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8 O Brasil e seus vizinhos da América do Sul E LEITURASRECOMENDADAS: CERVO, Amado Luiz. Relações internacionais da América Latina: ve- lhos e novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2007. MONIZ BANDEI- RA, Luiz Alberto. Brasil, Argentina e Estados Unidos: conflito e integra- ção na América do Sul (Da Tríplice Aliança ao Mercosul, 1870-2003). Rio de Janeiro: Revan, 2003. MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Esta- do nacional e política internacional na América Latina. São Paulo: En- saio, 1995. MARTINS, Estevão Chaves de Rezende. (Org.). Relações Internacionais: visões do Brasil e da América Latina. Brasília: IBRI, 2003. MADRID, Eduardo. Argentina-Brasil: La suma dei sur. Buenos Aires: Caiar Bleu, 2003. GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. (Org.). Ar- gentina: visões brasileiras. Brasflia: IPRI, 2000. GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Venezuela: visões brasileiras. Brasília: IPRI, 2003. ARAÚJO, Heloisa Vilhena de. (Org.). Os países da Comunidade Andina. Brasília, IPRI-FUNAG, 2004. 2 v. BERNAL-MEZA, Raul. América Latina en el Mundo. Buenos Aires: Grupo Editor Laitnoamericano, 2005. CER- VO, Amado Luiz; DOPCKE, Wolfgang. Relações internacionais dos países americanos; vertentes da História. Brasília: Linha Gráfica, 1994. CERVO, Amado Luiz; RAPOPORT, Mário. (Orgs.). História do Cone Sul. Rio de Janeiro: Revan, 1998 (Traduzido para o espanhol: El Cono Sur: una historia común. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,

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O Brasil e seus vizinhos da América do Sul E

LEITURAS RECOMENDADAS:

CERVO, Amado Luiz. Relações internacionais da América Latina: ve-lhos e novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2007. MONIZ BANDEI-RA, Luiz Alberto. Brasil, Argentina e Estados Unidos: conflito e integra-ção na América do Sul (Da Tríplice Aliança ao Mercosul, 1870-2003).Rio de Janeiro: Revan, 2003. MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Esta-do nacional e política internacional na América Latina. São Paulo: En-saio, 1995. MARTINS, Estevão Chaves de Rezende. (Org.). RelaçõesInternacionais: visões do Brasil e da América Latina. Brasília: IBRI,2003. MADRID, Eduardo. Argentina-Brasil: La suma dei sur. BuenosAires: Caiar Bleu, 2003. GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. (Org.). Ar-gentina: visões brasileiras. Brasflia: IPRI, 2000. GUIMARÃES, SamuelPinheiro. Venezuela: visões brasileiras. Brasília: IPRI, 2003. ARAÚJO,Heloisa Vilhena de. (Org.). Os países da Comunidade Andina. Brasília,IPRI-FUNAG, 2004. 2 v. BERNAL-MEZA, Raul. América Latina enel Mundo. Buenos Aires: Grupo Editor Laitnoamericano, 2005. CER-VO, Amado Luiz; DOPCKE, Wolfgang. Relações internacionais dospaíses americanos; vertentes da História. Brasília: Linha Gráfica, 1994.CERVO, Amado Luiz; RAPOPORT, Mário. (Orgs.). História do ConeSul. Rio de Janeiro: Revan, 1998 (Traduzido para o espanhol: El ConoSur: una historia común. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,

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196 As RELAÇÕES REGIONAIS

2001]. FERRER, Aldo. El capitalismo argentino. Buenos Aires: Fondo de CulturaEconómica, 1998. FERRER, Aldo. Hechos yficciones de Ia globalización. Buenos Ai-res: Fondo de Cultura Económica, 1997. SCENNA, Miguel Angel. Argentina-Brasil:cuatro siglos de rivalidad. Buenos Aires: La Bastilla, 1975. MIRANDA, Raquel C. deC. E M. de. As relações em eixo f ranço-alemãs e as relações em eixo argentino-bra-sileiras: génese dos processos de integração. 2005. Tese (Doutorado). Brasília: Uni-versidade de Brasília. COUTO, Leandro Freitas. O horizonte regional do Brasil e aconstrução da América do Sul [l 990-2005j. 2006. Dissertação (Mestrado). Brasília:Universidade de Brasília. VALDÉS, Eduardo Deves. Desde Ia Cepal ai neoliberalis-mo, 1950-1990. In: El pensamiento latinoamericano en el siglo XX. Buenos Aires:Biblos, 2003. t. II. BORON, Atílio A. Estado, capitalismo y democracia en AméricaLatina. Buenos Aires: FLACSO, 2003. LLADÓS, J. M.; GUIMARÃES, S. P. Pers-pectivas Brasil e Argentina. Brasília: IPRI, s.d. 2 v. FRIGERIO, Alejandro; RIBEIRO,Gustavo Lins. (Orgs.). Argentinos e brasileiros: encontros, imagens e estereótipos.Petrópolis: Vozes, 2002. HARNECKER, Marta. La izquierda después de Seattle.Madrid: Siglo Veinteuno, 2002.

8.1 O olhar sobre a vizinhançaA ideia de que o Brasil, desde sua Independência, voltou-se para o Atlân-

tico e deu as costas a seus vizinhos da América do Sul conta com respaldonos estudos disponíveis sobre suas relações regionais. Uma vasta bibliografiasobre as relações internacionais dos países da América Latina vem relaciona-da nas leituras recomendadas para este capítulo, bem como para o Capítulo6, relativo à formação dos blocos.

Este capítulo se destina a identificar e avaliar as correntes de interpre-tação desenvolvidas pelos estudos acerca das relações entre o Brasil e seusvizinhos da América do Sul, mais precisamente, recolher os conceitos for-mulados ou utilizados pelos estudiosos e integrá-los à nossa própria análisedas relações regionais. O levantamento dos temas focalizados por essa lite-ratura leva à constatação de que há muita desigualdade no trato das relaçõesentre os países da região. O Cone Sul concentra a maior parte dos estudos,referentes às relações regionais ou bilaterais, ao passo que os países andinoscarecem de atenção, tanto sob o ângulo das formações nacionais quanto dasrelações bilaterais e regionais.

O Cone Sul, em especial as relações entre Brasil e Argentina, atraía ointeresse de estudiosos já no século XIX, porém esse interesse levou à efer-vescência dos espíritos desde a génese do processo de integração na décadade 1980. Uma vista sobre a literatura revela que a região conta de formadesproporcional com a maior parte das publicações, das dissertações de

O BRASIL E SEUS VIZINHOS DA AMÉRICA DO SUL

mestrado e das teses de doutorado. A empatia argentino-brasileira das in-teligências, fenómeno que já definimos nesta obra, é perceptível no elevadonúmero de encontros que reunia pesquisadores, empresários, diplomatase académicos de ambos os países ou da região. Tal intercâmbio revelou-sefecundo para a produção de conhecimento, uma vez que envolveu universi-dades e instituições diversas, incluindo agências de fomento à pesquisa.O volume de publicações aumentou de forma exponencial em consequênciada curiosidade e do interesse manifesto pelo outro.

A ênfase no Cone Sul equivale, inversamente, à carência de estudos bra-sileiros sobre os países da Comunidade Andina, apesar dos esforços despen-didos nos últimos anos pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionaisdo Itamaraty. Em pequena medida, porém, nesse contexto de escassez, aVenezuela, grande parceiro potencial do Brasil ao norte, é uma exceção. Em-bora conste entre seus objetivos, o Tratado de Cooperação Amazônica, de1978, não moveu a comunidade académica para o estudo dessa região, deseus países, como a Colômbia, a Bolívia, o Peru e o Equador, menos aindados pequenos países, como o Suriname e a Guiana.

