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CHAVES HERMENÊUTICAS PARA O ESTUDO DO FENÔMENO “FEITIÇO” A primeira afirmação que podemos fazer sobre o fenómeno do feitiço sublinha o aspecto da sua complexidade. De facto, o feitiço e a cosmovisão cultural em que se manifesta são realidades complexas. No âmbito da antropologia a realidade do feitiço representa uma das linhas de investigação possivelmente mais precisadas de estudos científicos que contribuam a uma apresentação o mais objectiva possível da sua fenomenologia. Estudos deste tipo abundam mas na sua maioria carecem de dimensões que permitam dar critérios globais e abrangentes do fenómeno; trata-se quase sempre de estudos relativos a determinadas realidades sócio-culturais, delimitadas no espaço e no tempo… Porém é possível estabelecer certos critérios interpretativos, indutivamente delineados a partir do confronto entre diferentes estudos particulares. Desde esta perspectiva oferecemos as seguintes contribuições para a reflexão ulterior. Para determinadas sociedades que vivem a evolução acelerada dos estádios da consciência, esta reflexão é tanto mais urgente quanto a presença do fenómeno do feitiço e da feitiçaria é indiscutível. Não se duvidará que no presente contexto da sociedade angolana, estamos de facto imersos nesta evolução cultural que para muitos tem o carácter de crise. A este respeito gostaria de propor de antemão algumas ideias prévias em jeito de prólogo para esta reflexão: 1. A noção de cultura como sistema aberto. A antropologia cultural define os sistemas culturais como sistemas evolutivos que permanecem abertos às influências e à fecundação de outros sistemas. A matriz cultural é uma mas constantemente provocada pelo encontro inter cultural e necessitada por isso mesmo de reinterpretação e adaptação contínuas. Esta ideia prévia imuniza contra puritanismos culturais, por uma parte, e percas absolutas de identidade cultural, por outra. Neste sentido toda cultura exige o respeito pela sua originalidade e a sua interpretação deverá caminhar para a afirmação da identidade e não para a sua eliminação. Haverá que orientar esta afirmação desde a crítica positiva dos resultados da reflexão antropológica contemporânea. 2. A peculiaridade do processo histórico angolano: a sociedade angolana vê-se impulsionada para o 1

Chaves Hermenêuticas Sobre o Feitiço

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CHAVES HERMENUTICAS SOBRE O FENMENO FEITIO

CHAVES HERMENUTICAS PARA O ESTUDO DO FENMENO FEITIOA primeira afirmao que podemos fazer sobre o fenmeno do feitio sublinha o aspecto da sua complexidade. De facto, o feitio e a cosmoviso cultural em que se manifesta so realidades complexas. No mbito da antropologia a realidade do feitio representa uma das linhas de investigao possivelmente mais precisadas de estudos cientficos que contribuam a uma apresentao o mais objectiva possvel da sua fenomenologia. Estudos deste tipo abundam mas na sua maioria carecem de dimenses que permitam dar critrios globais e abrangentes do fenmeno; trata-se quase sempre de estudos relativos a determinadas realidades scio-culturais, delimitadas no espao e no tempo Porm possvel estabelecer certos critrios interpretativos, indutivamente delineados a partir do confronto entre diferentes estudos particulares. Desde esta perspectiva oferecemos as seguintes contribuies para a reflexo ulterior. Para determinadas sociedades que vivem a evoluo acelerada dos estdios da conscincia, esta reflexo tanto mais urgente quanto a presena do fenmeno do feitio e da feitiaria indiscutvel. No se duvidar que no presente contexto da sociedade angolana, estamos de facto imersos nesta evoluo cultural que para muitos tem o carcter de crise. A este respeito gostaria de propor de antemo algumas ideias prvias em jeito de prlogo para esta reflexo:

