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A LEVEZA Leituras de Italo Calvino DO TEXTO Cid SeixaS e-book.br EDITORA UNIVERSITÁRIA DO LIVRO DIGITAL https://issuu.com/e-book.br/docs/calvino

Cid SeixaS A LEVEZA DO TEXTOcid seixas 8 coleção e-poket anos, de 19 de setembro de 1994 a 9 de novembro de 1998. Por ordem de publicação, eis as resenhas que serviram de pretexto

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  • A LEVEZA

    Leituras de Italo CalvinoDO TEXTO

    Cid SeixaS

    e-book.brEDITORA UNIVERSITÁRIA

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  • Os livros eletrôni-cos da coleção E-Poket, conforme o tí-tulo já indica, têmcomo característica otamanho reduzido,similar às pequenascoleções de bolso,lembrando, pelo nú-mero de páginas, asantigas plaquetes im-pressas. No caso pre-sente, o formato e-poket foi desenvolvi-do para ser lido, comtodo conforto visual,em celulares e outrosequipamentos de te-las com tamanho di-minuto.

    A Leveza do Textoquer dar conta de al-guns aspectos dopensamento críticode Italo Calvino e departe da sua criaçãoromanesca.

  • Cid Seixas

    A LEVEZADO TEXTO

    e-book.brEDITORA UNIVERSITÁRIA

    DO L IV RO DIGITAL

    Leituras de Italo Calvino

  • CONSELHO EDITORIAL:Cid Seixas (UFBA | UEFS)

    Dante Lucchesi (UFF)Gildeci de Oliveira Leite (UNEB)

    Moanna Brito (UFBA)

    Endereços deste e-book:issuu.com/e-book.br/docs/calvinolinguagens.ufba.br/2020/calvino

    e-book.uefs.br

    Fonte: Gatineau 13Formato: 10 x 17 cm

    Número de páginas: 52Salvador, 2020

    coleçãoe-poket

  • Duas palavras,página 7

    A sustentável leveza do texto,página 9

    A ausência,página 17

    Partes e propostas,página 23

    Perseu e Medusa,página 31

    SUMÁRIO

  • cid seixas

    6 coleção e-poket

    Um cavaleiro da contramão,página 39

    Referênciase Bibliografia não citada,

    página 49

  • a leveza do texto

    e- book.br 7

    O texto que agora ganha formade um livrinho eletrônico da ColeçãoE-poket foi apresentado ao Ciclo ÍtaloCalvino, constituído por uma série depalestras programadas pela livrariaCentro Cultural Grandes Autores, deSavador, no període compreendidoentre os dias 10 a 24 de novembrode 1998.

    Apesar da natureza oral do texto,destinado a uma discussão pública,ele retoma e amplia o material de duasresenhas críticas da coluna de jormalque mantivemos por cinco anos

    DUAS PALAVRAS

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    8 coleção e-poket

    anos, de 19 de setembro de 1994 a 9de novembro de 1998.

    Por ordem de publicação, eis asresenhas que serviram de pretexto –e suas referências:

    1) “Maniqueísmo ou partido”; tex-to sobre o romance O viscondepartido ao meio, de Italo Calvino.Coluna “Leitura Crítica” do jornal ATarde, Salvador, 24 de fevereiro de1997, Caderno 2, p. 7.

    (2) “Escritas indecifráveis”; resenhacrítica do livro Seis propostas para opróximo milênio, de Italo Calvino.Coluna “Leitura Crítica” do jornal ATarde, Salvador, 19 de outubro de1998, Caderno 2, p. 7.

  • a leveza do texto

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    Ezra Pound e T. S Eliot, com suasideias gêmeas, com suas (usemos aexpressão de Goethe) afinidadeseletivas, sugeriam que para ser críti-co de poesia seria necessário ser po-eta. Daí se deduziria também quepara ser professor de literatura serianecessário ser escritor. Mas já se dis-se que, em matéria de literatura eoutras artes, quem sabe faz; quemnão sabe ensina. Analogamente,quem não pode criar, ou transmudarem palavras a magia do invento, fazcrítica.

