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CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO

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2013 Curitiba

CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO

Coordenadores

Profa. Dra. ViViane Coêlho De SélloS Knoerr Prof. Dr. alexanDre Walmott BorgeS.

Organizadores

Prof. Dr. fernanDo guStaVo Knoerr Prof. mSC. thiago Paluma

Revisão técnica

Paula fernanDa Pereira De araújo e alVeS

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Nossos Contatos São Paulo Rua José Bonifácio, n. 209, cj. 603, Centro, São Paulo – SP CEP: 01.003-001 Acesse: www. editoraclassica.com.brRedes Sociais Facebook: http://www.facebook.com/EditoraClassica Twittter: https://twitter.com/EditoraClassica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

L784 Knoerr, Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos – Coordenadora.Borges, Prof. Dr. Alexandre Walmontt – Coordenador. Cidadania, desenvolvimento social e globalização.Título independente.Curitiba : 1ª. ed. Clássica Editora, 2013. ISBN 978-85-99651-81-0 1. Direito Nacional – latino americano.2. Pesquisadores - críticos. I. Título. CDD 341

Editora Responsável: Verônica GottgtroyProdução Editorial: Editora Clássica Capa: Editora Clássica

Equipe Editorial

EDITORA CLÁSSICA

Allessandra Neves FerreiraAlexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves Fernando Knoerr Francisco Cardozo de Oliveira Francisval Mendes Ilton Garcia da Costa Ivan Motta Ivo Dantas Jonathan Barros VitaJosé Edmilson Lima Juliana Cristina Busnardo de Araujo Lafayete PozzoliLeonardo Rabelo Lívia Gaigher Bósio Campello Lucimeiry Galvão

Luiz Eduardo GuntherLuisa Moura Mara Darcanchy Massako Shirai Mateus Eduardo Nunes Bertoncini Nilson Araújo de Souza Norma Padilha Paulo Ricardo Opuszka Roberto Genofre Salim Reis Valesca Raizer Borges Moschen Vanessa Caporlingua Viviane Séllos Vladmir Silveira Wagner Ginotti Wagner Menezes Willians Franklin Lira dos Santos

Conselho Editorial

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Apresentação

A coletânea jurídica “Cidadania, Desenvolvimento Social e Globaliza-ção” congrega distintos pesquisadores e críticos do Direito nacional e latino--americano. A união destes artigos compõe este trabalho, que além de analisar institutos jurídicos, visa à efetivação de um direito voltado à sociedade e aos objetivos da coletividade.

O primeiro artigo, de autoria de Ana Carolina Tomicioli Cotrim e João Paulo Palmeira Barreto, versa sobre a importância da proporcionalidade na so-lução de conflito entre a liberdade de manifestação cultural brasileira e a prote-ção constitucional a fauna.

Thiago Paluma e Juliana Demori de Andrade discorrem acerca da pro-priedade intelectual como propulsora do desenvolvimento econômico e social, por meio da análise jurídica e estudo comparado com outras realidades como Japão, Coreia do Sul e Índia.

As novas leituras da sustentabilidade a partir da relação entre o direito penal e o direito administrativo na proteção ambiental constituem o objeto de pesquisa dos autores Sérgio Augusto Lima Marinho e Túlio Arantes Bozola.

Os autores Alexandre Walmott Borges, Alfredo José dos Santos e Lu-ciana Campanelli Romeu estudam as alterações da ordem econômica da Cons-tituição brasileira, uma análise das modificações materiais introduzidas pelo constituinte derivado.

Fernando D’Alessandro apresenta seu trabalho acerca do crédito docu-mentário, globalização e fraude, por meio do qual verifica a atual situação de diversos polos econômicos mundiais.

Sérgio Augusto Lima Marinho, Rodrigo Pereira Moreira e Marco Aurélio Nogueira expõem seus estudos sobre a cidadania e o direito à saúde, na forma do dever jurisdicional de realização do direito à saúde na ausência de provas das condições fáticas e jurídicas desfavoráveis.

Os direitos sociais, desde sua existência, fundamentabilidade e eficácia dos direitos humanos de ter são analisados pelos autores Jean Carlos Barcelos Martins e Maria Rosaria Barbato.

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O direito em novos paradigmas de cidadania é estudado por Eduardo Rodrigues dos Santos e Luiz Carlos Figueira de Melo, desde o jusnaturalismo ao pós-positivismo jurídico, pelos delineamentos para a construção de um novo paradigma jurídico.

João Victor Rozatti Longhi escreve da estrutura à função da atividade empresarial, sob o enfoque da função social da empresa, afirmando que o direito deve estar sempre atento às transformações sociais, vez que é ciência social aplicada.

O conceito de investimentos no âmbito do sistema internacional de promoção o proteção de investimentos estrangeiros é estudado por Ivette Esis, evidenciando que a interpretação dada pelos Tribunais Arbitrais é muito ampla.

Marta Pardini analisa a situação legislativa da Argentina frente aos mecanismos alternativos de resolução de conflitos, sendo a arbitragem um meio possível para a resolução de conflitos societários.

A cidadania e os aspectos críticos do processo penal são objetos de estudos de Leandro Araújo Garcia, Marco Aurélio Nogueira e Mário Ângelo de Oliveira Junior, a partir da Opinio Delicti midiática e sua repercussão às avessas no processo penal.

Os autores Jean Carlos Barcelos Martins e Cícero José Soares Neto apresentam seu trabalho acerca dos paradigmas brasileiros de distribuição de renda como mecanismos de garantia de direitos fundamentais e da cidadania.

O processo legislativo colaborativo é estudado pelos autores Rubens Beçak e João Victor Rozatti Longhi, pela participação pela internet no trâmite do Projeto de Lei nº 2.126/2011, no que concerne à redação dos dispositivos que tratam da responsabilidade dos provedores por conteúdo inserido por terceiros.

O sistema constitucional de crises é analisado por Alexandre Walmott Borges, Carlos Eduardo Artiaga Paula e Moacir Henrique Júnior, trazendo a estudo os institutos jurídicos dos estados de sítio e defesa.

Francisco Gómez Fonseca estuda uma abordagem para a proteção internacional dos direitos dos agricultores, evidenciando a necessidade de se adaptar os ordenamentos jurídicos à realidade agrícola.

Considerações gerais acerca da administração pública, do ativismo judicial e do direito fundamental à saúde compõem o trabalho da Giovana Gadia, que estuda o mínimo existencial e a reserva do possível.

Saulo de Oliveira Pinto Coelho analisa o direito ao desenvolvimento e o desenvolvimento do direito por meio de reflexões sobre os problemas meta-jurídicos referentes do direito fundamental ao desenvolvimento democrático.

Jorge Fontoura e Luiz Eduardo Gunther apresentam sua pesquisa sobre a natureza jurídica e a efetividade das recomendações da Organização Internacional do Trabalho.

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A erradicação da exploração da mão-de-obra infantil no Brasil é estudada por Fernando Gustavo Knoerr e Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr, como uma questão de respeito à dignidade humana.

Francisco Cardozo Oliveira e Marileia Tonietto analisam as limitações jurídicas e socioeconômicas à consolidação da agricultura familiar através do arcabouço legal agrário e suas implicações na dinâmica social do campo.

O risco pan coletivo é apresentado pelos autores Edson Fischer e Fábio André Guaragni, a partir do estudo da sociedade de risco e da nova qualidade de risco sob a ótica do direito penal.

O artigo escrito por Wilson Carlos de Campos Filho e Miguel Kfouri Neto, estuda as limitações constitucionais ao princípio da livre iniciativa, tomando como fundamento o princípio da dignidade humana e a cláusula de boa-fé.

O último artigo, de João Victor Rozatti Longhi e Rubens Beçak, versa sobre o processo legislativo colaborativo, por meio da participação pela internet no trâmite do projeto de Lei nº 2.126/2011, como marco civil da internet.

Desejamos a todos uma boa leitura e reflexão acerca dos temas abordados neste trabalho, vista a profundidade dos textos que aqui apresentamos.

ViViane Coêlho de SélloS KnoerrDoutora em Direito do Estado pela PUC/SP, Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP, Especialista em Direito Processual Civil pela PUCCAMP. Advogada. Professora

Universitária em Graduação e Pós-Graduação é professora a atualmente, também coordenadora do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA-PR.

alexandre Walmott BorgeSDoutor e Mestre em Direito pela UFSC. Atualmente é professor do programa de pós graduação,

mestrado e especialização, e da graduação em direito da Universidade Federal de Uberlândia UFU. É diretor de pós-graduação da UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

Pró-Reitoria de pesquisa e de pós-graduação.

Fernando guStaVo KnoerrDoutor e Mestre em Direito do Estado pela UFPR. É Professor do Programa de Mestrado

em Direito do Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA e Professor de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Paraná

e da Fundação Escola do Ministério Público do Paraná.

thiago PalumaDoutorando em Direito Internacional pela Universidad de Valencia – España.

Mestre em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia, Especialista em Direito e Graduado pela Faculdade de Direito Prof. Jacy de Assis da Universidade

Federal de Uberlândia. Professor de Direito Internacional Privado da Universidade Federal de Uberlândia e da Faculdade Pitágoras de Uberlândia.

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Sumário

APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 05

A IMPORTÂNCIA DA PROPORCIONALIDADE NA SOLUÇÃO DO CONFLITO ENTRE A LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO CULTURAL BRASILEIRA E A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA FAUNAAna Carolina Tomicioli Cotrim e João Paulo Palmeira Barreto ........ 11

A PROPRIEDADE INTELECTUAL COMO PROPULSORA DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIALThiago Paluma e Juliana Demori de Andrade ............................................33

NOVAS LEITURAS DA SUSTENTABILIDADE: A RELAÇÃO ENTRE O DIREITO PENAL E O DIREITO ADMINISTRATIVO NA PROTEÇÃO AMBIENTALSérgio Augusto Lima Marinho e Túlio Arantes Bozola ........................57

ALTERAÇÕES DA ORDEM ECONÔMICA DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA. ANÁLISE DAS MODIFICAÇÕES MATERIAIS INTRODUZIDAS PELO CONSTITU-INTE DERIVADOAlexandre Walmott Borges, Alfredo José dos Santos e Luciana Campanelli Romeu ........................................................................................... 75

CREDITO DOCUMENTARIO; GLOBALIZACIÓN Y FRAUDEFernando G. D´Alessandro .......................................................................... 95

CIDADANIA E DIREITO À SAÚDE: DEVER JURISDICIONAL DE REALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NA AUSÊNCIA DE PCIDADANIA E DIREITO À SAÚDE: DEVER JURISDICIONAL DE REALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NA AUSÊNCIA DE PROVAS DAS CONDIÇÕES FÁTICAS E JURÍDICAS DESFAVORÁVEISSérgio Augusto Lima Marinho, Rodrigo Pereira Moreira e Marco Aurélio Nogueira ............................................................................................. 115

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DIREITOS SOCIAIS: EXISTÊNCIA, FUNDAMENTABILIDADE E EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS DE TERJean Carlos Barcelos Martins e Maria Rosaria Barbato ...................139

O DIREITO EM NOVOS PARADIGMAS DE CIDADANIA: DO JUSNATURALISMO AO PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO: DELINEAMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA JURÍDICOEduardo Rodrigues dos Santos e Luiz Carlos Figueira de Melo.......169

DA ESTRUTURA À FUNÇÃO DA ATIVIDADE EMPRESARIAL: A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA João Victor Rozatti Longhi ...........................................................................201

EL CONCEPTO DE INVERSIÓN BAJO EL SISTEMA INTERNACIONALDE PROMOCIÓN Y PROTECCIÓN DE INVERSIONES FORÁNEASIvette Esis V. ........................................................................................................216

LA SITUACIÓN LEGISLATIVA ARGENTINA FRENTE A LOS MECANISMOS ALTERNATIVOS DE RESOLUCIÓN DE CONFLICTOSMarta G. Pardini ................................................................................................228

CIDADANIA E ASPECTOS CRÍTICOS DO PROCESSO PENAL: OPINIO DELICTI MIDIÁTICA E SUA REPERCUSSÃO ÀS AVESSAS NO PROCESSO PENALLeandro Araújo Garcia, Marco Aurélio Nogueira e Mário Ângelo de Oliveira Junior .............................................................................245

OS PROGRAMAS BRASILEIROS DE DISTRIBUIÇÃO DE RENDA COMO MECANISMO DE GARANTIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E DA CIDADANIAJean Carlos Barcelos Martins, Cícero José Alves Soares Neto e Alexandre Walmott Borges ..........................................................................260

PROCESSO LEGISLATIVO COLABORATIVO: A PARTICIPATIVIDADE PELA INTERNET NO TRÂMITE DO PROJETO DE LEI Nº 2.126/2011 (MARCO CIVIL DA INTERNET)Rubens Beçak e João Victor Rozatti Longhi ............................................283

SISTEMA CONSTITUCIONAL DE CRISES NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 (ESTADOS DE SÍTIO E DEFESA)Alexandre Walmott Borges, Carlos Eduardo Artiaga Paula e Moacir Henrique Júnior ..................................................................................308

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UNA APROXIMACIÓN A LA TUTELA INTERNACIONAL DE LOS DERECHOS DE LOS AGICULTORESFrancisco Gómez Fonseca ...............................................................................337

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, ATIVISMO JUDICIAL E DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: CONSIDERAÇÕES GERAISGiovana Gadia ....................................................................................................358

O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO: REFLEXÕES SOBRE OS PROBLEMAS META-JURÍDICOS REFERENTES DO DIREITO FUNDAMENTAL AO DESENVOLVIMENTO DEMOCRÁTICOProf. Dr. Saulo de Oliveira Pinto Coelho (Ufg) ....................................388

NATURALEZA JURÍDICA Y EFECTIVIDAD DE LAS RECOMENDACIONES DE LA ORGANIZACIÓN INTERNACIONAL DEL TRABAJOJorge Fontoura e Luiz Eduardo Gunther .................................................403

ERRADICACIÓN DE LA EXPLOTACIÓN DE LA MANO DE OBRA INFANTIL EN BRASIL: UNA CUESTIÓN DE RESPECTO A LA DIGNIDAD HUMANAViviane Coêlho de Séllos Knoerr e Fernando Gustavo Knoerr .......417

LIMITAÇÕES JURÍDICAS E SOCIOECONÔMICAS À CONSOLIDAÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIARFrancisco Cardozo Oliveira e Marileia Tonietto ................................436

SOCIEDADE DE RISCO, NOVA QUALIDADE DE RISCO – RISCO PAN COLETIVO E DIREITO PENALEdson Fischer e Fábio André Guaragni ......................................................456

LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PRINCÍPIO DA LIVRE INICIATIVAWilson Carlos de Campos Filho Miguel Kfouri Neto ..........................471

PROCESSO LEGISLATIVO COLABORATIVO: A PARTICIPATIVIDADE PELA INTERNET NO TRÂMITE DO PROJETO DE LEI Nº 2.126/2011 (MARCO CIVIL DA INTERNET) Rubens Beçak e João Victor Rozatti Longhi ............................................492

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CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO

A IMPORTÂNCIA DA PROPORCIONALIDADE NA SOLUÇÃO DO CONFLITO ENTRE A LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO CULTURAL BRASILEIRA E A

PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA FAUNA

ana Carolina tomiCioli Cotrim

Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia, advoga-da, especialista em Gestão Ambiental pela Faculdade Católica de Uber-lândia, pós graduanda em Direito Ambiental e Urbanístico pela Universi-dade Anhanguera/UNIDERP, Especialista em Direito da Administração Pública pela Universidade Federal de Uberlândia. Mestranda em Direito pela UFU. E-mail: [email protected]

João Paulo Palmeira Barreto

Bacharel em Direito Pela Potíficia Universidade Católica de Goias -PUC--GO. Advogado, pós Graduado em direito penal e processo penal PUC--SP. Pós Graduado em Direito Público pela Facudade Damasio de Jesus. Pós graduando em Direito da Administração Pública pela Univerdade Federal de Uberlândia. E-mail: [email protected]

1. INTRODUÇÃO

Recentemente a mídia brasileira exibiu a notícia de que um novilho teve que ser sacrificado após ter participado de uma prova na maior e mais tradicional festa de peão do país. O animal, usado no bulldog, modalidade “esportiva” em que o peão tem que derrubar e imobilizar o animal apenas com a força dos braços, teve o pescoço quebrado durante a realização da prova, no dia 19 (dezenove) de agosto de 2011.

Impossibilitado de mover suas pernas em decorrência da lesão cervical sofrida, o novilho teve que ser retirado da arena com o auxílio de peões e uma carroça, sendo sacrificado minutos após, ali mesmo, no recinto conhecido como Parque do Peão.

O fato do médico veterinário, Dr. Marcos Sampaio de Almeida Prado, responsável pelo tratamento dos animais da Festa do Peão de Barretos, justificar ser raro esse tipo de acontecimento na festa, não diminui a brutalidade ocorrida, tão menos apaga a natureza de crime ambiental cometido contra o animal durante a realização da tradicional manifestação popular do interior paulista.

Os maus tratos sofridos por animais nesse tipo de exteriorização cultural não são raros. Ao contrário do que defendem alguns praticantes de “esportes” que envolvem animais, a ocorrência de lesões e até mesmo o decorrente sacrifício de animais são frenquentes durante as festas populares e os treinos que antecedem as apresentações.

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O fato ocorrido durante a Festa do Peão de Barretos apenas exterioriza uma prática assídua e antiga, presente não só na cultural brasileira, mas também na mundial, em que animais são usados, muitas vezes de forma cruel, para o fortalecimento e a manutenção da identidade cultural de um povo.

No Brasil, as formas mais expressivas da supracitada espécie de manifestação cultural são os rodeios, em sentido amplo, as rinhas de galo, as apresentações circenses, as vaquejadas e a farra do boi. Todas as formas de expressão cultural mencionadas tem origem secular, e baseiam-se na cultura alienígena, principalmente na Européia, em razão da das fortes influências herdadas pelo processo de colonização.

A discussão do tema é polêmica. Envolve posicionamentos opostos, e, do ponto de vista jurídico, trata-se de um tema conflituoso, uma vez que tais eventos levam à colisão simultânea de dois princípios constitucionais, além de colocar em xeque a filosofia ecocêntrica vivida atualmente.

De um lado, defensores do princípio constitucional de proteção à fauna questionam o atual modelo antropocêntrico de submissão do meio ambiente aos exclusivos interesses humanos. Por outro lado, defensores da dignidade da pessoa humana defendem a liberdade nas manifestações culturais como forma de expressão da cultura de um povo e garantia de um direito fundamental do homem.

Neste ínterim, pesquisadores afirmam que ter o conhecimento da história local de um povo é de fundamental importância para conceber a sua identificação, além do mais, é a cultura de uma determinada região que engrandece o espírito de seus habitantes e expressa a dignidade da pessoa humana garantida constitucionalmente. Entretanto, acreditamos que, no caso concreto, quando uma manifestação cultural se depara com outros interesses, como, por exemplo, a proteção contra a crueldade em animais, tal liberdade de expressão cultural deve ser limitada, de forma a garantir que a cultura local não fira outros bens jurídicos constitucionalmente tutelados e não dissipe a brutalidade para com os seres vivos não-humanos.

2. MANIFESTAÇÕES CULTURAIS BRASILEIRAS

Como conceito genérico e abstrato, o termo “cultura” pode ser definido sob diferentes perspectivas teóricas. A perspectiva mais comum é a visão antropocêntrica de cultura, entretanto, nada impede que a análise e conceituação do termo se dê, de acordo com o estudo e a necessidade, sob os aspectos ético, religioso e filosófico.1

1 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. p.153.

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O primeiro conceito de cultura que se tem registro é do antropólogo britânico Edward B. Tylor, formulado no final do século XIX. Para o estudioso, o termo cultura compreende “todo o complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos pelo homem como membro da sociedade”.2

Como visto, aos incluir em seu conceito a expressão “ adquiridos pelo homem”, Tylor rompe a vinculação existente entre o elemento humano cultural e o elemento biológico, sintetizando a tendência crescente do pensamento da época em que a cultura construia-se sobre aquilo que é aprendido, e não sobre as características genéticas herdadas dos antepassados3.

Ao determinar que o evolucionismo da cultura se dá de forma uniforme e linear desconsiderando-se a possibilidade de um relativismo cultural, o conceito do antropólogo britânico passa a receber inúmeras críticas. Hodiernamente, tal concepção ainda não se apresenta bem aceita por estudiosos. Estes, apenas reconhecem a existência de um evolucionismo cultural apenas quando tal evolucionismo ocorre dentro de uma abordagem multilinear, na qual cada cultura desenvolve-se apartir dos eventos histórios enfrentados por determinados povos.4

Adotando a moderna abordagem multilinear, o Ministério da Cultura do Brasil, não adota um conceito uniforme de cultura brasileira, mas, ao contrário, afirma que o país conta com uma imensa, rica e variada gama de manifestações culturais popular, devendo estas serem compreendidas como as maneiras de ser, agir, pensar e expressar dos diferentes segmentos da sociedade estejam eles em áreas rurais, quanto urbanas.5

A conceituação do órgão ministerial demonstra o forte pluralismo cultural existente no país ainda nos dias atuais. Pode-se afirmar que o processo de povoamento do território brasileiro, responsável pela fusão de nativos indígenas com europeus colonizadores e africanos escravizados, promoveu a formação de um mosaico de conhecimentos e crenças, artes e costumes, acarretando na heterogeneidade cultural e impossibilitando a afirmação da existência de uma manifestação cultural nacional única, dominante em toda a extensão territorial brasileira.

2 Wikipédia: Cultura. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Cultura >. Acesso em: 26 ago. 2011. 3 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. apud. BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. p.154.4 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. p.154.5 BRASIL, Ministério da Cultura. Manifestações culturais populares. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/site/pnc/diagnosticos-e-desafios/manifestacoes-culturais />. Acesso em: 26 ago. 2011.

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Entretanto, ao contrário do que poderia se imaginar, a heterogeneidade tem grande importância no cenário cultural, pois, é pluralismo o responsável por garantir a liberdade individual de escolha dos valores culturais a serem seguidos e por assegurar a permanência da diversidade cultural que compõem a cultura brasileira, tornando-o uma das mais ricas e diversificadas do mundo.6

Neste mesmo sentido, defendem os adeptos da dignidade da pessoa humana, para os quais a pluralidade de manifestações culturais determinam o conhecimento da história local de um povo, sendo de fundamental importância para conceber a identificação daqueles que ali viveram. Além do mais, é a cultura de uma determinada região que engrandece o espírito de seus habitantes e expressa a dignidade da pessoa humana garantida constitucionalmente.

1.1 DIREITO FUNDAMENTAL À CULTURA E A GARANTIA CONSTITUCIONAL DE LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO CULTURAL

Constituindo um direito fundamental, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988, em seus artigos 215 e 216, assegura a todos os brasileiros o direito à cultura, além de garantir a liberdade de manifestação cultural como expressão deste direito.

No art. 215 acima mencionado, o constituinte determina que o Estado tem por obrigação assegurar o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes de culturas nacional a todos os brasileiros. No mesmo sentido continua o dispositivo ao determinar que caberá ao Estado o apoio e o incentivo à valorização e difusão das manifestações culturais, bem como a proteção das manifestações das culturas populares indígenas, afro-brasileiras e das demais manifestações oriundas de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

Enquanto direito fundamental pode-se afirmar que, de acordo com a leitura do artigo constitucional, o direito à cultura pressupõe duas dimensões. A primeira delas é a dimensão de liberdade de ação cultural, enquanto a segunda constitui- se das diversas prestações positivas do Estado para a efetivação do acesso eficaz à cultura.

Na primeira dimensão, a liberdade de ação cultural assume o caráter de direito de defesa ao assegurar determinadas posições subjetivas do indivíduo em face do Estado. Nesta situação, o Estado não tem o poder de impedir que o indivíduo viva de acordo com os valores de sua cultura e expresse qualquer atividade cultural, desde que não seja vedada por lei.7

6 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. p.160.7 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e

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Já no âmbito da segunda dimensão, as prestações positivas impõem ao Estado a obrigatoriedade de apoio às manifestações culturais, bem como o incentivo de valorização e da difusão dessas. Também constitui prestação positiva obrigatória Estatal a proteção das manifestações culturais oriundas de grupos civilizatórios nacionais.8

Apesar da garantia do direito fundamental à cultura, a Constituição Federal foi omissa ao não estabelecer um conceito do termo “cultura”. No art. 216 do supracitado documento legal o legislador se conteve em mencionar quais os bens constituidores do patrimônio cultural brasileiro. Assim, de acordo com o texto constitucional, constituem patrimônio brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, cujos quais são portadores de referências a identidade, a ação e a memória dos diversos grupos formadores da sociedade brasileira.

Através do art. 216, nota-se que a constituição, apesar de acolher uma concepção abrangente de cultura tutelando tanto os bens materiais quanto os imateriais, restringiu a extensão antropológica do termo cultura. Desta forma, nem tudo que constitui cultura do ponto de vista antropológico ingressa na compreensão cultural constitucional.9

Contudo, a Constituição Federal de 1.988 manifesta a mais aberta forma de liberdade cultural, pois, não estabelece censura nem limites, determinando, apenas, restrições para a prática de atividades culturais que por confrontarem a moral e os bons costumes são vedadas por lei. O constituinte, segundo as palavras de José Afonso da Silva, ao garantir o direito à cultura e a liberdade de manifestação cultural permitiu ao homem uma vivência plena dos valores que revelam o espírito humano e o sentido da vida através dos objetos e das projeções criativas.10

1.2 MANIFESTAÇÕES CULTURAIS BRASILEIRAS E A UTILIZAÇÃO DE ANIMAIS

Inserida no mosaico cultural nacional, há algumas manifestações populares tradicionais que utilizam a fauna como finalidade recreativa. Dentre as formas mais expressivas encontramos as práticas enquadradas dentro “ciclo do boi”, as rinhas de galo e as apresentações circenses.

As manifestações culturais populares que utilizam bovinos recebem a conotação de “ciclo do boi”. Dentre tais modalidades estão inseridas a farra do

na proteção da fauna. p.158.8 Idem, p. 158.9 SILVA, José Afonso da. apud. BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. p.157.10 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 255.

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boi, os rodeios em sentido amplo, as vaquejadas, o bumba-meu-boi e o boi-de-mamão. Das manifestações citadas, trabalharemos apenas com aquelas que, por utilizar o boi in natura, acarretam atos de maus tratos e crueldade com a fauna.

A análise iniciara com a farra do boi, seguida posteriormente das vaquejadas e dos rodeios em sentido amplo.

Originária do povoamento da costa litorânea do Estado de Santa Catarina pelos luso-brasileiros a partir da segunda metade do século XVII e da ocupação efetiva pelos “casais açorianos” em meados do século XVIII, a farra do boi constitui uma das práticas mais antigas e cruéis vigente no território nacional11.

Praticada tradicionalmente durante a Semana Santa e raramente no período natalino, festa de casamento ou aniversário, a farra do boi se divide em quatro modalidades, todas elas passando por quatro etapas inicias bem semelhantes entre si.

As quatro modalidades encontradas no território nacional são: boi-na-vara, boi-no-arame, boi-solto e boi-mangueirado.

O boi-na-vara constitui a modalidade de farra do boi mais antiga que se tem notícia em terras brasileiras. Registros datados do ano de 1896 já mencionam a prática cultural que hoje praticamente não existe mais no litoral catarinense.12

Outra espécie é o boi-no-arame. De ocorrência rara, trata-se do acorrentamento do boi a um comprido fio de arame, onde os farristas investem atos de crueldade em favor do animal preso.13

A terceira modalidade, ainda predominante no litoral catarinense, é o boi-solto. Tal espécie causa grandes alardes e preocupações uma vez que o animal é solto pelas ruas das cidades e este, assustado e dolorido com os ferimentos, passa a investir nas pessoas, o que gera estado de correria e tumulto na comunidade, além de possíveis tragédias envolvendo morte e lesões de humanos.14

A última espécie é o boi-mangueirado. Aceito e recomendado pelo Estado de Santa Catarina, ocorre nas áreas mais urbanizadas e nas zonas de veraneios, onde uma determinada área é cercada ficando a platéia do lado de fora se divertindo com as acrobacias dos toureiros improvisados.15

11 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. p.166.12 Idem, p.169.13 Ibid.14 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. p.16915 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. p.169.

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Em todas as quatro modalidades apresentadas pode-se distinguir quatro etapas da farra do boi, quais sejam: a constituição da lista de sócios, a escolha do boi, a soltada e o sacrifício. A fase preparatória que dá início à farra do boi é a constituição de uma lista de pessoas, que se reúnem para levantar a verba para a aquisição do animal, que após a farra terá sua carne dividida entre os farristas. Em algumas regiões somente os homens podem ser sócios da farra, enquanto em outros há farras exclusivamente femininas.16

Elaborada a lista, o grupo de farristas se dirige até as fazendas para a escolha e compra do animal, sendo o mais adequado o boi bravo, que desperta perigo e medo nos farristas. Ajustada a compra, o animal é entregue no local da farra, que recebem o boi com festas regadas de buzinas e foguetes. Depois de um tempo o animal é solto, e passa a ser alvo de correrias, pegas, provocações com gritos e varas até que surja um ambiente no qual o boi mostra-se enfurecido e os farristas transpiram o medo e tensão. Normalmente os atos da soltada duram até a sexta-feira da paixão, ocorrendo o sacrifício do animal na manhã de sábado. Após o sacrifício a carne é dividida comunitariamente entre os sócios os quais a levam para casa a fim de que seja comida durante o domingo de páscoa, ou também chamado pelos farristas de domingo gordo.17

Como visto, não resta duvidas de que a farra do boi é uma manifestação violenta, geradora de maus tratos e atos de crueldade, capazes de provocar consequências físicas e alterações psíquicas nos animais utilizados para tal fim. Do mesmo modo, é nítida a percepção de que o instituto da farra do boi constitui uma forma de manifestação da cultura catarinense derivada do processo colonizador português e açoriano, e como tal deve ser assegurada e protegida pelo Estado. Diante da colisão de direitos fundamentais o Superior Tribunal Federal foi chamado a apreciar o caso no

3. MEIO AMBIENTE E A PROTEÇÃO DA FAUNA

A fauna, compreendida como o conjunto de todos os animais que vivem em uma determinada região, ambiente ou período geológico18, pode ser considerada atualmente como o mais importante indicador da biodiversidade terrestre, uma vez que, segundo a zoologia dominante, a quantidade e a variedade

16 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. p.175. 17 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. p.176.18 Portaria IBAMA -93-N de 07.07.1998, que dispõe sobre a importação e exportação de espécimes vivos, produtos e subprodutos da fauna silvestre brasileira e da fauna silvestre exótica, define o conceito de fauna em seu art. 2°.

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das espécies animais existentes em uma determinada região são diretamente proporcionais à quantidade e a qualidade da vegetação ali existente.19

Tradicionalmente, a preocupação dos estudiosos em relação à proteção da fauna se mantem vinculada às possíveis situações que acarretam a extinção das espécies e o consequente desequilíbrio ecológico local, regional e até mesmo nacional.

O próprio sistema de conservação da fauna brasileira, baseado no §1°, VII, do art. 225 da Constituição Federal, determina que os critérios de manejo adequado da fauna devem visar, apenas, a existência dos animais, evitar a extinção de espécies raras e, sobretudo, preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético faunístico do país.20

Entretanto, hodiernamente, com o nascedouro das ideologias advindas da teoria da ecologia profunda21, a comunidade científica e até mesmo a própria sociedade passaram a questionar o comportamento humano em face das demais espécies de vida existentes. Diante disto, o foco dos estudos relacionados à fauna e até mesmo o sistema de conservação desta, ganham novas dimensões, ao passo que, cada vez mais, justifica-se a necessidade de manutenção da dignidade no trato e na preservação dos animais não humanos, sendo inadmissível, nos dias atuais, a execução de práticas que submetam outros seres à crueldade.

3.1 A EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA NO PROTECIONISMO ANIMAL

A proteção dos animais não constitui uma prerrogativa do homem contemporâneo. A cerca de quarto mil anos atrás, já era possível encontrar registros de proteção à fauna. Os primeiros documentos mundiais referentes ao trato animal a que se tem notícia remontam ao Código de Hamurabbi, em 1.780 a.C, e ao papiro egípcio de Kahon, escrito no mesmo período histórico. Em ambos os documentos havia a previsão de regras comportamentais e obrigações humanas destinadas ao cuidado e a saúde dos animais.22

No Brasil, as primeiras normas relacionadas à proteção faunística derivam do período colonial, mais precisamente do ano de 1.603, com a redação das Ordenações Filipinas. Em tal documento, havia regulamentações para o combate da caça e pesca predatória, uma vez que, sendo a alimentação uma das necessidades fundamentais de todos os seres vivos e inexistindo legislação

19 MILARÉ, Edis. Direito do ambiente. p. 256.20 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. p. 197. 21 O termo ecologia profunda foi desenvolvido pelo filósofo norueguês Arne Naess para determinar a ecologia que inclui o homem como parte integrante do meio ambiente natural. Se contrapõe ao antropocentrismo e subdivide-se em biocentrismo e ecocentrismo. 22 ACKEL FILHO, Diomar. Direito dos animais. p. 26.

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pertinente à atividade alimentar, as singelas atividades pesqueira e de caça acabaram por concretizar incontáveis desastres no equilíbrio ambiental.

Trezentos anos mais tarde, o Código Civil de 1.916 retratou novamente a fauna nos documentos legislativos brasileiros, porém, até 1.967, ano de edição da Lei 5.179, referente à proteção da fauna, os animais eram tratados apenas sob a perspectiva patrimonial e os delitos contra a fauna eram considerados crime contra a propriedade.

A grande evolução no trato e preservação animal adveio com a promulgação da Constituição da República Federativa de 1.988. O citado documento inovou perante as demais Constituições nacionais e mundiais ao instituir um Capítulo destinado exclusivamente a proteção ambiental23, garantindo ao povo brasileiro um meio ambiente ecologicamente equilibrado e impondo ao Poder Público, em todas as suas esferas, e a sociedade como um todo a obrigatorieadade de defesa e preservação ambiental, de modo que as presentes e futuras gerações desfrutem de uma sadia qualidade de vida.

O art. 225, §1°, VII da Constituição supracitada consagrou o rpincípio da proteção jurídica dos animais contra a crueldade, assegurando de forma reflexa a efetividade do direito intergeracional de meio ambiente equilibrado e da qualidade de vida ao dispor que caberá ao Poder Público a proteção da fauna, sendo vedadas as práticas que coloquem em risco a função ecológica desta, bem como provoquem a extinção de espécies ou submetam animais a qualquer forma de crueldade.

Da redação do disposivo, conclui-se que é prerrogativa do Estado brasileiro a proteção contra atos cruéis, maus tratos e abandono para com todos os animais irracionais, independente da sua função ecológica, habitat, nacionalidade ou risco de extinção destes, pois, apesar de possuírem finalidades diversas, tanto os animais domésticos, quanto os domesticáveis, os exóticos e os selvagens devem receber a mesma proteção estatal, já que, independente de sua classificação, estão sujeitos as mesmas dores e sofrimentos gerados por atos de maus tratos e crueldade.24

Destarte, ao referir-se genericamente à proteção dos animais contra atos de crueldade de forma indistinta, a Carta Magna vigente rompe com a visão patrimonialista de natureza, assumindo caráter bicêntrico, visto que, além de conciliar o desenvolvimento econômico ao bem estar humano e a proteção jusfundamental do meio ambiente sadio25, tutela os animais não só pela sua escassez ou valor de mercado, mas também, pela capacidade funcional que estes assumem26.

23 Constituição Federal de 1988, Título VIII, Da ordem Social, Capítulo VI, Do Meio Ambiente.24 PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente. p.227. 25 LEVAI, Laerte Fernando.Crueldade Consentida: a violência humana contra os animais e o papel do Ministério Público no combate à tortura institucionalizada. p. 04.26 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e

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Ainda do dispositivo constitucional supracitado, verifica-se que o legislador não intencionou atribuir aos animais personalidade jurídica, provovendo-os à categoria de sujeitos de direito, ao contrário, quis o constituinte garantir a tutela contra atos de crueldade e maus tratos, uma vez que, a proteção da fauna demonstra-se como um interesse juridicamente relevante.27

Além de promover um avanço nos cuidados com a fauna, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988 influenciou a criação de dois importantes institutos de efetivação da proteção e preservação da fauna: o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (IBAMA) e o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC). De igual modo, o art. 225, da Carta Magna serviu como base para a propositura e o desenvolvimento da Lei 9.605 de 12 de fevereiro de 1.998, popularmente conhecida como Lei de Crimes Ambientais.

A lei 9.605/98 está divida em uma parte geral e uma parte específica. Na parte específica situam-se dos artigos 29 a 37, os crimes cometidos especificadamente contra a fauna.

Por entender que a seção normativa supramencionada compila todas as infrações ambientais contra a fauna, a maioria da doutrina se posiciona no sentido de que a Lei de crimes ambientais revogou tacitamente os demais crimes contra a fauna previstos nas leis 5.197/67 (Lei de proteção à fauna, também conhecido como Código de Caça) e 7.679/88, que proíbe a pesca mediante a utilização de explosivos, bem como o Decreto-lei 3.668/41, que traz as contravenções penais contra atos de maus tratos animais. A única exceção de revogação legislativa pela lei de crimes ambientais é a lei 7.643/87, que proíbe a pesca de cetáceos em águas jurisdicionais brasileiras.28

Para o trabalho em questão nos restringiremos ao estudo dos crimes faunísticos envolvendo atos de crueldade e maus tratos durante a realização de manifestações culturais populares brasileiras.

3.2 NEO-UTILITARISMO E BEM ESTAR ANIMAL

Antes de entrarmos na teoria neo-utilitarista do filósofo americano Peter Singer, é necessário fazer uma digressão da relação homem - animal, de forma que, entendendo a sistemática existente ao longo dos anos possamos compreender a importância que a teoria singeriana exerce na legislação brasileira referente aos maus tratos e atos de crueldade contra a fauna.

na proteção da fauna. p.180.27 Idem, p.179-180.28 GARCIA, Leonardo de Medeiros; THOMÉ, Romeu. Direito ambiental: princípios e competências constitucionais na lei 6.938/81; lei 4.771/65; lei 9.985/00 e lei 9.605/98. p.337.

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Os primeiros registros do ponto de vista jurídico da relação homem-animal advêm dos ensinamentos gregos. Em uma ordem cronológica, primeiramente se destacam os ensinamentos de Hesíodo, o qual pregava a separação entre seres de natureza racional e irracional. Os primeiros tinham como representantes os humanos, e estes, pelo fato de serem racionais deveriam ser sujeitos de proteção legal. Já os seres de natureza irracional, dentre os quais se destacam os animais, por serem desprovidos de intelecto não mereciam ser sujeitos de proteção jurídica.29

Em um segundo momento, Pitágoras influencia o pensamento de autores como Plutarco, Ovídio, Sêneca e Porfírio, os quais demonstram em suas obras uma grande preocupação com os animais, chegando inclusive a defender o vegetarianismo.30

Retrocedendo no pensamento protecionista animal, Aristóteles, considerava que os seres vivos estavam dispostos em uma ordem hierárquica, sendo que os seres inferiores deveriam servir ao ser dotado de razão.31

A idéia Aristotélica de utilização da razão como critério distintivo entre os sujeitos de direitos e os excluídos desse universo, expandiu-se anos afora, sendo aceita pelos romanos, retomada pelos medievais e usada posteriormente a favor da filosofia judaico-cristã.32

Com o advento do Renascimento, séculos XV e XVI, houve a recuperação dos valores grego-romanos e o homem passou, novamente, a ser considerado o centro do universo, entretanto, neste mesmo período, cientistas como Leonardo da Vinci e Giordano Bruno se contrapunham ao pensamento dominante ao destacar a pequenez humana diante do universo, manifestando repúdio as práticas que envolviam crueldade com animais.33

Com as descobertas de Copérnico e Galileu a fragilidade humana restou acentuada. Em sentido contrário, cientistas modernos como Francis Bacon e Descartes, recuperaram a filosofia de dominação do homem sobre a natureza. Descartes afirmava que os sentimentos moravam na alma, e por serem

29 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. p. 88. 30 FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios: alcance e limite da ética de Peter Singer em defesa dos animais. p.42.31 Para Aristóteles o único ser dotado de razão é o homem, sendo excluídos do grupo pensante os escravos, os metecos, as mulheres, os infantes e os dotados de distúrbios mentais, uma vez que estes eram considerados como seres desprovidos de razão própria (FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios: alcance e limite da ética de Peter Singer em defesa dos animais. p.44)32 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais. p. 37. 33 FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios: alcance e limite da ética de Peter Singer em defesa dos animais. p.51-53.

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desprovidos de alma, os animais jamais poderiam ter capacidade de sofrer. O pensamento cartesiano justificou durante anos a utilização dos animais em proveito do homem, mediante quaisquer atos de crueldade.34

Anos mais tarde, as descobertas da anatomia comparada e a evolução das espécies de Charles Darwin demonstraram as semelhanças anatômicas existentes entre a estrutura dos animais humanos e dos não-humanos. Outrossim, estudos com material genético provaram cientificamente a proximidade entre o homem e os grandes primatas, colocando em xeque a filosofia cartesiana que afirmava serem os humanos seres infinitamente superiores aos não humanos e que os últimos, por desprovirem de alma, detinham a capacidade de não sentir dor.35

Restou clara a singularidade humana através de estudos cientificamente comprovados, tornando insustentável a tese de superioridade genética do homem em relação aos animais. Influenciados por este contexto, um grupo de filósofos da faculdade de Oxford, nos Estados Unidos, liderados por Peter Singer retomaram na década de 70 do século passado as discussões sobre a capacidade dos animais não-humanos sentirem dor36. Os estudos de Singer e sua equipe proporcionaram o nascimento de uma tese protecionista animal, denominada neo-utilitarismo.

Por volta do ano de 1.970, baseado nas descobertas da anatomia comparada e nos estudos da evolução das espécies de Charles Darwin que demonstravam as semelhanças anatômicas existentes entre a estrutura dos homens e dos animais, o filósofo norte-americano Peter Singer desenvolveu uma tese ao qual denominou de neo-utilitarismo.

A teoria singeriana teve como base a teoria utilitarista desenvolvida no século XIX por Jeremy Benthan, John Stuart Mill e James Mill, na qual procurava-se maximizar a utilidade e a felicidade em prol do bem comum. Na teoria desenvolvida por Singer, a busca do bem comum amplia-se, a fim de compreender não apenas o bem estar dos humanos, mas também dos animais, os quais, segundo ele, seriam capazes de sentir dor e prazer tanto quanto os homens.37

A justificativa da teoria neo-utilitarista reside no princípio da igual consideração de interesses. Segundo este princípio, a nossa preocupação para com os “outros”38 não deve depender de como esses outros são e quais as aptidões por eles desenvolvidas, mas sim sobre a capacidade de sofrimento por eles sentida.39

34 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais. p. 41.35 Idem, p. 155 e 168, respectivamente.36 FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios: alcance e limite da ética de Peter Singer em defesa dos animais. p. 78.37 SINGER, Peter. Ética Pratica. p.67.38 O termo “outros”, na visão do autor, inclui tanto os humanos aunto os não-humanos.39 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e

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Com este pensamento, Singer criticar duramente a doutrina clássica até então vigente, cujo o critério de proteção jurídica decorria da consideração moral e das capacidades de razão e linguagem desenvolvidas pelo seres. Para o filósofo, o simples fato dos animais não pertencerem a espécie humana não traduz necessariamnete um baixo coificiente de inteligência, tão menos uma menor capacidade sensitiva de dor e prazer, o que injustificaria sua exploração em prol dos interesse humanos.40

Tal justificativa decorre de inúmeros estudos desenvolvidos por profissionais das mais diversas áreas, os quais, em sua maioria absoluta, comprovaram que os animais sentem dor, frio e fome, além de desenvolverem sentimentos de amor, companheirismo e solidariedade parecidos com os dos humanos. Estudos mais avançados também demonstram a capcidade intelectual dos animais não-humanos, comprovando que algumas espécies de golfinhos, macacos e cachorros detem um elevado coeficiente de inteligência.41

A vertente de defesa e protecionismo animal desenvolvida por Peter Singer recebeu a denominação de “Animal Welfare”, em português “bem-estar animal”. Tal corrente tem como fundamento o tratamento humanitário e a eliminação de qualquer forma de sofrimento que seja desnecessária os animais.

A filosofia “welfarista” apresenta-se bem aceita nos dias atuais42, pois, ao trabalhar apenas com a garantia de um mínimo exitencial aos animais, deixando de conferir-lhes direitos fundamentais de vida, liberdade e integridade física, todas as preocupação recaem apenas sobre os maus-tratos e a matança dolorosa e injustificada dos animais, permitindo desta forma, a mantutenção de interesses econômicos humanos, exigindo-se apenas que em tais atividades não se permita maus-tratos e atos de crueldade para com os animais.

Na contramão da filosofia neo-utilitarista de bem estar animal, surge nos Estados Unidos da América por volta da década de 80 do século passado a tese de extensão de direitos morais a animais, devido a um parâmetro de coerência que deve obrigatoriamente ser observado entre todos os seres que possuem determinadas capcidades e qualificam-se como sujeitos de uma vida.43

Tal teoria sustenta a necessidade de garantia de um mínimo existencial tal qual defende a teoria neo-utilitarista de Singer, entretanto, a tese de extensão de direitos de Tom Regan propõe que além de cessar o sofrimento dos animais é necessário que as leis em sentido amplo garantam a concessão de direitos

na proteção da fauna. p.98.40 SINGER, Peter. Ética Pratica. p.67.41 RODRIGUES, Danielle Tetü. O Direito & Os Animais, Uma Abordagem Ética, Filosófica e Normativa. p. 59. 42 Idem. p.207.43 FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios: alcance e limite da ética de Peter Singer em defesa dos animais. p14.

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fundamentais de vida, liberdade e preservação da integridade física aos animais44.

No Brasil, a extensão de direitos fundamentais a animais não-humanos encontra forte resistência doutrinária e até mesmo jurisprudencial. Para a maioria dos doutrinadores brasileiros a proteção dos animais existe apenas e tão somente com o intuito de proteger os interesses humanos, sendo que, apenas uma minoria dos cientistas pátrios defende e evoca os ensinamentos de Regan ao entender que os animais, independente de sua classificação taxonômica, são seres vivos com personalidade autônoma sui generis, devendo, portanto, ser protegidos como sujeitos de direito, uma vez que são dotados de percepção e sensações.45

Apesar das críticas ao “welfarismo”, a legislação brasileira de protecionismo à fauna46 adota como fundamento a teoria neo-utilitarista de bem estar animal de Peter Singer, garantindo aos animais apenas, e não por isso menos importante, a impossibilidade de que atos humanos lhes acarretem maus tratos e crueldade.

3.3 DEFINIÇÃO LEGAL DE CRUELDADE E AS CONSEQUÊNCIAS DOS MAUS TRATOS GERADOS PELO ABUSO NAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS

O decreto 24.645, de 10 de julho de 1.934, referente às medidas de proteção animal definia em seu art. 3° os atos configuradores de maus tratos. Entretanto, a Lei de crimes ambientais editada posteriormente e responsável pela revogação do referido decreto não estabeleceu nenhuma definição legal para o termo crueldade, tão pouco elencou os atos passíveis de expor animais a maus tratos.

Diante desta lacuna legislativa, alguns autores como Edna Cardoso Dias entendem que a concepção de crueldade prevista no decreto 24.645 não foi revogada, podendo ser aplicada atualmente47, entretanto este não é o posicionamento da maioria da doutrina, tão menos dos Tribunais Superiores, o qual, diante da ausência conceitual legislativa tem buscado conceitos definidos ora pela própria língua portuguesa, ora por renomados estudiosos.

De acordo com o dicionário Aurélio de língua portuguesa, o termo crueldade reporta-se àquele que se compraz em fazer mal, em ser desumano, pungente, doloroso, sanguinolento.48

44 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. p.101.45 RODRIGUES, Danielle Tetü. O Direito & Os Animais, Uma Abordagem Ética, Filosófica e Normativa. p.77.46 Trata-se da legislação em sentido amplo, abrangendo todas as espécies normativas que tem como objeto a preservação e proteção da fauna. 47 DIAS, Edna Cardozo. A tutela jurídica dos animais. p. 157.48 Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3°ed. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1993.

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Já para a doutrina há dois conceitos que por serem ao mesmo tempo amplo e detalhado vem sendo utilizados tanto por estudiosos do ramo jurídico quanto por aplicadores do direito49.

O primeiro conceito é o do renomado lingüista brasileiro Antenor Nascentes, que, no dicionário de sinônimos da editora Nova Fronteira definiu crueldade como sendo a qualidade de cruel; sevícia como sendo a crueldade ferina e feralmente, no plural, significando maus tratos. Assim, crueldade na visão de Nascentes assume um significado amplo, genérico, abrangendo em si outras modalidades de violência como abusos, maus tratos, ferimentos e mutilações.50

O outro conceito, formulado por Helita Barreira Custódio, define crueldade como sendo toda ação ou omissão dolosa ou culposa, em locais públicos ou privados, que envolvam atos de matança cruel pela caça abusiva, desmatamentos ou incêndios criminosos, poluição ambiental, experiências científicas, abates atrozes, castigos violentos e adestramentos por meios de instrumentos torturantes. Ainda de acordo com a autora, constitui crueldade quaisquer outras condutas impiedosas que resultem em maus tratos e que, consequentemente, submetam animais a sofrimentos decorrentes de lesões corporais, a invalidez, a angústia, a excessiva fadiga ou a exaustão.51

Diante do apresentado constata-se que, embora o significado de crueldade não se apresente legalmente nas normas nacionais referentes à proteção da fauna, o judiciário tem se valido dos pressupostos hermenêuticos e dos avanços da doutrina para não se omitir diante da lacuna legislativa.

No que se refere às consequências dos maus tratos gerados em animais após o cometimento de atos de crueldade, não resta dúvidas tão menos divergência de opinião entre os estudiosos: são extremamente devastadoras seja no físico quanto no psíquico dos animais.

Estudos promovidos pela professora Irvênia Luiza de Santis Prada52, sob a forma analógica e de observações neuroatômicas e comportamentais, revelaram que a organização morfofuncional de todos os mamíferos e o sistema nervoso destes estruturam-se de forma comum, diferentemente do que pensava a etologia53 clássica. Ainda segundo estudos da equipe da douta professora, o sistema nervoso não só dos mamíferos, mas de todos os animais vertebrados são organizados segundo o mesmo modelo: medula espinhal, tronco encefálico,

49 Neste sentido, STF: ADI 2514/SC, STJ: Resp 1.115.916/MG e TRF da 4° Região: Apelação cível 2006.70.00.009929-0/PR 50 LEVAI, Laerte Fernando. Crueldade Consentida: a violência humana contra os animais e o papel do Ministério Público no combate à tortura institucionalizada. p. 02.51 CUSTÓDIO, Helita Barreira. Crueldade contra animais e a proteção destes como relevante questão jurídico-ambiental e constitucional. p.66. 52 Professora da cadeira de Anatomia da Universidade de São Paulo- USP,53 Etologia pode ser entendida como o estudo dos comportamentos.

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cérebro e cerebelo54. É claro que há variações anatômicas do sistema nervoso de uma espécie para outra, entretanto, o modelo é basicamente o mesmo.

Para doutora da cadeira de Anatomia da Universidade de São Paulo- USP, o psiquismo dos animais é muito rico, compreendendo a vivência de sensações, sentimentos e sofrimentos.55

Conclui-se através dos resultados supracitados que: por ser o sistema nervoso de todo vertebrado compreendido pelo mesmo modelo e sendo o homem uma das espécies de vertebrados, as mesmas sensações de dor, angústia, fadiga e exaustão sentidas pelos humanos são sentidas também pelos demais vertebrados não humanos.

Assim, não resta dúvidas que os maus tratos e atos de crueldade acarretam tanto dores físicas, quanto consequências psíquicas nos animais utilizados como instrumentos de atividades recreativas.

4. A PONDERAÇÃO PRINCIPIOLÓGICA NA SOLUÇÃO DE CONFLITOS

A proporcionalidade, apontada por alguns doutrinadores como regra, por outros como princípio e por outros ainda como postulado, vem crescendo cada vez mais em importância no Direito Brasileiro, uma vez que, atua como instrumento de controle dos atos do Poder Público em seu sentido negativo, e como meio impeditivo à omissão ou atuação insatisfatória do Estado, em seu aspecto positivo.56

Oriunda do século XIX, a idéia de proporcionalidade foi introduzida inicialmente por administrativistas alemães às normas relativas ao poder de polícia e seus limites. Anos mais tarde, mais precisamente em 1.949, com a vigência da Lei Fundamental da Alemanha, a idéia de proporcionalidade foi inserida na esfera jurídico-constitucional, sendo aceita tanto pela doutrina, quanto pela jurisprudência alemã.57 Atualmente, a aplicação mais valorativa do instituto pode ser observada no campo do Direito Constitucional.

Herdeira das novas tendências hermenêuticas, principalmente do método concretizador de Hesse, a proporcionalidade admite a importância dos valores na interpretação constitucional, bem como, valoriza as circunstâncias fáticas do caso concreto para a solução dos conflitos normativos.58

54 PRADA, Irvênia Luiza de Santis. A alma dos animais.p.26.55 LEVAI, Laerte Fernando. Crueldade Consentida: a violência humana contra os animais e o papel do Ministério Público no combate à tortura institucionalizada. p. 02.56 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. p. 27.57 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. p. 76.58 Idem, p. 74.

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Apesar do reconhecimento de sua importância na solução de conflitos normativos, grande parte dos doutrinadores ainda diverge quanto à sua natureza e fundamento jurídicos.

Para a maioria da doutrina, a proporcionalidade é compreendida como um princípio edificante do Estado de Direito. Neste sentido, Cristiane Derani a define como sendo um princípio orientador, sem conteúdo próprio e usado apenas como instrumento de busca pelo justo, aplicado às relações concretas nas quais deve-se optar pela prevalência de alguns princípios em detrimento de outros.59 Na mesma linha da autora, destacam-se Gilmar Ferreira Mendes, Canotilho, Paulo Bonavides e Daniel Sarmento.

Virgílio Afonso da Silva ao contrário, defende a proporcionalidade como uma regra de interpretação e aplicação do direito, cujo objetivo principal é fazer com que nenhuma restrição a direitos fundamentais tome dimensões desproporcionais. Nas próprias palavras do autor, trata-se de uma restrição às restrições.60

Um terceiro posicionamento sobre a natureza jurídica da proporcionalidade advém do douto professor Humberto Ávila, o qual atribui ao instituto a classificação de postulado normativo aplicativo, sendo empregado apenas nos casos em que há uma relação de causalidade entre um meio e um fim.61

No que tange ao fundamento jurídico da proporcionalidade, novamente a doutrina diverge. Para sua grande maioria, liderada por Gilmar Ferreira Mendes e Canotilho, o fundamento jurídico da proporcionalidade reside no Estado Democrático de Direito.

Há, entretanto, uma minoria que sustenta ser o fundamento da proporcionalidade decorrente de inúmeros dispositivos constitucionais, dentre eles o que estabelece a dignidade da pessoa humana, o princípio da reserva legal e da proteção judiciária. Neste sentido defendem Paulo Bonavides e Suzana de Toledo Barros.62

Virgílio Afonso da Silva vai à contramão de ambos os posicionamentos acima mencionados ao afirmar que a regra da proporcionalidade não encontra seu fundamento em dispositivos legais de direito positivo, ao contrário, decorre, de forma lógica e racional, da própria estrutura dos direitos fundamentais.63

Diferentemente das divergências que reinam sobre sua natureza jurídica e fundamentação, a estrutura do instituto da proporcionalidade é aceita

59 DERANI, Cristiane. Privatização e serviços públicos. p.163.60 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. p. 24.61 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. p. 145.62 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. p. 81.63 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. p. 43.

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de forma pacífica pela doutrina, sendo inclusive admirada pela racionalidade com que soluciona os conflitos normativos perante o caso concreto.

Dividida estruturalmente em três sub-regras, ou elementos, a proporcionalidade clama pela observância da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Adequação, segundo Humberto Ávila, nada mais é que a relação empírica na qual o meio deve levar à realização de um fim.64 Ainda segundo o autor, os meios escolhidos pelo administrador ou legislador para o alcance do fim podem variar quantitativamente, qualitativamente ou probalisticamente, uma vez que, o meio variará de acordo com o caso concreto apresentado. A única exigência, segundo o autor, reside no fato de que o meio escolhido para o caso concreto seja suficiente para que se alcance um determinado fim.65

Virgílio Afonso da Silva entende que adequado é o meio cuja utilização para a realização de um objetivo é fomentada, independentemente se o meio escolhido foi completamente realizado ou não.66

No que tange à necessidade, esta pode ser compreendida como a escolha do meio mais suave dentre os diversos meios disponíveis. Em outras palavras, deve-se primar pela escolha do meio que afete de forma mínima bens e valores constitucionalmente protegidos, quando estes, por ventura, vierem a colidir com outros bens e valores fundamentais consagrados na norma interpretativa.67

Já a proporcionalidade em sentido estrito nada mais é que a comparação entre a importância da realização do fim e a intensidade da restrição dos direitos fundamentais.68 Nas palavras de Virgílio Afonso da Silva, proporcionalidade em sentido estrito é o sopesamento entre a intensidade da restrição do direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e fundamenta a adoção da medida restritiva.69

Vale lembrar que para Robert Alexy a adequação e a necessidade são elementos que relacionam-se com a possibilidade fática dos princípios, enquanto que a proporcionalidade em sentido estrito, relaciona-se com a relativização de um princípio em face das possibilidades jurídicas.70

Para a maioria da doutrina os três elementos supracitados, quais sejam, a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito, concretizam a proporcionalidade como um dos instrumentos mais eficazes de solução de

64 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. p. 167.65 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. p. 171.66 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. p. 36.67 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. p. 80.68 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. p. 175.69 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. p. 40.70 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. p.117.

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conflitos concretos, pois, a subsidiariedade dos elementos e a ordem predefinida de observação fazem com que a estrutura jurídica da solução dos conflitos se dê de forma racional, evitando-se com isto, a ocorrência de possíveis injustiças na decisão do caso concreto.

4.1 CONCLUSÕES

O Direito Ambiental, ou Direito do Ambiente71 constitui um dos novos ramos jurídicos e considerando que os “novos direitos” apresentam-se como direitos apenas prima facie, pode-se ressaltar a importância da proporcionalidade como instrumento de otimização desses direitos no plano concreto.72

Tal afirmação reside no fato dos direito fundamentais terem como característica o princípio da relatividade ou limitabilidade. Segundo o princípio referido, não existem direitos fundamentais absolutos, pois todos encontram limites em outros direitos também consagrados na Constituição, tão pouco existe hierarquia entre tais direitos, sendo impossível afirmar que um é superior a outro. Se não houvesse a limitabilidade, os direitos fundamentais seriam obrigatoriamente considerados como absolutos, e, assim sendo, jamais seria possível ocorrer a ponderação principiológica entre dois ou mais direitos conflitante no caso concreto, pois aquele princípio de maior hierarquização sempre iria prevalecer em face dos direitos com valoração inferior.

No caso em tela, verifica-se a importância do instituto da ponderação principiológica diante da colisão de dois direitos fundamentais, ambos derivados do direito fundamental de vida digna. A proporcionalidade vem justamente para solucionar a colisão do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado com o direito à liberdade de manifestação cultural. A necessidade da utilização da ponderação para solução do caso concreto, justifica-se segundo duas fundamentações. Advém da própria conflituosidade dos novos direitos biodifusos e da necessidade de se empregar os elementos da proporcionalidade como mecanismo para se atingir uma decisão de melhor qualidade e mais protegida contra o arbítrio estatal.73

71 MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. p.54.72 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. p. 147.73 Idem, p.146.

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A PROPRIEDADE INTELECTUAL COMO PROPULSORA DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL

thiago Paluma74

Juliana demori de andrade75

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Atualmente, o conhecimento humano e o fruto de sua capacidade inventiva têm se mostrado como um dos produtos mais bem remunerados, tendo em vista que é necessário, via de regra, anos de investimento e pesquisa para a criação de novas técnicas.

Os países detentores de modernas tecnologias valem-se dessa situação confortável e através do comércio desse valioso produto auferem lucros extraordinários. O Brasil, por exemplo, no ano de 200876, segundo dados do INPI, movimentou dois bilhões quatrocentos e vinte e oito milhões de dólares em remessas ao exterior por transferência de tecnologia.

O efetivo investimento em pesquisa, por parte da iniciativa pública ou privada, revela uma característica importante que aponta o nível de crescimento econômico e social do país, ou que pelo menos esse país esteja caminhando rumo a um futuro com desenvolvimento pleno. Comprova-se esta afirmação, vislumbrando-se os números a seguir apontados.

Enquanto o Brasil em 2010 registrou no USPTO (United States Patent Trade Office)175 patentes, Israel obteve 1.819, Coréia do Sul 11.671, Índia 1.098, Japão 44.814 e EUA 107.792 patentes77. Esses cinco últimos países estão entre os maiores exportadores de conhecimento do mundo, e o lucro gerado com essas tecnologias permitem a realização de investimentos em áreas sociais, como educação, saúde e melhores condições de trabalho.

74 . Advogado Sócio do Escritório Demori e Paluma Advogados Associados. Professor do Curso de Direito da Faculdade Pitágoras-Uberlândia e de diversos cursos de Pós-Graduação (lato sensu) em Uberlândia e Região. Mestre em Direito pela UFU. Doutorando em Direito Internacional Privado pela Universitat de València – Espanha. Membro pleno da Asociación Americana de Derecho Internacional Privado. Email: [email protected] 75 Advogada Inscrita na OAB/MG e Sócia de Demori e Paluma Advogados Associados. Professora do curso de Direito da UNIPAC-Uberlândia. Especialista em Direito Tributário pelo IBET (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários) e em Direito Público pela Universidade Católica Dom Bosco. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia. Email: [email protected] 76 Dados disponíveis em <http://www.inpi.gov.br/menu-esquerdo/contrato/pasta_estatisticas-new-version/remessas_html-new-version-new-version>. Acesso em: 17 set. 2011.77 USPTO. Patent Counts by Country/State and Year. USPTO. Disponível em <http://www.uspto.gov/web/offices/ac/ido/oeip/taf/cst_utl.pdf>. Acesso em: 15 set. 2011.