1. A noo de cultura como sistema aberto. A antropologia cultural define os sistemas culturais como sistemas evolutivos que permanecem abertos s influncias e fecundao de outros sistemas. A matriz cultural uma mas constantemente provocada pelo encontro inter cultural e necessitada por isso mesmo de reinterpretao e adaptao contnuas. Esta ideia prvia imuniza contra puritanismos culturais, por uma parte, e percas absolutas de identidade cultural, por outra. Neste sentido toda cultura exige o respeito pela sua originalidade e a sua interpretao dever caminhar para a afirmao da identidade e no para a sua eliminao. Haver que orientar esta afirmao desde a crtica positiva dos resultados da reflexo antropolgica contempornea.2. A peculiaridade do processo histrico angolano: a sociedade angolana v-se impulsionada para o desenvolvimento ps-moderno, no espelho das sociedades desenvolvidas da Europa e dos Estados Unidos; mas neste processo nota-se a ausncia daquilo que significou a modernidade para essas sociedades que esto a servir de padres de desenvolvimento. Esta peculiaridade tem consequncias de ordem social e poltica iniludveis. Neste sentido no se pode esquecer a predominncia do paradigma cientfico-tcnico e da sua racionalidade que funcionam como cenrio dos dinamismos da ps-modernidade e que esto baseados na negao objectiva dos considerados pseudo sistemas significantes: isto , sistemas religiosos, tradicionais, culturais Sistemas, todos estes, cuja funo originria era a criao de sentido e de identidade. Com o qual, paradoxalmente, o dinamismo cientfico que se levantara como impulso emancipador e libertador do homem, resulta agora em dinamismo de negao e eliminao da identidade deste homem que pretendia defender. 3. A morte da memria. No podemos esquecer que a fenomenologia da sociedade angolana tem um referente comum nos processos de colonizao e descolonizao que afectaram a muitas sociedades e culturas. A pretenso claramente substitutiva dos colonizadores com respeito sociedade e cultura patente em todos estes processos histricos. Sabemos que a colonizao em Angola no se fez desde um respeito e uma compreenso das culturas e tradies. A presena colonialista significava uma imposio de estruturas sociais, novas tradies e cultura, rejeitando-se tudo aquilo que provinha do mundo tradicional indgena. Isto sups uma morte progressiva da memria tradicional e cultural. Para o colono era relativamente fcil eliminar a teoria, mas no era to fcil conseguir evitar e eliminar as prticas que de facto nunca desapareceram. Morta a memria terica dos rituais antigos facilmente a prtica se perverte, realizando-se longe dos contedos originais que a justificavam. No fenmeno feitio nos encontramos certamente neste caso: uma prtica simblica privada da teoria que a justificava aproveita facilmente outras justificaes provindas dos medos psicolgicos e das pulses mais bsicas do ser humano. 4. O debate antropolgico deve situar-se numa perspectiva fenomenolgica e no ontolgica. A realidade da feitiaria delineia-se conceptualmente como realidade antropolgica existente de facto: afecta ao homem e sociedade, configurando-os desde diferentes aspectos. Uma outra questo o valor metafsico ou ontolgico desta realidade que no nos permitido afirmar ou negar. A realidade do feitio existe fenomenologicamente mas a sua realidade intrnseca um facto de crena subjectiva, no valorizvel categorialmente. Que tal crena se situe no mbito das perverses psicolgicas uma valorizao que se pode fazer com fundamento, mas no se delineia numa perspectiva metafsica. A discusso sobre o fenmeno do feitio no se pode colocar em termos ontolgico-metafsicos; a filosofia contempornea sabe muito bem que no pode afirmar ou negar as realidades que ficam alm do mbito do categorial. A questo sobre o feitio dever colocar-se, fenomenolgica e filosoficamente, desde a vocao libertadora e humanizadora que caracterizou desde sempre a reflexo sobre o homem; nesta perspectiva a pergunta decisiva dever provocar a investigao do fenmeno em vistas a descobrir seu valor libertador e humanizador, se realmente o possui. O fenmeno em si dever ser criticado, purificado e, no caso, combatido e eliminado, se da anlise que fizermos dele as concluses manifestassem tal fenmeno como contrrio ao homem e alienador da sua identidade; mas se desta anlise as concluses determinassem aspectos positivos, no sentido de humanizadores e libertadores da pessoa humana, haveria ento que defender e proteger tais aspectos como patrimnio cultural e de identidade. Algumas luzes sobre a origem do fenmenoAnte tudo devemos tomar conscincia da relatividade dos estudos que pretendem isolar as causas de realidades to complexas e envolvidas de misteriosidade e obscurantismo. As mais das vezes tais estudos so pouco eficazes e desnecessrios. Perante realidades como o Feitio a atitude mais apropriada a responsabilidade pelas suas consequncias. No adianta tentar combater com as armas que so precisamente as de mais sucesso na dinmica do prprio fenmeno. A procura de culpados insere-nos numa dinmica estril que no soluciona o problema e parece alimentar certa conivncia com o mesmo fenmeno. A sociedade deve ser ajudada a perceber que o fenmeno do feitio responde evoluo da conscincia que ela faz de si mesma, e esta evoluo lenta e depende de muitos factores ligados. Digamos de antemo que a problemtica que queremos enfrentar encontra no desafio da educao e da formao o seu lugar prprio. Porm, algumas perspectivas sobre a origem, a partir das recentes investigaes da Antropologia podem resultar iluminadoras.