Para elaborar conceitos que dêem inteligibilidade às relações do Brasilcom seus vizinhos, faz-se mister avaliar esse estoque de conhecimentos dis-poníveis e agregar-lhes a indispensável reflexão. Não são apenas resultadoscognitivos que se procuram, mas também formular questões práticas que en-volvem o processo decisório e as políticas exteriores. Quais são os pressupos-tos mentais que condicionam as atitudes dos povos e dos governos quandocontemplam as relações com os vizinhos? Que visões do outro ou imagens seformam e que padrões de comportamento sugerem? Aplicamos neste exer-cício voltado ao estudo das relações com os vizinhos o método de análise quese revelou útil para elaboração dos conceitos paradigmáticos sobre a políticaexterior do Brasil, expostos no Capítulo 3.

8.2 Bases mentais e culturais das relações do Brasil com seusvizinhos/ A política exterior e as relações do Brasil com os vizinhos da América do

Sul vêm sendo condicionadas por algumas ideias que se modificam com-otempo, como se modificam as linhas de ação. As mentes evoluem, tambéma prática política, mas existe um nexo entre ambas, como se verá a seguir.Chamamos de pressupostos mentais a um conjunto de ideias que presidem

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198 : As RELAÇÕES REGIONAIS

as apreciações e as imagens acerca dos vizinhos e condicionam a conduta dosgovernos a seu respeito, f

8.2.1 Carências do pensamento cepalinoJá se observou neste livro quanto foi construtivo o pensamento da Cepal,

ao inspirar as políticas de industrialização, expansão do emprego e da rendado trabalhador, do consumo interno e da substituição de importações, tudoa se fazer com o objetivo de superar dependências estruturais entre paísesdo centro desenvolvido e da periferia em desenvolvimento. Certas carênciasdesse pensamento agiram, todavia, de modo a obstruir possibilidades intrín-secas ao processo de desenvolvimento, tanto no que diz respeito às relaçõesinternacionais, em geral, quanto entre os países da América do Sul./ Os economistas da Cepal não permitiram que os dirigentes brasileiros elatino-americanos percebessem com clareza que o comércio de substituição

^- de importações devesse ser tomado como fase inicial, prévia e momentânea,a ser superada pela substituição de exportações primárias por exportaçõescom maior valor agregado. Por tal razão, os países da América Latina, quetiraram do pensamento cepalino inspiração para seus planos de desenvol-vimento, voltaram-se sobre si mesmos, fecharam-se e não promoveram ocomércio entre si, durante décadas ./\ Associação Latino-Americana de LivreComércio — Alalc, criada em 1960, não empolgou as sociedades e os diri-gentes, por isso não produziu efeitos. A voz do Brasil, quando a diplomaciabrasileira pretendeu fazer a transição para o segundo modelo de comércioexterior, após a fase de industrialização promovida por Getúlio Vargas e Jus-celino Kubitschek no momento em que aparecia a Alalc, soava rouca e semalcance para seus vizinhos/Esses, cuja industrialização ainda era embrionária,mantinham o modelo substitutivo de importações. Em suma/o pensamentoda Cepal propunha um modelo de desenvolvimento introspectivo que criava

A_ obstáculo conceituai ao incremento do comércio entre os países da AméricaLatina e, por tal razão, contribuía para mante-los afastados uns dos outros,em densidade de relações regionais baixa.

f Quando as experiências neoliberais dos anos 1990 se estenderam aos paí-ses da América Latina, a Cepal adaptou seu pensamento por meio do con-ceito de regiorialismo aberto. Sugeria-lhes, então, que abrissem seus mercados,sistemas produtivos e de serviço, porém firmassem acordos regionais de in-tegração com o fim de precaver-se contra possíveis efeitos nocivos de uma

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abertura indiscriminada. Um jogo de equilíbrio entre abertura, desenvolvi-mento introspectivo, regionalização. Essa proposta, contudo, pendia maispara o neoliberalismo do que para o fortalecimento das economias nacionaispor meio da integração produtiva que pusesse a seu serviço a liberalização e aexpansão do comércio regional. Pendia para fora do espaço latino-americano,sendo o externo visto como fonte de insumos para o progresso. /

Tomando-se em consideração as políticas exteriores e as relações regio-nais em seu todo, a maior carência do pensamento cepalino como fonte deinspiração para decisões práticas situa-se em outra esfera. Os economistasda Cepal não formularam proposta alguma relativa à internacionalizaçãodas economias nacionais dos países da região pela via da expansão de seusfatores produtivos internos, empresas e serviços, sobre a vizinhança. Poressa ou por outras razões, os governos se furtaram historicamente a in-cluir essa expansão entre suas estratégias regionais até o aparecimento doEstado logístico, que não tirou inspiração do pensamento cepalino, comoadiante se verá. O processo de desenvolvimento, sem internacionaliza-ção económica para fora, a começar naturalmente pela vizinhança, carregauma insuficiência congénita, que prossegue como fator de manutenção doatraso regional relativamente aos países de centro, no contexto da evolu-ção do capitalismo.

8.2.2 Gerência das capacidades de poderO pesquisador argentino Aldo Ferrer torna explícito esse pressuposto

mental e político das relações entre os países da América Latina. Em seusestudos sobre a evolução do capitalismo, atribui papel importante à gerênciadas capacidades de poder, especialmente quando busca explicações para ;isrelações internacionais dos países da América Latina e para seu nível compa-rado de desenvolvimento. Algumas nações, futuras nações de centro, criam,no seio do sistema capitalista, núcleos de conhecimento, com auxílio da CÍÍMI-cia moderna, e depois aplicam esse conhecimento ao processo produtivopor meio de simbiose chamada inovação tecnológica. Esse avanço diferem i;iumas de outras nações. As vantagens comparativas entre as nações pendempara o desequilíbrio na evolução do capitalismo, quando muitas nações — ochamado mundo subdesenvolvido ou periferia — não acompanham o pro-gresso tecnológico do centro desenvolvido. Tal descompasso mede a distân-cia entre desenvolvimento e atraso.

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7IHI ASHIIAÇOIS IIHilONAIS

U MI Fosso separa as nações que permanecem voltadas para o uso de vanta-gens comparativas naturais, como o solo, o clima, os recursos naturais, todo osrlor primário da economia, de outras, que agregam o uso de suas vantagenscomparativas intangíveis, o conhecimento e a inovação. O mais importan-U-, para Ferrer, reside na demonstração de se poder resolver o problemado desenvolvimento apenas quando se faz uso de vantagens comparativasintangíveis. A América Latina, desde o período colonial até os anos 1930-40, ancorou sua economia sobre vantagens comparativas naturais e por issopermaneceu subdesenvolvida. No seio do sistema capitalista, o desafio dodesenvolvimento somente encontra solução quando uma nação, depois decriar seu núcleo de conhecimento e de tecnologia, é capaz de gerenciar taisvantagens comparativas intangíveis nas relações, primeiro com a vizinhança,depois em âmbito geográfico ampliado. Somente nessa fase a nação acionasuas capacidades de poder nas relações internacionais, de modo a operar emmeio ao contraste das sociedades nacionais: estruturas de produção assimé-tricas, dominação, dependência, poder político e estratégico, níveis de rendae consumo, de bem-estar, estoque de capital. Com efeito, esses elementos sedistribuem entre as nações pelo critério das desigualdades determinado peloritmo de criação de capacidades de poder. O enfoque realista do conceitode gerência das capacidades de poder leva à conclusão segundo a qual, nosistema capitalista, as relações internacionais são conduzidas pelo jogo dosinteresses, não pelo da boa vontade ou caridade./ As relações de um país com a vizinhança condicionam, pois, as possibi-lidades do desenvolvimento, acelerando-o quando incorporam em seus cál-

" culos estratégicos vantagens comparativas intangíveis que dão impulso cria-dor às capacidades de poder. Quando o Brasil realiza o objetivo de fazer daAmérica do Sul plataforma de expansão de suas empresas está gerenciandosuas capacidades de poder. O mesmo se conclui quando seu governo resiste àimplantação da Alça segundo modelo que fortalece sem reciprocidade real ascapacidades de poder dos Estados Unidos e obstrui, seja a vocação industrialdo Brasil, seja a expansão de seus negócios sobre a vizinhança. /