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Ao longo deste capítulo será demonstrada, primeiramente, a relação entre o Desenvolvimento e a propriedade intelectual. Em um segundo momento, abordar-se-á a inserção do tema Desenvolvimento no Acordo TRIPS/OMC, que, atualmente, é a principal norma jurídica sobre o tema Propriedade Intelectual na esfera internacional. Por fim, será realizado um estudo das bem-sucedidas experiências do Japão, Coréia do Sul e Índia, o que permitirá uma análise comparativa com a realidade brasileira e a política e legislação nacional sobre o tema.

2. RELAÇÃO ENTRE OS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL E O DESEN-VOLVIMENTO

Para iniciar o presente tópico faz-se necessária uma remissão ao pensamento de Amartya Sen. Como exposto anteriormente, o desenvolvimento é liberdade e para alcançá-lo é necessário que se removam as fontes que privam esta liberdade78. Dessa forma, o Estado deve combater problemas estruturais (de ordem social, econômica e política), tais como: pobreza, poucas oportunidades econômicas, má-distribuição de renda, ineficiência na prestação de serviços públicos, interferências internacionais, ordenamento jurídico adequado e instituições públicas (administrativas ou judiciais) sólidas. A melhor prestação desses serviços e a atuação mais eficiente do Estado possibilitará a constituição de um plano de desenvolvimento equilibrado e sustentado.

No que tange às interferências internacionais excessivas pode-se citar a imposição da continuidade da dependência dos países em desenvolvimento ou com menor desenvolvimento relativo em relação aos países desenvolvidos, que se dá através de acordos que visam uma maior proteção dos direitos à propriedade intelectual, como os TRIPS-Plus e TRIPS-Extra.

O acordo TRIPS, sem dúvida, constitui-se como um importante instrumento de proteção da propriedade intelectual em nível internacional, porém, os países desenvolvidos, descontentes com algumas lacunas existentes neste Acordo, forçam os países menos desenvolvidos, principalmente os emergentes, a assinarem tratados que disponham sobre um nível de proteção superior a estabelecida no TRIPS (TRIPS-Plus) ou em que “abram mão” de suas brechas e salvaguardas.

Os professores Luiz Otávio Pimentel e Welber Barral, sobre a pressão dos países desenvolvidos em elevar os padrões de proteção da propriedade intelectual nos demais países, explicam que:

78 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 18.

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A corrente de Sherwood postula que os países subdesenvolvidos devem aumentar a proteção à propriedade intelectual para obterem benefícios substanciais, como investimentos, tecnologia e, em geral, um crescimento econômico do país79.

O aumento da proteção como garantia de desenvolvimento, por supostamente estimular a produção tecnológica é, segundo opinião dos supracitados professores, um sofisma. A efetiva transferência de tecnologia é o único meio capaz de gerar desenvolvimento, se conjugada conjuntamente com políticas de investimentos em novas tecnologias80.

Conforme exposto no segundo capítulo deste trabalho existem instrumentos internacionais fortemente comprometidos em proteger os direitos de propriedade intelectual. Da mesma forma, tais instrumentos são, em sua maioria, eficientes no que tange à vigilância dos países-membros quanto à observância das disposições pactuadas. Kelly Bruch, Débora Hoff e Eveline Brigido ressaltam que:

[...] a questão que se apresenta é como os países que não são líderes na produção de tecnologia podem adotar políticas públicas para a promoção do desenvolvimento, sem violar os tratados dos quais são partes81.

Os países em desenvolvimento possuem a difícil tarefa de gerarem desenvolvimento sem infringirem as disposições dos tratados firmados, como é o caso do TRIPS. Dessa forma, políticas públicas juridicamente bem estruturadas devem ser criadas simultaneamente às elaborações de normas jurídicas condizentes com a realidade de cada Estado, de forma que todas as brechas e possibilidade de flexibilidade dos tratados internacionais sejam eficientemente utilizadas.

Um eficiente instrumento para limitar o poder econômico de grandes corporações que utilizam os direitos de proteção da propriedade intelectual

79 PIMENTEL, Luiz Otávio; BARRAL, Welber (Org.). Propriedade Intelectual e Desenvolvimento. Florianópolis: Editora Fundação Boiteux, 2007, v. 1. p. 26.80 Daniel Rocha Corrêa com base nos ensinamentos econômicos trazidos por Schumpeter afirma que “[...] a tecnologia, sob a forma de inovação, poderá ser favorável também para o processo do desenvolvimento econômico. Conforme Joseph A. Shumpeter já assinalou, o desenvolvimento é um processo de mudança espontânea e descontínua que supõe o emprego de inovações.” CORRÊA, Daniel Rocha. “Política tecnológica e defesa da concorrência”. In.: OLIVEIRA, Amanda Flávio de (Coordenadora). Direito econômico – evolução e institutos: obra em homenagem ao professor João Bosco Leopoldino da Fonseca: Rio de Janeiro: Forense, 2009. Págs. 97-126.81 BRUCH, Kelly Lissandra; HOFF, Débora Nayar; BRIGIDO, Eveline Vieira. Propriedade Intelectual: Desenvolvimento e governabilidade nos países em desenvolvimento. In: BARRAL, Welber; PIMENTEL, Luiz Otávio; CORREA, Carlos M. Direito, Desenvolvimento e Sistema Multilateral de Comércio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. p. 188.

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para auferir cada vez mais lucros, como o monopólio na exploração, é a licença compulsória.

No caso do Brasil, a licença compulsória de patentes que sejam de interesse público82 possui respaldo em vários artigos constitucionais e infraconstitucionais83. Porém, qualquer justificativa baseia-se no princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Este princípio faz com que a medida governamental seja considerada justa e legal. Na esfera internacional tais medidas são previstas, conforme exposto em momento anterior, pelo TRIPS. Outra forte justificativa que deve ser considerada é a preservação da livre-concorrência84.

Não restam dúvidas que a produção de tecnologia própria ou a transferência de tecnologia advinda de Estados estrangeiros gera desenvolvimento econômico para o país receptor, mesmo que esse desenvolvimento refira-se apenas ao lucro gerado pelo aumento ou melhora na produção. César Flores, quanto à relação entre os benefícios estatais advindos de investimentos privados, leciona que:

A economia mundial cresce a cada dia e toma proporções assustadoras, inviabilizando uma divisão entre o interesse público, desenvolvimento do Estado, o interesse privado, e melhora na produção industrial. A cada dia, o volume de recursos gerados pela iniciativa privada influencia mais no desenvolvimento da economia estatal85.

Todavia, a grande questão fica na seara do desenvolvimento social e na alienação gerada pela dominação dos países detentores de capital e tecnologias de ponta em relação aos países menos desenvolvidos. Um aumento de arrecadação, momentâneo, advindo da aplicação de uma técnica importada para uma produção já existente é esperado. Porém, com o passar dos anos, não havendo investimentos em pesquisa concomitante à importação de técnicas, a dominação e dependência são cada vez maiores.

O desenvolvimento tecnológico é um dos meios para se chegar ao desenvolvimento social e econômico86. No entanto, a relação de domínio e

82 Podem ser citados, a título de exemplo, como interesse público: saúde, desenvolvimento tecnológico, proteção à genética da flora e fauna brasileira, dentre outros interesses.83 Ver arts. 68 a 74 da Lei de Propriedade Industrial e art 5º, Incisos XXIII e XXIX da Constituição Federal. 84 Ver arts. 2°, V e 195 da Lei de Propriedade Industrial85 FLORES, César. Contratos Internacionais de Transferência de Tecnologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 88.86 A respeito da situação de subjugação tecnológica dos países pobres, temos o competente e sempre oportuno pensamento de Celso D. de Albuquerque Mello. Para o ilustre jurista: “Um dos grandes problemas do Direito Internacional Econômico e a nova ordem econômica internacional é a transferência de tecnologia que os países ricos só transferem aos pobres quando

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dependência tecnológica gera um círculo vicioso, principalmente quando essa transferência de tecnologia não vem acompanhada de investimentos em pesquisa, como a criação de centros de P&D, e uma sólida relação de cooperação científica ou tecnológica, entre governos ou entre a iniciativa pública e privada87.

Mesmo antes da criação do Acordo TRIPS, os países em desenvolvimento ou com menor desenvolvimento relativo propunham uma maior flexibilidade dos acordos internacionais, para que eles também conseguissem se desenvolver tecnologicamente até mesmo a partir de técnicas já existentes no mercado. É de interesse dos países desenvolvidos que os períodos de proteção e exclusividade para exploração da propriedade intelectual sejam cada vez maiores, pois dessa forma os países destituídos da tecnologia ficam por mais tempo dependentes.

Outra relação que deve ser analisada é a existente entre a soberania88 dos países e a dependência tecnológica. A dependência tecnológica gera consequentemente a dependência econômica, principalmente, quando a tecnologia que o Estado menos desenvolvido necessita encontra-se inserida em sua cadeia produtiva. Um país não será totalmente independente na esfera internacional, enquanto, por exemplo, ele negociar outras questões com um país que seja o produtor da tecnologia que é básica e essencial para sua principal fonte de produção industrial.

Exemplo de norma que se possuísse aplicabilidade seria extremamente vantajosa para os países menos desenvolvidos é a do item 2 do artigo 66 do Acordo TRIPS. Ela estabelece a necessidade dos países desenvolvidos de

ela se encontra ultrapassada. (...) A transferência de tecnologia realizada na sociedade internacional não atende aos países pobres e sofre uma série de críticas: a) quando ela é realizada, não beneficia toda a sociedade do Estado, mas é feita apenas em proveito de uma filial ou subsidiária de uma empresa cuja matriz está no exterior. A transferência ficou restrita a verdadeiras ilhas no Estado pobre; b) a transferência é quase sempre de técnicas consideradas obsoletas; c) existe uma diferença entre “técnica” e “tecnologia” (...) É claro que os países ricos preferem transferir a técnica e não a tecnologia; d) critica-se ainda que a tecnologia transferida nem sempre é a que atende as necessidades do desenvolvimento; e) o preço da transferência é muito elevado para os países pobres; f) o processo de transferência aumenta a dependência dos países pobres”. MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 12 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. Vol. II. p. 1604.87 Para um estudo mais aprofundado no que tange à Propriedade Intelectual e a transferência de tecnologia nas Universidades, é de leitura obrigatória a obra “Propriedade Intelectual e Universidade”, de Luiz Otávio Pimentel. PIMENTEL, Luiz Otávio. Propriedade Intelectual e universidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005.88 “[...] pode-se conceituar soberania como o poder que um povo possui de, com base em fundamentos jurídicos máximos, ou seja, por ação da vigência de instituições formalizadas no âmbito da Constituição, autogovernar-se dentro da circunscrição de um território com poder supremo não se submetendo a qualquer outro ordenamento normativo superior visto que mantém uma relação com outros entes de Direito Internacional de coordenação, horizontalidade e não de submissão, baseada na percepção e aceitação de igualdade entre os mesmos.” FÉLIX, Luiz Fernando Fortes. Soberania e ‘Risco Brasil’. In.: GUERRA, Sidney; SILVA, Roberto Luiz. Soberania: Antigos e Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004. p. 186-187.

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concederem “incentivos a empresas e instituições de seus territórios com o objetivo de promover e estimular a transferência de tecnologia aos países de menor desenvolvimento relativo, a fim de habilitá-los a estabelecer uma base tecnológica sólida e viável”.

Os países menos desenvolvidos, membros da OMC, possuem como obrigação, mesmo que gozando de um prazo maior, de adequar-se ao Acordo TRIPS89. Em contrapartida, os países desenvolvidos, por serem a curto prazo os maiores beneficiados pela proteção da propriedade intelectual, devem, em respeito ao preceituado no artigo 66.2 do TRIPS, transferir tecnologia para os países menos desenvolvidos, e não apenas a técnica, ou seja, o produto final da pesquisa com objetivo de aumentar a relação de dependência.

Essa transferência de tecnologia no sentido Norte-Sul que visa, como estabelecido no próprio dispositivo do TRIPS, “estabelecer uma base tecnológica sólida e viável” não ocorre, justamente pelas razões anteriormente expostas, quais sejam: a) que a dependência tecnológica resulta numa dependência econômica, b) que consequentemente desencadeia uma carência do mercado, mantendo os países do norte na posição de principais fornecedores de tecnologias de ponta.

Deve-se, com a finalidade de fundamentar os argumentos acima expostos, recorrer às lições de Amartya Sen90, para quem:

[...] A despeito de aumentos sem precedentes na opulência global, o mundo atual nega liberdades elementares a um grande número de pessoas – talvez até mesmo à maioria. Às vezes a ausência de liberdades substantivas relaciona-se diretamente com a pobreza econômica, que rouba das pessoas a liberdade de saciar a fome, de obter uma nutrição satisfatória ou remédios para doenças tratáveis, a oportunidade de vestir-se ou morar de modo apropriado, de ter acesso a água tratada ou saneamento básico.

A título de exemplo tem-se o Japão e a Coréia do Sul, que se tornaram em menos de meio século potências econômicas, com excelentes níveis sociais,

89 Acordos multilaterais como a OMC exigem aos países em desenvolvimento mudanças institucionais que geram um aumento dos custos administrativos. Welber Barral afirma que “o exemplo que vem à mente são as exigências decorrentes do acordo sobre propriedade intelectual (TRIPS) da OMC, que impõe obrigações administrativas a países já exauridos por custos fiscais proibitivos para sua reforma institucional. Afinal, o custo das reformas regulatórias pode representar um peso relevante para países pobres tanto em termos de custos de implementação quanto em custos de oportunidade relativos ao redirecionamento de investimentos que poderiam ser aplicados na minimização de problemas sociais”. BARRAL, Welber. A influência do comércio internacional no processo de desenvolvimento. In.: BARRAL, Welber; PIMENTEL, Luiz Otávio. Comércio Internacional e Desenvolvimento. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. p. 22.90 SEN, op. cit., p. 18.

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tendo como um dos pilares de suas políticas de crescimento, um programa viável de propriedade intelectual, acelerado pela transferência de tecnologia, que foi intensamente estimulada por esses governos.

Essa relação permite uma análise da relação proposta entre os elementos Desenvolvimento e proteção jurídica dos direitos de propriedade intelectual. Dessa forma, no próximo item será abordada tal relação no âmbito do principal documento jurídico internacional sobre a matéria (Acordo TRIPS).

3. PROPRIEDADE INTELECTUAL E DESENVOLVIMENTO NO ÂMBITO DO ACORDO TRIPS/OMC

Em um primeiro momento, o Acordo TRIPS realiza, no preâmbulo, uma menção ao desenvolvimento como objetivo dos países membros da OMC. Tal disposição tem caráter mais programático do que aplicabilidade normativa, pois não possui nenhum comando objetivo. No entanto, sua importância reside justamente na interpretação sistemática91 que deve ser realizada em relação ao texto do TRIPS, de modo que todas as disposições realizadas nos artigos deste acordo sejam interpretadas a partir dos parâmetros e valores inseridos no preâmbulo.

Ainda no preâmbulo é reconhecido que os direitos de propriedade intelectual possuem natureza de direito privado. Tal reconhecimento é importante, pois permite a flexibilização destes direitos quando confrontados com interesses de natureza de direito público92.

Nos artigos subsequentes ao preâmbulo a preocupação com o desenvolvimento estatal gerado a partir de direitos de propriedade intelectual é exteriorizada no artigo 7 que ressalta que a proteção destes direitos e a aplicação do acordo devem ter como objetivo: promover a inovação tecnológica; contribuir para a transferência de tecnologia; gerar bem-estar social e econômico; e, criar um equilíbrio entre direitos e obrigações.

Os objetivos descritos no artigo supracitado acompanham, enquanto obrigações positivas, as disposições do Acordo TRIPS. Com caráter menos

91 Paulo Nader salienta que “Não há, na ordem jurídica, nenhum dispositivo autônomo, autoaplicável. A norma jurídica somente pode ser interpretada e ganhar efetividade quando analisada no conjunto de normas pertinentes a determinada matéria”. NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 33 ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 278.92 A supremacia do interesse público sobre o privado é uma máxima do Direito que subsiste, ainda que com menos força, até os dias atuais. Luís Roberto Barroso pondera que “O interesse público primário, consubstanciado e valores fundamentais como justiça e segurança, há de desfrutar de supremacia em um sistema constitucional e democrático. [...] O interesse público primário desfruta da supremacia porque não é passível de ponderação; ele é o parâmetro da ponderação”. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 72.

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programático que o preâmbulo, o artigo 7 é importante na medida em que traça parâmetros concretos que devem guiar a aplicação de referido acordo. Caso algum Estado-membro não respeite a disposição realizada acerca de algum destes objetivos é possível que este Estado seja levado ao procedimento de resolução de conflitos da OMC. De maneira inversa, os Estados em desenvolvimento podem utilizar tais objetivos para moldar a forma como aplicam o TRIPS no âmbito interno.

O artigo 8, nomeado de “Princípios”, possui importante consideração. Tal dispositivo possibilita que os Estados, quando da adequação de suas legislações internas aos padrões mínimos do TRIPS, adotem medidas protetivas justificadas, dentre outras possibilidades, na promoção do “desenvolvimento sócio-econômico e tecnológico” do país. A primeira consideração que deve ser realizada é quanto à extensão do conceito de Desenvolvimento empregado pelo TRIPS. Não se trata somente do desenvolvimento econômico ou tecnológico (matéria objeto do Acordo), mas também do social, que em uma interpretação ampla abrange a educação, saúde, saneamento básico, inclusão social, dentre outros.

Uma segunda consideração que deve ser realizada refere-se à forma como tal dispositivo poderia ser aplicado pelos países em desenvolvimento ou com menor desenvolvimento relativo. Tais brechas legais devem ser utilizadas de maneira mais consistente por estes Estados, pois se trata de uma flexibilização dos padrões de proteção de propriedade intelectual previstos pelo acordo. No entanto, tem-se observado, principalmente a partir de uma análise do Brasil, que se incorporam os padrões de proteção previstos pelo acordo sem um adequado estudo de impacto e plano futuro de desenvolvimento.

Como forma de instrumentalizar os princípios trazidos na primeira parte do artigo 8, a segunda parte dispõe que os Estados podem utilizar medidas que visem evitar o abuso da exclusividade que o autor/inventor possui ou para impedir as práticas, também decorrentes da exclusividade, que limitem o comércio ou a transferência internacional de tecnologia. Tais medidas devem ser compatíveis com as disposições seguintes do Acordo TRIPS, como, por exemplo, a utilização da patente sem a autorização do titular (art. 31 do TRIPS).

No que se referem às patentes o artigo 31 do TRIPS permite o licenciamento compulsório da exclusividade do titular sobre a produção. Este artigo determina todas as situações e procedimentos que devem ser observados para este licenciamento. Primeiramente, deve ter ocorrido, entre o governo e o titular, uma negociação para se tentar chegar a condições comerciais razoáveis. Tal negociação pode ser dispensada pelo governo em situações de emergência nacional, situações de urgência ou uso público não-comercial.

A duração e o alcance do uso da patente licenciada deverão ater-se somente às circunstâncias espaciais e temporais que motivaram o licenciamento.

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O uso desta patente pelo governo será não-exclusivo, ou seja, o titular continua com a possibilidade de produção ou comercialização paralela à realizada pelo governo ou terceiro autorizado por este. Outra condição diz respeito à transferência da licença compulsória. Segundo o TRIPS esta é intransferível.

Sobre a transferência da licença compulsória deve-se recordar que a proteção da patente confere ao inventor dois direitos, que são: a titularidade jurídica sobre a invenção e a exclusividade econômica em sua produção. O licenciamento da patente flexibiliza somente a exclusividade produtiva do detentor, permitindo que esta seja produzida paralelamente pelo governo ou terceiro autorizado. No entanto, o detentor do registro da patente mantem a titularidade jurídica, o que consequentemente impede sua transferência, pois o Estado não poderá transferir a propriedade de objeto que não foi fruto de expropriação.

Quanto ao uso da patente licenciada, esta deve ter como foco principal o abastecimento do mercado interno e cessará quando deixarem de existir as circunstâncias que motivaram o licenciamento. No que tange à remuneração do titular, este, apesar do licenciamento, deverá receber quantia adequada, que levará em consideração o valor econômico da licença.

Ainda sobre o licenciamento compulsório, o acordo TRIPS prevê que qualquer decisão administrativa (sobre o licenciamento ou valor arbitrado como remuneração) estará passível de recurso judicial.

O mesmo artigo 31 prevê, na alínea K, a possibilidade de licenciamento compulsório por prática anti-competitiva ou desleal, desde que tais práticas tenham sido verificadas por meio de processo judicial ou administrativo. Nessas hipóteses, não é necessário que o Estado-membro negocie anteriormente à licença melhores condições comerciais com o titular, e nem que o uso seja predominantemente voltado para o mercado interno.

O artigo 40, presente na Seção 8 “Controle de práticas de concorrência desleal em contratos de licença”, estabelece a possibilidade de limitação nas legislações nacionais de práticas de licenciamento que limitem a concorrência. A concorrência constitui-se como importante ferramenta de mercado, na medida em que permite uma competição entre produtos similares provocando disputa para melhor qualidade e menor preço do produto ou serviço oferecido.

Desta forma, a manutenção da concorrência é importante principalmente entre produtos essenciais, como gênero alimentício e medicamentos, colocados à disposição dos consumidores. Os Estados podem, com base no artigo 40.2, adotar medidas para garantir a concorrência, como: estabelecer condições de cessão exclusiva, estabelecer condições que impeçam impugnações da validade e pacotes de licenças coercitivos.

Em outro momento, o texto do Acordo TRIPS volta a preocupar-se com o desenvolvimento dos países membros. Tal situação vislumbra-se na

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Parte VI do Acordo, denominada de “Disposições Transitórias”. Nessa parte são estabelecidos os prazos para o início da aplicabilidade das disposições do TRIPS pelos Estados-membros.

Reconhecendo os custos institucionais provocados e as diferentes realidades sócio-econômicas o Acordo estabelece três prazos diferentes para sua entrada em vigor. Assim, existe o prazo geral de um ano (Art. 65.1), que é excepcionado pelo artigo 65.2 e 65.3 que aumenta este prazo para quatro anos caso trate-se de país em desenvolvimento ou que se encontre em transição de uma econômica de planejamento para uma de mercado e de livre empresa.

O prazo geral pode ainda ser postergado para dez anos se o país-membro for classificado como país com menor desenvolvimento relativo. É importante ressaltar que esse prazo já foi prorrogado para 1º de Julho de 2013, conforme explicado no item 2.3 deste trabalho.

Ainda na “Parte VI” são realizadas imposições de cooperação e ajuda aos países desenvolvidos. O artigo 66.2 estabelece a concessão de incentivos a empresas e instituições por parte dos países desenvolvidos, para que estes realizem investimentos nos países menos desenvolvidos, “a fim de habilitá-los a estabelecer uma base tecnológica sólida e viável”.

O artigo 67 prevê a “Cooperação Técnica” entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento ou com menor desenvolvimento relativo. Tal cooperação deverá ser requerida pelos países com menores condições e consistirá em ajuda técnica e financeira, incluindo assistência na elaboração de normas relativas à propriedade intelectual e melhoria na estrutura das instituições de gestão e proteção dos direitos de propriedade intelectual.

A partir do exposto, tem-se que o TRIPS possui em seu texto diversos mecanismos e brechas para que os países em desenvolvimento não comprometam seus interesses nacionais com a incorporação de uma forte proteção dos direitos de propriedade intelectual. No entanto, alguns Estados não possuem planejamento voltado para o desenvolvimento pleno e, com isso, acabam por não aproveitar tais brechas e mecanismos e, ao contrário, incorporam os padrões do TRIPS sem fazerem uso dos prazos concedidos à época da criação deste Acordo. O Brasil, por exemplo, não fez uso do prazo de quatro anos e, apenas um ano após a entrada em vigor do TRIPS, adequou sua legislação de propriedade industrial aos padrões da OMC (vide item 4.4.4 deste trabalho).

4. A POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO E OS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL: CORÉIA DO SUL, JAPÃO, ÍNDIA E BRASIL

Com o intuito de relacionar as políticas e legislações de propriedade

intelectual com o nível de desenvolvimento alcançado, neste tópico será

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realizada uma comparação entre três países que se aproveitaram de legislações frágeis de propriedade intelectual para se desenvolverem (Coréia do Sul, Japão e Índia) e o Brasil.

4.1. CORÉIA DO SUL

A Coréia do Sul é atualmente uma das maiores detentoras de tecnologia de ponta do mundo93. O país possui ainda excelentes níveis sócio-econômicos obtidos com os frutos provenientes do sucesso tecnológico e comercial do país nos últimos 40 anos94.

O processo de desenvolvimento tecnológico sul-coreano teve início nas décadas de 60 e 70 do século passado, através do incentivo à absorção de tecnologia por meios indiretos, como a imitação e a engenharia reversa95.

Após a acumulação de Know-How nas duas décadas que se passaram, no início dos anos de 1980, o governo iniciou a implantação de um programa de desenvolvimento de tecnologia em todos os setores produtivos.

Segundo o professor Linsu Kim96, da Universidade de Seoul, os investimentos se concentraram, em um primeiro momento, na importação de tecnologias, no recrutamento fora do país de profissionais altamente qualificados, no incentivo à P&D no país, além de capacitação da pesquisa nas Universidades e Institutos científicos.

Com a implementação dessas medidas, os investimentos estrangeiros diretos97 aumentaram de US$ 218 milhões em 1967-1971 para US$ 1,76 bilhões em 1982-1986. Em 2012, segundo estimativas oficiais do Governo da Coréia do Sul, os investimentos estrangeiros diretos ultrapassarão os US$ 20 bilhões98. Ou seja, em um curto período de tempo, do período de 1967-1971 até 1982-

93 Segundo dados do USPTO citados no item 4.1. a Coréia do Sul registro 11.671 patentes no ano de 2010.94 A Coréia do Sul, segundo ranking de IDH de 2010, figura em 12º lugar, com índice de 0,877, a frente de Suíça (0,874) e França (0,872). O Brasil, apenas a título de comparação, figura na 73ª posição com índice de 0,699. Deve-se considerar ainda que recentemente foi publicada a expectativa do IDH de 2011, dados estes que ainda não estão considerados. Segundo a recente publicação a projeção é que a Coréia do Sul passe para a 15ª posição (0,897) e o Brasil para a 84ª (0,718).95 A engenharia reversa é considerada como um dos meios indiretos de transferência de tecnologia, em que se desmonta o produto, ou software, ou processo químico, para se descobrir como se chegou à invenção final. 96 KIM, Linsu. Technology Transfer and Intellectual Property Rights: The Korean experience. IPRS online. Disponível em: <www.iprsonline.org/ictsd/docs/kimbridgesyear5n8novdec2002.pdf> Acesso em: 28 ago 2011.97 Idem. 98 CORÉIA DO SUL. Explorando Corea. Gateway to Korea. Disponível em <http://spanish.korea.net/exploring.do?subcode=spa020004&thcode=spa030018>. Acesso em: 12 de out de 2011.

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1986 os investimentos estrangeiros aumentaram cerca de 800%. Deste último período até as estimativas de 2012 os investimentos aumentaram 11 vezes, o que demonstra a credibilidade internacional do país e a viabilidade para gerar lucros aos investidores.

Com o intuito de diminuir a dependência tecnológica, os investimentos em P&D realizados pelo governo também foram altos. Aumentaram de US$ 28,6 milhões em 1971 para US$ 4,7 bilhões em 1990, e dez anos mais tarde, em 2000, alcançou a incrível cifra de US$ 12,2 bilhões. Ainda nesse mesmo ano, 39 multinacionais instalaram centros de P&D no país99.

Dessa forma, é possível verificar no caso da Coréia do Sul alguns dos fatores citados anteriormente como geradores de desenvolvimento. O governo sul-coreano, conforme demonstrado nas estatísticas apresentadas, aumentou, no momento oportuno, qual seja, pré-TRIPS, os investimentos em P&D de forma considerável, da mesma forma que propiciou a criação de centros de P&D a partir de incentivos públicos a empresas privadas.

A adequada e acertada política sul-coreana fez do país um dos maiores produtores de tecnologia. Atualmente a Coréia do Sul é um dos países que mais pedem patentes no mundo, além de possuir uma legislação que dá segurança aos investidores internacionais no país, ainda que, em um primeiro momento a imitation e a engenharia reversa tenham sido estimuladas.

Para comprovar o desenvolvimento sul-coreano observe a tabela abaixo, que relaciona o IDH com o número de patentes registradas em 3 momentos diferentes.

1963-1989 2000 2010N° de patentes regis-

tradas no USPTO598 3.314 78.400

IDH * Em 1990:0.73 0.82 0.877 (12° na lista)

*O IDH (índice de desenvolvimento humano) foi criado em 1990 pelos economistas Mahbub ul Haq e Amartya Sen. Os índices são calculados a partir de dados de expectativa de vida ao nascer, de educação e de PIB (produto interno bruto) per capita.

A partir dos dados expostos resta demonstrado que o IDH da Coréia do Sul cresceu acompanhando o desenvolvimento tecnológico do país, que foi demonstrado na tabela acima pelo número de patentes sul-coreanas registradas no USPTO. A partir da análise destes dados é possível concluir que o desenvolvimento tecnológico e o desenvolvimento social da Coréia do

99 KIM, Linsu. Op. Cit.

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Sul foram fatores atrelados pelo governo daquele país. O número de patentes registradas no USPTO em 2010 é 131 vezes maior que os registros realizados entre 1963 e 1989. Este salto na produção tecnológica foi alcançado através de investimentos em P&D, educação e melhores condições de vida, fatores estes que influenciam diretamente no cálculo do IDH do país.

Para Linsu Kim quatro lições devem ser retiradas do caso de desenvolvimento tecnológico sul-coreano.

A primeira é que padrões elevados de proteção da propriedade intelectual podem dificultar ao invés de facilitar a transferência de tecnologia, e em um estágio inicial devem ser utilizadas a engenharia reversa e a imitação de produtos estrangeiros, para que gere um estágio inicial na indústria nacional. Esta foi a política sul-coreana adotada na década de 1960 e 1970

A segunda lição é que após acumular conhecimentos através da primeira fase, é que se deve investir em uma estrutura para o desenvolvimento de ciência e tecnologia. Neste ponto, ilustra-se a afirmativa realizada por Linsu Kim através dos dados referentes aos investimentos realizados pelo governo da Coréia do Sul em P&D.

Depois, são necessárias políticas de adequação e proteção dos direitos de propriedade intelectual aos níveis exigidos pelos investidores internacionais. Quanto a esta terceira lição, o governo sul-coreano, após a transferência de tecnologia realizada entre a década de 1960 e 1980, aderiu ao Acordo TRIPS e adequou sua legislação interna aos níveis previstos no acordo de forma a respeitar os parâmetros internacionais de proteção.

Por último, o país em desenvolvimento deve participar dos sistemas multilaterais de proteção da propriedade intelectual. Tal ponto encaixa-se ao anterior, na medida em que a Coréia do Sul integra o sistema multilateral de comércio da OMC e, consequentemente, adequou-se aos standards de proteção indicados pelo TRIPS, que é um dos acordos que fazem parte desta Organização.

4.2 JAPÃO

O Japão, assim como a Coréia do Sul, iniciou seu processo de crescimento e desenvolvimento tecnológico através da importação maciça de tecnologia. A diferença foi que o processo japonês de desenvolvimento começou antes que o sul-coreano, ainda no pós-guerra, com vistas a recuperar o país dos efeitos devastadores da II Guerra Mundial.

O professor Akira Chinen, leciona que

Algumas tecnologias adquiridas eram completamente novas para o Japão, como o nylon e a utilização de laminadores de ação contínua nas siderurgias. [...]

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Outras tecnologias capitalizaram sobre especializações e experiências adquiridas durante a guerra, em particular nas indústrias relacionadas com o armamento, tornado-se esta a base para a adoção de tecnologia importada e produção em série de artigos como rádios, televisores, máquinas fotográficas, relógios, máquinas de costura, etc.

Também, a construção de navios foi modernizada, na seqüência da importação da construção em bloco do know-how da soldagem elétrica100.

O supracitado professor compara ainda esse processo de desenvolvimento japonês com o ocorrido na era Meiji, por seguir uma sequência que começou com a produção de matérias-primas até chegar a produtos complexos. Para Akira Chinen:

À semelhança da introdução da indústria no período Meiji101, o desenvolvimento da tecnologia, após a Segunda Guerra, seguiu uma certa seqüência: primeiro os materiais e as indústrias básicas, incluindo o aço e a eletricidade, depois a maquinaria elétrica e, por fim, as linhas de montagem como a de automóveis102.

Seguindo esse ritmo novos setores industriais desenvolveram-se, como a indústria química com a produção de polietilenos e poliésteres. No que concerne ao investimento em pesquisa, o governo japonês na década de 1960, época determinante no desenvolvimento do Japão, aumentou as despesas com investimentos em cinco vezes e as empresas privadas aumentaram oito vezes seus investimentos103.

Akira Chinen explica que o desenvolvimento japonês pode ser dividido em três fases. A primeira fase é marcada por uma grande importação de mercadorias, tendo em vista que os produtos estrangeiros são complexos para serem copiados. Nessa fase as importações foram importantes para atender o mercado consumidor interno e inserir novas tecnologias no Japão.

Numa segunda fase, o mercado japonês cresce e torna-se suficiente, o que acarreta na diminuição das importações. Ainda nessa fase a indústria japonesa, mais desenvolvida, assimila a tecnologia dos produtos importados na primeira fase, possibilitando uma menor dependência nacional em relação às tecnologias estrangeiras.

100 CHINEN, Akira. Know-How e propriedade industrial. São Paulo: Oliveira Mendes, 1997. p. 47.101 A Era Meiji refere-se ao período de 45 anos do reinado do Imperador Meiji. Este reinado durou de 1868 a 1912, e durante estes anos o Japão desenvolveu-se de forma acelerada, deixando de ser um país feudal.102 CHINEN, Akira. Op cit., p. 47.103 Ibid., p. 49.

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Na terceira fase a produção é sólida, o que propicia um aumento das exportações. A indústria japonesa já assimilou a tecnologia e sua produção torna-se suficiente para abastecer o mercado interno e exportar o excedente, o que, consequentemente, melhora a situação econômica do país, pois favorece a balança comercial e aumenta a entrada de capital.

Chinen acrescenta ainda uma quarta fase, trazida por C. Sautter. Devido à qualificação da mão-de-obra e o consequente aumento dos salários, a produção japonesa torna-se cara, o que resulta na emigração das indústrias japonesas ultrapassadas, em busca de mão-de-obra mais barata, e um crescimento das importações desses produtos produzidos nos países menos desenvolvidos104.

A divisão do desenvolvimento japonês nestas fases demonstra que a implementação de uma política nacional para o desenvolvimento traz resultados. Um processo que se iniciou com a importação maciça de novas tecnologias resultou em um país que em 2010 registrou 44.814 patentes no USPTO (segundo país no ranking deste órgão, atrás apenas dos EUA). O desenvolvimento japonês comprova que políticas bem acertadas aliadas a um sistema jurídico que progressivamente confira as condições necessárias para o sucesso destas políticas é uma fórmula bem-sucedida.

4.3 BRASIL

O Brasil ao longo do século XX adotou políticas diferentes às postas em prática pelos três países analisados. Ao contrário, conferiu proteção aos direitos de propriedade intelectual sempre seguindo os níveis indicados em tratados internacionais, e, em algumas vezes, adequando a legislação interna aos padrões internacionais sem gozar do período de carência concedido aos países em desenvolvimento, como ocorreu com a aprovação da lei 9.279/96.

Com a lei 9.279/96 e a incorporação dos standards de proteção conferidos pelo TRIPS o Brasil encontra-se em uma situação diferente da vivenciada em meados do século XX pelo Japão e Coréia do Sul, ou então nos anos de 1970 e 1980 pela Índia. Com a promulgação desta lei e a adequação da legislação nacional ao TRIPS, o Brasil não pôde mais aproveitar-se de medidas como a imitação ou engenharia reversa, ou até mesmo, incentivar que indústrias nacionais começasse a utilizar tecnologias estrangeiras como base para a criação de tecnologias mais refinadas.

Tal limitação decorre justamente da legislação brasileira sobre o assunto que, em harmonia com o TRIPS, estabelece padrões altos de proteção, conforme salienta Dênis Borges Barbosa. Segundo este autor, a lei Brasileira de propriedade industrial possui proteção maior que a prevista pelo TRIPS,

104 CHINEN, Akira. Op cit., p. 49.

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constituindo-se em uma lei TRIPS-Plus. Sendo assim, todas as distorções e excessos provocados na aplicação da Lei de Propriedade Industrial foram causados pelos legisladores e juízes brasileiros que agiram contrariamente aos interesses nacionais105.

Nelisa Jessen, em estudo realizado para a UNICAMP, critica a falta de preocupação do legislador brasileiro quando da tramitação do projeto de lei, que posteriormente concretizou-se na atual Lei de Propriedade Industrial. Segundo a autora, o Brasil não se preocupou com o desenvolvimento tecnológico nacional, incorporando mecanismos de proteção mais amplos que o previsto pelo TRIPS. Nesse sentido:

A perda da capacidade de os países selecionarem áreas tecnológicas de como não-concessão de privilégios e a recusa de introduzir no PL 824/91 os mecanismos de exceção que o GATT admitiu, a retroação da possibilidade de depósito de patente (“pipeline”), muito mais amplo do que a negociada em GATT-TRIPs, o abandono do período de transição admitido em TRIPs e uma série de outras escolhas, menos flexíveis para o País, devem ser cuidadosamente vistas, pois demonstram até uma certa relação de divergência entre os níveis multi e bilaterais.

Também a questão do segredo de indústria, regulado de maneira pífia no PL 824/91, e a introdução da matéria no GATT, bem como sua transformação, ao longo das negociações, até o conceito de “undisclosed information” (que, aliás, tem passado desapercebido), é do mais alto interesse para a aquisição de conhecimento tecnológico e para a produção de bens que utilizem certas inovações tecnológicas, especialmente nas áreas de fármacos e alimentos.

A imposição de certos caminhos judiciais, inclusive com aspectos inadmissíveis no nosso Direito (de que o dispositivo sobre a pseudo reversão de ônus da prova é exemplo) que aparecem em GATT-TRIPs e na Harmonização de Patentes (em contraste aos insípidos dispositivos constantes do PL), a determinação da proteção das bases de dados, a possibilidade de limitação da circulação de informações existentes em bibliotecas e mesmo o novo conceito de reprodução de obra são condicionantes inevitáveis para a inovação tecnológica106.

105 BARBOSA, Denis Borges. “TRIPS Forever”. In: Seminário Internacional de 200 anos de Propriedade Industrial no Brasil. Brasília, 29 de abril de 2009. Disponível em <HTTP://www.dipi.mre.gov.br/apresentacao-1/painel-ii-assessment-of-the-implementatios-of-trips-in-brazil-1997-2009/apresentacao-do-dr-denis-barbosa/view>. Acesso em: 04 jan. 2010. 106 JESSEN, Nelida Jazbik. Estudo técnico para a Universidade de Campinas, 13 de outubro de

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O professor Dênis Borges Barbosa, também faz referência a alguns pontos da lei brasileira que confere proteção maior que a determinada pelo TRIPS. Dessa forma, referido jurista afirma que:

[...] exemplos de desequilíbrio insensato - e por isso mesmo, contrário à Constituição - incluem o dito pipeline, que revigora a proteção de tecnologias já integrantes do domínio público, o que TRIPs não impusera; a declaração judicial de prorrogação de patentes além do prazo constitucionalmente limitado, a pretexto da aplicação interna de TRIPs rejeitada pelo texto, pela doutrina, e pela jurisprudência da OMC e dos tribunais internacionais e estrangeiros; o abandono das lesões ao meio ambiente como fundamento de recusa às patentes - o que TRIPs aceita e a lei brasileira não; e a escolha de um sistema de exaustão de direitos que ofende o livre comércio e o próprio GATT.

Em suma, a pseudo-incorporação de TRIPs na ordem interna foi, em regra, muito além do texto final de consenso negociado, e sempre contra o contra o interesse brasileiro. O legislador brasileiro acabou cedendo à pressão unilateral americana, sem se aproveitar dos ganhos de razoabilidade que vieram com TRIPs107.

Não obstante o mal fadado passado político e jurídico do país no que tange às políticas e proteção dos direitos de propriedade intelectual, o Brasil deve olhar para o futuro e agir em diferentes frentes, através de políticas públicas, posicionamento estratégico no plano político internacional e criação de aparato jurídico capaz de auxiliar o país a desenvolver-se108.

No que tange à implementação de políticas públicas ressalta-se a criação de redes de cooperação entre universidades e centros privados de pesquisa, assim como a criação de suporte institucional para o desenvolvimento de tecnologia dentro dos centros acadêmicos. Dessa forma, segundo Bruch, Hoff e Brigido:

Para que um país possa proteger adequadamente sua tecnologia, faz-se necessária a elaboração de adequadas políticas públicas. É preciso

1992. apud BARBOSA, Denis Borges. TRIPS e a Experiência Brasileira. Disponível em<http://www.denisbarbosa.addr.com/trips2004.doc>. Acesso: em 4 out. 2011.107 BARBOSA, Denis Borges. TRIPS e a Experiência Brasileira. Disponível em<http://www.denisbarbosa.addr.com/trips2004.doc>. Acesso em: 4 out. 2011.108 Nesse sentido, cumpre ressaltar que nos últimos anos diversas políticas públicas foram implementadas durante a gestão do Presidente Lula e da Presidente Dilma Rousseff, como por exemplo: Lei de Inovação (lei 10.973/04), Lei do Bem (Lei 11.196/05), Lei de Informática (Lei 8.248/91, alterada pelas leis 10.176/01 e 11.077/04), Política industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior – PITCE (lançada em 31 de março de 2004), Plano Brasil Maior, dentre outras.

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que se criem leis para proteger o conhecimento e as invenções, pois é a adoção de uma regulamentação jurídica que legitima a implementação da estratégia estatal dentro do Estado de Direito109.

Exemplo de implementação da estratégia estatal ocorre em várias universidades, dentre elas na Universidade Federal de Uberlândia, onde se encontra a Agência Intelecto110, que é responsável pela gestão do conhecimento criado dentro dos campi da universidade.

Na esfera internacional, o governo brasileiro deve colocar seus interesses nacionais como paradigma para a assinatura de qualquer texto que crie deveres jurídicos ao país. Tal estratégia deve estar em harmonia com a produção legislativa interna, de forma que não sejam legisladas normas jurídicas com padrões de proteção maiores ou menos benéficos que os firmados na esfera internacional.

Nesse ponto, faz-se mister voltar à discussão da lei 9.279/96 frente à proteção conferida pelo Acordo TRIPS. O Brasil, como país em desenvolvimento, poderia utilizar o prazo concedido pelo art. 65.2 para começar a aplicar as disposições do TRIPS, mas, ao contrário, promulgou a Lei 9.279/96, adaptando a legislação nacional aos standards de proteção do TRIPS no ano seguinte à aprovação deste Acordo.

Tal fato comprova a ausência de um plano estratégico de desenvolvimento que relacione a política internacional desempenhada pelo poder Executivo Federal com a produção legislativa nacional.

Patrícia de Oliveira Areas afirma que “A propriedade intelectual é um instrumento institucional que poderá ser um fator de desenvolvimento, dependendo de como é tratada tanto pela sociedade como pelos organismos governamentais111”. Contrário senso, se mal tratada pelos organismos governamentais a propriedade intelectual pode constituir-se em um entrave ao desenvolvimento, como ocorreu em alguns momentos da história recente do Brasil.

Conforme exposto em diversos momentos a aprovação da Lei 9.279/96, data vênia, foi um atentado à política de desenvolvimento do país. Em momento nenhum no presente trabalho defende-se a não regulamentação e a ausência de

109 BRUCH, Kelly Lissandra; HOFF, Débora Nayar; BRIGIDO, Eveline Vieira. Propriedade Intelectual: Desenvolvimento e governabilidade nos países em desenvolvimento. In: BARRAL, Welber; PIMENTEL, Luiz Otávio; CORREA, Carlos M. Direito, Desenvolvimento e Sistema Multilateral de Comércio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. p. 195.110 A Agência Intelecto é um órgão ligado à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal de Uberlândia. Mais informações sobre o papel institucional desta agência pode ser visto no site: <www.intelecto.ufu.br>. Acesso em: 05 set. 2011. 111 AREAS, Patrícia de Oliveira. Medidas Tecnológicas de proteção e desenvolvimento. In: BARRAL, Welber; PIMENTEL, Luiz Otávio; CORREA, Carlos M. Direito, Desenvolvimento e Sistema Multilateral de Comércio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. p. 245.

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proteção à propriedade intelectual. No entanto, a promulgação da lei 9.279/96 com o texto que se conhece mostrou-se inadequada para o momento histórico e econômico do Brasil. O legislador e o Presidente da República deveriam esperar passar o prazo de carência concedido pelo TRIPS aos países em desenvolvimento, assim como ter incorporado as diversas brechas previstas pelo Acordo.

No entanto, isto não foi feito e a legislação, apesar de contestada doutrinariamente, é vigente e eficaz. O que se deve proporcionar a partir de então são leis que destinem recursos para políticas de desenvolvimento, que reestruturem e modernizem o sistema nacional de proteção da propriedade industrial (no caso o INPI), de forma que torne o país mais atrativo ao capital estrangeiro que queira realizar investimentos em P&D.

No que tange ao suporte jurídico necessário o Brasil demonstra grande despreparo e pouco conhecimento técnico para tratar de temas afetos ao direito internacional público e ao direito de propriedade intelectual. Neste sentido é importante citar, apenas a título exemplificativo, um dentre vários casos similares de aplicação direta das disposições do TRIPS pelo Poder Judiciário em benefício de particulares.

Tal impropriedade pode ser observada em apelação interposta pelo INPI em uma Ação de Mandado de Segurança junto ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região112. Neste case a apelação do INPI foi julgada improcedente, pois a turma, por unanimidade, entendeu que o TRIPS começou a vigorar no Brasil a partir de sua incorporação enquanto tratado internacional. Com base neste entendimento a ilustre relatora decidiu que o Acordo aplicava-se aos particulares independente de lei nacional que refletisse os prazos e disposições do TRIPS. Nesse sentido, a Mma. Desembaragadora relatora prorrogou a proteção da patente do impetrante/apelado em 5 anos, pois a lei brasileira da época (Lei 5.772/71, art. 24) previa um prazo de 15 anos, enquanto que o acordo TRIPS aumentava esse prazo para 20 anos (Art. 33). A relatora entendeu ainda que o Brasil não exerceu o prazo de carência para adequação ao TRIPS, pois tal prerrogativa deveria ter sido expressa no momento da ratificação do Acordo, o que não ocorreu.

Esta decisão não observou que Acordo TRIPS é um tratado-contrato e não gera direitos ou obrigações a particulares, mas somente aos Estados (ver item 1.2 deste trabalho). Complementarmente, a decisão deveria também observar o art. 70.1 que, expressamente, prevê que o Acordo TRIPS “não gera obrigações relativas a atos ocorridos antes de sua data de aplicação para o respectivo Membro”.

112 BRASIL. Tribunal Regional Federal (2ª região). Apelação em Mandado de Segurança n° 98.02.44769-2. 5ª Turma, Rio de Janeiro, RJ, 25 de abril de 2000. Disponível em <http://www2.trf2.gov.br>. Acesso em: 16 out. 2011.

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Assim, a extensão do prazo de proteção da patente com base no TRIPS é equivocada, pois este Acordo não é aplicável diretamente aos particulares e, ainda que fosse, não poderia retroagir a patente depositada antes de 1º de janeiro de 2000, data em que o TRIPS tornou-se definitivamente obrigatório para os Estados-membros em desenvolvimento, como é caso do Brasil113.

A junção dos três fatores supracitados, quais sejam, políticas públicas, posição política internacional e suporte legal e jurídico, permitirão a criação de um plano de desenvolvimento integrado para o país. As medidas devem ser tomadas em todas as esferas do poder público, trabalhando-se desde a educação da população até os paradigmas utilizados pelos poderes da República.

Pimentel, seguindo esta mesma orientação, explica que para o desenvolvimento do país é essencial que se tenha “educação e conhecimento; eficácia e transparência do sistema; a reunião desse conjunto disperso de direitos; a capacitação dos operadores; e a revisão da dimensão do processo legislativo, administrativo e judicial114”.

Sendo assim, não basta que medidas isoladas sejam adotadas. É necessário que um plano integrado e estratégico seja traçado entre as várias esferas e grupos que compõem o poder público, de forma a proporcionar um impacto ao desenvolvimento nacional.

Dentro desta conjuntura é reservado ao Direito um papel de destaque, capaz de garantir a independência das várias instituições públicas envolvidas e, ao mesmo tempo, através da legislação, conferir legalidade às ações praticadas pelo Estado e por particulares. Em suma, o Direito, nessa perspectiva, cumpre seu objetivo básico, qual seja: garantir segurança jurídica às relações entre Estado-particulares e entre particulares.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dependência tecnológica resulta em uma relação assimétrica que, consequentemente, desencadeia uma carência de mercado, mantendo a relação de exportador de tecnologia do país desenvolvido e a de eterno comprador, do país emergente ou pobre. A quebra dessa relação de dependência tecnológica passa pela construção de uma sólida política de propriedade intelectual que atuará em vários setores, como a promoção de melhorias sociais, aumento dos investimentos em P&D, adequação da legislação de propriedade intelectual ao nível de desenvolvimento do país, atuação internacional independente, dentre outros.

113 Nesse mesmo sentido ver: BARBOSA, Denis Borges. Da inoponibilidade da patente prorrogada em face dos concorrentes anteriores. Disponível em: <denisbarbosa.addr.com/170.doc>. Acesso em 25 out.2011. 114 PIMENTEL, Luiz Otávio. Direito de propriedade intelectual e desenvolvimento. In: BARRAL, Welber (Org). Direito e desenvolvimento. São Paulo: Singular, 2005. p. 309.

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Da mesma forma que não se defendeu a ausência de proteção à propriedade intelectual ao longo do trabalho, também não se afirmou que a baixa proteção da propriedade intelectual é a garantia da geração de desenvolvimento. Isto posto, entende-se que em primeiro lugar é necessária a cooperação entre os países ricos, emergentes e pobres, assim como a realização de investimentos graduais dos governos em P&D, criando, simultaneamente, meios para que ocorra uma verdadeira transferência de tecnologia capaz de equilibrar as diferenças entre os níveis de desenvolvimento dos países do mundo. Tais soluções não são meramente políticas, pois se encontram positivadas no Acordo TRIPS, carecendo apenas de eficácia.

Em segundo lugar, na esfera interna, faz-se necessária a implementação de políticas voltadas à qualificação da população, além do oferecimento de melhores condições de saúde e educação, realização de investimentos públicos em centros universitários e de pesquisa, atração de investimentos privados e a promulgação de uma legislação séria e comprometida com os interesses nacionais, de forma a contribuir para o desenvolvimento pleno do país.

Várias dessas ações foram demonstradas no capítulo 4 ao tratar-se do Japão, Coréia do Sul e Índia. No caso dos dois primeiros países o governo promoveu uma eficiente política de desenvolvimento tecnológico a partir de investimentos em educação e P&D, além da atração de investimentos privados, permitindo, com base em uma legislação flexível em matéria de propriedade intelectual, que estes alcançassem um alto nível de desenvolvimento tecnológico, econômico e social.

Já no caso da Índia o investimento governamental também foi fundamental. Deve-se observar no caso desse terceiro país que os investimentos foram setoriais (medicamentos e softwares) e o desenvolvimento desses campos foi fortemente baseado em uma legislação permissiva sobre direitos de propriedade intelectual. Ainda sobre a Índia, diferente do Japão e da Coréia do Sul, o governo não conseguiu alcançar um nível satisfatório de desenvolvimento social, fato este justificado por diversos fatores, como a complexa divisão social do país e as grandes proporções demográficas e territoriais.

No caso do Brasil, a política nacional em meados da década de 1990 não aproveitou os prazos concedidos pelo TRIPS aos países em desenvolvimento ou com menor desenvolvimento relativo. Ao contrário, o Brasil aprovou a Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/96) com padrões de proteção TRIPS-Plus, como é caso do citado artigo 230, que traz ao ordenamento jurídico brasileiro o instituto conhecido como pipeline.

O Acordo TRIPS é uma realidade e seus standards de proteção já foram incorporados pelos países membros citados nesse trabalho. Dessa forma, resta aos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil e da Índia, adotarem

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programas governamentais sérios e bem estruturados, que objetivem alcançar um desenvolvimento econômico e social satisfatório.

Complementarmente, é necessária a adoção de políticas de Propriedade Intelectual acertadas e um comprometimento maior dos governos dos países do hemisfério Sul com suas populações e os interesses nacionais, para que assim possa-se alcançar o desenvolvimento tão almejado por todas as nações, e consequentemente diminuir a dependência tecnológica.

Os direitos de Propriedade Intelectual devem ter seus níveis de proteção temperados conforme os sabores de cada país, e não impostos de forma que afetem e comprometam o desenvolvimento social e econômico, e a soberania das nações.

Por fim, destacam-se algumas medidas que podem melhorar a posição do Brasil no ranking mundial de produtores de conhecimento. Primeiro, o governo deve elaborar um plano nacional para atração e recepção de investimentos estrangeiros. Concomitante, deve juntamente com outros países em desenvolvimento, realizar ações concertadas na OMC e em outros fóruns mundiais para a efetiva promoção da transferência de tecnologia e do desenvolvimento.

A contribuição do Direito é dar suporte legal para essas ações, conferindo segurança jurídica e condições para a modernização das instituições públicas que cuidam dos direitos de propriedade intelectual, como é o caso do INPI. Paralelamente, faz-se necessária a especialização do Poder Judiciário para interpretar e aplicar com maior qualidade a legislação vigente sobre o tema, de forma a cuidar do interesse público nacional.

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NOVAS LEITURAS DA SUSTENTABILIDADE: A RELAÇÃO ENTRE O DIREITO PENAL E O DIREITO ADMINISTRATIVO NA PROTEÇÃO AMBIENTAL

Sérgio auguSto lima marinho115

túlio aranteS Bozola116

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a legitimidade e a eficácia do Direito Penal na tutela do meio ambiente, em comparação com a atuação do Direito Administrativo sancionador. A preservação ambiental, que se elevou à condição de gênero de primeira necessidade, deve ser realizada de forma eficaz e em conformidade com o Estado Constitucional e Democrático de Direito. Uma vez reconhecida a atuação do Direito Penal na proteção ambiental, analisa-se de que maneira e em que medida tal atuação se apresenta e sua íntima relação com o Direito Administrativo. Para cumprir esse mister, elegeu-se a pesquisa teórica, pautada na análise da doutrina nacional e estrangeira.

Palavras-chave: Direito Penal; Direito Administrativo Sancionador; meio am-biente; eficácia.

SUMÁRIO: Introdução – 1. Proteção ambiental: aspectos históricos – 2. A legitimidade do Direito Penal na tutela do meio ambiente; 2.1. As propostas abolicionistas do direito penal ambiental; 2.2. As propostas expansionistas – 3. A íntima relação entre o Direito Penal e o Direito Administrativo na proteção ambiental – 4. Conclusão – 5. Referências bibliográficas

INTRODUÇÃO

O momento histórico atual, denominado de sociedade de riscos, marcado por vários impactos como o multiculturalismo e a globalização, além do surgimento de novos riscos e incremento dos já existentes, caracteriza-se por inúmeras mudanças de paradigmas em diversos campos do conhecimento humano. O Direito Penal não teve outro destino: seara de grande surgimento de ideias, nos últimos anos é que se percebe um proveitoso florescimento de teorias buscando a solução dos dilemas criminais.

115 Mestrando em Direito Público na Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia. 116 Mestrando em Direito Público na Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia.

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Dentre esses dilemas criminais, um dos mais polêmicos é a proteção do meio ambiente pelo Direito Penal. Parcela considerável da doutrina considera a intervenção penal na questão ambiental como ineficaz e ilegítima, propondo a atuação do Direito Administrativo em seu aspecto sancionador. Por outro lado, vários penalistas defendem a tutela penal na esfera ambiental, entendendo ser necessária a modernização do Direito Penal e sua consequente adaptação às mudanças das reações sociais reais.

As mais diversas propostas têm sido ofertadas pelos doutrinadores, desde tendências claramente abolicionistas até teses pautadas na forte repressão penal, passando pelo Direito Penal de Duas Velocidades defendido pelo espanhol Jesús-María Silva Sánchez e o Direito de Intervenção idealizado pelo alemão Winfried Hassemer.

O propósito do trabalho que ora se apresenta é enfrentar esse ponto polêmico tanto no plano teórico como nas suas repercussões práticas. Neste sentido, primeiramente é traçado um escorço histórico sobre a tutela do meio ambiente. Em seguida, é analisada a legitimidade do Direito Penal na proteção ambiental, em comparação com o Direito Administrativo sancionador. Por fim, uma vez reconhecida a atuação do Direito Penal na esfera ambiental, examinar-se de que maneira e em que medida tal atuação se apresenta bem como sua íntima relação com o Direito Administrativo. Para tanto, elegeu-se a pesquisa teórica, pautada na análise da doutrina nacional e estrangeira, em especial a doutrina espanhola e a alemã.

1. PROTEÇÃO AMBIENTAL: ASPECTOS HISTÓRICOS

O meio ambiente foi protegido de muitas formas em diversas épocas, havendo até mesmo menção de preocupação em civilizações pré-cristãs. Essa preocupação se intensificou no final do século XIX, com a promulgação, na Inglaterra, do Rivers pollution prevention act, mas a isso se tem como exceção, vez que somente a partir do fim da Segunda Grande Guerra, com a instituição da era pós-industrial, é que se nota um incremento na proteção do meio ambiente (WAINER, 1999, p. 4).

No Brasil, a primeira legislação específica sobre o meio ambiente foi o Código Florestal (Dec. 23.793), seguido do Código de Caça (Dec. 24.645), ambos de 1934. A produção legislativa ambiental ganhou importância na década de 60, com a edição do Código Florestal (Lei 4.771), em 1965, e o Código de Proteção da Fauna (Lei 5.197), em 1967 (FERREIRA, 1995, p. 82).

No entanto, a proteção ao meio ambiente no Brasil somente se tornou tema fundamental a partir da década de 80 do século passado, com a edição da Lei 6.938/81, que criou o Sistema Nacional do Meio Ambiente, quando se

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disseminou na consciência popular a importância da proteção ambiental. Nesta década, fatos como a explosão demográfica, o advento de novas tecnologias e avanços científicos, o degelo dos pólos, a redução da camada de ozônio, a poluição dos rios, do mar e da atmosfera e a destruição da flora, especialmente pela especulação imobiliária, conduziram à consciência da defesa e preservação ambiental, que se elevou à condição de gênero de primeira necessidade.

Nesse sentido, a defesa do meio ambiente passou, sob o clima da pressão da mídia, a ser considerada como algo politicamente correto, perdendo racionalidade e ganhando radicalidade, e isso desaguou na exigência de uma forte tutela no campo do Direito Penal.

Com o surgimento da Lei dos Crimes Ambientais no fim da década de 90 (Lei nº 9.605/98), passou-se a tipificar como delito condutas de mera desobediência, de perigo abstrato, cuidando às vezes de bagatelas, como a criminalização do desrespeito a normas regulamentares.

Tal forma de proteção penal ambiental foi amplamente criticada, sob a acusação de ser meramente simbólica, isto é, sem agilidade e presteza, como sendo dirigida muito mais a uma satisfação da sociedade do que à alteração de comportamentos. Isso teve como conseqüência o reconhecimento, por parte de alguns, de não ser o Direito Penal estruturalmente capaz de oferecer respostas legítimas e eficientes ao meio ambiente e da impossibilidade de se abrir mão ou flexibilizar princípios fundamentais como o da ofensividade. Para esses críticos, o correto seria recorrer ao Direito Administrativo sancionador, todo reestruturado, promovendo-se ampla descriminalização de determinadas condutas previstas na Lei 9.605/98.

Isto posto, percebe-se que o ponto polêmico da tutela ambiental é exatamente descobrir se tal proteção deve ser realizada por um ramo extrapenal como o Direito Administrativo sancionador ou se o Direito Penal é imprescindível à prevenção dos danos ambientais. Na tutela penal do meio ambiente, o ponto de partida do controle penal é a antecipação da tutela, ou seja, a proteção buscada pelo Direito Penal é evitar a produção de lesões através da prevenção de danos, o que ocorre quando constatados os riscos no desenvolvimento de determinada atividade.

2. A LEGITIMIDADE DO DIREITO PENAL NA TUTELA DO MEIO AMBIENTE

A atuação do Direito Penal na proteção do meio ambiente é tema de infindável polêmica nas doutrinas estrangeira e brasileira, de forma que existem diversas propostas metodológicas.

Alguns defendem a total descriminalização de condutas ligadas a lesões ou perigo de lesões ao meio ambiente e propõem forte interferência do Direito Administrativo, entendendo que o Direito Penal, quando atua na problemática

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ambiental, apresenta resultados claramente ineficazes. Outros advogam a tese de que o Direito Penal é perfeitamente legítimo na proteção ambiental, devendo se adequar às mudanças sociais e se antecipar à ocorrência de danos através de uma tutela preventiva.

A seguir, serão expostas as diversas propostas metodológicas de tal polêmica, presentes tanto na doutrina estrangeira (alemã e espanhola) como na doutrina brasileira. Tais propostas serão divididas em dois grandes grupos: aquelas que defendem a não atuação do Direito Penal no campo ambiental, denominadas de propostas abolicionistas, e aquelas que defendem a forte atuação do Direito Penal Ambiental, denominadas de propostas expansionistas.

2.1 AS PROPOSTAS ABOLICIONISTAS DO DIREITO PENAL AMBIENTAL

O contexto hodierno da política criminal é marcado pela necessidade de reconduzir a intervenção punitiva do Estado no sentido de um Direito Penal mínimo. Esta é a característica do constitucionalismo brasileiro e em grande parte no mundo, como na Alemanha e na Espanha, em que a tutela dos direitos fundamentais é detalhada pelo ordenamento jurídico.

