realidade, pois a
vivenciam diariamente e diretamente.
Nesse sentido, o objetivo geral dessa pesquisa foi compreender as
inter(relaes) entre os RSD, o ambiente e a sade a partir da viso de alguns
trabalhadores do SGRSD de Fortaleza/CE.
Com relao aos objetivos especficos buscamos:
Resgatar o histrico do SGRSD de Fortaleza/CE;
Esboar a cadeia produtiva dos RSD da capital cearense;
Identificar algumas caractersticas do processo de trabalho dos garis e catadores;
Conhecer a viso dos entrevistados em relao aos RSD, o ambiente e a sade.
O trabalho est estruturado nos seguintes itens principais: no ponto 1
trouxemos essa introduo (com um pouco da apresentao do problema, da
justificativa, objetivos e relevncia do trabalho), no ponto 2 trouxemos os
procedimentos metodolgicos, no ponto 3 uma breve reviso da literatura, no ponto
4 os resultados alcanados (com o histrico da questo dos RSD, com o estudo da
cadeia produtiva dos RSD, com a descrio de algumas caractersticas do processo
de trabalho dos garis e catadores e com a viso dos entrevistados). No ponto 5
trouxemos as consideraes finais e sugestes de trabalhos futuros e no ponto 6 as
referncias.
11
2. PROCEDIMENTOS METODOLGICOS
O primeiro momento da pesquisa envolveu a realizao da reviso
bibliogrfica, por meio da qual foi possvel conceituar e inter-relacionar os trs
grandes eixos temticos desta pesquisa, quais sejam: trabalho com os RSD,
ambiente e sade.
A realizao desse primeiro momento foi importante por ter proporcionado um
melhor entendimento dos achados ou observaes com aquele(a)s existentes da
literatura, contribudo no recorte do objeto e inspirando a definio da metodologia.
Tal momento representa uma atividade imprescindvel em pesquisas qualitativas sob
o ponto de vista de Glazier e Powell (1992) e Dias (2000). Alm disso, o trabalho de
pesquisa bibliogrfica evitou que os achados desta pesquisa ficassem separados da
totalidade, o que relevante em metodologias qualitativas segundo Haguette (1995).
Pelo dito acima, esta pesquisa qualitativa, a qual, na viso de Moreira
(2002, p.44) trabalha com discursos, textos, sons, imagens, smbolos, abdicando
total ou quase totalmente das abordagens matemticas no tratamento dos dados.
Aprofundando esse olhar Minayo et al (1994, p.22) nos traz que:
[...] a metodologia qualitativa trabalha com um universo de significados, motivos, aspiraes, crenas, valores e atitudes, o que corresponde a um espao mais profundo das relaes, dos processos e dos fenmenos que no podem ser reduzidos operacionalizao de variveis.
Da mesma forma, Silva e Menezes (2002, p.20) afirmam que na pesquisa
qualitativa h uma relao dinmica entre o mundo real e o sujeito, isto , um vnculo
indissocivel entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito que no pode ser
traduzido em nmeros.
Minayo et al (1994, p.24) nos trazem que:
Ao aprofundar-se no mundo dos significados das aes e relaes humanas a pesquisa qualitativa possibilita uma apreenso/aproximao de fenmenos inscritos no mundo real que muitas vezes passam desapercebidos em outros tipos de pesquisas cientficas
12
Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (2002) nos trazem ainda uma leitura
complementar sobre a metodologia aqui empregada. Segundo os autores ela se
caracteriza pelo fato de seguir a tradio compreensivo-interpretativo, que no
contexto das cincias sociais, se coloca como modelo alternativo ao positivismo. Tal
tradio, para Fraser e Gondim (2004, p.3), parte da premissa de que a ao
humana tem sempre um significado (subjetivo e intersubjetivo) que no pode ser
apreendido somente do ponto de vista quantitativo e objetivo.
Fraser e Gondim (2004, p.4) ressaltam ainda que [...] a tradio idiogrfica
defende o ponto de vista de que as cincias sociais tm como objetivo central a
compreenso da realidade humana vivida socialmente. Para os autores:
[...] o essencial no quantificar e mensurar e sim captar os significados. O que se busca no explicar a relao antecedente e conseqente (nexos causais) e sim compreender uma realidade particular na sua complexidade (influncia mtua dos trabalhadores na construo de sua realidade) (FRASER e GONDIM, 2004, p.4).
A nossa escolha pela perspectiva qualitativa se deu em funo deste tipo de
pesquisa permitir uma melhor compreenso do fenmeno no contexto em que ele
ocorre a partir da interao das condies envolvidas, permitindo um
aprofundamento maior sobre o tema.
O segundo momento da pesquisa compreendeu o levantamento de
informaes junto aos rgos competentes, especialmente, a Superintendncia
Estadual do Meio Ambiente (SEMACE), a Empresa Municipal de Limpeza e
Urbanizao (EMLURB) e com a concessionria responsvel pela gesto dos RSD
na capital cearense.
Neste sentido, cabe destacar que:
i) a SEMACE o rgo responsvel pelo licenciamento ambiental de
empreendimentos potencialmente poluidores no Estado do Cear, e como tal, tem
parcela de responsabilidade sobre o SGRSD de Fortaleza/CE, inclusive sobre o
aterro sanitrio que recebe os RSD coletados;
13
ii) a EMLURB responsvel pela qualidade dos servios prestados pela
concessionria vencedora da licitao, mas tambm pelo acompanhamento dos
servios realizados para os demais tipos de resduos slidos urbanos gerados e;
iii) a concessionria quem planeja, organiza, executa e coordena o fluxo dos RSD
e o rgo empregador dos garis entrevistados.
A realizao desse segundo momento foi importante por ter proporcionado
uma descrio de cada etapa do SGRSD de Fortaleza/CE. Neste sentido, Manning
(1979, p.668) destaca que o trabalho de descrio tem carter fundamental em um
estudo qualitativo, pois por meio dele que os dados so coletados.