8.2.3 Emergência do Estado logísticoComo já se observou no Capítulo 3,/o aparecimento do Estado desen-

volvimentista deve-se a padrões de conduta dos países da América Latina,q definidos nos anos 1930 e aperfeiçoados posteriormente. Mas a inteligência

" - Q gRAS|L E SE(JS VE|NHOS DA AMÉRICA DO SUL f, 201̂

política dos dirigentes da América Latina também inventou o Estado nor-mal ou neoliberal e aplicou, nos anos 1990, os novos parâmetros de con- 'í,duta com maior coerência, relativamente a qualquer outra região do planeta. / jO malogro das experiências neoliberais é de todos os povos da região bemconhecido na área económica e social, porém, pela força do contraste, emseu seio germinou o Estado logístico, por certo como importação do centro :desenvolvido, pela via da imitação ou reprodução de conduta. Se alguns paí-ses se anteciparam e aprofundaram o modelo neoliberal, como Argentina,Bolívia, Peru e Equador, outros introduziram uma alternativa de controle einauguraram o modelo logístico, como Chile e Brasil. Em toda parte, o Esta-do minguou, ao retirar-se da atividade económica, em princípio confiada aomercado. Apenas alguns Estados mais espertos chamam a si a responsabili- \dade de dar suporte e apoio logístico às forças organizadas da sociedade narealização de seus interesses, acompanhando a nação no fortalecimento desua posição diante do mundo. /f Três requisitos da conduta logística modificam as relações do Brasil comseus vizinhos nos anos recentes e contribuem para a realização de suas capa-cidades de poder. Em primeiro lugar, o reconhecimento de que a interdepen-dência real à época da globalização supõe a incorporação das vantagens com-parativas intangíveis à gerência das relações exteriores. Em segundo lugar, oencaminhamento da integração regional de modo a promover as capacidadesde poder, tanto próprias quanto dos membros do bloco em construção. Emterceiro lugar, a conversão da América do Sul em plataforma de expansãodos negócios brasileiros de maneira a alavancar o processo de internacionali-zação para fora da economia nacional. O primeiro e o terceiro requisitos sãomais perceptíveis na àção externa porque decorrem de visão de dentro, quese nutre dos interesses nacionais e, simultaneamente, os alimenta. O segun-do é menos presente na estratégia regional do Brasil. /f A conduta logística da política exterior e das relações do Brasil com seusvizinhos não corresponde, como vemos, a exigências do pensamento cepali-no. Supõe, ademais, o envolvimento da economia e da sociedade. O governode Fernando Henrique Cardoso deu os primeiros passos por esse caminho,criando condições mentais e políticas favoráveis (Cúpula dos Países da Amé-rica do Sul, Programa de Integração da Infra-Estrutura — URSA) e apoian-do investimentos brasileiros na redondeza. O governo de Luiz Inácio Lulada Silva manifesta maior determinação em apoiar a expansão das empresas

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"202 7;' AS RELAÇÕES REGIONAIS

brasileiras nos países da América do Sul, seja pela aquisição de empresas lo-cais, seja pela associação ou por outras modalidades de investimento direto.Com esse avanço, no que diz respeito ao modelo de Estado, o País ultrapassaa época do Estado empresário e interventor e alcança aquela em que a so-ciedade anda por si, entretanto, conta com orientação e apoio, visto que naAmérica do Sul ao governo ainda cabe, apesar do papel do mercado, criarcondições para estabelecer a real interdependência em razão dos métodoscom que os países centrais fazem política internacional. // Em vista de sua superioridade económica e tecnológica e não apenas geo-gráfica e populacional, o trato conferido pelo Brasil a seus vizinhos pode

i j resultar, em consequência e por exigências da conduta logística, no aprofun-damento das assimetrias regionais. Para limitar e quiçá superar esses e ou-tros efeitos inconvenientes à boa convivência, o governo brasileiro consideraoportuno temperar sua conduta pelo paradigma da cordialidade oficial, queconstitui sólido pressuposto mental da política regional do Brasil, de origemremota e forte impacto sobre o processo decisório. A cordialidade oficialgerminou por trás da ideia de América do Sul. /

8.2.4 A ideia de América do SulA noção de vizinhança evoluiu historicamente no imaginário popular, no

conceito geopolítico e nas preocupações da diplomacia brasileira. Para chegarao que Celso Lafer denominou de componente da identidade internacionaldo Brasil, a vizinhança sofreu uma restrictio terminifNo século XIX, à épocado pan-americanismo, todos os americanos eram nossos vizinhos. Depois, à

íj? época do pan-latinismo, o conceito de América Latina toma conta do ima-ginário. Desde o barão do Rio Brando, no início do século XX, o conceitode América do Sul passou a se impor. Na medida que se operava a restriçãogeográfica do conceito de vizinhança, o regional passou a adquirir peso nopensamento dos brasileiros e na ação externa do governo e da sociedade./Leandro Freitas Couto demonstra, contudo, que foi necessário esperar pelofim do século XX, depois de 1990, para perceber como o conceito de Amé-rica do Sul adquire nova e imponente visibilidade.

Com efeito/ iniciativas brasileiras conferem densidade ao conceito e àsrelações regionais do Brasil, de forma crescente, durante a última década do

l i século XX. O presidente Itamar Franco lança, em 1993, a ideia de uma Áreade Livre Comércio Sul-Americana (Alcsa) para compensar o Nafta, a zona

O BRASIL E SEUS VIZINHOS DA AMÉRICA DO Sm 203

norte-americana, e a Alça, a zona hemisférica. Também é brasileira a ideiade convocar e tornar regular a Cúpula Sul-Americana, desde a primeira,realizada em Brasília no ano 2000. A de 2002 lançou a Iniciativa para a In-tegração da Infra-estrutura da América do Sul (URSA). A de 2004 lançou aComunidade Sul-Americana de Nações (Casa), cuja primeira cúpula formalse reuniu em 2005. Outras iniciativas brasileiras também passarão a integraro projeto de desenvolvimento sul-americano ao qual se pretende associaros vizinhos da América do Sul: assim, o Ministério de Ciência e Tecnologiacriou o Prosul, programa voltado ao desenvolvimento científico e tecnológi-co, e o governo de Luiz Inácio Lula da Silva deu origem ao PSCI, Programade Substituição Competitiva de Importações, com o fim de promover a in-tegração produtiva.//Durante o governo Lula, a América do Sul torna-se prioridade externa.

Projetos de integração da infra-estrutura, de integração energética, ampliaçãodo Mercosul mediante adesão de novos membros, o acordo entre Mercosule Comunidade Andina, o estímulo a investimentos diretos brasileiros, tudoconverge para criar o pólo de poder mediante a conformação da unidadepolítica, económica e de segurança dos países da América do Sul. /

Por certo/a construção da América do Sul, projeto estratégico brasileiro,revela-se tarefa difícil, a ser ainda mensurada quanto aos resultados. Se exis-te uma América do Sul política, feita em sua grande maioria de governos deesquerda que criam ambiente regional favorável ao reforço do pólo de poder,existem duas Américas do Sul económicas, uma liberal e primária, que buscao acordo de livre-comércio com os Estados Unidos, outra industrial e desen-volvimentista, que se volta ao aprofundamento da integração entre os vizi-nhos. Chile, Colômbia e Equador de um lado, Argentina, Brasil e Venezuelade outro. São parcelas desproporcionais a embalar as relações internacionaise os modelos regionais, por isso, em tais circunstâncias, o projeto brasileirode América do Sul detém mais chance de vingar. /

Após o empobrecimento geral provocado pelo neoliberalismo — em 2004,segundo a Cepal, o conjunto latino-americano ainda somava mais de 200 mi-lhões de pobres, 43% da população — a estabilidade monetária e política in-troduziu longo período de crescimento económico. Por vários anos, contudo,os países da região ainda se perguntam qual o modelo que substituirá o neo-liberalismo dos anos 1990. A indefinição política e a necessidade de superaras crises herdadas fomentou nacionalismos, empáfias políticas, também a in-

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204 t. As RELAÇÕES REGIONAIS

tegração, o retorno do Estado como condutor da sociedade, nacionalizações,populismos, esquerdas vistas como responsáveis ou irresponsáveis. Fortesreivindicações económicas de empregados e desempregados, de classes so-ciais e de etnias complicam esse cenário, tornando-o terreno fecundo paraideias incompatíveis de América do Sul, no entanto consistentes e estáveis,como o nacionalismo radical e indigenista de Evo Morales na Bolívia, a revo-lução bolivariana na Venezuela e o globalismo logístico brasileiro.