Na Alemanha, as propostas abolicionistas encontraram campo fértil na denominada Escola de Frankfurt, com destaque para as críticas trazidas por Winfried Hassemer. Este parte da premissa de que o Direito Penal deve ser limitado ao máximo, o que significa a sua incidência apenas sobre aquelas condutas que violem, de maneira agressiva, os bens individuais indispensáveis para o convívio social, como a vida, a saúde, a integridade física, a honra, a propriedade, etc.

Assim, segundo o autor alemão, serve o Direito Penal para a defesa do bem jurídico estritamente individual, dedicando-se tão somente à proteção subsidiária e repressiva dos bens jurídicos essenciais ao desenvolvimento do indivíduo, mediante os instrumentos tradicionais de imputação de responsabilidade e segundo os princípios e regras clássicas de garantia, não devendo tutelar bens jurídicos vagamente configurados, como o caso do bem jurídico ambiental (difuso por excelência).

Hassemer revela que quando o Direito Penal procura diminuir a insegurança proveniente da sociedade de riscos, como na proteção do meio ambiente, acaba alterando drasticamente seus conceitos dogmáticos e se afasta de sua missão tradicional de apenas assegurar uma escala de valores indispensáveis à vida social. Quatro razões são expostas para demonstrar que o Direito Penal não é o ramo apto a resolver os problemas inerentes à tutela ambiental (HASSEMER, 1998, p. 31 e 32).

A primeira razão é a denominada acessoriedade administrativa. Na tutela ambiental, o Direito Penal não intervém de forma autônoma, eis que depende do

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Direito Administrativo. Assim, o Direito Penal acaba se transformando para se tornar um instrumento auxiliar da Administração Pública, passando a depender da intervenção desta. Para Hassemer, isto gera um problema: a acessoriedade administrativa faz com que o ilícito penal deixe de ser visível e a matéria da ilicitude penal passa a ser objeto de negociação direta entre a Administração e o potencial infrator, fazendo com que o Direito Penal perca a sua credibilidade perante a sociedade.

A segunda razão diz respeito à imputação da responsabilidade criminal. Enquanto o Direito Penal trouxer a privação de liberdade no seu rol de sanções, não poderá abrir mão de critérios estritos de imputação de responsabilidades individuais, imprescindíveis no Direito Penal clássico. Todavia, na formatação do Direito Penal que tutela o meio ambiente, na maioria dos casos há apenas a apuração da responsabilidade coletiva. Isso ilide toda a tradição da dogmática de participação criminosa, baseada na delimitação rigorosa das contribuições individuais para a prática do delito.

A terceira razão para criticar a interferência penal no âmbito ambiental é o reconhecimento de que o Direito Penal, quando tutela o meio ambiente, não atinge os fins da pena, vez que a crença da sociedade na força da norma penal, denominada de prevenção geral positiva, é meramente ilusória. O citado autor ainda critica a aplicação das penas: sendo aplicadas penas de multa, quem acaba por pagar a multa nunca é o infrator, mas a empresa, e as penas privativas de liberdade são aplicadas à razão de uma para mil casos possíveis.

Por fim, a quarta razão é que o Direito Penal na proteção ambiental é puramente simbólico, ou seja, não serve para a proteção de bens jurídicos e destina-se somente para a consecução de fins políticos. Tal fato, segundo o citado autor, torna o Direito Penal Ambiental um fator que desobriga os poderes públicos de perseguirem uma política efetiva de proteção do meio ambiente.

Para a proteção ambiental, Hassemer propõe a criação de um ramo extrapenal, denominado por ele de Direito de Intervenção, situado nas “vizinhanças” do Direito Administrativo Sancionador. Esse novo ramo deveria reunir, em si mesmo, todas as “franjas” dos outros ramos do Direito que têm relação direta com o Direito Ambiental e teria as seguintes características: atuação prévia à consumação de danos; imputação apenas de responsabilidades coletivas; não previsão de penas privativas de liberdade; atuação global, e não apenas para casos isolados; previsão de soluções inovadoras, que garantam a obrigação de minimizar os danos (HASSEMER, 1998, p. 34 e 35).

Na doutrina brasileira, Regina Helena Lobo da Costa é uma crítica fervorosa da proteção do meio ambiente através do Direito Penal. Segundo a autora:

Podem-se apontar fortes indícios de uso simbólico do direito penal brasileira na seara ambiental. Além de não ser efetivo no sentido de

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evitar condutas lesivas ao meio ambiente, um direito penal com tais características é amplamente contraprodutivo, pois bloqueia o discurso e a busca por outros meios de tratamento da questão, provavelmente mais efetivos em razão das características da matéria ambiental. Ademais, os princípios fundamentais de um direito penal adequado ao Estado Democrático de Direito são violados, atingindo-se nuclearmente a esfera de liberdade individual (2010, p. 151 - 152). A autora propõe outras vias para o sancionamento de condutas lesivas ao

meio ambiente, ressaltando que a sanção, mesmo que administrativa, deve ser tida como fonte de intervenção subsidiária, privilegiando-se formas preventivas, tais como os estudos de impacto ambiental, a implementação de técnicas menos poluentes nas indústrias e o desenvolvimento de políticas públicas ambientais (COSTA, 2010, p. 160). Em consequência, conclui que o direito administrativo apresenta características e institutos mais adequados à proteção ambiental, tanto de forma preventiva quanto de forma sancionadora, devendo ocorrer ampla descriminalização dos delitos ambientais (COSTA, 2010, p. 182 e 183).

Nesse sentido, a citada autora defende a reestruturação do sistema sancionador no âmbito do direito administrativo, com o aumento na transparência do trato das questões ambientais, objetivando uma participação mais efetiva e democrática da população e consequentemente maior conscientização ambiental, o que contribuiria para a prevenção de danos (COSTA, 2010, p. 188). Segundo a autora “o direito administrativo é tido como uma alternativa interessante não por oferecer, supostamente, menos garantias do que o direito penal, mas por apresentar características mais adequadas às exigências da tutela ambiental” (COSTA, 2010, p. 215 - 216).

Justificando a criação de uma Parte Geral do Direito Administrativo Sancionador, em busca de maior rendimento na tutela de interesses relacionados ao meio ambiente, e, fundamentalmente, com vistas a afastar-se de qualquer possibilidade de consagração do arbítrio estatal, Miguel Reale Júnior aduz que:

Ao nosso ver deve haver uma Parte Geral nas leis tipificadoras das infrações administrativo-penais, que contenha os princípios garantistas próprios do Direito Penal aplicáveis às infrações administrativo-penais, bem como os princípios ordenadores do conjunto normativo (1999, p. 125).

Referido autor, a seguir, sistematiza sete sugestões para o delineamento de sua proposta de Parte Geral: a) adoção do princípio da legalidade; b) flexibilização da aferição do elemento subjetivo, com uma presunção de dolo; c) estabelecimento da solidariedade entre a empresa e seu dirigente na imputação

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da prática de infração à ordem econômica e ambiental; d) fixação de normas relativas às causas dirimentes escoradas na inexigibilidade de conduta diversa; e) previsão do erro de tipo e de força maior, a excluir a sanção; f) regramento preciso da individualização da sanção; g) contemplação de causas de extinção da punibilidade e prescrição sancionatória (REALE JUNIOR, 1999, p. 126 a 128).

Márcia Elayne Berbich de Moraes, em estudo de campo realizado no Estado do Rio Grande do Sul, com análise de 572 inquéritos e processos sobre crimes ambientais, aponta dados que demonstram a ineficiência do direito penal ambiental brasileiro. Segundo tal estudo, 62,3% dos casos selecionados versam sobre delitos praticados por pessoas físicas, sendo 46% sobre pesca ilegal e 16,3% sobre pássaros em cativeiro (MORAES, 2004, p. 183 e 184). Desses casos apurados, não se vê nenhum poluidor de peso, o que demonstra que o direito penal ambiental se volta às condutas mais visíveis, isto é, mais identificáveis, praticadas por pessoas físicas, deixando de lado a tão exigida punição das pessoas jurídicas por crimes ambientais prevista no art. 225, § 3º, da Constituição Federal.

Ainda na doutrina brasileira, Renato de Mello Jorge Silveira também critica a intervenção penal na proteção ambiental. Segundo o autor:

Muito melhor, ainda que um tanto utópica, parece ser a substituição da tutela penal por uma real política ambiental. Ao menos deve-se ter em conta, por igual, o pregado por Hassemer, sempre na busca de mais uma coerente intervenção estatal no campo turbulento do meio ambiente. Provavelmente um dos tópicos mais comentados e discutidos nos últimos anos, a relevância ambiental é de tremenda importância. O questionável é a abrangência penal desta intervenção. A constatação de sua mínima eficácia, nos moldes em que hoje se mostra, já é razão suficiente para busca de novas formas punitivas. Isso, aliado ao fato de que as próprias características reitoras do bem jurídico mostram-se de forma particular, incrementa a posição favorável ao Direito de Intervenção (SILVEIRA, 2003, p. 141).

A seguir serão expostas as propostas expansionistas de atuação do Direito Penal na seara ambiental, diametralmente opostas às visões abolicionistas.

2.2 AS PROPOSTAS EXPANSIONISTAS

A denominada expansão do Direito Penal, crescimento da intervenção penal em searas antes tuteladas por outros ramos do Direito, originou-se em razão de certas causas. A principal delas é o desenvolvimento tecnológico, que no primeiro momento se traduz pelo conceito de modernidade simples, motivado pelo incremento de tecnologias em benefício do bem-estar social,

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mas que trouxeram consigo diversos fatos não previstos e que, posteriormente, se traduziram como ameaças às formas de vida no planeta (MACHADO; GIÁCOMO, 2009, p. 46).

A constatação destas ameaças traduz-se no conceito de modernidade reflexiva (BECK, 2010, p. 231), em que se passou a observar os efeitos secundários do desenvolvimento tecnológico, nascendo a necessidade de delimitação de atividades potencialmente geradoras de perigo, através dos mecanismos de gerenciamento de risco. A ansiedade por prevenção ressoou no campo da política criminal e inevitavelmente na dogmática jurídico-penal, discutindo-se acerca da potencialidade do Direito Penal defender os novos riscos.

As propostas expansionistas, de forma geral, defendem uma performance firme, rígida e multifacetada do Direito Penal, apesar de apresentarem certas divergências sobre a forma como deverá ocorrer tal intervenção. Nesse sentido, entendem que apenas com a intervenção penal é que o ordenamento jurídico conseguirá fazer frente às novas formas de criminalidade surgidas com a sociedade de riscos, mormente a criminalidade ambiental. Partem da premissa de que o Direito Penal possui condições de garantir um melhor regramento da atividade social danosa, permitindo uma mais intensa observância de seus preceitos pelos atores sociais em razão, principalmente, de seu caráter estigmatizante (MACHADO; GIÁCOMO, 2009, p. 46).

As principais críticas das propostas expansionistas dirigidas às teses abolicionistas são, em geral, as seguintes (MACHADO; GIÁCOMO, 2009, p. 47):

a) O servidor público encarregado de presidir o processo administrativo sancionador não possui as garantias fundamentais reservadas aos membros do Poder Judiciário e Ministério Público, que lhe possibilitariam autonomia e independência no processamento e julgamento. Em consequência, sua imparcialidade fica afetada. b) Inexistência de um Tribunal administrativo. Face à triste realidade política que assola o País, não se pode negar a influência da força política e econômica no direcionamento das questões difusas.c) A tutela administrativa dos bens jurídicos difusos como o meio ambiente não proporciona níveis mínimos de inibição à ocorrência de novas condutas perigosas.d) A Administração tem o poder-dever de tutelar o meio ambiente, munindo-se de seu poder de polícia. Se não consegue evitar o dano, torna-se corresponsável pela sua reparação. Nesse sentido, há posição jurisprudencial consolidada a respeito. Some-se o fato que o sistema constitucional (art. 225, § 3º, CF) e o art. 14 da Lei n. 6.938/81 atribuem

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responsabilidade civil objetiva ao causador do dano ambiental, e por isto a obrigação de repará-lo ou restituí-lo.

O espanhol Jesús-María Silva Sanchéz adota uma postura intermediária no embate entre as teses expansionistas e as teses garantistas de Direito Penal, propondo um modelo duplo para o sistema penal, qual seja: o Direito Penal de Primeira Velocidade e o Direito Penal de Segunda Velocidade. Para tanto, parte de duas premissas: a modernização do Direito Penal, caracterizada pela expansão e pela flexibilização de princípios político-criminais, e a negação de uma volta ao Direito Penal clássico (SILVA SANCHÉZ, 2011, p. 188-192).

Assim, Direito Penal de Primeira Velocidade é aquele setor do ordenamento criminal em que se impõem penas privativas de liberdade e no qual devem manter-se de modo estrito os princípios político-criminais, as regras de imputação e os princípios processuais clássicos. A segunda velocidade destina-se àquelas infrações cominadas com penas pecuniárias e restritivas de direito, tratando-se, portanto, de figuras delitivas de cunho novo, como as ambientais, onde então caberia flexibilizar de modo promocional os princípios e regras clássicos (SILVA SANCHÉZ, 2011, p. 189). A diferença principal entre o Direito Penal de Segunda Velocidade e o Direito de Intervenção de Hassemer é que este se situa no campo extrapenal enquanto que aquele se encontra no campo penal.

Silva Sanchéz analisa o surgimento, com a sociedade pós-industrial, de novos objetos de proteção, quais sejam, os bens jurídicos transindividuais, e a tutela antecipada de tais objetos através de crimes de perigo abstrato, como características da administrativização do Direito Penal. Como exemplo típico dessa tendência, o autor menciona a proteção penal do meio ambiente, que se configura na proteção de um contexto, isto é, de uma situação de superação de standards administrativamente fixados (‘2011, p. 150-151).

Na doutrina alemã, encontram-se diversas teses a favor da proteção do meio ambiente através do Direito Penal, como as visões de Urs Kindhaüser, Lothar Kuhlen, Bernd Schünemann e Klaus Tiedemann117.

Urs Kindhaüser afirma que o modelo do Direito Penal da segurança é uma das condições da sociedade de riscos, e por essa razão o citado modelo é apresenta legitimidade. Para tanto, parte da premissa de que em uma sociedade que produz múltiplos perigos, o Estado deve garantir a segurança através de instrumentos de controle social que façam frente aos riscos, e essa segurança deve ser feita através de instâncias penais e não somente administrativas. Porém, o autor alemão reconhece que o Direito Penal continua com seu caráter

117 Estes posicionamentos constam da obra: MENDOZA BUERGO, Blanca. El derecho penal en la sociedad del riesgo. Madrid: Civitas, 2001, p. 119-148.

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de ultima ratio, esgotando-se, primeiramente, todos os outros ramos do Direito, em vista de ser este o único meio legítimo de intervenção penal.

No mesmo sentido, Lothar Kuhlen aduz que é sempre teoricamente possível uma verdadeira e não puramente simbólica solução de problemas referentes aos bens jurídicos coletivos, como o meio ambiente, através de normas de comportamento reforçadas com uma sanção. O autor reconhece a existência de uma série de aspectos discutíveis, mas afirma que todos eles não fundamentam a exigência que faz a doutrina tradicional à eliminação do Direito Penal do meio ambiente. Também não é evidente, nem convincente, segundo ele, que os bens jurídicos coletivos podem ser protegidos por outra maneira que não pelo Direito Penal.

Klaus Tiedemann também apoia a tendência atual de proteção do meio ambiente e demais bens jurídicos de conteúdo difuso pelo Direito Penal, assim como a ampla utilização do modelo de delitos de perigo abstrato. Isto posto, defende que o modelo de tipificação abstrata reputa-se como a técnica legislativa típica que corresponde à essência dos bens jurídicos supraindividuais e que existe maior eficácia preventiva deste modelo delitivo, justamente pelo adiantamento da punibilidade.

Bernd Schünemann, por sua vez, reconhece as transformações na sociedade contemporânea por influência dos novos riscos oriundos do desenvolvimento tecnológico e a necessidade de se manter como missão do Direito Penal a proteção dos bens jurídicos, incluindo os bens jurídicos de conteúdo difuso. Nesse sentido, entende o autor ser necessária a modernização do Direito Penal e o seu consequente ajuste às mudanças das reações sociais reais, sendo a crítica existente contra a intervenção penal puramente reacionária e conservadora, pois se opõem à modernização e ignoram as condições atuais da sociedade moderna (SCHÜNEMANN, 1998, p. 347).

Na doutrina brasileira, Celso Antônio Pacheco Fiorillo e Christiany Pegorari Conte também defendem a tutela penal ambiental, entendendo que os pilares desta, traçados em normas constitucionais, não são necessariamente coincidentes com os diplomas e conceitos básicos de direito material e processual ordinários (FIORILLO; CONTE, 2012, p. 13). Dessa forma, sua característica peculiar é a prospecção ou caráter preventivo. Segundo os autores:

A importância dos bens ambientais para a sociedade fez com que a Constituição determinasse a proteção criminal, levando à relevância do bem jurídico em análise, que se traduz na necessidade de sua proteção em âmbito penal (FIORILLO; CONTE, 2012, p. 21).

A seguir, uma vez reconhecida a atuação do Direito Penal na proteção ambiental, analisar-se de que maneira e em que medida tal atuação se apresenta e sua íntima relação com o Direito Administrativo.

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3. A ÍNTIMA RELAÇÃO ENTRE O DIREITO PENAL E O DIREITO ADMINISTRATIVO NA PROTEÇÃO AMBIENTAL

Em razão da importância do meio ambiente não só como conjunto de pressupostos da vida humana, como também da vida no planeta, impõe-se ao Estado o dever de preservá-lo e protegê-lo. Nesta estratégia global de tutela ao meio ambiente que o Estado tem de desenvolver, o Direito Administrativo recebe fundamental importância, com sua rede de decretos, portarias, licenças, permissões e autorizações, o que acaba por interferir de forma nuclear no Direito Penal Ambiental.

Esta situação faz com que o Direito Penal Ambiental contenha vasto número de dispositivos que parecem proibir não qualquer lesão ao bem ambiental protegido, mas somente aquela praticada também em contrariedade ao Direito Administrativo (GRECO, 2006, p. 154). Como exemplo, pode-se citar o art. 30 da Lei 9.605/98: exportar para o exterior peles e couros de anfíbios e répteis em bruto, sem a autorização da autoridade ambiental competente.

A existência de normas penais que fazem referência direta ao Direito Administrativo, ao que se denomina acessoriedade administrativa, gera uma série de problemas, tanto de natureza política geral, quanto de caráter especificamente jurídico. Um deles é a inevitável tensão que surge entre o Direito Penal, movido preponderantemente pela lógica da legalidade, e o Direito Administrativo, no qual existem muito mais espaços de oportunidade e discricionariedade.

Um exemplo ilustra bem o que se pretende demonstrar: uma empresa madeireira, cuja permissão para cortar árvores em floresta de preservação permanente (art. 29, Lei 9.605/98) esteja a ponto de expirar, entra com requerimento de renovação junto à autoridade competente. O prazo expira, a autoridade não reage a tempo, mas acaba, seguindo orientação pró-verde do governo, por negar a permissão três meses depois. A empresa recorre à autoridade superior e nesse meio tempo há uma mudança no governo, agora pró-desenvolvimento, sendo que a permissão acaba sendo concedida depois de outros três meses. Durante todo esse interregno de seis meses, a empresa prosseguiu em suas atividades sem a permissão. Pode-se, nesse caso, punir o empresário pelo crime do art. 29 da citada Lei? (GRECO, 2006, p. 155-156).

Percebe-se que as considerações que interferem na decisão administrativa de conceder ou negar uma permissão têm natureza muito mais flexível e ampla do que as que interferem no juízo penal a respeito da ilicitude de um fato. A partir do momento em que o rígido juízo de ilicitude penal depende da flexível decisão sobre a ilicitude administrativa, surgem conflitos nem sempre de fácil resolução. Alguns até entendem que tal problema viola o princípio da legalidade e a separação de poderes.

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Segundo Regina Helena Lobo da Costa, o tipo penal pode ser complementado por dados advindos do Direito Administrativo de três formas: por meio de um conceito, por meio de uma norma e por meio de um ato administrativo concreto. Todavia, vale ressaltar que essa tripartição não é absoluta: ela decorre muito mais de uma tentativa de sistematização, para facilitar a compreensão e a análise do fenômeno, do que de uma diferenciação científica evidente entre conceitos, normas e atos administrativos (2009, p. 192).

A complementação por meio de conceitos ocorre quando o tipo penal arrola um certo conceito do Direito Administrativo como elemento do crime ou remete, de forma mais genérica, a um tal conceito. É o caso, por exemplo, dos artigos 38 e 39 da Lei 9.605/98, que tipificam condutas relacionadas a “floresta considerada de preservação permanente”. Floresta de preservação permanente é um conceito do direito administrativo, construído a partir da interpretação dos dispositivos do Código Florestal e Resoluções do CONAMA que tratam das áreas de preservação permanente (Res. 302, 303 e 369), conjugados com o conceito de floresta.

É majoritário o entendimento de que a complementação conceitual não traz, via de regra, problemas graves em face do princípio da legalidade, já que a própria norma penal delimita materialmente o espaço a ser preenchido pelo direito administrativo – devendo, como sempre, evitar a utilização de termos amplos e genéricos. O Direito Administrativo fica adstrito ao conteúdo material mínimo daquele conceito.

O segundo tipo de acessoriedade é a normativa, que se verifica quando a redação típica é complementada por uma norma administrativa de caráter geral (leis, decretos, portarias, resoluções etc.). Os tipos penais com essa característica são denominados de normas penais em branco pela doutrina. Como exemplo, pode-se citar a segunda parte do art. 38 da Lei 9.605/9815 ou o art. 56 da mesma lei.

A norma penal dessa espécie pode ser complementada por leis da mesma hierarquia e fonte legislativa, sendo chamadas de normas penais em branco homogêneas, ou por fontes diversas (normas penais em branco heterogêneas). As normas penais heterogêneas têm dado ensejo a discussões acerca de eventual ofensa ao princípio da legalidade, já que o conteúdo do tipo acaba sendo modificado por outras instituições que não o Congresso Nacional.

Tem-se reconhecido que o Poder Legislativo pode delegar espaços no tipo penal para a complementação pelo Poder Executivo, desde que o faça de modo delimitado e em matérias que necessitem, em razão de suas características, de tais complementações. Segundo Regina Helena Lobo da Costa, o Poder Executivo deve ficar limitado, quando da complementação, pelo conteúdo semântico da palavra ou locução a ser complementada, não podendo complementá-la além dos limites materiais e substanciais da locução a ser completada (2009, p. 195).

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O terceiro tipo de acessoriedade ocorre quando o tipo penal se refere a um ato administrativo concreto, como uma conduta praticada sem licença, autorização ou permissão, ou em desacordo com esses atos. Há inúmeros exemplos dessa espécie de tipos penais na Lei dos Crimes Ambientais, podendo-se citar, dentre outros, os artigos 50-A, 51e 52.

O principal conflito que esses crimes geram se refere à legitimidade de se criminalizar meras desobediências administrativas, que, em inúmeros casos, não acarretam qualquer dano ou perigo ao bem jurídico-penal. Considera-se que o ato administrativo não pode ser usado como único parâmetro do tipo penal, devendo-se acrescer outros elementos que afastem a criminalização da mera desobediência administrativa.

Na visão de Regina Helena Lobo da Costa, caso o legislador não siga tal orientação e redija tipos fundados meramente na desobediência a atos administrativos, deverá o intérprete aplicar corretivos, no sentido de afastar a tipificação de condutas que não apresentem lesão do bem jurídico ou sua colocação em perigo. Caso contrário, haverá uma série de situações em que a afetação do bem jurídico meio ambiente estará ausente e a determinação do conteúdo típico ficará, afinal, a cargo do funcionário responsável pelo ato, o que abre as portas para a insegurança jurídica e para o arbítrio (2009, p. 199).

Apesar dos problemas citados, não se pode esquecer a importância dos atos de autorização, licença e permissão ou de proibição e interdição para o desenvolvimento e execução da política ambiental. Tais atos, pelo seu caráter de concretude, permitem que se leve em consideração variáveis locais, temporais e técnicas específicas para determinar a conduta permitida ou a proibida. Para o destinatário do ato, também há um importante aspecto de segurança jurídica, já que a Administração transmite informações específicas sobre as condutas que deverá adotar.

Nesse sentido, conclui-se, então, que o Direito Penal Ambiental tem de conviver com a complementação de seus tipos pelo Direito Administrativo. Nesse contexto, sustenta-se que não há autonomia absoluta entre as esferas, pois se considera a unidade lógica do sistema jurídico. Uma mesma conduta concreta não pode, ao mesmo tempo, ser lícita no Direito Administrativo e proibida criminalmente.

Com isso não se quer dizer que a ilicitude é coincidente nas duas esferas. Ilícitos administrativos devem, na maioria dos casos, em razão do princípio da subsidiariedade e fragmentariedade do Direito Penal – não configurar qualquer crime. Ocorre que o ilícito penal encerra tamanha gravidade dentro do sistema jurídico que, necessariamente, não poderá ser permitido por outro ramo do Direito. O ilícito penal precisa ser antijurídico, ou seja, encerrar uma contrariedade à totalidade da ordem jurídica (TAVARES, 2000, p. 116-117).

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4. CONCLUSÃO

O Direito Penal está inserido no sistema de controle social como principal instrumento do Estado na atuação na tutela de bens jurídicos fundamentais, alcançando o controle normativo por meio de um conjunto de normas destinadas a promover, além da pacificação social, a própria sobrevivência da sociedade humana no planeta.

Portanto, a função do Direito Penal é, de forma inequívoca, a proteção dos bens jurídicos essenciais aos cidadãos, tanto individualmente como coletivamente considerados. O fato de um bem jurídico ser caracterizado como coletivo, como o meio ambiente, não pode servir para barrar a ingerência penal.

Nesse sentido, o Direito Penal, como mecanismo de controle social, deve se adaptar à dinâmica da sociedade atual e lançar reações que sejam capazes de atender à política social dos tempos atuais e ao mesmo de respeitar os ditames dos princípios constitucionais penais.

O reconhecimento da atuação do Direito Penal na proteção ambiental é imperioso, por possuir a função inequívoca de proteção dos bens jurídicos essenciais aos cidadãos. Sua direção, dessa forma, necessariamente deve pender para a prevenção de ofensas a estes bens jurídicos, sob pena de perda de sua eficácia. Ao assumir um desempenho preventivo, o Direito Penal cria condições de evitar danos incorrigíveis e situações ambientais catastróficas, algo que o Direito Administrativo não seria capaz de realizar sozinho.

Com a expansão do Direito Penal, é necessária a harmonia entre a proteção dos bens jurídicos coletivos, como o meio ambiente, e a manutenção de um sistema de intervenção punitiva baseado no princípio da legalidade e na proteção dos direitos fundamentais. Recusar a proteção penal do meio ambiente simplesmente pelo receio à concepção de novos tipos penais é negar a realidade caótica da deterioração do meio ambiente e a necessária e urgente proteção jurídico-penal.

Vislumbra-se que a complementação de tipos penais por meio de atos e normas do Direito Administrativo pode gerar conflitos à luz de princípios penais como o da legalidade e o da lesividade a bens jurídicos. Todavia, essa complementação é inafastável na seara ambiental, em razão de suas características peculiares. Isso não pode servir de barreira intransponível para a proteção penal do meio ambiente.

O correto é a constituição de um arcabouço que permita a plena incidência das normas penais, afastando a punição da mera desobediência administrativa e evitando decisões que desrespeitem a unidade lógica do sistema jurídico e o espaço de decisões políticas relacionadas ao meio ambiente.

Em conclusão, o Direito Penal é legítimo para a tutela tanto repressiva como preventiva do meio ambiente. Os problemas advindos da acessoriedade

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administrativa no Direito Penal Ambiental merecem ser enfrentados, sempre buscando uma tutela mais efetiva e mais eficaz. Afinal, o meio ambiente é bem jurídico intermediário: a vida, a integridade física, a saúde e o patrimônio correm risco através de um dano ambiental.

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CIDADANIA, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E GLOBALIZAÇÃO

ALTERAÇÕES DA ORDEM ECONÔMICA DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA. ANÁLISE DAS MODIFICAÇÕES MATERIAIS INTRODUZIDAS PELO

CONSTITUINTE DERIVADO

alexandre Walmott BorgeS118

alFredo JoSé doS Santos119

luCiana CamPanelli romeu120

INTRODUÇÃO

O trabalho analisa as alterações promovidas por Emendas constitucionais aos textos normativos integrantes da Ordem Econômica da Constituição brasileira. O ponto de análise é a verificação do grau de amplitude e alcance das alterações. Para tanto, usa-se a ideia base de certo conteúdo material das normas da constituição econômica e utiliza-se de divisão entre as normas de garantia, as normas de organização e as normas de programa da Ordem Econômica. A pesquisa é basicamente teórica (com referencial bibliográfico) com análise de documentos constitucionais (alguns esparsos julgados) para a contextualização da teoria de base e, ao final, a comprovação de resultado de que as alterações são, basicamente, de normas organizacionais da OEF121.

1. ELEMENTOS À COMPREENSÃO DE ALTERAÇÕES MATERIAIS NA OEF

Para a compreensão do alcance das alterações promovidas pelo Constituinte derivado vai-se aos pontos centrais de análise:

1°, a compreensão de uma constituição econômica material que trata das normas da economia consagradas na Constituição;

2°, a verificação de que as normas da OEF podem ser normas de garantia, normas de organização e normas de programa.

A OEF da Constituição brasileira está presente no Título VII, entre os artigos 170 a 192 (CADE, 2007). Ao se tomar um conceito mais amplo de

118 Doutor em Direito UFSC. . Professor do programa de mestrado em Direito da UFU e da UNESP. Área de pesquisa: jurisdição constitucional e ordem econômica; teoria da constituição econômica.119 Doutor em Direito PUC-SP. Professor do programa de mestrado em Direito da UNESP. Pós-Doutor pela Universidade de Coimbra. Área de pesquisa: direito empresarial; governança e atividade empresarial.120 Mestra em Direito UNESP. Doutoranda em Direito USP. Área de pesquisa: jurisdição constitucional e teoria constitucional.121 Utiliza-se, à larga, a abreviatura OEF para a Ordem Econômica da Constituição.

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Ordem econômica, tomando-se a Ordem Econômica em sentido material, descortina-se um universo mais abrangente. Para a apreensão do sentido material de Ordem econômica, deve-se acompanhar a distinção elaborada sobre Ordem Econômica material e Ordem Econômica formal. Além desse, a diferença entre constituição econômica material e constituição econômica formal (CANOTILHO & MOREIRA, 1991):

Ao conjunto das normas constitucionais e dos princípios constitucionais relativos à economia - i. e., à ordem constitucional da economia - pode dar-se, (...), o nome de Constituição econômica. Trata-se do conjunto de normas e de princípios constitucionais que caracterizam basicamente a organização econômica, determinam as principais regras de seu funcionamento, delimitam a esfera de ação dos diferentes sujeitos econômicos, prescrevem os grandes objetivos da política econômica, enfim, constituem as bases fundamentais da ordem jurídico-política da economia.

Bem pode se ver que a expressão constituição econômica é uma adaptação do conceito de constituição – normas jurídicas básicas de organização do Estado – para o específico campo das normas jurídicas de conteúdo econômico – normas jurídicas básicas de organização da economia de um Estado (Miranda, 2002). Assim, como há a utilização do conceito de constituição para o conceito de constituição econômica, há também a utilização dos conceitos de constituição formal e de constituição material. Há, dessa maneira, uma constituição econômica formal e uma constituição econômica material (CAMARGO, 1993) (GRAU E. R., 1981) (GRAU E. R., 1990) (VENÂNCIO FILHO, 1968).

Nem todos os elementos constitutivos de um sistema econômico estão consagrados no texto da constituição e também há normas básicas de organização da economia que estão em normas infraconstitucionais (e não na constituição). Os conjuntos de normas básicas da economia que não estão escritas na constituição, ou que estão em textos normativos que não são a constituição, integram a constituição econômica material (GRAU E. R., 1990).

Além das normas que não estão escritas, das normas que estão em outros textos normativos, há também as normas básicas que estão no texto. Com este conjunto de informações pode-se dizer que a constituição econômica material é medida pelo conteúdo da norma: deve ser norma básica ao sistema econômico.

Em contraste, as normas jurídicas da economia que estão dispostas na constituição são o conjunto normativo que é a constituição econômica formal. Pode bem acontecer de normas jurídicas da economia não serem normas básicas mas, por estarem no texto constitucional, são integrantes da

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constituição econômica formal. E normas básicas que estão no texto e constituem a constituição econômica material. Assim, normas jurídicas básicas da economia que estão no texto são, simultaneamente, integrantes da constituição econômica material e formal (GRAU E. R., 1981) (GRAU E. R., 1990) (VENÂNCIO FILHO, 1968).

Nem sempre a expressão constituição econômica pode ser empregada como se fosse a expressão sinônima de ordem econômica. A expressão ordem econômica pode designar várias realidades (GRAU E. R., 1990):1) Ordem econômica pode ser o sinônimo de sistema econômico já que um sistema econômico é uma ordem da economia ou uma determinada organização da economia (construção típica do mundo do ser)..2)Ordem econômica pode ser a expressão de todas as normas que regulam o sistema econômico, podendo ser as normas jurídicas, morais, religiosas, entre tantas outras, já que as normas ordenam a economia.3) Ordem econômica pode ser a expressão das normas jurídicas que regulam o sistema econômico, tanto podendo designar:

a.Toda e qualquer norma jurídica que tenha conteúdo econômico;b. As normas jurídicas constitucionais que tenham conteúdo econômico (o que, neste caso, é sinônimo de constituição econômica);c. As normas jurídicas constitucionais reunidas numa parte específica denominada ordem econômica constitucional (o que, neste caso, é o Título VII da Constituição).

A Ordem Econômica constitucional brasileira está concentrada no Título VII, dos artigos 170 a 192. Na verdade, o título inteiro é Ordem Econômica e Financeira. Várias das alterações realizadas pelo Poder Constituinte Derivado e aqui abordadas, são de textos normativos que estão escritos fora do Título VII, como é o caso dos serviços públicos e das atividades econômicas presentes – e alteradas – no artigo 21 da Constituição. Pode-se acrescentar que na linha condutora do trabalho, vai-se valer da expressão constituição econômica de maneira abrangente, justamente para apanhar e descrever alterações da ordem econômica constitucional (no sentido do item b, acima).

Outro aspecto de interesse para o trabalho é o questionamento sobre a própria natureza constitucional de normas sobre a ordem econômica. Ao se adotar o conceito material de Constituição do liberalismo, esta seria o conjunto normativo envolvente da regulação do Estado. E tome-se o Estado como agente

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garantidor de certos pressupostos funcionais da economia. Dessa maneira, a constituição econômica material do liberalismo é o conjunto de regulação da ação estatal na economia de maneira a colocar o Estado como garantidor de certos pressupostos funcionais. Tomando-se o conteúdo das normas da constituição econômica, tem-se o seguinte (PATRÍCIO, 1985):

i) as normas que demarcam e garantem os elementos definidores de um sistema econômico, nesse sentido constituintes do mesmo sistema (área de garantia, constituição estatutária);ii) as normas que têm por objeto as formas de organização e funcionamento do sistema, normas que podem variar e de fato variam, no espaço e no tempo, para um mesmo e único sistema (área de organização);iii) as normas que prospectivamente disciplinam ou implementam uma nova ordem econômica, mostrando-se aí – [...] - o papel inovador ou criador do Direito (área de programa, constituição programática).

O que se percebe é que os conteúdos alterados pelo constituinte derivado são aqueles identificados como a área de organização da constituição econômica nacional. Com isso quer-se dizer que houve alteração material de conteúdos que disciplinavam a ação estatal na economia. Por outro lado da observação, vê-se que não há alteração, patrocinada pelo constituinte derivado, de normas da área de garantia da constituição econômica.

As normas de garantia da constituição econômica brasileira estão concentradas nos Princípios Fundamentais – Título I -, nos Direitos Fundamentais – Título II -, e no próprio Título VII – OEF. Da análise de toda a atividade do constituinte derivado, não se vê alteração de destaque nos 25 anos da vigência da Constituição. Como afirmado acima, há sim alterações na área de organização, notadamente sobre as formas de intervenção estatal na economia. Mesmo na área de programa, cumpre destacar que não há também alterações do constituinte derivado no programa constitucional da OEF.

A ideia de constituição econômica dirigente está bastante distante da natureza da Constituição brasileira (CANOTILHO J. J., 1994):

‘Deve uma Constituição conceber-se como ‘estatuto organizatório’, como simples ‘instrumento de governo’, definidor de competências e regulador de processos, ou, pelo contrário, deve aspirar a transformar-se num plano normativo-material global que determina tarefas, estabelece programas e define fins? Uma Constituição é uma lei do Estado e só do Estado ou é um ‘estatuto jurídico do político’, um ‘plano global normativo’ do Estado e da sociedade.’

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A leitura de Canotilho, de uma constituição dirigente econômica, não é visível no texto da Constituição brasileira. Que toda a norma é um programa, isto é assentado na teoria constitucional. Cumpre analisar qual a ambição programática (Böckenförde, 1993). No caso da Constituição brasileira não há grandes projetos ou determinações por demais vinculantes. Antes, há um programa aberto com coordenadas genéricas de bem-estar social (Bonavides, Do Estado Liberal ao Estado Social, 1996).

Basicamente, a OEF define o tipo peculiar de organização do sistema econômico – capitalista e o sistema econômico pode assumir formas ou regimes diferenciados (MOREIRA, 1977) (Lajugie, 1959). Com essas informações deve-se visualizar que mencionar que as alterações da OEF se processaram nas normas de organização significa interpretar os princípios constitucionais, de tal maneira que se ordene um núcleo de normas que são definidoras do sistema econômico e uma quantidade de normas que complementam e dão forma ao sistema. O sistema econômico capitalista pode assumir formas ou regimes diferenciados. As diferenças são decorrência de fatores históricos, de ideologias e de valores.

É relevante lembrar que não existe um consenso sobre como se deve designar a forma ou o regime do sistema econômico na constituição brasileira. Como sói acontecer nesses casos, deve-se devemos atentar aos princípios e interpretá-los:

É certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus arts. 1º, 3º e 170. A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da ‘iniciativa do Estado’; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa. Se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina ao Estado a adoção de todas as providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto (arts. 23, V, 205, 208, 215 e 217, § 3º, da Constituição). Na composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. O direito ao acesso à cultura, ao esporte e ao lazer são meios de complementar a formação dos estudantes (BRASIL STF, 2006).

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Assim, princípios valem tanto para o reconhecimento do sistema econômico como para o reconhecimento da forma ou do regime do sistema econômico. É na área das formas do sistema econômico, mais especificamente nas normas de organização do sistema econômico que se houve a produção constituinte derivada alteradora da OEF (Ferrajoli, et al., 2009).

A diferença entre princípios e regras também é oportuna já que se pode verificar o grau de alcance das alterações, a profundidade material das alterações, pela dicotomia. Regras são mais definidas e não trazem conteúdos tão abrangentes quanto os princípios. Assim, alterações de regras são de menor alcance que alterações nos princípios (Alexy, 2002) (Bonavides, 1998) (Dworkin, 1997).

2. EMENDAS E ALTERAÇÕES NA OEF.

As alterações atacaram conteúdos variados do subsistema constitucional da OEF. Verificam-se as alterações por ordem cronológica.

2.1 DIFERENCIAÇÕES ENTRE EMPRESA BRASILEIRA E EMPRESA BRASILEIRA DE CAPITAL NACIONAL

A EC n° 06, do ano de 1995, acabou com a diferenciação que havia no texto original, entre empresa brasileira com sede no Brasil e empresa brasileira de capital nacional122. A redação original era a seguinte – artigo 170, inciso IX (BRASIL Constituição Federal, 1988):

IX - tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte.

122 Na íntegra (BRASIL Emenda Constitucional n° 06, 1995): As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional: Art.1º O inciso IX do art. 170 e o § 1º do art. 176 da Constituição Federal passam a vigorar com a seguinte redação: “Art. 170 [...] IX -  tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Art. 176 [...] § 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o “caput” deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.” Art.2º Fica incluído o seguinte art. 246 no Título IX - “Das Disposições Constitucionais Gerais”: “Art.246. É vedada a adoção de medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada a partir de 1995.” Art. 3º Fica revogado o art. 171 da Constituição Federal. Brasília, 15 de agosto de 1995.

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E com a nova redação, manteve-se o tratamento isonômico à empresa de pequeno porte mas sem a distinção entre as sediadas no Brasil e as de capital brasileiro (BRASIL Constituição Federal, 1988):

IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

E revogou todas as disposições do artigo 171 que disciplinavam a diferença entre empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional. A redação do artigo 171 era a seguinte (BRASIL Constituição Federal, 1988):

Art. 171. São consideradas: I - empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País; II - empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades. § 1º - A lei poderá, em relação à empresa brasileira de capital nacional: I - conceder proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do País; II - estabelecer, sempre que considerar um setor imprescindível ao desenvolvimento tecnológico nacional, entre outras condições e requisitos: a) a exigência de que o controle referido no inciso II do “caput” se estenda às atividades tecnológicas da empresa, assim entendido o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para desenvolver ou absorver tecnologia; b) percentuais de participação, no capital, de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou entidades de direito público interno.§ 2º - Na aquisição de bens e serviços, o Poder Público dará tratamento preferencial, nos termos da lei, à empresa brasileira de capital nacional.

A EC n° 06 também estendeu o fim da distinção às atividades concessionadas ou autorizadas na exploração minero-mineral.

2.2. ABERTURA AOS AGENTES ECONÔMICOS ESTRANGEIROS PARA A EXPLORA-ÇÃO DE RECURSOS MINERAIS

A EC n° 06 também encerrou a distinção entre empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional na concessão ou autorização de recursos minerais. O texto original era o seguinte (BRASIL Constituição Federal, 1988):

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Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.§ 1º - A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o “caput” deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa brasileira de capital nacional, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.

E passou à seguinte forma (BRASIL Constituição Federal, 1988):

§ 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o “caput” deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.

A cessação de distinção também se estendeu ao corpo de normas constitucionais reguladoras dos transportes.

2.3. ALTERAÇÕES NA REGULAÇÃO DOS MODAIS DE TRANSPORTE

A EC n° 07 modificou o regime vigente sobre a regulação de transportes. A redação original do artigo 178 era a seguinte (BRASIL Constituição Federal, 1988)123:

123 No inteiro teor (BRASIL Emenda Constitucional n° 07, 1995): As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional: Art. 1º O art. 178 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade. Parágrafo único. Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras.” Art. 2º Fica incluído o seguinte art. 246 no Título IX - “Das Disposições Constitucionais Gerais”: “Art. 246. É vedada a adoção de medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada a partir de 1995.” Brasília, 15 de agosto de 1995

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Art. 178. A lei disporá sobre: I - a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre; II - a predominância dos armadores nacionais e navios de bandeira e registros brasileiros e do país exportador ou importador; III - o transporte de granéis; IV - a utilização de embarcações de pesca e outras. § 1º A ordenação do transporte internacional cumprirá os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade § 2º Serão brasileiros os armadores, os proprietários, os comandantes e dois terços, pelo menos, dos tripulantes de embarcações nacionais § 3º A navegação de cabotagem e a interior são privativas de embarcações nacionais, salvo caso de necessidade pública, segundo dispuser a lei.

E passou à seguinte redação (BRASIL Constituição Federal, 1988):

Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.Parágrafo único. Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras.

Como se vê, as reservas aos agentes econômicos nacionais foram suprimidas por um conteúdo geral de atendimento à reciprocidade (Jo, 2004). Apenas o transporte aquaviário manteve alguma reserva com relação ao trânsito de naves estrangeiras.

2.4. ALTERAÇÕES NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE TELECOMUNICAÇÕES

A EC n° 08 trouxe alteração aos serviços de comunicação telefônica permitindo a delegação a agentes privados de tais serviços. A redação original do inciso do artigo 21 era a seguinte (BRASIL Constituição Federal, 1988)124:

124 O inteiro teor da EC (BRASIL Emenda Constitucional n° 08, 1995): As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional: Art.1º O inciso XI e a alínea “a” do inciso XII do art. 21 da Constituição Federal passam a vigorar com a seguinte redação: “Art. 21. Compete à União: [...] XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais; XII [...] a) explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: a) os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens; “ Art. 2º É vedada a adoção de medida provisória para regulamentar o disposto no inciso XI do art. 21 com a redação dada por esta emenda constitucional. Brasília, 15 de agosto de 1995.

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Art. 21. Compete à União:XI - explorar, diretamente ou mediante concessão a empresas sob controle acionário estatal, os serviços telefônicos, telegráficos, de transmissão de dados e demais serviços públicos de telecomunicações, assegurada a prestação de serviços de informações por entidades de direito privado através da rede pública de telecomunicações explorada pela União.

E passou a ser seguinte (BRASIL Constituição Federal, 1988):

XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais

Com a alteração complementar do inciso XIII (BRASIL Constituição Federal, 1988):

XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens e demais serviços de telecomunicações;Que passou a contar com a seguinte redação (BRASIL Constituição Federal, 1988):a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens

Com isso, houve, logo no posterior à EC, a alienação das empresas estatais prestadoras do serviço. Também as atividades econômicas exploradas pelo Estado sofreram alteração (Cezne, 2005).

2.5. O NOVO REGIME DO MONOPÓLIO CONSTITUCIONAL DOS HIDROCARBONETOS.

O artigo 177 contemplava o monopólio estatal da União com a obrigatoriedade de execução somente por entidades estatais (BRASIL Constituição Federal, 1988):

Art. 177. Constituem monopólio da União:I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos;II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro;III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores;

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IV - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem;[...]§ 1º O monopólio previsto neste artigo inclui os riscos e resultados decorrentes das atividades nele mencionadas, sendo vedado à União ceder ou conceder qualquer tipo de participação, em espécie ou em valor, na exploração de jazidas de petróleo ou gás natural, ressalvado o disposto no art. 20, § 1º.

A nova redação, dada pela EC n° 09125, permite a contratação do monopólio petroleiro com agentes econômicos privados (BRASIL Constituição Federal, 1988):

§ 1º A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas as condições estabelecidas em lei.§ 2º A lei a que se refere o § 1º disporá sobre: I - a garantia do fornecimento dos derivados de petróleo em todo o território nacional; II - as condições de contratação; III - a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio da União; § 2º - A lei disporá sobre o transporte e a utilização de materiais radioativos no território nacional.§ 3º A lei disporá sobre o transporte e a utilização de materiais radioativos no território nacional.

Não só o monopólio das atividades petroleiras foi alterado. Também houve alteração no monopólio dos resseguros.

125 O inteiro teor da EC (BRASIL Emenda constitucional n° 09, 1995): As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do art. 60, § 3º, da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional: Art.1º O § 1º do art. 177 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 177 [...] § 1º A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas as condições estabelecidas em lei.” Art. 2º Inclua-se um parágrafo, a ser enumerado como § 2º com a redação seguinte, passando o atual § 2º para § 3º, no art. 177 da Constituição Federal: “Art. 177 [...] § 2º A lei a que se refere o § 1º disporá sobre: I - a garantia do fornecimento dos derivados de petróleo em todo o território nacional; II - as condições de contratação; III - a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio da União”. Art. 3º É vedada a adoção de medida provisória para a regulamentação da matéria prevista nos incisos I a IV e dos §§ 1º e 2º do art. 177 da Constituição Federal. Brasília, 9 de novembro de 1995

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2.6. ALTERAÇÃO NO MONOPÓLIO DOS RESSEGUROS

Na redação original do texto de 1988 havia três monopólios. Um, dos hidrocarbonetos; outro, das atividades nucleares; o terceiro, o monopólio dos resseguros previsto no artigo 192 – EC n° 13 (BRASIL Constituição Federal, 1988)126:

II - autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, previdência e capitalização, bem como do órgão oficial fiscalizador e do órgão oficial ressegurador; E passou a contar com a seguinte redação (BRASIL Constituição Federal, 1988):II - autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, resseguro, previdência e capitalização, bem como do órgão oficial fiscalizador. Ao contrário do monopólio dos hidrocarbonetos que foi alterado, o monopólio dos resseguros foi extinto.

2.7. ALTERAÇÕES DO REGIME DAS EMPRESAS ESTATAIS EXPLORADORAS DE ATIVIDADES ECONÔMICAS

Além das atividades econômicas exploradas em regime monopolista, o constituinte derivado também produziu normas disciplinadoras do regime geral das empresas estatais que exercem atividades em regime competitivo. A redação original do § 1°, artigo 173 era a seguinte (BRASIL Constituição Federal, 1988):

§ 1º - A empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica sujeitam-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias.

E passou ao seguinte teor (BRASIL Constituição Federal, 1988):

§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade

126 O teor da EC (BRASIL Emenda Constitucional n° 13, 1996): As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional: Artigo único. O inciso II do art. 192 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 192[..]II - autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, resseguro, previdência e capitalização, bem como do órgão oficial fiscalizador.” Brasília, 21 de agosto de 1996.

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econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:

I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; IV - a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários; V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.

Interessante notar que as alterações das empresas estatais vieram no bojo da EC n° 19, da reforma administrativa127.

2.8. INSERÇÃO DE NOVAS REGRAS TRIBUTÁRIAS NO ARTIGO 177

O artigo 177 sofreu acréscimos de matéria tributária e de partilha de receitas – EC n° 33 (BRASIL Constituição Federal, 1988):

§ 4º A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível deverá atender aos seguintes requisitos: I - a alíquota da contribuição poderá ser:a) diferenciada por produto ou uso;

127 Na parte da EC que trata das empresas estatais (BRASIL Emenda Constitucional n° 19, 1998): As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam esta Emenda ao texto constitucional: [...] Art. 22. O § 1º do art. 173 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art.173[..] § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações,observados os princípios da administração pública; IV - a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários; V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores. [..]Art. 34. Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua promulgação. Brasília, 4 de junho de 1998

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b) reduzida e restabelecida por ato do Poder Executivo, não se lhe aplicando o disposto no art. 150,III, b; II - os recursos arrecadados serão destinados: a) ao pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, gás natural e seus derivados e derivados de petróleo; b) ao financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás; c) ao financiamento de programas de infra-estrutura de transportes.

O conteúdo da EC n° 33, embora em texto da OEF, é de referência à Ordem Tributária.

2.9. ALTERAÇÃO DO ARTIGO 192

A EC n° 40 eliminou do texto constitucional os vários incisos do artigo 192. A redação original era a seguinte (BRASIL Constituição Federal, 1988):

O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre: I - a autorização para o funcionamento das instituições financeiras, assegurado às instituições bancárias oficiais e privadas acesso a todos os instrumentos do mercado financeiro bancário, sendo vedada a essas instituições a participação em atividades não previstas na autorização de que trata este inciso; III - as condições para a participação do capital estrangeiro nas instituições a que se referem os incisos anteriores, tendo em vista, especialmente: a) os interesses nacionais; b) os acordos internacionais IV - a organização, o funcionamento e as atribuições do banco central e demais instituições financeiras públicas e privadas;V - os requisitos para a designação de membros da diretoria do banco central e demais instituições financeiras, bem como seus impedimentos após o exercício do cargo; VI - a criação de fundo ou seguro, com o objetivo de proteger a economia popular, garantindo créditos, aplicações e depósitos até determinado valor, vedada a participação de recursos da União;VII - os critérios restritivos da transferência de poupança de regiões com renda inferior à média nacional para outras de maior desenvolvimento; VIII - o funcionamento das cooperativas de crédito e os requisitos para que possam ter condições de operacionalidade e estruturação próprias das instituições financeiras. § 1º - A autorização a que se referem os incisos I e II será inegociável e intransferível, permitida a transmissão do controle

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da pessoa jurídica titular, e concedida sem ônus, na forma da lei do sistema financeiro nacional, a pessoa jurídica cujos diretores tenham capacidade técnica e reputação ilibada, e que comprove capacidade econômica compatível com o empreendimento.§ 2º - Os recursos financeiros relativos a programas e projetos de caráter regional, de responsabilidade da União, serão depositados em suas instituições regionais de crédito e por elas aplicados. § 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.

Houve a redução com a eliminação de todas as regras dos incisos (BRASIL Constituição Federal, 1988):

Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.

O artigo 192 encerrava a disposição sobre o limite de juros no Brasil. Com a revogação dos dispositivos, perdeu a natureza constitucional.

2.10. INTRODUÇÃO DO PRINCÍPIO DO POLUIDOR-PAGADOR NA OEF

A EC n° 42, do ano de 2003, trouxe alterações aos princípios do artigo 170. A redação original era (BRASIL Constituição Federal, 1988):

VI - defesa do meio ambiente;

A nova redação (BRASIL Constituição Federal, 1988):

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;

Com o novo texto é possível diferenciar o tratamento administrativo e tributário a ser dado aos processos de produção. Com isso, incorporam-se à OEF os princípios ambientais do poluidor-pagador.

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2.11. ALTERAÇÕES NO MONOPÓLIO DAS ATIVIDADES NUCLEARES

As atividades nucleares não sofreram as alterações com a mesma profundidade do monopólio dos hidrocarbonetos. As modificações patrocinadas pelo constituinte derivado dizem respeito às formas de autorização – e agora permissão - que poderão gozar os agentes privados, nalgumas limitadas atividades com materiais nucleares. Eis o texto da EC n° 49 com as alterações promovidas, primeiro no artigo 177 (BRASIL Constituição Federal, 1988):

V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados.

Com o novo texto:

V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as alíneas b e c do inciso XXIII docaput do art. 21 desta Constituição Federal.

No artigo 21:

XXIII - explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições:a) toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional;b) sob regime de concessão ou permissão, é autorizada a utilização de radioisótopos para a pesquisa e usos medicinais, agrícolas, industriais e atividades análogas; c) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa;

Agora com a seguinte redação:

b) sob regime de permissão, são autorizadas a comercialização e a utilização de radioisótopos para a pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais;

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c) sob regime de permissão, são autorizadas a produção, comercialização e utilização de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas; d) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa;

A mudança basicamente é a mudança do regime de direito administrativo de autorização para o de permissão.

3. ALTERAÇÕES E ESCALA TEMPORAL – PRESIDÊNCIAS

As alterações na OEF foram todas processadas nos mandatos de dois Presidentes, Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva. Em significado das alterações e no número de disposições textuais alteradas, a promoção de ECs no mandato de Fernando Henrique Cardoso foi maior do que no de Lula da Silva. Eis o quadro comparativo:

EMENDAS CONSTITUCIONAIS NA GESTÃO DE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

1995-2003

IDENTIFICAÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL

EC n° 06 - 1995

Eliminou o tratamento diferencial entre empresas de peque-no porte e empresas de pequeno porte de capital nacional;

revogou no inteiro teor a distinção entre empresa brasileira e empresa de capital nacional (artigo171); revogou a restrição de que somente empresa brasileira de capital nacional pode-

ria explorar recursos minero-minerais;

EC n° 07-1995Alterou as formas de exploração dos transportes aqua-

viário, aéreo, terrestre, e no revogou as formas que limitavam a

exploração à empresas e naves brasileiras

EC n° 08-1995 Alterou as disposições sobre serviços públicos, permitin-do a delegação a agentes privados (telefonia);

EC n° 09-1995 Alterou as disposições sobre o monopólio estatal do petróleo

EC n° 19-1998Adotou a ideia de que lei dotará as empresas estatais ex-

ploradoras de atividades econômicas de regime específico; adicionou novas regras sobre o funcionamento, o controle e a

gestão das empresas estatais;

EC n° 33-2001 Inseriu alterações na partilha de receitas dos hidrocarbo-netos e instituiu Contribuição de intervenção no domínio

econômico

SEIS EMENDAS CONSTITUCIONAIS AO TOTAL

ALTERAÇÕES EM VÁRIAS DISPOSIÇÕES DE ATIVIDADES ECONÔMICAS, ESTATUTO DA NACIONALIDADE DO CAPI-

TAL, DOS SERVIÇOS PÚBLICOS E MONOPÓLIOS.

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Em Luís Inácio Lula da Silva:

EMENDAS CONSTITUCIONAIS NA GESTÃO DE LUÍS INÁCIO LULA DA

SILVA – 1995-2003

IDENTIFICAÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL

EC n° 42-2003Inseriu o tratamento diferencial das atividades econômicas de acordo com o potencial ou efetivo efeito nocivo ao ambiente

EC n° 40-2003Alterou a disciplina do SFN revogando várias

disposições do artigo

EC n° 49-2006 Alterou o regime de autorização das atividades nucleares

TRÊS EMENDAS CONSTITUCIONAIS AO TOTAL

ALTERAÇÕES PONTUAIS, NO SFN, MEIO-AMBIENTE E ATIVIDADES NUCLEARES.

Materialmente, vê-se que as modificações significativas ocorreram entre 1995 e 1998.

4. CONCLUSÕES

As alterações refletem mudanças textuais na parte de normas de organização da OEF. Tocam nos seguintes eixos materiais:

1. De maior delegação de serviços públicos aos agentes privados;2. Maior participação de agentes privados nas atividades econômicas;3. Regramento sem tratamento diferencial à empresa de capital nacional;4. Abertura à participação de agentes econômicos estrangeiros – em delegações variadas;5. Incorporação do princípio do poluidor-pagador;6. Extinção de monopólio estatal;7.Desconstitucionalização dos conteúdos do sistema financeiro nacional.

Nota-se que as alterações refletem em pontos organizacionais da OEF sem que sejam substancialmente alterados:

1. Não há alteração na parte de garantia da OEF;2. Não há alteração na parte programática da OEF;3. As alterações são em algumas regras da OEF.

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CREDITO DOCUMENTARIO; GLOBALIZACIÓN Y FRAUDE

Fernando g. d´aleSSandro128

I. INTRODUCCIÓ: BREVES REFLEXIONES SOBRE EL CRÉDITO DOCUMENTARIO

El crédito documentario surge frente a la desconfianza inherente a la celebración de operaciones de compraventa internacional entre sujetos que no se conocen demasiado y que se encuentran ubicados en distintas plazas; y a las dudas que pueden suscitarse acerca de la solvencia de las partes; del comportamiento comercial de las mismas; y de la calidad y cantidad de las mercaderías, agravadas por la probable vigencia de legislaciones diversas, no siempre coincidentes, que podrían tornar dificultoso el cumplimiento coactivo de las obligaciones asumidas129.

Fue así como se pergeñó una operación -en principio triangular-, que contemple la intervención de un banco otorgante de crédito y que brinde al vendedor la seguridad de pago que un comprador no le puede ofrecer; y a este último, la seguridad en la remisión de la mercadería adquirida, que habrá de ser sustituida en el marco de la operación por documentos representativos.

Esta operación, en su versión más simple, entraña una superposición de relaciones jurídicas entre tres sujetos intervinientes en virtud de la cual el comprador/ordenante, atendiendo al compromiso asumido en el contrato de compraventa, contrata con su banco la apertura de un crédito documentario a favor del vendedor/beneficiario. Por su parte, el banco/emisor asume la obligación de emitir una carta de crédito a nombre de este último –y de pagarle su importe, aceptar o negociar letras de cambio-, contra la entrega de los documentos acreditativos del envío de la mercadería contemplados en la carta de crédito y en la compraventa original.

En el marco de la operatoria descripta pueden incorporarse otras entidades bancarias intermediarias a fin de incrementar el nivel de confianza de las partes. También es factible encontrar al crédito documentario vinculado a otro tipo de transacciones como instrumento de pago bancario independiente de la operación subyacente.

128 . Profesor Adjunto de la Facultad de Derecho de la Universidad de Buenos Aires (UBA). Licenciado en Derecho por la U.B.A; Especializado en Contratación y Mercados Financieros Internacionales (Universidad de Castilla-La Mancha, España, 2004); Doctorado cursado en la Universidad de El Salvador (tesis pendiente). Juez Nacional de 1ra. Instancia en lo Comercial.129 Ver en general nuestros trabajos sobre Crédito Documentario en Tratado de Derecho Comercial, dir. Ernesto E. Martorell, Ed. La Ley, Buenos Aires, 2010, t. III, ps. 325 y ss. y en Tratado de Derecho Bancario, dir. Kabas de Martorell, Ed. Rubinzal Culzoni, t. III, ps. 251 y ss.

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II. EVOLUCIÓN Y GLOBALIZACIÓN

El concepto de globalización no resulta unívoco, admitiendo diversas acepciones que no revisten carácter uniforme y que, por lo demás, pueden referir a distintos ámbitos como el social, el político, el cultural, el económico y el jurídico.

Para la CEPAL (Comisión Económica para América Latina) la globalización refiere a la creciente gravitación de los procesos financieros, económicos, ambientales, políticos, sociales y culturales de alcance mundial en los procesos de carácter regional, nacional y local, pudiendo advertirse como rasgos sobresalientes la progresiva integración mundial de los mercados130.

Por su parte, Stiglitz considera que aquel fenómeno se encuentra principalmente determinado por la enorme reducción de los costos de transporte y comunicación, y por el desmantelamiento de las barreras artificiales a los flujos de bienes, servicios, capitales, conocimientos y hasta personas131.

En ese marco, adquiere particular relevancia la evolución del comercio y su fuerza expansiva que, frente a la insuficiencia del derecho común, determinaron en primer término en la Edad Media el nacimiento del Derecho mercantil como una categoría especial, autónoma y profesional, aplicable únicamente a los comerciantes agrupados en corporaciones; y el origen de una jurisdicción consular, con competencia específica para dirimir contiendas entre comerciantes.

Esa jurisdicción se fue expandiendo, verificándose progresivamente el tránsito de criterios subjetivos a otros de carácter objetivo para definir su competencia; la supresión de las corporaciones; la aparición del concepto de acto de comercio; la sanción del Código de Comercio francés; y la expansión del Derecho Comercial, cuya aplicación dejaba de estar determinada por los sujetos intervinientes para estarlo por el contenido objetivo de los actos involucrados, alcanzando a los no comerciantes.