A partir do escrito pelo autor, pensamos ser relevante destacar que esta
pesquisa deu privilgio ao uso da palavra informao em detrimento da palavra
dado, por defendermos a tese de que quela est mais prxima das pesquisas de
cunho qualitativo.
A pesquisa aqui realizada do tipo descritiva. Conforme entendemos em
Trivios (1987), o estudo descritivo aquele onde se pretende descrever os fatos e
fenmenos de determinada realidade. De forma muito semelhante, Vilela (2008, p.7)
define o estudo descritivo como aquele que o pesquisador observa, registra, analisa
e correlaciona os fatos ou fenmenos.
Rudio (1999, p.71) afirma que a pesquisa descritiva, est interessada em
descobrir e observar fenmenos, procurando descrev-los, classific-los e interpret-
los. Nesse sentido, a realidade que se pretendeu apreender nessa pesquisa
envolve os significados dos resduos slidos para os trabalhadores, como trabalhar
com os RSD, como os entrevistados percebem a relao entre os resduos e a sua
sade, quais seus desejos e sonhos diante das suas vivncias.
Outro aspecto importante do segundo momento que ele contribuiu para a
ordenao das informaes e atribuio preliminar de significados aos depoimentos
a partir de cada realidade observada - que so pressupostos da pesquisa qualitativa.
Alm disso, a descrio de cada etapa do SGRSD de Fortaleza/CE permitiu iniciar a
14
compreenso das (inter)relaes entre os RSD, o ambiente e a sade a partir da
viso dos trabalhadores envolvidos.
O terceiro momento da pesquisa envolveu a realizao dos estudos de campo
por meio dos quais cada componente do SGRSD de Fortaleza foi visitado, para
imerso no contexto e construo inicial das informaes junto aos trabalhadores
envolvidos na operao do sistema, descrevendo as variveis que o compem,
reconhecendo-se a presena de complexidades e interfaces que o caracterizam e o
particularizam.
Durante o estudo de campo, realizamos contatos com informantes-chaves
das comunidades residentes nas reas outrora utilizadas para disposio de RSD
em Fortaleza/CE, quais sejam: Monte Castelo, Barra do Cear, Antnio Bezerra,
Henrique Jorge e Jangurussu. Esses contatos tiveram por objetivo melhor delimitar
as reas diretamente impactadas pela disposio dos RSD em suas respectivas
pocas, bem como analisar as atuais condies de uso e ocupao. Aps esses
levantamentos fizemos a procura e seleo das imagens dessas reas via uso do
Programa Google Earth, verso 2007, alm da observao direta.
O registro fotogrfico tambm representou um importante instrumento nesse
trabalho, permitindo melhor compreender a situao atual das reas ocupadas pelos
lixes de Fortaleza/CE e tambm registrar momentos ou componentes da cadeia
produtiva de RSD da cidade. Cada imagem capturada permitiu refletir sobre os
procedimentos operacionais existentes na cadeia produtiva e sobre a dimenso
ambiental e social existente.
Houve ainda outra inteno na realizao dos registros fotogrficos: permitir
que futuramente outras pesquisas tomem a realidade estudada como referncia,
favorecendo a adoo de aes preventivas e/ou corretivas. A fotografia, segundo
Humberto (2000, p.14), no um simples registro viabilizado por recursos
tecnolgicos que nos permitem aprisionar o tempo, mas antes de tudo, uma
linguagem, portadora de mltiplas leituras.
15
De forma complementar Salgado (2000, p.31) explica que a fotografia tem o
grande poder de sintetizar vrias coisas ao mesmo tempo, em uma s imagem.
Desse modo, as fotos apresentadas aqui podem ser vistas como o testemunho de
um momento.
O desenvolvimento desse momento tomou como referencial os escritos de
Godoy (1995) - que ressalta a importncia do ambiente natural como fonte direta de
dados quando se trabalha com pesquisa qualitativa. O referido autor alerta, em seu
artigo, para outras caractersticas essenciais desse tipo de pesquisa que, inclusive,
foram - em maior ou menor intensidade - utilizadas nessa pesquisa, quais sejam: o
carter descritivo, o significado que as pessoas do s coisas e sua vida como
preocupao do investigador e o enfoque indutivo.
Esse terceiro momento (estudos de campo) foi importante ainda por
proporcionar o incio de um relacionamento longo e flexvel com os entrevistados.
Essa vivncia representou o comeo da fase exploratria interpretativa que coube
essa pesquisa, pois nos preocupamos com o processo e no simplesmente com os
resultados ou produtos.
O quarto momento da pesquisa envolveu a realizao das entrevistas e se
sucedeu aps obteno favorvel do Comit de tica em Pesquisa com Seres
Humanos da Universidade Federal do Cear (Processo 205/2007).
Foram entrevistados 05 representantes da coleta domiciliar de RSD, 03 da
Usina de Triagem e 02 da Associao de Catadores do Jangurussu (ASCAJAN).
Fizemos o levantamento de alguns dados biogrficos (idade, escolaridade, tempo de
trabalho com os resduos slidos, cidade de origem, registros de outros trabalhos,
local de moradia, renda, estado civil, etc.) para melhor compreender os sujeitos
entrevistados e nos aproximarmos do mundo do RSD. Adotamos tcnica utilizada
por Porto et al (2004) num estudo sobre lixo, trabalho e sade, desenvolvido com
catadores em um aterro metropolitano no Rio de Janeiro.
Para abordar a temtica, optamos pela entrevista semi-estruturada, que
segundo Duarte (2002, p.17) representa uma tcnica que evita dvidas por parte do
16
entrevistado em relao temtica central pesquisada. Alm disso, Fraser e
Gondim (2004, p.4) destacam que alm de um instrumento orientador para a
entrevista, o tpico guia pode ser til para a elaborao e antecipao de categorias
de anlises dos resultados.