8.2.5 O paradigma da cordialidade oficial brasileira/ A cordialidade oficial entendida como padrão de conduta aplicado ao tra-to conferido pelo governo a seus vizinhos corresponde a uma invenção dopensamento diplomático brasileiro, cujas raízes foram lançadas em tempos

• remotos. Com efeito, quem primeiro formulou um pensamento nessa linhal T foi, em nosso entender, o visconde do Rio Branco. A relevância que suas

ideias ostentam advém do fato de haver conduzido a política exterior do Bra-sil desde meados do século XIX por cerca de vinte anos. O visconde, pai dofuturo barão do Rio Branco, preocupava-se em estabelecer o equilíbrio entreestadistas moderados, como o visconde de Abaete, o marquês de Olinda eo visconde de Sinimbu, e realistas, como o visconde do Uruguai, o marquêsde Paraná e o barão de Cotegipe. O primeiro grupo superdimensionava a ne-gociação e a diplomacia ao passo que o segundo colocava a vontade nacionalacima do destino e era propenso ao uso da força. Nessa época, em que as in-tervenções e a presença brasileira no Prata eram uma rotina, cindia-se a opi-nião quanto ao modo de fazer política. O visconde do Rio Branco formuloupensamento próprio, uma espécie de síntese das correntes em voga. Convi-nha ao Brasil, pensava, uma política firme, que considerasse os interesses daeconomia, da definição das fronteiras e da segurança, mas que ascendesse docomércio e do aumento da riqueza a maior grau de civilização para todos ospaíses. O propósito de realizar em comum, agregando boas intenções e boavontade a iniciativas concretas e provocando o crescimento da civilização emtodos os países, em benefício de cada um, constitui o traço central da cordia-lidade oficial no pensamento do visconde do Rio Branco, f/ Na passagem do século XIX para o XX, o barão do Rio Branco avançounessa linha de pensamento. A cordialidade haveria de prevalecer no trato

| 9 diplomático entre os países da América do Sul, tornando-se garantia de pazregional, em meio aos conflitos interimperialistas das grandes potências, os

n

O BRASIL E SEUS VIZINHOS DA AMÉRICA oo SUL : 205

quais prenunciavam a primeira conflagração global. O padrão de condutaassenta na percepção da grandeza nacional que por si torna supérfluos sen-timentos de rivalidade ou hostilidade por parte de dirigentes brasileiros. Obarão, entretanto, não eleva o padrão de qualidade conceituai alcançado porseu pai, visto centrar seu modo de ver as relações com a vizinhança sobre ofoco da segurança, não mais sobre aquele da comum civilização a engrande-cer nas relações com os vizinhos por meio do aumento da riqueza. /

A partir de 1930, atinge-se novo patamar na evolução desse pensamento.Quando a diplomacia norte-americana se dispunha a castigar a Argentinaem razão de sua neutralidade diante da Segunda Guerra Mundial e da Ter-ceira Posição no contexto da Guerra Fria, Getúlio Vargas, embora aliadodos Estados Unidos, negou-se a fazer parte do jogo, em nome dessa tradiçãode cordialidade, já então incorporada à diplomacia brasileira. Esse passorevela que a cordialidade oficial pesa sobre as relações bilaterais ou regio-nais, como também sobre as relações triangulares que envolvam hegemoniasexternas à área.•/ Apesar de, por vezes, acirrar a emulação e mesmo a rivalidade entre paí-ses da América do Sul, o regime militar manteve o padrão de conduta. Rom-peu-se a cordialidade oficial por alguns meses apenas, durante o último anodo governo de Ernesto Geisel, quando o chanceler Azeredo da Silveira sus-pendeu as negociações em curso acerca do aproveitamento energético dosrios da Bacia do Prata e estava disposto a jogar duro contra a Argentina emrazão da resistência que oferecia ao projeto brasileiro de Itaipu/Uma novalição advém dessa crise que criou o vazio político e projetou o paradigma deconduta a outro nível: o superior interesse nacional, quando contrariado emaspecto essencial, autoriza romper com a cordialidade oficialyó governo deJoão Batista Figueiredo julgou conveniente restabelecê-la de pronto e assimprocedeu com o Acordo Tripartite a respeito do aproveitamento dos rios e,logo depois, com um acordo de cooperação nuclear. Jl A cordialidade oficial explica o baixo perfil da diplomacia brasileira com

relação aos vizinhos, quase sempre se revelando menor do que é, disposta asuportar gestos grandiloqúentes ou a empáfia permanente de um ou outrogoverno. Quando assim não se porta, como no Conselho da Liga das Naçõesdurante a década de 1920, reivindicando a representação regional, ou nopresente, reivindicando a mesma representação no Conselho de Segurançada ONU, suscita reações hostis dos vizinhos. Assim como dela se espera uma

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}. nc • á - • • - - . . . • ,206 g As RELAÇÕES REGIONAIS

reação positiva por parte dos governos vizinhos, a cordialidade oficial tam-bém serve para neutralizar manifestações de segmentos da sociedade brasi-leira que, por vezes, desejam impor com rigidez interesses particulares acimado superior interesse nacional, pelo qual zela a diplomacia, que, em seu cál-culo estratégico, acertadamente atribui lugar importante à boa convivênciacom os vizinhos/Incluímos esse padrão de conduta entre os pressupostosmentais da política regional do Brasil em razão da esfera unilateral em quegermina e se modifica. Os conceitos expostos a seguir derivam, por sua vez,de fenómenos da esfera transnacional que envolvem mais de um Estado.

8.3 Quatro paradigmas de relações entre vizinhos da Américado Sul/ A cordialidade oficial considerada sob o ângulo da construção do con-ceito bem como da prática tem sua génese na inteligência política brasi-leira. Corresponde, por certo, a um pano de fundo de longo alcance dapolítica exterior aplicada ao trato dos vizinhos. Outros conceitos se der-ramam, contudo, sobre a prática das relações regionais ou bilaterais paracuja elaboração contribuem intelectuais e homens de Estado de diferentespaísesVEsses outros paradigmas de relações regionais afetam, embora comintensidade variada, a opinião pública e o processo decisório dos governos.Exercem, portanto, capacidade de determinação sobre o rumo dos acon-tecimentos e constituem categorias explicativas da História. O método deanálise paradigmática aplicado ao estudo das relações entre o Brasil e seus

., vizinhos revela-se, mais uma vez, fecundo em seu intento de contribuirpara o avanço da formulação teórica aplicada às relações internacionais noâmbito do subsistema sul-americano.

Um balanço da literatura especializada sobre o tema das relações regionaispermite identificar quatro padrões conceituais, que são formulações genéri-cas nem sempre refletidas na conduta dos governos. Ou seja, um paradigmapode pairar como proposta ou aspiração deste ou daquele intelectual, polí-tico ou grupo dirigente, como uma espécie de referência ao que fazer, semcomandar a práxis, de forma imperativa. Mesmo porque os paradigmas apre-

, sentam entre si aspectos intrínsecos de contradição conceituai e prática.Convém ter em mente duas observações iniciais a respeito desses qua-

tro paradigmas concebidos a partir de vasta literatura latino-americana que;.. descreve e interpreta as relações entre vizinhos. Em primeiro lugar, o peso

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das relações entre o Brasil e a Argentina, tão relevante que explica em boamedida, para além das relações bilaterais, o comportamento dispensado aterceiros por esses dois Estados. E não somente a terceiros próximos, porquetambém condiciona as atitudes diante da potência hegemónica da área, osEstados Unidos. Em segundo lugar, esses quatro paradigmas colam às rela-ções relativamente recentes, desde algumas décadas até o presente, de modoa definir sua evolução, não somente conceituai, mas também sob o ângulo daconveniência, da consistência e do valor.