    A SUSTENTÁVELLEVEZA DO TEXTO

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    10 coleção e-poket

    Ponhamos a questão: O bom crí-tico será, necessariamente, o bompoeta? Ou invertamos a pergunta,sutilmente adulterada: o bom poetaserá, fundamentalmente, um bomcrítico?

    Se coubesse a mim responder aestas perguntas, eu responderia não,a todas elas. O bom crítico não será,necessariamente, um bom poeta. Obom poeta não será, consequente-mente, um bom crítico. Pound, Eliotou qualquer outro criador e pensa-dor da literatura, por mais compe-tente e respeitado que seja, pode es-tar equivocado ao assegurar que aboa crítica é um atributo do bom cri-ador.

    Diante do ponto de vista radicalde dois expoentes consagrados, am-bos poetas e críticos, conviria quepropuséssemos, mesmo sem qual-quer autoridade, o contrário. O que

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    se vê é que o bom poeta é, quasesempre, um crítico parcial. Sua obra éerigida à condição de exemplardefinidor do cânone. Todo processocriativo que contrarie essa vertente seránecessariamente desacreditada pelaperspectiva do autor.

    Se deixarmos de lado o delíriocientificista do mundo acadêmico (aoqual pertenço e com o qual deliro)veremos que a crítica não é, nempoderá ser, nunca, uma ciência. É,antes, uma arte, assim como o seuobjeto – a Literatura.

    Longe de mim negar a chamadaCiência da Literatura, que se consti-tui como teoria, como saber rigoro-so e sistematicamente ordenado so-bre a arte literária. Por outro lado, éevidente que há uma diferença entrea Ciência ou a Teoria da Literatura ea Crítica Literária, esse jogo de subje-tividades, esse arriscar leituras de

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    12 coleção e-poket

    imprevisíveis juízos e desatinos. Acrítica, esse desvairado ordenamentode palpites, sustentado numa ciên-cia, ou num saber interdisciplinar, pormais objetiva que tente ser, nasce deum atributo do sujeito: o juízo. O atode julgar.

    Quando se trata de crítica, Kantsempre será lembrado. O nome dofilósofo está estreitamente ligado aconceitos e doutrinas como sujeito eidealismo, ambos presentes no im-perativo categórico kantiano: proce-da sempre de tal forma que o princí-pio da sua ação possa ser erigido àcategoria de lei – ou de juízo – uni-versal.

    Nessa perspectiva seria dispensá-vel a existência, fora do sujeito e doseu arbítrio, de uma instância práticacapaz de conduzir o juízo. Existiri-am parâmetros, com objetivos mais

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    ou menos claros, escolhidos e reco-lhidos pelo sujeito.

    Voltemos, então, à relação inces-tuosa da criação com a crítica. Em-bora próximas, nascidas de um mes-mo ovo – que é a literatura –, criação

    e crítica são atividades diferentes, ir-mãs de gêneros diversos. Seuconcubinato poderá gerar frutos de-feituosos. A subjetividade inflada do

    poeta-crítico interfere no seu julga-mento. O grande escritor está con-denado a ser um pequeno crítico.

    No horizonte da modernidade, o

    poeta português Fernando Pessoa,uma das mais completas sínteses detoda uma geração de artistas do sé-culo XX, no dizer do mestre russo

    Roman Jakobson, foi um crítico me-díocre como ousou afirmar, com bemposta propriedade, o estudioso ale-

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    mão Georg Rudolf Lind, admiradordo poeta plural.

    Pessoa julgaria todo texto literárioa partir de um exemplar canônico: asua obra, construção verdadeiramen-te modelar para a leitura das demais

    obras.Observe-se que, em sentido inver-

    so ao caso Fernando Pessoa, amodernidade é pródiga na produção

    de críticos engenhosos e poetas pe-quenos. Escritores de voo rasteiro,incapazes de construir colônias alémdo espaço da razão estabelecida, são

    bons críticos, quando conseguemrastrear as pegadas da criação queeles mesmos não puderam dar vida– a criação dos artistas essenciais.

    As vanguardas do século XX pro-duziram mais manifestos inovadorese revolucionários do que obras de

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    natureza criativa. Os panfletos estéti-cos, quase sempre, resultam de um

    talento crítico prospectivo, tentandosubstituir a ausência de obras de cri-ação capazes de falar por si mesmas.