Em primeiro lugar podemos afirmar hoje que o fenmeno do feitio tem uma origem fundamentalmente social. A pretendida origem religiosa carece de fundamentos antropolgicos e culturais decisivos. O conceito de religio supe um desenvolvimento lgico que a conscincia mgico-ritual originria das sociedades no conhece. O fenmeno do feitio enraza na cosmoviso da conscincia mgico-ritual que possibilita ao homem uma primeira organizao social e os posteriores desenvolvimentos da multidimensionalidade da mesma conscincia. Neste sentido no podemos esquecer que a dinmica mais genuna da feitiaria carece de desenvolvimento lgico e dever por tanto ser enfrentada como tal. Na antropologia cultural a fenomenologia da magia e do ritualismo corresponde esta realidade que enfrentamos como feitiaria. As religies, como hoje as entendemos, seriam j desenvolvimentos do logos, originariamente descritos como Teologias. Devemos ter em conta que a investigao actual do surgimento e evoluo da conscincia humana no determina fases diferentes e excludentes da mesma conscincia. geralmente admitida a teoria das inteligncias mltiplas que explica a progressiva evoluo da multidimensionalidade da conscincia humana. Deste modo a dimenso mgica e ritual da conscincia no eliminada na evoluo da mesma. Que a conscincia lgica se impusesse conscincia mgica e ritual e conscincia mtica apenas um facto de dominncia determinado pelas condies exteriores. Podemos estabelecer a origem da feitiaria na necessidade de organizao social que manifestavam as sociedades mgico-rituais. O princpio de articulao desta organizao encontrava-se na Fora ou Poder Originrio que cada cultura nomeia de maneira prpria. As sociedades originrias organizam-se segundo poderes ou foras, fundamentalmente funcionais para o mbito social, derivados deste poder originrio. Este dinamismo denomina-se, em Antropologia, totemizao social. A organizao primeira das sociedades humanas explica-se assim como uma sintaxe do poder. Os Totems ou foras funcionais respondem organizao social para a sobrevivncia e subsistncia do grupo humano. Totemizam-se foras vitais de subsistncia do grupo: a caa, a pesca, a defesa, a fecundidade, os privilgios, a sade Tais foras so invocadas para o fim social. Aqui estaria a origem do feitio: a necessidade de proteco, de impulso, de defesa, de bom sucesso invocando a Fora originria nos Totems determinados para uma funo social especfica. Os grupos e os homens eram marcados, identificados, com um Totem determinado que fazia desse grupo uma linhagem dedicada caa, pesca, defesa da triboCertamente que esta totemizao fundamentalmente social exprime j um primeiro estdio de conscincia religiosa, pois articula uma primignia relao com o misterioso entendido como desconhecido e enigmtico. Mas esta relacionalidade dista de ser religiosa no sentido que hoje entendemos. Trata-se de uma possibilidade especificamente humana que est na raiz do desenvolvimento da conscincia e que pretende principalmente um apoderamento objectivo da realidade enigmtica que foge ainda prpria conscincia. Tal apoderamento realiza-se como significao, isto , como vinculao de significante e significado a partir da qual a conscincia inicia seu domnio sobre o real. A totemizao social inaugura uma dupla dimenso da conscincia: uma dimenso organizativa como conscincia poltica e uma dimenso ritual, como conscincia incipientemente religiosa, que ritualiza a realidade enigmtica para o apoderamento da mesma pela prpria conscincia. Mas esta conscincia ritual fundamentalmente mgica e no ainda religiosa, pois a dimenso religiosa exigir o plano da representao abstracta e o reconhecimento da interioridade como responsabilidade pessoal que assume os ritos ligando-os aos contedos verbais de uma teologia. Delineamento Crtico do fenmenoPossivelmente esta raiz social do fenmeno da feitiaria explique muitas das prticas que actualmente continuam vigentes. Os rituais de circunciso, por exemplo, respondem a esta necessidade de ser marcado e poder iniciar uma funo social reconhecida. Neste sentido qualquer estudo sobre a realidade antropolgica nas sociedades mgico-rituais encontrar aqui um critrio fundamental de compreenso do homem. A dificuldade para assimilar a perspectiva subjectiva manifesta neste tipo de sociedades. Na presente reflexo o conceito de feitiaria no corresponde apenas uma prtica determinada de certas sociedades mas a uma cosmoviso, uma configurao genuna de conscincia mtica que, no contexto actual angolano, enfrenta a evoluo de si mesma no confronto com a conscincia lgica determinante das sociedades desenvolvidas. Num dos pontos prvios referamos este conflito que caracteriza a evoluo acelerada da conscincia e que explicita tambm a actual crise de cultura. Neste sentido importante salientar que o conflito determinante joga com cosmovises abrangentes, configuraes globais prprias da conscincia mtica e mgico-ritual, e no com simples comportamentos ou fenmenos de conduta. O valor que a Modernidade teve na transio das sociedades desenvolvidas foi de facto um valor de traduo simblica, de progressiva secularizao e substituio cultural, que preparou suficientemente a passagem de conscincia. Mas no esqueamos que foram precisos vrios sculos para isso. Oportunidade que no est a se permitir em sociedades no desenvolvidas, como a angolana. Para alm, o processo desmitificador prprio das sociedades europeias foi facilitado precisamente pela progressiva inculturao do cristianismo no Paganismo, de maneira que a cosmoviso crist ofereceu-se como substitutiva das cosmovises pags. Sem uma tal substituio