8.3.1 Rivalidadej A inclusão do conceito de rivalidade na tipologia paradigmática acercadas relações regionais no Cone Sul deve muito ao estudo de Miguel AngelScenna, Argentina-Erasil: cuatro siglos de rivalidad,/citado na bibliografia.Inúmeros outros estudiosos também se dedicaram, seja por gosto seja porconvicção intelectual, à busca dos elementos da intriga, sempre presentesnas relações internacionais, e com isso deram impulso à construção do pa-radigma da rivalidade. Esse grupo tende a toma-la por padrão permanente,a informar a conduta das políticas exteriores. A existência de outros para-digmas demonstra, porém, que tal convicção não se fundamenta no tempolongo. Aliás, Scenna escrevia antes de se desencadearem os processos de in-tegração na América do Sul. Não há como negar evidências segundo as quais,no passado e no presente, fatores de determinação da rivalidade agiram eagem, explicando manifestações reais desse padrão de conduta./ O conjunto de estudos sobre a rivalidade enumera fatores de determina-ção remotos e recentes. Entre os primeiros, são descritos a herança colonialde disputa entre espanhóis e portugueses pelo controle do estuário do rioda Prata, o período de formação e de afirmação dos Estados nacionais apósa Independência, a involução da grande à pequena Argentina nessa fase, asindependências de partes do vice-reino do Prata e a ideia de reconstruí-lo emnova grande Argentina, e ainda o pensamento geopolítico dos diferentes paí-ses que tirou inspiração desse substrato nacionalista/Houve época em quemedidas sanitárias tomadas à base da rivalidade e não dos interesses da saúdedos povos dificultavam o comércio, em que disputas para atrair imigrantescolocavam ern confronto as diplomacias na Europa, interessadas em exaltara própria imagem e em denegrir a do outro, em que as tarifas alfandegáriasvisavam prejudicar e retaliar. Em tempos recentes, a rivalidade derramou-se

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sobre o controle das águas, seja para fins de segurança seja para fins energéti-cos. Ao longo dos séculos, a corrida armamentista tomou forma na superiori-dade naval a alcançar sobre o vizinho, posteriormente, na tecnologia nucleara dominar primeiro. A disputa por hegemonia regional tornou-se outro fatora espelhar visões geopolíticas conflitivas, particularmente quando estava emjogo o destino de pequenos países como Uruguai, Paraguai e Bolívia./ Entre as manifestações da rivalidade não basta referir as guerras em quese envolveu o Brasil, como a guerra da Cisplatina entre 1825 e 1828; a cha-mada "guerra grande" que assolou o Uruguai, contra Juan Manuel Rosas em1851-52; a da Tríplice Aliança, entre 1864 e 1870 (Guerra do Paraguai).A rivalidade manifestou-se por meio de intensa busca de aliados entre osvizinhos durante esses conflitos e de modo permanente, em tempo de paz;por meio da diplomacia de obstrução de interesses do outro na vizinhançapraticada, por exemplo, por João Neves da Fontoura nos anos 1950; pormeio de distintas cosmovisões e políticas exteriores não convergentes. Mos-trou-se no passado diante de relações com a potência hegemónica, Inglaterraou Estados Unidos, das duas guerras mundiais, da solidariedade continental,das funções da OEA; recentemente, perante o papel dos Estados Unidos edos Estados sul-americanos na solução de conflitos internos ou bilaterais, naconstrução da zona de paz do Cone Sul ou da unidade sul-americana de segu-rança. A rivalidade estendeu-se aos conceitos de globalização, tida por benig-na e benfazeja em seus efeitos pelas elites argentinas durante o governo deCarlos Saúl Menem, por ambivalente e assimétrica pelo governo de Fernan-do Henrique Cardoso no Brasil. Enfim, aflorou em detrimento dos processosde integração em curso, diante do papel do Estado e das respectivas naçõesacerca do modo como buscar soluções para os efeitos das crises provocadasna passagem do milénio pelas experiências neoliberais, pela desvalorizaçãodo real em 1999 e pela falência da Argentina em 2001-02, f

Argumentando nessa linha de raciocínio, alguns estudiosos chegam à con-clusão de que/a rivalidade age como móbil superior das forças históricas e

->-j_ estabelece o padrão de conduta dos governos nas relações entre vizinhos. /

8.3.2 Cooperação e conflito7 Outros estudos agregam à rivalidade um segundo elemento, a coopera-

cão, de modo a produzir-lhe equilíbrio. Cooperação e conflito aparecern/erntítulos de publicações, em artigos de revistas científicas e livros lançados

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no mercado editorial nesses últimos anos como se fossem dois termos deum mesmo estereótipo literário. Os defensores desse paradigma não fazemtabula rasa do anterior, porém agregam o entendimento e a cooperação,também presentes nas relações entre vizinhos. E como os teóricos da rivali-dade, voltam-se, então, à busca de fatores e manifestações de entendimentoe cooperação para além daqueles da rivalidade./ Entre outras manifestações relevantes da cooperação, que supõem o en-

tendimento político, estariam a criação do Estado do Uruguai, em 1828, aeliminação de Rosas e de Solano López por ação de força de alianças regio-nais, o apoio do Brasil à consolidação do mitrismo e da moderna repúblicaArgentina por volta de 1860, o intenso e duradouro comércio bilateral, aaliança política entre Getúlio Vargas e Domingo Perón, a aliança desenvolvi-mentista entre Jânio Quadros e Arturo Frondizi. ̂

Nas décadas recentes, uma sucessão de manifestações estariam, segundoesses estudiosos, fazendo prevalecer a cooperação sobre o conflito, sem, con-tudo, eliminar o padrão anterior. Ademais, essa cooperação alcançaria outrospaíses e regiões da América do Sul, alçando-se em paradigma regional, aomenos no que diz respeito à política exterior do Brasil./As balizas que escandem o ritmo crescente da cooperação são postas no

encontro de Uruguaiana de 1961, entre Quadros e Frondizi, em razão deespelhar a filosofia política de integração económica; ainda, no Tratado daBacia do Prata, de 1968, entre os cinco países da região (Argentina, Brasil,Uruguai, Paraguai e Bolívia), voltado para a criação de infra-estrutura física;no Tratado de Cooperação Amazônica firmado, em 1978, pelos oito paísesda região; no Acordo Tripartite, de 1979, entre Argentina, Paraguai e Brasilpara aproveitamento hidrelétrico dos rios; no Acordo para Aproveitamen-to Pacífico da Energia Nuclear firmado, em 1980, entre Brasil e Argentina,ponto de partida de uma série de medidas de confiança mútua; nos doze pro-tocolos de cooperação, de 1986, entre Brasil e Argentina que unificaram avontade de operar conjuntamente as forças do desenvolvimento económico;enfim, no Tratado de 1991 que criou o Mercosul e nas iniciativas recentes deconfiguração de uma comunidade sul-americana de nações. // Bom número de analistas aponta para a redemocratização dos meados dosanos 1980 como marco cronológico da transição da rivalidade para a coope-ração. Contudo, a ponderação do conjunto de variáveis, como manifestaçõesda rivalidade antes e depois da redemocratização e iniciativas de cooperação

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que espelham entendimento político durante os regimes militares, demons-tram a inconsistência do argumento que vincula democracia a cooperação erivalidade a regime autoritário. /