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    A propósito do livro O vis-conde partido ao meio, Calvinoescreveu uma profissão de féque convém repetir e lembrarsempre que possível: “Pensoque o divertimento seja umacoisa séria.”

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    A AUSÊNCIA

    Até agora, o nome de Italo Calvino– objeto da intervenção aqui propos-ta – não foi mencionado no desen-volvimento de todo o raciocínio. Mas,creiam, eu estava tentando falar deItalo Calvino. Estava pensando emItalo Calvino. Ou melhor, estava ten-tando fazer que todos revíssemos asseis propostas que o escritor italianoquis transformar em legado damodernidade para o novo milênio,como traços da sua própria obraficcional. Ao falar em leveza para che-gar à densidade, as conferências ame-

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    ricanas do romancista nos outorga-ram o legado da sua obra.

    É disso que acabei de falar, ou me-lhor, que comecei a tratar sem pro-nunciar o nome do autor da suíte Osnossos antepassados. Constituída detrês romances, O visconde partido aomeio, O barão nas árvores e O ca-valeiro inexistente, a obra chegou aténós de modo fragmentário, editadaem três volumes. O volume comple-to foi publicado somente em 1998,pela Companhia das Letras.

    A tradução brasileira de O viscon-de partido ao meio, primeira com-posição da suíte, chegou até nós trin-ta e nove anos depois da edição ori-ginal italiana de 1951. O fato é expli-cável porque somente há pouco tem-po o autor alcançou renome inter-nacional e consequente audiência noBrasil. Nosso gosto com relação àarte decorre mais dos reflexos daqui-

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    lo que tem prestígio nos países ditoscentrais do império mundial daintelligentsia mais privilegiada, do quede uma escolha ou de uma preferên-cia intelectual caracteristicamente bra-sileira.

    Apesar de até então desconheci-da do público brasileiro, essa novelaé um dos melhores e mais bemconstruídos textos do autor, que temlugar de destaque na literatura do fimdo século XX por um fato singular: éuma obra comprometida com o pra-zer da leitura. O intuito de divertirprepondera sobre o ético e o social,sem abrir mão desses outros objeti-vos porventura reunidos numa obrade arte.

    A questão é velha: muitos escrito-res e alguns leitores sisudos insistemno caráter pragmático da arte, comose ela tivesse de cumprir uma funçãosocial altamente elevada, que trans-

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    20 coleção e-poket

    cendesse às outras práticas. Como seo artista devesse se investir das atri-buições de pontífice e proclamar ver-dades permanentes.

    Quase todo artista tende a super-valorizar a natureza da sua arte, comose ela fosse a atividade mais impor-tante já concebida pela espécie hu-mana; e alguns insistem nessa para-noia de grandeza a ponto de se jul-garem responsáveis pela conduçãoética de todo o povo.

    Outros artistas são mais humildes,como o brasileiríssimo Jorge Amadoou como Gil Vicente, por exemplo,no caso da cultura portuguesa. Vi-vendo o momento de inquietaçãointelectual que construiu o Renasci-mento, ou a transição do mundomedieval para o mundo moderno, GilVicente, tanto quanto o nosso Ama-do, sabia que o seu teatro deveriaprimeiramente agradar ao público,

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    isso é, divertir a nobreza. Consegui-do esse objetivo, ele poderia tentarvoos mais audaciosos – ridendocastigat mores. A ambição de casti-gar, ou de corrigir, os hábitos, isso é,a moral, estava disfarçada na alego-ria – rindo corrige os costumes. Daí asua eficácia.

    A propósito do livro O viscondepartido ao meio, Calvino escreveuuma profissão de fé que convém re-petir e lembrar sempre que possível:“Penso que o divertimento seja umacoisa séria.” Esse princípio essencial,mas pouco prestigioso, os compene-trados estudiosos da arte sempre es-quecem.

    A partir das lutas entre cristãos eturcos, no século XVII, o autor italia-no constrói a trama do livro, centradana figura de um nobre senhor de ter-ras e gentes. O visconde Medrado DiTerralba, improvisado cavaleiro, arre-

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    mete contra as forças inimigas e équase estilhaçado por um balaço decanhão. Uma parte do visconde érecolhida ao hospital da tropa e, porconta do fantástico ou do maravilho-so, consegue sobreviver com um sóbraço, uma só perna, meia boca eum único olho. “Os médicos, todoscontentes: que maravilha de caso.”