Lembramos ainda que o objetivo maior, ao utilizarmos um roteiro semi-
estruturado, foi minimizar desvios nos depoimentos e alcanar melhores resultados,
pois se trabalhou com diferentes grupos de pessoas. Alm disso, a entrevista semi-
estruturada foi adotada por valorizar a presena do investigador, oferecer todas as
perspectivas possveis para que o informante alcance a liberdade e a
espontaneidade necessrias, enriquecendo a investigao, conforme nos traz
Minayo (1992) ao se referir a esse tipo de entrevista.
Certamente, a adoo de entrevistas semi-estruturadas como material
emprico nesta pesquisa constituiu uma opo terico-metodolgica que est no
centro de vrios debates entre pesquisadores das cincias sociais. Entretanto,
encontramos em Fraser e Gondim (2004, p.3) uma alternativa para tais debates
quando afirmam que toda tcnica de pesquisa tem alcances e limites demarcados,
e tal assertiva foi importante, inclusive, para reconhecermos que esta pesquisa
representa apenas uma das vrias leituras que podem ser feitas do fenmeno
estudado. Nesse mesmo sentido, Morin (2001, p.19) nos traz que no h
conhecimento que no esteja, em algum grau, ameaado pelo erro e pela iluso.
A adoo da entrevista como uma das tcnicas nesta pesquisa nos pareceu
representar um caminho importante de interao social entre o entrevistador e o
entrevistado. Compartilhando com a viso de Brando (2000, p.8) entrevista
trabalho e como tal reclama uma ateno permanente do pesquisador aos seus
objetivos, obrigando-o a colocar-se intensamente escuta do que dito, a refletir
sobre a forma e contedo da fala do entrevistado. Alm disso, tal tcnica valoriza o
uso da palavra, smbolo e signo privilegiados das relaes humanas, por meio da
qual os atores sociais constroem e procuram dar sentido realidade que os cerca
(FLICK, 2002; JOVECHLOVITCH e BAUER, 2002).
A entrevista constitui:
17
[...] uma fonte de informao importante referente a opinies, a fatos, a crenas, maneira de pensar, a sentimentos, maneira de atuar e de se comportar frente a um dado objeto real ou imaginrio. Por outro lado, tambm serve como um meio de coleta de informaes sobre um determinado tema cientfico (CRUZ NETO, 1994, p.57).
A entrevista no significa uma conversa despretensiosa e neutra, uma vez que se insere como meio de coleta dos fatos relatados pelos atores, enquanto sujeitos-objeto da pesquisa, que vivenciam uma determinada realidade que est sendo focalizada (CRUZ NETO, 1994, p.57).
O quinto momento da pesquisa envolveu a anlise dos depoimentos. Para o
processamento das entrevistas realizamos, inicialmente, as transcries e leitura
livre das falas, anotando as primeiras observaes em relao ao tema estudado.
Em seguida, procedemos a categorizao interna das mesmas utilizando o roteiro de
entrevista como um guia de sistematizao de informaes, sem impedir o
aprofundamento de aspectos relevantes ao entendimento do fenmeno. Esse quinto
momento foi importante por possibilitar um esforo analtico que ampliou a
compreenso do universo cultural dos diferentes grupos de entrevistados e dos
significados que eles produzem a partir de um cotidiano de trabalho.
De toda uma complexidade que se abre no estudo das relaes RSD-
ambiente-sade foram selecionadas algumas informaes relevantes para a
compreenso do universo de sentidos emergido das conversas. Assim, o que
apresentamos aqui tambm passvel de aprofundamento e estudos posteriores,
porm as nossas costuras contribuem para comearmos a contar a histria de
alguns seres humanos que lidam com RSD: os garis e os catadores de reciclveis
de Fortaleza/CE.
18
3. A QUESTO DOS RESDUOS SLIDOS 3.1 - Consideraes Iniciais
Para melhor compreender a questo dos resduos slidos traamos nessa
seo breves consideraes sobre o modelo de desenvolvimento12 adotado pela
grande maioria das naes, considerando seus paradigmas e posturas sobre o
patrimnio vivo (e no vivo) existente na Terra e distribudo nos espaos nacionais.
Nesse sentido, buscamos compreender aspectos do modelo de
desenvolvimento adotado pelo Brasil situando nele a temtica dos Resduos Slidos
Domiciliares (RSD) para nos remeter discusso - mesmo que de forma resumida -
de alguns aspectos da modernidade, na perspectiva de construir um cenrio que
esboce algumas foras motrizes responsveis pela degradao dos ambientes
naturais, gerao de resduos e decrscimo na qualidade de vida das maiorias
humanas.
Assim, o que ser apresentado aqui no tem o propsito de ser algo
fechado, mas uma costura de idias que subsidiam melhor entender a relao
RSD-ambiente-sade e compreender que a problemtica socioambiental dos RSD
fruto tambm dessa modernidade sem limites, que para Robert Moraes (2005,
p.17) [...] a experincia de viver nesse mundo em constante mutao.
O termo mutao, utilizado pelo autor, traz uma idia intrnseca de
mudanas, alteraes, etc. que nos parece muito adequada aos nossos dias, pois as
transformaes tecnolgicas e ambientais so cada vez mais enrgicas e
freqentes, com conseqncias s mais diversas instncias da vida humana e no
humana.
A internacionalizao da produo, distribuio e consumo, juntamente com o avano das tecnologias da informao, tem como resultado a globalizao da economia e suas conseqncias macroeconmicas: transnacionalizao empresarial, desterritorializao da fora de trabalho, desemprego estrutural, entre outras. Ao mesmo tempo, verifica-se aumento das desigualdades entre os povos e os grupos sociais, a ecloso de
12 Rigotto (2003, p.393) trs que o desenvolvimento veio a se constituir como ideologia do capitalismo, a qual nasceu e se expandiu junto com a burguesia, a partir do sculo XIV.
19
movimentos nacionalistas, a exacerbao dos conflitos tnicos, a agresso ao meio ambiente, a deteriorao do espao urbano, a intensificao da violncia e o desrespeito aos direitos humanos (PAIM & ALMEIDA FILHO, 2007, p.3).
Historicamente, todas essas mudanas aconteceram num curto intervalo de
tempo e se deram num contexto econmico instvel, onde as relaes econmicas
globais e os fluxos financeiros disseminaram novos padres tecnolgicos e
organizacionais da produo.