No obstante, desde fines del siglo XIX se va a presenciar un nuevo giro, y el retorno a criterios subjetivos a través de la concepción del Derecho Mercantil como el derecho de la empresa, con el realce de la figura del empresario y de las sociedades como centro de regulación de la mano del Código Civil Alemán de 1897 y del Código Civil italiano de 1942.

Debe quedar claro que el concepto de comercio no siempre coincidió con la materia mercantil. Largamente precedió al nacimiento del Derecho Comercial como categoría especial, pero fue su expansión la que determinó la necesidad de esta regulación autónoma que, a su vez, fue generalizándose en el ámbito del

130 Montoya Alberti, Ulises, La globalización jurídica, ps. 279 y ss. 131 Stiglitz, Joseph, El malestar de la globalización, Ed. Taurus, Buenos Aires, p. 37.

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derecho privado132 al punto de la unificación legislativa con el Derecho Civil en varios países, dando lugar a la paradoja que destacaba Ascarelli al advertir que un derecho especial moría en el instante de su máximo triunfo, esto es, cuando adquiría la categoría de derecho común.

De todos modos la realidad siempre se impone y así como antes la realidad del pasado era casi inmóvil en el tiempo y muy cambiante en el espacio, hoy la misma se aprecia mucho más mutante en el tiempo y más uniforme en el espacio, superponiendo la globalización de los mercados una nueva “lex mercatoria” al derecho de los Estados133.

Retomando el hilo de la cuestión en análisis, debe señalarse que la fuerte expansión del comercio internacional enfrentó el problema de la yuxtaposición de legislaciones y hasta costumbres diferentes que contribuyeron a generar la incertidumbre en el comercio entre distintas plazas de la que hablamos al comienzo de este trabajo.

De tal modo, la operación de crédito documentario pergeñada para afianzar la confianza de quienes pretendían celebrar compraventas entre distintas plazas requería, para su exitosa difusión, de criterios y reglas más o menos uniformes.

El fracaso de las llamadas “letters of credit” derivado de múltiples incumplimientos bajo excusas formales a fines de la primera guerra mundial incentivó el dictado de diversos reglamentos o regulaciones sobre crédito documentario en varios países (por ejemplo, las llamadas reglas de Nueva York de 1920; las de Berlín de 1923; la ley de Grecia del mismo año; las aprobadas en Francia en 1924 por la Unión Sindical de Banqueros de París, entre otras).

Esas reglas tenían carácter muchas veces local o regional y resultaron insuficientes por su falta de generalización, sin embargo evidenciaron la necesidad de uniformidad y fueron el germen de las posteriores Reglas y Usos Uniformes relativos a los Créditos Documentarios, aprobados en Viena en 1933 (RUU).

Cabe concluir pues que el crédito documentario aparece como un contrato relativamente moderno, que se ha ido desarrollando a partir de las necesidades del tráfico mercantil; de las referidas RUU; y de sus sucesivas revisiones por parte de la Cámara de Comercio Internacional -CCI-. La última de ellas se encuentra vigente desde el 01.07.07 (publicación o brochure nro. 600).

En la mayoría de los países, el crédito documentario es un contrato atípico, pero esa atipicidad jurídica no se corresponde con una atipicidad social, toda vez que es utilizado como uno de los medios de pago más usuales en materia de

132 V. Fontanarrosa, Rodolfo O., Derecho Comercial Argentino, Ed. Víctor P. de Zavalía, 1979, ps. 18 y ss.133 Ver Galgano, Francesco, La globalización en el espejo del derecho, Ed. Rubinzal Culzoni, Buenos Aires, 2005, ps. 14/6.

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transacciones internacionales, llegando según estimaciones a abarcar más del 15% de aquéllas.

La labor de la CCI en la elaboración de reglas o recopilación de usos y costumbres, y su periódica revisión, tendiente a la uniformidad en esta materia ha sido clave en la difusión y aplicación exitosa de esta herramienta del comercio internacional.

Cierto es que la CCI carece de capacidad legisferante y que su intención no parece haber sido la de elaborar un compendio integral de normas obligatorias en materia de créditos documentarios, sino una guía para el desarrollo del negocio sujeta a revisión.

Por lo demás, las RUU, más allá de que las partes en general se sujeten voluntariamente a su aplicación, no contemplan una regulación hermética de todas las cuestiones involucradas en el empleo de créditos documentarios, de modo que muchas veces nos encontramos ante la necesidad de integrar su aplicación con normas nacionales para cubrir alguna laguna o cuestión no prevista por los sujetos intervinientes. En otras ocasiones, puede mediar colisión entre aquellas y alguna norma de orden interno que resultará menester dirimir en el caso concreto.

Con todo, el éxito en la tarea de la CCI y en la consecución de los objetivos propuestos se fundó en la actitud asumida por los Estados que, en general y salvo contadas excepciones como los Estados Unidos de Norteamérica e Italia, declinaron la posibilidad de dictar regulaciones nacionales; en la adhesión voluntaria de cámaras nacionales de comercio, asociaciones de bancos y bancos en particular al texto de las RUU; y, en definitiva, en la convicción y seguridad generadas que determinó, a su vez, la adhesión de los sujetos intervinientes a la aplicación de dichas reglas por vía convencional, al punto de que gran cantidad de los formularios de solicitud de apertura de créditos documentarios ya contienen remisión a las RUU.

En este sentido, enseñaba Galgano que la economía contemporánea, en antítesis al carácter nacional de los sistemas legislativos, es una economía transnacional; en continua transformación y que exige la adecuación del derecho a los cambios de la realidad. Así, continúa, la producción y distribución en serie y a escala, impone a empresas transnacionales la necesidad de contratar en condiciones uniformes134, relativizando la eficacia de las convenciones internacionales de derecho uniforme para poner el énfasis en la circulación internacional de modelos contractuales uniformes.

Se han elaborado múltiples tesis acerca de la naturaleza jurídica de dichas reglas135.

134 Galgano, op. cit., ps. 105/6.135 Ver reseña en tal sentido en Marimón Durá, Rafael, El crédito Documentario Irrevocable:

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Las más atendibles a nuestro criterio son las que postulan que se trata de normas de carácter consuetudinario, encuadrándolas en el ámbito de la costumbre y de los usos comerciales con función normativa, bien sea con base en un Derecho Comercial Internacional autónomo o bien a partir del sistema de fuentes que rige los respectivos ordenamientos nacionales.

Por su parte, las tesis contractualistas postulan que el carácter vinculante de las RUU sólo puede provenir de la voluntad de las partes intervinientes en cada operación concreta, incorporándolas al contrato mediante sujeción expresa a sus términos.

Claro está que en caso de mediar incorporación contractual, las partes habrán obrado en el marco de la autonomía de su voluntad, eligiendo a las RUU como normas materiales del contrato, lo que sólo podría encontrar reparos en normas de orden público interno o normas de policía que, por ejemplo, en el Derecho Argentino no existen.

En caso de no mediar incorporación, y de lagunas o casos no previstos en el contrato, sólo podrán ser aplicados aquellos usos y costumbres identificables como tales que se encuentren comprendidos en las RUU en la medida en que el sistema de fuentes del derecho de cada estado lo habiliten y de su alcance, tal como pasa en la República Argentina con el art. 17 del Código Civil y el alcance fijado por el Título Preliminar y los arts. 217, 218 y 219 del Código de Comercio.

Sucede que las RUU como cuerpo no parecen ser una mera recopilación de usos y costumbres preexistentes por falta de concurrencia del elemento material y espiritual en muchos casos. La propia dinámica de las sucesivas revisiones conspira contra esa concepción con carácter general y lleva a preguntarse si las reglas en sí mismas recogen usos comerciales de carácter normativo previos o tienen el propósito de regular “ex novo” aspectos imprecisos de las prácticas vinculadas a créditos documentarios o de mejorar las regulaciones preexistentes.

Y creemos que la respuesta dependerá del análisis de cada regla en particular y, con ello, la solución de cada caso concreto.

III. BASES Y DINÁMICA DE LA OPERATORIA: RELACIONES INVOLUCRADAS. EL PRINCIPIO DE AUTONOMÍA Y EL FORMALISMO DOCUMENTARIO

Una de las funciones esenciales que el crédito documentario está llamado a cumplir es la de seguridad o garantía. La misma opera en un doble sentido, dado que el instituto tiende a reforzar tanto la posición del vendedor como la del comprador.

La del vendedor, porque no habrá de remitir la mercadería hasta tanto no se lo anoticie de la apertura de la carta de crédito a su favor y del compromiso

configuración jurídica y funcionamiento, Ed. Tirant lo blanch, Valencia, 2001, ps. 82/106.

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asumido por esa vía por el banco, cuya intermediación y solvencia incrementan las seguridades que ofrece el comprador.

También refuerza la posición de este último pues, tratándose de un “pago contra documentos”, el banco no procede al mismo sino hasta verificar la regularidad formal de la documentación que acredite la expedición de la mercadería. Se disipa así cualquier riesgo de pago anticipado, quedando cubiertos los posibles percances durante el envío, carga y descarga por los seguros, cuya contratación es de rigor para las partes y deberá ser también materia de examen por el banco136.

La relación ordenante/beneficiario es la emergente del contrato subyacente que da origen al crédito documentario. Provendrá normalmente de un contrato de compraventa internacional y resulta en principio ajena al banco interviniente, que no participa de ella.

El contrato base debe contener una cláusula que establezca la obligación del comprador de solicitar la apertura de un crédito documentario como medio de pago del precio convenido; los documentos que deben presentarse para tornar exigible la obligación asumida por el banco; y las demás especificaciones que debe reunir el crédito en cuestión.

Por el llamado principio de autonomía o independencia dicha relación de base se predica independiente de las restantes involucradas en la operatoria. Es así como los bancos no se hallan afectados por aquel contrato ni su compromiso frente al beneficiario se encuentra sujeto a reclamaciones o excepciones por parte del ordenante resultantes de su relación con el beneficiario o con el propio banco (art. 4, RUU, publicación 600). Caso contrario, el instituto no podría satisfacer la función de seguridad y garantía que es la razón de ser de su propia existencia.

La referida autonomía no solo se encuentra prevista en protección del beneficiario, sino también del banco emisor en orden a circunscribir su responsabilidad al cumplimiento de las obligaciones emergentes del compromiso asumido frente al ordenante y al tercero, y deslindándolo de las vicisitudes que puedan rodear al contrato subyacente.

En el marco de la relación ordenante/emisor el primero cursa instrucciones al banco para que este abra una carta de crédito a favor del beneficiario, asumiendo la institución una obligación con ese alcance pero en su propio nombre. De dicho extremo y del carácter irrevocable que el compromiso puede revestir (art. 7, RUU) deriva precisamente la mayor seguridad que el crédito documentario está llamado a satisfacer.

Ello resulta estrictamente razonable en la medida en que a partir de la apertura de la carta de crédito confluyen intereses distintos del correspondiente

136 Cfr. Guerrero Lebrón, M. Jesús, Los créditos documentarios. Los bancos intermediarios, Ed. Marcial Pons, Madrid, 2001, ps. 16/7.

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al ordenante, a saber: el del beneficiario de la carta de crédito y el del propio banco que asumió un compromiso con aquél, cuyo incumplimiento compromete su responsabilidad.

El banco percibirá una comisión del ordenante; el reembolso de los gastos devengados por la operación; y tendrá derecho también al reintegro de los fondos que eventualmente pueda adelantar si, además, financia al ordenante estableciendo con este último una relación de crédito. En resguardo de ello el banco, en su condición de tenedor de la documentación representativa de la mercadería, goza del derecho de retención.

La relación emisor/beneficiario está signada por el compromiso del banco de honrar la carta de crédito abierta a este último contra la entrega de los documentos especificados por el ordenante.

Las notas típicas de la carta de crédito son la literalidad y la autonomía, toda vez que las partes deben ajustarse con estrictez al tenor de la misma que, en principio, se encuentra desvinculada de la relación de base que dio lugar a su emisión.

Esta fase de la operatoria se encuentra signada por el formalismo documentario y resulta de aplicación la llamada doctrina del “estricto cumplimiento (strict compliance)” en virtud del cual el banco debe rechazar los documentos que no satisfagan exactamente las instrucciones impartidas por el ordenante, reproducidas en la carta de crédito.

En el crédito documentario se negocia sobre documentos y no sobre mercancías o servicios que puedan encontrarse relacionados con los mismos. Por ende, el banco se encuentra obligado a verificar su correspondencia formal y aparente sin que corresponda al mismo llevar adelante otro tipo de investigaciones sobre el cumplimiento de las prestaciones del negocio subyacente137.

El examen de la documentación debe ser realizado desde un doble punto de vista: cuantitativo y cualitativo138 y la verificación de la correspondencia de aquella debe ser llevada a cabo sobre la base de su apariencia (art. 14, inc. a, cit.).

El acuerdo sobre la documentación necesaria y disponible debe recaer en la persona de los sujetos vinculados por el contrato subyacente. De modo que sobre esa base el ordenante impartirá las instrucciones tendientes a la apertura de la carta de crédito al banco emisor, con precisión y detalle de la documentación requerida, y a las mismas debe sujetarse este último. Comunicada la apertura al beneficiario, si la documentación que está en condiciones de presentar no se ajusta al tenor de la prevista en la carta de crédito, debe hacerlo saber al

137 Arts. 5° y 14, inc. a) RUUU, y CNCom. Sala A, “Agroforestal y Ganadera Río Negro SRL c/Banco Río de la Plata S.A.”, del 14.06.85.138 Ferro Astral, José, Algunos aspectos sobre crédito documentario, Revista de la Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, año XIII, Montevideo, julio-septiembre de 1962, ps. 608/9.

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ordenante para que imparta nuevas instrucciones tendientes a su modificación, la que requiere el consentimiento de todos los interesados (art. 10, RUU).

Si es el banco el que tiene una discrepancia con la documentación que le es presentada, debe comunicárselo al beneficiario y rechazar el pago hasta que sea superada. Asimismo, tiene la facultad de dirigirse al ordenante para comunicarle las discrepancias y que la presentación “no es conforme”, pudiendo obtener por esta vía la renuncia a dichas discrepancias de parte de aquel en su condición de principal interesado (art. 16, RUU).

El formalismo documentario opera en una doble dimensión que involucra al banco emisor en su relación con el beneficiario y también con el ordenante. Los documentos constituyen el límite y la medida de la obligación del banquero. Si los mismos son aparentemente conformes, está obligado a cumplir su compromiso frente al beneficiario139 y si lo hace, desatendiendo su deber de examinar de modo estricto la correspondencia de la documentación presentada con la requerida, deberá responder por los daños y perjuicios ocasionados al ordenante por su negligencia.

Por ende, el formalismo documentario protege al banquero que obra de buena fe y constata de modo diligente la correspondencia formal de la documentación presentada con la exigida, toda vez que los bancos no cuentan con medios que les permitan determinar inequívocamente si los documentos que se les presentan son auténticos. Basta con que parezcan genuinos140.

Por otra parte, la carta de crédito debe contener la fecha de vencimiento del plazo para formalizar la presentación, que puede efectuarse hasta ese día, sin que el banco emisor tenga obligación de recibirla fuera de su horario de atención al público. El mismo solo

puede prorrogarse si el fin del término recae en un día inhábil bancario, extendiéndose al día hábil inmediato siguiente (arts. 6, 29 y 33, RUU).

Toda la ingeniería y dinámica del crédito documentario gira en derredor de documentos y no de mercancías o prestaciones propias del contrato basal (art. 5, RUU). La operatoria supone una convención de “pago contra documentos” debiendo sujetarse el beneficiario a la presentación de los estipulados en la carta de crédito y el banco emisor a examinar su correspondencia formal -cuantitativa y cualitativa- con estrictez de acuerdo a las pautas expuestas con anterioridad.

La documentación ordinariamente exigida es la vinculada a las mercaderías; a su transporte; y a los seguros contratados.

139 Cfr. Costa, Ligia M., Waiver: una nueva alternativa contra el rigor del formalismo del crédito documentario, Revista de Derecho Bancario y de la Actividad Financiera, año 3, Ed. Depalma, Buenos Aires, julio-diciembre de 1993, p. 332.140 Olarra Jiménez, Rafael, Manual del crédito documentario, Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1966, ps. 96/7 y art. 14, inc. a) RUU.

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Por lo demás, como ya se anticipó, pueden incorporarse a la operatoria otros bancos intermediarios con distintos roles. Así, puede intervenir un banco “avisador o notificador”; un “banco confirmador”, que añade su compromiso personal, autónomo y directo de atender el crédito abierto a favor del beneficiario, obligándose en los términos de la carta de crédito (arts. 2 y 8, RUU); un “banco designado”; y/o un “banco reembolsador”.

IV. EL PROBLEMA DEL FRAUDE EN EL CRÉDITO DOCUMENTARIO141

Como dijimos con anterioridad, el crédito documentario se encuentra signado por los principios de autonomía y literalidad; el formalismo documentario; y la doctrina del estricto cumplimiento.

El principio de autonomía determina la independencia de las distintas relaciones que se suscitan en el ámbito de la operatoria. Queda pues vedado al ordenante, como consecuencia de aquél, invocar los incumplimientos del beneficiario en relación al contrato base para impedir la efectivización del crédito por parte del banco emisor.

Los restantes principios generales mencionados imponen al banco emisor ajustarse al tenor escrito de la carta de crédito abierta a favor del beneficiario, y examinar con estrictez la concordancia de la documentación que le es presentada con la requerida, antes de honrar su compromiso.

La aplicación de tales principios resulta de la esencia de la operatoria e inherente y a las funciones que se halla destinada a satisfacer.

Sin embargo, debe entenderse que tales postulados no se pueden aplicar con carácter absoluto cuando encubren un comportamiento abusivo del beneficiario o una maniobra fraudulenta del mismo que sale a la luz.

Sucede que en el tráfico mercantil internacional globalizado han tenido lugar variados casos de fraude que motivaron desde hace algún tiempo la búsqueda de soluciones alternativas a la aplicación lisa y llana de aquellos principios. La gama de situaciones es variada y abarca casos en los que el comprador/ordenante toma conocimiento de que el contenido del embarque consignado por el beneficiario no se corresponde en absoluto con la mercadería adquirida o es directamente inexistente; hipótesis de adulteración material y falsedad ideológica de conocimientos de embarque, formularios u otros documentos; y casos de resolución judicial del contrato base, entre otros.

Y lo cierto es que la aplicación de aquellos preceptos generales conduciría a que el banco se atenga a verificar el cumplimiento formal de la obligación de

141 Además de nuestros trabajos citados al inicio, ver La defensa de fraude en el crédito documentario: breve esbozo de la situación en el derecho comparado, publicado en Revista del Derecho Comercial y de las Obligaciones, Ed. Depalma, 2011-A, ps. 853 y ss.

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presentar los documentos requeridos por parte del beneficiario y a honrar en su sola consecuencia el compromiso asumido frente al mismo con la emisión de la carta de crédito a su favor, solución esta que no se aprecia satisfactoria.

Una de las alternativas posibles es recurrir a la llamada “exceptio doli” o defensa de fraude que, como veremos, importa un apartamiento o atenuación del principio de autonomía o independencia y de la doctrina del estricto cumplimiento. Ello constituye el objeto de los estudios más recientes de uno de los problemas que afecta el funcionamiento del crédito documentario.

La “exceptio doli” aparece como un recurso o defensa derivada de circunstancias localizadas en la relación subyacente que, por principio, no debieran incidir en la ejecución y desarrollo de la operación de crédito documentario.

Por poner un ejemplo, en los casos excepcionales que estamos considerando, la entrega efectiva de la mercadería adquirida -que constituye un supuesto material de cumplimiento del contrato base, ajeno en principio a la incumbencia del banco emisor- pasa a revestir relevancia dirimente para determinar la procedencia del pago dado que “…los contratos vuelven a estar conectados en alguna forma para los supuestos patológicos, especialmente el fraude…”142.

Se postula, en este sentido, que las reglas generales no pueden permanecer incólumes ante tales situaciones porque “fraus omnia corrumpit”. Con todo, resulta menester formular aclaración expresa de que la procedencia de la defensa de fraude se encuentra reservada para los supuestos excepcionales que estamos considerando, no pudiendo erigirse en base para el incumplimiento de obligaciones legítimas y en una vía de escape de un negocio que resulte desventajoso 143.

Resulta relevante destacar que la utilidad de la excepción de fraude parece reservada a aquellos casos, también excepcionales, en los que el ordenante cuenta con elementos de convicción sobre la existencia de la maniobra con anterioridad a la efectivización del crédito. Tal es el supuesto general del crédito documentario con obligación de pago diferido. Caso contrario, el breve espacio temporal difícilmente permitirá aquella constatación y su acreditación ante el ordenante, o la intervención judicial para paralizar el pago por vía de alguna medida cautelar144.

Cierto es que el fraude también puede hacerse valer con posterioridad, pero ello no tendrá lugar por vía de excepción sino de acción ordinaria de

142 Tapia Hermida, Antonio, Reglas y Usos relativos a los créditos documentarios [Revisión 1983] [Proyecto de modificación], Revista de Derecho Bancario y Bursátil, 1983, p. 52, Ed. Lex Nova.143 Asad, María Verónica, El fraude en el crédito documentario. El régimen aplicable en los sistemas de derecho civil, en Magistra, Banca e Finanza, www.magistra.it, 10.03.03.144 Participa de esta reflexión, Guerrero Lebrón, op. cit., ps. 162/3.

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repetición, de incumplimiento, o de resarcimiento de daños interpuesta por el sujeto afectado en cada caso.

Vale también en esta materia el llamado de atención de Marimón Durá quien reflexiona acerca del carácter común de la doctrina del fraude en el ámbito de los créditos documentarios y de las garantías independientes, que ha dado lugar a coincidencias y entrelazamientos en doctrina y jurisprudencia comparada145.

Ante tal estado de situación, intentaremos acotar nuestro análisis a los alcances propios del esbozo propuesto, no sin antes referir que deben descartarse en la materia las postulaciones apocalípticas sobre la repercusión negativa que la atención de las situaciones de fraude podría traer aparejada para el futuro del instituto, proveniente en gran medida del temor de los bancos emisores frente a la necesidad de paralizar los pagos en casos en los que la documentación aparece formalmente conforme.

También cabe adelantar desde ya que las RUU no contemplan los supuestos objeto de estudio sino que se estructuran sobre la base de los principios generales referidos con anterioridad y del regular funcionamiento de la operatoria, manteniéndose la CCI al margen de estas situaciones que deberán analizarse judicialmente a la luz de la legislación nacional aplicable en cada caso.

A - La situación en los Estados Unidos de América:

Ya en las primeras décadas del siglo pasado se verifican antecedentes en la jurisprudencia norteamericana en los que se convalidó la actuación del banco emisor al rechazar documentos que no se ajustaban a la realidad.

Ello sucedió, entre otros, en el caso Old Colony Trust Co. v. Lawyers´Title & Trust Co.146.

El mismo versaba sobre una operación de compraventa de azúcar proveniente de Java, cuyo pago se instrumentó a través de una ¨letter of credit¨. Se especificaron los documentos exigidos, entre ellos la factura por triplicado con la indicación de que la mercadería había sido embarcada en Java. También se requería que aquélla hubiera superado el control estatal, por haber sido pesada y pagados los impuestos pertinentes.

El beneficiario original transfirió la ¨letter of credit¨ con los documentos a Old Colony Trust Co., que le había adelantado fondos. Sin embargo, el banco emisor rechazó dichos documentos cuando le fueron presentados:

i) el certificado de depósito en un almacén, por haber recibido testimonio del propietario del mismo de que en la época en que se libró, en lugar de las

145 Marimón Durá, op. cit., ps. 507/8.146 297 F. 152,158, 2d Cir. 1924

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diez mil bolsas declaradas el vendedor solo había entregado menos de la mitad, completando la entrega cuando la letra había vencido; y

ii) la orden de entrega, porque no surgía de la misma el pesaje de la mercadería antes de su emisión, lo que presuponía que no pudieron haberse satisfecho los impuestos correspondientes.

La Corte, luego de advertir el peligro de que los bancos tengan que enfrentarse a algo más que a la verificación de la concordancia de los documentos presentados con los exigidos en la operación de crédito, convalidó el accionar del banco emisor por cuanto no mediaba dicha correspondencia. El certificado de depósito fue reputado falso e ilegal, mientras que la orden de entrega resultaba insuficiente incluso en su forma aparente.

Este precedente suele ser citado como la primera sentencia norteamericana en que se califica de correcta la actuación del banco emisor que rechazó honrar su compromiso al haber descubierto la falsedad de los documentos presentados. Al mismo tiempo, la sentencia distingue conceptualmente los documentos falsos y los documentos formalmente insuficientes (“on its face”) o incorrectos, aunque reputa a ambos como documentos no conformes con las condiciones del crédito147.

Ahora bien, es considerado como “leading case” de la jurisprudencia norteamericana sobre fraude en materia de créditos documentarios el recaído en la causa Sztejn v. J. Henry Schroder Banking Corporation148.

En este caso el beneficiario de un crédito documentario depositó a bordo de una embarcación cincuenta cajas que supuestamente contenían cierta mercancía objeto de una compraventa (cerdas para cepillos) y obtuvo la documentación acorde, descriptiva de aquélla. Sin embargo, en las mismas solo había pelo de vaca, materiales inservibles y basura carentes de valor.

El ordenante alcanzó a poner la maniobra en conocimiento del banco emisor antes de la aceptación de la letra librada por el beneficiario y presentada por su banco corresponsal, y demandó que se ordenase al primer banco que se abstuviera de aceptar y atender la cambial.

El Tribunal sostuvo que cuando el fraude llega a conocimiento del banco antes de que los documentos hayan sido presentados al cobro, el principio de independencia de la obligación a cargo de aquél no debe extenderse a amparar al vendedor inescrupuloso que omitió deliberadamente el embarque de los efectos adquiridos por el comprador.

Por otra parte, dejó a salvo la responsabilidad del banco en el supuesto, distinto del configurado en el caso, de que se anoticie del fraude con posterioridad a la efectivización del pago, si la entidad obraba con una diligencia razonable.

147 Cabe recordar aquí que la segunda categoría sí tiene previsión expresa y solución en las RUU. 148 Misc. 719, 31 N.Y.S. 2d 631 -1941-.

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Agregó también que el principio de independencia respecto de la relación de base debía ser reafirmado ante meros incumplimientos contractuales, que distinguió de la actuación fraudulenta consistente en la falta total de entrega de las mercaderías; y descartó que el banco corresponsal pudiera ser considerado tenedor de buena fe de la cambial en esa causa, habida cuenta que intervenía como un mero agente de cobro del beneficiario.

Las directrices que fueron elaboradas jurisprudencialmente en estos y otros precedentes, algunos referidos a medidas cautelares149 dieron lugar a la originaria legislación federal contenida en el Código de Comercio Uniforme (UCC), Sección 5-114 (2).

Tal regulación fundamentalmente establecía los supuestos en los que el banco emisor estaba obligado a honrar el crédito, cuando se presentaban documentos formalmente acordes a los requeridos y pese a configurarse un supuesto de fraude (en general cuando existía un tercero de buena fe que reclama el pago como tenedor legítimo de una letra u otro título involucrado en la operatoria).

Asimismo, facultaba pero no obligaba al banco que obre de buena fe a pagar el crédito pese a la mera comunicación del ordenante de haberse configurado un fraude, debiendo entenderse sujeta esta opción a la hipótesis de no habérsele arrimado pruebas de aquél.

Por último, contemplaba expresamente la facultad del tribunal competente de paralizar ese pago a través de medidas cautelares requeridas por el ordenante, presupuesto de su intervención.

Debemos aclarar que la vigencia de esta norma dependía de su incorporación al Código de Comercio de cada uno de los estados federados que, en general, la reprodujeron; y que la jurisprudencia -de modo no unánime- entendió que no mediaba contradicción entre el CCU y las RUU, que si bien no contemplan el supuesto de fraude tampoco impiden la aplicación de la doctrina elaborada en derredor del mismo ni de la normativa dictada en consecuencia 150.

No resulta infrecuente encontrar pronunciamientos sustentados en criterios más flexibles ante supuestos que revestían algún tipo de trasfondo político internacional o de influencias metajurídicas151.

Luego de la crisis de Irán (1978) y tras un largo proceso de revisión, se aprobó en 1995 un nuevo texto del art. 5 del UCC que dedica la sección 109 al fraude y a la falsificación152.

149 V. Grob v. Manufacturers y Nadler v. Mei Loong.150 V. Banco Tornquist, S.A. v. American Bank & Trust Company (337, N.Y.S. 2d 489/90, 1972; id., Cappaert Enterprises v. Citizens & Southern Internacional Bank of New Orleans (486 F.Supp.819/31, E.D.La. 1980).151 Cfr. Marimón Durá, op. cit., ps. 536/8.152 Remitimos a la versión en castellano autorizada por The American Law Institute, traducción de José María Garrido, Ed. Marcial Pons, Madrid, 2002, que reproducimos en su parte pertinente.

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5-109 Fraude y falsificación:

(a) Si se realiza una presentación que aparentemente cumple estrictamente con los términos y condiciones del crédito documentario, pero uno de los documentos requeridos ha sido falsificado o es sustancialmente fraudulento, o si atender la presentación facilitaría un fraude sustancial a cargo del beneficiario en detrimento del emisor o del ordenante:

(1) el emisor deberá atender la presentación, si se ha solicitado el cumplimiento por: (i) una persona designada que ha dado una contraprestación de buena fe y sin estar avisado de una falsificación o de un fraude sustancial; (ii) un confirmador que ha cumplido su confirmación de buena fe; (iii) un tenedor legítimo de una letra librada conforme al crédito documentario, que fue adquirida después de la aceptación del emisor o de la persona designada; o (iv) un cesionario de una obligación aplazada del emisor o de la persona designada, que fue adquirida onerosamente y sin que el cesionario estuviera avisado de una falsificación o de un fraude sustancial después de que la obligación aplazada fuese contraída por el emisor o la persona designada; y

(2) el emisor, actuando de buena fe, puede atender o desatender la presentación en cualquier otro caso.

(b) Si un ordenante alega que un documento requerido por el crédito documentario está falsificado o es sustancialmente fraudulento, o que el cumplimiento de la presentación facilitaría la realización de un fraude sustancial por parte del beneficiario y en perjuicio del emisor o del ordenante, un tribunal competente puede prohibir, de manera provisional o permanente, que el emisor cumpla una presentación, o adoptar una medida similar contra el emisor u otras personas, solamente si el tribunal establece que:

(1) la medida no está prohibida por la ley aplicable a una letra aceptada o a una obligación aplazada contraída por el emisor;

(2) el beneficiario, el emisor o la persona designada que pudiera ser afectada negativamente queda debidamente protegida contra cualquier pérdida que pueda sufrir como consecuencia de la adopción de la medida;

(3) todas las condiciones necesarias para que una persona tenga derecho a esa medida, conforme las leyes de este Estado, se han cumplido; y

(4) con el fundamento de la información puesta a disposición del tribunal, existen más posibilidades de que la alegación de falsificación o de fraude sustancial del ordenante sea estimada que posibilidades de que sea desestimada; y la persona que requiere que la presentación sea atendida no reúne los requisitos para obtener la protección de la subsección (a) (1).

El texto resulta mucho más claro que el anterior en cuanto abarca tanto el supuesto de presentación de documentos material o ideológicamente

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falsos, como el fraude del beneficiario operado en detrimento del emisor o del ordenante (en ambas relaciones, incluida la subyacente). El fraude debe ser sustancial y relevante.

Por otra parte, se incluye un listado de los terceros de buena fe que merecen protección frente a la excepción de fraude y se reitera la facultad del banco emisor de denegar el pago o de atenderlo siempre que obre de buena fe. La ponderación de su conducta habrá de encontrarse en relación directa con las pruebas que arrime el ordenante y la oportunidad en que anoticie al banco del fraude detectado.

Finalmente el texto se explaya acerca de los recaudos que deben satisfacerse para lograr que un tribunal suspenda el pago por parte del emisor o adopte otra medida cautelar, con una impronta que denota claramente su carácter excepcional.

B - La situación en Gran Bretaña:

Los tribunales ingleses han desarrollado una pacifica y uniforme jurisprudencia que ha sostenido tradicionalmente y se ha apegado al principio de independencia frente a eventuales disputas entre comprador y vendedor motivadas por la calidad de las mercancías153. En estos supuestos, el banco debe honrar su compromiso por resultar la “sangre vital” del comercio internacional.

La excepción al principio de independencia ha tenido lugar con carácter restrictivo y a título de suspensión cautelar del pago mediante una “injunction” solicitada por el ordenante, a quien se le reconoce interés en la cuestión.

En el ámbito de los créditos documentarios uno de los precedentes más destacados en materia de fraude es el caso Etablissement Esefka International Anstalt v. Central Bank of Nigeria, de 1979154, vinculado al llamado escándalo del cemento acontecido en Nigeria. Allí se detecto la falsificación de conocimientos de embarque por un envío parcial de 94.000 toneladas después de haberse pagado su importe al beneficiario. Frente al reclamo de este último que, además, persiguió cierta indemnización por estadías amparadas por los mismos créditos, el juez lo rechazó e hizo lugar a la excepción de fraude opuesta por el banco emisor y a la reconvención deducida por el mismo por la porción del crédito previamente satisfecha.

La jurisprudencia inglesa ha hecho especial hincapié en la necesidad de concurrencia de mala fe del beneficiario para aceptar la excepción de fraude, de modo que ante la presentación de documentos formalmente correctos no basta la falsedad de su contenido para el progreso de la excepción de fraude sino que resulta menester que el beneficiario sea conciente de la misma y

153 V. Malas v. British Imex Industries Ltd., ALL ER, 1958-1, p. 264.154 1 Lloyd’s L. Rep., ps. 445/9.

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que los presente a sabiendas, mas allá de la actuación atribuible a terceros155. Resulta menester la concurrencia de engaño para habilitar la procedencia de la defensa de fraude.

Los tribunales británicos exigen que el fraude se encuentre claramente probado. El banco emisor no debe desplegar actividad alguna en tal sentido y puede adoptar una actitud pasiva, a la espera de los elementos que aporte el ordenante o del dictado de alguna medida cautelar a pedido de este último.

Las medidas cautelares disponibles son la “interlocutory injunction” y la “mareva injunction”.

La primera constituye una orden dirigida al banco para que se abstenga de pagar el crédito, o al beneficiario, para que se abstenga de cobrarlo. La segunda importa una prohibición al beneficiario de llevarse el dinero hasta que se dirima la cuestión suscitada, entendiéndose en este caso que no se vulnera el principio de independencia que rige en materia de créditos documentarios en tanto el banco emisor pudo cumplir las obligaciones a su cargo.

También se ha reconocido jurisprudencialmente protección a los terceros de buena fe cuando los mismos resultan ser portadores legitimados de letras de cambio involucradas en la operatoria, distinguiendo la situación de los cesionarios a quienes se considera oponible la defensa de fraude156.

C - La situación en Francia:

Los tribunales franceses han admitido en casos excepcionales que se flexibilice el dogma de la independencia y abstracción puesto que una postura excesivamente rígida en ese aspecto conduciría a la destrucción de la concepción unitaria del crédito documentario para pasar a sostener una mera yuxtaposición de contratos independientes157.

La jurisprudencia parece haberse orientado finalmente por una concepción estricta del fraude, que debe encontrar respaldo en prueba objetiva y manifiesta a partir de sendos pronunciamientos de la Chambre Commerciale de la Cour de Cassation.

En sentencia del 07.04.87 se llegó a juzgar acreditada de manera irrefutable la insinceridad de una factura emitida en el marco de una operación de crédito documentario158.

155 Ver sentencia firme de la House of Lords en el caso United City Merchants Ltd. v. Royal Bank of Canada, All ER, 1982-2, p. 720.156 Riva, J., Operatoria Bancaria en Comercio Exterior, ps. 171 y ss., Ed. Ad Hoc, Buenos Aires, 2003.157 Cfr. Asad, María Verónica, El fraude en el crédito documentario. El régimen aplicable en los sistemas de derecho civil, en Magistra, Banca e Finanza, www.magistra.it, 10.03.03.158 Banque 1987, p. 625, obs. Rives-Lange.

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Con posterioridad, en el caso Automobiles Peugeot, del 29.04.97, se sostuvo que la sola afectación de la ejecución del contrato de base no justificaba la invocación de fraude si no se encuentra comprometido el crédito documentario en si mismo 159.

La medida cautelar disponible en Francia es la “saisie-arrêt” (similar al embargo) aunque cuando es solicitada por el ordenante solo sea excepcionalmente admitida frente a supuestos de fraude evidente y acreditado en grado cercano a la certeza. Esta medida suele tener mayor receptividad en el caso de ser promovida por el banco interviniente, sin perjuicio de no considerarse indispensable para que el mismo pueda negarse a pagar ante la constatación de irregularidades.

D – La situación en Alemania:

En general, en Alemania la excepción de fraude tiende a ubicarse sistemáticamente entre las defensas derivadas de la relación ordenante/beneficiario pues es en este ámbito donde pueden configurarse las causas que justifiquen considerar abusivo el reclamo del beneficiario.

La regla general de que la ejecución del crédito documentario no debe paralizarse por divergencias sobre el cumplimiento o incumplimiento de la relación de base no puede mantenerse ante situaciones de fraude o abuso del derecho, aunque las limitaciones al principio de independencia solo se han justificado en casos muy excepcionales160, por vía de constatación de un abuso del derecho o una conducta contraria a la buena fe.

La doctrina suele identificar como causales que dan lugar a la procedencia de la excepción de fraude a los supuestos de entrega de una mercancía totalmente distinta de la acordada, o cuando el beneficiario carece de derecho a reclamar el cumplimiento de la contraprestación derivada de la relación subyacente por haber sido la misma declarada ineficaz por resolución firme, o nula, o resuelta, o por haberse concertado el crédito documentario para burlar una prohibición legal161.

Sin embargo, se discute acerca del carácter objetivo del fraude –en cuyo caso bastaría la ausencia de justificación del reclamo por parte del beneficiario del crédito para la procedencia de la excepción- o si, además, debe concurrir un componente subjetivo, emergente del conocimiento de aquel extremo por parte del sujeto a quien habrá de oponerse la defensa -su mala fe o el consilium fraudis en caso de pluralidad de participantes en la operación-, tesis esta última que se ha considerado prevaleciente.

159 Cfr. Asad, op. cit..160 Cfr. Nielsen, Auslandgeschäft, en Bankrecht und Bankpraxis, Vol. 5, 1996, p. 334.161 Cfr. Marimón Durá, op. cit., ps. 559/562.

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Resulta menester contar con prueba líquida por medios contundentes disponibles al momento de su alegación sin que sea posible abrir un proceso largo y complicado a tal fin, exigencia que se compadece con la concepción del crédito documentario como instrumento de pago rápido, que reposa exclusivamente sobre bases documentales162.

La situación del banco emisor ante un eventual fraude lo coloca en una situación complicada porque si deniega el pago resulta pasible de reclamo por parte del beneficiario y, si lo ejecuta, corre el riesgo de que el ordenante pueda oponerse al reembolso o promover reclamo resarcitorio en su contra.

Las medidas cautelares disponibles son el “arrest” y la “einstweilige Verfügung”.

La primera importa un embargo preventivo por medio del cual el ordenante puede evitar que el beneficiario disponga del importe del crédito en caso de haber mediado abuso de su parte.

La segunda consiste en una orden jurisdiccional dirigida al beneficiario para que se abstenga de reclamar el pago, o bien al banco emisor, para que se abstenga de dar cumplimiento a la obligación a su cargo, aunque la doctrina y la jurisprudencia tampoco se aprecian concordantes sobre la procedencia de la orden al banco por entender, en este caso, con mayor rigor el principio de independencia o sostener, en su caso, la ausencia de perjuicio para el ordenante si este puede oportunamente negarse al reembolso.

E - La situación en España y en la Argentina:

En España la doctrina advierte la inexistencia de pronunciamientos del Tribunal Supremo específicamente en materia de fraude cometidos en el ámbito de operaciones de crédito documentario163.

Tal situación de escasa litigiosidad se repite en la República Argentina con el aditamento de que en nuestro país, contrariamente a lo que sucede en aquél, la doctrina no se ha ocupado sino muy tangencialmente de este tema. Merecen destacarse como excepciones a esta regla los trabajos de Riva164; y los de Assad y Labanca citados “ut supra”.

En nuestro país frente a la invocación de fraude, resultarían aplicables los principios de las medidas precautorias en general, bien sea para la adopción de una cautela genérica -vgr: suspensión del pago del crédito-, o para la procedencia de una prohibición de innovar, que son las que guardarían mayor relación de instrumentalidad con la eventual pretensión que se deduzca con

162 Cfr. Nielsen, op. cit., p. 335.163 Cfr. Marimón Durá, op. cit., p. 575.164 Operatoria Bancaria en Comercio Exterior, ps. 171 y ss..

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base en aquél. Es decir, que habrá de justificarse sumariamente la verosimilitud del derecho invocado, vinculada en el caso con los elementos de convicción que puedan aportarse con el pedido, y el peligro en la demora (cfr. arts. 230 y 232 del Cód. Procesal de la Nación, generalmente reproducido en estos aspectos en jurisdicciones provinciales).

Al margen de lo anterior, desde un punto de vista sustancial, lo cierto es que no contamos con una regulación del crédito documentario ni con un catálogo de los sujetos que podrían considerarse terceros de buena fe, como sucede en el derecho norteamericano. La situación nacional sería más parecida a la del derecho inglés.

Cabría distinguir pues frente a la invocación de fraude la situación del sujeto a quien pretende oponerse el mismo; y si ha mediado o no libramiento de letras de cambio.

Sucede que, en este último caso, no resultan oponibles al portador legitimado por vía de endoso las excepciones personales que tenga el accionado contra el librador o los tenedores anteriores salvo que medie mala fe del adquirente (art. 18 Dec. Ley 5965/63). Sin embargo, la mala fe puede ser invocada fuera del ámbito de un juicio o proceso ejecutivo por la abstracción procesal emanada del art. 544 del Código Procesal de la Nación. Cabe pues, en principio, su invocación y prueba en un proceso de conocimiento pleno, debiendo destacarse que en nuestro ordenamiento la buena fe se presume165 y que la situación precedentemente descripta puede reconocer variaciones según la legislación procesal local de cada jurisdicción.

Por el contrario, frente a un caso de cesión de créditos (utilizado a veces con la pretensión de amparar los derechos emergentes del crédito documentario ante una invocación de fraude), el cesionario no gozaría de la protección que brindan los principios de abstracción y autonomía que rigen en materia de títulos cambiarios y se le aplicarían los arts. 1474 y 3270 de nuestro Código Civil, quedando el mismo sujeto al resultado de la defensa de fraude que analizamos.

La situación del cesionario queda asimilada pues a la del beneficiario de la carta de crédito contra quien puede hacerse valer el planteo de fraude plenamente en un proceso de conocimiento o, por vía cautelar, cuyo resultado habrá de depender de los elementos de convicción que se aporten al juez y de la oportunidad en la que los mismos estén a su disposición (antes de la efectivización del crédito). Ello sin perjuicio de su presentación ante el banco emisor a fin de procurar que el mismo suspenda el pago del crédito ante prueba contundente de la perpetración de la maniobra fraudulenta, pudiendo apartarse con esa base del principio de autonomía o independencia que continuará siendo la regla general a la que debe sujetar su conducta y actuación.

165 Riva, Operatoria Bancaria en Comercio Exterior, ps. 231 y ss..

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Como hemos visto, las RUU no llegan a imponer “per se” la aplicación de normas materiales de carácter uniforme sino que la uniformidad se ha alcanzado, fundamentalmente, por adhesiones y consensos generalizados en la incorporación de aquéllas en los contratos de crédito documentario que se celebran a diario en el planeta.

Por lo demás, el silencio de las RUU sobre los supuestos de fraude determina -en definitiva- soluciones locales que, en cierto modo, van en desmedro de la generalidad y uniformidad requeridas por la globalización de los mercados. Sería deseable pues un mayor avance en este aspecto.

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CIDADANIA E DIREITO À SAÚDE: DEVER JURISDICIONAL DE REALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NA AUSÊNCIA DE PROVAS DAS CONDIÇÕES FÁTICAS E

JURÍDICAS DESFAVORÁVEIS

JURISDICTIONAL DUTY TO REALIZE THE RIGHT OF HEALTH IN THE ABSENT OF PROOFS OF THE FACTUAL AND LEGAL CONDITIONS

UNFAVOURABLE

Sérgio auguSto lima marinho166

rodrigo Pereira moreira167

marCo aurélio nogueira168

RESUMO

O trabalho tem como objeto geral analisar o direito social à saúde previsto na Constituição Brasileira e a forma como este direito deve ser realizado judicialmente na ausência de provas das condições fáticas e jurídicas que impeçam sua aplicação. Parte-se de problema sobre a natureza principiológica do direito social à saúde, explanando sobre a classificação e a função desse direito, bem como a compreensão da atividade judicial de controle de constitucionalidade nos direitos fundamentais sociais. Para tanto, utilizar-se-á o método dedutivo e procedimento de pesquisa bibliográfico e documental, este último analisando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A conclusão mostra que ausentes condições fáticas ou jurídicas desfavoráveis à realização deste direito persiste o dever de prestação da saúde, o qual deve ser reconhecido judicialmente. Este posicionamento é acompanhado pela jurisprudência da Corte Constitucional.

Palavras Chave: Direitos Fundamentais; Direito à Saúde; Princípios jurídicos; Condições Fáticas e Jurídicas.

ABSTRACT

This paper analyzes the social right of health provided in the Brazilian Constitution and how this right should be jurisdiction realized in the absence

166 Mestrando em Direito Público na Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia. Bolsista da CAPES.167 Mestrando em Direito Público na Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia. Bolsista da CAPES.168 Doutor em Direito. Professor do programa CMDIP-FADIR-UFU, mestrado em Direito.

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of evidence of the factual and legal conditions that prevent his application. The paper begins with the problem about the nature of the principle in the social right of health, explaining about the classification and function of this right and understanding the judicial activity in the constitutional control in fundamental social rights. It will be utilized the deductive method and procedure from bibliographic and documentary, the latter examining the jurisprudence of the Supreme Court. The conclusion shows that absent of legal or factual conditions un favorable to realization of this right, remains the duty to provide health, which must be judicial lyre cognized. This position is accompanied by the jurisprudence of the Constitutional Court.

Keywords: Fundamental Rights; Right to Health; Legal Principles; Factual and Legal Conditions.

INTRODUÇÃO

A vida é o bem jurídico mais importante de qualquer ser humano e certamente está acima de todos os demais bens protegidos pelo ordenamento jurídico, como o patrimônio e até mesmo da honra. É neste panorama que surge o direito à saúde como consequência constitucional indissociável do direito à vida.

Saúde corresponde a um conjunto de preceitos higiênicos referentes aos cuidados em relação às funções orgânicas e à prevenção das doenças e, por conseguinte, mantença da vida. Dessa forma, o direito social à saúde surge com uma dupla face, uma de preservação e outra de proteção à saúde. Neste diapasão, é revelada a importância do acesso ao direito social à saúde como o direito do ser humano de preservar e proteger a sua própria vida.

O direito social à saúde, bem como seu acesso, é concebido como um direito de todos e dever do Estado, o qual deve garanti-lo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e outros agravos, é um direito constitucional. Contudo, muitas vezes não é fácil gozar deste direito, seja por conta da inobservância do que dispõe a Constituição quanto àquelas políticas sociais e econômicas, seja por falta de medicamentos, material humano, e outros fatores necessários à realização do acesso ao direito social, constitucional, fundamental à saúde.

O presente trabalho tem por objeto de pesquisa o direito social à saúde e a maneira como este direito deve ser realizado pelo poder judiciário na ausência de provas acerca das condições fáticas ou jurídicas que impeçam sua realização, haja vista o seu entendimento como princípio e, consequentemente, como mandamento de otimização que deve ser realizado observadas as circunstâncias fáticas e jurídicas. A pesquisa encontra-se pautada no método dedutivo e na

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consulta bibliográfica e jurisprudencial sendo uma abordagem de dogmática jurídica, vez que se pretende analisar o tema e verificar se as conclusões encontram respaldo na jurisprudência dominante, para isto, são utilizadas algumas decisões judiciais da Corte Constitucional.

Para tanto, divide-se o trabalho em 5 cinco tópicos. Aborda-se, primeiramente, a relação de interdependência do Estado constitucional de Direito e dos direitos fundamentais. Em seguida, é tratada a fundamentalidade do direito à saúde juntamente com o seu tratamento constitucional, posteriormente, pondera-se acerca do caráter principiológico do direito à saúde, destacando-se o seu caráter de otimização e, em decorrência disto, o dever jurisdicional de realização deste direito em não havendo provas das condições fáticas ou jurídicas que impeçam dita realização.

1. DIREITOS FUNDAMENTAIS E ESTADO DE DIREITO

O Estado Absoluto possui os méritos da criação de mecanismos institucionais que fortaleceram a figura do Estado tais como a soberania nacional, una e indivisível, a unidade e um maior número de leis escritas reforçando a institucionalização jurídica do poder político. Neste sentido,

A função histórica do Estado absoluto consiste em reconstruir (ou construir) a unidade do Estado e da sociedade, em passar de uma divisão com privilégios das ordens (sucessores ou sucedâneos aos privilégios feudais), para uma situação de coesão nacional, com relativa igualdade de vínculos ao poder (MIRANDA, 2011, p. 30).

Contudo, no contexto do Estado absoluto, não há que se falar em direitos fundamentais, menos ainda direitos fundamentais sociais. “Expediente técnico- jurídico muito característico deste ambiente é o desdobramento do Estado em Estado propriamente dito, dotado de soberania, e em Fisco, entidade de Direito Privado e sem soberania” (MIRANDA, 2011, p. 29). Tem-se, então, que apenas o fisco mantém relações jurídicas com os particulares e somente contra ele podem ser reivindicados direitos subjetivos.

A concentração do poder, combinada ao crescente poder econômico da burguesia e sua falta de poder político, gerou como consequência a crise do Estado Absoluto e o advento do Estado Constitucional ou Estado de Direito. No Estado de Direito,

Em vez da tradição, o contrato social; em vez da soberania do príncipe, a soberania nacional e a lei como expressão da vontade geral; em vez do

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exercício do poder por um só ou seus delegados, o exercício por muitos, eleitos pela coletividade; em vez da razão do Estado, o Estado como executor de normas jurídicas; em vez de súditos, cidadãos, e atribuição a todos os homens, apenas por serem homens, de direitos consagrados nas leis. E instrumentos técnicos-jurídicos principais tornam-se, doravante, a Constituição, o princípio da legalidade, as declarações de direitos, a separação dos poderes, a representação política (MIRANDA, 2011, p. 31).

Em sentido estrito, a expressão “Estado de Direito” refere-se a qualquer ordenamento cujos poderes públicos são conferidos pela lei, sendo exercidos pelas formas e procedimentos estabelecidos na própria lei. Num sentido amplo, significa que os poderes públicos também estão sujeitos à lei, não somente quanto às formas, mas também em relação ao seu conteúdo (FERRAJOLI, 2006, p. 417).

Luigi Ferrajoli (2006, p. 418) divide, assim, o Estado legislativo de Direito e o Estado constitucional de Direito. O primeiro é ligado ao paleopositivismo (positivismo clássico), nascido juntamente com a concepção moderna de Estado e caracterizado principalmente pela afirmação do princípio da legalidade.169 Já o segundo, nasce após a Segunda Guerra Mundial sendo caracterizado pela difusão das constituições rígidas reconhecidas como normas de direito válidas e também pelo controle de constitucionalidade sobre as leis ordinárias.170

Neste diapasão, com o advento deste Estado de Direito há uma troca de papéis, outrora o homem encontra-se a serviço do Estado e deveria contribuir para a realização de suas finalidades, agora, é o Estado quem deve propiciar os meios pelos quais os homens possam realizar seus objetivos. No Estado de Direito destacam-se características que o distinguem do Estado Absoluto: a Juridicidade, a Constitucionalidade, o sistema de direitos fundamentais, a divisão dos poderes e a garantia da administração autônoma local (CANOTILHO, 2003, p. 243).

169 Consoante Ferrajoli (2006, p. 423), no paleopositivismo “uma norma existe e é válida não porque é intrinsecamente justa e ainda menos ‘verdadeira’, mas somente porque é proclamada em forma de lei por sujeitos habilitados por ela.”170 Sobre a validade da norma jurídica no Estado Constitucional de Direito, Ferrajoli (2006, p. 425) afirma que: “no ‘Estado constitucional de Direito’, as leis são submetidas não só a normas formais sobre a produção, mas também a normas substanciais sobre o seu significado. De fato, não são admitidas normas legais, cujo significado esteja em contraste com normas constitucionais. A existência ou vigor das normas, que no paradigma paleopositivista tinham sido separadas da justiça, separam-se agora, também, da validade, tornando possível que uma norma formalmente válida e, portanto, vigente, seja substancialmente inválida quando o seu significado estiver em contraste com normas constitucionais substanciais (...).”

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No Estado de Direito não há poder soberano, todavia o poder encontra-se vinculado à Constituição “o Estado de Direito pressupõe a existência de uma Constituição normativa estruturante de uma ordem jurídico normativa fundamental vinculada a todos os poderes públicos” (CANOTILHO, 2003, p. 245).

Desta vinculação dos Poderes Públicos à Constituição decorre o dever de realização dos direitos alçados ao status de direitos fundamentais. Ao legislador o dever de criar políticas que visem à realização destes direitos, ao Administrador o dever de realizar as políticas criadas, e ao Juiz o dever de impedir que as normas constitucionais definidoras destes direitos se tornem vazias.

Dois pontos são centrais à contextualização do trabalho. Primeiro, a teoria jurídica moderna – e os desdobramentos na teoria constitucional, teoria dos direitos fundamentais e teoria da decisão judicial - desenvolve os seus trabalhos com uma concepção de sistema normativo no qual a Constituição se encontra no plano mais elevado. Segundo, há no momento um deslocamento da parcela decisória sobre as políticas de Estado ao Judiciário.

A Constituição Federal preconiza em seu artigo 1º que o Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito, nesta quadra, há que se destacar a existência no texto constitucional de direitos tidos por fundamentais e de uma relação simbiótica entre os estes direitos e o Estado Democrático de Direito.

Somente é possível vislumbrar um Estado Democrático de Direito a partir da existência de direitos fundamentais. Tais direitos, funcionando conjugadamente com outros fatores fazem parte da essência do Estado Constitucional constituindo-se elemento nuclear da Constituição material, é o que defende Ingo Sarlet (2010, p. 58) para quem:

Os Direitos Fundamentais integram, portanto, ao lado da definição da forma de Estado, do sistema de governo e da organização do poder, a essência do Estado Constitucional, constituindo, neste sentido, não apenas parte da Constituição formal, mas também elemento nuclear da Constituição material.

Por outro lado, deve-se consignar que o Estado Democrático de Direito também se mostra indispensável aos direitos fundamentais. Não obstante estes servirem como fundamento à existência e legitimação de qualquer ordem constitucional, o Estado Constitucional é o responsável por consignar proteção e eficácia aos direitos fundamentais.171

171 Tendo em vista que a proteção da liberdade por meio dos direitos fundamentais é, na verdade, proteção juridicamente mediada, isto é, por meio do Direito, pode afirmar-se com segurança, na esteira do que leciona a doutrina, que a Constituição (e, neste sentido, o Estado Constitucional), na medida em que pressupõe uma atuação juridicamente programada e controlada por órgãos

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Traço marcante deste Estado Constitucional, como dito, é a supremacia constitucional que deve ser assegurada mediante o controle de constitucionalidade. Dito controle é exercido no Estado Constitucional pelo Poder Judiciário de forma de difusa e concentrada. Contudo, a forma concentrada é exercida pelo órgão máximo de jurisdição, a Corte Constitucional.

Neste sentido, a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789, em seu art. 16 preconiza que “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”. Essa declaração, inspirada nos ideais iluministas do século XVIII, condiciona a própria existência de um Estado (já que este surge, ao menos juridicamente, a através da Carta Constitucional) não somente à existência, como também à garantia de posições jurídicas fundamentais que garantam aos indivíduos o gozo das liberdades (termo aqui utilizado em sentido amplo) e que por isto, sejam retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes construídos.

As ideias de Constituição e direitos fundamentais são, no âmbito do pensamento da segunda metade do século XVIII, manifestações paralelas e unidirecionadas da mesma atmosfera espiritual. Ambas se compreendem como limites normativos ao poder estatal. Somente a síntese de ambas outorga à Constituição a sua definitiva e autêntica dignidade fundamental.

A supremacia da Constituição e a consequente necessidade de adequação de todos os atos estatais, não somente os normativos, tal qual conhecemos hoje é sobremaneira influenciada pelo pensamento de Hans Kelsen(1976, p. 310) para quem:

A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da relação de dependência que resulta do facto de a validade de uma norma, cuja produção, por seu turno é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental – pressuposta. A norma fundamental – hipotética, nestes termos, é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora.

Neste panorama emerge como necessidade de qualquer Estado que se pretenda de direitos, o controle de constitucionalidade dos atos do poder público com a finalidade de garantir a compatibilidade destes atos com a Constituição.

estatais, constitui condição de existência das liberdades fundamentais, de tal sorte que os direitos fundamentais somente poderão aspirar à eficácia no âmbito de um autentico Estado Constitucional.

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Neste diapasão, destaca-se o segundo ponto de contextualização do trabalho, pois a partir uma vez que a compatibilização dos atos estatais com a Lei Maior é realizada pelo Judiciário há um deslocamento da parcela decisória sobre as políticas de Estado para este Poder.

Decisões de controle de constitucionalidade que visam a reafirmação da supremacia constitucional (com a realização de Direitos fundamentais negados administrativamente) e acabam por representarem verdadeiras decisões políticas, são as decisões do Supremo Tribunal Federal de concessão ou manutenção de prestações em matéria de saúde. Diversas são as razões pelas quais estas demandas alcançam o nível mais elevado de jurisdição constitucional brasileiro. Por isto, promove-se um recorte vislumbrando-se somente as decisões nas quais a Administração Pública visa à negação ou a cessação de uma prestação em matéria de saúde pelo comprometimento da saúde ou da ordem econômica.

2. DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À SAÚDE

Antes de se adentrar na temática central do presente trabalho, faz-se mister discorrer um pouco a respeito do direito fundamental e social à saúde. Inicialmente pode-se afirmar que se trata de um direito fundamental por possuir intima ligação com a dignidade da pessoa humana (o que lhe confere fundamentalidade material) além de ser um direito expressamente previsto no texto constitucional (nota de sua fundamentalidade formal).

Concebidos os direitos fundamentais a partir dos momentos históricos de sua positivação nas Constituições internas, a doutrina os divide em dimensões. Tais dimensões representam o surgimento e positivação destes ao longo dos séculos.

Elege-se a terminologia dimensões, ao contrário de gerações, termo anteriormente utilizado pelos estudiosos, substituído por se considerar que sua utilização poderia criar na mente do intérprete a falsa noção de substitutividade entre os direitos surgidos e os anteriores.172

Deve-se ter presente que a discordância dogmática é meramente terminológica, pois, em princípio, há consenso no que tange ao conteúdo das dimensões e gerações de direitos fundamentais.173 Discorrendo acerca do que considera gerações de direitos fundamentais, Flores (2005, p. 101) pondera que:

Se é possível de fato falar em gerações de direitos, estas se encontram menos vinculadas a uma manifestação de racionalidade humana universal, tal como sustentada desde os estóicos até a declaração da ONU, de 1948,

172 No direito constitucional pátrio atribui-se a Paulo Bonavides (1997, p. 525) o pioneirismo no apontamento para esta imprecisão terminológica.173 Neste sentido é a lição de Antonio Augusto Cançado Trindade (1997, p. 24-25).

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mas sim, dizem respeito às diversas reações funcionais e críticas que têm sido implementadas na esfera social, política e jurídica ao longo dos processos de acumulação capitalista desde a baixa Idade Média até os nossos tempos.

Aparentemente há convergência doutrinária no sentido da existência de três dimensões de direitos fundamentais, quais sejam: primeira dimensão, segunda dimensão e terceira dimensão.

Na primeira dimensão são encontrados os direitos civis e políticos, nascidos ante a pressão burguesa frente ao Estado em busca de menor intervenção na autonomia privada. Tais direitos consubstanciam-se como garantias do cidadão “surgindo e afirmando-se como direitos do individuo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de não intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face de seu poder” (ANDRADE, 1987, p. 43).

Por tais motivos, os direitos de primeira dimensão não exigem prestação direta174 alguma do Estado, ao contrário, lhe impõem uma abstenção de agir. No rol destes direitos assumem grande relevo, por conta de sua inegável inspiração jusnaturalista, os direitos à vida, liberdade, propriedade e igualdade perante a Lei.

A Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX promovendo mudanças na sociedade causou novos problemas sociais e econômicos. Neste contexto, o Estado viu-se obrigado a deixar de lado sua postura de abstenção para agir em prol dos interesses de uma sociedade que exige condições melhores de vida a todos.

Neste panorama surgiram os direitos fundamentais de segunda dimensão, também denominados direitos sociais, culturais e econômicos. Tais direitos devem ser garantidos e efetivados pelo Estado. Não se tratam esses direitos de liberdades a serem exercidas frente ao Estado, mas por seu intermédio. Dentre tais direitos está o direito fundamental à saúde que deve ser garantido mediante políticas publicas que visem a proteção, promoção e recuperação da saúde.

Nos direitos de primeira dimensão tais como liberdade expressão, liberdade de associação, liberdade de escolher uma profissão, se parte de algo antecedente, não são criados pela regulamentação positiva, mas protegidos e/ou limitada por ela. De modo diverso, nos direitos de segunda dimensão não se parte de algo antecedente que deve ser juridicamente protegido pelo Estado, antes, é necessária criação do direito para depois se proteger e regulamentar.

174 Afirma-se que não há prestação ao menos direta, porque a doutrina mais atualizada preconiza, acertadamente, que mesmo os direitos tradicionalmente definidos como de caráter negativo, também acarretam ao Estado alguns encargos econômicos como um sistema de segurança pública e de administração judiciária, por exemplo. Neste sentido é a lição de Holmes e Sunstein (1999, p. 35-48).

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Por isto, somente após a ação do legislador e do administrador para possibilitar aos cidadãos o acesso a bens materiais é que surgirá algo para ser protegido contra a intervenção do Estado.