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    PARTESE PROPOSTAS

    Para os moradores de Terralba, amutilação do senhor foi um fato de-sastroso. O lado ruim do visconde éque ficou vivo e voltou aos seus do-mínios. O visconde partido cavalga-va espalhando pânico e terror pelosvales e penhascos, até que os cam-poneses se viram confusos com ascontradições de Medrado. Ora se di-vertia com crueldades, ora fazia o bemde modo surpreendentemente gene-roso. Seria a outra parte do visconde– a boa – que estava de volta?

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    24 coleção e-poket

    As peripécias dos dois senhoresde Terralba dividem os moradores dolugar e divertem o leitor. Divertem, apartir de considerações éticas, políti-cas e práticas, que necessariamenteprecedem o riso provocado.

    Se a nossa cultura, a cultura dasociedade ocidental cristã, se susten-ta numa forma de maniqueísmo ondesó um lado do homem prevalece, nahistória contada por Calvino, o cava-leiro cristão volta da guerra aos tur-cos literalmente partido ao meio.Com o artifício, com essa visibilida-de concreta do abstrato, nosso mun-do fragmentário é exposto de formaexemplar. Nossa crença que o ho-mem é a imagem e semelhança deDeus, com suas virtudes e qualida-des, exige a construção de uma novaespécie de homens onde caibam osvícios e defeitos – são os maus, à se-melhança do Diabo.

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    Assim, repartida e escondida a par-te negada, o homem desconhece asi mesmo (não precisa se reconhe-cer) e, para ter paz, deixa de ver aface obscura do seu ser.

    Ignorada, ela é mais livre para fluir.Sem remorsos.

    Nossa cultura religiosa e moral di-vide os demiurgos e os homens emdivinos e diabólicos, em bons emaus; enquanto a natureza nos faz econstitui a partir do conflito de for-ças opostas. É desse conflito e da suaconsciência social que nasce a esco-lha, a fixação em uma das margensdo rio. A fábula de Calvino cria umabipartição mais insólita ainda do queessa, assegurando a dicotomiamaniqueísta através da divisão físicado personagem e expondo aos nos-sos olhos as insólitas construções quechamamos de “realidade”.

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    A propósito do maniqueísmo, queconstitui a virtude aos olhos da nos-sa formação, podemos ver a clarapercepção da dualidade humana nomundo pagão através da fábula gre-ga de Esopo, conhecida através dosversos latinos de Fedro, cuja sentidoguardo na memória:

    “Júpiter colocou em nós dois al-forges: um, nas costas, com nos-sos próprios defeitos e outro, emfrente ao peito, com os defeitosalheios.

    Por isso não vemos os nossoserros, enquanto censuramos osoutros.”

    A novela O visconde partido aomeio responde a algumas das qualida-des que, no entender desse modernoescritor italiano, a literatura deveria fa-zer transitar da modernidade para a

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    pós-modernidade, ultrapassando osumbrais do milênio que viu nascer oobjeto livro e assistiu à sua crise deresistência para não ser substituído poroutros meios (=media) mais facilita-dores. Ou “outras mídias”, conforme agrafia e a mudança de gênero impos-tas pela mídia brasileira.

    No livro Seis propostas para o pró-ximo milênio, resultante das cincoconferências escritas para a Univer-sidade de Harvard, Italo Calvino res-salta a leveza, a rapidez, a exatidão,a visibilidade e a multiplicidade, nãotendo chegado a desenvolver o sex-to tema: a consistência.