a evoluo no teria sido possvel num processo unitrio de progresso como tem acontecido em Europa. No caso europeu claro que o desenvolvimento, na sua forma actual, inicia quando a conscincia de emancipao do homem e a mensagem de autonomia e de libertao crist se impem como conscincia social que se decide definitivamente contra todos os resduos mticos e alienadores. Revolta esta que paradoxalmente acontece tambm contra a mesma conscincia crist que a proclamava. Mas a conscincia autnoma que se manifestava nos sculos XVIII e XIX precisou de um amadurecimento lento, at o momento em que a sintaxe do poder descobriu-se na prpria capacidade da conscincia lgica que verdadeiramente configura a realidade. E pode faze-lo para o seu bem e o seu desenvolvimento, mas tambm para a sua destruio. Desde esta perspectiva a filosofia contribuiu decisivamente para a crtica social e histrica, recordando s sociedades actuais a sua configurao por e para o homem, e desde aqui tambm possvel iluminar as condies de outras sociedades que vivem o processo de desenvolvimento. Ao enfrentarmos o fenmeno da conscincia mgico ritual presente no feitio na sociedade angolana no deveramos deixar de referir o processo j acontecido em Europa. A evoluo no possvel sem a substituio necessria, pois a conscincia no consegue viver sem os smbolos da identidade. Deveramos ter em conta que um dos resultados do chamado desenvolvimento em Europa tambm a despersonalizao, consequncia da morte do sentido. Europa est a esquecer as suas razes de sentido. E por tanto a viragem cega e acrtica para o modelo de desenvolvimento das sociedades ditas desenvolvidas no pode ser acertada. Isto exigir procurar nos universos simblicos da tradio e da cultura, isto na cosmoviso mgico ritual, elementos de identidade que verdadeiramente humanizem, e que com certeza haver. Salientamos aqui especialmente a mencionada morte da memria que estaria na raiz da perverso do fenmeno da feitiaria. A procura desta memria faz-se hoje imprescindvel. Para qualquer mbito de reflexo que exige responsabilidade social, poltica, tica ou religiosa. Elementos vigentes na realidade actual exigem estes esclarecimentos. So tarefa fundamental dos educadores e formadores. Desde qualquer perspectiva o horizonte s pode ser o mesmo: a dignidade, a humanizao e a afirmao da identidade do homem, de cada homem e de qualquer homem. A investigao sobre o fenmeno do feitio no pode ser feita apenas desde uma perspectiva, pois como configurao manifesta em determinadas realidades sociais e humanas afecta todas as dimenses em jogo do desenvolvimento humano. Como fenmeno social e antropolgico exige o estudo do seu dinamismo intrnseco e extrnseco, estudo possvel para o mbito das cincias humanas. O interesse fundamental pretender descobrir, no possvel, o ponto de perverso que o torna em prtica desumana, alienadora e destruidora. E neste ponto haver que fornecer uma substituio, respeitando o processo de evoluo da conscincia, purificar ou at eliminar. Mas aqui est o desafio fundamental de toda a tarefa pedaggica e educativa. Evangelizao e Feitiaria: luzes para o dilogoO posicionamento oficial da Igreja Catlica frente ao fenmeno do feitio claro. Interpreta-se como fenmeno de superstio, como excesso perverso de religio e como vcio. O Catecismo da Igreja Catlica coloca a fenomenologia do feitio em relao violao do culto devido ao nico Deus e Senhor.No se trata de uma negao ao nvel ontolgico mas de uma denncia da perverso psicolgica que aliena ao homem que pratica a feitiaria. Salienta-se em primeiro lugar a manipulao materialista das prticas religiosas ou pseudo-religiosas, ao atribuir uma importncia mgica orao ou aos sinais sacramentais. Esta atitude manifesta a perverso supersticiosa do sentimento religioso. O posicionamento da Igreja no condena o sentimento religioso do corao humano, mas a sua perverso. A religio expressa uma afirmao da autonomia e da liberdade do homem e nunca se justifica como desumanizao. Esta perspectiva humanizadora da religio sublinhada repetidas vezes pela doutrina catlica: de facto, a vida humana unifica-se, isto , realiza-se e alcana sua plenitude, na adorao ao Deus nico. Desde esta atitude o homem salvo da disperso ilimitada que provocam as perverses do sentimento religioso. Desde o delineamento que apresentamos nesta reflexo queremos colocar a dimenso religiosa como experincia verdadeiramente nova para o homem. Uma linha de continuidade da experincia mgico-ritual das sociedades totmicas e da experincia crist no se sustenta na realidade dos factos. Recordamos aqui que a fenomenologia das sociedades totmicas no se pode caracterizar propriamente como religiosa. A experincia verdadeiramente religiosa rejeita atitudes de manipulao e de fatalismo e coloca na dignidade e na libertao ao homem religioso. Podemos afirmar que a chave que pode abrir toda esta problemtica para uma soluo digna do homem est na proclamao do Evangelho como experincia nova e libertadora para o homem. A tarefa evangelizadora pois a tarefa fundamental para o homem angolano que vive a crise da sua cultura. Poderemos salvar e defender alguns aspectos culturais e tradicionais porque afirmam ao homem, mas no ser possvel identifica-los com aquilo que significa a experincia verdadeiramente crist, que ser sempre uma possibilidade nova de liberdade e identidade para o homem. Nenhuma realidade cultural pode ser identificada ao Evangelho que se delineia como possibilidade escatolgica e soteriolgica, no assimilvel a nenhuma experincia concreta e limitada, sempre crtica com qualquer realizao histrica.

