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1 Chamuças de Bacalhau Oito horas de carro para chegar à Sintra lá do sítio. Actividades do neolítico e bosta em panquecas. Coca-cola, bananas, água fervida e sopa de tomate. Mami e Rita sentem-se que nem figurinhas de presépio. Pés frios e a alma quente.

Chamuças 4

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Adventures in India

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Chamuças de Bacalhau

Oito horas de carro para chegar à Sintra lá do sítio. Actividades do neolítico e bosta em panquecas. Coca-cola, bananas, água

fervida e sopa de tomate. Mami e Rita sentem-se que nem figurinhas de presépio. Pés frios e a alma quente.

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IV.

We’re On the Road to Nowhere

“Olha que giro, já é o segundo dia que não temos electricidade de manhã.”

Foi com esta curiosidade e com o som do Für Elise que saímos da cama às

oito da matina. Já nem tentámos pedir o pequeno-almoço e fizemos o check-out

em pijama (isto porque eu tinha decidido que ia passar o dia de pijama, já que

íamos fazer oito horas de viagem). A caminho do carro que nos ia levar onde os

indianos tinham decidido, ainda parámos numa espécie de drogaria para

comprar um cartão de telemóvel da Airtel, ao preço da chuva nas monções,

achávamos nós.

Fartei-me de tirar fotografias à National Geographic a tudo o que era

pobrezinho colorido e conhecemos o nosso driver, um indiano gordinho com ar

de aborígene que só tinha estudado inglês até ao segundo capítulo do livro da

escola. Para compensar a ignorância ria-se por tudo e por nada. E como

estávamos cheias de paciência para fazer amigos novos dormitámos a viagem

quase toda. A Rita ia enjoada e eu ia a tirar fotos. Tivemos uma conversa óptima

sobre a transversalidade de certos aspectos antropológicos comuns à humana

raça e constatámos que, de facto, éramos bestialmente cultas e open minded,

isto antes de nos fartarmos de tangas e decidirmos que era mais rico ir a olhar

para fora do que para dentro.

E assim se fizeram 300 km de estrada sempre a direito, 300km de malta

encavalitada em cima de carros, de bosta de vaca cozinhada a secar ao sol à laia

de panquecas, 300 km de gente a mudar pneus, de crianças fardadas a caminho

da escola, e de todas aquelas actividades que o ser humano fazia no neolítico: a

pecuária, a agricultura e a soneca debaixo da árvore.

“We Stop. Restaurant. Stop” disse o driver (ao qual chamaremos

carinhosamente de Balú). “Stop o caraças, tu continuas mas é em frente e só

paras quando nós te dissermos, numa tenda na berma da estrada”. “No. Good

Restaurant. We Stop”. “Ai o tanas, mas quem é que manda aqui afinal? Não

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queremos cá bons restaurantes pá, ficámos pobrezinhas e só queremos comer

bananas.”

Não nos perguntem como, mas a mensagem lá chegou aos neurónios do Balú

que já começava a perceber que não lhe ia ser fácil sacar comissõezinhas

connosco. E, lá para as três da tarde, depois de desistirmos de encontrar uma

estação de serviço na Índia, decidimos parar num espécie de tenda à berma da

estrada. Compramos bananas, coca-cola e arriscamos uns salgadinhos que se

revelaram picantes. Estávamos a morrer de fome mas não conseguimos arriscar

o que fumegava dentro dos grandes tachos de alumínio.

O Balú, esse comia refastelado, uma espécie de tortilha que cheirava a suor

de estivador e perguntou se queríamos chá (perguntar aqui significa mandar a

palavra Chai para o ar) ao qual nós perguntámos se o Chai era com água fervida,

porque de outra maneira não queríamos. Passados dez minutos, o dono da

tenda traz-nos um jarro. Nós provamos e olhamos uma para a outra, olhamos

para eles, e eles olham para nós um segundo antes de se escangalharem a rir. Os

Deuses devem estar loucos e não é que eles nos serviram água fervida! Bananas,

coca-cola e água fervida. Estava a correr bem!