8.3.3 Relações cíclicas/ Em estudos sobre a história da política exterior do Brasil, referimo-nos à

existência de um paradigma de relações cíclicas com os vizinhos. A descober-ta parte da premissa segundo a qual nem rivalidade nem cooperação teriam

j?^ se imposto como curso contínuo subjacente aos fatos de modo permanente,ao longo do tempo, porém, alternaram-se em ciclos de prevalência ora de umora de outro padrão. A alternância seria determinada pela conjunção de fato-res de conflito sucedida pela conjunção de fatores de entendimento. Assim,as relações teriam sido marcadas por picos de tensão seguidos por apogeusde distensão, em movimento cíclico. /

A existência do paradigma cíclico tira explicação não dos fatores gené-ticos da rivalidade ou da cooperação, como no caso anterior, mas dos fa-tores de reversão de tendência. Esses fatores agem de modo ambivalente,porquanto revertem o movimento, provocando a mudança, seja no sentidodo agravamento da tensão, seja no sentido da distensão. Inúmeros fatoresintervenientes dessa natureza podem ser identificados pela capacidade deproduzir efeitos em um ou outro sentido. Os movimentos de opinião, porexemplo, tanto acendem o fogo da rivalidade quanto sobre eles despejamágua fria. A manifestação de autoridades e estadistas tanto pode aproximaros povos quanto obscurecer seu entendimento. A consciência da convivêncianecessária entre vizinhos tanto pode conduzir as decisões quanto a consci-ência do conflito necessário para realizar interesses nacionais por meio da

, política exterior.Uma reversão de tendência advém da capacidade de persuasão de uma

linha de argumentação que evoca os ganhos da cooperação sobre outra que, . , - . . evoca os ganhos do conflito. Pode ocorrer, por exemplo, quando prevalece

a cordialidade ou a empáfia nacional como condição psicológica do ambien-te político. Também, por reação ante tal condição psicológica do outro, ao

• atribuir-lhe importância ou desprezo. A reversão de tendência pode advir dodeclínio ou reforço do Estado como condutor da sociedade, a exemplo doreforço no início do século XXI, que levou à reconsideração dos processosde integração até então entregues ao sopro do mercado por meio da fórmula

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cepalina do regionalismo aberto. A interferência de fatores do centro, comoa rivalidade entre os grandes ou a velha tática política divide et impera, de-termina, por vezes, a reversão de movimento.

Assim como os paradigmas anteriores de relações com os vizinhos, o derelações cíclicas também conta a seu favor com boa quantidade de fatores emanifestações. Uma sugestão de pesquisa para jovens e velhos estudantes,capaz de alertar sobre quanto as relações internacionais são complexas equão longe estão de se enquadrar nesta ou naquela teoria.

8.3.4 Relações em eixoUm nível avançado de análise das relações regionais foi alcançado por

pesquisadores da Universidade de Brasília e da Universidade de Buenos Ai-res ou convidados pela Fundação Alexandre de Gusmão do Itamaraty paraparticipar de projetos interinstitucionais. Em pequeno livro de 1987, LuizAlberto Moniz Bandeira lançou o termo relações em eixo, depois, em três ou-tros, conduziu sua reflexão sobre as relações interamericanas com base nesseconceito. O paradigma das relações em eixo contamina as interpretações dedezenas de livros, individuais ou coletivos, além de artigos publicados em pe-riódicos. Organizamos com Mário Rapoport, da Universidade de Buenos Ai-res, dois livros sobre as relações no Cone Sul. Em nossos estudos individuais,aplicamos o conceito às relações entre Brasil e Venezuela. Samuel PinheiroGuimarães, José Maria Liados, Luiz Felipe de Seixas Corrêa e Heloisa Vilhe-na de Araújo reuniram estudos de especialistas em volumes publicados sobreo tema das relações regionais de países-chave como Brasil, Argentina, Vene-zuela e aqueles da Comunidade Andina. Raquel Miranda, enfim, inclinou-sesobre a génese dos processos de integração em estudo comparado sobre asrelações em eixo entre França e Alemanha e entre Brasil e Argentina, com ofim de levar o conceito ao campo da teoria das relações internacionais.

Essa literatura tanto impressiona pelo volume de publicações quanto pelaqualidade das análises, em ambos os aspectos superior à literatura consagradaaos três outros paradigmas de relações regionais. A primeira questão que suge-re diz respeito aos fundamentos cognitivos desse modelo de interpretação./ Os componentes do conceito relações em eixo levam em conta fatoresrelevantes para as relações entre vizinhos. Eles assentam sobre a tradição deuma relação especial bilateral, não do tipo parceria estratégica entre domi-nante e dominado, de estruturas assimétricas, como a que se verifica entre

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Hrusil t- Estados Unidos, mas sobre uma relação especial entre parceiros si-métricos. Relações em eixo se estabelecem quando, precisamente, a imagemum do outro corresponde à do parceiro que consigo estabelece uma uniãoco-rcsponsável. Uma esfera de elaboração política comum ultrapassa o cará-tcr de requisito para converter-se em fenómeno espontâneo nas relações bi-laterais. Inevitavelmente, o casal que compõe o eixo agrega em seus cálculosa reação dos países vizinhos. Em outros termos, o eixo comporta uma verten-te exógena que o transcende porque abarca as relações regionais. Contudo,na gerência das relações regionais, mesmo que coletivas, como aquelas quese observam nos blocos de países integrados, emerge a vontade de potênciados dois, primeiro em âmbito regional, depois em escala global. /

Na génese dos processos de integração, argumenta Miranda, o eixo argen-tino-brasileiro conduz-se prioritariamente pelos interesses económicos dodesenvolvimento, ao passo que o eixo franco-alemão pelos interesses geopo-líticos da paz. Não convém, todavia, insistir sobre componentes isolados naorigem de relações em eixo entre dois países: elas se estabelecem por moti-vações e trazem sempre resultados concretos na esfera política, económicae geopolítica./As relações em eixo entre Brasil e Argentina tiram força de relações espe-

ciais históricas. Uma corrente de interpretação arcaica dessas relações es-tabelece a complementaridade económica entre um Brasil industrial e umaArgentina primária como móbil da conexão. Além de prejudicial ao projetopolítico da cada um, esse modo de vê-las não condiz com os interesses dasduas sociedades. Desde a época das independências, Brasil e Argentina man-tiveram a mais importante parceria, se considerado o volume de comérciobilateral na longa duração, sempre situado entre os primeiros, enquanto ou-tros parceiros ascendiam e declinavam. Mas a base lógica do conceito evoluicom as forças sociais, para além dos dois séculos de economia agroexporta-dora em que ambos os países se estabilizaram, rumo à modernização tocadapelo projeto industrial de ambos. Assim, a complementaridade económicacontinua alimentando a relação especial, todavia sem refletir estruturas eco-nómicas assimétricas e sim o móbil comum de apoiar um ao outro na buscado desenvolvimento integral. Relações em eixo reconhecem a necessidade deajustar a estratégia política à complementação económica dessa natureza.

O conceito se expande, entretanto, na fase de relações bilaterais recentesentre Brasil e Argentina, destinadas a ampliarem-se a ponto de abarcar as

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relações do Brasil com sua vizinhança por inteiro. Do lado da Argentina e doCone Sul, as relações em eixo são avaliadas como propulsoras do processo deintegração, do lado da Venezuela e do Chile, como oportunidade de robuste-cer outros eixos bilaterais de impactos sobre a respectiva vizinhança, do ladodas relações entre Brasil e todos os países da América do Sul, como caminhopara operar as vantagens comparativas intangíveis e ampliar as capacidadesde poder.

Em sua essência, as relações em eixo, no presente, concorrem como pro-posta de saída para a crise das experiências neoliberais que provocaram adeterioração dos indicadores económicos e de bem-estar na América do Sul.O retorno a soluções nacionais, nos moldes da conduta dos dirigentes Ro-berto Lavagna e Néstor Kirchner na Argentina, representa tentativa válida àluz dos efeitos benéficos das experiências desenvolvimentistas do passado,mas esse retorno não é incompatível com o paradigma de relações em eixo,mesmo porque o mundo todo, após o desencanto diante da globalização, re-cupera o papel condutor do Estado pela via do comportamento logístico.