Os direitos de segunda dimensão ao contrário dos de primeira dimensão exigem um agir por parte do Estado. Conforme explica Böckenförd(1993, p. 76):

En los derechos fundamentales sociales la cosa es muy distinta. Aspirando a procurar determinados bienes materiales, no parten de algo antecedente, ya dado, que debe ser protegido jurídicamente y asegurado frente a ataques. Para asegurar estos derechos fundamentales se necesita más bien, con anterioridad a la garantía de la protección jurídica, una acción estatal activa, positiva; se necesitan medidas del legislador y/o de la Administración que procuren el acceso a los bienes materiales y la participación en ellos.175

Os direitos de segunda dimensão surgem para possibilitar a igualdade material entre os indivíduos visto que a igualdade formal é garantida pelos direitos de primeira dimensão, como os direitos de liberdade religiosa e de expressão, por exemplo. Inclusive, há autores que apontam como um dos fundamentos axiológicos dos direitos fundamentais sociais (direitos de segunda dimensão) a lei (tutela) do mais fraco, ou seja, tais direitos surgiriam como respostas às reivindicações daqueles que não detém o poder político ou econômico.

Neste sentido, Ferrajoli (2009, p. 362) afirma que:

El cuarto criterio meta-ético idóneo para señalar el carácter fundamental de las necesidades y expectativas vitales es el que las identifica con otras tantas leyes del más débil frente a la ley del más fuerte propia del estado de naturaleza, es decir, de la ausencia de derechos.176

Adverte-se para o fato de que o autor considera a tutela dos interesses do mais fraco como fundamento de diversos direitos fundamentais inclusive de primeira dimensão, mas, este fundamento se mostra ainda mais eloquente no que toca os direitos econômicos, sociais e culturais. Pondera o autor que:

175 “Nos direitos sociais fundamentaisa coisa é muito diferente. Aspirando a aquisição de determinados bens materiais, não partem de algo antecedente, já dado, que devem ser protegidos juridicamentee garantidos frente a ataques. Para garantir esses direitos fundamentais é necessária, antes da garantia de proteção jurídica, a ação ativa do Estado, ação positiva; Necessitando-se de medidas do legislador e/ou da Administração que buscam conceder o acesso a bens materiaise a participação neles.” (tradução livre).176 “O quarto critério meta-ético adequado para apontar a natureza fundamental das necessidades e expectativas vitais, é aquele que as identifica com tantas outras leis dos mais fracos frente à lei do mais forte, próprias do estado de natureza, ou seja, da ausência de direitos.” (tradução livre).

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De hecho, puede afirmarse que, históricamente, todos los derechos fundamentales han sido sancionados, en las diversas cartas constitucionales, como resultado de luchas o revoluciones que, en diferentes momentos, han rasgado el velo de normalidad y naturalidad que ocultaba una opresión o discriminación precedente: desde la libertad de conciencia a las otras libertades fundamentales, desde los derechos políticos a los derechos de los trabajadores, desde los derechos de las mujeres a los derechos sociales. (FERRAJOLI, 2009, p. 363).177

Ainda em decorrência do progresso tecnológico e outras transformações econômicas e sociais emergem na sociedade novas necessidades, necessidades estas que precisam ser atendidas, daí surgem os direitos fundamentais de terceira dimensão.

Deve-se esclarecer que quanto à titularidade dos direitos de primeira e segunda dimensão pode-se afirmá-la individual. Por outro lado, na chamada terceira dimensão, a titularidade dos direitos passa do indivíduo ao coletivo sendo por isto muitas vezes indefinida e indeterminável.

Por conta de sua titularidade eminentemente coletiva, os direitos de terceira dimensão são denominados de direitos de solidariedade e fraternidade. Contudo, deve-se consignar que apesar disto resta preservado seu cunho individual nuclear (SARLET, 2010, p. 48-49). Como exemplo destes direitos, pode-se fazer referência às garantias contra manipulações genéticas, direito de morrer com dignidade, direito a mudança de sexo, direito ao meio ambiente preservado e equilibrado, direito à paz, dentre outros.

Há ainda quem defenda a existência de uma quarta e até uma quinta dimensão de direitos fundamentais. Paulo Bonavides (1997, 524-526) defende a existência de uma quarta dimensão de direitos fundamentais decorrente da globalização. Entretanto, sua positivação no direito interno está longe de se tornar uma realidade.

Para alguns autores a classificação dos direitos fundamentais em dimensões não explica de modo satisfatório o processo de formação histórica e social dos direitos fundamentais (BRANDÃO, 2001, p. 123). Tal classificação seria meramente uma forma acadêmica de facilitar a reconstrução histórica da luta pela concretização dos direitos fundamentais.

177 “Na verdade, pode-se argumentar que, historicamente, todos os direitos fundamentais foram sancionados em diversas cartas constitucionais, como resultado de lutas ou revoluções que, em diferentes momentos, modificaram o véu da normalidade e naturalidade que ocultava uma opressão ou discriminação precedente: desde a liberdade de consciênciaaté as outras liberdades fundamentais, desde os direitos políticos aos direitos dos direitos dos trabalhadores, desde os direitos das mulheres aos direitos sociais.” (tradução livre).

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Por isto, inspirado na teoria de Jelinek, SARLET (2010, p. 167) classifica os direitos fundamentais de acordo com a sua função preponderante em direitos de defesa e direitos a prestações. Estes são divididos em direitos a prestações em sentido amplo (direitos à proteção e direitos à participação na organização e procedimento) e direitos a prestações em sentido estrito.

Os direitos de defesa se dirigem a uma obrigação de abstenção por parte dos poderes públicos. Impõem ao Estado um dever de respeito a determinados interesses individuais, por meio da omissão de ingerências ou pela intervenção na esfera de liberdade pessoal apenas em determinadas hipóteses e sob certas condições.

Inexistem controvérsias no que concerne à identificação entre os denominados direitos de defesa com os direitos de primeira dimensão, os quais já foram tratados. No âmbito dos direitos de defesa, se enquadram primordialmente os direitos de liberdade e igualdade, bem como suas respectivas formas de manifestação e concretização. Também está incluída entre os direitos de defesa a maioria dos direitos políticos, das garantias fundamentais e alguns direitos sociais, vez que como fora dito, esta classificação leva em consideração a função preponderante dos direitos fundamentais em espécie.

Por sua vez, os direitos a prestações, ao contrário dos direitos de defesa, exigem um agir por parte do Estado, impondo além da tarefa de não intervir na esfera de liberdade pessoal dos indivíduos, o dever de criar e colocar à disposição dos cidadãos as condições fáticas que possibilitem o efetivo exercício das liberdades fundamentais. A respeito destes direitos Ingo Sarlet (2010, p. 185) pondera que:

Os Direitos Fundamentais a prestações objetivam, em ultima análise, a garantia não apenas da liberdade-autonomia (liberdade perante o Estado), mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da premissa de que o indivíduo, no que concerne à conquista e manutenção de sua liberdade, depende em muito de uma postura ativa dos poderes públicos.

Como fora dito linhas acima, os direitos a prestações se subdividem

em direitos a prestações em sentido amplo e direitos a prestações em sentido estrito. Pode-se afirmar que os direitos a prestações em sentido amplo possuem um caráter residual uma vez que se enquadram nesta classificação os direitos fundamentais de natureza no mínimo predominantemente prestacional, que não são direitos de defesa e nem direitos a prestações em sentido estrito.

Por outro lado, os direitos a prestações em sentido estrito, na concepção de Robert Alexy (2011, p. 499), constituem direitos a prestações fáticas que o indivíduo, caso dispusesse dos recursos necessários e em existindo no mercado uma oferta suficiente, poderia também obter de particulares.178

178 O autor ainda completa: “quando se fala em direitos fundamentais sociais, como, por exemplo,

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Assim, os direitos a prestações em sentido estrito são facilmente identificados com os direitos sociais, dentre os quais, como preconiza a nossa Lei Maior em seu art. 6º, encontra-se o direito à saúde. Deve-se ressaltar, que o que se leva em consideração para posicionar o direito social à saúde como direito prestacional em sentido estrito é o seu caráter eminentemente prestacional.

Deve-se ter presente que o caráter eminentemente prestacional do direito social à saúde não exclui seu caráter defensivo, uma vez que gera para o Estado além do dever de criar ações que visem proteger, promover e recuperar a saúde, o dever de não prejudicar a saúde de nenhum cidadão.

3. DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A Constituição, no Título II, em seu segundo capítulo, trata dos direitos sociais como direitos a prestações, trazendo em seu artigo 6o que:

São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (grifos nossos).

O direito social à saúde, de modo semelhante ao que ocorre com os direitos sociais em geral, comporta duas vertentes. A primeira vertente é de natureza negativa, que consiste no direito a exigir do Estado ou de qualquer pessoa que se abstenha de praticar atos que prejudiquem a saúde. A outra vertente é de natureza positiva, significando o direito às medidas e prestações estatais visando à prevenção das doenças e o tratamento delas.

A Constituição, no artigo 196 define a saúde como:

Direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Estas ações e serviços são de relevância publica, na forma do artigo citado. A saúde, bem como a previdência e a assistência social, são direitos encontrados no âmago da seguridade social. Nos termos da Carta Política, a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência, e à assistência social.

direitos à assistência à saúde, ao trabalho, à moradia e à educação, quer-se primariamente fazer menção a direitos à prestação em sentido estrito.” (ALEXY, 2011, p. 499).

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A seguridade social deve ser organizada nos termos da lei, com a observância obrigatória de alguns objetivos, dentre os quais se encontram primordialmente a universalidade da cobertura e do atendimento. Assim, como a Administração Pública tem o dever constitucional de organizar a seguridade social universalizado a cobertura e o atendimento, deve fazê-lo também quanto às ações e serviços destinados à promoção, proteção e recuperação da saúde.

Neste contexto, prestações materiais do Estado, como a saúde, adquirem o caráter objetivo de normas consagradoras de situações jurídicas fundamentais. Contudo, tais direitos à prestações demandam uma estrutura estatal que precisa ser constantemente construída pelo Estado,179 ao contrário dos direitos de defesa, sendo que os recursos para a promoção desta estrutura são escassos. Somasse ao problema da escassez dos recursos a inércia de agentes estatais na realização dos direitos sociais.

É inegável que as normas definidoras de direitos fundamentais, em especial os direitos sociais, em sua grande maioria possuem caráter principiológico. Todavia, o artigo 5º, § 1º da Constituição Federal dispõe que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.180

4. DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO PRINCÍPIOS: PRINCIPAL PRESSUPOSTO TEÓRICO

Uma vez apresentado o direito à saúde como direito fundamental e, portanto, integrante do cerne da Constituição material, bem como apresentada

179 Neste sentido, SILVA (2011, p. 238) chega à conclusão de que todas as normas de direitos fundamentais são programáticas e não somente a dos direitos à prestações, o que ocorre é que com os direitos de defesa a fruição destes direitos já se encontra garantida por uma estrutura que já existe, por exemplo, no que tange ao sufrágio universal, já existe um Tribunal Eleitoral, uma legislação pertinente, um sistema de votação e etc., por outro lado, no que toca o direito à saúde, sempre há a necessidade de construção de novos hospitais, o pagamento de novos profissionais, o desenvolvimento de novos tratamentos e etc.180 Neste mesmo diapasão, SARLET (2010, p. 271) pondera que: “Se, portanto, todas as normas constitucionais sempre são dotadas de um mínimo de eficácia, no caso dos direitos fundamentais, à luz do significado outorgado ao art. 5º,§ 1º, de nossa lei fundamental, pode-se afirmar que aos poderes públicos incumbe a tarefa e o dever de extrair das normas que os consagram (os direitos fundamentais) a maior eficácia possível, outorgando-lhes, neste sentido, efeitos reforçados relativamente às demais normas constitucionais, já que não há como desconsiderar a circunstância de que a aplicabilidade imediata e a plena eficácia que militam em favor dos direitos fundamentais constitui, em verdade, um dos esteios de sua fundamentalidade formal no âmbito da Constituição.” Na esteira do referido autor percebe-se que a regra do artigo 5º, § 1º da Constituição Federal constitui um aditivo agregado às normas definidoras de Direitos Fundamentais, conferindo-lhes, em relação às demais normas constitucionais, maior aplicabilidade e eficácia.

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a evolução dos direitos fundamentais que os divide em primeira, segunda e terceira dimensões, além de exposta a classificação dos direitos fundamentais de acordo com sua função preponderante o que leva à classificação do direito à saúde como direito prestacional e delineado seu tratamento constitucional, parte-se para o principal pressuposto teórico do trabalho, qual seja: os direitos fundamentais enquanto princípios constitucionais.

Muitos são os traços distintivos entre as regras e os princípios, para alguns autores181 estes se diferenciam daquelas na medida em que seriam normas basilares do ordenamento jurídico de um país e de generalidade alta, ao passo que as regras seriam apenas normas concretizadoras dos princípios e, consequentemente, de generalidade baixa. Existiria por tanto uma diferença de grau entre estas normas.182

Não obstante esta distinção não se mostrar equivocada, adotar-se-á a diferenciação proposta por Virgílio Afonso da Silva (2011, p. 45), influenciado pela doutrina de Robert Alexy, para quem:

O principal traço distintivo entre regras e princípios, segundo a teoria dos princípios, é a estrutura dos direitos que essas normas garantem. No caso das regras, garantem direitos (ou se impõem deveres) definitivos, ao passo que no caso dos princípios são garantidos direitos (ou são impostos deveres) prima facie. (grifos do autor).

Assim, conforme nos adverte o autor, direitos garantidos por regras, por serem definitivos, devem ser realizados totalmente, sendo aplicáveis ao caso concreto, obviamente respeitadas as exceções. Por outro lado, em se tratando de princípios não se poderá falar em realização total do que a norma garante isso por que como dissemos, os princípios garantem direitos apenas prima facie e não direitos definitivos.

Nesta esteira, é valido recorrer à lição de Alexy (2011, p. 103-104) para quem:

Princípios exigem que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Neste sentido, eles não contem um mandamento definitivo, mas apenas prima facie.(...)

181 Neste sentido é a lição de José Afonso da Silva (2008, p. 92) e de Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 942).182 Alexy (2011, p. 87) discorre sob esta posição: “Há diversos critérios para se distinguir regras de princípios. Provavelmente aquele que é utilizado com mais frequência é o da generalidade. Segundo este critério, princípios são normas com grau de generalidade relativamente alto, enquanto o grau de generalidade das regras é relativamente baixo.”

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O caso das regras é totalmente diverso. Como as regras exigem que seja feito exatamente aquilo que elas ordenam, ela têm uma determinação da extensão de seu conteúdo no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas. Essa determinação pode falhar diante de impossibilidades jurídicas e fáticas; mas, se isso não ocorrer, então vale definitivamente aquilo que a regra prescreve.

Dessa feita, os princípios devem ser tomados como mandamentos de otimização, de modo que devem ser realizados ao máximo possível os direitos previstos nestas normas. Por outro lado, às regras é aplicável a “regra do tudo-ou-nada” de modo que devem ser realizados de modo integral os direitos estabelecidos por este tipo de norma.

O mandamento de otimização de determinado princípio e a medida ordenada de seu cumprimento depende tanto das circunstâncias fáticas quanto de suas circunstâncias jurídicas, sendo estas últimas determinadas pela colisão de princípios jurídicos contrários (ALEXY, 2007, p. 64).183

Dentro do sistema jurídico, Robert Alexy (2010, p. 167-169) visualiza a possibilidade do sistema ser composto apenas por regras, apenas por princípios ou por regras e princípios conjuntamente. Um sistema composto apenas por regras traz uma grande vinculação na decisão e por isso seria cheio de lacunas, haja vista que ou o julgador aplica a regra ou não a aplica, seguindo o modelo do tudo-ou-nada. A ordem jurídica, portanto, é uma ordem jurídica rígida.

Em contraponto à teoria do sistema jurídico composto apenas por regras, existe a teoria do sistema jurídico composto apenas por princípios. A ordem jurídica seria, assim, flexível. A indeterminação deste tipo de sistema jurídico somado à sua flexibilidade não condiz com algumas exigências inderrogáveis de certeza jurídica que o ordenamento exige.

Neste diapasão, o modelo de sistema jurídico composto por regras/princípios se mostra mais adequado. Isso porque, neste modelo permanece uma força vinculativa das regras como mandamentos definitivos, e ainda conserva sua natureza principiológica, sendo que a aplicação dos princípios permite a resolução de qualquer caso eliminando os problemas das lacunas.184

183 Em outra passagem Alexy (2011, p. 90) ressalta: “princípios são, por conseguinte, mandamento de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas.”184 Nas palavras de Alexy (2010, p. 169): “no modelo regras/princípios permanece, de um lado, fundamentalmente, conservada a força vinculativa do plano das regras. Do outro lado, ele é um modelo fechado, à medida que princípios sempre são correspondentes e nele, por conseguinte, nenhum caso é possível que não possa ser decidido com base em critérios jurídicos. Com isso, o problema das lacunas chega, na base de uma tese da unidade, fundada na teoria dos princípios

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Tem-se, então, que as normas definidoras de direitos fundamentais têm a estrutura de princípio exigindo, assim, a máxima realização possível do direito, dadas as circunstâncias fáticas e jurídicas, podendo se tornar uma regra após a aplicação da proporcionalidade. Como será observado, isto ocorre também com as normas definidoras do direito fundamental à saúde.185 Todavia, há quem discorde desta premissa.

Luigi Ferrajoli critica a concepção dos direitos fundamentais como normas dotadas de estruturas de princípios. Antes de adentrar neste critica, faz-se necessário apresentar o que são direitos fundamentais para o referido autor. Ferrajoli (2009, p. 19) apresenta um conceito formal de direitos fundamentais, para ele:

Son derechos fundamentales todos aquellos derechos subjetivos que corresponden universalmente a todos los seres humanos en cuanto dotados del status de personas, de ciudadanos o personas con capacidad de obrar; entiendo por derecho subjetivo cualquier expectativa positiva (de prestaciones) o negativa (de no sufrir lesiones) adscrita a un sujeto por una norma jurídica; y por status la condición de un sujeto, prevista asimismo por una norma jurídica positiva, como presupuesto de su idoneidad para ser titular de situaciones jurídica y/o autor de los actos que son ejercicio de éstas.186

A partir deste conceito formal, o autor diferencia os direitos fundamentais dos direitos que ele denomina patrimoniais e uma das diferenças apontadas é justamente a estrutura das normas definidoras dos direitos fundamentais e dos direitos patrimoniais. Para o autor, enquanto estes são positivados por intermédio de normas hipotéticas, aqueles o são por intermédio de normas téticas. Em suas palavras:

Podemos llamar normas téticas a las del primer tipo, que inmediatamente disponen las situaciones expresadas mediante ellas. Aquí están no sólo

(...).”185 Neste diapasão, Alexy (2011, p. 575) defende que independentemente de uma formulação precisa ou não, todos os direitos fundamentais possuem a natureza de princípios e, portanto, também são mandamentos de otimização.186 “São direitos fundamentais todos aqueles direitos subjetivos concedidos universalmente a todos os seres humanos como pessoas dotadas do status de pessoas, de cidadãos ou pessoas com capacidade jurídica; entendo por direito subjetivo qualquer expectativa positiva (de prestações) ou negativa (de não sofrer lesões) ligada a um sujeito por uma norma jurídica; e por status a condição de um sujeito, prevista por uma norma jurídica positiva, como pressuposto de sua idoneidade para ser titular de situações jurídicas e/ou autor dos atos quesão exercício destas.” (tradução livre). N.T: a expressão “capacidad de obrar” não possui uma tradução tão específica para o português, podendo ainda ser traduzida como “capacidade de agir” ou “capacidade de trabalhar”.

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las normas que adscriben derechos fundamentales sino también las que imponen obligaciones o prohibiciones, como las normas del código penal y las señales de carretera. Llamaré, en cambio, normas hipotéticas a las del segundo tipo, que no adscriben ni imponen inmediatamente nada, sino simplemente predisponen situaciones jurídicas como efectos de los actos previstos por ellas. Entran aquí no sólo las normas del código civil que predisponen derechos patrimoniales, sino también las que predisponen obligaciones civiles como efectos de actos negociales o contractuales. (FERRAJOLI, 2009, p. 34).187

A partir desta concepção de direitos fundamentais como regras, Luigi Ferrajoli (2012, p. 17-19) identifica, dentro do constitucionalismo jurídico moderno, duas correntes: um constitucionalismo jusnaturalista e um constitucionalismo juspositivista.O primeiro é orientado especialmente pelas ideias de Robert Alexy e seu entendimento de direitos fundamentais como princípios, podendo ainda ser designado por constitucionalismo argumentativo ou principialista, concepção já desenvolvida. O segundo, podendo ser ainda denominado constitucionalismo garantista, caracteriza-se pelo entendimento de que os direitos fundamentais se comportam como regras, haja vista que implicam na existência ou imposição de regras que funcionam como suas garantias.188

Entretanto, esta concepção das normas de direito fundamentais enquanto regras não deve prosperar tendo em vista a própria realidade constitucional que positiva os direitos fundamentais (principalmente aqueles chamados prestacionais) sem, contudo dispor sobre quais ações, estados ou posições

187 “As de primeiro tipo, podemos chamar de normas téticas, que imediatamente dispõem as situações expressadas por elas. Aqui estão não só as normas que atribuiem direitos fundamentais, mas tambémas que impõem obrigações ou proibições, como as normas do código penal e os sinais de trânsito. Chamarei, no entanto, de normas hipotéticasas do segundo tipo, que não atribuem e não impõem imediatamente nada, mas simplesmente predispõem situações jurídicas como efeitos dos atos previstos por elas. Entram aqui não só as normas do código civil que predispõem direitos patrimoniais, mas também as que predispõem obrigações civis como efeitos dos atos negociais ou contratuais.” (tradução livre).188 Em especial Ferrajoli (2012, p. 18-19) explica que: “a primeira orientação [principialista] caracteriza-se pela configuração dos direitos fundamentais como valores ou princípios morais estruturalmente diversos das regras, porque dotados de uma normatividade mais fraca, confiada não mais à subsunção, mas à ponderação legislativa e judicial. A segunda orientação [garantista], entretanto, caracteriza-se por uma normatividade forte, de tipo regulativo, isto é, pela tese de que a maior parte dos (ainda que não todos) princípios constitucionais, em especial os direitos fundamentais, comportam-se como regras, uma que implica a existência ou impõe a introdução de regras consistentes em proibições de lesão ou obrigações de prestações que são suas respectivas garantias.”

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jurídicas estão abarcadas por estes direitos. Por tudo isto, acredita-se que os direitos fundamentais possuem estrutura de princípios e não de regras.

Por isto, uma vez concebidos os direitos fundamentais como princípios tem-se que devem ser realizados na maior medida possível em vista das condições fáticas e jurídicas existentes. Então, o direito à saúde como direito fundamental que é, deve ser realizado desta forma.

5. DEVER CONSTITUCIONAL DE REALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE PELO PO-DER JUDICIÁRIO

Como referido alhures, a Carta Constitucional brasileira desenha um Estado Constitucional cujo traço marcante é justamente a existência de direitos tidos por fundamentais os quais devem ser não somente respeitados, como também promovidos por este Estado. Como dito, esses direitos fundamentais são classificados em dois grandes grupos tendo em vista sua função preponderante.

O primeiro grupo de direitos fundamentais é o dos direitos de defesa, direitos que em regra não exigem uma prestação do Estado, não exigem uma estrutura estatal que já não exista quando de sua positivação. Ao contrário, o grupo dos direitos à prestações exige uma estrutura estatal para sua promoção e fruição que deve ser construída e melhorada constantemente, e por isto, carece de maiores recursos financeiros o que limita a fruição destes direitos.

Por isto, os direitos fundamentais, e em especial os direitos prestacionais (por conta de sua natureza), devem ser tidos como princípios jurídicos, ou seja, mandamentos de otimização. Assim, os Direitos Fundamentais exigem que algo seja realizado na maior medida possível em vista das condições fáticas e jurídicas existentes.

Ocorre que, não raras vezes, o Poder Público deixa de conferir efetividade a estes princípios (deixa de realizar os direitos fundamentais), o que leva a uma busca de fruição destes direitos por intermédio do Poder Judiciário. Com o direito à saúde não é diferente, principalmente por se tratar de um direito básico e essencial à manutenção da vida.

Neste diapasão, acertada se mostra a observação de Boaventura Sousa Santos (2011, p. 25), o qual assevera que:

Mesmo descontando a debilidade crônica dos mecanismos de implementação, aquela exaltante construção jurídico constitucional tende a aumentar as expectativas dos cidadãos de verem cumpridos os direitos e as garantias consignadas na Constituição, de tal forma que a execução deficiente ou inexistente de muitas políticas sociais pode transforma-se num motivo de procura dos tribunais.

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Neste panorama o Poder Judiciário tem figurado como protagonista na realização dos direitos fundamentais como é o caso do direito à saúde. Não poderia ocorrer de maneira diferente. Como princípio que é, a negação de uma prestação em matéria de saúde não pode se dar ao livre arbítrio da Administração Pública, mas somente mediante justificativa constitucionalmente adequada que seria a falta de recursos financeiros ou de previsão jurídica (dês que se trate de uma opção pelo não fornecimento e não uma omissão estatal).

Assim sendo, quando um cidadão ingressa em juízo pleiteando uma prestação material de saúde, o Poder Público deve imediatamente constituir prova de sua impossibilidade de fornecimento, caso o contrário há um dever de fornecimento por parte do Estado Juiz. Dessa feita, as condições fáticas desfavoráveis as quais se encontra submetida a realização do princípio devem ser desde já apresentadas, para justificar uma não realização.

Semelhantemente ocorre com as condições jurídicas. Caso estas não sejam favoráveis ao fornecimento da prestação de saúde, devem ser invocadas em juízo tão logo possível. Este é o entendimento esboçado pela Corte Constitucional brasileira, segundo o STF, a mera alegação de comprometimento da ordem econômica e da saúde pública em decorrência da concessão de determinada prestação de saúde desvinculada de provas deste comprometimento não é capaz de elidir o dever constitucional de fornecer.

Neste sentido, são diversas decisões tais como a decisão do agravo regimental na suspensão de tutela antecipada nº 175/CE na qual ficou consignado que:

Melhor sorte não socorre à agravante quanto aos argumentos de grave lesão à economia e à saúde publicas, visto que a decisão agravada consignou, de forma expressa, que o alto custo de um tratamento ou medicamento que tem registro na ANVISA não é suficiente para impedir o seu fornecimento pelo poder publico (BRASIL, 2010a, p. 103).

Some-se isto ao fato de que é juridicamente impossível discutir matéria de fato em grau de recurso extraordinário, sendo somente possível a discussão em torno de matéria de direito, especificamente matéria constitucional. Assim, quando uma demanda alcança o nível mais elevado de jurisdição, não será possível a cessação ou a cassação das prestações de saúde visto que a prova do comprometimento do sistema deve ser realizada em momento anterior e encontra-se preclusa.

Ante o que foi até então apresentado, pode-se concluir que a natureza eminentemente principiológica e programática do direito à saúde não é algo prejudicial à sua realização, ante disto, é garantidor desta realização, não podendo este direito se transformar em uma promessa constitucional inconsequente.

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Esta linha de raciocínio também encontra guarida na jurisprudência constitucional como se pode vislumbrar em diversos julgados. Este é o entendimento exposto no julgamento do agravo regimental no recurso extraordinário nº. 271.286-8/RS, cujo relator é o Ministro Celso de Melo (BRASIL, 2000, p. 1409-1410):

O caráter programático da regra inscrita no art. 196. da Carta Política - que tem por destinatário todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro (JOSÉ CRETELA JUNIOR, “Comentários à Constituição de 1988”, vol. VIII/4332-4334, item n 181, 1993, Forense Universitária) – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. (grifos do autor).

Deve-se ter presente que os julgados neste sentido189-190 estão em consonância com a doutrina que considera não haver dicotomia entre normas programáticas e o reconhecimento de direitos subjetivos individuais a determinadas prestações decorrentes destas normas, este é o entendimento de Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 294):

Tomando-se como exemplo o direito à saúde, verifica-se que assim como é correto (pelo menos é o que se irá sustentar mais adiante) deduzir da Constituição um direito fundamental à saúde (como complexo de deveres e direitos subjetivos negativos e positivos) também parece certo que ao enunciar que a saúde – além de ser um “direitos de todos”, “é dever do Estado, garantido mediante políticas públicas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e outros agravos (...)” (art. 196 da

189 Assim pode-se citar o recurso extraordinário n. 368.564 de Relatoria do Min. Marco Aurélio, julgamento onde lê-se: “ SAÚDE – TRATAMENTO – DEVER DO ESTADO. Consoante o exposto no art. 196 da Constituição Federal ‘a saúde é direito de todos e dever do Estado (...)’, incumbindo a este viabilizar os tratamentos cabíveis.” (BRASIL, 2011, p. 64).190 E Ainda o AI 734.487-AgR de Relatoria da Min. Ellen Gracie constando que: “O direito a saúde é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. 2. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo.” (BRASIL, 2010b, p. 1220).

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CF de 1988), a nossa Lei Fundamental consagrou a promoção e proteção da saúde de todos como um objetivo (tarefa) do Estado que, na condição de norma impositiva de políticas públicas, assume a condição de norma de tipo programático. Importa notar, portanto, que a assim designada dimensão programática convive com o direito (inclusive subjetivo) fundamental, não sendo nunca demais lembrar que a eficácia é das normas, que, distintas entre si, impõem deveres e/ou atribuem direitos, igualmente diferenciados quanto ao seu objeto, destinatários, etc..

CONCLUSÃO

O direito social à saúde, enquanto direito fundamental que é, faz parte do cerne da ordem constitucional devendo ser protegido contra ações erosivas do legislador/administrador tendentes a esvaziar seu conteúdo. Além disto, deve ser realizado dia após dia por se tratar de um direito elementar à condição humana.

Este direito fundamental encontra sua fundamentalidade material justamente na sua ligação intrínseca com a dignidade da pessoa humana e sua fundamentalidade formal em sua positivação no texto constitucional. Classificado como direito fundamental de segunda dimensão e ainda como direito fundamental prestacional, as normas definidoras deste direito possuem caráter programático (embora não destituída de aplicabilidade) e natureza principiológica, por isto, o Poder Público tem o dever de criar e fornecer o máximo possível de prestações em matéria de saúde observadas as condições fáticas e jurídicas para tanto.

Ocorre que não raras vezes estas prestações de saúde, essenciais à manutenção da vida e indispensáveis à dignidade humana, são negadas administrativamente. Inconformados, muitos cidadãos recorrem ao Poder Judiciário para garantir o que lhes é assegurado constitucionalmente.

Entender o direito fundamental à saúde como princípio implica na sua realização máxima, salvo condições fáticas e jurídicas desfavoráveis. Então, tendo em vista o caráter principiológico deste direito, a impossibilidade de sua realização há que ser comprovada desde logo e sua não realização não poderá esta pautada somente em alegações desvinculadas de prova do comprometimento da ordem econômica e da saúde pública. Este é o entendimento esboçado em diversos julgados da Corte Constitucional pátria.

Não somente o Supremo Tribunal Federal, mas também o Poder Judiciário como um todo, tem sido essencial na realização do acesso ao direito social à saúde daqueles a quem muitas vezes é negada uma prestação fundamental à sua subsistência.

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Uma vez denegada a prestação da saúde, viola-se a realização máxima dos direitos fundamentais enquanto princípios constitucionais, haja vista que não se verifica nenhuma circunstância fática ou jurídica que justifique a falta da prestação protegida pelo direito fundamental social à saúde. Não raras vezes, a Corte Constitucional tem se pronunciado no sentido de que o direito social à saúde não pode se transformar em uma promessa constitucional inconsequente.

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DIREITOS SOCIAIS: EXISTÊNCIA, FUNDAMENTABILIDADE E EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS DE TER

Jean CarloS BarCeloS martinS191

maria roSaria BarBato192

INTRODUÇÃO

A cidadania e a capacidade são as únicas diferenças de status que determinam a igualdade das pessoas, sendo estes dois parâmetros, o primeiro superável e o segundo insuperável, como o grande divisor dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais devem conter seu ideal na positivação das normas que expressam a existência das obrigações e proibições de cada cidadão. O texto constitucional compreende a cártula de identificação de tais direitos, bem como, o instrumento que possibilita a realização de técnicas e políticas para efetivação dos direitos fundamentais. Não basta que o Estado reconheça formalmente a existência de tais predicados, mas sim, há uma necessidade diária de concretização dos mesmos, incorporando-os ao dia a dia de cada cidadão. Este trabalho narra a jusfundamentabilidade dos direitos humanos de ter, apontando sua condição necessária para subexistência dos indivíduos, bem como o respeito a sua observância pelas políticas públicas do Estado. Neste contexto, serão abordados os fundamentos e estrutura dos direitos sociais, em um breve contexto histórico contemporâneo, apontando, por conseguinte o conteúdo essencial desses direitos, culminando com a análise da impossibilidade do retrocesso social do Estado e a importância da Assistência Social como o direito de ter.

1. FUNDAMENTOS E ESTRUTURA DOS DIREITOS SOCIAIS: O RESPEITO AO BEM ESTAR SOCIAL INDIVIDUAL E COLETIVO

Os direitos fundamentais refletem um caráter axiológico dos direitos humanos invocando uma acepção que concretiza as lutas sociais pela dignidade do homem, numa sociedade equilibrada e justa. Tal ideia não deve apenas estreitar-se nos campos dos Estados Nações e sim no próprio contexto do cenário internacional.

Neste contexto, Kant (2008, p. 115) relata que as pessoas devem existir com um fim em si mesmo e nunca como um meio, imposto para esse ou aquele propósito. Cada indivíduo possui um valor insubstituível e único, dotado de dignidade.

191 Professor do curso de Direito FADIR-UFU. Mestre em Direito.192 Doutora em Direito pela Universidade de Roma Torvergata. Professora da UFMG.

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Luigi Ferrajoli (2009, p. 50) argumenta que os direitos fundamentais são todos os direitos subjetivos, na condição de qualidade positiva ou negativa de prestações do Estado, garantidos a universalidade de homens dotados de personalidade. Este conceito é meramente formalístico, não ensejando uma análise critica, bastando somente o seu reconhecimento universal para garantia de sua existência, sua inalienabilidade ou inegociabilidade.

Ainda neste mesmo sentido, o mesmo autor discorre que a igualdade de direitos garantidos a todos está reconhecida normativamente, devendo, entretanto, ser averiguada sua intensidade e extensão, já que existem classes de sujeitos com status diferenciados. Personalidade, cidadania e capacidade, são condicionantes dos diversos tipos de direitos fundamentais, devendo ser ponderados como parâmetros tanto das igualdades como das diferenças de tais direitos.

Os direitos fundamentais seriam o elemento de ligação entre o Estado e cada indivíduo em sua relação cotidiana em sociedade, neste contexto, Alexy (2011, p. 231) aplica as definições propostas por Jellinek no final do século XIX, transcrevendo a existência dos quatro status (categorias) dos direitos dos indivíduos perante o Estado, sendo eles:

Direitos de status negativos, aqueles que permitem aos homens resistir a uma possível atuação do Estado, em razão de sua personalidade e liberdade, constituindo verdadeiros instrumentos de defesa, capazes de assegurar interferências ilegítimas do Poder Público, em suas três esferas de atuação: Executiva, Legislativa e até mesmo Judiciária. Havendo violação desses direitos poderão ser constituídas pretensões de abstenção, revogação ou anulação da situação afetada.

Direitos de status positivos ou sociais, para os quais o indivíduo exige que o Estado realize uma atuação prestacional, a fim de lhes ser possível melhorias em suas condições de vida e subsistência para exercício das liberdades e igualdades do homem. Trata-se de direitos objetivos, pois conduzem os indivíduos em condições diferenciadas a uma igualdade material, por meio de políticas e ações intervencionistas positivas do Estado para sua concretização. São assim considerados como “liberdades positivas”, exigindo uma atuação direta dos Poderes Públicos na busca do bem-estar social.

Direitos de status passivo ou subjetivos, a categoria na qual os indivíduos encontram-se subordinados aos organismos estatais, ou seja, vinculados aos poderes públicos através de regulamentos e imposição, compreendo não propriamente direitos, mas sim deveres a serem cumpridos por todos no âmbito da vida em sociedade.

Direitos de status ativos ou políticos, esta última categoria estabelece competências para formação da estrutura governamental do Estado, permitindo a participação na escolha e vontade política, tanto no aspecto do sufrágio

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(votação) como o da exigência de informações e prestações de contas dos poderes administrativos.

Conforme analisado anteriormente, o respeito ao bem estar social individual e coletivo torna-se a própria estrutura à concretização dos direitos sociais. Tal conceito pode ser sintetizado nos dizeres de Antonio-Enrique Perez Luño (2005, p. 132), pois também reconhece que os direitos humanos devem ser entendidos como um conjunto de faculdades que, em um dado momento histórico, concretizam as exigências de direitos, como a dignidade humana, a liberdade e a igualdade, e devem ser reconhecidas e positivadas. Ao passo que os direitos fundamentais são aqueles positivados no ordenamento jurídico, na maioria das vezes, em sede constitucional.

Os direitos fundamentais não surgiram simultaneamente, mas em períodos distintos conforme a demanda de cada época, tendo esta consagração progressiva e sequencial nos textos constitucionais dando origem à classificação em gerações.

a) Primeira geração: os direitos individuais, que pressupõem a igualdade formal perante a lei e consideram o sujeito abstratamente. A liberdade é a essência da proteção dada ao indivíduo.b) Segunda geração: os direitos sociais, econômicos, culturais, em que o sujeito de direito é visto enquanto inserido no contexto social. Igualdade de direitos (ex. art. 196)c) Terceira geração: os direitos coletivos e difusos. Necessidade de proteção do corpo social. Seu fundamento é a fraternidade ou solidariedade. Compreendem os direitos relacionados ao consumidor e ao meio ambiente.d) Quarta geração: os direitos de manipulação genética, relacionados à biotecnologia e à bioengenharia, que requerem uma discussão ética prévia. São direitos relacionados ao processo de globalização.e) Quinta geração: os direitos da realidade virtual, a cibernética, que rompem fronteiras e distâncias e estabelecem conflitos entre países de realidades distintas. (BOBBIO, 2005, p. 98).

Os direitos da primeira geração, para Pérez Luño (2005, p. 134) correspondem, em sua base, àqueles relacionados à proteção das liberdades individuais, que impõem a limitação e a não interferência pela administração pública nos direitos privados, que se concretizam pela atitude meramente omissiva ou de simples vigilância dos entes públicos.

Já os direitos de segunda geração são aqueles que se observam pela participação coletiva e da igualdade, necessitando ação política ativa, garantidora do seu exercício, realizada por técnicas jurídicas prestacionais.

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Ainda para Luño, a terceira geração, complementa uma última etapa necessária à plenitude dos direitos fundamentais ao preocupar-se com questões relacionadas à solidariedade ou fraternidade, que englobam o direito a um meio ambiente equilibrado, uma saudável qualidade de vida, ao progresso e ao desenvolvimento dos povos.

[...] enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva, atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade. (MELLO apud MORAES. 2010, p. 31)

Para os doutrinadores da atualidade, como Paulo Bonavides (2010, p. 233), a existência de uma quarta geração remete-nos aos frutos da globalização política correspondendo à organização internacional da defesa da democracia, do biodireito, da bioética, e à informatização, possibilitando um novo acesso ao desenvolvimento e a solução de problemas trazidos pelo crescimento econômico no âmbito mundial.

Contudo, não se pode aceitar com precisão tal posicionamento já que não são exatos os critérios adotados para realização da divisão. Não se pode dizer que as “gerações” de direitos fundamentais existiram isoladas em certo lapso temporal, nem tão pouco que houve uma superação de regras, com o surgimento dessas “gerações”.

As novas gerações de direito não podem ser consideradas como causas extintivas das anteriores, entretanto um debate doutrinário tem se firmado posto que alguns prefiram a utilização de “dimensões” já que ocorreu uma sucessão desses direitos. Em verdade, todos eles coexistem. Desta forma, entende-se que a consolidação das duas primeiras dimensões já se tenha acontecido, as demais, encontram-se em fase de formação e positivação.

Para Dimoulis e Martins (2010, p. 31), dever-se-ia empregar a terminologia “categorias” ou “espécies”, posto que desde as primeiras Constituições já se observara a existência dos direitos fundamentais em sua case pela abrangência, ou seja, na regulamentação dos direitos individuais, políticos e sociais, não se atentando unicamente a um fator cronológico.

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[...] é inexato se referir a “gerações” dos direitos fundamentais, considerando que os direitos sociais sejam posteriores aos direitos de inspiração liberal-individualista ou que estes tenham substituído, ultrapassado os direitos fundamentais clássicos da dita “primeira geração” liberal-individualista. Não há dúvida de que a parcela do orçamento estatal dedicada ao financiamento dos direitos sociais após a Segunda Guerra Mundial é bem maior do que aquela de inícios do século XIX. Mas essa é uma alteração quantitativa. Sinaliza uma mudança nas políticas públicas e não uma inovação no âmbito dos direitos fundamentais, cuja teoria e prática conheceram, desde o início do constitucionalismo os direitos sociais. (DIMIOULIS. 2010, p. 31) Ainda neste contexto,

Portanto, recomenda-se utilizar os termos “categorias” ou “espécies” de direitos fundamentais, da mesma forma como se classifica leis e atos jurídicos em espécies de leis ou categorias de atos jurídicos e não em dimensões do ato jurídico ou da lei. Reservar-se-á o termo “dimensões” para indicar dois aspectos ou funções dos mesmos direitos fundamentais, isto é, o objetivo e o subjetivo. (DIMIOULIS. 2010, p. 31).

Como se observa, a discussão não se encerra e nem tão pouco cabe aqui uma escolha certa e única a cerca da terminologia mais correta a ser utilizada. Prefere-se então considerar que todas as terminologias expressam um único e verdadeiro significado etimológico que determina as várias espécies de direitos fundamentais do homem no contexto doutrinário, podendo ser empregado tanto às expressões gerações ou dimensões, não se afastando estes do seu foco principal, sua jusfundamentabilidade.

Esses direitos constituíram-se como direitos do povo e para o povo, seja ele na condição de ser humano, ou na coexistência social coletiva. Sua finalidade é de impor limites na esfera de atuação do Estado em relação aos indivíduos. Pode ser considerado, ainda, como um direito de defesa.

Sobre as características da jusfundamentabilidade dos direitos fundamentais, José Afonso da Silva (2010, p. 181), descreve que estão presentes: a historicidade, pois estes, não diferentes de outros direitos, nascem, modificam-se e desaparecem; são inalienáveis, intransferíveis ou inegociáveis, porque possuem conteúdo econômico-patrimonial, porque são indisponíveis; são imprescritíveis, não perdem a sua validade, já que estão relacionados às garantias personalíssimas ou individuais; e ainda podem até não ser exercidos, mas jamais renunciados.

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A Constituição Federal de 1988 subdivide os direitos sociais em quatro capítulos, classificando-os em espécies o gênero direito e garantias fundamentais, em direitos individuais e coletivos, prescritos no artigo 5º e seus setenta e oito incisos; em direitos sociais, compreendidos nos artigos 6º ao 11, e artigo 193; e os direitos políticos prescritos nos artigos 12 à 17.

O artigo 5º da Constituição arrola direito e deveres individuais e coletivos. O referido artigo começa enunciando o Direito de igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Neste prisma Silva (2010, p. 189) lembra que:

Embora seja uma declaração formal, não deixa de ter sentido especial essa primazia ao direito de igualdade, que, por isso servirá de orientação ao interprete, que necessitará de ter sempre presente o princípio da igualdade na consideração dos direitos fundamentais do homem. Em conseqüência, o dispositivo assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do Direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos dos incisos que integram este artigo.

Cabe, aqui também, fazer uma breve consideração a respeito da diferenciação entre direitos individuais e direitos coletivos. Sarlet (2011, p. 170-171) diz que:

Inicialmente, há que fazer ao menos uma breve referência ao significado dos assim denominados direitos individuais e coletivos – para utilizar a terminologia da nossa Lei Maior - e de seu enquadramento no status negativus e libertatis caracterísitcas dos direitos de defesa. A distinção (ao menos aparente), traçada pelo Constituinte entre direitos (e garantias) individuais e coletivos representa uma novidade do direito constitucional vigente, tal que sorte que não encontramos referenciais no direito constitucional pretérito que possam elucidar a questão, a qual, além disso, igualmente não foi enfrentada por boa parte da doutrina. A relevância da distinção se manifesta não somente no que diz com aspectos procedimentais, ligados à efetivação dos direitos coletivos, mas pode assumir real importância dependendo da exegese que fizermos do art. 60, §4º, inc. IV, da CF, que, ao menos segundo a expressão literal do texto, exclui os direitos e garantias coletivas do rol das “clausulas pétreas”. [...] Com base na distinção traçada à luz do direito positivo, verifica-se, de plano, que o constituinte não deixou transparecer uma definição precisa de direitos coletivos. Inicialmente, cumpre frisar (como reconhece José Afonso) que a grande maioria dos dispositivos elencados sob o rótulo

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de coletivos são, na verdade, direitos tipicamente individuais, ainda que de expressão coletiva, no sentido de que são exercidos, não isolada, mas coletivamente. [...] Neste contexto, cumpre referir a lição de Vieira Andrade, que oportunamente apontou para a circunstância de que os assim denominados direitos coletivos não podem ser usufruídos pelo indivíduo isoladamente, na medida em que pressupõem uma atuação conjunta de mais de uma pessoa individual, continuando a ser, neste sentido, direitos individuais, de tal sorte que a coletividade passa a ser apenas um instrumento para o exercício do respectivo direito “coletivo”.

Para Steinmetz (2010, p. 193), há uma distinção entre três grupos de direitos individuais, que podem ser agrupados em: Direitos individuais expressos, tratados no corpo do artigo 5º da Constituição Federal; Direitos individuais implícitos, condicionados aos regulamentos de garantias interpessoais, como a vida, a alimentação e outros; Direitos individuais internacionais, recepcionados e subscritos pelos Tratados externos, não possuindo uma provisão futura ao regime incorporado, sua caracterização será sempre a posteriori.

Todas essas categorias de Direitos Fundamentais fazem parte de um conjunto fundamentalista conciliatório de tais ideias, que mutuamente se influenciam, uma vez que pertencem a uma dimensão coletivo-social.

Ao conjunto sistemático e harmonioso de regras dá-se o nome de ordem, sendo indispensável ter em conta, em primeiro lugar, que a ordem humana é uma organização de seres dotados de inteligência e de vontade. Além disso, trata-se de uma ordem dinâmica, em constante mutação, não se confundindo com o simples conjunto de regras escritas, que se pretende que sejam constantes. As leis de um Estado expressam uma parte dessa ordem, mas não sevem ser confundidas com a própria ordem, pois esta inclui também os valores sociais que influem sobre os comportamentos, assim como os costumes tradicionais e a jurisprudência. Ordem social e ordem jurídica são conceitos muito mais amplos do que ordem legal. [...] Na consolidação da liberdade individual deve estar presente a responsabilidade social que deriva da natureza associativa dos seres humanos. A igualdade democrática deve levar em conta a igualdade quanto aos direitos fundamentais, mas também a efetiva igualdade de oportunidades, que é bem mais do que a igualdade apenas formal ou a igualdade perante a lei. E a escolha de representantes deve ser verdadeiramente livre para ser democrática, além de não excluir a possibilidade de controle do desempenho dos representantes pelo povo, bem como a permanente influência do povo sobre o comportamento dos

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eleitos. Atendidos esses requisitos, a ordem democrática será, ao mesmo tempo, uma ordem justa e adequada para a proteção e promoção dos direitos humanos fundamentais e da dignidade de todos os seres humanos. (DALLARI. 2010, p. 30-31)

Relativamente às pessoas jurídicas é inegável que são destinatárias de direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, o constituinte originário declarou, inclusive, direitos que são próprios dos entes abstratos, como a propriedade de marcas, signos distintivos, nomes das empresas e associações193.

A eficácia dos direitos sociais está diretamente relacionada às ações políticas praticadas pela Administração Pública, que deve realizar um fim capaz de concretizar tais direitos, ou seja, tal atuação depende de ações governamentais e iniciativas públicas. Não seria outra essa razão, posto que, os direitos fundamentais do homem caracterizam-se como normas de ordem pública, e inafastáveis para otimização das finalidades e objetivos dos Estados Democráticos de Direito.

Desta forma tem-se que, para garantia da efetivação dos direitos sociais, há uma obrigação estatal em relação ao indivíduo não se limitando em eximir-se do comportamento prejudicial aos direitos de liberdade, assumindo o compromisso de promover prestações através de um desempenho positivo194.

A dignidade da pessoa ou simplesmente da garantia humana não se apresenta de forma uníssona ou generalizada aos diversos entes sociais, pode então variar conforme a localidade territorial, as condições socioeconômicas ou ainda características relativas às crenças étnicas e religiosas.

193 O artigo 5º da constituição federal de 1988, além de assegurar as garantias individuais, possibilita também à liberdade e o respeitos às personalidades jurídicas, assim estabelecendo em seus incisos: [...] XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter para militar; XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento; [...] XXI – as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente; [...] XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção ás criações industriais, à proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País; 194 Kelbert (2011, p. 32) bem ressalta que os direitos sociais também podem ser concretizados por meio da realização, ou possibilidade de realização das liberdades sociais de cunho individualista ou introspectivo, já que permite a não realização de atividades, ações ou até mesmo do trabalho para que a dignidade seja almejada, citando como exemplo os períodos regulares de férias dos trabalhadores celetistas e estatutários, até mesmo da garantia do direito de greve, que nada mais é que a paralização dos trabalhos com objetivo de impulsionar as negociações coletivas na garantia de novos direitos de uma determinada categoria profissional.

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Os direitos fundamentais também devem ser considerados não como absolutos ou ilimitáveis, e sim em verdadeira relatividade passível de restrições. Assim, o alcance objetivo (material) de um direito fundamental pode internamente apresentar limitações, seja através de uma lei infraconstitucional, ou até mesmo pelas próprias diretrizes constitucionais, por meio de uma justificação plausível para sua não concretização.

Tal justificativa ocorre quando se depara com a colisão ou conflito normativo constitucional que protege, ao mesmo tempo, dois ou mais bens que se contradizem, e demonstram a inocorrência de uma hierarquia de direitos, já que todos eles estão ensejados no corpo maior da norma positiva interna.

Desta forma, analisar o conteúdo essencial dos direitos fundamentais compreendera uma breve análise do conflito existente acerca das ações políticas de efetivação dos direitos de segunda geração, já que a variabilidade do elemento mínimo garantidor da dignidade humana tem por vezes sido confrontado com as limitações orçamentárias estatais.

2. O MÍNIMO EXISTENCIAL E A DIGNIDADE HUMANA: O CONTEÚDO ESSEN-CIAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

O direito alemão em 1949 (Sarlet, 2010, p. 192) sobrepesou o reconhecimento dos debates político-administrativos no tocante à garantia mínima de uma vida plena, nas três esfera de poderes do Estado, com o intuito de se relacionar a sobrevivência social à materialização dos direitos fundamentais.

Inicia-se a ideia de que todas as necessidades mínimas do ser humano devem ser sanadas para que lhe seja proporcionado uma vida digna, o mínimo existencial não está relacionado apenas com o mínimo vital para que o indivíduo mantenha-se saudável, mas sim com tudo que o faça viver dignamente. Nesse sentido, Silva (2011, p. 204):

A simples ideia de um conteúdo essencial dos direitos sociais remete automática e intuitivamente ao conceito de mínimo existencial. Essa intuição em considerar ambas as figuras como intercambiáveis ou sinônimos deve, no entanto, ser vista com cautela. Não é o caso, aqui, de fazer uma aprofundada análise do chamado mínimo existencial, mas é preciso ter em mente, em primeiro lugar, que o conceito de mínimo existencial é usado com diversos sentidos, e pode significar: (1) àquilo que é garantido pelos direitos sociais – ou seja, direitos sociais garantem apenas um mínimo existencial; (2) aquilo que, no âmbito dos direitos

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sociais, é justiciável – ou seja, ainda que os direitos sociais possam garantir mais, a tutela jurisdicional só pode controlar a realização do mínimo existencial, sendo o resto mera questão de política legislativa; e (3) o mesmo que conteúdo essencial – isto é, um conceito que não tem relação necessária com a justiciabilidade e, ao mesmo tempo, não se confunde com a totalidade do direito social.

Ainda sobre este contexto histórico germânico, após grandes debates sobre o tema o Tribunal Federal Administrativo da Alemanha decide acerca do direito subjetivo das pessoas que carecem de ajuda do Estado como mecanismo de efetivação dos mais elementares direitos (liberdade, vida, saúde, moradia, alimentação) como titular de direitos e obrigações, o que resulta na conservação de suas boas condições de existência.

Então, depois de aproximadamente duas décadas da mencionada decisão do Tribunal Administrativo Federal, o Tribunal Constitucional Federal também reconhece como direito fundamental a prestação dessas condições para o alcance de uma vida digna.

Depreende-se desse contexto histórico duas importantes características sobre o mínimo existencial, uma vez que este não pode ser confundido com um mínimo de sobrevivência, e sua direta e correlata relação com a garantia e qualidade de vida dos indivíduos.

No Brasil, o texto constitucional, mesmo não expressamente ressaltado o direito ao mínimo existencial, traça caminhos interpretativos para garantia do reconhecimento de sua efetivação, ao transcrever em seu artigo 7º, inciso IV195, que é direito de todos os trabalhadores o recebimento de salário capaz de garantir as suas necessidades básicas vitais, bem como a de seus familiares, estabelecendo em seguida um rol exemplificativo dessas supostas necessidades.

Na visão de Marinalva Schluncking as prestações do Estado como meio de garantia ao principio da dignidade humana não pode ser esquecida ou sobreposta nos discursos acadêmicos e jurídicos,

[...] a questão do ‘mínimo existencial’ ou ‘mínimo vital’ tem sido amplamente debatida na doutrina, como também nos tribunais. Trata-se de direito constitucional com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, segundo o qual são assegurados aos indivíduos direitos

195 Da Constituição Federal de 1988, temos então na integra o enunciado do dispositivo legal: Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.

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sociais, os quais, ao menos em seu conteúdo, devem ser prestados pelo Estado. (SCHLUCKING, 2009, p. 15)

O Estado é, então, o promotor196 dos direitos fundamentais, seja desde a educação, a saúde, a moradia e a alimentação, e não apenas como mero interlocutor do mínimo de direitos necessários ao desenvolvimento de uma vida digna. Em decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 1.185.474, o ministro Humberto Martins, assim considerou em seu voto como relator:

[...] o mínimo existencial não se resume ao mínimo vital, ou seja, o mínimo para se viver. O conteúdo daquilo que seja o mínimo existencial abrange também as condições socioculturais, que, para além da questão da mera sobrevivência, asseguram ao indivíduo um mínimo de inserção na ‘vida social’. [...] o que distingue o homem dos demais seres vivos não é a sua condição de animal social, mas sim de ser um animal político. É a sua capacidade de relacionar-se com os demais e, através da ação e do discurso, programar a vida em sociedade. (STJ, RE nº 1,185.474, Min, Humberto Martins, publ. 29.04.2010)

O desenvolvimento social é um reflexo natural da própria evolução humana, que, cotidianamente, passa a exigir ou criar novos desafios a serem rompidos na busca de soluções para os problemas da vida em sociedade. Não somente busca-se soluções para problemas novos, mas, também, para antigos conflitos ainda não sanados.

O elemento central a cerca da dignidade da pessoa humana deve ser pautado na condição da autonomia e autodeterminação da cada pessoa, como uma qualidadem inata pura e simples. Para Sarlet (2009, p. 55) trata-se de uma preatação do Estado, que deve guiar as suas ações no sentido de preserver a pessoa, criando condições que possibilitem o pleno exercício da vida.

196 Ao análisar do conceito de mínimo existencial, Simone de Sá Portella (2007) reflete através das definições de John Rawls, Ricardo Lobo Torres e Ana Paula de Barcellos, assim prolatando:. “A prestação estatal é obrigatória quando caracterizada a necessidade. Assim é resistente à crise financeira e não se confunde com os incentivos fiscais. De diversas formas se dá a proteção do mínimo existencial. Em primeiro lugar pela entrega direta de prestações de serviço público específico e indivisível, gratuitas através da atuação das imunidades das taxas e dos tributos que dependem de prestações, como nos casos da educação primária e da saúde pública. A proteção da liberdade pode se dar, também, por subvenções e auxílios financeiros a entidades filantrópicas e educacionais, tanto públicas como privadas. A entrega de bens públicos, como roupas, remédios e alimentos, nos casos de calamidade pública, ou como forma de assistência social a pessoas carentes, através do fornecimento de merenda escolar, leite, etc, não depende de pagamento, porque se trata de proteção do mínimo existencial. No entanto, é necessário ressaltar que a ação estatal deve se restringir à entrega de bens necessários à sobrevivência dos pobres, pois ao Estado não compete a concessão de bens e serviços a toda a população”.

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E nesse sentido a Constituição de 1988 no Brasil pode ser considerada o momento da quebra do paradigma liberal civilista da propriedade, que fora substituído pela estruturação do fortalecimento da solidariedade à pessoa humana. Ingo Sarlet (2010a, p. 268) defende que os vários direitos fundamentais, consagrados na Carta Magna brasileira, possuem aplicabilidade197 imediata, ou seja, de norma auto-aplicáveis.

[...] todas as normas constitucionais sempre são dotadas de um mínimo de eficácia, no caso dos direitos fundamentais, à luz do significado outorgado ao art. 5º, § 1º, de nossa Lei Fundamental, pode afirmar-se que aos poderes públicos incumbem a tarefa e o dever de extrair das normas que os consagram (os direitos fundamentais) a maior eficácia possível, outorgando-lhes, neste sentido, efeitos reforçados relativamente às demais normas constitucionais, já que não há como desconsiderar a circunstência de que a presunção da aplicabilidade imediata e plena eficácia que milita a favor dos direitos fundamentais constitui, em verdade, um dos esteios de sua fundamentabilidade formal no âmbito da Constituição[...]. (SARLET, 2010, p. 271) O argumento da falta de recuroso para efetivação de políticas positivas

de direitos sociais decorre do Direito Constitucional comparado internacional, contudo a situação social brasileira nos remete a uma interpetração diferenciada, posto que, conforme elucidado, a garantia do mínimo existencial não pode ser feita de forma objetiva, e sim analisando o contexto da efetiva condição da dignidade da pessoa humana.

Se os recursos não são suficientes, deve-se retirá-los de outras áreas (transporte, fomento econômico, serviço de dívida) onde sua aplicação não está tão intimamente ligada aos direitos mais essenciais dohomem: sua vida, integridade física e saúde. Um relativismo nessa área pode levar a ‘ponderações’ perigosas e anti-humanistas do tipo ‘por que gastar dinheiro com doentes incuráveis ou terminais? (KRELS. 2002, p. 53)

Os direitos fundamentais estão na essência da Constituição e um programa de governo deve respeito aos ditames constitucionais, mormente, àqueles que

197 Para Virgilio Afonso da Silva (2011, p. 211): a questão da aplicabilidade é uma questão relativa à conexão entre a norma jurídica, de um lado, e fatos, atos e posições jurídicas, de outro. Em outras palavras: “Aplicabilidade é (...) um conceito que envolve uma dimensão fática que não está presente no conceito de eficácia”. Não se pretende [...] analisar a aplicação dos direitos fundamentais a situações concretas ou modelos que pretendam reconstruir essa forma de aplicação. [...]

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se referem à dignidade da pessoa humana. Para efetivar direitos dentro de um mínimo existencial necessário faz-se alocar recursos e é neste patamar que torna-se possível e legítima a intervenção dos órgãos jurisdicionais a fim de imporem ao poder público a satisfação das prestações demandadas.

A dignidade da pessoa esta atrelada à sua condição humana individuale também em sua dimensão social (coletiva). Por serem todos iguais em direitos, também o são em dignidade, partindo do pressuposto da necessidade de promoção das condições de uma contribuição ativa para proteção de um conjuto de direitos e liberdades de ampla abrangência. Em outras palavras a dignidade deve respeitar a vida, e a integridade física e moral do ser humano.

Para Luis Roberto Barroso (2011, p. 17) a dignidade da pessoa tem seu berço secular na filosofia. Caracterizando-se, primeira mente como um valor axiológico, vinculado aos fundamentos da bondade e da justiça. Assim, estaria ela situada juntamento com outros valores importantes do Direito, como equidade, segurança e solidariedade. É nesse plano ético que a dignidade se torna, para muitos autores, a justificação moral dos direitos humanos e dos direitos fundamentais.

Apenas no final do século XX é que ocorre aproximação da dignidade humana com a Ciência do Direito, tornando-se um conceito jurídico, a partir da expressão de um dever-ser normativo, e não apenas um dogma moral ou politico. Consequentemente, ao transmutar da filosofia para o Direito, ganha carater de princípio jurídico, sem contudo de afastar por completo da fundamentalidade ética.

Vale ressaltar que os limites fáticos e jurídicos à efetivação judicial dos direitos fundamentais, condiciona aos órgãos do Estado o dever de planejar198 previamente a disponibilidade de recursos para erradicar os prejuízos causados por essa limitação. Para Sarlet e Figueiredo (2008, p32) muitas vezes a falta de recursos “tem sido utilizada entre nós como argumento impeditivo da intervenção judicial e desculpa genérica para a omissão estatal no campo da efetivação dos direitos fundamentais especialmente os de cunho social”.

Quando se trata da atuação do Poder Judiciário é relevante ressaltar o problema da sua cautelosa e resposável auto-limitação funcional, que deve sempre estar de acordo com a sua legitimação, para atuar de forma organizada

198 O Min. Celso de Mello, ao julgar o Agravo em Recurso Extraordinário nº 410715-5, assim entendeu: “Cumpre advertir, desse modo, na linha de expressivo magistério doutrinário (OTÁVIO HENRIQUE MARTINS PORT, “Os direitos sociais e econômicos e a discricionariedade da administração pública”, p. 105/110, item n. 6, p. 209/211, itens 17-21, 2005, RCS Editora Ltda.), que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se constitucionais, notadamente, quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. (STF, RE 410.715-5 Agr, Min Celso de Mello, 2ª Turma, 22.11.2005, p. 1541/1542).