A viagem de carro lá continuou sempre em frente. A mim não paravam de

me nascer considerações preconceituosas começadas por “os indianos são isto,

os indianos são aquilo” ao mesmo tempo que tentava respirar cada segundo que

passava, cada metro percorrido. Tudo aquilo me sabia a Vida por todos os lados.

Mais não fosse porque cada vez que o Balú fazia uma ultrapassagem, parecia

que ia ser a última.

“Uau, Rita olha um deus gigante!”, Balú segue o meu entusiasmo e diz “Holly

Place, will return” e ainda cantou umas sílabas, que eu logo procurei no Lonely

Planet mas não consegui decifrar. Mas se íamos voltar não era grave. Oh, não

pensem que estávamos perdidas! Nós sabíamos muito bem que estávamos a ir

para Norte. Começava a estar mais frio e a paisagem assemelhava-se tanto a

Sintra que já delirávamos por queijadas! De repente as pessoas tinham

desaparecido e tudo aquilo era uma imensa floresta verdejante, Mami e Rita

boquiabertas constatam que a Índia é de facto magnífica. Ainda não tínhamos

digerido a frescura do eucalipto e já estamos a ver dezenas de pessoas a viver

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por baixo da ponte no leito seco de um rio. Confesso que só fixamos este

pormenor porque tivemos que ficar paradas meia hora para o comboio passar. E

que comboio gigantesco, com gente a sair pelas costuras, será que era naquilo

que íamos ter que andar?

Não perdemos tempo demais nesta questão até porque outras nos

afligiam, mais propriamente quando é que aquilo acabava para podermos ir à

casa de banho. Como manda a tradição, a última hora foi a que custou mais,

sobretudo porque o nosso driver não conseguia chegar onde queria e ia-se

perdendo por becos e ruelas de horror. Nós já revirávamos os olhos pensando

“onde é que estes gajos nos vieram enfiar agora?” até que finalmente parámos

em frente a um larguinho com uma bizarra estátuazinha às cores, segundo a

estética-Dragon-Ball.

“Ah bom que delicia de vilazinha, sim senhora…” pensamos nós enquanto

entrávamos para uma sinistra guest house num estilo-piscinas-municipais. Ao

fazermos o check in percebemos que aquele palácio só nos estava a custar 500Rs

por noite, mas então para onde é que ia o dinheiro todo que eles nos pediram

para pagar? Pensámos nós intrigadas…

O indiano de serviço deu-nos a chaves do quarto e lá fomos nós explorar

as imediações. Confesso que nada naquela entrada nos prepararia para a visão

celestial que tivemos ao chegar ao nosso quarto. Não pelo quarto em si, que

mais parecia a suite do “Quem quer ser pobrezinho?” com os lençóis mais sujos

que já vi na vida. Mas pela vista esplendorosa que tínhamos da varanda do

mesmo…

Chegar a Rishikesh ao pôr-do-sol é qualquer coisa como chegar à cozinha

quando o bolo acabou de sair do forno. Divinal! À vossa frente, uma parede

verde de montanhas que nascem do rio e se estendem até ao céu, os Himalaias

como eu nunca imaginei ver. No meio deles crescem templos cor de laranja

construídos em patamares e encimados por torres. Destes sai o som de mil sinos

que se misturam com os mantras Hare-Krisnha dos Ahsrams à nossa volta. Uma

ponte suspensa à Indiana Jones liga as duas margens, e pessoas, vacas, burros e

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alguns macacos atravessam-na embalados. De repente escurece e fica uma

névoa no ar que atravessa as pequenas luzes e dá aquilo tudo um ar ancestral.

De súbito, ouvi-me a mim própria respirar. Não há trânsito, nem barulho de

buzinas. Só uma paz imensa de quem se prepara para rezar.