No pretendemos aqui rejeitar o valor cultural da tradio ou tradies genunas nas quais se vive e pratica o feitio, mas apenas negar o seu valor religioso. A antropologia cultural, como tentamos demonstrar, definiu a etiologia fundamentalmente social do feitio. Se hoje permanece envolvido por um carcter pseudo-religioso por perverso do seu sentido. A prtica social do feitio responde afirmao e legitimao do poder que se acha prprio, necessitado de proteco e defesa e manipulado para os prprios interesses. E esta necessidade justifica indevidamente qualquer meio. A Igreja Catlica reconhece que a prtica do feitio revela, j no a presena de poderes superiores ao homem, mas a realidade fctica do mal e do seu dinamismo de destruio e de morte. Este dinamismo, aproveitando elementos da conscincia mgico ritual, como as disposies para a alienao e para o fatalismo, manifesta na realidade social o seu poder de negao do homem.

A proposta evanglica coloca-se como possibilidade de uma experincia antropolgica e social de carcter novo, pois orienta o homem e a sociedade para uma experincia que exige uma transcendncia da histria concreta para a histria de salvao revelada por Jesus Cristo. O sentimento natural de religao ao Absoluto no negado mas no se pode identificar com a fenomenologia do feitio. A mensagem evanglica vem responder a este desejo ontolgico do homem libertando-o das perverses manifestas em que pode ficar alienado.

