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70 CresCer outubro 2008 anencefalia anencefalia Havia à época um desconforto inexplicável. Não era físico. Não havia dor. Mas ainda hoje, dois anos depois, Ana Lúcia Alves de Souza, 30, funcionária pública, não consegue nomear o que sentia durante sua gravidez. A sensação, que a acompanhou até o quinto mês de ges- tação, passou de uma preocupação natural com a saúde do bebê para uma revelação que devasta os sentimentos de quem se prepara para ser mãe. Seu segundo filho – o primeiro do atual relacionamento – teve diagnosticada anencefalia, uma malformação cerebral incompatível com a vida do feto fora do útero. O drama de gerar um filho anencéfalo, que hoje Ana tenta lembrar o menos possível, foi reavivado com o debate no Supremo Tribunal Federal sobre o direito ao aborto de fetos com a anomalia (o resultado da discussão deve ser anunciado até o final do ano). Apesar do sorriso com que nos recebeu em sua casa, percebia-se no olhar o desalento vivido naqueles dias. Ela relembra quando soube da notícia como se esti- vesse revivendo-a ali, naquele instante. Ana e Peterson Ferreira de Souza, 29 anos, seu companheiro, abriram o resultado do ultra-som, mas não entenderam o que “ausência de abóbada craniana, anencéfalo” significava. Quando se encontrou com seu médico, a dúvida foi sa- nada, a seco. “Você já viu alguém nascer e viver sem cé- rebro? A partir de hoje você não é mais minha paciente, vou encaminhá-la a um especialista em medicina fetal.” Especialistas ouvidos pela CRESCER disseram que a conduta do obstetra feriu o código de ética por tê-la dispensado sem amparo e informações concretas. Isso, para dizer o mínimo. O casal se perdeu no caminho de volta para casa. Quando chegaram, acessaram a internet em busca das informações que ainda não tinham. Ali, depararam-se com o pior. Descobriram que o filho não tinha chances de vida. Ana caiu em um choro sem fim. Custou a acre- ditar no que lia. O casal procurou outro médico. Em vez de esclarecer sobre os riscos e explicar as opções legais para o caso dela, que incluem prosseguir com a gesta- ção ou tentar uma autorização judicial para abortar, ele internou-a no hospital e começou o processo de indução do parto. A essa altura, Ana já não tinha dúvidas de que a melhor opção era o aborto. No hospital, dividiu o quarto com gestantes que iam dar à luz. Enquanto as mulheres saíam com seus filhos nos braços, Ana esperava, em si- lêncio, para perder o seu. A situação perdurou até que um outro médico a des- cobriu lá, sem autorização judicial, três dias depois. O remédio para a indução do parto não havia tido efei- to. O médico explicou que a situação dela era irregular e Por Thais Lazzeri FoTos andré sPinoLa e CasTro Produção CinThia PerGoLa “Só queria o direito de escolha” A história de uma mulher que se descobre grávida de um feto anencéfalo no quinto mês e sai em busca de autorização judicial para fazer o aborto CF179_p70a73.indd 70 23/9/2008 21:11:24

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anencefaliaanencefalia

Havia à época um desconforto inexplicável. Não erafísico. Não havia dor. Mas ainda hoje, dois anos depois,Ana Lúcia Alves de Souza, 30, funcionária pública, nãoconsegue nomear o que sentia durante sua gravidez. Asensação, que a acompanhou até o quinto mês de ges-tação, passou de uma preocupação natural com a saúdedo bebê para uma revelação que devasta os sentimentosde quem se prepara para ser mãe. Seu segundo filho – oprimeiro do atual relacionamento – teve diagnosticadaanencefalia, uma malformação cerebral incompatívelcom a vida do feto fora do útero.

O drama de gerar um filho anencéfalo, que hoje Anatenta lembrar o menos possível, foi reavivado com odebate no Supremo Tribunal Federal sobre o direito aoaborto de fetos com a anomalia (o resultado da discussãodeve ser anunciado até o final do ano). Apesar do sorrisocom que nos recebeu em sua casa, percebia-se no olharo desalento vivido naqueles dias.

Ela relembra quando soube da notícia como se esti-vesse revivendo-a ali, naquele instante. Ana e PetersonFerreira de Souza, 29 anos, seu companheiro, abriramo resultado do ultra-som, mas não entenderam o que“ausência de abóbada craniana, anencéfalo” significava.Quando se encontrou com seu médico, a dúvida foi sa-nada, a seco. “Você já viu alguém nascer e viver sem cé-

rebro? A partir de hoje você não é mais minha paciente,vou encaminhá-la a um especialista em medicina fetal.”Especialistas ouvidos pela CRESCER disseram que aconduta do obstetra feriu o código de ética por tê-ladispensado sem amparo e informações concretas. Isso,para dizer o mínimo.