    A primeira característica parececoncentrar todas as outras. Um tex-to leve tem suficiente agilidade paradizer com precisão cada nuance dopensamento; sendo possível projetarimagens, através de palavras, fazen-do com que múltiplas ideias se har-

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    monizem, dando consistência ao

    texto.Veja-se que na passagem acima es-

    tão reunidas, num só conjunto, asseis características do texto: A primei-ra (a leveza) parece concentrar to-

    das as outras. Um texto leve tem su-ficiente agilidade (ou rapidez) para

    dizer com precisão (ou com exati-dão) cada nuance do pensamento;

    sendo possível projetar imagens (oudar visibilidade), através de palavras,

    fazendo com que múltiplas ideias seharmonizem (eis a multiplicidade),

    dando consistência ao texto.Calvino define o primeiro concei-

    to, responsável pelo desencadea-

    mento das demais características tex-tuais: “A leveza para mim está associ-

    ada à precisão e à determinação, nun-ca ao que é vago ou aleatório.”

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    Paul Valéry foi quem disse: “Il fautêtre léger comme l’oiseau, et nomcomme la plume”.

    Ele disse, seguramente, sem usara pronúncia estropiado da minha falade tabaréu do interior da Bahia. Porisso convém que eu repita com aspalavras da nossa língua, fazendouma paráfrase: O pássaro, emboraleve e ágil para flutuar no espaço,cumpre o trajeto pretendido; ao con-trário da pluma que vaga aleatoria-mente.

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    Da Medusa nasce o peso dasestátuas de pedra em que setransformam aqueles que sevoltam para olhar o monstro.Mas do sangue da Medusa, de-cepada pelo herói, tambémnasceu a leveza de Pégaso, ocavalo alado.

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    PERSEUE MEDUSA

    Para ilustrar o seu conceito de le-veza de forma alegórica, dando visi-bilidade às imagens verbais, ItaloCalvino recorre, simultaneamente, àmitologia e à literatura clássica. NasMetamorfoses, de Ovídio, ele vai bus-car as relações entre a agilidade (oua rapidez) de Perseu e a pesada con-denação da Medusa. Todo aquele quemirasse o rosto monstruoso da Me-dusa, com seus cabelos de serpen-tes, seria transformado em estátua desi mesmo, imagem de granito. Esta-ria condenado ao peso eterno dapedra.

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    32 coleção e-poket

    Para vencer o peso da Medusa foinecessária a leveza de Perseu, comsuas sandálias aladas. Leve e rápido,astucioso também, ele evita olhar acabeça do monstro, na hora de cortá-la, orientando-se pela imagemespelhada no seu escudo de bronze.

    Como o mundo é constituído decoisas leves e pesadas também, o mitoensina como é possível retirar levezado que é pesado. Da Medusa nasceo peso das estátuas de pedra em quese transformam aqueles que se vol-tam para olhar o monstro. Mas dosangue da Medusa, decepada peloherói, também nasceu a leveza dePégaso, o cavalo alado. As sandáliasaladas de Perseu também provieramda estirpe da Medusa, das suas irmãs,as Graias de um olho só.

    Calvino nos lembra que “o pesoda pedra pode reverter em seu con-trário”. A fonte na qual as Musas irão

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    beber jorra de uma patada de Pégasona pedra. Mais uma vez, a leveza sur-ge do peso: a água macia em lugarda pedra dura.

    Outra imagem retirada da tradiçãoliterária para que possamos visualizara leveza é a do poeta florentino Gui-do Cavalcanti, transformado em he-rói de uma das narrativas de Bocca-ccio, no Decameron. O poeta passe-ava entre as lápides do cemitério,quando foi acossado por uma briga-da da jeunesse dorée de Florença:

    “O senhor Beto e sua brigadade cavaleiros, que, vendo Guidoali entre os túmulos, assim disse-ram: «Vamos provocá-lo»; e, espo-reando os cavalos, como se par-tissem para um assalto de brinca-deira, caíram-lhe em cima, quaseantes mesmo que ele se desse con-ta.

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    Ao que Guido, vendo-se cerca-do por eles, prestamente respon-deu: «Senhores, podeis dizer-meem vossa casa o que bem vosaprouver»; e, apoiando-se sobreum daqueles túmulos, que erambem altos, levíssimo que era, deuum salto arrojando-se para o ou-tro lado.”

    Nessa passagem do Decameron,Boccaccio exalta a leveza e tambéma astúcia do poeta, que identifica seusopositores com o peso dos túmulos:“Senhores, podeis dizer-me em vos-sa casa o que bem vos aprouver”.