Robert Moraes (2005, p.17) complementa que as transformaes que
ocorreram aps a dcada de trinta, internacionalmente, nos levaram a conhecer uma
acelerao da fronteira de inovaes, impondo um ritmo sem paralelo no passado.
Para o autor (p.17), a velocidade das mudanas, principalmente no que importa
tecnologia, crescente ademais de cumulativa, levando-o a afirmar que nunca a
histria havia corrido to rpido e a modernizao to depressa.
Nesse sentido, a modernizao distribuiu (e distribui) benefcios e mazelas
por todo o planeta, prolifera um estilo de vida baseado na acumulao e no
consumismo exagerado, que para Freire (2003, p.77) nos leva a viver um mundo no
qual vale mais o ter, o desperdcio e a ostentao, do que o ser' e a preservao
dos bens naturais.
Os valores que dizem respeito ao TER cristalizam aes no sentido de possuir, guardar, segurar e reter, ao passo que valores que dizem respeito ao SER permitem compartilhar, doar, cooperar e respeitar a integridade do outro e da natureza com inteireza, solidariedade e justia (ZANETI, 2006, p.83).
Para Bernardes e Ferreira (2003, p.21):
[...] como membros de uma sociedade de consumidores, na atual fase do capitalismo, vivemos num mundo em que a economia se caracteriza pelo desperdcio, onde todas as coisas devem ser devoradas e abandonadas to rapidamente como surgem.
Aproxima-se da perspectiva trazida por Bernardes e Ferreira, uma das
consideraes de Mello (2004, p.5), quando afirma que:
20
A forma de vida e a economia ocidental sustentam-se sobre o baluarte da produo de bens a cada dia mais rotativos, mais breves, para que a cadeia produo-consumo possa sustentar a subsistncia das sociedades e, principalmente, o status quo das sociedades industriais.
De forma complementar, Lessa (2003, p.15) nos traz que [...] na ps-
modernidade, as coisas so desvalorizadas no momento da compra, estimulando a
idia do descartvel como comportamento adequado e desejvel do consumidor.
Portanto, ao vivenciarmos a era do desperdcio, o tema consumo toma corpo nos
debates ambientais, polticos e sociais, mantendo ntima relao com a questo da
gerao de resduos slidos.
Herculano (2005, p.10) vai um pouco mais alm, ao acreditar que [...] as
sociedades humanas no apenas produzem e consomem; elas criam um conjunto
de idias, de valores e de significados sobre sua produo e seu consumo. Para a
autora, [...] hierarquias sociais se arranjam tendo por base no apenas a posse de
riquezas, mas o seu uso distintivo e os significados destes usos.
Bernardes e Ferreira (2005, p.25) nos trazem uma reflexo complementar
sobre essa temtica. Para os autores, a produo em massa cria novos problemas,
significa mercado, comprar e vender; acesso a lugares distintos e no basta
produzir; preciso colocar a produo em movimento.
A produo em massa de bens , ao mesmo tempo, causa e conseqncia do consumo em massa, e esta relao engendrou modificaes na maneira de se pensar os objetos. Diariamente so criados tantos tipos de necessidades quanto aquelas que a indstria resolve determinar, caracterizando o que a Associao dos Ex-Bolsistas da Alemanha (1989) considerou de um aprimoramento da engenharia de obsolescncia (DAGNINO, 2004, p.21).
Pelo apresentado acima, a dita sociedade de consumo pauta-se pelo
momentneo, pelo fugaz, pelo imediato, pelo fruir de mercadorias e servios e pela
ausncia de sentido final (HERCULANO, 2005, p.13) e, esta lgica, tem contribudo
fortemente para levar as sociedades do Sculo XXI (filhas da racionalidade moderna
e da obsolescncia programada13) uma condio insustentvel e prxima de uma
13 No nosso entender, a obsolescncia programada a maior arma do mercado para vender cada vez mais, criando necessidades desnecessrias (FREIRE DIAS, 2003) via lanamento programado de um novo produto, que por ser mais moderno deve ser adquirido para que cada consumidor esteja atualizado ou mesmo inserido.
21
rota de coliso14, o que na perspectiva de Leff (2001, p.23) [...] representa uma
fatalidade que se expressa na negao das causas da crise socioambiental e nessa
obsesso pelo crescimento.
Como nos trouxe Rigotto e Augusto (2007, p.1):
"Sucumbir" foi o verbo utilizado pelo Massachusetts Institute of Technology para dizer o que aconteceria se todos os pases do mundo continuassem em sua poltica de crescimento: sucumbir poluio do meio ambiente, ou exausto dos recursos naturais, ou ao custo elevado de controle da poluio.
Evidentemente, desde a Grcia Clssica ou a Idade Mdia, as atividades humanas sobre o meio - as obras hidrulicas no Egito, o crescimento da urbis romana, a expanso crist na Europa - despertaram, em alguma medida, indagaes sobre os efeitos destas atividades sobre o entorno. Entretanto, a realizao histrica do capitalismo toma a dimenso de uma verdadeira revoluo tcnica e social, repercutindo, em escala e abrangncia inditas, em todos os aspectos da vida das sociedades ocidentais modernas, inclusive o trabalho, a sade e o ambiente (RIGOTTO e AUGUSTO, 2007, p.1).
Freire Dias (2003, p.87) ao analisar as repercusses ambientais decorrentes
da vida moderna ressalta que:
Estamos diante de um desafio onde as sociedades devem escolher entre perpetuar o padro atual (onde os pases mais desenvolvidos consomem intensamente os recursos naturais, permitindo a suas populaes um elevado grau de consumo que contrasta com as carncias do mundo subdesenvolvido) ou rever esses padres em benefcio de um modelo que exera menor presso sobre a base dos recursos naturais e permita nveis de desenvolvimento mais eqitativos.
Pensamos, ento, que no processo de escolha entre uma das alternativas
postas fundamental repensar os caminhos at ento trilhados pela sociedade, pela
simples constatao de que o crescimento econmico, industrial e populacional
gerou uma sociedade sem perspectivas de um futuro sustentvel.