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no controle das ações do poder público em favor de uma excelente realização dos direitos fundamentais.

Nesse sentido, tem enorme importância o princípio da proporcionalidade, que sempre deverá guiar a atuação dos orgãos estatais, e também os particulares, quando exercerem função caracteristicamente do orgão do Estado. Sarlet e figueiredo (2008, p. 33) afirmam que “a proporcionalidade haverá de incidir sua dupla dimensão como proibição do excesso e de insuficiência, além de, nessa dupla acepção, atuar sempre como parâmetro necessário de controle dos atos do poder público”. Ou seja, os responsáveis pela concretização dos direitos sociais, cuja a insuficiência devido a omissão plena ou parcial traz grandes prejuízos, deverão analizar os critérios como adequação, necessidade, proporcionalidade e razoabilidade, respeitando sempre o núcleo essencial dos direitos.

Ao analisar-se a palavra proporcional199 encontra-se a seguinte definição: em que há proporção correta, equilíbrio, harmonia. E é neste sentido que se utiliza o princípio constitucional da proporcionalidade, ou seja, como uma ponderação correta e harmoniosa entre dois interesses que estejam em conflito perante um caso concreto, em uma hipótese real e fática.

Cleve e Freire (2004, p. 135) afirmam que o princípio da proporcionalidade, aliado aos demais princípios da interpretação da Constituição, exige uma ponderação dos direitos fundamentais ou bens de natureza constitucional que estão em jogo, alcançando-se, assim, a aplicação das medidas corretas e justas à solução do caso concreto.

Os doutrinadores apontam que a existência do princípio da proporcionalidade no nosso sistema não depende, assim, de estar contido em uma formulação textual na Constituição. Desde que exista a possibilidade de sua verificação e coexistência com os demais fundamentos constitucionais, estará este caracterizado e, consequentemente, sua aplicação será demonstrada nas decisões dos Tribunais.

Para Melo (2008, p. 247), enuncia-se com o princípio da razoabilidade que o governo, ao atuar no exercício da discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosas às finalidades que presidiram a outorga da competência exercida.

Vale dizer que se pretende colocar em claro que não serão apenas inconvenientes, mas também ilegítimas as condutas desarrazoadas, bizarras, incoerentes ou praticadas em desconsideração às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às finalidades da lei atributiva da discrição manejada.

199 Significado retirado da obra de HOUSSAIS, Antônio. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

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Sarlet e Figueiredo (2008, p.35) asseguram que o controle das decisões políticas sobre a alocação de recursos, principalmente quando se trata da transparência dessas decisões e da possibilidade de realização do controle social sobre o aproveitamento dos recursos reservados podem ser amenizados na esfera do processo político. Dessa forma, é relevante lembrar do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, que garante o acesso ao judiciário sempre que haja lesão ou ameaça de lesão a direitos, não excluindo qualquer direito nem qualquer lesão ou ameaça, mesmo que aconteça por meio de políticas públicas ou da falta delas.

Como já exposto, mínimo existecial é a parte do direito fundamental que o homem necessita para sobreviver com dignidade. Também sabe-se que o limite de recursos é relevante limite para a realização dos direitos sociais. Para Ana Paula de Barcellos (2002, p. 252-253) o mínimo existencial poder residir com a reserva orçamentária, desde que sempre guiados pelo princípio da dignidade da pessoa humana.

Os direitos fundamentais estão na essência da Constituição e um programa de governo deve respeito aos ditames constitucionais, mormente, áqueles que se referem à dignidade da pessoa humana. Daí, porque, há legitimidade do Poder Judiciário ao apreciar demandas que envolvam pedidos de revisão ou alteração de políticas públicas. Para efetivar direitos dentrto de um mínimo existencial necessário se faz alocar recursos e é neste patamar que se trona possível e legitima a internvenção dos ´rogãos jursidicionais a fim de imporem ao poder público a satisfação das prestações demandadas. Neste sentido, a pr´veia dotação orçamentária, apesar de prevista na legislação, não pode ser tida como uma regra absoluta que não comporta exceções a fim de impossibilitar a efetivação de direitos fundamentais constitucionalizados. (MOTTA; MOTTA. 2011, p. 357)

Dimoulis e Martins, em relação aos direitos sociais, entendem que a reserva de recursos somente poderia predominar sobre o mínimo existencial se ficasse comprovada a completa impossibilidade fática da concetização da prestação material, ou seja a falta da reserva natural dos recursos. Tratando-se da reserva jurídica associada à distribuição de recursos, os autores posicionam-se da seguinte forma:

A impossibilidade de o Estado atender demandas de despesas não pode servir como limite constitucional ao seu dever de concretizar um direito social tanto no plano geral (controle abstrato das políticas públicas de saúde, habitação, educação etc.), quanto individual (pretensão concreta

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exigida pelo titular do direito à saúde, por exemplo). Isso se deve a razões processuais. No primeiro caso ao legislador fixar o “como” (intensidade do investimento) o direito social há de ser concretizado, faltando ao juiz competência para tal constatação. No segundo caso, é de competência jurisdicional verificar a procedência de um pedido com base em um direito social, condenando o Estado à prestação específica, independentemente de alegações sobre a “impossibilidade da prestação”. [...] Doutrinadores que admitem a figura da “reserva do possível” procuram amenizar seus efeitos limitadores do vinculo estatal (originalmente legislativo e, é claro, também executivo e jurisdicional, sendo estes últimos vinculados ao modo fixado, pela primeira função) aos direitos prestacionais com duas afirmações. Primeiro, consideram que o Judiciário deve verificar as “decisões políticas” distributivo-orçamentárias dos demais Poderes. Segundo, indicam o ônus da prova da impossibilidade financeira cabe a autoridade que a alega. [...] A alegação de impossibilidade de cumprimento de dever estatal pode ter relevância jurídica no momento da execução judicial de condenações à prestação pelo Estado de um direito social, tendo em vista a ordem de cumprimento das prestações em face de critérios orçamentários. Mas neste caso temos um clássico problema de tratamento desigual de titulares de direitos fundamentais e não uma justificativa da reserva do possível como forma de relativizar a aplicação imediata dos direitos sociais. (DIMIOULIS, MARTINS. 2010, p. 95-96)

Ou seja, é impossível a redução do direito fundamental e a concretização integral de tal direito pode e deve ser assegurada, em último caso, pelo Poder Judiciário. Sabe-se que a vida é direito de todos e que é dever do Estado pomover a saúde. Nesse sentido, Sarlet (2010, p. 352-353) afirma que negar às pessoas os recursos materias necessários para a sua sobrevivência pode ser a condenação à morte, por inércia, por falta de alimentação adequada, atendimento médico e outros necessários. Pode-se sustentar “que ao menos na esfera das condições mínimas encontramos um claro limite à liberdade de conformação do legislador”.

Não apenas o mínimo existencial se mostra argumento relevante para a concretização dos direitos fundamentais sociais diante da reserva do possível, mas o princípio da dignidade da pessoa humana também se faz importante. Nesse mesmo sentido afirma Ingo W. Sarlet (2010, p. 353) que o princípo da dignidade da pessoa humana pode ostentar relevante papel demarcatório, estabelecendo o limite que se designa padrão mínimo no âmbito dos direitos sociais.

Dessa forma, é possível imaginar o mínimo exitencial como uma importante ferramenta jurídica, quando se trata de conter a reserva do possível

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enquanto argumento limitador dos direitos fundamentais sociais. Mesmo não sendo adequado ter o mínimo existencial como fator ocasionador da exigibilidade dos direitos fundamentais sociais, sabe-se que diante da atuação da reserva do possível, que alcança o campo de proteção das normas fundamentais e reduz a responsabilidade do Poder Publico para com as prestações materiais, o mínimo exitencial é compreendido como condições básicas para a sobrevivência do homem e tem direta relação com a dignidade da pessoa humana, assim, não podendo ser ignorada, pois pode comprometer a legitimidade do Estado Democrático de Direito.

3. DIREITOS SOCIAIS E IMPOSSIBILIDADE DE RETROCESSO SOCIAL: O NOVO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A democracia fundamenta sua finalidade na existência humana proba, colocando a dignidade da pessoa como centro referencial desse regime político. Os Estados que se regimentam pelos fundamentos democráticos não pode buscar como fim senão a concretização de políticas públicas que revelem ao homem a melhor situação sociopolítica para o bem de todos que compõem a família humana, em respeito à sua individualidade e em benefício da coletividade.

Desta forma, a dignidade da pessoa humana não é simplesmente um princípio fundamental da democracia, mas sim o seu valor existencial. Sem o respeito à dignidade também não há que se falar em legitimidade de Poder Estatal, pois o legítimo tem sua única expressão no homem respeitado em sua essência e em sua transcendência.

A palavra democracia tem sua origem na Grécia antiga e vem dos termos demos (povo) e kratia, de krátos (governo, poder, autoridade). Giovani Sartori (1994, p. 45) retoma a origem etimológica da palavra ao expor a importância de ter-se uma definição clara do conceito de democracia e a dificuldade em conceituá-la de forma adequada.

Na Grécia antiga, apenas uma parcela da população tinha direitos políticos, assim, intitulada como cidadãos. Excluíam-se as mulheres, os escravos, estrangeiros e crianças, restando apenas os proprietários de terras para decidir sobre o governo. Sob essa ótica, Aristóteles (2000, p. 59) conceituou democracia como “o Estado que os homens livres governam”, enquanto as oligarquias eram governadas pelos ricos.

A história da conceituação de democracia é abordada por Oliveira (2001, p. 112). A autora aponta que os significados que a prática e a teoria da democracia traçaram mostram que houve uma transformação de seus princípios ao longo do tempo. Nesse percurso há o embate ao tentar definir se a democracia representa alguma forma de poder popular, ou se significa um meio de legitimar as decisões dos eleitos para governar.

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Avritzer (2002, p. 82) faz uma análise histórica e apresenta que a democracia passou a ter destaque no campo político apenas no século XX. Para o autor, o debate na primeira metade do século estava voltado para o desejo de utilizar a democracia como forma de governo. Ao final das duas guerras mundiais, a proposta hegemônica restringia as formas de participação, focando em um consenso quanto ao procedimento eleitoral que formaria os governos.

Assim, depois da 2ª Guerra Mundial, esta proposta estava imersa na visão do elitismo competitivo e da supervalorização da função dos mecanismos representativos, prejudicando as formas de participação popular.

Em virtude disso, a concepção de democracia ficou atrelada à democracia representativa, dando preferência às questões processuais, como o ato de votar, e ignorando as formas mais ativas de participação. A participação mais ativa, quando permitida, passou a envolver processos formais convocados pelo governo, como plebiscitos e referendos. Essa visão hegemônica dá foco ao impasse do funcionamento da democracia em grande escala. Ela baseia-se na ideia de que a única solução para esse impasse é a representatividade, às vezes não levando em consideração outras dimensões da representação.

Para Lüchmann (2002, p. 62), esse modelo possui um caráter instrumental, individualista e competitivo, que transforma o processo de escolha política em uma competição entre partidos, podendo-se comparar a dinâmica política à dinâmica comercial.

Ao final da década de 60, começou-se a questionar a concepção hegemônica da democracia. Os motivos foram o surgimento de movimentos sociais que buscavam maior participação e uma crise de representação devido à tendência de diminuição do espaço para a participação popular por parte dos governos.

Já Avritzer (2002, p. 97) tece uma crítica quanto à democracia representativa carregar a deterioração das práticas democráticas devido a duas patologias: a da participação e a da representação. Essa está relacionada ao fato dos cidadãos não se sentirem bem representados pelos eleitos, e aquela diz sobre aumento da abstenção dos eleitores no processo decisório.

Dentro dessa linha, Pateman (2005, p. 72) apresenta que o fato do estado democrático ser em larga escala não dificulta a participação ao acreditar que esta, de certa forma, é educativa. Assim, por meio de um processo de capacitação e conscientização, é possível desenvolver a cidadania dando fim às injustiças sociais e aos padrões de subordinação. A participação leva à conscientização e à formação de opinião que farão possível a entrega do poder legítimo à sociedade.

Na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle, um novo paradigma de poder é realizado, o qual é definido pelas tecnologias que reconhecem a sociedade como o reino do biopoder [...] quando o

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poder se torna inteiramente biopolítica, todo o corpo social é abarcado pela máquina do poder e desenvolvido em suas virtualidades [...] O poder é dessa forma expresso como um controle que se estende pelas profundezas da consciência e dos corpos da população – e ao mesmo tempo através da totalidade das relações sociais. (HARDT & NEGRI. 2005 p. 234)

Giorgio Agamben (2006, p. 81) narra que o novo poder deve ser considerado algo não derivado da sociedade atual e sim mais antiga, já que pode ser observada desde os primórdios das relações sociais. Sua ligação é marcante com a condição de existência do Estado, qual seja a soberania, elemento estruturador de toda vida particular. O controle dos indivíduos relaciona-se à própria exaltação daquela condicionante, diferenciando politicamente os membros e os não-membros.

Ainda para o autor, o Leviatã200 (Estado) exerce seu domínio sem a prática da força para doutrinar a vida coletiva dos homens em sociedade. E neste aspecto questiona sobre as maneiras de se esquecer os ditames do poder maior do Estado frente ao indivíduo, respondendo que enquanto um governa, cria e edita regras de convivência mutua, o outro deve obedecê-las.

Aproveitando a análise de Hobbes (2004, p. 346) ao afirmar que a igualdade dos homens reside na igual capacidade de matar ou morrer, para ele a metáfora do Leviatã, está na própria formação de sua estrutura corporal, formada por todos os indivíduos. O corpo do Estado Ocidental é composto pela individualidade mortal de seu povo.

Aqui acrescenta-se a seguinte ideia, narrada por Scharamm (2005, p. 325): “em um sentido particular, mas realíssimo, todos os cidadãos apresentam-se virtualmente homines sacri, isto somente é possível porque a relação de bando constituía desde a origem a estrutura própria do poder soberano”.

O bando – que na sua origem medieval se refere ao bandido banido e, portanto, que vive, ao mesmo tempo, à mercê de e livre de todos – reúne a vida nua e o poder. A fundação do estado civil não é um instante originário finito, sendo, no entanto, algo que o bando soberano realiza continuamente.

Para Agamben (2009, p. 73) nos regimes democráticos atuais, tem se tornado cada vez mais permanente o dispositivo do “estado de exceção”, que pode ser caracterizado como um mecanismo permissor do poder soberano capaz de manter uma autonomia relativa com relação aos seus sujeitos na sociedade civil. Tal técnica de governo, que juridicamente é concebida como

200 O Leviatã foi citado por Thomas Hobbes, ao analisar em 1651 a natureza humana e a necessidade da existência do governo e do Estado para controlar o “estado natural” que os homens possuem, justificando, por conseguinte a dominação e atitude na época dos Estados Absolutistas. O termo Leviatã faz referente ao monstro bíblico mitológico que aterrorizava os oceanos. (HOBBES. 2004)

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um dispositivo transitório, tem sido correntemente utilizada para manter a sociedade em um constante “estado de emergência”.

O Estado social de direito, desenhado a partir da Primeira Guerra Mundial, manifesta-se, sobretudo a partir do Segundo conflito mundial. O que está em causa agora são os valores da solidariedade e da justiça social. Partindo-se das desigualdades reais, procura-se “articular direitos, liberdades e garantias (direitos cuja função imediata é a proteção da autonomia da pessoa) com direitos sociais (direitos cuja função imediata é o refazer das condições materiais e culturais em que vivem as pessoas)”. De alguma forma, o Estado passa a desempenhar também uma função ortopédica, procurando corrigir os excessos do individualismo econômico. Sem se perderem de vista as liberdades individuais procura-se superar o entendimento abstrato de que estas são alvo. Colhe vencimento a ideia de que os direitos sociais os direitos individuais “perdem o seu sentido”. [...] Os direitos fundamentais, ao invés de resguardarem os indivíduos da ação discricionária do Estado, são agora concebidos com um significativo fator de integração na vida da sociedade. É como se o cidadão tivesse créditos face a esta. (MARQUES, apud SILVA. 2011, p. 69-70)

No Estado Social Democrático, portanto, cabe uma atuação mais efetiva do Poder Judiciário na administração da justiça. Não há que se falar em neutralidade axiológica/valorativa das regras processuais, o que fica superado, considerando que as regras processuais constituem-se num meio para atingir os fins do processo, e este deixa, portanto, de ser entendido apenas como um meio ao dispor dos titulares dos direitos e interesses violados ou ameaçados.

O ser humano, enquanto sujeito político, participa de uma cultura, mas se encontra sempre passível da exclusão. Tal possibilidade paira no imaginário dos membros da comunidade, onde a condição de validade da ordem jurídica e da autoridade estatal é sempre posta em discussão nos condicionantes da premissa de validade dos direitos necessários e existenciais a serem garantidos pelos governantes.

Ao Estado é imposto o dever da prestação jurisdicional. A ação, ao ser proposta, exige primeiramente do Estado a prestação jurisdicional, e num segundo momento, da parte adversa o dever de suportar os atos inerentes à tutela jurídica e, em vindo a sucumbir, o ônus da prestação jurisdicional e do cumprimento do devido ao autor. Assim, o sujeito lesado em um direito tem o direito à defesa do seu direito subjetivo.

4. ASSISTÊNCIA SOCIAL: DIREITO CONSTITUCIONAL SOCIAL TIPIFICADO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988

No Texto Constitucional de 1988, os Direitos Sociais são tratados no Capítulo II, Título II, destinado aos Direitos e Garantias Fundamentais. O artigo

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6º201 elenca como direitos sociais o direito à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, proteção à maternidade e infância, e assistência aos desamparados.

Ademais, conforme o artigo 5°, parágrafo 1° do mesmo texto constitucional estabelece, os direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata. Decorrendo destes fatos que o Estado, ao se omitir na implementação dos direitos sociais fundamentais, poderá ser condenado à obrigação de fazer, por meio do que se conhece como “judicialização das políticas públicas”, conforme discutido nos itens anteriores.

Respeitar os direitos humanos de cada pessoa é reconhecer a individualidade única de cada ser e que suas características devem ser usadas pra direcionar a medida de ações a serem feitas pelo Estado. Respeitar os direitos humanos é tomar consciência de que todos, e todas, nós somos diferentes, e isto é a grande riqueza da humanidade.

Sem a vida em sociedade as pessoas não conseguiriam sobreviver, pois o ser humano, desde que nasce e durante muito tempo, necessita de outros para conseguir alimentação, abrigo e outros bens e serviços indispensáveis. E, no mundo moderno, com a grande maioria das pessoas morando nas cidades e o aumento das populações, persistiram e ganhou maior volume as antigas necessidades, e a elas acrescentaram-se outras em consequência de hábitos e modos de vida que tornaram necessários muitos outros bens.

Os direitos sociais, por estarem garantidos no corpo constitucional, determinam que tais regulamentos e garantias do homem fossem consagrados pelo Estado Democrático como um direito fundamental. Entretanto, como já debatido anteriormente, sua condição de validade e existência não está vinculada ao formalismo das ciências jurídicas. A relação de garantia do princípio da dignidade da pessoa humana é sobreposto aos demais poderes administrativos.

O movimento da sociedade civil, nos últimos anos, vem produzindo e constituindo novos direitos na defesa e no respeito às diferenças e pela superação das desigualdades. Quando se estuda e trabalha-se sob o ponto de vista educacional, dos seus indicadores, essas diferenças estão claramente marcadas pelas condições de gênero, raça, etnia, idade, local de moradia, etc. As desigualdades estão demarcadas fundamentalmente pelas condições econômicas dos grupos sociais. As condições de desigualdade social e as diferenças entre grupos estão inter-relacionadas, produzindo impactos nos indicadores.

Para José Afonso da Silva os direitos sociais são:

201 Artigo 6º: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma dessa Constituição.

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[...] prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Podem ser classificados: a) direitos sociais relativos ao trabalhador; b) direitos sociais relativos à seguridade, compreendendo os direitos à saúde, à previdência e assistência social; c) direitos sociais relativos à educação e à cultura; d) direito social relativo à família, criança, adolescente e idoso; e) direitos sociais relativos ao meio ambiente. (SILVA. 2010, p. 289)

Na prática dos direitos sociais no Brasil, sua aplicabilidade, há que se reconhecer a efetividade imediata do disposto na norma Constitucional prevista no artigo 6º, ainda está longe de corresponder à realidade social brasileira, tendo em vista a enorme desigualdade social reinante no país e a precariedade da prestação por parte do Estado na esfera da saúde pública, da educação, da segurança, da moradia, da alimentação e do trabalho.

Os direitos podem ser considerados como responsáveis pela concretização da dignidade do homem. Para que um ser humano tenha direitos e possa exercê-los, é indispensável que seja reconhecido e tratado com a devida dignidade. Reconhecer e tratar alguém como pessoa é respeitar sua vida, não submetê-la ao trabalho escravo de outra, não humilhá-la ou permitir que seja agredida por outro, não obrigá-la a viver em situação de que se envergonhe perante os demais ou que os outros considerem indigna ou imoral.

Nesse sentido,

[...] o desrespeito está presente em todas as situações sociais em que alguém é obrigado a ficar em posição humilhante ou de inferioridade moral perante outras pessoas. Isso acontece, por exemplo, quando uma pessoa é forçada a viver em tal estado de pobreza que precisa mendigar para obter alimentos e outros bens essenciais para a sobrevivência ou a vida em sociedade. A mesma coisa se verifica quando pessoas ou famílias inteiras são obrigadas, por sua pobreza, a morar em favelas ou cortiços, a se vestir com roupas esfarrapadas e a revelar, em cada situação, que são muito mais pobres do que as outras. (DALLARI. 2010, p. 40)

Percebe-se assim, que não pode existir respeito à pessoa humana e ao direito de ser pessoa, se não forem respeitadas, em todos os momentos, em todos os lugares e em todas as situações, a integridade física, psíquica e moral da pessoa. E não há qualquer justificativa para que umas pessoas sejam mais respeitadas do que outras.

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No que tange ao direito social à saúde, não se trata exclusivamente de se pregar a não ocorrência de doenças, uma vez que para que se diga que uma pessoa é saudável necessária se faz uma análise ampla do pleno gozo de seu bem-estar físico, mental e social. Desta forma, a saúde varia desde a condição de um meio ambiente equilibrado, a uma boa moradia e até mesmo a possibilidade de boa alimentação.

Ao condicionar-se como direito fundamental o direito a saúde202, o legislador preocupou-se em determinar que o Estado seja responsável por promover permanentemente o trabalho para garantir boas condições de vida para todos. Em especial, tomando os cuidados com a prevenção de doenças (realizando campanhas de vacinação), cuidando da qualidade da água fornecida à população, construindo redes de esgoto e eliminando focos de endemias.

Nesse sentido, Barroso explica que:

Com a redemocratização, intensificou-se o debate nacional sobre a universalização dos serviços públicos de saúde. O momento culminante do “movimento sanitarista” foi a Assembléia Constituinte, em que se deu a criação do Sistema Único de Saúde. A Constituição Federal estabelece, no art. 196, que a saúde e “direito de todos e dever do Estado”, alem de instituir o “acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. A partir da Constituição Federal de 1988, a prestação do serviço público de saúde não mais estaria restrita aos trabalhadores inseridos no mercado formal. Todos os brasileiros, independentemente de vinculo empregatício, passaram a ser titulares do direito a saúde (BARROSO, 2006, p.14)

A Constituição Federal de 1988 dispõe no artigo 196203 que a saúde no Brasil, é um direito de todos, complementando e positivando a idéia de proteção integral de saúde como obrigação estatal. Sob este aspecto dois modelos de

202 O direito à saúde agrega o conceito de qualidade de vida, porque as pessoas que possuem uma boa saúde são aquelas que moram em casas salubres, fazem uma alimentação saudável, vivem emlugares que permitem nascer, crescer, trabalhar e morrer com dignidade, dessa forma o bem estado de saúde não depende exclusivamente apenas de um bom atendimento médico (MORAES, 2010, p.137), pois existem também outros elementos relevantes que integram o conceito de saúde e devem sempre ser levados em consideração como, por exemplo, a educação e a assistência social. A saúde é um processo sistêmico que tem como finalidade não só a cura, mas tambéma prevenção de doenças, visando uma boa qualidade de vida, de formaa levar sempre em consideração a realidade de cada pessoa e as hipóteses de efetivação e as probabilidades desse indivíduo ter o indispensável estado de bem-estar (SCHWARTZ, 2001, p. 42).203 CF/88 - Art. 196 - A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

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oferta de saúde pública são adotados pelos governos em geral, o universal e o segmentado.

O primeiro, corresponde ao atendimento amplo e irrestrito de todos os cidadãos independentemente de sua classe social, financiada pelos órgãos públicos, alcançando uma enorme gama de vertentes da saúde, abrangendo desde tratamentos até mesmo procedimentos específicos. O segundo, por sua vez, atinge apenas determinadas categorias distintas da sociedade, como os mais pobres ou determinados grupos profissionais, misturando, por conseguinte, as questões do financiamento e atendimento, pelo setor público e o privado.

Dessa forma, como na maioria dos países, o modelo vigente no Brasil é o universal. Cada país escolhe seu modelo de acordo com a ideologia dominante, ou até mesmo a mistura dos dois.

Sabe-se que todos esses sistemas recebem críticas em virtude do desembolso de impostos pela população para sustentá-los. Nos países de economias subdesenvolvidas e de industrialização atrasada a OMS e a Organização Panamericana de Saúde (OPAS) encontram dificuldades de estender e aplicar o direito à saúde para todos (PALUMA, ANDRADE, CARVALHO, 2009, p.443).

No Brasil, a Lei 8.080/90 estruturou o Sistema Único de Saúde - SUS, institundo os princípios que devem orientar a atuação do Estado na promoção do direito à saúde, de forma a implementar com a máxima eficácia tal direito de natureza fundamental. Preocupou-se ainda em deliberar o que exatamente cabe a cada um dos entes federativos em matéria de direito à saúde.

A previdência social, juntamente com a saúde e a assistência social, compõe a Seguridade Social, a política de proteção integrada da cidadania. A mesma serve para substituir a renda do segurado-contribuinte, quando da perda de sua capacidade de trabalho. Os benefícios oferecidos hoje pela previdência são: aposentadoria por idade; aposentadoria por invalidez; aposentadoria por tempo de contribuição; aposentadoria especial; auxílio-doença; auxílio-reclusão; pensão por morte; salário-maternidade; salário-família; auxílio Acidente.

Resumidamente, conforme narrado por Barroso (2006, p.16), comentando o texto da supracitada regulamentação, à direção nacional do SUS deu-se a competência de “prestar operação técnica e finaceira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para aperfeiçoamento da sua atuação institucional” (art. 16, XIII), tendo assim que “promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde de abrangência estadual ou municipal” (art. 16 XV). Já à direção estadual do SUS delegou a competência de promover a descentralização para os Municípios dos serviços e dos programas de saúde (art. 17). E em seu artigo 18, I e III, institui a direção municipal responsável por porcontrolar, organizar, planejar e realizar os serviços públicos de saúde.

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Exigir o respeito e a efetivação de direitos sociais na Justiça é algo novo (a Lei da Ação Civil Pública, por exemplo, tem 20 anos), mas provocar o Poder Judiciário a refletir sobre essas questões é muito importante para a consolidação dos direitos sociais.

Permite-se que os países que tenham ratificado instrumentos de direitos humanos relevantes avaliem sua própria implementação, identifiquem deficiências e formulem políticas públicas capazes de satisfazer as prestações a que o cidadão tem direito.

Certo é que o bem-estar social é uma das finalidades do Estado, não podendo, ao contrário da justiça e segurança, ser monopólio dele sob pena de asfixia da liberdade social, admitindo-se por isso, graus diversos de intervenção que devem ser objeto de decisão política dos órgãos democraticamente eleitos.

A Assistência Social teve suas origens no princípio da caridade, filantropia e da solidariedade religiosa (SPOSATI, 2009, p. 26). No Brasil a ideia começou a ganhar espaço nos primórdios do século XX, quando os fundamentos da social democracia e dos partidos socialistas passaram a responsabilizar o Estado pela oferta de serviços sociais de qualidade.

No primeiro governo de Getúlio Vargas, relata também Sposati (2009, p. 26) foi criado pelo Decreto-Lei nº 525 de 1938, o Conselho Nacional de Seguro Social que tinha como função estudar os problemas sociais e funcionar como órgão consultivo dos poderes públicos e das entidades privadas em todo o país. Em 1942 é criada a Legião Brasileira de Assistência, que ficou sob a presidência da primeira dama Dona Darcy Vargas, e tinha como principal função atender, inicialmente as famílias dos pracinhas brasileiros que se encontravam em serviço durante a 2ª Grande Guerra, e posteriormente, teve suas ações voltadas para a população que em estado de miserabilidade, vulnerabilidade e exclusão social, em especial, crianças, portadores de necessidades e idosos.

Na continuidade da analise histórica narrada pelo autor supracitado, em 1974, é criado o Ministério da Previdência e Assistência Social, assumindo as ações relativas às suas competências e no desenvolvimento de estratégias no campo social. Com a edição da Constituição de 1988, novo enfoque foi estabelecido com a integração da previdência, do trabalho e da proteção assistencial.

O artigo 203 da Carta Magna, estabelece que a assistência social será prestada a quem dela necessitar, por meio de ações públicas custeadas pelo Estado, mesmo não havendo qualquer tipo de contribuição prévia do cidadão. O preceito constitucional possibilita a efetivação do principio da igualdade, por meio do acesso à programas que tem a finalidade de melhorar a condição de vida da população carente e necessitada.

Como direito fundamental é dever do Estado promover medidas protetivas àqueles desprovidos de recursos financeiros, posto que, as necessidades

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individuais quando não atendidas, tem reflexo negativo em toda sociedade, gerando a exclusão de grupos, a marginalização das famílias e outros tantos problemas sociais.

A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Lei nº 8.742 de 1993 é o regulamento que prescreve a proteção à família, maternidade, infância, adolescência e velhice como objetivo a ser seguido, bem como na promoção da integração desses ao mercado de trabalho, ao cuidado para inclusão das pessoas portadoras de deficiência, e o pagamento de benefícios àqueles que comprovem não possuir meios de suprir a própria manutenção ou de sua família.

Aqui se depara não mais com a certeza da atuação do Estado para assegurar a igualdade real para todos, eliminando as desigualdades, mas com o discurso da realização dos direitos fundamentais de seus custos da escassez dos recursos, logo da construção argumentativa das limitações para efetivação de políticas sociais contundentes.

Sabe-se que as pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade social devem ter suas necessidades atendidas de imediato, porque o risco de suas situações, não podem aguardar medidas de médio ou longo prazo, provocando um real obstáculo ao princípio da dignidade humana. Assim, Cláudia Gonçalves (2011, p. 75) comenta que a “dignidade não é um porvir incerto, mas sim um atributo imanente a cada mulher e homem, que fica desse modo, a exigir obrigações positivas do Estado.”

A assistência social deve representar a transição para uma vida autônoma, já que se transcreve como direito fundamental, somente sendo conseguido quando os beneficiários das ações públicas deixarem de ser apenas destinatários de bens e serviços fornecidos pela esfera administrativa, e passarem e ser detentores de uma vida qualificada participativa.

As teorias da argumentação, nesse ponto, compreendem um conjunto de raciocínios práticos dos prós e dos contras acerca de uma determinada tese, tendentes ao convencimento e sobreposição de uma ideia sobre outra.

5. CONCLUSÃO

Os direitos fundamentais compreendem um ideal expresso nas normas de existência de obrigações, direitos e proibições para cada indivíduo. O texto constitucional tipifica a realização de mecanismos e políticas para efetivação desses direitos, devendo os incorporar ao dia-dia dos cidadãos. A plena realização de garantias relativas às liberdades, os direitos individuais e sociais é o preceito da justiça social e dos valores da dignidade humana.

O Estado de Bem-Estar Social deve se esforçar na criação das condições necessárias de ações capacitadoras do mínimo de igualdade. A eficácia do

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direitos sociais esta diretamente relacionada às ações estatais que devem ser assumidos como um compromisso da promoção prestacional por meio de um desempenho positivo.

A redução dos direitos fundamentais é impossível e a responsabilidade do Estado deve inclusive efetivar as políticas de prestações materiais e jurisdicionais. O poder público é o promotor do mínimo existencial, sendo um reflexo da própria evolução humana, na busca de soluções para os problemas da vida em sociedade.

As necessidades humanas, compreendidas no campo do estudo do mínimo existência e da dignidade humana, têm sido debatida por grandes doutrinadores e até mesmo elas cortes superiores do Brasil, sendo pacificado apenas a condição de que digno é aquilo que proporciona o efetivo exercício da cidadania. Assim, as políticas públicas sociais buscam satisfazer as necessidades básicas da população.

A constituição editou como direitos sociais básicos a educação, a saúde, o trabalho, a alimentação, a previdência e a assistência social, sendo a partir desses direitos é que deve partir a atuação estatal para melhoria das condições básicas de vida.

As desigualdades sociais, reflexo do contexto histórico, político e econômico nacional condicionou uma grande parcela da população em um estado extremo de pobreza, configurando uma contradição acentuada do capital e do trabalho, o que determinando nos últimos anos um papel primordial do Estado na erradicação dessas condições.

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O DIREITO EM NOVOS PARADIGMAS DE CIDADANIA: DO JUSNATURALISMO AO PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO: DELINEAMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO

DE UM NOVO PARADIGMA JURÍDICO

eduardo rodrigueS doS Santos204

luiz CarloS Figueira de melo205

RESUMO

A doutrina Positivista do direito vem sendo superada por um novo paradigma doutrinário: o pós-positivismo jurídico. Como plano de fundo tem-se a globalização e a pós-modernidade, havendo quem chame o direito pós-positivista de direito pós-moderno. Contudo, será que ambas as expressões simbolizam a mesma coisa? Isto é, o pós-positivismo jurídico pode ser considerado o movimento pós-moderno do Direito? (ou ainda, qual a relação entre a Pós-modernidade e Pós-positivismo Jurídico?). Para responder estas perguntas é preciso mergulhar na história e identificar os fatores de superação dos modelos doutrinários que já imperaram ao longo dos séculos nas ciências jurídicas (jusnaturalismo e positivismo jurídico), bem como analisar os principais contornos da pós-modernidade e do pós-positivismo jurídico.

Palavras-Chave: Jusnaturalismo, Positivismo, Pós-positivismo, Pós-moderni-dade, Globalização.

JUSNATURALISM TO POST-POSITIVISM JURISPRUDENCE: DELINEATIONS FOR THE CONSTRUCTION OF A NEW JURISPRUDENCE PARADIGM

ABSTRACT

The Positivist doctrine of law has been superseded by a new paradigm of doctrine: the post-positivism jurisprudence. As background has globalization and postmodernity, with those who call the right post-positivist law postmodern. However, both expressions will symbolize the same thing? That is, the post-positivism jurisprudence can be considered the postmodern movement of the Law? (or, what is the relationship between post-modernity and post-positivism Jurisprudence?). To answer this question we must delve into the history and identify factors for overcoming the doctrinal models that have been prevalent for centuries in legal sciences (natural law and legal positivism), as well as

204 Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).205 Professor do curso de mestrado em Direito Público da UFU. Doutor em Direito pela UFMG.

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analyze the main contours of post-modernity and post-positivism jurisprudence.

Keywords: Jusnaturalism, Positivism, Post-positivism, Postmodernism, Glo-balization.

INTRODUÇÃO

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a ciência jurídica passou por um profundo processo de mudanças significativas que perdura até hoje. Dentre essas mudanças, no campo filosófico, visualizou-se a decadência do paradigma juspositivista, dando início à construção de um novo paradigma, habitualmente chamado de pós-positivismo jurídico.

O pós-positivismo, por estar ainda em construção, traz consigo uma série de problemas, sobretudo no campo da definição. Nesse sentido, um dos mais graves e o qual elegemos para enfrentar neste trabalho consiste em responder a seguinte pergunta: O Pós-positivismo Jurídico pode ser considerado o movimento pós-moderno do Direito?

A pesquisa justifica-se por diversos motivos, dentre os quais se destaca o fato de que a discussão a que nos propomos é plano de fundo de decisões proferidas pelos tribunais superiores do Brasil e do Mundo, sobretudo dos tribunais constitucionais, sendo que uma confusão conceitual entre Direito pós-positivista e Direito pós-moderno poderia levar a erros gravíssimos de interpretação e legitimidade decisória.

O objetivo geral do trabalho é distinguir o direito pós-positivista do direito pós-moderno. Já os objetivos específicos consistem em: a) demonstrar as raízes jusnaturalistas do direito pós-positivista; b) demonstrar a superação jusnaturalista pelo positivismo jurídico e posterior decadência deste paradigma após o fim da Segunda Guerra Mundial; c) demonstrar a ascensão do modelo pós-positivista do direito e delinear suas bases jurídicas e filosóficas; e d) demonstrar as profundas diferenças entre o pós-positivismo jurídico e o direito pós-moderno.

A metodologia consiste em pesquisa bibliográfica e descritiva. A pesquisa bibliográfica concentra-se em obras de Filosofia do Direito, Teoria Geral do Direito e Direito Constitucional. Já a pesquisa descritiva, concentra-se na análise evolutiva do jusnaturalismo, do positivismo jurídico e do pós-positivismo jurídico, tendo como foco principal este último.

1. O JUSNATURALISMO

O Jusnaturalismo ou Direito Natural consiste na corrente doutrinária do Direito que acredita que há direitos, universalmente válidos e imutáveis, que

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são inatos, que independem da vontade humana, que existem em razão de algo superior206 e que objetivam assegurar a Justiça.

Nesse sentido, Norberto Bobbio define o jusnaturalismo como a corrente do Direito que tem a convicção de que “uma lei para ser lei, deve ser conforme a justiça” e completa dizendo que “a teoria do direito natural é aquela que considera poder estabelecer o que é justo de modo universalmente válido” (BOBBIO, 2007, p. 35).

No mesmo sentido, Aurora Tomazini de Carvalho afirma que, para o Jusnaturalismo, “o direito é uma ordem de princípios eternos absolutos e imutáveis cuja existência é imanente à própria natureza humana”, sendo que este direito natural é “anterior ao conjunto de leis postas e aprovadas pelo Estado” (CARVALHO, 2010, p. 72).

Por sua vez, Ronald Dworkin afirma que as teorias jusnaturalistas “sustentam que os juristas seguem critérios que não são inteiramente factuais, mas, pelo menos até certo ponto, morais, para decidirem que proposições jurídicas são verdadeiras” e, segundo o próprio Dworkin, as correntes mais radicais do Jusnaturalismo afirmam que o Direito e a Justiça são coisas idênticas (DWORKIN, 2003, p. 44).

Já para o professor Edgar de Godoi da Mata-Machado (1976), o Direito Natural sustenta-se na concepção de que há um mínimo de coisas que são devidas ao homem em razão da sua própria natureza humana, como se verifica nas palavras do autor que se seguem:

Há realmente um debitum, algo devido ao homem, enquanto mesmo que homem, tendo em vista a essência do homem (aquilo que o homem é), melhor, sua natureza, raiz dos atos que o homem pratica; há coisas que se devem ao homem por corresponderem a exigências concretas de sua natureza [...] A vida, por exemplo, quer se considere em relação a cada indivíduo, a vida, pois, de cada um, quer se considere a própria vida social; a propagação da espécie pela união do homem à mulher, a educação dos filhos, o acesso de todos aos bens da cultura, o aperfeiçoamento intelectual e moral da pessoa humana, o respeito que é devido à sua liberdade e dignidade, são direitos naturais, atribuíveis ao homem, fundamentalmente, pela regra do direito natural... (MATA-MACHADO, 1976, p. 39-40). Partindo das lições de Norberto Bobbio, pode-se afirmar que os Direitos

Naturais consistem em direitos universais, ou seja, válidos para todos e em todos os lugares; imutáveis, isto é, válidos em qualquer tempo; de cognição

206 Este algo superior pode ser a natureza, a razão humana ou alguma divindade (Deus).

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racional, ou seja, conhecidos através da razão humana; produzidos pela natureza, ou pela razão humana ou ainda por Deus ou qualquer outra entidade divina; objetivamente bons, isto é, estabelecem aquilo que é bom para a sociedade, ou melhor, aquilo que é justo; e por fim, não são indiferentes aos comportamentos regulados, ou seja, eles os valoram (BOBBIO, 2006).

Norberto Bobbio, utilizando-se de um critério histórico, divide a doutrina jusnaturalista em três fases: Jusnaturalismo Clássico, Jusnaturalismo Medieval e Jusnaturalismo Moderno. Vejamo-las.

2. O JUSNATURALISMO CLÁSSICO

O Jusnaturalismo Clássico encontra-se ligado a Antiguidade Clássica e se desenvolve na Grécia Antiga, através das obras de grandes filósofos, perdurando até a Roma Antiga, onde ganhou contribuições significativas, tais como as de Cícero.

Bobbio ensina que o Jusnaturalismo Clássico é aquele que se desenvolve através das idéias dos filósofos gregos, sobretudo, de Platão e Aristóteles que trabalhavam com a ideia de uma justiça universal baseada em uma razão natural – naturalis ratio – e que posteriormente foi adotado pelas escolas do ius gentium na Roma Antiga (BOBBIO, 2006).

Como ensina Mata-Machado, dentre os filósofos pré-socráticos, merecem destaque Heráclito e Pitágoras. O primeiro defendia a ideia de que todas as coisas são eternamente mutáveis, com exceção da “lei natural ‘da qual, todas as leis humanas tiram sua força’”. O segundo sustentava que a gênese das leis não se encontrava na vontade dos cidadãos, mas sim em sua “conformidade com as leis naturais” (MATA-MACHADO, 1976, p. 60).

Dentre os sofistas, destacam-se Protágoras, Hípias, Licófron e Alcidamas. Conforme leciona Mata-Machado, Protágoras acreditava em um Direito Natural de caráter permanente e irredutível, sustentando-se no mito de que Zeus ordenou a Hermes que repartisse entre todos os homens o respeito e a justiça. Hípias, Licófron e Alcidamas defendiam que o Direito Natural deveria servir como modelo para adaptação e transformação do direito vigente. Nesse sentido, para Licófron era inadmissível toda e qualquer forma de privilégios, vez que se opõem “à igualdade natural dos homens”, e com base no mesmo fundamento, Alcidamas condenava a escravidão (MATA-MACHADO, 1976, p. 61).

Dentre os Socráticos, vale destacar que Sócrates, como ensina Henri Rommen citado por Mata-Machado, acreditava em um “‘mundo objetivo e cognoscível de valores: valores do bem, do belo e do justo’” (MATA-MACHADO, 1976, p. 61). Por sua vez, Platão, como demonstra Bruno Amaro Lacerda, defendia a existência de um Direito imutável e eterno ligado a ideia de

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Justiça (LACERDA, 2009). Já para Aristóteles, como leciona Norberto Bobbio, “o direito natural é aquele que tem em toda parte (pantachoû) a mesma eficácia” e que prescreve ações “cuja bondade é objetiva”, ou seja, trata-se de um direito justo e universal sustentado por pilares, não só jurídicos, mas também éticos (BOBBIO, 2006, pág.17).

Já entre os Romanos, realça-se a vasta obra de Cícero, para quem o Direito sempre fora maior que a lei, de modo que a Justiça e o Direito fundam-se na própria natureza e não no arbítrio, isto é, nas leis postas. Para Cícero o Direito Natural liga-se a ideia de virtude e Justiça, de modo que para ele, não existem apenas Direitos Naturais, mas também Deveres Naturais, por exemplo, a honestidade, como se confere nos dizeres do próprio Cícero in verbis: “nada é útil, sendo contrário ao honesto” (CÍCERO, 2007, p. 150).

Em síntese, como se pôde verificar, o Jusnaturalismo Clássico liga-se a ideia de um Direito Natural eterno, universal e superior advindo da natureza em si (às vezes humana, às vezes divina [mitológica] e às vezes enquanto essência de todas as coisas).

3. O JUSNATURALISMO MEDIEVAL

O Jusnaturalismo Medieval é aquele que se desenvolve na Idade Média, sendo extremamente pautado em fundamentos religiosos, caracterizando-se por pregar um Direito universal, geral e, sobretudo, que tenha como escopo fundamental a busca por uma justiça dentro dos liames do cristianismo, ou melhor, da Igreja Católica.

Dentre as obras de Direito Natural desta época, destaca-se a do filósofo católico Tomás de Aquino que definia a lex naturalis, como: “Partecipatio legis aeternae in retionali creatura” – ou seja, aquilo a que o homem é levado a fazer pela sua natureza racional, entretanto essa natureza racional estaria vinculada ao seu criador (Deus), que por sua vez, tinha a Igreja enquanto sua “legítima” representante (BOBBIO, 2006, pág. 20).

No mesmo sentido, Mata-Machado afirma:

Explica Sto. Tomás que todos os seres, enquanto regidos pela Divina Providência, participam de algum modo da lei eterna pelo fato de que, recebendo em si a impressão dessa lei, possuem inclinações que os impelem aos atos e aos fins que lhes são próprios. É a lei natural considerada genericamente, a qual rege a matéria inorgânica, as plantas, os animais. Mas a submissão da criatura racional à Providência Divina se faz de modo super-excelente (excellentiori quodam modo), pois o homem é co-participe da Providência e capaz, ele próprio, de prover ao que lhe

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convém e aos outros (sibi ipsi et aliis providens). Assim, a participação à lei eterna, na criatura racional, funda-se em que tal criatura possui “natural inclinação para o fim e para o ato devidos” (in ipsa participatur ratio aeterna, per quam habet naturalem inclinationem ad debitum finem et actum), isto é, para o modo de agir e para as finalidades que se radicam na sua própria natureza (MATA-MACHADO, 1976, p. 65).

Em síntese e em conformidade com a lição de Jacques Maritain citado por Mata-Machado, é possível afirmar que Tomás de Aquino enxerga o Direito Natural como uma “‘ordem ou disposição que a razão humana pode descobrir e segundo a qual a vontade humana deve agir para por-se em consonância com os fins essenciais do ser humano’” (MATA-MACHADO, 1976, p. 66), fins estes, obviamente, já pré-estabelecidos e determinados pelo Evangélio e pela “Santa” Igreja.

Enfim, no pensamento católico, violar o que a Igreja determina é violar o Direito Natural, pois apesar de ser percebido pela razão, ele é posto pelo “Divino”. Deste modo, para os filósofos-juristas ou juristas-filósofos da Igreja, aquele que age contra a “Santa” Igreja, mas de acordo com sua racionalidade, não age conforme o Direito Natural. Ou seja, nota-se que toda essa construção doutrinária é extremamente incoerente, ou melhor, consiste em uma grande falácia, verdadeira forma de domínio dos homens pelo homem justificando-se em Deus, algo típico da Igreja Católica em toda a sua história.

4. O JUSNATURALISMO MODERNO O Jusnaturalismo Moderno consiste na doutrina de Direito Natural

fundada, sobretudo, nas ideias dos filósofos racionalistas da Modernidade, que acreditavam ser possível encontrar, através da razão humana, um Direito justo que fosse comum a todos os homens (universal).

Neste sentido, conforme afirma Hugo Grócio citado por Norberto Bobbio, Jusnaturalismo Moderno ou Racional é aquele que busca através de uma justa razão atingir os ideais de moral e justiça respeitando a natureza racional do homem (BOBBIO, 2006).

No mesmo sentido, Luís Roberto Barroso afirma que o Jusnaturalismo Moderno é aquele que se desenvolve através das ideias dos filósofos racionalistas do século XVI e que se pauta em uma “lei ditada pela razão”, dando-se ênfase a natureza e a razão humana, o que “é um dos marcos da Idade Moderna e base de uma nova cultura laica, consolidada a partir do século XVII” (BARROSO, 2009a, pág. 236).

Durante a Modernidade muitos autores tentaram fundamentar o jusnaturalismo utilizando-se de outros campos do conhecimento, sobretudo

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da Matemática e da Física. Diversos são os autores que cumpriram bem este papel, dentre eles Hugo Grotius, para quem o Direito Natural era imutável, tais quais as leis matemáticas, de modo que “nem Deus poderia modificar as normas oriundas da conformidade ou não conformidade dos atos humanos com a natureza, tal como não poderia fazer com que dois e dois não fossem quatro” (MATA-MACHADO, 1976, p. 77).

Além das ciências exatas, conforme explica Mata-Machado, o Jusnaturalismo Moderno também fora bastante fundamentado sob a ótica das diversas ciências humanas, principalmente da Filosofia, da Ética, da História e da Política. Dentre os vários autores que representam esta corrente, destaca-se Christianus Thomasius, para quem o Direito Natural abrangeria no campo da Ética, o honesto; no campo da Política, o conveniente; e no campo do Direito, o justo. Ainda para Thomasius, o princípio supremo do Jusnaturalismo apresenta-se da seguinte forma: “‘Deve-se fazer o que em sumo grau prolonga a vida e a torna feliz, deve-se evitar o que a torna desventurada e apressa a morte’” (MATA-MACHADO, 1976, p. 81).

Como ensina Mata-Machado, o Jusnaturalismo Moderno é marcado, dentre diversas características, por pregar que o Direito não se resume às leis postas, apesar destas serem contidas por ele, além de que as leis injustas não poderiam ser aceitas como vigentes pelo Direito. Nesse sentido, Gottfried Wilhelm von Leibniz, citado por Mata-Machado, afirma que “enquanto a lei pode ser injusta, o direito, este, não o pode ser... Direto justo é expressão pleonástica; direito injusto, um disparate, uma contradição” (1976, p. 84).

Muitas foram as obras, os autores, e as contribuições para o desenvolvimento da doutrina do Jusnaturalismo Moderno, contudo a intenção deste trabalho é apenas demonstrar, de modo geral, as linhas mais fundamentais do Jusnaturalismo Moderno, não sendo possível abordar todas elas.

5. O ÁPICE E A CONSEQUENTE DECADÊNCIA DO JUSNATURALISMO

A doutrina do Direito Natural sempre sofreu diversas críticas ao longo de sua existência, entretanto as principais foram feitas pelos representantes da doutrina do Positivismo Jurídico, que, conforme demonstra a História, superou o Jusnaturalismo de maneira categórica, positivando os principais direitos naturais.

Dentre os críticos do Direito Natural, merecem destaque Hans Kelsen e Norberto Bobbio, que inadmitiam a existência de um “Direito Natural”, pois, segundo Bobbio, não seria possível existir um direito que fosse válido em todos os lugares e em todos os tempos, enfim, as concepções sociais são mutáveis, de modo que, o que é bom e justo hoje, não o era ontem e não será amanhã, bem como, o que é justo para uma sociedade de cultura oriental pode não o ser para

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uma sociedade de cultura ocidental etc. Bobbio afirma ainda que é impossível existir um ordenamento jurídico que seja completamente justo, ou seja, que não contenha normas jurídicas injustas e, nesse mesmo sentido, afirma que na seara jurídica “vale como direito também o direito injusto” (BOBBIO, 2007, pág. 36).

Na linha evolutiva da História, após a cisão entre Igreja e Estado e a ascensão dos Soberanos, na prática, pouca coisa mudou, os comerciantes continuaram a se submeter de forma extremada aos governantes, as atrocidades contra o ser humano não diminuíram, os nobres e o clero continuaram a ter privilégios, em suma, a realidade social se quedou inerte. Tudo isso despertou movimentos revolucionários, principalmente da classe burguesa, que com o apoio do movimento iluminista, se organizou em busca de poder político, liberdade (comercial), igualdade (formal) e de muitos outros direitos defendidos pelos jusnaturalistas.

Segundo Barroso, os iluministas e os jusnaturalistas estiveram juntos no movimento de codificação do Direito, durante o século XVIII, “cuja maior realização foi o Código Civil Francês – o Código Napoleônico”. Entretanto, conclusa a Revolução Francesa, com a codificação dos direitos em diversos países da Europa, o Jusnaturalismo se viu – conforme explica José Reinaldo de Lima Lopes, citado por Barroso – “domesticado e ensinado dogmaticamente”, ou seja, a codificação, grosso modo, “cortou as pernas” do Jusnaturalismo, limitando-o e impedindo-o de se desenvolver livremente como até então se desenvolvia e, por fim, o “substituiu” por uma nova doutrina (BARROSO, 2009a, pág. 238).

Nessa linha de raciocínio, Norberto Bobbio, Matteucci e Pasquino, citados por Luís Roberto Barroso, afirmam que “o advento do Estado Liberal, a consolidação dos ideais constitucionais em textos escritos e o êxito do movimento de codificação simbolizaram a vitória do direito natural, o seu apogeu. Paradoxalmente, representaram, também, a sua superação histórica” (BARROSO, 2009a, pág. 238).

Nesse mesmo sentido, Tercio Sampaio Ferraz Junior afirma que a constitucionalização dos Direitos Naturais, não só “os positivou”, mas provocou gradativamente sua trivialização, o que, consequentemente, gerou uma indiferença em relação as suas próprias diferenças, o que culminou na sua superação (FERRAZ JR., 2003).

Nada obstante é de se ressaltar como muito benéfica a contribuição do Jusnaturalismo ao Direito, uma vez que foi graças ao Jusnaturalismo que emergiram os Direitos dos Homens e consequentemente os Direitos Humanos (em nível global) e os Direitos Fundamentais (em nível Constitucional).

Com base no que fora exposto é possível concluir que o Jusnaturalismo decai para a ascensão do Positivismo Jurídico, como resultado da positivação

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dos Direitos Naturais, ou seja, quando os jusnaturalista finalmente conseguiram o reconhecimento dos direitos naturais, deram força a um movimento que os superou de maneira, até agora, definitiva.

6. O POSITIVISMO JURÍDICO

O Positivismo Jurídico consiste na corrente do Direito que reduz o direito à norma jurídica válida, ou melhor, à regra jurídica válida, ou seja, que acredita que não há direito além daquele previsto no texto normativo e que aquilo que nele está escrito é justo, pois a justiça para o Positivismo Jurídico consiste no preenchimento do Dever Ser jurídico. Assim, toda vez que a conduta humana (Ser) está de acordo com a prescrição legal (Dever Ser), esta conduta é boa e é justa, entretanto, quando esta conduta está em desacordo com a prescrição legal, ou seja, quando ela contraria a lei, ela é uma conduta má e injusta. O Positivismo Jurídico também é conhecido como a corrente legalista e formalista do Direito, que inadmite a existência de lacunas no Ordenamento Jurídico.

Norberto Bobbio conceitua o Positivismo Jurídico como sendo “a doutrina que reduz a justiça a validade” afirmando que para esta corrente do Direito “só é justo o que é comandado, e pelo fato de ser comandado” (BOBBIO, 2007, pág. 38 - 39).

Segundo Bobbio as ideias positivistas estão presentes em diversos períodos da história do Direito, em diferentes sociedades e remontam aos primórdios da escrita. Nesse sentido, Bobbio explica que o Direito Positivo já se encontrava no pensamento clássico e foi motivo de muita discussão, principalmente na Grécia e na Roma Antiga. Para sustentar essa colocação, Bobbio cita um trecho da obra de Aristóteles: Ética a Nicômaco, no qual o filósofo grego diz que uma parte da justiça é fundada na lei, chamada por ele de direito legal (nomikón díkaion) que, guardadas as devidas proporções, corresponde ao Direito Positivo Moderno, enquanto a outra parte compunha o Direito Natural207, como já fora demonstrado. Para Aristóteles, conforme explica Bobbio, o Direito Positivo caracterizava-se por ter eficácia somente nas comunidades políticas em que era posto, e também, por ser de cumprimento obrigatório, ou seja, aquelas atividades reguladas por ele deviam ser desempenhadas de acordo com o que prescrevia a lei (BOBBIO, 2006). Nas palavras de Aristóteles:

207 Para Hans Kelsen (2010), diferentemente do que afirma Bobbio, a Teoria de Aristóteles não comporta uma Teoria do Direito Natural, mas apenas uma Teoria do Direito Positivo, vez que, para ele, o Jusnaturalismo, em verdade, só se funda em figuras divinas (Deus), não admitindo uma racionalidade pura. Sem tomar posições no que se refere à doutrina de Aristóteles, vale lembrar que, tanto na Grécia quanto na Roma Antiga, o Direito Natural e o Direito Positivo coexistiram pacificamente, sem grandes impasses jurídicos (COULANGES, 2009).

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como o homem sem lei é injusto e o cumpridor da lei é justo, evidentemente todos os atos conforme à lei são atos justos em certo sentido, pois os atos prescritos pela arte do legislador são conforme à lei, e dizemos que cada um deles é justo. Nas disposições sobre os assuntos, as leis visam à vantagem comum, seja de todos, seja a dos melhores ou daqueles que detêm o poder ou algo semelhante (ARISTÓTELES, 2010, p. 100-101).

Já na Roma Antiga, o Direito Positivo, lá chamado de jus civile, também inspirado nas ideias dos filósofos gregos, inclusive de Aristóteles, referia-se as estatuições do populus, ou seja, do povo, dos cidadãos208 e caracterizava-se por ser limitado e posto por um determinado povo, não necessariamente o mesmo, já que Roma dominava outros povos, além disso, para os romanos, o Direito Positivo era sujeito a mudanças, ab-rogações e derrogações, pois estabelecia aquilo que era útil, e não necessariamente aquilo que era justo, de modo que uma lei poderia ser útil hoje e não mais amanha (BOBBIO, 2006).

Em relação ao pensamento medieval, Bobbio afirma que o Direito Positivo fora discutido por diversos escritores medievais, tais como teólogos, filósofos e canonistas. Dentre eles, Abelardo, citado por Bobbio, afirmava que a característica fundamental do Direito Positivo é a de ser posto pelos homens, o que ele chama de Lex humana (BOBBIO, 2006).

Dentre os pensadores modernos, Glück, também citado por Bobbio, afirma que “chama-se direito positivo, o conjunto daquelas leis que se fundam apenas na vontade declarada de um legislador e que, por aquela declaração, vêm a ser conhecidas”, o que demonstra uma completa submissão à legalidade e à legitimidade do legislador (BOBBIO, 2006, pág. 21). Na mesma linha, Thomas Hobbes, para quem:

As leis são as regras do justo e do injusto, não havendo nada que seja reputado injusto sem ser contrário a alguma lei. Ninguém pode fazer as leis, a não ser o Estado, pois estamos sujeitos unicamente ao Estado; e as ordens devem estar expressas por sinais suficientes, pois, de outro modo, ninguém saberia como obedecer a elas (HOBBES, 2009, pág.188).

Conforme demonstra Bobbio, o Positivismo Jurídico ascende enquanto doutrina predominante com a positivação do Direito no final do séc. XVIII e início do séc. XIX. Sendo que, a partir deste momento histórico, o Direito Positivo passa a ser a única fonte válida do Direito e a Segurança Jurídica – entendida, principalmente, enquanto previsibilidade – passa a ser mais importante do que a Justiça (BOBBIO, 2006).

208 Nessa época para ser considerado cidadão, deveria tratar-se de homem, livre, normalmente com propriedades ou oficial do exército, nascido em Roma, dentre outras coisas.

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Durante o seu desenvolvimento, o Positivismo Jurídico contou com diversas escolas e doutrinadores para formular e sustentar sua doutrina. Dentre essas escolas, destacamos a Escola de Exegese e, dentre todos os doutrinadores, destacamos o jurista alemão Hans Kelsen. De modo que, a partir deste ponto, os veremos com mais detalhes.

7. A ESCOLA DE EXEGESE

A Escola de Exegese foi uma escola de direito francesa, do séc. XIX, que se limitava a interpretar o Direito de forma literal, mecânica e passiva, entendendo por Direito apenas as regras jurídicas previstas na legislação vigente.

Nesse sentido, Norberto Bobbio afirma:

A escola da exegese deve seu nome à técnica adotada pelos seus primeiros expoentes no estudo e exposição do Código de Napoleão, técnica que consiste em assumir pelo tratamento científico o mesmo sistema de distribuição da matéria seguido pelo legislador e, sem mais, em reduzir tal tratamento a um comentário, artigo por artigo, do próprio Código (BOBBIO, 2006, p. 83).

Norberto Bobbio traça cinco causas fundamentais que determinaram o advento da Escola de Exegese, o que ele também chama de causa de fidelidade ao Código, sendo elas: i) o próprio fato da codificação; ii) a mentalidade dos juristas dominada pelo princípio da autoridade; iii) a doutrina da separação dos poderes; iv) o princípio da certeza do direito; e v) as pressões exercidas pelo regime napoleônico sobre os estabelecimentos de ensino do Direito (BOBBIO, 2006).

O próprio fato da codificação estava ligado diretamente com a simplicidade e facilidade de se aplicar subsuntivamente o Código, ao invés de se utilizar formas mais complexas de interpretação ou de se utilizar outras fontes do Direito, que exigiriam um aprofundamento e uma dedicação maior do interprete (BOBBIO, 2006).

A mentalidade dos juristas dominada pelo princípio da autoridade ligava-se, de forma direta, a submissão do jurista à vontade do legislador que pôs a norma jurídica no ordenamento, uma vez que o legislador era a autoridade soberana das leis (BOBBIO, 2006).

A doutrina da separação dos poderes impedia o jurista de criar o Direito, pois se o fizesse “invadiria a esfera de competência do poder legislativo”, devendo ele, “ser somente a boca através da qual fala a lei”209 (BOBBIO, 2006, p. 79).

209 Conforme a célebre afirmação de Montesquieu, in verbis: “mas os juízes da nação, são apenas, como dissemos, a boca que pronuncia as palavras da lei; seres inanimados que não podem nem

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O Princípio da certeza do direito implicava na necessidade de previsibilidade do Direito e das consequências jurídicas de sua aplicação, pois somente assim a decisão do juiz não seria considerada arbitrária, uma vez que, somente as leis positivas poderiam garantir tal segurança. Nesse sentido, afirma Bobbio que “a exigência da segurança jurídica faz com que o jurista deva renunciar a toda contribuição criativa na interpretação da lei, limitando-se simplesmente a tornar explícito, através de um procedimento lógico (silogismo), aquilo que já está implicitamente estabelecido na lei” (BOBBIO, 2006, p. 80).