O casal se perdeu no caminho de volta para casa.Quando chegaram, acessaram a internet em busca dasinformações que ainda não tinham. Ali, depararam-secom o pior. Descobriram que o filho não tinha chancesde vida. Ana caiu em um choro sem fim. Custou a acre-ditar no que lia. O casal procurou outro médico. Em vezde esclarecer sobre os riscos e explicar as opções legaispara o caso dela, que incluem prosseguir com a gesta-ção ou tentar uma autorização judicial para abortar, eleinternou-a no hospital e começou o processo de induçãodo parto. A essa altura, Ana já não tinha dúvidas de que amelhor opção era o aborto. No hospital, dividiu o quartocom gestantes que iam dar à luz. Enquanto as mulheressaíam com seus filhos nos braços, Ana esperava, em si-lêncio, para perder o seu.

A situação perdurou até que um outro médico a des-cobriu lá, sem autorização judicial, três dias depois. Oremédio para a indução do parto não havia tido efei-to. O médico explicou que a situação dela era irregular e

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P r o d u ç ã o C i n T h i a P e r G o L a

“Só queriao direito deescolha” A história de uma mulher

que se descobre grávidade um feto anencéfalo noquinto mês e sai em buscade autorização judicialpara fazer o aborto

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Ana lúcia,,30 anos, conta30 anos, contacomo sua vidacomo sua vidamudou ao sabermudou ao saberque esperava umque esperava umbebê sem cérebrobebê sem cérebro

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que não poderia permanecer no hospital. Quando soubeque estava desamparada pela Justiça, Ana foi em busca daautorização. Muitas mulheres, grávidas de anencéfalos,passam a gestação à espera de uma resposta judicial, quepode demorar até três meses ou ser negativa. O ministroda Saúde, José Gomes Temporão, recentemente defendeuo direito de escolha das grávidas nesses casos.

Ana foi beneficiada com uma liminar rapidamente.Na maioria das vezes, após fazer o diagnóstico, o médicoorienta a paciente se ela deseja ou não fazer o aborto. Sesim, ela precisa do diagnóstico de mais dois médicos pa-ra pedir a autorização judicial. A mulher deve ir àra pedir a autorização judicial. A mulher deve ir àdefensoria pública ou à procuradoria da assistênciadefensoria pública ou à procuradoria da assistênciajudiciária em estados que não apresentam defenso-ria. O defensor faz o pedido para o juiz, que ouvetambém o representante do Ministério Público ecomunica sua decisão. Aqui no Brasil, metade dasdecisões costuma ser favorável.

Passou-se um mês do momento em que AnaPassou-se um mês do momento em que Anadescobriu sobre a anencefalia até o momento doaborto. Foram dias de angústia. Ela não se lembraaborto. Foram dias de angústia. Ela não se lembrado que aconteceu com Peterson ou como Thaina,sua filha de 13 anos, foi para a escola. Não sabe co-mo foi aprovada na faculdade que cursava. “Entreiem depressão. Só pensava que um dia ia acordarpara enterrar meu filho.” O irmão de Ana, quefaz parte de um grupo religioso contra o aborto,tentou dissuadi-la.

Enquanto relembra esse trecho da história,Peterson senta-se ao lado de Ana. Ele acabou defechar a oficina que mantém na frente da casa.Timidamente, começa a falar do caso depois deum silêncio de mais de um ano. A voz engasga.Ele também sofreu. Era seu primeiro filho. “Naquele mo-mento a prioridade era a vida da minha mulher”, diz. Evoltamos ao dia da internação para o aborto.

O tamanho da dorCom a autorização em mãos, Ana regressou ao hospital

na companhia do marido e da mãe. Foram três dias deinternação, sem comer ou beber, esperando o remédioque induz o parto fazer efeito. Os médicos disseram queo caso dela era o primeiro naquela maternidade.

Ana, por um instante, pára de falar. Tem dificuldade pa-ra dimensionar o tamanho da perda. Olha para Peterson,e chora. “Achei que fosse morrer. A dor era tanta que não

podia mais agüentar. Deram até morfina. Delirando, pedique me deixassem ver a Thaina, minha filha mais velha.”Quando o bebê nasceu, não se ouviu choro. Como o fetotinha menos de 350 g, não foi preciso fazer o enterro. Ocasal não viu a criança. Eles não queriam essa lembrançado filho que nasceu para morrer.

Ana e Peterson não são pró-aborto. Eles defendem odireito da mulher escolher. “Como pode um juiz decidiro tamanho da dor de uma família? Quem passa pela si-tuação é quem deveria escolher entre prosseguir ou nãocom a gravidez”, diz o marido.com a gravidez”, diz o marido.