14 O termo rota de coliso vem sendo utilizado para designar os conflitos sociais e ambientais advindos da crise civilizatria vigente (FREIRE DIAS, 2003) e trs a suspeita de que vrios seres vivos, inclusive os humanos, esto caminhando para uma clara condio de vida degradante em decorrncia de conflitos diversos e desequilbrio dos ecossistemas. Fazendo uma analogia documentos j publicados poderamos nos aproximar da idia geral trazida pelo documento Our Future Commum (Nosso Futuro Comum) da Comisso Brundtland, quando formula a idia de que todos os seres estariam caminhando para o fim, caso no mudemos de olhar e de paradigma.
22
Cabe, aqui, dialogar com Leff (2001, p.28), quando afirma que precipitamo-
nos para o futuro sem uma perspectiva clara. Contraditoriamente, contnuo o
incentivo populao para buscar uma vida repleta de bens no durveis como se a
Terra (que possui uma capacidade de suporte15) conseguisse manter para sempre
to insano ritmo de explorao e assimilao de rejeitos, tanto slidos quanto
lquidos e gasosos.
Essa vontade global para que todos sejam meros consumidores foi objeto
das reflexes de Abreu (2001, p.27), quando pontuou que [...] somos invadidos a
todo o momento pelo desejo de consumir mais e mais suprfluos, transformados em
necessidades pelo mercado, e que rapidamente viram lixo.
Ainda segundo Abreu (2001, p.27):
As embalagens, destinadas proteo de produtos, passam a ser estmulo para aumentar o consumo (a embalagem valoriza o produto), e os descartveis ocupam o lugar de bens durveis. O resultado um planeta com menos recursos ambientais e com mais lixo, que alm da quantidade, aumenta a variedade, contendo materiais cada vez mais estranhos ao ambiente natural.
Segundo Galeano (1994) apud Dagnino (2004),
a criao de novas necessidades de consumo, de lazer, entre outras, vem acompanhada de datas especficas para a renovao deste ritual, e a valorizao crescente da propriedade, em detrimento do ser e sentir humanos, tem alimentado um pensamento de que consumindo mais, teremos nossa vida enriquecida.
Percebemos, ento, que predomina na lgica vigente uma compreenso
remota das relaes sociedade-natureza, onde os humanos representam um plo
parte e que deve, alimentando seu esprito imediatista, explorar a natureza. Foi com
base nessa concepo que desenvolveram-se prticas em que a acumulao se
realiza via explorao intensa do patrimnio natural e dos trabalhadores, com efeitos
perversos para ambos.
15 A expresso capacidade de suporte vem sendo cada vez mais empregada nos textos da rea ambiental e se refere capacidade que o planeta terra tem de suportar as agresses sofridas (em termos de degradao dos seus ecossistemas, produo de alimentos, assimilao de rejeitos, etc.) sem comprometer a sustentabilidade da vida. Essa expresso tem ainda encontrado abrigo nas discusses sobre a pegada ecolgica.
23
Frente a essas consideraes, podemos pensar que estamos diante de um
duelo de gigantes sem precedentes para a vida na Terra, onde de um lado,
posiciona-se a lgica de desenvolvimento vigente - capaz de destruir ou transformar
em fraes de segundos o patrimnio natural -; e do outro, a fora indomvel da
natureza, que por estar viva, responde aos agravos sofridos na forma de inmeras
catstrofes, dizimando populaes inteiras.
Complementa essa idia Rigotto (2003, p.390) quando nos lembra que:
[...] o ambiente - vivo e propiciador da vida - apresenta tambm ameaas. Algumas delas so naturais - embora possam ser influenciadas pela ao antrpica, pelo menos em suas conseqncias - como os terremotos, vulces, tornados, inundaes. Outras ameaas - crescentes e que pem em risco a manuteno da vida no Planeta - devem ser debitadas na conta da interveno da sociedade sobre a Natureza e, por isso, exigem de ns uma profunda reflexo.
Na viso de Leff (2001, p.15) a crise ambiental veio questionar a
racionalidade e os paradigmas tericos que impulsionaram e legitimaram o
crescimento econmico, negando a natureza. Para o autor (p.15):
A viso mecanicista da razo cartesiana converteu-se no princpio constitutivo de uma teoria econmica que predominou sobre os paradigmas organicistas da vida, legitimando uma falsa idia de progresso da civilizao moderna. Desta forma, a racionalidade econmica baniu a natureza da esfera da produo, gerando processos de destruio ecolgica e degradao ambiental.
Zaneti (2006, p.77) nos traz reflexo complementar quando nos diz que:
A desconexo do ser humano com os processos biolgicos cclicos dos ecossistemas repercute na dimenso pessoal e intersubjetiva sob a forma de um desenraizamento fsico, emocional e mental que faz dos indivduos peas atreladas mquina de produzir necessidades artificiais, representada pela mdia mercadolgica. A perda das razes ecolgicas se traduz na insatisfao consumista, na identificao ideolgica de felicidade com o ter, e contamina os padres de sentimentos e percepes intersubjetivas, nas relaes com a famlia, com o territrio, com a comunidade e com a histria.
Atravs da criatividade e da propaganda, consegue-se fazer crer populao
que os bens que as empresas desejam produzir sejam imprescindveis sua
existncia (DAGNANO, 2004, p.21). Fomos, ento, levados a crer que devemos
TER, que temos que progredir e alcanar os pases centrais via aumento da
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capacidade de crescer sem fim16, via consumo exagerado e sem sentido final,
materializao da vida, dos sentimentos e das relaes humanas.
Bernardes e Ferreira (2003, p.21), ao problematizarem essa idia, afirmam
que a era moderna - fascinada pela produtividade com base na fora humana -
assiste ao aumento considervel do consumo, j que todas as coisas se tornam
objetos a serem consumidos.