    E Calvino nos lembra que GuidoCavalcanti, a quem chama de o poe-ta da leveza, assim escreveu:

    “Va tu, leggera e piana,dritt’ a la donna mia”.

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    [Vai, leve e ligeira,direto a minha dama].

    Com base nesses exemplos, pen-so que, para Italo Calvino, a leveza éum modo de ver o mundo. É a trans-posição desse modo de ver o mun-do que faz a sustentável leveza dascoisas; é a transposição do pensa-mento ágil e leve para o texto literá-rio que constrói o encanto da obra.

    Na página 22 das Seis propostaspara o próximo milênio podemos ler:“a leveza é algo que se cria no pro-cesso de escrever”.

    Sintetizando a concepção deCalvino, penso que a leveza seria des-pojar a linguagem por meio de “umtecido verbal quase imponderável”,onde as palavras levitam em “rarefei-ta consistência”. Ela (a leveza), alada,habitaria o texto através de “elemen-tos sutis e imperceptíveis”.

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    Já vimos que a leveza não se opõeà precisão, à determinação ou à exa-tidão, termos correlatos. Vimos tam-bém que o pássaro, embora leve eágil para flutuar no espaço, cumpreo trajeto pretendido; ao contrário dapluma que vaga aleatoriamente.

    A imagem do pássaro e da plumarepresenta a realização de um objeti-vo cumprido pela modernidade, abo-lindo a complexidade aparente, emfavor de uma verticalização sustenta-da na simplicidade do dizer comoforma de gradativa compreensão deestruturas mais complexas.

    Assim compreendida, a primeiracaracterística da literatura que Calvinolegou ao milênio que não mais veria– a leveza – parece concentrar todasas outras. Um texto leve tem sufici-ente agilidade para dizer com preci-são cada nuance do pensamento;

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    sendo possível projetar imagens, atra-vés de palavras, fazendo com quemúltiplas ideias se harmonizem, dan-do consistência ao texto.

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    Sabendo-se de olhos venda-dos para o que pretende al-cançar, a crítica saberá voltaratrás, tentar de novo, procurardo outro lado, e – quem sabe?– até mesmo acertar.

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    UM CAVALEIRONA CONTRAMÃO

    Convém lembrar que as propos-tas de Calvino entram em choquecom os primeiros raios damodernidade, que riscavam o incom-preensível no cristal do sentido. Ospoetas franceses do fim do séculoXIX tentaram compensar a obviedadedo discurso de um romantismo demassa pelo descompromisso com acomunicabilidade do texto. Aelitização dos símbolos expressivoscomo passaporte à constelação poé-tica tornou-se moeda corrente da lí-rica europeia. Antes disso, Baudelaire

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    admitiu a glória de não ser compre-endido, abrindo caminho para a apo-logia da incomunicabilidade.

    Se, por um lado, a lírica fin-de-siècle supera os aspectos do roman-tismo mais assimilados pelo grandepúblico; por outro lado, o culto àpersonalidade do poeta não é expos-to à luz da razão crítica. Protegidopela obscuridade, ele continua forte.O acesso à mensagem do texto é tra-vado pela subjetividade, quando asfiguras construídas pelo poeta sãovalorizadas pela originalidade.

    A literatura moderna rompe coma estética do Renascimento – funda-dor do mundo também chamado demoderno, mas pertencente a umaoutra modernidade, não a estilística,mas a histórica, que quebrou os li-mites do mundo medieval recolhen-do heranças antigas –, a literaturamoderna rompe com a estética do

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    Renascimento quando abandona oculto dos antigos em favor do cultodo sujeito. Segundo a concepçãoclássica da literatura, o engenho pes-soal deve ter suas bases fincadas natradição, ou melhor, no bem sucedi-do engenho coletivo aperfeiçoadopelos mestres da construção artísti-ca. Com o advento do Renascimento,o desafio a ser vencido pelo escritoré seguir os modelos, ser capaz dereconstruir o edifício dos antigos e,se possível, superá-los na construção.Com a exigência da originalidade, ins-taurada ou, quando menos, valoriza-da pelos românticos, os primeirosmodernos se fizeram obscuros.