“Não, não quero Marijuana, obrigadinha.”

O que é que querem? A Índia é assim! Num minuto estou a meditar sobre

a Beleza (com letra grande e tudo) do cosmos e no minuto a seguir estou a

despachar um irlandês de cabelo comprido que nos convida para um “cafezinho

com bom ambiente onde a malta pode fumar umas drogas e tal.” Mas já lá

iremos.

Depois de passarmos uma magnífica meia hora sentadas na varanda a

tiritar de frio mas felizes, como só uma figurinha de presépio se pode sentir no

meio de musgo e chocolate, decidimos enfrentar a realidade da nossa

acomodação. “Isto é na boa, é como ir acampar” alivia a Rita com aquele sorriso

de quem lava os dentes de meia em meia hora. “Pois, é pena é não haver saco de

cama para todo o acampamento” resmungo eu a olhar para as nódoas nos

lençóis, que têm tantos borbotos que parecem de veludo.

“Isto não pode ser assim, vou pedir uns lençóis lavados e uns cobertores.”

Volto passados dez minutos com mais um par de lençóis tão lavados

como os primeiros e com cara de quem já não se importava muito com nada,

desde que não apanhasse lepra.

Às 8 da noite estávamos a jantar no restaurante vegi do hotel. Foi mais ou

menos quando começámos a perceber que naquela terra se passava uma coisa

muito estranha, como aliás não podia deixar de ser. Gentes levitavam no que

pareciam pijamas e lençóis. Alemães e holandeses brotavam, um pouco por todo

o lado, em vestes brancas de algodão, corados que nem morangos. Pantufas e

chinelos recebiam fofas meias de neve. Eu e a Rita cruzamos o nosso (já)

costumeiro olhar de incredulidade, espreitando por cima da fumegante sopa de

tomate a 30 Rs (aproveito para dizer que desde que tínhamos dado o dinheiro

ao Prince andávamos em contenção de custos e não há nada que aqueça mais a

alma de um pobre que a bela sopinha da avó.)

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A Rita estava feliz da vida e atacou uma italianada qualquer enquanto eu

fui tentar passar as fotos da máquina para a pen que tinha trazido. Estava eu

muito bem a tentar fugir do facto da bela maquina ter passado o seu tradicional

vírus para o pobre computador de Rishikesh, que agora se desligava e acendia

com vontade própria quando dou por mim a responder ao irlandeszito, vestido

com o que parecia um manto à Senhor dos Anéis e com ar de quem andava há

anos para chegar a Mordor.

“Ah e tal, esta terra é uma seca, são 8 da noite e já está tudo fechado. Não

querem vir comigo ali para o café. Tenho aqui Marijuana e tal.” Oh senhores, se

eu depois da espartana sopa de tomate fumasse alguma coisa, nem a forte

tromba de Ganesh me levantaria do chão. Recusei com delicadeza respondendo

que estava ali para uma quest espiritual sem aditivos e que a única coisa que eu

ia tomar naquela noite era Atarax, para convocar o João Pestana, mas que ele

não desesperasse, pois talvez o destino nos juntasse noutro dia.

Já ia a sair quando alguém grita “Mas o que raio se passa com este

computador?” a Rita puxa-me para dentro numa de ir ver o email e percebe pelo

meu olhar culpado que se calhar é melhor ficar para outro dia também.

São onze da noite e já estou a dormir profundamente, bendito Atarax.

Debaixo dos lençóis encardidos e dos cobertores puídos ainda calcei as meias da

neve, vesti as duas camisolas que tinha trazido e o casaco. Só não vesti a mochila

porque não cabia em lado nenhum. Ou seja, depois de ter estado o dia todo em

pijama, fui para a cama vestida com tudo o que tinha (?!) Apesar disso adormeci

estranhamente feliz. Quem diria que os pés frios aqueciam a alma…