Essa idia de coisificao do vivo (e do no vivo) como espao para venda
e consumo tambm criticada por Leff (2001) quando lamenta o fato de tudo poder
ser reduzido a um valor de mercado, representados nos cdigos do capital. Por isso,
o novo discurso ambientalista, para Portilho (2005, p.15), mostra [...] que o consumo
das sociedades modernas, alm de socialmente injusto e moralmente indefensvel,
ambientalmente insustentvel.
Acreditamos que a autora, ao utilizar o termo moralmente indefensvel,
pontuou claramente a fora que o mercado exerce sobre parte das pessoas,
deixando-as sem sadas - pelas facilidades de compra e pagamento - e sob
constante presso visual e logstica.
Para Freire Dias (2003) isso leva muitas pessoas a comprar por comprar e
Portilho (2005, p.22) contesta fortemente o fato de o cidado ser reduzido esfera
do consumo, sendo cobrado por uma [...] espcie de obrigao moral e cvica de
consumir.
Sob a lgica do mercado, at mesmo a informao passou a ser reconhecida como um valoroso recurso em todas atividades humanas, ou seja, ela se transformou em um recurso estratgico e de valor agregado para as atividades tecnolgicas e, especialmente, para a transferncia de tecnologia (CYSNE, 1996, p.12).
Entretanto, quando estudamos os pressupostos dessas tecnologias,
observamos que a maioria delas objetivam alimentar o crescimento econmico e a
16 Crescer sem fim mera iluso do sistema capitalista porque tudo que existe na sociedade e que estar a nossa disposio (transformado ou no) um pedacinho retirado da natureza; a mesma que compe o Planeta Terra: matriz nica que sustenta todas as formas de vida, inclusive a humana, e que tem seus limites por ser um planeta vivo (Thompson, 2003). Para termos uma noo numrica desse limite, FREIRE DIAS (2003) nos traz que se todos os seres humanos passarem a ter um nvel de vida igual ao dos norte-americanos, ns precisaramos de sete planetas Terras, portanto h limites.
25
produo de suprfluos, sob a justificativa de promover o bem-estar eqitativo do
povo e proporcionar a satisfao de necessidades bsicas. Contudo, h uma
contradio, pois o acesso aos bens e servios fundamentais s necessidades
bsicas da maioria humana, quando no negado, restrito e/ou precrio, e mais
recentemente, privatizado. Portanto, essa idia de minimizar desigualdades via
crescimento econmico e produo de suprfluos falsa, mas permanece como
verdade absoluta e promessa tecnolgica.
Para Latres et al (1998, p.1):
[...] a emergncia de um novo paradigma tecnolgico e a globalizao financeira so os traos mais marcantes da economia mundial nos ltimos 15 anos, contudo, a expectativa de que a entrada macia do capital estrangeiro pudesse acelerar a difuso das novas tecnologias e a integrao das economias locais com um mercado global frustrou-se e a crise social tornou-se mais aguda.
Para Lessa (2003, p.17):
A globalizao est produzindo um terremoto social e atrofiando a capacidade do setor pblico para administrar polticas compensatrias, enquanto a pobreza ajusta-se e ganha crescente visibilidade nas ruas. H uma tendncia dos ricos criarem suas prprias cidades: em So Paulo, o Alphaville; no Rio, Barra da Tijuca, etc.; no corao do seu desejo elas aspiram estar em Miami/Nova York. Enquanto isso, a pobreza organiza outra cidade, complexamente imbricada [...].
A co-existncia de cidades ricas e cidades pobres num mesmo espao
geogrfico evidencia as contradies do prprio sistema capitalista, que nos nossos
tempos, degrada as condies de vida das maiorias humanas, segrega e acentua
desigualdades. Conforme observamos em Abreu (2001), alguns ricos do Brasil so
at mais ricos que milionrios do primeiro mundo e h brasileiros em piores
condies que miserveis das regies mais pobres do planeta.
Zaneti (2006, p.67) nos traz reflexo complementar:
A concentrao de renda se acentua, pois os ricos aumentaram o seu rendimento, enquanto os mais pobres diminuram. Isto indica que o tipo de desenvolvimento que est sendo produzido tende a se inviabilizar porque injusto. Ao gerar concentrao de renda, cada vez mais sero ampliadas as diferenas sociais entre uma minoria, cada vez menor, que possui cada vez mais e uma imensa maioria, cada vez maior, que possui cada vez menos. O resultado no ser outro, seno a gigantesca exploso social, que j estamos assistindo nos dias de hoje.
26
Assim, a grave crise social existente no pas tem levado um nmero cada vez
maior de pessoas a buscar a sua sobrevivncia atravs da catao de materiais
reciclveis existentes no lixo domiciliar (IBAM, 2001, p.127). Estima-se que haja
mais de 200 mil catadores no Brasil e mais de 45 mil crianas que trabalham nos
resduos, conforme dados do Programa Lixo e Cidadania da UNICEF divulgados no
seu stio eletrnico17.
J Medeiros e Macdo (2006, p.65) apontam que no Brasil, estima-se que o
nmero de catadores de materiais reciclveis seja de aproximadamente 500.000
(quinhentos mil), estando 2/3 deles no Estado de So Paulo. Dados do IBAM (2001)
indicam ainda que em 68% dos municpios brasileiros h catadores nas ruas, em
66% h catadores nos aterros e em 36% tambm h crianas catando lixo nos
aterros.
Sobre esses dados, Valle Mota (2005, p.5) alerta que:
[...] tais nmeros, ainda que sejam oficiais, so considerados subestimados pelo Frum Nacional Lixo e Cidadania, uma instncia organizada de discusso que rene organizaes no-governamentais, instituies religiosas, rgos governamentais e instituies de ensino e pesquisa que atuam nas reas relacionadas gesto dos resduos slidos e tambm na rea social. O Movimento Nacional dos Catadores, rgo criado por catadores e catadoras do Brasil em 1999, que conta com representantes em quase todos os estados brasileiros, tambm considera que o nmero de pessoas que trabalham atualmente em lixes maior do que o apurado pela PNSB.