A Teologia, alicerada na Filosofia, no pode descuidar o horizonte humanizador da sua reflexo, horizonte de maior exigncia desde a verdadeira compreenso do Evangelho. J na viso dos Santos Padres a Teologia realiza-se na plenitude da Antropologia, pois a Glria de Deus a vida do homem (Sto Ireneu). A religio crist situa assim a responsabilidade da vida e da realidade na autonomia da conscincia subjectiva e livre que o primeiro sacramento da presena de Deus no homem. A libertao do homem realiza-se na coerncia do agir, pensar e sentir, em si mesmo e em deus, pela confiana e pela responsabilidade da f. Conduzir o homem exige-nos em primeiro lugar acompanha-lo no reconhecimento da sua inviolabilidade consciente, essa conscincia necessitada de libertao e chamada a ser na responsabilidade pela prpria vida e pela vida dos outros. E desde este reconhecimento o homem poder ser enfrentado ao prottipo do homem, Cristo Jesus, plenitude e realizao da responsabilidade de ser, e convidado percorrer o caminho evanglico da confiana e do respeito para com o Deus que afirma e protege a dignidade de cada homem colaborando para a sua realizao e plenitude verdadeiramente humanas. O discernimento fundamental perante o fenmeno do feitio leva-nos a defender e proteger aquilo que na cosmoviso mgico ritual persistente entre o povo afirma e humaniza, e a rejeitar e combater aquilo que nega e desumaniza. Na tarefa evangelizadora somos urgidos a caminhar pedagogicamente, acompanhando a cada pessoa no descobrimento e reconhecimento do seu mistrio inviolvel, na sua conscincia e liberdade responsvel, e orientando para Cristo, imagem perfeita de todo homem. Neste sentido se colocam as crticas de M.Henri cosmoviso cientfico-tcnica contempornea: cfr. La Barbrie, Caparrs, 1992, Madrid...

O debate do valor religioso das chamadas religies animistas continua aberto; no resulta fcil precisamente pela morte da memria a que nos referimos neste estudo. Para muitos, porm, questionvel dar aos comportamentos pretendidamente religiosos de algumas sociedades mais arcaicas o valor de religies; tratar-se-ia mais de comportamentos de identidade social e funcional prprios da conscincia mgico-ritual.

Para a Antropologia Cultural os conceitos de magia e de feitiaria seriam simplesmente sinnimos.

Desconheo se tal poder tambm nomeado na cultura Banto. Seria interessante o estudo cultural desde esta perspectiva. Os antroplogos encontram-no nomeado em certas tribos da Polinsia como Mana Neste sentido o estudo lingustico exige-se como prioritrio.

A conscincia mgico ritual inclui aspectos diversos como a linguagem, os rituais totmicos, a signao dos tempos (chuva/seca), das idades (nascimento, infncia, juventude, velhice, morte), as prticas de caa, pesca, de organizao social, a medicina

Pensemos no apelo que a Igreja catlica est a fazer para a conscincia europeia

Cfr. CIC, nn. 2110-2120

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