As relações em eixo sugerem, nesse sentido, recuperar a essência políticado processo de integração abandonado em razão das diretrizes neoliberais.A ampliação dos mercados, nos anos 1980, era vista nos escritos de RobertoLavagna como oportunidade de criar o núcleo de conhecimento e inovaçãopor meio da cooperação científica e tecnológica e da associação empresariale industrial. A reduzida dimensão de mercado não permite, com efeito, queos dois países alcancem essas vantagens comparativas de modo isolado. Poroutro lado, a contribuição da América do Sul à configuração do mundo mul-tipolar, objetivo explícito da política exterior do governo Lula, depende dacriação do centro de poder regional, que, por sua vez, está condicionado aoprocesso de integração. Sem os ganhos desse processo não parece viável àAmérica do Sul elevar suas capacidades de poder ao ponto de se constituirpólo mundial.

O obstáculo à conceituação e à implementação do paradigma de relaçõesem eixo é posto por intelectuais e dirigentes de tendência globalista, os quaisseguem argumentando ou agindo em favor da abertura ilimitada das econo-mias nacionais bem como dos processos de integração às forças do capita-lismo transnacional — conhecimento, inovação, capitais e empreendorismo— como condição de realização de ganhos superiores àqueles vislumbradospor intelectuais ou estadistas logísticos de visão sul-americana.

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O modelo de relações em eixo se alça, por sua vez, à esfera da vida polí-tica, por meio da qual requisita e firma a autonomia de processo decisóriocompartilhado pelos Estados da região, cujo escopo reside no fortalecimentodas capacidades de poder e do poder de barganha da América do Sul. E comisso contribui para a interdependência entre blocos e nações, mas não aqueladas estruturas hegemónicas desejada por globalistas e que tendem a perpe-tuar assimetrias em benefício de uns e detrimento de outros.

Alguns analistas de renome se furtam à distinção entre parceria estra-tégica e relações em eixo, utilizando um termo em vez de outro para sig-nificar a mesma substância. A distinção que fazemos entre ambos decorreda possibilidade de existir parceria estratégica entre países profundamentedesiguais, ao passo que relações em eixo se estabelecem entre parceiros denível próximo de desenvolvimento, unidos por uma visão comum de inte-resses e objetivos. Nesse sentido, por exemplo, entendemos que Hélio Ja-guaribe julgue a existência de relações em eixo necessária à sobrevivênciade Brasil e Argentina, visto que, separados, os dois países não conseguiriamelevar o desenvolvimento ao estádio mais avançado. Entendemos que MárioRapoport atribua às relações em eixo a responsabilidade de forjar visões demundo convergentes e de evitar disputas por influências regionais. Que JoséBotafogo Gonçalves e Felix Pena incumbam ao eixo pensar o futuro de si eda região, tendo como escopo o comércio, a integração económica, a integra-ção energética e a competitividade sistémica. Que Roberto Russell percebao eixo como conceito de génese fundamentalmente brasileira, visto seremBrasil e Argentina sócios em determinados interesses, não amigos unidospelo pensamento político.

8.4 Aplicabilidade dos paradigmas de relações com a vizinhançaO método de análise paradigmática conduz à elaboração de conceitos,

cuja soma equivale a uma teoria das relações entre o Brasil e seus vizinhos. Aprimeira finalidade desse exercício produz efeito epistemológico, na medidaque amplia o conhecimento das relações regionais e internacionais. Cadaconceito paradigmático esconde parcela da verdade, agregando-se a outrossem eliminá-los. Vista em sua pretensão explicativa universal, a teoria dasrelações internacionais é frágil, feita de incongruências, porém útil ao conhe-cimento. É nociva somente quando uma formulação reivindica o domínioda verdade. Os conceitos aqui expostos convencem o leitor da perspectiva

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tendenciosa que ostenta o apelo a uma exclusiva interpretação, sobretudoquando equivocada na base histórica, no raciocínio, na manipulação de valo-res e interesses.

A teoria também reveste-se de caráter normativo, que corresponde à su;isegunda finalidade. Conselheira do príncipe, tende a apresentar-se comoconclusão pronta para indução decisória. Nisso reside o perigo que certasteorias de relações internacionais representam para nações ou blocos de na-ções. Toda teoria carrega valores e interesses, sempre derivados de seu núcleoformulador. Países ou grupos de países que não desenvolvem suas teorias derelações internacionais estão inclinados a incorporar valores alheios à sua cul-tura e a sobrepor a seus próprios os interesses de terceiros. Não há teoria querealize os desejos de todos os povos, como não há teoria de alcance explicati-vo universal, por mais que os globalistas insistam sobre esse argumento.

Os conceitos expostos neste capítulo com o objetivo de compreender asrelações do Brasil com a vizinhança e de sugerir estratégias de ação — cordia-lidade oficial, rivalidade, cooperação e conflito, relações cíclicas, relações emeixo — influenciam enormemente as visões dos meios de comunicação e porisso incidem sobre a opinião pública. Certos órgãos de comunicação derivamsua interpretação desse ou daquele conceito e, portanto, estimulam a vigên-cia de um ou outro paradigma de relações regionais. Sabe-se que há órgãosde imprensa que fomentam a rivalidade, outros, a cooperação, sendo outros,ainda, volúveis e, finalmente, existem também aqueles que fazem análise ob-jetiva. Buscar a objetividade significa ser crítico diante de interpretações queevidenciam parcelas da verdade. Aos formadores de opinião, intelectuais eacadémicos, em primeiro lugar, pertence a responsabilidade de preparar esseespírito crítico, que, no caso presente, revela-se de utilidade para realizaçãodos interesses dos países da América do Sul. O fato é que os paradigmaspesam sobre a opinião e o processo decisório de Estado.

Os dirigentes são, via de regra, sensíveis à pressão da opinião, por essarazão os paradigmas condicionam a estratégia de ação dos governos. À luzdos conceitos expostos, uma gama de alternativas é posta sobre a mesa de'quem conduz o processo decisório de Estado ou de blocos de países. Con-clui-se que as políticas exteriores dos países sul-americanos em relação aseus vizinhos orientam-se pela rivalidade de interesses ou pela cooperaçãodos agentes económicos e sociais? Verificam-se mudanças nos padrões decomportamento dos governos? É perceptível uma evolução no sentido tl;i

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216 AS RELAÇÕES REGIONAIS

aplicabilidade dos quatro modelos, da rivalidade ao equilíbrio com a coope-ração, da gerência de crises e oscilações às relações de convivência harmonio-sa e benéfica para todos?

O conhecimento dos quatro paradigmas regionais permite precisamen-te essa elevação do padrão de qualidade das relações entre os países daAmérica do Sul que a última pergunta sugere. Conquanto as diplomaciasdos países-chave dominem o conhecimento dos distintos padrões postoshistoricamente em marcha e tenham por escopo orientar-se pelo padrãodas relações em eixo. Contudo, padrões arcaicos de conduta, embora per-tencentes ao domínio das leviandades políticas, ressurgem por vezes dopassado ou pairam no horizonte como espectros a avançar. Os governosnão primam sempre por dispor de estadistas em seu topo, preparados pararealizar o bem comum. Tampouco a sociedade dispõe permanentementede pensadores úteis a seus interesses. Fatores e manifestações de padrõesde conduta inadequados, a exemplo daqueles que referimos em nossa aná-lise ou inventados ao sabor de circunstâncias, alimentam facilmente a ar-gumentação e suscitam novas correntes de opinião. Por essa razão, riscosde avanços e recuos do padrão de qualidade das relações regionais contamentre as possibilidades permanentes.