    Convém lembrar ainda que, tran-sitando da poesia para o romancemoderno, a inacessibilidade da men-sagem continua sendo o primeiro vis-lumbre de obras como Ulysses ouFinnegans Wake, de Joyce. Desse

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    42 coleção e-poket

    modo, a literatura moderna teriacomo um dos seus fios de tensão ooscilar entre o claro e o obscuro, semque o pêndulo pare em um dospolos de sombra ou de luz.

    Observe-se que Calvino pretendeutranspor para o milênio seguinte tra-ços da literatura moderna que mui-tos cacheiros-viajantes da pós-modernidade lograram banir dos seustextos. A intempestiva expressão lem-bra o passado recente, quando as li-gações entre as fontes produtivas eo comércio dos lugares mais afasta-dos ainda eram remotas, ao passoque os cacheiros-viajantes se faziamarautos das novidades. Seu palavróriomal assimilado encantava a uns e es-pantava a outros. Na inconstanteflorada da contemporaneidade, a fra-tura do stablishment universitário estásituada entre os escreventes que pro-

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    duzem e os que repetem o discursode marketing do produto.

    Cavaleiro com seu corcel na con-tramão da Quinta Avenida, Calvinoinsistia em preservar característicasque correm o risco de se perder. Le-veza e precisão – ao dizer algumacoisa – podem se tornar marcas deum passado que guarda na redun-dância laivos de exatidão e de visibi-lidade. Nessa perspectiva, o texto pós-moderno reflete a estrutura do mo-mento histórico vivido, cuja compre-ensão é cifrada por um labirinto desentidos ainda em percurso de cons-tituição.

    Os textos de maior prestígio noâmbito fetichista de uma teorizaçãodo pós-moderno encontram na im-precisão do dito uma saída para quese tente dizer o que ainda está emcurso e, por isso mesmo, não se dei-xa capturar pelo dito. A crítica, en-

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    quanto notação do impreciso atra-vés de uma escrita precisa, torna-seútil ao leitor à medida que articulaideias difusas, conectando sentidose ajudando a compreender o vagoespaço de transgressão. Daí a suaatrofia em meio às várias ilhas de pós-modernidade, num mundo articula-do por fraturas. Um mundo que, pormanter intocados os redutos medie-vais impostos pelo desequilíbrio so-cial, ainda não pôde absorver as con-quistas da modernidade e já refletesobre uma pós-modernidade mal vi-vida – porque racionalizada quandoainda viva. A experiência mostra quea racionalização é a necropsia dascoisas vividas.

    Por fim, cabe a indagação: haveriaincompatibilidade conformativa en-tre a crítica literária que nos foi legadapelas gerações precedentes e as prá-ticas da pós-modernidade?

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    A crítica acadêmica vem mudan-do de objeto e de mira ao longo dasua história. No apogeu da banaliza-ção universitária do método estrutu-ral, cientificista ou neopositivista, eladeslocou o foco da obra para si mes-ma, erigindo o deslocamento à con-dição de marco identitário. É esseobjeto autorreflexivo, ou esse sabersobre si mesmo, que chegou àcontemporaneidade com o estatutode ciência.

    Projetar clarões sobre o obscuroobjeto do desejo do outro não temsido sua tarefa. Parte significativa dacrítica universitária tem sabido cons-truir seus próprios e impróprios ob-jetos, passando muito bem sem aobra literária. O trabalho secundáriode acompanhar o percurso cotidia-no da obra alheia tem cabido a umaoutra crítica, tida como menor oudefinida como mera resenha: a críti-

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    ca ligeira – cotidiana e valorativa,jornalística e leve – porque quase tãoperecível quanto as palavras no jor-nal diário. O retorno às salas de aulade tal prática, em baixa na bolsa, de-pende de hábitos cotidianos de lei-tura desinteressada e prazerosa; há-bitos contraditoriamente não gene-ralizados entre estudantes e até mes-mo professores brasileiros de letras.Desde os anos setenta, alguns estu-diosos que se consideram leitores,antes de qualquer outra coisa, obje-tam que a exigência constante denovas visões e revisões – e de reno-vados fundamentos teóricos – tomaparte substancial do tempo que po-deria ser dedicado à leitura de obrasliterárias. Inclusive as não-canônicas,não contempladas com o epíteto declássicas: aquelas não presentes nocurrículo das classes.