As pressões exercidas pelo regime napoleônico sobre o ensino do Direito ocorreram com o objetivo de se desenvolver o ensino positivista do Direito e suplantar o ensino das demais doutrinas jurídicas. Nesse sentido, Bugnet, autor da Escola de Exegese, citado por Bobbio, afirma: “Eu não conheço o Direito civil, eu ensino o Código de Napoleão” (BOBBIO, 2006, p. 82).

Com base nos ensinamento de Bonnecase, Bobbio afirma que a história da Escola de Exegese pode ser dividida em três fases: primórdios (1804 a 1830); apogeu (1830 a 1880); e declínio (1880 até o fim do século XIX), tendo como principais expoentes, durante todo o seu desenvolvimento: Alexandre Duraton, Charles Aubry, Frédéric Charles Rau, Jean Ch. F. Demolombe e Troplong, dentre tantos outros (BOBBIO, 2006).

Ainda pautando-se na obra de Bonnecase, Bobbio aponta cinco características fundamentais da Escola de Exegese, sendo: i) inversão das relações tradicionais entre direito natural e direito positivo; ii) concepção rigidamente estatal do direito; iii) interpretação da lei fundada na intenção do legislador; iv) culto a lei; e v) o respeito pelo princípio da autoridade (BOBBIO, 2006).

A inversão das relações tradicionais entre direito natural e direito positivo consiste na suplantação do Direito Natural pelo Direito Positivo. Nesse sentido, Demolombe, citado por Bobbio, afirma que o Direito Natural “é irrelevante para o jurista enquanto não for incorporado a lei”, pois para os exegéticos, o juiz deve se fundar somente na lei para resolver os casos a ele trazidos, em razão da completitude das leis (BOBBIO, 2006, p. 85).

A concepção rigidamente estatal do direito210 deriva da onipotência do legislador, uma vez que, a legislação posta era tida como a única fonte do Direito. Nesse sentido, Mourlon, citado por Bobbio, afirma que “para o jurisconsulto,

moderar a força nem o rigor das palavras” (MONTESQUIEU, 2010, p. 175).210 Neste ponto, vale a crítica de Santi Romano, que demonstra que o Direito em nenhuma época foi totalmente estatal, mesmo nos momentos mais rígidos do positivismo. Para o autor, tal concepção reducionista do direito (Direito = direito do Estado) é “rigorosamente inaceitável” por diversos motivos, dentre os quais, destaca-se o fato de o conceito de Direito ser “logicamente antecedente aquele de Estado” (ROMANO, 2008, p. 141).

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para o advogado, para o juiz existe um só direito, o direito positivo... que se define: o conjunto das leis que o legislador promulgou para regular as relações dos homens entre si” (BOBBIO, 2006, p. 86).

A interpretação da lei fundada na intenção do legislador consiste tanto na vontade real – aquela expressa na lei de maneira clara – como na vontade presumida – aquela que se encontra implícita na lei – não se admitindo a existência de lacunas na lei (BOBBIO, 2006).

O culto do texto da lei identifica-se na subordinação do jurista às disposições dos artigos do Código. Nesse sentido, Demolombe, citado por Bobbio, afirma:

A minha máxima, a minha profissão de fé é: os textos acima de tudo! Eu publico um Curso do Código de Napoleão; tenho portanto por finalidade interpretar, explicar o próprio Código de Napoleão, considerado como lei viva, como lei aplicável e obrigatória, e a minha preferência pelo método dogmático não me impedirá de tomar sempre por base os próprios artigos da lei (BOBBIO, 2006, p. 88). Por último, o respeito pelo princípio de autoridade, que se identifica na

necessidade de “atribuir a uma pessoa qualquer o poder de estabelecer o que é justo e o que é injusto, de modo que sua decisão não possa ser colocada em discussão”, sendo essa pessoa o legislador (BOBBIO, 2006, p. 89).

A Escola de Exegese foi um marco na história do Positivismo Jurídico, sobretudo no Direito Europeu, influenciando doutrinadores de diversas nacionalidades e corroborando para o seu desenvolvimento, ficando marcada pelo seu formalismo excessivo e por seu método de interpretação literal do texto legal.

8. A TEORIA PURA DE HANS KELSEN

A teoria positivista do direito que imperou no séc. XX foi, ao menos nos países de tradição Civil Law, a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. O jurista alemão formulou sua teoria do direito tendo como base o formalismo e a rigidez sistêmica, concebendo o Direito como a Norma Jurídica válida, identificada nas regras jurídicas previstas na lei vigente.

Neste direcionamento, Kelsen afirma ser o Direito “uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano”, pois para Kelsen o Direito se identificava com a Norma (KELSEN, 2003, p. 5).

Haradja L. Torrens (2004) afirma que Kelsen foi um dos maiores juristas da doutrina formalista do direito, nomeada por ele próprio como Positivismo

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Jurídico e caracterizada por ver o Direito “como uma pirâmide, ou seja, estrutura hierárquica de normas jurídicas, sistema apto a solucionar o caso concreto sem a ingerência de outros elementos como a ‘filosofia da justiça’ e a ‘sociologia’”, isto é, como um sistema fechado, puro e autossuficiente.

Nesse sentido, em sua Teoria Pura do Direito, Kelsen afirma que o Direito exige uma teoria pura, uma teoria positiva do direito, que se proponha a garantir um conhecimento exclusivamente dirigido ao direito, um conhecimento puro, que exclua “tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito”, ou seja, um conhecimento que exclua todos os demais, a fim de que com estes não se confunda, nem se misture (KELSEN, 2003, pág. 1).

Ao elaborar sua teoria da norma jurídica, Kelsen constrói a base fundamental da pureza de sua teoria do direito. Para ele, para que um ato pudesse ser considerado um ato jurídico (ou antijurídico), deveria, necessariamente, possuir uma correspondência normativa, isto é, deveria existir uma regra jurídica positiva válida regulamentado (prevendo) tal ato. Nesse sentido, Kelsen afirma que “a norma que empresta ao ato o significado de um ato jurídico (ou antijurídico) é ela própria produzida por um ato jurídico, que, por seu turno, recebe a sua significação jurídica de uma outra norma”, que implica no seu fundamento de validade (KELSEN, 2003, p. 4).

No que tange a validade das normas jurídicas, é de se ressaltar que para Hans Kelsen “uma norma não é verdadeira ou falsa, mas apenas válida ou inválida” (KELSEN, 2003, pág. 21), o que em um conflito de normas, significa dizer “que apenas uma pode ser considerada como válida e não a outra”, podendo “considerar como válida quer uma quer outra – mas não as duas ao mesmo tempo” (KELSEN, 2003, p. 20).

Para Kelsen a norma jurídica identifica aquilo que deve ser, ou seja, a conduta humana devida, prescrita no texto da lei. Sendo que, quando a conduta humana real (Ser) corresponde à prescrição da lei (dever ser), tem-se um juízo de valor positivo, o que significa dizer que a conduta humana é “boa” e está de acordo com aquilo que ela deveria ser. De outro modo, quando a conduta humana real (Ser) não corresponde à prescrição da lei (dever ser), tem-se um juízo de valor negativo, o que significa dizer que a conduta humana é “má” e não está de acordo com aquilo que ela deveria ser (KELSEN, 2003).

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A teoria de Hans Kelsen aparta o Direito das demais ciências, inclusive da Justiça e da Moral, de modo que, para ele, “a validade de uma ordem jurídica positiva é independente”, até mesmo porque, para Kelsen, não existe um pensamento moral absoluto, assim como não existe uma Justiça absoluta, o que implica em dizer que uma dada ordem jurídica pode ser vista como moral ou imoral, justa ou injusta, dependendo do que se entenda por moral e, ou, por justiça (KELSEN, 2003, p. 75).

Em razão dessa relatividade da ordem moral, bem como da concepção do justo e do injusto, Kelsen propõe que a justo seja tido como aquilo que é convencionado como justo e positivado em forma de lei, pois, para ele, “o conceito de ‘bom’ não pode ser determinado senão como ‘o que deve ser’, o que corresponde a uma norma”, o que implica em dizer que “o que é conforme-ao-Direito (das Rechtmässige) é um bem” (KELSEN, 2003, p. 75).

Vale salientar, como o faz Luís Roberto Barroso (2009a), que, apesar de algumas variações, o Positivismo Jurídico teve seu ápice no normativismo de Hans Kelsen. Até hoje Kelsen continua sendo a grande referência do positivismo jurídico, sendo sua Teoria Pura do Direito, uma leitura obrigatória àqueles que pretendem estudar o Direito.

9. CRÍTICAS E DECADÊNCIA DO POSITIVISMO JURÍDICO

O Positivismo Jurídico pretendeu criar um sistema jurídico perfeito, preestabelecido, que fosse capaz de resolver todos os casos de maneira rígida e formal. Entretanto, isso não é possível, em razão de diversos fatores, tais como a constante evolução da sociedade e das tecnologias, das diferenças sócio-culturais das pessoas, dentre outros. Não bastasse isso, ainda, há aqueles que imputam ao Positivismo Jurídico a responsabilidade por sustentar juridicamente, os regimes fascistas e suas barbáries. Por último, ainda há de se lembrar que o Positivismo Jurídico aparta o Direito da Justiça, possibilitando a existência do Direito injusto.

Nesse sentido, Luis Roberto Barroso afirma que “a troca do ideal racionalista de justiça pela ambição positivista de certeza jurídica custou caro à humanidade”, pois para ele, “o fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos e matizes variados”, em todo o mundo, possibilitados pela ideia de que o debate sobre Justiça se encerrava quando a norma era positivada e estabelecia o que era justo para dada situação (BARROSO, 2009a, p. 241).

Segundo Barroso, os regimes fascista e nazista, de Itália e Alemanha respectivamente, bem como as crueldades cometidas por eles, foram legitimados

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graças ao Positivismo Jurídico e, foi justamente a queda destes regimes que, também, possibilitou a queda do sistema positivista do Direito (BARROSO, 2009a). Nesse sentido:

Sem embargo da resistência filosófica de outros movimentos influentes nas primeiras décadas do século, a decadência do positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Até mesmo a segregação da comunidade judaica, na Alemanha, teve início com as chamadas leis raciais, regularmente editadas e publicadas. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha aceitação no pensamento esclarecido (BARROSO, 2009a, p. 242).

Críticas semelhantes às de Barroso faz Haradja Leite Torrens. A jurista afirma que o paradigma positivista enfrenta sua crise em detrimento de não encontrar soluções para determinados problemas jurídicos de alta relevância, o que se evidenciou principalmente no “julgamento das atrocidades praticadas pelo Estado Alemão levadas ao Tribunal de Nuremberg no segundo pós-guerra”. A autora critica também, a incapacidade do legislador acompanhar de forma célere e eficiente a velocidade da evolução técnico-científica, principalmente nas sociedades “pós-industriais”, ou “pós-modernas” (TORRENS, 2004).

Apesar das árduas críticas ao modelo positivista, é consenso que, por causa do positivismo, o Direito avançou muito enquanto Ciência e, a partir da moldura de Hans Kelsen é que se pôde pensar nas complexas noções de sistema jurídico e entender que neste mundo existe uma linguagem que não pode ser desprezada pelo intérprete ou operador do Direito.

Nesse sentido, Tercio Sampaio Ferraz Junior, ao encerrar seu artigo: por que ler Kelsen hoje, demonstra a importância da obra de Hans Kelsen para o Direito. Veja-se:

A obra de Kelsen ainda o mantém vivo, suas implicações para a ciência jurídica, para a lógica da norma, para a aplicação do direito são tão fecundas, que, por mais que o critiquemos, não deixam de desvendar novos ângulos, novos encaminhamentos. Seu sistema cerrado não está isento de objeções. Estas, contudo, se postas seriamente, nos mostram

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como o seu pensamento é capaz de nos empurrar para diante, evitando o parasitismo das concepções feitas. Ao contrário do que se supõe, seu espírito polêmico nunca revelou um obstinado, tanto que, em diversas ocasiões e até mesmo no fim da vida, não teve medo de enfrentar suas próprias convicções, mudando-as quando as percebia insustentáveis racionalmente (FERRAZ JR, 1981).

Nesse mesmo sentido, Norberto Bobbio (2008) dedicou uma obra inteira – Direito e Poder – para reexaminar a obra de Hans Kelsen à luz das críticas que lhe eram feitas. Para Bobbio Kelsen foi um dos mais significantes contribuidores do Direito, colaborando para o seu desenvolvimento em diversas áreas, tais como, Teoria e Filosofia do Direito, Direito Constitucional, Direito Internacional e outras.

Nessa mesma linha de raciocínio, Anderson Rosa Vaz afirma que “a teoria de Hans Kelsen foi a mais fantástica contribuição jusfilosófica já formulada”, tornando-se um paradigma da Ciência do Direito, de modo que, “já se disse com propriedade que se estuda o direito antes e depois de Hans Kelsen” (VAZ, 2009, p. 206).

Deste modo, não pode Kelsen ser “crucificado” como se sua obra se resumisse apenas à sua Teoria Pura e, pior, como se sua Teoria Pura fosse a fonte dos problemas da humanidade, ou a legitimadora das leis nazistas, o que não condiz com a verdade. Enfim, apesar dos nazistas terem se utilizado das leis e da doutrina positivista para justificarem suas barbáries, essas leis, bem como a doutrina positivista, não foram criadas com esse intuito e, se pensarmos assim, deveríamos atribuir os ataques terroristas às Torres Gêmeas a Santos Dumont, afinal não foi ele o inventor do avião?

O Juspositivismo, tal como o Jusnaturalismo, não deixou de existir, entretanto, nas últimas décadas, vive uma decadência teórico-científica, uma progressiva superação por uma nova doutrina, o pós-positivismo jurídico, que ascende aproximando Direito, Justiça e Moral.

10. O PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO

A partir da segunda metade do século passado, inicia-se um movimento de “superação” do Positivismo Jurídico, movimento este que busca incorporar ao ordenamento jurídico os mais altos valores morais da sociedade, aproximando o Direito da Moral e da Justiça. Este novo modelo “não-positivista” é concebido como Pós-positivismo Jurídico.

Como explica Alexandre Garrido, o uso do prefixo “pós” é bastante impreciso, sobretudo dentro da doutrina jurídica, uma vez que pode designar

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tudo aquilo que veio após o Positivismo Jurídico (SILVA, 2007). Não é nossa intenção discutir o uso do prefixo “pós”, entretanto não podemos nos abster diante de tamanha imprecisão.

Em razão da complexidade do tema, faz-se necessário o desenvolvimento de algumas ideias antes de falarmos diretamente do Pós-positivismo Jurídico defendido neste trabalho – como sendo a superação do positivismo jurídico por uma doutrina atrelada aos valores, mas que não se desvincula da razão humana e não sobrepõe os valores da Segurança Jurídica, da Legalidade e da Legitimidade, mas apenas os pondera frente a outros valores.

Deste modo, não só tentaremos delimitar, de forma genérica, os liames do Pós-positivismo Jurídico com fundamento em doutrinas consagradas no Direito Contemporâneo, mas também o diferenciaremos do chamado “Direito Pós-moderno”, tendo como base, principalmente, a brilhante contribuição de Daniel Sarmento (2010), para evitar confusões conceituais, de extrema relevância, que poderiam comprometer a boa compreensão deste trabalho caso não fossem estabelecidas.

11. A PÓS-MODERNIDADE

O mundo contemporâneo vive algo que, com toda a certeza, se difere bastante daquilo que conhecemos como sendo a Idade Moderna (final do séc. XVI a meados do séc. XX). Nesse contexto surge o que hoje é motivo de grandes discussões no ambiente acadêmico e científico: A Pós-modernidade, caracterizada, sobretudo, pela quebra com os paradigmas construídos ao longo da Modernidade, pelo movimento neoliberalista e pela globalização.

Entretanto, há de se pensar: Apesar das mudanças surgidas ao longo do tempo, o que seria melhor para a sociedade, uma adaptação da Modernidade à realidade contemporânea ou uma Pós-modernidade?

A Idade Moderna, como explica Daniel Sarmento, caracterizou-se pela “aposta na razão secular e na ciência como meios para a promoção do progresso e da emancipação do Homem”, pelo desenvolvimento dos “valores de liberdade, igualdade, solidariedade e democracia, em torno dos quais foi erigido o Estado Moderno” e, através do Iluminismo, pelo reconhecimento dos direitos dos homens e pela limitação do poder dos governantes, bem como sua legitimação pelo consentimento dos governados (SARMENTO, 2010, p. 37).

Nesse sentido, não se pode afirmar que a Modernidade está acabada e que, como alguns afirmam, já se vive uma Pós-Modernidade, como se as grandes conquistas da Modernidade já tivessem sido superadas. Sarmento explica que “de fato existe uma crise na Modernidade”, mas isso não significa, até aqui, que devamos romper com seus paradigmas e viver a tal Era Pós-Moderna (SARMENTO, 2010, p. 44).

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Segundo Jean-François Lyotard a palavra pós-moderna é utilizada na América por sociólogos e críticos para indicar “o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes” (LYOTARD, 2006, p. xv). Nesse sentido, Lyotard explica que na Modernidade os discursos pautavam-se na racionalidade e na busca do “verdadeiro” para legitimar as “regras do jogo”, o que ele, assim como os autores que se intitulam pós-modernos, chama de “metadiscurso” ou “metarrelato”.

Entretanto, na visão pós-moderna, esses “metarrelatos” devem ser abdicados, devem ser postos de lado, por serem incapazes de solucionar os problemas que realmente deveriam ser solucionados e por serem incapazes de dar uma resposta “verdadeira”, pois os pós-modernos não acreditam na “verdade”, até mesmo porque a “verdade” é um conceito essencialmente Moderno (LYOTARD, 2006).

O que Lyotard e os pós-modernos propõem é um rompimento com as Ciências, com os paradigmas construídos ao longo da Modernidade, bem como com as conquistas das Ciências e desses paradigmas, pois, segundo eles, o discurso Moderno é impotente e incapaz “de enfrentar os problemas emergentes em uma sociedade hipercomplexa, globalizada, fragmentada e descentrada”, como a sociedade contemporânea, também chamada de pós-industrial (SARMENTO, 2010, p. 37).

Nesse sentido, Sarmento explica que o pós-modernismo se desenvolve na sociedade pós-industrial, na qual “o poder e a riqueza passa a residir na posse de conhecimento e de informações” que circulam em alta velocidade, o que gera um paradoxo, no mínimo irônico. Em razão da elevada velocidade, as informações passam a ser superficiais e sua estética passa a ser mais importante que seu próprio conteúdo (SARMENTO, 2010, p. 38) e mais do que isso, os meios de informação passam, ao invés de nos informar, a nos alienar, em razão de seu conteúdo “bonitinho”, mas vazio.

É nesse sentido que Willis Santiago Guerra Filho, ao referir-se à televisão, afirma que ela nos mantém isolados, “voluntariamente presos em casa, nos momentos de lazer, sentindo-nos com a possibilidade de estar, virtualmente, em qualquer lugar do mundo para onde nos leve o zapping com o controle remoto” (GUERRA FILHO, 2009, p. 637), de modo que nos tornamos meras estatísticas, nos desumanizamos para nos virtualizar, deixamos o real para viver o irreal e quando acordamos estamos com 60 anos, 150 kilos e com um salário mínimo de aposentadoria que mal paga o remédio da pressão, enquanto o governo não nos garante mais nada, nem saúde, nem educação, nem cultura, apenas uma televisão e um acesso rápido à internet (qualquer semelhança com os EUA de hoje não é mera coincidência), ou seja, estamos dominados, domesticados, padronizados.

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Nesse sentido, Miguel Reale, ao discorrer sobre o fenômeno da globalização, afirma:

Não podemos deixar de fazer especial referência aos usos e costumes, com a generalização de padrões de vestir ou de comer, e sobretudo, através da televisão, do rádio, do teatro e do cinema, do comportamento dos seres humanos, desde a infância à velhice, com predominante e passiva imitação, que é uma forma inegável de domínio (REALE, 2006, p. 99).

No mesmo sentido Edward S. Herman e Noam Chomsky demonstram em sua obra, A Manipulação do Público, como a mídia, principalmente as mídias de massa, controlam e manipulam as informações com objetivos políticos e econômicos, alienando as pessoas, fazendo delas verdadeiros fantoches, para poderem usar como, quando e para o que quiserem (HERMAN; CHOMSKY, 2003). Um legítimo produto do neoliberalismo, da globalização, da pós-modernidade e sua libertinagem de mercado inescrupulosa.

Não fosse só isso (uma imposição de modelos globais), ascende o Estado Neoliberal e com ele a globalização de mercado, e é obvio que é preponderantemente de mercado, afinal os Estados ricos querem vender, eles não querem se relacionar, trocar experiências, compreender, ou ajudar os demais. Tome-se de exemplo os Estados Unidos que fecharam suas fronteiras terrestres para impedir que os não americanos vivessem o “sonho americano”, mas por outro lado, levaram para o mundo seus produtos industrializados, os mesmos do “sonho americano”, mas é lógico que a um preço nada acessível à maior parte da população mundial. Um sistema que exclui cada vez mais, uma manutenção cruel do poder e da riqueza, que exige cada vez mais preparação, escolaridade, produtividade e o que, consequentemente, faz com que o sistema educacional abandone a qualidade de ensino e se dedique a emitir certificados de cursos dos mais variados, mas que essencialmente não ensinam nada: é a banalização do ensino e do emprego.

Barroso, ao discorrer sobre a pós-modernidade e a globalização, afirma:

A globalização, como conceito e como símbolo, é a manchete que anuncia a chegada do novo século. A desigualdade ofusca as conquistas da civilização e é potencializada por uma ordem mundial fundada no desequilíbrio das relações de poder político e econômico e no controle absoluto, pelos países ricos, dos órgãos multilaterais de finanças e comércio [...] A obsessão da eficiência tem elevado a exigência de escolaridade, especialização e produtividade, acirrando a competição no mercado de trabalho e ampliando

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a exclusão social dos que não são competitivos porque não podem ser. O Estado já não cuida de miudezas como pessoas, seus projetos e sonhos, e abandonou o discurso igualitário ou emancipatório. O desemprego, o subemprego e a informalidade tornam as ruas lugares tristes e inseguros (BARROSO, 2009b, p. 306-307).

No mesmo sentido, Paulo Bonavides é incisivo ao discorrer sobre o neoliberalismo e a globalização, afirmando que “o neoliberalismo cria, em verdade, mais problemas do que insta resolver” e sua filosofia do poder acentua as desigualdades entre os homens, uma vez que “se move, em certa maneira, rumo à dissolução do Estado Nacional” (BONAVIDES, 2003, p. 355). Afirma ainda, que “a globalização serva de um capitalismo de opressão, degrada e corrompe a natureza humana, esmaga a personalidade, conculca as franquias do cidadão, nega a soberania, anula a identidade dos povos” (BONAVIDES, 2003, p. 357).

Se isso não bastasse, com a internet, a situação se agrava, pois emerge uma espécie de globalização pautada na informática que possibilita um “imperialismo difuso” e que ameaça até mesmo as instituições estatais mais poderosas. Isso se dá, conforme preleciona Miguel Reale, porque a globalização da informática “possibilita o deslocamento súbito e imprevisto, de um País ou mais Países para outros, de investimentos financeiros de caráter meramente especulativo e onzenário” (REALE, 2005, p. 76), isto é, possibilita e facilita uma maior e descontrolada manipulação dos mercados, o que se pode notar perfeitamente na crise estadunidense de 2008.

E não para por aí. O pós-modernismo quer mais, quer romper com tudo, quer contestar tudo o que é fruto da Ciência, ele “descrê na razão, na qual vislumbra um instrumento de repressão e intenta desconstruir as principais categorias da Modernidade, como as ideias de sujeito, de progresso, de verdade e de justiça” (SARMENTO, 2010, p. 39). Nesse sentido, André-Jean Arnaud afirma que o pós-modernismo traz consigo as ideias de “desconstrução” e, até mesmo, de “morte do homem” (ARNAUD, 1999, p. 196).

No mesmo sentido, Stuart Hall afirma que na Pós-modernidade o homem é descentrado, ou seja, sofre um processo reverso àquele da Modernidade quando foi levado ao centro (antropocentrismo). Hall intitula um dos capítulos de sua obra como: Nascimento e morte do sujeito Moderno, e neste capítulo tenta desfigurar todo o sujeito, de modo a levá-lo a inexistência perpétua (HALL, 2005), é a morte do homem como o conhecemos, como sujeito de direitos, como sujeito de valores e virtudes, é o rompimento com tudo o que se demorou séculos para ser conquistado.

Na sua concepção de mercado, de lucro e poder, a pós-modernidade busca o distanciamento do Estado e de suas interferências na sociedade, para que o

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Capital privado possa tomar conta de tudo e reger a orquestra da desigualdade. Mandando e desmandando, tendo o Estado como mero garantidor de sua atividade livre, totalmente livre, sem limites algum. O Estado se torna um “cão de guarda dos mais ricos”, deixando de ser aquele que buscava equilibrar as relações. É a passagem do Estado Democrático de Direito para o Estado Neoliberal. Nesse sentido, são brilhantes os seguintes dizeres de Barroso: “Quando a noite baixou, o espaço privado invadira o espaço público, o público dissociara-se do estatal e a desestatização virara um dogma. O Estado passou a ser o guardião do lucro e da competitividade” (BARROSO, 2009b, p. 307).

Sob esta perspectiva, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que as teses da pós-modernidade – a globalização, o neoliberalismo e, sobretudo, a “reforma” do Estado – se propõem a exaltar “o mais desenfreado ‘liberalismo’”, o que, consequentemente, promove o domínio dos mercados dos países subdesenvolvidos pelas grandes empresas dos países ricos e o agravamento das exclusões sociais (BANDEIRA DE MELLO, 2010, p. 1073). Nesse sentido, Michel Chossudovsky, em sua obra A globalização da Pobreza, demonstra os impactos da globalização, sobretudo, a intensificação da exclusão social e da pobreza, isto é, a disseminação da miséria humana, através das políticas do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (CHOSSUDOVSKY, 1999).

Nesta busca descontrolada por poder, dinheiro e status, emerge uma “sociedade de riscos”, que não tem escrúpulos, nem responsabilidade, que não se importa com os efeitos colaterais de suas ações. Foi assim que os estadunidenses arrasaram Hiroxima e Nagasaki, foi assim que os soviéticos colocaram milhões de vidas em risco no acidente nuclear de Chernobyl, foi assim que o mal da vaca louca se espalhou da Europa para todo o mundo, sem falar nas “intervenções” estadunidenses nos países detentores de grandes reservas de petróleo.

Como consequência de todo esse processo, a sociedade se fragmenta, se divide em pequenos pedaços, mais fáceis de manipular. Nesse contexto emergem as solidariedades “guetizadas”, pautadas em qualidades étnicas, sexual, religiosas, ou culturais. “Em certos contextos, a exacerbação deste processo acaba produzindo sectarismos e fundamentalismos diversos, além de provocar, como reação, a intolerância dos grupos hegemônicos contra as minorias” (SARMENTO, 2010, p. 40).

Nessa perspectiva emergem, também, os mais variados movimentos fundamentalistas, como os movimentos neonazistas na Europa e nos Estados Unidos, os movimentos homofóbicos por todo o mundo, inclusive no Brasil, com casos bárbaros de violência despropositada, não só contra os homossexuais, mas também contra índios, negros, mulheres etc.

As consequências desta pós-modernidade são múltiplas, de modo que não as podemos esgotar aqui. Passemos agora a discussão da pós-modernidade no direito.

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12. O DIREITO E A PÓS-MODERNIDADE

Como visto, a Pós-modernidade tem como característica o rompimento com os paradigmas Modernos, por entendê-los como um aprisionamento do homem pela razão e pela Ciência. No Direito não é diferente, de modo que os Juristas Pós-modernos pregam a desvinculação do Direito dos institutos e elementos criados e/ou desenvolvidos durante a Modernidade, bem como a abdicação dos Direitos reconhecidos nessa época.

Nessa perspectiva, o Positivismo Jurídico é o primeiro a ser negado, assim como o seu formalismo, sua produção exclusivamente estatal, sua estrutura rígida e sua acepção de um Direito Puro que buscava acima de tudo a Segurança Jurídica. Em contrapartida, há a retomada de algumas concepções e conceitos pré-modernos, tais como a relação entre Direito e Justiça e o retorno da tópica e da retórica. Fala-se também, em desregulação, na Economia em substituição das normas do Estado pelas do Mercado, na resolução de conflitos em substituição do magistrado pelos tribunais arbitrais e assim por diante (SARMENTO, 2010).

Por outro lado, em uma perspectiva sistêmica do Direito, com base nas ideias de Niklas Luhmann e Günther Teubner, os pós-modernistas vêem o Direito enquanto um sistema autopoiético, ou seja, fechado em relação à sociedade, de modo que, para eles, é o próprio Direito que deve escolher aquilo que deve ou não ser jurídico. Isso não significa negar que o Direito se relacione com outros sistemas, mas que ele escolhe como, quando e com o que se relaciona, incorporando aquilo que ele acredita que deva ser jurídico. Desta forma, o Direito abdica das colaborações éticas e passa a se fundamentar unicamente no procedimento. Algo que, ironicamente, lembra bastante o modelo positivista (SARMENTO, 2010).

Em relação ao Direito Constitucional, a pós-modernidade se demonstra “incompatível com o projeto de Constituição dirigente”, mais ainda, contrária ao projeto de “Constituição programática, que traça rumos para a comunidade política com pretensões de transformação do status quo”, algo notoriamente oposto à ideia de neoliberalismo e manutenção das desigualdades, típicos da pós-modernidade, da globalização e do neoliberalismo (SARMENTO, 2010, p. 43).

A ideia pós-moderna é de que a Constituição seja “concebida preferencialmente como um estatuto procedimental” e não como uma Carta de Direitos e Garantias Universais à todos os cidadãos (SARMENTO, 2010, p. 43). Ou seja, há um reducionismo da Constituição, querendo transformá-La em uma carta qualquer, que serve meramente para regular os procedimentos, nesse sentido, vale reproduzir aqui os dizeres de Luhmann, citado por Daniel Sarmento, que afirma: “não devendo ser o suporte de nenhuma intenção de justiça, a constituição terá então que ser entendida apenas como uma normação

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da normação, como um regulativo das relações sistema-ambiente do sistema político da sociedade” (SARMENTO, 2010, p. 44). Mais ainda, os juristas pós-modernos têm “aversão às construções e valores jurídicos universais”, o que inclui, dentre outras coisas, os “direitos do homem” (SARMENTO, 2010, p. 40). Nesse sentido, André-Jean Arnaud fala em um “ataque dirigido contra os direitos do homem” (ARNAUD, 1999, p.198).

Luis Roberto Barroso, ao discorrer sobre a relação da Pós-modernidade com o Direito, resume bem o que expusemos aqui:

No direito, a temática já não é a liberdade individual e seus limites, como no Estado liberal; ou a intervenção estatal e seus limites, como no welfare state. Liberdade e igualdade já não são os ícones da temporada. A própria lei caiu no desprestígio. No direito público, a nova onda é a governabilidade. Fala-se em desconstitucionalização, delegificação, desregulamentação. No direito privado, o código civil perde sua centralidade, superado por múltiplos microssistemas. Nas relações comerciais revive-se a lex mercatoria. A segurança jurídica – e seus conceitos essenciais, como o direito adquirido – sofre o sobressalto da velocidade, do imediatismo e das interpretações pragmáticas, embaladas pela ameaça do horror econômico (BARROSO, 2009b, p. 307 - 308).

Retomemos então à pergunta inicial sobre a Pós-Modernidade: Apesar das mudanças surgidas ao longo do tempo, o que seria melhor para a sociedade, uma adaptação da Modernidade à realidade contemporânea ou uma Pós-modernidade?

Em primeiro lugar, devemos assumir um posicionamento frente à matéria. Nesse sentido, somos claros em dizer que nos posicionamos criticamente à Pós-modernidade, de modo a rejeitá-la. Entretanto, não podemos negar a existência de uma crise da Modernidade, pois de fato, ela realmente existe.

Nada obstante, não acreditamos que seja benéfico à sociedade abdicar a Modernidade e suas construções, sua racionalidade, suas conquistas, tais como os Direitos do Homem, o Constitucionalismo, o Estado Democrático de Direito, a emancipação do homem, a busca da verdade etc. Acreditamos que o projeto da Modernidade não deve ser abandonado, que a razão não deve ser posta de lado. Seus erros e desvios que precisam ser corrigidos, para torná-lo mais abrangente, inclusivo, garantidor e efetivador dos direitos dos homens.

Nesse sentido, afirma Daniel Sarmento:

ao invés de abandonar o ideário da Modernidade, deve-se aprofundá-lo, sobretudo nas sociedades periféricas – pré-modernas sob certos

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aspectos –, que enfrentam carências já relativamente equacionadas no 1º mundo. É preciso, neste sentido, adotar um conceito mais alargado de razão, que se proponha a discutir criticamente também os fins da ação humana, o que a razão instrumental positiva se negava a fazer. E a partir de uma perspectiva racional, cumpre insistir, mais e mais, na luta pela implementação dos grandes valores do iluminismo, de liberdade, igualdade, democracia e solidariedade (SARMENTO, 2010, p. 44-45).

O ataque Pós-moderno, neoliberal, pós-industrial, ou globalizado à Modernidade, aos direitos do homem, à razão, ao Estado Democrático de Direito, à Constituição, são propostas que não visam à liberdade, pois, de fato, tal ataque só pode conduzir à desigualdade, à exclusão e a libertinagem. A Constituição não pode ser tida como norma meramente procedimental. Sua supressão só corresponde aos interesses dos afortunados e dos poderosos. Abdicar de sua substancialidade, de suas garantias e de sua noção de justiça é legitimar a desigualdade e a exclusão.

No caso brasileiro, a pós-modernidade e seus efeitos são ainda mais graves211, pois trata-se de uma democracia recente, que só passou a garantir os direitos do homem de forma ampla à 25 anos. Ceder à libertinagem de mercado, ao global (que de global só tem a miséria que é distribuída a maioria) e ao pós-modernismo, que só tem a oferecer a quem tem como pagar, é inconcebível, é trágico.

Deste modo, é de se acreditar, que tenha ficado clara a nossa posição em relação à pós-modernidade, bem como em relação ao “direito pós-moderno”, propostas com as quais não nos identificamos e, pelo contrário, intentemos em combater.

13. O PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO PODE SER CONSIDERADO O MOVIMENTO PÓS-MODERNO DO DIREITO?

Dissemos que a partir da segunda metade do século passado, iniciou-se um movimento de “superação” do Positivismo Jurídico, movimento este que busca incorporar ao ordenamento jurídico os mais altos valores morais da sociedade, aproximando o Direito da Moral e da Justiça, recebendo o nome de Pós-positivismo Jurídico.

211 Nesse sentido, Daniel Sarmento afirma que as propostas pós-modernas são propostas perigosíssimas, sobretudo nos estados periféricos como o Brasil, onde largos setores da população ainda vivem no arcaísmo pré-moderno. Jamais fomos modernos e, de repente seríamos pós-modernos (interessa a quem?). Soa paradoxal que no Brasil exatamente na época em que, findo o ciclo autoritário, consolida-se a ascensão da Constituição à condição de norma jurídica, pretenda-se reduzi-La a pó, na esteira do pensamento pós-moderno, desprezando-se a sua dimensão substantiva e o seu potencial emancipatório (SARMENTO, 2010, p. 45-46).

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Poder-se-ia pensar, prima facie, que por romper com o Positivismo Jurídico, o Direito Pós-moderno fosse a mesma coisa que o Pós-positivismo Jurídico, ou que estivessem, no mínimo, muito próximos. Mas esta é uma ideia enganosa, pois não é por possuírem características em comum, que estes dois movimentos sejam próximos, semelhantes ou iguais.

O Pós-positivismo Jurídico busca ampliar o campo cognitivo do Direito a fim de lhe possibilitar maior eficiência e de lhe aproximar o máximo da justiça e da equidade. Busca, como explica Daniel Sarmento (2010), potencializar o caráter emancipatório da Ordem Jurídica, sobretudo, através do Direito Constitucional, com o escopo de efetivar os direitos e garantias dos cidadãos. O Direito pós-positivista busca não a degradação das instituições e do Estado, mas sim o seu aperfeiçoamento, bem como o aperfeiçoamento de suas relações com os cidadãos. O Pós-positivismo Jurídico acredita na razão humana e no Direito como ferramenta de transformação social.

Já o Direito Pós-moderno almeja romper com as instituições de Direito criadas ao longo da Modernidade, quer romper com as garantias e direitos conquistados ao longo dos séculos, quer sobrepujar os Direitos do Homem, quer reduzir a Constituição a uma carta meramente procedimental. Sem falar que, sua teoria do Direito como sistema autopoiético, por um lado “ergue uma barreira entre o fenômeno jurídico e a moral” (algo com um neopositivismo) e por outro “condena o Direito a uma posição modesta na sociedade”, algo muito diferente do que propõe o Pós-positivismo Jurídico (SARMENTO, 2010, p. 42).

Nesse sentido, Daniel Sarmento afirma:

Cumpre não confundir pós-positivismo com o pós-modernismo no campo jurídico. Embora possa haver algumas coincidências entre tais concepções – como a rejeição da visão positivista de racionalidade, que exclua de seu âmbito a razão prática, e a negação da separação cartesiana entre sujeito e objeto, com o reconhecimento de que, também no Direito, o observador influi sobre o fenômeno observado –, existem também marcantes diferenças entre estas cosmovisões jurídicas. De fato, o pós-positivismo não desacredita na razão e no Direito como instrumento de mudança social, e busca, recorrendo sobretudo aos princípios constitucionais e à racionalidade prática, catalizar as potencialidades emancipatórias da ordem jurídica. Já o pós-modernismo, como se viu no capítulo precedente, mostra-se cético em relação ao Direito, e tende a reduzir o papel das Constituições a um mero estatuto procedimental (SARMENTO, 2010, p. 57).

É nesse sentido que se defende uma diferenciação entre Direito Pós-

moderno e Pós-positivismo Jurídico, pois se entende que sejam, os dois,

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fenômenos bem distintos, que pouco possuem em comum e, mesmo aquilo que possuem de comum, em essência são diferentes. Tome-se de exemplo o rompimento com o Positivismo Jurídico, no caso do Direito Pós-moderno propõe-se um rompimento total, já no caso do Pós-positivismo Jurídico propõe-se a sua superação, entretanto preservando aquilo que de bom construiu o Positivismo, em outras palavras, não se propõe uma despositivação, ou desregulação como no Direito Pós-moderno, mas sim que o Jurista não se atente exclusivamente àquilo que está escrito no texto da lei.

Ante o exposto, pode-se concluir que o Direito Pós-moderno visa apequenar o próprio Direito, enquanto o Pós-positivismo visa ampliar a relação do Direito com a sociedade, utilizando-se de seu potencial de Justiça e equidade.

14. BREVES DELINEAMENTOS SOBRE O PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO

Como dito, o Pós-positivismo Jurídico consiste na corrente do Direito que emerge em meados do século passado com a finalidade de reintroduzir no Direito as concepções de Moral e Justiça, reaproximando-o das ciências humanas.

O pós-positivismo jurídico se funda na ideia de que o Direito deve, sempre, buscar a Justiça. Por isso, Alexander Hollerbach afirma que “a ciência do direito está obrigada a valores fundamentais éticos e, no ponto mais alto, à ideia diretriz da justiça, que ela deve trazer à visão e fazer valer (HOLLERBACH, 2010, p. 14).

Nesta perspectiva, nas palavras de Luís Roberto Barroso, o pós-positivismo jurídico “inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as idéias de justiça e legitimidade” (BARROSO, 2009b, p. 328), ou seja, trata-se de uma reaproximação do Direito com os valores e com a Ética Jurídica, em busca de se atingir, ou pelo menos chegar o mais próximo possível da Justiça. Nesse sentido, Gustav Radbruch, já no início do séc. XX, afirmava que o Direito é uma ciência valorativa, não podendo a ideia de direito ser diferente da ideia de Justiça (RADBRUCH, 1997).

No mesma perspectiva, Ricardo Lobo Torres afirma que fora em meados do séc. XX, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, que emergiu o que se convencionou chamar de Pós-positivismo Jurídico ou não-positivismo. Segundo o autor, tal movimento surge com a retomada da Jurisprudência dos Valores, “doutrina que aproxima o direito da moral, reconhece a objetividade dos valores jurídicos e procura legitimá-los pelas vias epistêmicas e pragmáticas” (TORRES, 2009, p. 525).

O Pós-positivismo Jurídico se desenvolve a partir da ampliação cognitiva do Direito, em que se passou a entendê-lo como um sistema complexo

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que necessita relacionar-se com o ambiente e com as demais matérias do conhecimento humano, a fim de efetuar uma troca benéfica de conhecimentos, através de um sistema que envia e recebe informações de forma a corroborar para o melhor cumprimento de suas funções primordiais, sem ignorar as demais ciências, tornando jurídico aquilo que delas é essencial ao Direito.

O sistema pós-positivista do direito que emergira no século passado, ainda se encontra em constante desenvolvimento. Hoje, existem várias teorias da ciência jurídica que estão relacionadas à doutrina pós-positivista, tais como as teorias da norma jurídica propostas por Ronald Dworkin, Robert Alexy, Humberto Ávila etc., bem como as teorias dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, Luis Roberto Barroso afirma:

A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e a teoria dos direitos fundamentais [...] O pós-positivismo identifica um conjunto de ideias difusas que ultrapassam o legalismo estrito do positivismo normativista, sem recorrer às categorias da razão subjetiva do jusnaturalismo. Sua marca é a ascensão dos valores, o reconhecimento da normatividade dos princípios e a essencialidade dos direitos fundamentais. Com ele, a discussão ética volta ao Direito (BARROSO, 2009b, p. 327-344). Ante o exposto, pode-se afirmar que o pós-positivismo consiste na

superação do positivismo legalista, pois não busca a justiça da lei, mas a justiça do direito, que é muito mais amplo do que uma simples prescrição legal, isso porque, não se pode separar o Direito da Justiça, bem como não se pode reduzir a justiça ao simples preenchimento de um dever ser, nem reduzir o Direito a uma simples regra jurídica prescritiva.

15. CONSIDERAÇÕES FINAIS

1) O Jusnaturalismo contribuiu significantemente para o desenvolvimento do Direito, contudo com o movimento de positivação dos direitos naturais do final do séc. XVIII, o Jusnaturalismo se viu engessado, amarrado à legalidade e acabou sendo superado pelo positivismo jurídico.

2) O Positivismo Jurídico pretendeu criar um sistema jurídico perfeito, completo, que fosse capaz de resolver todos os casos de maneira rígida e formal.

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Acabou banalizando-se pela frieza da legalidade e afastando-se dos ideais da humanidade, servindo de justificativa para atos odiosos contra a raça humana.

3) Apesar árduas críticas ao modelo positivista, é consenso que, por causa do positivismo, o Direito avançou muito enquanto Ciência e, a partir da moldura de Hans Kelsen é que se pôde pensar nas complexas noções de sistema jurídico e entender que neste mundo existe uma linguagem que não pode ser desprezada pelo intérprete do Direito.

4) Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a Modernidade entra em crise e suas ideias passam a ser questionadas. Com isso surge a pós-modernidade, estruturada na globalização, na informatização e no neoliberalismo.

5) No âmbito jurídico emerge o pós-positivismo jurídico, doutrina ainda em construção que visa aproximar o Direito da Moral e da Justiça, pautada na efetivação dos direitos fundamentais, na proteção da dignidade da pessoa humana e na reestruturação da norma jurídica.

6) O positivismo jurídico não é a vertente jurídica da pós-modernidade. O Direito Pós-moderno e Direito Pós-positivista são fenômenos bem distintos, que pouco possuem em comum e, mesmo aquilo que possuem de comum, em essência são diferentes. O Direito Pós-moderno propõe um rompimento total com o positivismo jurídico e com os ideais jurídicos da modernidade, já no caso do Pós-positivismo Jurídico propõe-se a sua superação, entretanto preservando aquilo que de bom fora construído pelo Positivismo, com a correção e otimização dos instrumentos efetivadores dos direitos fundamentais do homem e com a valorização da Constituição.

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DA ESTRUTURA À FUNÇÃO DA ATIVIDADE EMPRESARIAL: A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

João ViCtor rozatti longhi212*

Sumário: 1. Noções introdutórias; 2. A relevância da função social para o ordenamento jurídico; 3. Função social da empresa; 3.1. Para além da função social dos contratos e da propriedade; 3.2. Substrato axiológico: as bases normativas da função social da empresa; 4.Raios de aplicação; 4.1.Incentivar o exercício da empresa; 4.2. Condicionar seu exercício; 5. Considerações finais. Referências.

1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

As mudanças por que passa o mundo atual parecem acelerar-se dia após dia. Se a economia industrial substituiu a agrária há séculos atrás, hodiernamente, por seu turno, vários setores vêm se adaptando às mudanças econômico-sociais e dentre eles a própria agricultura. Técnicas rudimentares vêm sendo substituídas por sofisticados processos de produção em larga escala também no setor primário.

A sociedade da informação, Era pela qual passamos segundo muitos, reflete-se na inserção do aparato técnico-científico também em áreas compreendidas sempre como invariavelmente jungidas à natureza213, ocasionando, outrossim, drásticos impactos culturais214 em seu bojo.

O Direito tampouco está imune a este processo. Ubi societas, ibi jus e vice versa, diz o velho brocardo romano. Vertido para sua vocação intrínseca enquanto ciência social aplicada, o Direito deve estar sempre atento às transformações.

2. A RELEVÂNCIA DA FUNÇÃO SOCIAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO

Pode-se dizer que vem da sociologia a idéia de função social do Direito como um todo. O Direito dos dias atuais não pode ser compreendido como um ramo científico isolado, um fim em si mesmo.

A ideia de função social perpassa os diferentes ramos da ciência jurídica penetrando em seus respectivos institutos. Dessa forma, a latere de se perquirir

212 *Professor Assistente-DE da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8670544472872110. 213 Cf. TOEFLER, Alvin. The third wave. New York: Banthan Books, 1980. p. 15. 214 Cf. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São 25. ed. Paulo: Saraiva, 2001. p. 23.

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acerca da função do Direito como um todo, mister se faz a imersão em cada um de seus microssistemas, analisando-se as consequências trazidas pela respectiva funcionalização de cada um deles.

A idéia de funcionalização dos institutos tradicionais ganha certo vulto no Direito Privado. Isto porque muitos institutos jurídicos privados durante algum tempo foram compreendidos sem alteração alguma. É o exemplo da obrigação. Vista por gerações de juristas como categoria neutra, a-histórica, a relação creditícia vem sendo repensada, principalmente à luz da noção da teoria da relação jurídica entre as situações subjetivas diversas.215

Dessa forma, a obrigação antes compreendida como rígido e estático liame entre credor e devedor ensejando direitos a este e deveres àquele passa a prever, v. g., a incidência de deveres de cooperação decorrentes do princípio da boa-fé objetiva216, fazendo com que não mais ocupem posições antagônicas os pólos da relação, mas sim que sejam parte integrante de um processo, cuja superação de cada um das fases visa ao adimplemento.217

No atual Código Civil brasileiro, a boa-fé objetiva encontra-se inserida, como princípio de interpretação dos negócios jurídicos nos art. 113 e, na teoria geral dos contratos, no art. 422218. No Código de Defesa do Consumidor, no art. 4º, inciso III, que trata do dever de informar e da proteção da boa-fé nas relações de consumo.

Jean-YVeS goFFi dá um passo adiante. Afirma que a sofisticação tecnológica hodierna faz com que cada vez mais interesses entrelacem-se mutuamente, ocasionando até mesmo a assunção, hoje, de deveres jurídicos para com as gerações futuras. Assim, supera o esquema da relação creditória baseada no consentimento para fundá-la no dever interesse protegido. É o caso das normas de proteção de bens ambientais, cada vez mais presentes em sede nacional e internacional.219

215 Cf. PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional: introdução ao direito civil constitucional. Ed. bras. organizada por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 903. 216 V. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Insuficiências, deficiências e desatualização do Código Civil na questão da boa-fé objetiva dos contratos. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro. v.1. n.1. p.3-12. jan./mar. 2000. passim. 217 Cf. COUTO E SILVA, Clóvis V. A obrigação como processo. Rio de Janeiro : FGV, 2007. p. 20.218 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.219 Cf. GOFFI, Jean-Yves. Le destinataire de l’obligation: le cas des génerations futures. Archives de philosophie du droit. París: Dalloz, t. 44, p. 233-240, 2000. apud HIRONAKA. Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das Obrigações: o caráter de permanência dos seus institutos, as alterações produzidas pela Lei Civil brasileira de 2002 e a tutela das gerações futuras. in HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Novo Código Civil - Interfaces no ordenamento jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, v. 1, p. 51-68. p. 67.

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E as transformações do direito das obrigações são só mais um exemplo das conseqüências do processo de funcionalização dos institutos de direito privado. Além dele, pode-se dizer que outro princípio vem alterando profundamente as bases axiológicas dos subssistemas do Direito Civil. Trata-se do princípio da função social, agora expressamente previsto em nosso Código Civil e em nossa Carta Magna. Três são as vertentes identificáveis normativamente no que concerne à aplicação do princípio da função social: função social da propriedade, função social dos contratos e a função social da empresa.

A propriedade, durante milênios, fora a pedra angular em muitas sociedades. Constituía verdadeira fonte de cidadania, instrumento legitimador de detenção do poder político. “A riqueza de um estrangeiro ou de um escravo não substituía, de modo algum, essa propriedade, ao passo que a pobreza não fazia com que o chefe de família perdesse seu lugar no mundo e a cidadania dele decorrente.”220 A propriedade gozava de status sagrado ao lado do nascimento, da morte.

Os reflexos jurídicos culminam no verdadeiro dogma que o instituto assume para o Direito Privado, mentalidade carregada até hoje por muitos juristas. Afirmar-se, dessa maneira, que a propriedade tem uma função social que lhe é inerente, positivada no rol dos direitos fundamentais, logo em seguida do próprio direito fundamental à propriedade, como na Constituição brasileira de 1988 fora um processo de longa construção histórica.

giSelda maria FernandeS noVaeS hironaKa e Silmara JunY Chinelado identificam lampejos de função social na propriedade em algumas limitações a seu exercício já na antiguidade.221 Entretanto, é na modernidade que raízes axiológicas parecem ser melhor delimitadas. Hoje, desde os primeiros reconhecimentos constitucionais do princípio da função social da propriedade222, o princípio já faz parte de inúmeros textos constitucionais em todo o mundo.

Por seu turno, também a função social dos contratos, hoje consagrada expressamente pelo Código Civil brasileiro no artigo 421, que, segundo guStaVo tePedino “definirá a estrutura dos poderes dos contratantes no caso concreto, e será relevante para se verifica a legitimidade das cláusulas contratuais que,

220 ARENDT, Hanna. A condição humana. 10. ed. São Paulo: Forense Universitária, 2008. p. 71-72.221 CHINELATO, Silmara Juny de Abreu; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Propriedade e posse: uma releitura dos ancestrais institutos. Em homenagem ao professor José Carlos Moreira Alves. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 4, n. 14, p. 79-114, 2003. p. 93.222 Cite-se a Constituição Mexicana de 1917 e a da República de Weimar de 1919 com o famigerado comando normativo do art. 153 que dispunha: “A propriedade obriga e seu uso e exercício devem ao mesmo tempo representar uma função no interesse social.”

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embora lícitas, atinjam diretamente interesses externos à estrutura contratual – cláusulas de sigilo, de exclusividade, de não concorrência, etc.”223

Frise-se, por derradeiro, que o sistema civilístico nacional parece realmente ter incorporado os princípios da função social dos contratos como corolário da nova atmosfera que perpassa as relações jurídicas na atualidade. Isto porque o parágrafo único do art. 2.035 afirma categoricamente que nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos (grifo nosso), parecendo-se, em exercício de interpretação sistemática, ser nula de pleno direito qualquer disposição negocial em tal sentido.

Finalmente, a terceira vertente da função social em nosso ordenamento: a Função Social da Empresa que, por constituir objeto específico de análise do atual excerto, merece ser esmiuçada em apartado.

3. FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

A terceira vertente da função social no direito privado constitui recente construção doutrinária que aos poucos vem sendo reconhecida legislativa e jurisprudencialmente. Conceito que, aliás, reflete a funcionalização de um instituto jurídico também recente se comparado com a propriedade e o contrato, essência do direito privado desde os seus primórdios. Trata-se da teoria da empresa, que, no Brasil, terminou consagrada com o advento do Código Civil de 2002, cujo escopo principal fora o de unificar o direito privado no país. Dessa forma, o Código Civil revogou expressamente a primeira parte do Código Comercial de 1850 restando-lhe apenas a disciplina do Comércio Marítimo.224

Preliminarmente, afirma-se que antes do advento do Código Civil, para a delimitação de sua função social, muitos se utilizaram do termo “empresa” sem o devido rigor técnico. Nessa auréola, há de se ressaltar que empresa, juridicamente, deve ser compreendida como uma atividade e não uma instituição em que se praticam os atos de comércio, como preteritamente compreendida. Importada da noção econômica, incorporam-se suas bases para a aferição de seu tratamento jurídico.

No direito italiano, em resumo, procurou-se definir a empresa, para seu tratamento legislativo após a unificação do Direito Privado em 1942 através dos

223 TEPEDINO, Gustavo. Notas Sobre a Função Social dos Contratos. in TEPEDINO, Gustavo; FACHIN Luiz Edson (coords.). O Direito e o Tempo: Embates Jurídicos e Utopias Contemporâneas — Estudos em Homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 398-405. p. 403.224 Art. 2.045. Revogam-se a Lei nº 3.071, de 1o de janeiro de 1916 - Código Civil e a Parte Primeira do Código Comercial, Lei nº 556, de 25 de junho de 1850.

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quatro perfis: a) o perfil subjetivo, que equipara a empresa como o empresário; b) o perfil funcional, que a compreende a partir da atividade empreendedora; c) o perfil patrimonial ou objetivo, em que o estabelecimento ocupada o papel central, e; d) o perfil corporativo, que enxerga a empresa como instituição.225

Por outro lado, não tardaram as críticas da noção que viria a ser positivada no Direito Italiano. E nessa esteira andou o Código Civil Italiano (art. 2082) que inspirou o atual tratamento pelo Código Civil Brasileiro optando apenas pela definição de empresário no artigo 966.

4. PARA ALÉM DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS E DA PROPRIEDADE

Antes de tudo, faz-se mister ressaltar, outrossim, o princípio da Função Social da Empresa, a ser extraído axiologicamente de nosso ordenamento, não se confunde com a função social dos contratos. Nos dizeres de enzo roPPo, “o contrato dá vida – como costuma dizer-se – a uma “instituição”, que absorve e transcende o próprio contrato.”226

Resta concluído que para se buscar a concretização da função social da empresa, deve-se invariavelmente superar sua ligação com o contrato e, por conseguinte, com sua função social.

Posto isto, urge, outrossim, segregar a Função Social da Empresa e Função Social da Propriedade ou do simples controle da instituição empresária. Sabe-se que, durante muito tempo, principalmente na primeira revolução industrial, o controle das instituições empresárias confunde-se com a pura e simples detenção dos meios de produção.

Este fora, por seu turno, o paradigma que fulcrou as normas de Direito comercial no início do século XX. Explica-nos FaBio Konder ComParato que tais normas não distinguiam o capitalista do empresário, tratando-os sob um mesmo regime jurídico, tal como o sócio e o comerciante individual. Não obstante, afirma que a concepção tradicional sucumbe às diuturnas maneiras de gestão e controle empresarial, cada vez mais complexas, mormente corporificadas sob o regime da sociedade anônima, instrumento jurídico ideal para robustas estruturas empresariais.227

Além disso, o condicionamento do exercício do poder de controle repercute não só nos interesses externos à sociedade, mas também no outro

225 Cf. ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Tradução de Fábio Konder Comparato. Revista de Direito Mercantil. São Paulo, n. 104, p. 108 - 126, out. – dez. 1996. passim. 226 ROPPO, Enzo. O contrato. Trad. De Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 2009. p. 306. 227 Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A reforma da empresa. Revista Forense, v. 290, a. 81, p. 9-20, abr.-jun. 1985. p. 16-17.

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extremo da cúpula social. Nesse diapasão, ganha maior relevância tanto a tutela jurídica dos interesses dos acionistas minoritários228 como também nas formas de participação dos colaboradores nas deliberações sociais.229

Conforme se verá, a função social da empresa e função social da propriedade partem de um mesmo ponto para tomarem rumos diversos. Logo, somente com a superação do paradigma da detenção da propriedade como pressuposto ao exercício da empresa é que é possível se delinear com clareza o formato da função social da atividade em si, não só do domínio.

5. SUBSTRATO AXIOLÓGICO: AS BASES NORMATIVAS DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

Delimitadas as diferenças entre a Função Social da Empresa e outras expressões do princípio da função social no direito privado, chega-se à análise dos valores que permitem a aplicação de seus postulados à atividade empresarial.

Sabe-se que a atual Constituição Federal consagra a livre iniciativa como um dos fundamentos da república (art. 1º, IV, in fine). Sendo um “valor” aquilo que exprime uma orientação em sentido normativo, indicando diretrizes para a conduta humana, afirma que a livre iniciativa, no Brasil, fica condicionada pelos valores sociais, dando ao Estado brasileiro um rumo de bem-estar social.230

Fundados na livre iniciativa e na valorização trabalho, outrossim, estruturam-se os princípios referentes à ordem econômica brasileira (art. 170 e ss., CRFB). Deles, para a extração do conteúdo normativo da função social da empresa destacam-se a função social da propriedade e a livre concorrência. “O ordenamento adota um sistema econômico de iniciativa privada, [...] mas condicionada essa faixa de liberdade, que envolve a própria liberdade de empresa, ao asseguramento de uma existência digna a todos e à observância da justiça social.231

O rol dos princípios setoriais do art. 170 dá um norte para o preenchimento de conteúdo do princípio da função social da empresa. Embora a livre iniciativa econômica tenha por conseqüência o estabelecimento de um regime econômico capitalista, o exercício da empresa não deve visar somente o lucro. E a

228 Cf. ROPPO, Enzo. Cit. p. 308. 229 Cf. TEUBNER, Günter. “Unitas multiplex”: a organização do grupo de empresas como exemplo. in Revista da escola de direito de São Paulo [Direito GV] da Fundação Getúlio Vargas, v. 1, n. 2, p. 77-110. jun-dez, 2005. p. 79.230 Cf. SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 6. ed. atual até a emenda 57, de 18.12.2009. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 35.231 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; BARTHOLO, Bruno Paiva. Função Social da Empresa. in GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord.). Função Social no direito civil. São Paulo: Atlas, 2007. p. 49.

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Carta Magna dá a pista para quais outros interesses sejam considerados, não exaustivamente. São eles os dos consumidores, da proteção do meio ambiente, dentre outros.

A Constituição Federal, ademais, faz menção expressa à função social da empresa. Trata-se do dispositivo que compões o art. 173, §1º, inciso I que versa sobre a empresa pública. Conforme nossa ordem econômica liberal, o Estado somente atuará positivamente na economia em casos pontuais, movido por relevante interesse público ou razões de segurança nacional.

O Código Civil de 2002 teve por escopo a unificação de direito privado no Brasil. E embora a Função Social da Empresa não esteja expressamente consagrada, o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal aprovou, na I Jornada de Direito Civil, o seguinte enunciado:

53 – Art. 966: deve-se levar em consideração o princípio da função social na interpretação das normas relativas à empresa, a despeito da falta de referência expressa.

Dessa forma, posto que o princípio da função social da empresa pode ser extraído hermeneuticamente de nosso sistema normativo, convém avançarmos na análise de algumas propostas de sistematização já esmiuçadas pela doutrina para que, por derradeiro, possa-se problematizá-la quanto à Empresa Agrária e os novos rumos do Direito Agrário na atualidade.

6. RAIOS DE APLICAÇÃO

Postas raízes valorativas do princípio da Função Social da Empresa, convém descermos em minúcias dos corolários determinam os deveres positivos e negativos dele decorrente. Conforme aviltado, robustece-se a sistematização feita por ViViane Perez para que, a posteriori, possamos aplicá-la às peculiaridades da empresa agrária.

7. INCENTIVAR O EXERCÍCIO DA EMPRESA

O primeiro corolário para a concretização da função social da empresa é o incentivo do exercício da empresa. Ou seja, tendo a atividade empresária uma razão de ser para a sociedade contemporânea, gerando empregos e possibilitando a circulação dos bens de produção e consumo, nada mais natural que o Direito crie mecanismos para que se preserve ao máximo sua consecução.

Alguns princípios decorrem dessa máxima. É o caso do chamado princípio da preservação da empresa, cujo significado é o de “preservar,

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sempre que possível, a empresa em razão de sua função social, geradora de riqueza econômica, emprego e renda, importante para o crescimento e o desenvolvimento social.”232

A jurisprudência brasileira vem levando a cabo sua concretização. Afinal, embora haja maior incidência quando se trata de regime de recuperação extrajudicial, judicial e falimentar233, em outros modos de dissolução da sociedade empresária e cessação da atividade empresarial, é possível visualizar sua aplicação.

Outro caso recorrente é o de retirada de sócio em que há pedido de dissolução da sociedade empresária e conseqüente cessação das atividades, costumeiramente negado por nossos tribunais.234

Outro ponto interessante é aquele levantado por FaBio Konder ComParato, para quem parece ser um paradoxo a idéia de o Estado isentar-se de sua função de concretizar direitos sociais, transferindo sua responsabilidade para entidades que necessariamente visam o lucro numa economia de mercado. As empresas visariam somente o lucro, portanto, seria uma falácia imputar à empresa deveres de se preocupar com interesses externos a ela, ou mesmo a ela intrínsecos, que não somente a desenfreada luta pelo aumento do capital.235

Entretanto, ViViane Perez apregoa que a função social é plenamente compatível com o lucro, visto que o desenvolvimento econômico dever ser perseguido, mas não a todo custo.236 Fato é que essa visão de que a empresa não tem função social versa-se ultrapassada dia após dia. Numa economia de mercado globalizada como a nossa é inaceitável afirmar, por seu turno, que a empresa apenas visa e deve visar o lucro, fazendo-se extremamente unilateral a primeira corrente.