Uma das falhas das relações regionais do Brasil está no fato de se ha-ver este país voltado com ânsia desmesurada para o Sul e dado as costasao Norte. A miragem da Argentina com seu nível de instrução, bem-estare consumo despertou fascinação entre intelectuais, políticos e produtoresbrasileiros, que para ela se voltaram a ponto de não atribuir importância aosdemais vizinhos. José Sarney, entretanto, havia preparado nos anos 1980dois processos de integração e não seria insensato pressupor que lançasse odo Norte, em torno do eixo entre Brasil e Venezuela, caso viesse a falhar odo Sul. O sucesso da integração do Cone Sul deixou à deriva o processo deintegração com o Norte.

Os potenciais das duas outras grandes nações da América do Sul são porcerto diferentes. Nada existe, entretanto, que sugira fazer de Argentina eVenezuela opções excludentes. O conceito de relações em eixo exposto nes-te capítulo sugere, precisamente, a complementaridade dessa integração.Sendo o vizinho do Sul um país de grande consumo e de baixa capacidadeempresarial, Brasil e Argentina realizariam em próprio proveito interessesespecíficos em um esquema de relações em eixo com a Venezuela; sendo o

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vizinho do Norte um país de baixo consumo, porém de elevada capacidadeempresarial e financeira, os três realizariam em próprio benefício outros in-teresses específicos, caso acionassem o esquema de relações em eixo. Quedizer, então, das relações entre Brasil e Chile?

Enquanto estratégia de relações regionais, as relações em eixo foram con-sideradas, há décadas, indispensáveis aos interesses de França e Alemanha,apesar de sólida base nacional, tecnológica e económica. Essa consciênciaaflora no famoso Tratado do Eliseu, de 1963. Naquele continente, o enten-dimento e a cooperação entre os dois alavancaram o processo de integraçãoe lhe imprimiram matizes que hoje configuram o bloco europeu como blocoeconómico, político, cultural e cidadão. Esse caminho está aberto para aAmérica do Sul como o traçado da boa convivência, à condição de imple-mentar-se o eixo Buenos Aires-Brasília-Caracas, de modo a compartilhar be-nefícios com todos os vizinhos sul-americanos do Brasil.

Uma primeira observação conclusiva acerca da aplicabilidade dos quatroparadigmas diz respeito à crítica que lhe fazem globalistas que opõem vo-luntarismo e forças do mercado. Na realidade, as forças de mercado jamaistiveram curso impensado e foram, ao longo de toda a História, conduzidaspor homens de Estado, representantes da cultura, da opinião e de interessesdas sociedades, de visão e vontade própria. Isso se aplica tanto à formaçãodos blocos na América do Sul, na Europa e em outras regiões, quanto à he-gemonia compartilhada entre União Soviética e Estados Unidos e, enfim, aocurso que toma em nossos dias a interdependência global.

Outra observação conclusiva, de certa forma peremptória, acerca daaplicabilidade dos paradigmas de relações regionais seria afirmar que são nomomento insuficientes. O Brasil não lidera a integração porque não avançaprojetos de alcance e interesse efetivo para os vizinhos. Hugo Chávez, fazen-do valer os recursos do petróleo, toma a dianteira, na percepção de certosgovernos. Evo Morales nacionaliza o setor de hidrocarbonetos e surpreendea Petrobras e outras empresas brasileiras que lá investem. Nicanor Duarteaproveita para requisitar a revisão de preços da energia gerada em Itaipu. Ta-baré Vázquez sonha com acordo de livre-comércio entre Uruguai e EstadosUnidos. Nestor Kirchner, enfim, ironiza a liderança procurada, porém vaziado Brasil na região. Lula compensa essa insuficiência brasileira com o capitalpolítico que pessoalmente representa perante os vizinhos, entretanto, ape-nas de simpatia não se fazem consistentes e duradouras relações regionais.

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218 i As RELAÇÕES REGIONAIS

Parece convir para a vizinhança uma estratégia menos tradicional e demaiores efeitos económicos e populares. O episódio da nacionalização dosrecursos naturais de hidrocarbonetes na Bolívia pelo Decreto Supremo deEvo Morales de 1° de maio de 2006 revela o ponto limite da insuficiência aque nos referimos. A Bolívia já havia nacionalizado a Standard Oil em 1937e a Gulf em 1969. Nas duas vezes, foram atos tomados por impulso nacio-nalista ou de esquerda, porém sem mercado e sem investimentos a indústriaesmoreceu e as duas nacionalizações foram revertidas. O gasoduto da Bolíviaao Brasil estava na agenda do tratado de 1938, renovado pelos acordos deRoboré de 1958. Geisel o rejeitou, levando em consideração a instabilidadepolítica do vizinho e a suspeita de inexistência de gás em volume suficiente.A construção do gasoduto de 3.000 km foi decidida por Itamar Franco, em1993, a contragosto, e por insistência de seu chanceler Fernando HenriqueCardoso. Quando o mercado brasileiro absorve 33% das exportações bolivia-nas e os investimentos brasileiros compõem 18% do PIB boliviano, quando aPetrobras arrecada 24% dos impostos, havendo investido mais de um bilhãoe meio de dólares, detendo 46% das reservas de gás, 95% do refino e 23%da distribuição de combustíveis, publica-se o decreto de nacionalização, cujoalcance técnico não é claro, no entanto, cujo desgaste político e efeito psi-cológico afugentam governos e empresas. A terceira nacionalização bolivianaapresenta-se com a legitimidade de ser a primeira democrática e feita paracombater a pobreza do povo. Entretanto, os prejuízos da nacionalização nãosão apenas bolivianos, pois Morales caminha contra as tendências das rela-ções internacionais e regionais, mas sobretudo brasileiros. Como tocar, emtais circunstâncias, o projeto desenvolvimentista da América do Sul, tão caroao governo Lula?

Se as esquerdas ascendem ao poder em quase todos os países, não se con-figuram como frente política afinada com projeto comum para a América doSul. Ademais, a esquerda partidária não se articula com a esquerda social demodo a criar consenso interno nos países. Ela toma feição própria em cada

1 caso, de caráter nacional, em função de problemas e desafios que lançamraízes na herança histórica ou no neoliberalismo. A esquerda pouco vai alémde um estereótipo político sem conteúdo uniformizador. Se agrega capitalpolítico a Lula e cria ambiente de entendimento superficialmente favorável,na prática, visto pulverizar-se em múltiplos matizes, a esquerda sul-america-na não confere apoio logístico à criação do pólo regional de podei.

9 f ;Brasil e Estados Unidos: a parceria estratégica l V

LEITURAS RECOMENDADAS:

MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Relações Brasil-Estados Unidosno contexto da globalização. São Paulo, Senac, 1999. 2 v. (reediçãode Presença dos Estados no Brasil e Rivalidade Emergente). MONIZBANDEIRA, Luiz Alberto. Brasil, Argentina e Estados Unidos: con-flito e integração na América do Sul (Da Tríplice Aliança ao Merco-sul, 1870-2003). Rio de Janeiro: Revan, 2003. MONIZ BANDEIRA,Luiz Alberto. As relações perigosas: Brasil-Estados Unidos, de Collora Lula, 1990-2004. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. MO-NIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Formação do império americano: daguerra contra a Espanha à guerra no Iraque. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2005. OLIVEIRA, Marcos Guedes. (Org.). Brasil e EUA nonovo milénio. Recife: Universitária, 2004. BURNS, E. Bradford. Theunwritten alliance: Rio Branco and Brazilian-American relations. NovaYork: Columbia University Press, 1966. BUENO, Clodoaldo. PolíticaExterna da Primeira República: os anos de apogeu — de 1902 a 1918.São Paulo: Paz e Terra, 2003. PECEQUILO, Cristina Soreanu. A políti-ca externa dos Estados Unidos. Porto Alegre: UFRGS, 2003. SMITH,Peter. Talons of the Eagle; Dynamics of US-Latin American Relations.Oxford: Oxford University Press, 1996. ALMEIDA, Paulo Roberto de;BARBOSA, Rubens António. Relações Brasil-Estados Unidos: assime-trias e convergências. São Paulo: Saraiva, 2006.