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    É desse tipo de leitura não siste-mática que se origina a liberdade depensamento judicativo favorável àconstrução e reconstrução perma-nente de uma espécie de cânonemutável e provisório, concebido paraorientação prática. É com a leituraperegrina do prazer que surge umacrítica viva, menos identificada coma ciência e mais com a arte. A arte dedecifrar os desenhos das nuvens eos desejos dos homens e das mulhe-res, escondidos no texto.

    A incompatibilidade acima aven-tada seria portanto entre os princípi-os e práticas da contemporaneidadecom a crítica artística, judicativa, oumesmo com a sua versão jornalísticaou de rodapé – a brigada ligeira, con-forme velha designação de AntonioCandido. Daí a crise e a ameaça dedesaparecimento da crítica literária emtais moldes (em arquétipos concebi-

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    dos pela modernidade) coincidir comos instantes de eclosão do pensamen-to pós-moderno. Esta crítica se sus-tenta na leveza e na agilidade comoelos ou formas de conexão com oleitor comum. Trata-se de uma críti-ca que joga, que arrisca se perder.Que não quer proferir verdades per-manentes, mas busca explicações everdades provisórias, aplicáveis aomomento.

    Quando meninos, brincávamos decabra-cega, um jogo no qual, deolhos vendados, procurávamos oque não víamos. Em adultos, encon-tramos na tela de Goya La gallinaciega (ver p. 98) uma imagem irôni-ca, mas de construtivo apelo, da ta-refa crítica. Sabendo-se de olhos ven-dados para o que pretende alcançar,a crítica saberá voltar atrás, tentar denovo, procurar do outro lado, e –quem sabe? – até mesmo acertar.

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    REFERÊNCIASE BIBLIOGRAFIA NÃO CITADA

    CALVINO, Italo. O castelo dos destinoscruzados. Trad. Ivo Barroso. São Pau-lo, Companhia das Letras, 1991, 157p.

    CALVINO, Italo. O visconde Partido aomeio. São Paulo, Companhia das Le-tras, 1996, 100 p.

    CALVINO, Italo. Os nossos antepassa-dos. São Paulo, Companhia das Le-tras, 1997, 488 p.

    CALVINO, Italo. Seis propostas para opróximo milênio. 2ª ed, São Paulo,Companhia das Letras, 1990, 141 p.

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    SEIXAS, Cid. Maniqueísmo ou partido;texto sobre O visconde partido aomeio, de Italo Calvino. Coluna “Lei-tura Crítica” do jornal A Tarde, Salva-dor, 24 fev. 97, Caderno 2, p. 7.

    SEIXAS, Cid. Escritas indecifráveis; re-senha crítica do livro Seis propostaspara o próximo milênio, de ItaloCalvino. Coluna “Leitura Crítica” dojornal A Tarde, Salvador, 19 out. 98,Caderno 2, p. 7.

    SEIXAS, Cid. Os riscos da cabra-cega.Recortes de crítica ligeira. Organiza-ção, introdução e notas de RubensAlves Pereira e Elvya Ribeiro Pereira.Feira de Santana, UEFS, 2003. (Col.Literatura e Diversidade Cultural, 10)

    SEIXAS, Cid. Da invenção à literatura.Ensaios de filosofia da linguagem.Salvador, Rio do Engenho, 2017.

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    Cid Seixas é pro-fessor titular da Uni-versidade Federal daBahia e da Universi-dade Estadual de Fei-ra de Santana. Publi-cou diversos livros ecentenas de artigos,tendo orientado tesesde dourorado e dis-sertações de mestra-do. Antes de se dedi-car ao ensino, traba-lhou como jornalista,de onde vem sua pre-ferência pelos textosbreves e de alcancepelo leitor comum.

  • e-book.brEDITORA UNIVERSITÁRIA

    DO L IV RO DIGITAL

    A LEVEZADO TEXTO

    Da Medusa nasce o peso dasestátuas de pedra em que se trans-formam aqueles que se voltampara olhar o monstro. Mas dosangue da Medusa, decepada peloherói, também nasceu a leveza dePégaso, o cavalo alado.

    Leituras de Italo Calvino