Thaina, a filha, entra na sala. Ela chega no instante emque Ana conta quando decidiu recomeçar. “Estava aindana maternidade. Acordei, tomei um banho, coloquei umaroupa limpa e senti um alívio”, diz. É mesmo um bommomento para a família. Ana está grávida, novamente.No dia da entrevista (no início de setembro), ela estavade oito semanas. Para o bebê que vai nascer, ainda nãocomprou nada. Só tem o enxoval que guardou do filhoque não chegou. Nome, o bebê também não tem. Ela temmedo de criar muitas expectativas e se decepcionar. Seumaior desejo, que ela repete a toda hora, é fazer o ultra-som no terceiro mês de gestação para saber se este filhotem chances de viver. Ana não desistiu.

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De lados diferentes

Contra A favor

Dois médicos contam por que têm opiniões contrárias sobre o direito de a mulherdecidir se aborta ou não um feto com anencefalia

entenda a anencefalia

Alice teixeira Ferreira,professora de biofísica da

universidade Federal de são Paulo

lO que é uma malformação cerebralincompatível com a vida fora do útero. Életal em 100% dos casos. o brasil é o 4o

país na lista com maior incidência de fetosanencéfalos – nasce 1 para cada 1.000.lCausa A ciência desconhece o porquê damalformação. Há pesquisas não-conclusivassobre fatores que, associados, poderiamaumentar as chances. são eles: genética,nutrição inadequada, febre durante a

gravidez, infecção, alguns medicamentos deuso psiquiátrico, obesidade, tabaco.lDiagnóstico o ultra-som morfológicono 3o mês dá o resultado com exatidão.os bebês que não morrem antes do partofalecem horas depois do nascimento.l Prevenção tomar ácido fólico 3 mesesantes de engravidar e no 1o trimestre dagestação ajuda a prevenir malformações.Quem teve um anencéfalo deve fazer

aconselhamento genético, para ver se hárisco de ter outro nas mesmas condições, eacompanhar a nova gravidez com cuidado.l Lei Hoje, a mulher pode fazer o abortode um feto anencéfalo se a decisão dojuiz for favorável a seu caso. com a lei,que pode ser aprovada até o fim do ano, agrávida não precisaria mais da autorização,pois teria seu direito já garantido. bastariao diagnóstico médico para fazer a opção.

Por que você é a favor do direito ao aborto?Nenhuma mulher engravida pensando em abortar. todos somos pelavida. A anencefalia é a gestação de um filho sem viabilidade extra-uterina. Não tem cérebro, consciência. Nada. É 100% letal.Há registros de crianças que sobreviveram mais de um ano...eles têm o tronco cerebral, por isso demonstram alguns estímulos.mas não sentem nada. e essas crianças podem carregar outrasmalformações associadas, como problemas cardíacos. o caso damarcela* não serve de exemplo, porque ela não era anencéfala.A mulher corre riscos?ela pode ter aumento do líquido amniótico e deslocamento de pla-centa. um estudo mostrou que em 5% dos partos foi preciso retiraro útero e em 4% fez-se transfusão de sangue. levar a gravidez de umanencéfalo contra a vontade da mulher é análogo à tortura.Como deve ser a abordagem do médico em caso de anencefalia?É dever do médico informar a paciente das possibilidades que ela têm.e respeitar a decisão da pessoa.A Constituição diz que é possível a doação de órgãos quando hámorte cerebral. ela também é possível em casos de anencéfalos?sim. A legislação diz que em morte cerebral os parentes podem serconsultados para doação de órgãos. um feto anencéfalo está namesma condição, ele não tem atividade cerebral.

Por que você é contra o direito ao aborto nesses casos?o anencéfalo é uma criança doente e não é por isso que vamos ante-cipar a sua morte. ela tem o direito de viver. Veja o caso marcela* (deJesus, que faleceu com 1 ano e 8 meses). os médicos se recusaram aacompanhar a gravidez da mãe. como você pode definir a quanti-dade de cérebro que tem para justificar matar uma criança?está provado que a criança não vai ter uma vida saudável, nãovai sentir, não terá emoções. ela não tem chances. É letal...Não é injusto matar um condenado à morte? A mulher que está es-perando um bebê anencéfalo tem que enxergar como quem tem umfilho doente terminal. cerca de 30% das leucemias levam à morte.também é incurável. Você vai matar um paciente condenado?Como garantir que a saúde da mulher não seja posta em risco?o que pode acontecer é o aumento do líquido amniótico. Você podefazer uma pulsão para retirar. Não há risco.e a liberdade de escolha?A mulher precisa é de assistência de saúde melhor, que evite que elasofra desnecessariamente.Mas a mulher sofre um abalo psicológico grande...Você não tem como prever o destino da criança. ela pode nascer emorrer logo em seguida, e era saudável. concordo que é muito triste.mas matar intencionalmente é mais triste ainda.

cristião rosas,ginecologista e obstetra, integrante daFederação brasileira de ginecologia e obstetrícia

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