O Instituto de Pesquisa Tecnolgica - IPT (2003) apud Medeiros e Macdo
(2006) relaciona o crescimento do nmero de catadores de materiais reciclveis com
as crescentes exigncias para o acesso ao mercado formal de trabalho e tambm ao
aumento do desemprego. Para o referido instituto, alguns trabalhadores da catao
constituem uma massa de desempregados que, por sua idade, condio social e
baixa escolaridade, no encontram lugar no mercado formal de trabalho.
O estudo de Loiola Ferreira (2007) traz que 45% dos seus entrevistados
afirmaram que esto na catao por causa do desemprego e que as necessidades
17 www.lixoecidadania.org.br
27
bsicas ainda so o motivo principal que levou as pessoas para a coleta de lixo em
90% delas.
Devido excluso social nos paises em desenvolvimento, inmeras pessoas se sentem atradas para as reas de despejo de lixo, onde catam material reciclvel para venda informal. Trata-se de uma prtica condenvel do ponto de vista da sade pblica, visto que estas pessoas se expem a vrias doenas (pneumonia, doenas de pele, diarria, dengue, etc.) e contaminaes por material cortante, alm de sofrerem acidentes com a movimentao de caminhes e mquinas (PEREIRA NETO, 2007, p.73).
3.2 - Resduos Slidos: Um Olhar Complementar
O tema resduos slidos vem assumindo papel de destaque entre as
crescentes demandas da sociedade brasileira pelos aspectos ligados veiculao
de doenas, pela contaminao de guas subterrneas e superficiais, pelas
questes sociais ligadas aos catadores ou ainda pelas presses advindas das
atividades tursticas.
Diante desses inconvenientes, alguns setores governamentais esto se
mobilizando para enfrentar o problema, por muito tempo relegado a segundo
plano18, pois tem-se observado a descentralizao de competncias, deixando a
gesto dos RSD sob a responsabilidade da administrao municipal, mesmo que
esta no tenha as mnimas condies de lidar com a temtica numa perspectiva
sustentvel.
Por outro lado, a sociedade civil pouco tem se mobilizado quando o tema em
discusso o lixo19. As pessoas ainda preferem deixar o assunto para outro
momento e este comportamento , tambm, fruto da educao fragmentada que
receberam. Como destacaram Santos, Alves e Lustosa (2006, p.1) [...] a educao
oferecida pela grande maioria das escolas do Brasil ficou estagnada no tempo sem
18 Na viso de Barros (2002), os resduos slidos tm recebido tratamento de segunda categoria e ainda no existe vocao e uma conscincia poltica dos governantes, parlamentares e demais autoridades, efetivamente comprometida com a implementao de polticas preventivas e corretivas. 19 Utilizamos aqui o termo lixo porque a palavra resduo slido pouco prxima do cotidiano da populao em geral.
28
perceber os problemas ambientais e sem discutir com os alunos e sociedade suas
solues.
Inserido nesse cenrio, o crescimento urbano desordenado tem sido
apontado como um dos grandes viles da questo ambiental, por ter ntima relao
com a gerao de resduos slidos e esta com a deteriorao das condies do
ambiente e da qualidade de vida humana. Prova disso o crescente nmero de
trabalhos sobre a temtica observados, dentre os quais os explorados nessa
pesquisa.
Como bem lembrou Mota (2003, p.285), a maioria das cidades brasileiras
ainda utiliza a forma de dar destino aos resduos slidos atravs de depsitos a cu
aberto. Tal alternativa, conhecida por lixo, se caracteriza pela simples descarga
dos resduos slidos sobre o solo sem medidas de proteo ao meio ambiente ou
sade pblica (ALVES et al 2006, p.2).
Ainda nesse sentido, Castilhos Jnior et al (2003, p.2) afirmam que:
[...] o depsito de resduos slidos a cu aberto ou lixo uma forma de deposio desordenada sem compactao ou cobertura dos resduos, o que propicia a poluio do solo, ar e gua, bem como a proliferao de vetores de doenas.
Alm desses problemas, Sisinno (2002, p.13) destaca [...] a contaminao da
biota, poluio visual e sonora, desvalorizao imobiliria, descaracterizao
paisagstica e desequilbrio ecolgico e alerta que:
Alm dos grandes depsitos oficiais de resduos, deve-se destacar a ocorrncia de pequenos e mveis depsitos clandestinos. Esses depsitos - na maior parte dos casos - esto localizados em regies distantes e pouco urbanizadas, sendo sua vida til condicionada ao dos rgos competentes: ao esta muitas vezes impulsionada por denncias da populao vizinha, de ONGs ou da mdia. Os depsitos clandestinos oferecem riscos ao equilbrio ambiental e sade humana uma vez que no se conhece a natureza dos resduos depositados, sendo que muitos desses resduos podem conter substncias com potencial de causar srios danos aos sistemas vivos (SISINNO, 2002, p.13).
A partir do exposto, introduzimos alguns problemas scio-ambientais
advindos da m gesto dos resduos slidos e lembramos que tais problemas
29
assumem uma magnitude ainda maior se for considerada a diversidade de origem e
de natureza dos resduos, conforme se observa nas consideraes expostas nas
sees seguintes.
3.2.1 - Origens e Natureza dos Resduos Slidos
Do ponto de vista conceitual,
Qualquer forma de matria ou substncia, no estado slido e semi-slido, que resulte de atividade industrial, domiciliar, hospitalar, comercial, agrcola, de servios, de varrio e de outras atividades humanas, capazes de causar poluio ou contaminao ambiental so considerados como resduos slidos (CEAR, 2003, p.123). Ficam includos nesta definio os lodos provenientes de sistemas de tratamento de gua, aqueles gerados em equipamentos e instalaes de controle de poluio, bem como determinados lquidos cujas particularidades tornem invivel o seu lanamento na rede pblica de esgotos ou corpos dgua, ou exijam para isto solues tcnica e economicamente inviveis em face melhor tecnologia disponvel (ABNT, 1987, p.13).
Apesar da definio, importante esclarecer que existem vrias formas para
classificar os resduos slidos e que adotamos a mesma linha de classificao
apresentada pela Norma Brasileira (NBR) 10.004 da Associao Brasileira de
Normas Tcnicas (ABNT).
Desta forma, os resduos slidos podem ser classificados segundo sua
origem ou natureza. Quanto origem podem ser urbanos, industriais, de servios de
sade, de atividades rurais e rejeitos radioativos e, quanto natureza, perigosos
(Classe I), no-inertes (Classe II) e inertes (Classe III).
Segundo Mandarino (2000) apud Zaneti (2006) faz-se necessrio uma
classificao dos resduos slidos, a fim de propiciar a definio do tipo de
tratamento e destinao final que devem receber, para que no causem maiores
danos ao homem e ao meio ambiente.
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Assim, discorremos resumidamente abaixo sobre cada tipo de resduo slido:
- Os Resduos Slidos Urbanos (RSU):
So tambm conhecidos como lixo domstico e gerados nas residncias, no
comrcio ou em outras atividades desenvolvidas nas cidades. Nesse grupo esto
includos os resduos dos logradouros pblicos, como ruas e praas, denominados
por lixo de varrio ou pblico.
Castilhos Jnior et al (2003, p.4) complementam que:
Dentre os vrios RSU gerados, so normalmente encaminhados para disposio em aterros, sob responsabilidade do poder municipal, os resduos de origem domiciliar ou aqueles com caractersticas similares, como os comerciais, e os resduos de limpeza pblica.
- Os Resduos Slidos Industriais (RSI):
So geralmente produzidos em grandes quantidades e divididos em slidos,
lquidos ou gasosos. De acordo com Sisinno (2003, p.370),
O processo produtivo, na grande maioria das vezes, tem como conseqncia a gerao de resduos que precisam de tratamento e destino adequados, uma vez que diversas substncias bastante comuns nos resduos industriais so txicas e algumas tm a capacidade de bioacumulao nos seres vivos, podendo entrar na cadeia alimentar e chegar at o homem.
Alm desse problema, o resduo industrial um dos maiores responsveis
pelas agresses fatais ao ambiente em decorrncia de suas caractersticas
especficas e quantidade gerada diariamente.
Os resduos provenientes de atividades industriais em geral contm uma variedade muito grande de materiais e substncias que no se decompem ou podem permanecer muito tempo estveis, sem mudar suas caractersticas; estes tipos de resduos, que muitas vezes representam srios perigos para a sade pblica, exigem acondicionamento, transporte e destinao especiais (BNB, 1999, p.232).
31
Cabe considerar que os prprios geradores so os responsveis pelos
resduos slidos gerados pelas suas indstrias, cabendo-lhes o cuidado na
separao entre resduos perigosos e no perigosos, sua coleta, tratamento e
destinao final.
- Os Resduos de Servios de Sade (RSS):
Entre os tipos de resduos slidos os provenientes do setor sade
possivelmente assumem as maiores preocupaes quando se pensa na questo
dos riscos sade pblica e na contaminao do ambiente.
Nesse sentido, a Resoluo RDC no 33 de 2003 traz a necessidade de
prevenir e reduzir os riscos sade e ao ambiente, propondo o gerenciamento dos
RSS a partir da classificao desses resduos em: potencialmente infectantes
(Grupo A), qumicos (Grupo B), rejeitos radioativos (Grupo C), resduos comuns
(Grupo D) e perfurocortantes (Grupo E) .
Em termos conceituais, a Lei Estadual 11.103 de 2001 define os RSS como:
Os provenientes de atividades de natureza mdico-assistencial, de centros de pesquisa e de desenvolvimento e experimentao na rea de sade, bem como os remdios vencidos e/ou deteriorados requerendo condies especiais quanto ao acondicionamento, coleta, transporte, tratamento e disposio final, por apresentarem periculosidade real ou potencial sade humana, animal e ao meio ambiente (CEAR, 2001, p.2)
Acrescentamos que os remdios vencidos e/ou deteriorados por
apresentarem periculosidade real ou potencial sade humana, animal e ao
ambiente tambm so considerados resduos de servios de sade. No entanto,
cabe considerar que somente uma parcela dos RSS apresenta caractersticas de
patogenicidade e/ou periculosidade (BNB, 1999, p.232).
Conforme o IBGE (2002, p.52):
[...] a situao de disposio e tratamento dos Resduos Slidos de Servios de Sade - RSS - melhorou, com 9,5% dos municpios encaminhando-os para aterros de resduos especiais (69,9% prprios e 30,1% de terceiros). Em nmero de municpios, 2.569 depositam-nos nos mesmos aterros que dos resduos comuns, enquanto 539 j esto
32
enviando-os para locais de tratamento ou aterros de segurana. A disposio destes resduos nos mesmos aterros que recebem o lixo domiciliar no necessariamente uma medida inadequada, pois sua disposio em valas spticas, isoladas e protegidas do acesso de pessoas tem sido aceita por alguns rgos de controle ambiental. interessante observar, tambm, que apenas uma diminuta percentagem de municpios utiliza algum sistema de tratamento trmico dos RSS (incinerador, microondas, autoclave).
A crescente conscincia sobre os riscos sade pblica e ao meio ambiente
provocados por RSS deve-se, principalmente, as suas fraes infectantes. Assim, o
maior problema dos RSS seu potencial de risco, haja vista que so considerados
perigosos tanto pela legislao americana quanto pela normalizao brasileira.
Ampliando as discusses sobre os riscos associados aos RSS, trabalhos
cientficos confirmam o reconhecimento dos riscos pela sobrevivncia de agentes
dotados de elevada resistncia s condies ambientais. Morel e Bertussi Filho
(1997) identificaram importantes patgenos como a Mycobacterium tuberculosis, que
inclusive, apresentou um tempo de resistncia ambiental de at 180 dias na massa
de resduos. J Hirai (1991) mostrou a resistncia da Escherichia coli dessecao
na presena de protenas derivadas de fluidos corpreos como sangue e derivados.
- Os Resduos de Ativi