Assim, conclui-se, com alFredo lamY Filho que a empresa é uma instituição essencial à sociedade capitalista atual.237 Por isso, hoje se fala em Responsabilidade Social, o que seria um comportamento ético da empresa, preocupando-se em seus atos de gestão com interesses a ela alheios ainda

232 AGÊNCIA SENADO. Os princípios que orientaram Tebet na análise da nova Lei de Falências. Publicado em 14 abr. 2004. Disponível em : http://www.senado.gov.br/agencia/verNotic ia.aspx?codNoticia=38237&codAplicativo=2&parametros=tebet+lei+falencias. Acesso em: 07 mar. 2010.233 Cf. TJRS - Apelação Cível nº 70025278110, Quinta Câmara Cível, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 18/02/2009. 234 Cf. TJRJ - Apelação cível 2007.001.63564 - Rel Des. SIRLEY ABREU BIONDI - Julgamento: 19/03/2008 - DECIMA TERCEIRA CAMARA CIVEL)235 Cf. COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social. in Revista dos Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 85, n. 732, p. 39-46, out. 1996. p. 45-46.236 Cf. PEREZ, Viviane. Cit. p. 210. 237 Cf. LAMY FILHO, Alfredo. Cit. p. 57.

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que pertençam a elementos internos a ela (como a garantia da dignidade dos colaboradores)238.

Porém, alerta-se para o fato de que isso não faz parte do conceito de função social da empresa. A responsabilidade social, não deve ser algo obrigatório, ainda que a sanção social, mercadológica dos que não a cumprem venha naturalmente quando aliada à imagem de sua marca.239 Compelir-se juridicamente o empresário à prática da responsabilidade social pode ocasionar o perigoso esvaziamento do princípio da função social, em que facilmente se apoderarão de um falso discurso ético para a indevida promoção da marca, ocultando as frequentes injustiças cometidas pelo abuso do poderio econômico.240

Dessa forma, para o incentivo normativo ao exercício da empresa não basta que se incentive a busca de uma atividade apenas vertida para o lucro. Mais do que fomentar a empresa é necessário que um Estado fulcrado nos valores da pessoa saiba qual empresa quer fomentar. Nesse diapasão o segundo corolário, de limitação de seu exercício.

8. CONDICIONAR SEU EXERCÍCIO

Para a sistematização do segundo corolário do princípio da função social da empresa imperioso que seja atividade empresarial sob dois ângulos diversos. Isto porque, conforme já aviltado, outros interesses que não só a busca pelo lucro deve ser almejados no manejo da atividade empresarial. Em outras palavras, afirma-se que há tanto interesses internos como externos merecedores de tutela pelo às luzes do ordenamento que pode ser compelido o empresário a tender no exercício de sua função.241

Nesse sentido, é ViViane Perez quem distingue os elementos exógenos e endógenos à empresa contidos na atuação condicionante da função social. Elementos endógenos corresponderiam às relações entre os agentes internos, tal como o respeito aos direitos trabalhistas e a consideração de interesses não só de sócios controladores, mas também sempre se garantindo os interesses dos minoritários, respeitando-se não somente a situação patrimonial, como credor dos benefícios nos limites de suas cotas, mas também da própria condição existencial de sócio.

Elementos exógenos, por sua vez, dizem respeito a três outros centros de interesses constitucionalmente condicionantes da ordem econômica nacional.

238 Cf. ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo; RIBEIRO, Ademar. A revolução do empresariado. in Revista de Direito Privado, ano 3, p. 216-225, jan.-mar. 2002. p. 222.239 Nesse sentido, PEREZ, Viviane. Cit. p. 212. e TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Cit. p. 48.240 Cf. TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 83.241 Cf. COMPARATO, Fábio Konder. Estado (cit.). p. 44.

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Ou seja, das relações com centros de interesses externos a empresa. São eles: Concorrencial, devendo a empresa ser exercida em correspondência à legislação correta242 além do respeito às regras ditadas pelo CADE243 dos consumidores244 e ambientais, buscando desenvolvimento sustentável e suportando riscos atinentes à propensão inovativa do ramo de atividade de que participam.245

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente trabalho, pôde-se apresentar de maneira sistematizada alguns aspecots acerca do conceito de função social da empresa agrária.

Sabe-se que a Constituição da República elevou a grau máximo a tutela da pessoa humana, extraindo daí toda a disciplina dos direitos fundamentais e sociais (art. 1º, III). Outrossim, o texto constitucional consagra espressamente a função social da empresa quando dispòe acerca da atividade empresarial empreendida exclusivamente pelo Estado.

Contudo, foi possível verificar de que maneira o sistema jurídico brasileiro consagra a função social da empresa como corolário de princípios constitucionais e de que maneira este valor é operacionalizado doutrinária e jurisprudencialmente.

Aquiescendo-se os valores que devem perpassar o ordenamento jurídico atualmente, procurou-se compor subsídio à interpretação da atividade empresarial como aquela que deve atender os escopos de produzir e distribuir bens fundamentais à população.246

242 Ressalta-se o Código de Propriedade Industrial – lei 9279/96 – Art. 2º, V e 195 e ss.243 Lei 8884/94.244 Cf. MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 2. ed. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. pp. 103-104. 245 Cf. VINEY, Geneviève. As tendências atuais do direito da responsabilidade civil. in TEPEDINO, Gustavo (org.). Direito civil constitucional: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008. p. 55.246 Frise-se que esta noção não está imune a críticas. Afinal, Flavia Trentini salienta que parte significante da doutrina não restringe a empresa agrária àquela que tem como escopo final a produção de alimentos. Por essa razão, não é apenas a “empresa agroalimentar” que carece de proteção especial e, portanto, cumpre função social. Cf. TRENTINI, Flávia. Anotações feitas pelo autor durante a Conferência de trabalhos da IV Semana Jurídica DA Faculdade de Direito da USP de Ribeira Preto. Ribeirão Preto: USP, 2011. Contudo, a discussão não está fechada. Apenas introduz críticas à conclusão desta pesquisa, de que o princípio da função social irradia todo o ordenamento, orientando políticas públicas, produção legislativa e a jurisprudência. Tratar grandes conglomerados industriais que utilizam matérias primas agrícolas para a produção de bens de consumo de segunda necessidade em pé de igualdade formal com aquelas que desenvolvem atividades empresariais de produção de gêneros alimentícios parece, a princípio, consagrar a igualdade formal em detrimento da igualdade material. Logo, a priori, parece distanciar-se dos

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Afirma-se que nos dias de hoje o intérprete é instado a extrair dos princípios constitucionais as respostas às demandas sociais. Assim, o jurista do século XXI mais deve conhecer as normas do que aplicar as regras. E embora o sistema jurídico brasileiro careça de regras mais sólidas acerca de um tratamento diferenciado à empresa enquanto atividade essencial à sociedade, do exposto, infere-se conclusivamente que o princípio da função social da empresa traz a função contemporânea à estrutura jurídica da atividade empresarial.

valores consagrados pela Constituição da República e até mesmo por Convenções e Tratados de Direitos Humanos.

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EL CONCEPTO DE INVERSIÓN BAJO EL SISTEMA INTERNACIONALDE PROMOCIÓN Y PROTECCIÓN DE INVERSIONES FORÁNEAS

IVette eSiS V.247

1. INTRODUCCIÓN

El objetivo en el que convergen los más de 2500 Acuerdos Bilaterales de Promoción y Protección de Inversiones (APPRIs) concluidos en todo el mundo, además de los tratados multilaterales que en esta materia han sido ratificados por diversos países, consiste en brindar seguridad jurídica tanto al inversionista como al Estado receptor para que fluya, en el ámbito transfronterizo, la circulación de capitales. La inversión, como interés protegido por estos instrumentos convencionales, por un lado, permite al Estado receptor reducir la pobreza y mejorar su economía. Por otro, brinda al inversionista la oportunidad de abrir nuevos mercados y obtener lucro por sus actividades248.

Ante la ausencia de una definición del término inversión por parte del Convenio sobre Arreglo de Diferencias relativas a Inversiones entre Estados y nacionales de otros Estados de 1965 (en lo adelante, Convenio de Washington), los convenios suscritos en la materia, la doctrina y la propia práctica arbitral en materia de inversión, han ido desarrollando una calificación que, sobre este vocablo, ha venido evolucionando en el tiempo. En este artículo pretendemos identificar los criterios convencionales, doctrinales y prácticos bajo los cuales se ha definido una inversión susceptible de amparo bajo el sistema internacional de promoción y protección de inversiones.

2. APROXIMACIÓN DOCTRINAL DEL TÉRMINO INVERSIÓN

Tanto el CW y el Informe de los Directores Ejecutivos mantienen silencio en relación con el significado del vocablo “inversión” con el propósito de brindar flexibilidad al instrumento multilateral. En particular, el referido Informe se limita a indicar lo siguiente:

247 Doctora en Derecho, Universidad de Valencia (España). Diploma de Estudios Avanzados (DEA) Derecho Administrativo y Procesal, Universidad de Valencia (España). Magister Scientiarum en Derecho Internacional Privado y Comparado, Universidad Central de Venezuela (UCV), Abogada, Universidad del Zulia (LUZ). Profesora de Derecho Internacional Privado y Derecho Comparado y abogada en ejercicio. El presente artículo resume algunas ideas planteadas en mi tesis doctoral “Expropiación de Inversiones Foráneas: Potenciales Litigios y Arbitraje de Inversión”.248 Dugan, C.; Wallace, D.Jr.; Rubins, N. y Sabahi, B., Investor-State Arbitration. Oxford University Press, New York, 2008, pp. 6-9.

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“No se ha intentado definir el término “inversión”, teniendo en cuenta el requisito esencial del consentimiento de las partes y el mecanismo mediante el cual los Estados contratantes pueden dar a conocer de antemano, si así lo desean, las clases de diferencias que estarán o no dispuestos a someter a la jurisdicción del Centro (artículo 25.4)”249.

Esta ausencia de definición exige al operador jurídico y, particularmente a cada Tribunal Arbitral, el análisis de las calificaciones contenidas en otras fuentes igualmente relevantes en este ámbito. Nos referimos a los APPRIS, la legislación del Estado receptor, la doctrina y las orientaciones que otros paneles de árbitros han realizado en casos similares.

En un principio se consideraba que la inversión era un término referido exclusivamente a bienes propiedad de personas físicas o jurídicas, nacionales de otros Estados250. Con el transcurrir del tiempo, la interpretación de la palabra “inversión” fue ampliándose ante la necesidad de los Estados exportadores de proteger no sólo los bienes tangibles, sino también a los bienes intangibles, Derechos contractuales, así como las licencias o permisos necesarios para la legal y efectiva operación de la inversión en los Estados receptores de dicho capital251. Así, la evolución de la definición de este término ha dado lugar a varias interpretaciones desde el punto de vista económico y, también, desde el punto de vista jurídico.

1) En primer lugar, desde el contexto económico, una inversión implica un beneficio pecuniario, que tiene un valor determinado y genera dividendos en un tiempo prudencial. Dichos dividendos pueden ser estimables, en atención a complicadas fórmulas contables y al análisis económico del proyecto, pero el inversor no tiene total certeza de obtenerlos. Es uno de los riesgos que asume252. Este concepto constituye, además, una fórmula que permite distinguir una inversión foránea directa de una inversión portafolio, siendo ésta última aquélla que no genera operaciones de largo plazo253.

2) Ahora bien, bajo la perspectiva jurídica, la calificación del término “inversión” dependerá en gran medida del instrumento convencional o legal aplicable, atendiendo a la fragmentada y enorme red de APPRIs y de

249 A.A.V.V., Informe de los Directores Ejecutivos acerca del Convenio de Washington. Texto disponible en http://icsid.worldbank.org, p. 44.250 Sornarajah, M. The International Law on Foreign Investment. 3º ed. Cambridge University Press, Cambridge, 2010, pp. 7-9.251 Sornarajah, M. The International Law on Foreign…, cit., pp. 12-15.252 Bĕlohlavek, A., Arbitration, Ordre Public and Criminal Law (Interaction of private and public international and domestic law). Vol. I. Taxon, Kiev, 2009, pp. 383-385.253 Dolzer, R. y Schreuer, C., Principles of International Investment Law. Oxford University Press, Oxford – New York, 2008, p. 60.

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ordenamientos jurídicos nacionales. Por tanto, se hace necesario examinar las definiciones contenidas en algunos convenios multilaterales, los APPRIs y algunas legislaciones locales.

3. APROXIMACIÓN CONVENCIONAL

Los instrumentos convencionales regionales y bilaterales contienen sendas calificaciones del vocablo “inversión”. Un concepto amplio que alude no sólo a los bienes tangibles, donde el inversionista, como propietario, tiene el uso, goce y disposición sobre éstos. También se extiende a bienes intangibles, Derechos contractuales, licencias o permisos necesarios para la legal y efectiva operación de la inversión.

1) En primer lugar, centrándonos en el nivel de convenios multilaterales, el Tratado de la Carta de Energía (TCE) establece, en su artículo 1.6, una definición del vocablo “inversión”, como:

“Cualquier clase de activo, controlado directa o indirectamente por un inversor, incluyendo bienes tangibles e intangibles, movibles o no, y cualquier clase de propiedad entregada en calidad de arrendamiento financiero; la compañía, las acciones o cualquier clase de participación en ella o en joint ventures contractuales, reclamos en dinero, propiedad intelectual, así como cualquier clase de Derecho derivado de licencias o permisos otorgados en materia de energía”.

Por su parte, el Acuerdo ASEAN en materia de protección de inversiones y que vincula a Brunei, Filipinas, Indonesia, Malasia, Singapur y Tailandia, define, en su artículo 1.3, como inversión a cualquier tipo de activo, movible o no, acciones en sociedades mercantiles, participación en contratos de asociación, reclamos judiciales por la obtención de dinero, propiedad intelectual y concesiones.

Junto a ello, debemos mencionar el artículo 1 del Protocolo de Colonia, elaborado en el marco del MERCOSUR, el cual establece también una calificación autónoma del término inversión como todo tipo de activo propiedad directa o indirecta de un inversor proveniente de una de las Partes contratantes. A tal efecto, presenta un listado a título enunciativo de lo que puede calificar como inversión:

“… Incluye en particular, aunque no exclusivamente:a) la propiedad de bienes muebles e inmuebles, así como los demás derechos reales tales como hipotecas, cauciones y derechos de prenda;

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b) acciones, cuotas societarias y cualquier otro tipo de participación en sociedades;c) títulos de crédito y derechos a prestaciones que tengan un valor económico; los préstamos estarán incluidos solamente cuando estén directamente vinculados a una inversión específica;d) derechos de propiedad intelectual o inmaterial, incluyendo derechos de autor y de propiedad industrial, tales como patentes, diseños industriales, marcas, nombres comerciales, procedimientos técnicos, know-how y valor llave;e) concesiones económicas de derecho público conferidas conforme a la ley, incluyendo las concesiones para la búsqueda, cultivo, extracción o explotación de recursos naturales”.

2) Contamos con las definiciones contenidas en los APPRIs sobre el término “inversión”, tal como lo indica la calificación autónoma del APPRI Modelo de Estados Unidos de 2012254. Bajo dicho concepto, se identifica como inversión cualquier activo controlado directa o indirectamente por el inversor una empresa, acciones, cuotas de participación, derechos contractuales, bonos, empréstitos y títulos valores, concesiones, construcciones, producción, propiedad intelectual, licencias, autorizaciones, permisos y demás fórmulas acordadas por el Derecho del Estado receptor. Asimismo, el APPRI concluido entre el Reino de España y la República de Venezuela contiene una lista de lo que puede calificar como inversión. Así, su artículo I.2 refiere:

“Por inversiones se designa todo tipo de activos, invertidos por inversores de una Parte Contratante en el territorio de otra Parte Contratante y, en particular, aunque no exclusivamente, los siguientes:a) Acciones, títulos, obligaciones y cualquier otra forma de participación en sociedades;b) Derechos derivados de todo tipo de aportaciones realizadas con el propósito de crear valor económico; se incluyen expresamente todos aquellos préstamos concedidos con este fin;c) Bienes muebles e inmuebles, así como otros derechos reales tales como hipotecas, derechos de prenda, usufructos y derechos similares;d) Todo tipo de derechos en el ámbito de la propiedad intelectual, incluyendo expresamente patentes de invención y marcas de comercio, así como licencias de fabricación, conocimientos técnicos y fondos de comercio;

254 Texto disponible en: http://www.state.gov/documents/organization/188371.pdf 20/04/2012 [Fecha de visita: 23/04/2012].

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e) Derechos para realizar actividades económicas y comerciales otorgados por la Ley o en virtud de un contrato, inclusive los relacionados con la prospección, cultivo, extracción o explotación de recursos naturales”255.

4. APROXIMACIÓN DEL TÉRMINO “INVERSIÓN” CONFORME AL DERECHO DEL ESTADO RECEPTOR

Junto a la definición convencional del vocablo “inversión”, la doctrina también ha recomendado la revisión del Derecho del Estado receptor a los fines de determinar si el bien constituye –realmente- una propiedad bajo dicho ordenamiento jurídico. Y, de ser así, verificar si dicha propiedad está amparada bajo la protección brindada por el convenio multilateral o bilateral que resulte aplicable al caso.

Generalmente la inversión foránea se articula a través de la adquisición de bienes y Derechos de carácter patrimonial. A su vez, esos activos e intereses están regulados por el ordenamiento jurídico del lugar donde se ubican256. Incluso, cuando la inversión no se desarrolla expresamente en el Estado receptor ni tiene presencia física en él se exige que, al menos, tenga conexión con dicho Estado por su contribución al desarrollo socio-económico.

Tanto en los convenios multilaterales como en los APPRIs, la ausencia de normas materiales que permitan identificar la existencia, la clasificación, la extensión y la extinción de la propiedad257. Generalmente en sede convencional sólo se limitan a remitirse a la legislación del Estado anfitrión que identifica la legalidad o no de la inversión258. En consecuencia, el operador jurídico debe analizar las normas del Derecho del Estado receptor, a los fines de determinar

255 Acuerdo entre el Reino de España y la República de Venezuela para la promoción y protección recíproca de inversiones, publicado en el Boletín Oficial Español Nº 245, de fecha 13/10/1997. Texto disponible en: http://www.sice.oas.org/Investment/BITSbyCountry/BITs/VEN_Spain_s.pdf [Fecha de visita: 15/05/2011].256 Douglas, Z., The international law of investment claims. Cambridge University Press, Cambridge, 2009, p. 52. 257 McLachlan Q.C., C., Shore, L. y Weiniger, M., International Investment Arbitration. Oxford University Press, Oxford – New York, 2008, p. 69. Véase también Sornarajah, M. The International Law on Foreign…, cit., p. 224. Respecto a la importancia de revisar el orden jurídico del Estado anfitrión, véase: Salacuse, J. W., The Law of Investment Treaties. Oxford University Press, Oxford - New York, 2010, p. 167.258 García Rodríguez, I., La protección de las inversiones exteriores (Los acuerdos de promocion y protección recíproca de inversiones celebrados por España). Tirant lo Blanch, Valencia, 2005, pp. 159-160. Véase también Shepston Overly, M. «When private stakeholders fail: Adapting expropriation challenges in transnational tribunals to new governance theories», en: Ohio St. Law Journal, No. 71. Ohio, 2010, p. 350 (disponible en la base de datos Hein online, fecha de visita: 01/04/2011).

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la existencia o no de la propiedad que es reclamada por el inversor foráneo259.Esta tarea de identificación de la propiedad conforme al orden jurídico del

Estado anfitrión comprende el examen de su normativa en varios ámbitos. Nos referimos a la legislación de índole laboral, administrativa, financiera, societaria y fiscal existente en dicho país260. Esto obedece a que cada país articula, conforme a su propio orden jurídico, los vehículos corporativos o societarios para atraer la inversión extranjera. Y, para no desequilibrar la balanza de pagos, el Estado receptor puede ofrecer al inversionista, en aras de que éste último pueda repatriar el capital invertido, una serie de beneficios colaterales a la inversión: incentivos fiscales, laborales y crediticios. Estos beneficios, de acuerdo a las previsiones de ciertos APPRIs, constituyen parte de la inversión foránea261.

A efectos de completar el examen de identificación de la propiedad de acuerdo al orden jurídico del Estado receptor y, al mismo tiempo, dada la vinculación entre los bienes (sobre todo, los tangibles) y el territorio del país donde se encuentran ubicados, la doctrina también recomienda el examen del sistema de Derecho Internacional Privado del país anfitrión de la inversión262.

5. DEFINICIÓN DEL TÉRMINO “INVERSIÓN” EN LA PRÁCTICA ARBITRAL

Las definiciones en sede convencional bilateral del término inversión son tomadas muy en cuenta por los Tribunales Arbitrales en la práctica, dado que dichos textos constituyen la muestra de la voluntad de los Estados plasmadas en estos instrumentos internacionales. Pero también observan –en ciertos casos- el ordenamiento jurídico del Estado receptor.

La verificación de si, efectivamente, la controversia entre el Estado y el inversor extranjero versa sobre un problema suscitado en el marco de una inversión no siempre resulta tarea fácil para cada panel de árbitros. Citamos, a continuación, algunos asuntos que nos orientan respecto a la interpretación del término inversión en la práctica y, especialmente, sobre la creación de ciertos parámetros de identificación del referido vocablo en el marco de la misma.

1) En primer lugar, nos referimos al asunto Fedax N.V. v. Venezuela (1997)263 el cual constituye un importantísimo precedente. En este caso la demandante, una compañía constituida y domiciliada en la Isla de Curaçao (que, para ese momento, formaba parte de las Antillas Neerlandesas), reclamó a la República de Venezuela el pago de unos instrumentos de crédito denominados notas promisorias, emitidas por ésta última, y endosadas a favor de la primera.

259 Douglas, Z., The international law of investment…, cit., p. 171.260 García Rodríguez, I., La protección de las inversiones exteriores…, cit., p. 160.261 García Rodríguez, I., La protección de las inversiones exteriores…, cit., pp. 219-220. 262 Douglas, Z., The international law of investment…, cit., p. 54.263 Fedax, N.V. v. Venezuela, Laudo sobre Jurisdicción de fecha 11/07/1997, Caso No. ARB/96/3.

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Venezuela objetó la jurisdicción del Tribunal Arbitral al señalar que el término inversión, de acuerdo al principio de buena fe, debe atender al significado contenido en los términos del CW, en atención a su objeto y propósito. Las notas promisorias no calificaban, en su opinión, como una inversión directa toda vez que no involucraron la transferencia de recursos durante un largo periodo de tiempo, con el objetivo de adquirir activos en el territorio del Estado receptor. Además, dicha inversión nunca llegó a desarrollarse en Venezuela, sino en el exterior.

El Tribunal Arbitral aclaró que las notas promisorias son instrumentos por medio de los cuales se declara por escrito la existencia de un crédito. Fueron en total 6 notas promisorias suscritas por Venezuela para reconocer su deuda por los servicios prestados bajo un contrato celebrado con la compañía Industrias Metalúrgicas Van Dam, C.A. Y, bajo tales circunstancias, la República recibió un crédito por el monto de esas notas pagaderas en un tiempo específico y con la consecuente obligación de pagar intereses.

De acuerdo al artículo 5 del APPRI entre Venezuela y el Reino de los Países Bajos, se incluye bajo la categoría de “inversión” a los instrumentos de crédito y las transacciones efectuadas con ocasión de éstos. Asimismo, la Ley venezolana de crédito público vigente para la época definía que este tipo de operaciones como de interés público, toda vez que involucraban necesidades gubernamentales por lo cual se excluían de las propias de la actividad comercial ordinaria.

Las notas promisorias son instrumentos separados e independientes de la relación contractual que dio origen a la transacción de las partes. Emitidas en dólares americanos, circulan en el mercado internacional y pueden ser endosadas a favor de personas físicas o jurídicas foráneas, quienes se convierten automáticamente en beneficiarios. Por tal motivo, los créditos y los instrumentos financieros no son físicamente transferidos desde el territorio del país de origen. El crédito otorgado al deudor que, en este caso, fue la República, fue utilizado para financiar proyectos en pro del interés nacional y satisfacer las necesidades gubernamentales. Al considerar tales notas como inversión, el Tribunal Arbitral afirmó su jurisdicción.

Un aspecto interesante que planteó este Tribunal fue el análisis de ciertos elementos que permiten identificar la existencia de una inversión:

a) Que tenga una duración cierta; b) Que regularmente arroje beneficios; c) Que enfrente riesgos para el inversionista; d) Que sea importante y determinante para el desarrollo del Estado receptor.

Además de atender a los requerimientos propios contenidos en el APPRI aplicable, hoy día este análisis se considera un “test” ineludible para los

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tribunales arbitrales que, en materia de inversión, se constituyan en el futuro264. 2) En segundo lugar, citamos un caso importante para la definición

del término inversión: Tokio Tokeles v. Ucrania (2004)265. De acuerdo al APPRI Lituania - Ucrania es calificada como tal cualquier bien propiedad del inversionista en el territorio de uno de los Estados parte, de acuerdo a la legislación especial en la materia del país receptor. El Estado Ucraniano alegaba como defensa que la inversión realizada por la parte demandante no estaba amparada bajo el citado acuerdo bilateral, toda vez que no demostró que el capital invertido procedía de Lituania. El Tribunal Arbitral consideró que el CW estipula que el problema objeto del arbitraje verse sobre una inversión internacional. Sin embargo, no exige que la inversión sea financiada por parte de un capital de un específico origen y, por tanto, no es requisito para determinar la jurisdicción del Tribunal Arbitral.

La otra defensa alegada por el Estado Ucraniano fue que la inversión fue realizada no estuvo conforme a la legislación vigente, por cuanto hubo errores en los documentos constitutivos de dicha inversión. El Tribunal dictaminó que la subsidiaria había obtenido los permisos necesarios para operar legalmente en Ucrania y durante 8 años estuvo registrada como una inversión lituana en dicho país. Según el Tribunal, tomar en consideración y estudio el alegato de la demandada, requeriría examinar detalladamente los procedimientos administrativos del Derecho ucraniano para excluirla o no como una inversión sobre la base de los referidos errores y, hacerlo, en definitiva, sería inconsistente con el propósito y objeto del CW266.

3) En tercer lugar y a diferencia del asunto anterior, nos referimos al caso Salini y otros v. Marruecos (2001)267, en el cual el Tribunal Arbitral examinó la propiedad del inversionista conforme al ordenamiento jurídico del Estado receptor. El problema entre los inversionistas italianos y el Reino de Marruecos se suscitó por el reclamo que los primeros efectuaron ante una compañía propiedad del segundo, por el impago de una serie de conceptos que los demandantes tuvieron que sufragar en la construcción de un tramo de 50 kilómetros de la autopista que comunica las ciudades de Rabat y Fez.

Los inversores alegaban que, bajo las previsiones del APPRI concluido entre Italia y Marruecos, el derecho a una indemnización por el referido impago constituía un beneficio económico resultante de una inversión y, por ende,

264 Dolzer, R. y Schreuer, C., Principles of international investment… cit., pp. 68 y ss. 265 Tokios Tokeles v. Ucrania, Caso No. ARB/02/18, Laudo sobre jurisdicción de fecha 29/04/2004, párrafos 74 al 82. 266 Tokios Tokeles v. Ucrania..., cit., párrafo 86.267 Salini Costrutorri S.p.A and Italstrade S.p.A v. Marruecos, Caso No. ARB/00/4, Decisión sobre Jurisdicción de fecha 23/07/2001, párrafos 30 y ss.

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calificaba como inversión. El Reino de Marruecos refutó este alegato señalando que la definición convencional del vocablo “inversión” debía ser interpretada conforme a las leyes y regulaciones marroquíes, siguiendo la solución dispuesta en el artículo 1.e) del referido APPRI268.

El panel de árbitros señaló, atendiendo al criterio presentado por la parte demandante, que la remisión al ordenamiento jurídico marroquí debe efectuarse únicamente a los efectos de identificar la legalidad o no de la inversión. De esta forma, se asegura que el APPRI protege sólo la inversión reconocida como propiedad legalmente adquirida en el Estado anfitrión. En tal sentido, el Tribunal Arbitral afirmó:

“The Tribunal cannot follow the Kingdom of Morocco in its view that paragraph 1 of Article 1 refers to the law of the Host State for the definition of investment. In focusing on ‘the categories of invested assets (…) in accordance with the laws and regulations of the aforementioned Party’, this provision refers to the validity of the investment and not to its definition. More specifically, it seeks to prevent the Bilateral Treaty from protecting investment that should not be protected, particularly because they would be illegal”269.

4) En cuarto lugar, citamos el caso Ynceysa Vallisoletana, S.L. vs. El Salvador (2006)270. Llama la atención el estudio desarrollado por el panel de árbitros respecto al tipo de inversión protegida por el APPRI aplicable al caso. En esta ocasión, el Tribunal Arbitral al analizar las previsiones del instrumento convencional identificó que el APPRI sólo ampara a aquellas inversiones legalmente realizadas conforme al Derecho salvadoreño. Aunque la demandante de nacionalidad española reclamaba la expropiación de sus activos, el panel de árbitros consideró que no había realizado sus operaciones en forma lícita. Por tanto, sus activos no calificaban como una inversión, toda vez que el APPRI la excluye de su ámbito de aplicación material.

268 El texto del artículo 1.e) del APPRI concluido entre Italia y Marruecos expresamente señala: “Per “investimento” si intende, indipendentemente dalla forma giuridica prescelta e dall’ordinamento giuridico di riferimento, ogni bene investito, prima o dopo l’entrata in vigore dei presente Accordo, da persone fisiche o giuridiche, compreso il Governo di una Parte contraente, nel territorio dell’altra Parte Contraente, in conformità delle leggi e dei regolamenti di quest’ultima. In tale contesto di carattere generale il termine “investimento” include principalmente ma non esclusivamente: e) e. ogni diritto di natura economica conferito per legge o per contratto, nonché ogni licenza e concessione rilasciata in conformità a vigenti disposizioni per l’esercizio di attività economica, comprese quelle dì prospezione, coltivazione, estrazione e sfruttamento di risorse naturali”. Texto disponible en: http://www.unctad.org/sections/dite/iia/docs/bits/italy_marocco_it.pdf 269 Salini v. Marruecos…, cit., párrafo 46.270 Ynceysa Vallisoletana, S.L. vs. El Salvador. Caso No. ARB/03/6, Laudo arbitral de fecha 02/08/2006, párrafos 145, 147 y 263.

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5) Finalmente, otro caso importante y de reciente data lo constituye el asunto Cemex Caracas Investments B.V y Cemex Caracas II Investments, B.V. v. Venezuela (2010), relativo a la nacionalización de las compañías dedicadas a la producción de cemento. En este asunto, la calificación del término inversión en el APPRI entre Venezuela y el Reino de los Países Bajos fue fundamental.

La parte demandada argumentó que las demandantes no eran propietarias directas de los activos ubicados en Venezuela y, por tanto, no calificaba como inversión directa contemplada dentro del ámbito de aplicación del referido convenio bilateral. El Tribunal Arbitral desestimó dicho alegato al señalar:

“…Cuando en el TBI se mencionan las inversiones “de” nacionales de la otra Parte Contratante, ello significa que esas inversiones deben pertenecer a dichos nacionales a fin de estar comprendidas en el Tratado. Pero ello no entraña que dichos nacionales deban tener la propiedad directa de esas inversiones. Análogamente, cuando en el TBI se menciona a las inversiones hechas “en” el territorio de una Parte Contratante, todo lo que exige es que el lugar en que se realice la misma inversión se encuentre en ese territorio. Ello no entraña que esas inversiones deban ser hechas “directamente” en dicho territorio”271.

6. CONCLUSIONES

Del análisis de estos asuntos que hemos referido podemos puntualizar que, en definitiva, la interpretación que hacen los distintos Tribunales Arbitrales resulta muy amplia. Son calificados como inversión los activos de propietarios indirectos, como muestra el asunto Cemex. Incluso, si el activo circula en el mercado internacional, sin entrar al Estado receptor y, a pesar de ello, genera importantes beneficios para éste último, tal como lo reseña el caso Fedax, también constituye una inversión.

Tanto el asunto Fedax como el asunto Salini, los Tribunales Arbitrales identificaron un test para determinar la existencia de una inversión, el cual comprende no sólo el análisis del tipo de bien tangible o intangible que posea el inversionista, sino también el riesgo que asume el inversionista, la duración del proyecto, la contribución tecnológica – física – operacional que se despliega así como la contribución al Estado receptor, quien la acepta como legalmente constituida bajo su propia legislación nacional.

Si bien la doctrina ha afirmado la importancia del análisis sobre la existencia, el contenido y la extinción de un bien, para calificarlo como

271 Cemex Caracas Investments B.V y Cemex Caracas II Investments, B.V. v. Venezuela, Caso No. ARB/08/15, Laudo sobre jurisdicción de fecha 30/12/2010, párrafo 157.

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propiedad del inversor extranjero de acuerdo al Derecho del Estado anfitrión, la práctica nos demuestra una serie de soluciones diversas que ponen de manifiesto la ausencia de una línea argumental unitaria sobre este relevante punto.

Para algunos Tribunales Arbitrales la calificación que debe realizarse de una propiedad como inversión debe atender primariamente al orden jurídico del país anfitrión o, al menos, demostrar conexión con éste. Como sucedió en el caso Fedax, los títulos valores se consideraron propiedad y, por ende, inversión, no en función del lugar de su ubicación, sino conforme a las implicaciones económicas y a la contribución que éstos podían realizar al Estado receptor, de acuerdo a las propias previsiones del Derecho venezolano.

Debemos tener también presente que los Tribunales Arbitrales poseen un alto grado de discrecionalidad para identificar si la propiedad reclamada constituye una inversión en sede convencional bilateral. La solución contenida en cada APPRI orienta al operador jurídico en este estudio, tal como nos demuestra el asunto Inceysa Vallisoletana. En dicho caso, el APPRI establece claramente que toda inversión puede recibir su amparo siempre que sea legalmente realizada en el Estado anfitrión. Sin embargo, en los otros asuntos que mencionamos como Cemex, los paneles de árbitros interpretaron los APPRIs aplicables en atención a que ninguno de ellos imponía restricciones para calificar como inversión los aportes de capital a las compañías, constituidas en el Estado receptor, y con quienes éste último había celebrado contratos de concesión.

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LA SITUACIÓN LEGISLATIVA ARGENTINA FRENTE ALOS MECANISMOS ALTERNATIVOS DE RESOLUCIÓN DE CONFLICTOS

marta g. Pardini272

1. INTRODUCCIÓN

En ocasión de presentar mi anterior trabajo en UNICURITIBA273, se realizaron algunas apreciaciones generales sobre la situación del Derecho societario en Argentina y, fundamentalmente, sobre el estado de conflictividad por el que atraviesan muchas de las sociedades comerciales que funcionan en nuestro país, teniendo en consideración las características esenciales de las mismas, las particularidades que revisten su constitución y estructura, la elección del tipo social y la conformación personal, entre otros rasgos distintivos.

Se advirtió oportunamente que es mayoritaria en el mercado la actuación de las sociedades anónimas, de las cuales más del noventa y cinco por ciento reviste la condición de sociedad cerrada o “de familia”, y un importante porcentaje –que puede llegar a superar la tres cuartas partes de esa masa de sociedades- lo constituyen sociedades de dos socios, que cuentan con capital social mínimo, directorios unipersonales y carecen de sindicatura u órgano de fiscalización.

Por tanto, no es difícil concluir que estas sociedades representan el mayor entramado de estructuras que explotan emprendimientos de pequeña, mediana y en muchos casos también de gran envergadura. Significan indudablemente una parte esencial de la economía argentina, representan un aporte sustancial al Producto Bruto Interno y emplean en conjunto una gran cantidad de trabajadores hasta absorber cifras realmente de importancia274.

Esa relación con la economía nacional es similar en otros países americanos y europeos, en los cuales la participación de las mismas en las cifras de sus respectivos PBI oscila entre el 70 y el 99%, por lo que se trata evidentemente de un fenómeno que debe ser atendido con toda prioridad por

272 Abogada por la Universidad de Buenos Aires (UBA), Profesora de grado y posgrado, Universidad de Buenos Aires (UBA), Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales (UCES), Universidad Argentina de la Empresa (UADE). Senior Executive Program, ESADE Business School, Barcelona, España. Doctoranda Universidad de Valencia, España. Especialista en Derecho Societario273 “Algunas consideraciones sobre el Derecho Societario Argentino”, Revista Jurídica, v.2 n° 29 (2012).274 Sin contar el aumento que tuvo en los últimos años el empleo público en Argentina, se puede decir que hasta el año 2008, las empresas a cargo de sociedades anónimas concentraban casi el 70% del empleo útil.

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los Estados, dentro de sus políticas públicas y de los programas de gobierno que atiendan a proteger esa economía, brindando a toda la ciudadanía que participa de la misma –representada por los socios de las sociedades titulares de dichas empresas, los trabajadores, los terceros con los que se vinculan (clientes, proveedores, competidores, etc.), las instituciones bancarias con las que operan, etc.-, las herramientas necesarias para un desarrollo del sistema cada vez mejor.

Sin lugar a dudas, el normal funcionamiento de las sociedades comerciales consideradas una base fundamental del progreso de un país, debe alcanzarse a través de políticas adecuadas, de legislaciones consistentes y de una serie de mecanismos aptos para resolver, en su caso, los conflictos que pueden suscitarse en su seno.

Porque a pesar de que muchas de las controversias provenientes de las relaciones intrasocietarias obedecen a hechos naturales de la vida de las personas, como pueden ser el matrimonio, el divorcio o la muerte de un socio, la incorporación de familiares políticos o herederos de un socio fallecido, las graves desavenencias entre los integrantes de la sociedad, o tantos otros, no es menos cierto que hay muchos problemas derivados de deficiencias legislativas y, en el peor de los casos, de una ausencia absoluta de normas referidas a determinadas materias.

En virtud de la extensión que podría llevar el análisis de cada uno de los preceptos que, a nuestro entender, la Ley de Sociedades Comerciales debiera modificar y/o incorporar a su texto, nos parece importante analizar cuanto menos, y en una abreviada exposición, cuál es la situación en la que se encuentra nuestro país respecto a los métodos de resolución de conflictos que debieran existir paralelamente a la instancia judicial en manos de los órganos jurisdiccionales estatales275, y qué posibilidades existen de reformar y ampliar la legislación vigente, especialmente por la ocasión que se presenta frente a la discusión que se está dando sobre el pretensioso proyecto de modificación integral del Derecho Privado argentino.

275 El tema de la resolución de los conflictos a través de los tribunales estatales podría ser motivo de un trabajo especialmente dedicado a la materia, ya que, justamente en este tiempo, se está implementando una importante reforma judicial, a través de un conjunto de leyes promovidas por el Poder Ejecutivo y recientemente tratadas en el Congreso Nacional, mediante las cuales se altera sustancialmente desde el trámite de designación y remoción de jueces por parte del Consejo de la Magistratura creado constitucionalmente en la década del ’90, pasando por la modificación de los procesos judiciales (por la creación de nuevas Cámaras de Casación en distintos fueros) y llegando hasta la reforma del régimen de medidas cautelares dictadas en procedimientos en los que el Estado sea parte.

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2. LA SITUACIÓN ACTUAL EN EL DERECHO ARGENTINO

2.1 EN MATERIA DE CONFLICTOS SOCIETARIOS, LA LEY 19.550 DE SOCIEDADES

Comerciales que es el texto que específicamente rige la cuestión, solo se refiere al tema en su artículo 15, en donde se establece que cuando en la ley se dispone o autoriza la promoción de acción judicial ésta se sustanciará por procedimiento sumario, salvo que se indique otro, es decir, simplemente se contempla la posibilidad de acudir a la Justicia para ejercer los derechos emanados de esta Ley, y, eventualmente, dirimir esos conflictos.

Lo cierto es que recurrir al sistema judicial para intentar resolver las controversias que afectan a los socios, a los administradores y a la sociedad comercial –y que, por lo que ya dijimos, tienen indudables efectos frente a esas partes, frente a terceros en general y, en definitiva, frente a la economía nacional-, es en la mayoría de los casos una tarea infructuosa.

En efecto, podemos reclamar ante los tribunales estatales cuantos derechos asigna la Ley 19.550: por ejemplo, se pueden impugnar de nulidad acuerdos sociales o se puede demandar por remoción y responsabilidad a un administrador infiel; pero eso no significa que la promoción de esas acciones o el dictado de una sentencia en cada una de esas causas implique la resolución del conflicto que separaba a las partes.

Además, el tiempo que insume llegar a una decisión judicial definitiva generalmente atenta contra la solución buscada; por el contrario, la sucesiva promoción de acciones judiciales no hace más que potenciar el conflicto.

Mientras una sociedad anónima, por ejemplo, celebra año tras año una asamblea de accionistas pasible de ser impugnada, cada proceso judicial que se inicia con esas impugnaciones tiene una duración que puede oscilar entre cinco y diez años; por lo cual, si no se resuelve a tiempo el problema que originó el primer juicio, lo único que tendremos es un crecimiento exponencial de expedientes judiciales en trámite mientras los conflictos entre los socios y la sociedad continuarán indefectiblemente vigentes.

En la Ley de Sociedades no existe ninguna norma vinculada al modo de resolver esos conflictos, a pesar de haber existido varios proyectos de reforma legislativa que buscaron incorporar el tema, sin resultado positivo.

II.2. En el año 1995, debido al alto grado de conflictividad reflejado en la judicialización de numerosas causas existentes sobre todo en los tribunales de todos fueros de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, se sancionó la Ley 24.573 de Conciliación y Mediación, cuyo artículo 1° instituyó con carácter obligatorio la mediación previa a todo juicio, la que se dijo iba a regir por las disposiciones de esa Ley, estableciéndose un procedimiento que debía promover, según

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rezaba textualmente esa norma, “la comunicación directa entre las partes para la solución extrajudicial de la controversia”. No obstante algunas excepciones previstas puntualmente en el artículo 2 de esa Ley, el proceso de mediación prejudicial obligatoria no se eximió para las acciones derivadas del contrato de sociedad comercial.

La mediación impuesta obligatoriamente en el ámbito de la Ciudad de Buenos Aires se mantiene vigente276, y se extendió a otras jurisdicciones del país. Sin embargo, el instituto no resulta ser una herramienta eficaz a la hora de resolver esas controversias y puede afirmarse que en la temática societaria no colaboró para reducir la promoción de acciones judiciales ni mucho menos para morigerar los conflictos entre las partes.

Podemos realizar algunas críticas y advertir que la forma en que se legisló la mediación, con carácter obligatorio, va a contramano de uno de los principios esenciales de los sistemas alternativos de resolución de conflictos o ADRs277, esto es, la autonomía de la voluntad; también podemos cuestionar la falta de especificidad de la norma en la materia societaria, la falta de especialidad de los mediadores, o el hecho que su regulación genérica apartada de la Ley de Sociedades no atiende concretamente a los problemas provenientes de un contrato de sociedad. Más allá de eso, reiteramos que, por diferentes motivos, la mediación así prevista no permitió disminuir ni los conflictos societarios ni la cantidad de juicios iniciados permanentemente en la sede de los tribunales de comercio.

II.3. Por último, debemos referirnos a la situación argentina en el ámbito del arbitraje, como otro de los modos alternativos al judicial con que puede contarse para resolver disputas de esta naturaleza.

Argentina no tiene una Ley de arbitraje; ni a nivel local ni a nivel internacional. Si bien han existido proyectos legislativos para adoptar la Ley Modelo (UNCITRAL), los intentos no han prosperado.

A cambio de eso, cada uno de los códigos de procedimientos en materia civil y comercial de cada una de las jurisdicciones en las que se divide el país, tiene previsto procesalmente el arbitraje o juicio arbitral.

En la Ciudad de Buenos Aires se aplica el denominado Código Procesal Civil y Comercial de la Nación, que a partir de su artículo 736 contempla el arbitraje y establece que “toda cuestión entre partes excepto las mencionadas en el artículo 737 podrá ser sometida a la decisión de jueces árbitros, antes o después de deducida en juicio y cualquiera fuere el estado de éste. La sujeción a juicio arbitral puede ser convenida en el contrato o en un acto posterior”. El

276 Ahora a través del régimen establecido por la Ley 26.589, modificatoria de la anterior.277 Highton, Elena I. y Álvarez, Gladys S., “Mediación para resolver conflictos”, Ed. AdHoc, 3ª reimpresión, 2008, págs..29 y ss; Caivano, Roque J., “Arbitraje”, Ed. AdHoc, 1ª reimpresión, 2008, págs. 23 y ss.

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artículo 774 del Código Procesal Civil y Comercial de la Provincia de Buenos Aires prevé lo mismo.

La única excepción que la Ley contempla al arbitraje la dispone el artículo 737 (ídem artículo 775 en la Provincia de Buenos Aires), que dice que “no podrán comprometerse en árbitros bajo pena de nulidad, las cuestiones que no pueden ser objeto de transacción”.

En lo demás, toda la normativa relacionada al arbitraje no hace referencia específica al arbitraje societario.

Por lo analizado hasta aquí, puede concluirse que no existen normas especiales que contemplen en materia societaria la posibilidad de resolver conflictos emanados de un contrato de sociedad.

Y esto es así, a pesar de que originariamente, la arbitralidad societaria era la norma general frente al recurso judicial.

Efectivamente, en su versión original, el Código de Comercio argentino disponía el sometimiento imperativo de los conflictos societarios al arbitraje278, atribuyendo las fuentes de estas normas a las Ordenanzas de Bilbao y al Código de Comercio Español de 1829279. Comentando las normas de nuestra legislación, el profesor Lisandro Segovia opinaba que el arbitraje era un medio excelente para terminar las cuestiones con economía de tiempo y dinero, aunque reconocía que en el ámbito local la figura no funcionó porque los árbitros terminaban actuando como abogados de parte de quienes los designaban280.

En 1889, el Código fue reformado pero el arbitraje se mantuvo como modo de dirimir conflictos en el contrato de sociedad. Así lo establecía el artículo 448 que rezaba que “todas las cuestiones sociales que se suscitaren entre los socios durante la existencia de la sociedad, su liquidación o partición, serán decididas por jueces arbitradores, a no ser que se haya estipulado lo contrario en el contrato de sociedad”281.

Durante la vigencia de estas normas y hasta la sanción de la Ley 19.550, el arbitraje reunió tanto a seguidores como a detractores282; y también la

278 Artículos 504, 511 y 512 del texto año 1859.279 El artículo 299 establecía que “El régimen de las sociedades mercantiles se ajustará a los pactos convenidos en la escritura del contrato, y en cuanto por ella no se haya prescripto y determinado a las disposiciones siguientes”, y artículo 323: “Toda diferencia entre los socios se decidirá por jueces árbitros, háyase o no estipulado así en el contrato de sociedad”.280 Citado al igual que Juan B. Siburu por Zavala Rodríguez, C., ob. cit. en nota 136, pág. 559. 281 En cuanto a la figura de los árbitros, el artículo 449 establecía que “las partes interesadas los nombrarán en el término que se haya prefijado en la escritura, y en su defecto, en el que señalare el tribunal competente. No haciéndose el nombramiento dentro del término señalado, y sin necesidad de prórroga alguna, se hará de oficio por el tribunal, en las personas que a su juicio sean peritas e imparciales para entender en el negocio que se disputa”. 282 Decía Zavala Rodríguez que “el arbitraje es el medio al que recurren los socios creyendo que

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jurisprudencia se expidió sobre las cuestiones que por entonces podían someterse a arbitraje. En tal sentido, se dijo que no era procedente el arbitraje que versare sobre la existencia de la sociedad o sobre la validez del contrato283; ni tampoco si se demandaba por rescisión el contrato284. Pero el arbitraje se admitió durante la disolución de la sociedad y según lo autorizado por el artículo 448285, salvo en los casos en los que la disolución se fundaba en el incumplimiento del contrato por el socio administrador286, o cuando se tratare del cumplimiento de la cláusula penal inserta en el convenio final de liquidación287. Y se vedó para casos de exclusión de socios.

Con la aparición de la sociedad de responsabilidad limitada introducida por la Ley 11.645, y en atención a que el Código de Comercio contemplaba expresamente la posibilidad de resolver conflictos societarios a través del arbitraje, fue común hasta 1972 incorporar a los acuerdos societarios la cláusula de sometimiento arbitral ad hoc. Sin embargo, los debates surgidos entre las partes sobre designación de árbitros, constitución de tribunal, procedimientos, desarrollo, período probatorio, incidencias, plazos y recursos, originaron la intervención de los tribunales jurisdiccionales por aplicación de la normativa procesal288.

De ese modo, y sumado al hecho de que hasta la década de 1960 –con excepción del Tribunal Arbitral de Obras Públicas- el arbitraje institucional no se había instalado en el país, este método fue poco a poco siendo dejado de lado.

Y así se llegó a la Ley 19.550 que reguló a todas las sociedades comerciales y que, definitivamente, abandonó las normas de los artículos 448 y 449 del Código de Comercio, estableciendo la regla del ya citado artículo 15 que, si bien no prohibió el arbitraje, contribuyó para darlo prácticamente por descartado.

Paralelamente, la jurisprudencia de los tribunales comerciales comenzó a declarar con más frecuencia y en forma reiterada como excluidas del arbitraje a cuestiones como: exclusión de socio en SRL, disolución, liquidación, rendición de cuentas, conflictos entre socio y sociedad, exhibición de libros, impugnación de las resoluciones sociales289, etc., llegándose a restringir tanto su utilización

enseguida solucionarán sus problemas, para convencerse luego que es un engranaje más pesado y más caro aún que el de la justicia”, íd. cita anterior.283 CNCom., JA, t. 1944-IV, pág. 3; LL, t.32, pág. 644.284 CNCom., JA, t. 76, pág. 399; JA, t. 1945-III, pág. 274.285 CNCom., Sala B, JA, t. 1954-I, pág. 402; JA, t. 70, pág. 429; íd., Sala A, JA, t. 1957-II, pág.9, nº 95 (síntesis de jurisprudencia); JA, t. 1952-I, pág. 283; JA, t. 1956-I, pág. 64, con disidencia de Isaac Halperín.286 CNCom., LL, t. 37, pág. 488.287 CNCom., Sala B, JA, t. 1955-III, pág. 66.288 Robiolo, Jorge A., “Derecho Arbitral”, Ed. La Ley, Buenos Aires, 2007, pág. 66 y ss.289 CNCom., Sala D, diciembre 22-1997, “Atorragasti, María Cristina c. Atorragasti, Bargués

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como método alternativo de resolución de cuestiones suscitadas en el seno de una sociedad, que se estableció casi como una regla que la competencia arbitral era de excepción290.

Esto motivó, por ende, un sostenido abandono de cláusulas arbitrales y una adecuación de los contratos sociales a las pautas de la Ley. Con ello, se perdió también el régimen de autonomía de la voluntad para redactar las cláusulas contractuales, convirtiéndose el contrato original en una suerte de formulario tipo291.

Sin embargo, conforme fuera anticipado, a pesar de que la Ley 19.550 no contempla en forma expresa al arbitraje como uno más de los sistemas existentes para resolver conflictos, tampoco lo prohíbe; y siendo esto así, podría perfectamente pactarse un convenio arbitral entre los socios o en el mismo contrato social292.

El arbitraje ha tenido un importante apoyo doctrinario en distintos eventos académicos desarrollados sobre las sociedades comerciales en Argentina293, en los que se insistió en el arbitraje institucional como una alternativa complementaria del servicio de justicia, sin que sea considerado una sustitución de los tribunales judiciales estatales; en la contemplación de cláusulas arbitrales en los contratos de sociedad pautadas con total libertad a fin de que el arbitraje pueda ser aceptado sin restricciones de ningún tipo; y en la recomendación de que los árbitros sean personas de prestigio y especialistas en la materia.

En el ámbito judicial, la mayoría de las Salas que integran la Cámara Nacional de Apelaciones en lo Comercial siguen evaluando la competencia arbitral en materia societaria con criterio restrictivo. Una de las disidencias más importantes expresó que “en la medida que la ley autoriza a sus sujetos de derecho a constituir su propio juez, mediante la sujeción a árbitros, y que el tema del diferendo verse sobre materia patrimonial perteneciente a sujetos capaces, no se entiende por qué la competencia de la llamada ‘jurisdicción arbitral’, soporta la minusvalía de ser apreciada restrictivamente”294.

Piazza y Cía. SRL”, ED 181-155 y LL 1999-D, 750.290 CNCom., Sala E, abril 28-2000, en autos “Nova Pharma Corporation SA c. 3MArgentina SA y otros s/ordinario”, ED, 194-151.291 Las Normas de la Inspección General de Justicia vigentes en las décadas de 1980 y 1990, incluso, contenían en anexos modelos de contratos de sociedad clásicos, que simplemente tenían que ser completados con los datos específicos de cada sociedad.292 Rivera, Julio César, “Arbitraje Comercial, Internacional y Doméstico”, Ed. Lexis Nexis, Buenos Aires, pág. 173.293 Varias fueron las ponencias presentadas en las sucesivas ediciones del Congreso Argentino de Derecho Societario y Congreso Iberoamericano de Derecho Societario y de la Empresa, celebradas en 1992 en Huerta Grande (Córdoba), 1995 en Mar del Plata (Buenos Aires), 2001 en Rosario (Santa Fe) y 2004 en San Miguel de Tucumán (Tucumán). 294 Voto de Dr. Edgardo Marcelo Alberti, integrante de la Sala D, en autos “Expreso Albión SRL

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En Argentina existen distintas instituciones que cuentan con tribunales de arbitraje, pero en función de su carácter permanente, puede destacarse el Tribunal de Arbitraje General de la Bolsa de Comercio de Buenos Aires, creado en 1963.

Debido a la confidencialidad que prima en los procesos arbitrales que se tramitan ante dicho Tribunal, no existen estadísticas oficiales sobre las cuestiones sometidas a su consideración, en lo que hace a tipo de causas o partes intervinientes. Es sabido, empero, que no son numerosas las causas vinculadas al derecho societario que se arriman al mismo para obtener una solución de las controversias derivadas de esas relaciones. Puede mencionarse que han llegado al Tribunal de la Bolsa de Comercio, casos que involucran a sociedades cotizantes, en virtud de que el Decreto 677/01 del Poder Ejecutivo Nacional estableció en forma obligatoria el procedimiento arbitral para resolver conflictos desatados en esos entes295, y ello en la medida que no se ha conformado aún el tribunal cuya creación dispone esa norma.

De cualquier forma, es ilustrativo el dato respecto a la cantidad de sociedades que hacen oferta pública de sus acciones en nuestro país, las que no alcanzan siquiera a un centenar y hacen operaciones diarias que no pueden compararse con las cifras operadas en mercados internacionales. Si diferenciamos las sociedades cotizantes del resto de las sociedades que funcionan en nuestro medio, el porcentaje, como dijimos al comienzo de este trabajo, es ínfimo. De ahí que la norma antes referida –y a la que también puede criticársele la obligatoriedad que impone- no resulta relevante para la

c. Mercado de Tedesco, Rosa”, JA, 1977-I, 590.295 El Decreto 677 publicado el 28 de mayo de 2001 y dictado por el PEN en virtud de la delegación de facultades efectuada por el Congreso Nacional mediante Ley 25.414, denominado “Régimen de Transparencia de la Oferta Pública”, dispone en su artículo 38 que “dentro del plazo de seis (6) meses contados desde la publicación del presente Decreto, las entidades autorreguladas deberán crear en su ámbito un Tribunal Arbitral permanente al cual quedarán sometidos en forma obligatoria las entidades cuyas acciones, valores negociables, contratos a término y de futuros y opciones coticen o se negocien dentro de su ámbito, en sus relaciones con los accionistas e inversores. Quedan comprendidas en la jurisdicción arbitral todas las acciones derivadas de la Ley Nº 19.550 y sus modificaciones, incluso las demandas de impugnación de resoluciones de los órganos sociales y las acciones de responsabilidad contra sus integrantes o contra otros accionistas, as! como las acciones de nulidad de cláusulas de los estatutos o reglamentos. Del mismo modo deberán proceder las entidades autorreguladas respecto de los asuntos que planteen los accionistas e inversores en relación a los agentes que actúen en su ámbito, excepto en lo referido al poder disciplinario. En todos los casos, los reglamentos deberán dejar a salvo el derecho de los accionistas e inversores en conflicto con la entidad o con el agente, para optar por acudir a los tribunales judiciales competentes. En los casos en que la ley establezca la acumulación de acciones entabladas con idéntica finalidad ante un solo tribunal, la acumulación se efectuará ante el Tribunal Arbitral. También quedan sometidas a la jurisdicción arbitral establecida en este artículo las personas que efectúen una oferta pública de adquisición respecto de los destinatarios de tal adquisición”.

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instauración del arbitraje como uno de los métodos posibles para resolver controversias en materia societaria.

No obstante no haber llegado a la instancia legislativa, puede señalarse como antecedente significativo el Anteproyecto de Reforma a la Ley de Sociedades Comerciales del año 2003 que, en punto a las acciones derivadas del contrato de sociedad, proponía modificar el artículo 15, transitar un proceso judicial más abreviado, derogar la instancia de mediación previa obligatoria, permitir el pacto de cláusulas compromisorias para dirimir conflictos entre socios y entre éstos y la sociedad, incorporar el arbitraje pericial para determinar valuaciones de participaciones sociales, cuotas o acciones, y mantener el arbitraje de sociedades cotizadas ante tribunales permanentes organizados por dichas entidades. Ese Anteproyecto no tuvo avance legislativo.

Y llegamos entonces al momento actual, en donde existe una nueva posibilidad para modificar la legislación societaria.

3. EL PROYECTO DE REFORMA DEL CÓDIGO CIVIL.

3.1. EL 23 DE FEBRERO DE 2011, POR MEDIO DEL DECRETO 191/2011, EL PODER EJECUTIVO DE LA REPÚBLICA ARGENTINA CREÓ LA COMISIÓN PARA LA ELABORACIÓN DEL PROYECTO DE REFORMA, ACTUALIZACIÓN Y UNIFICACIÓN DE LOS CÓDIGOS CIVIL Y COMERCIAL DE LA NACIÓN, CON EL OBJETO DE REALIZAR LAS REFORMAS NECESARIAS AL CÓDIGO CIVIL Y AL CÓDIGO DE COMERCIO Y PRODUCIR UN TEXTO HOMOGÉNEO EN UN MISMO CUERPO NORMATIVO.

La iniciativa se fundamentó sosteniéndose que el sistema de derecho privado, en su totalidad, había sido afectado en las últimas décadas por relevantes transformaciones culturales y modificaciones legislativas, que fueron desde la reforma constitucional del año 1994 hasta la sanción de otras Leyes dictadas en distintas materias.

La Comisión Redactora de este Proyecto se había propuesto realizar una significativa reforma a la Ley 19.550 de Sociedades Comerciales, no tanto por su extensión sino por su incidencia. En tal sentido, y en lo que a nuestro tema principal respecta, la Comisión intentó innovar fuertemente en los métodos de resolución de disputas.

Con un renovado texto, los artículos 15 y 15 bis, ter y quáter a incorporarse a la Ley 19.550, propiciaban unificar en todo el país el criterio para determinar el procedimiento aplicable a esas cuestiones, para superar las diferencias entre los códigos de procedimientos provinciales, introducir el arbitraje optativo para resolver controversias entre socios y entre los socios y la sociedad, e imponer como obligatorio el arbitraje en caso de venta de acciones cuando existiera restricción contractual a su transferencia.296

296 Vítolo, Daniel Roque, “Las Reformas a la Ley 19.550 de Sociedades Comerciales en el Proyecto

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En forma muy similar a la adoptada por el anterior Anteproyecto legislativo del año 2003, en esta ocasión la Comisión intentaba establecer para las contiendas societarias que debían decidirse mediante una acción judicial, que la misma se tramitara por la vía del proceso más abreviado en cada una de las jurisdicciones respectivas; que no resultara obligatorio el trámite de previos procedimientos alternativos de solución de conflictos; que se admitiera la inclusión de una cláusula compromisoria en los actos constitutivos de sociedades, contratos sociales o estatutos; que se permitiera determinar valuaciones de participaciones sociales, cuotas o acciones por medio de arbitrajes periciales, y que los árbitros pudieran disponer medidas cautelares, asegurativas y de intervención –salvo pacto en contrario-, con la colaboración del juez estatal para el cumplimiento o ejecución de cualquier resolución arbitral, incluido el laudo final.

Todas esas disposiciones se proponían de manera concreta dentro del ordenamiento societario297, sin perjuicio de las normas atinentes al contrato de

de Código Civil y Comercial de la Nación, Editorial Ad Hoc, 2012, pág. 21.297 El Anteproyecto establecía los textos siguientes: Art. 15 - Procedimiento. Norma general. Si en la ley se dispone o autoriza la promoción de una acción judicial, ésta se sustanciará por el procedimiento más abreviado compatible con las características del litigio. El procedimiento debe garantizar la defensa en juicio, amplitud probatoria y doble instancia. Recibida la demanda, en la primera resolución el juez debe decidir cuál es el procedimiento. En ningún caso la acción queda sujeta a previos procedimientos alternativos de solución de conflictos, a menos que estén dispuestos en el acto constitutivo, el contrato o el estatuto.Art. 15 bis – Arbitraje. Cláusula compromisoria. El acto constitutivo, contrato social o estatuto puede incluir una cláusula compromisoria que someta en forma obligatoria los diferendos entre los socios, o entre éstos y la sociedad o los integrantes de sus órganos sociales, al arbitraje o a la amigable composición. En este caso se debe especificar: 1)el procedimiento por el cual se regirá el arbitraje;2)la forma de designación de los árbitros;3)la designación de una entidad que administre el arbitraje, y la previsión, para el caso que ésta desaparezca, de las reglas que se aplicarán;4)la sede o domicilio del arbitraje; en su defecto se considera que es el domicilio de la sociedad;5)los recursos que puedan interponerse contra el laudo, o los que se renuncien en su caso; si en el acto constitutivo, contrato o estatuto social no estuviera previsto el procedimiento que regirá el arbitraje o la entidad que lo administre, deberá sustanciarse ante el Tribunal Arbitral de la Bolsa de Comercio más próximo a su domicilio; si la cláusula compromisoria fuese ambigua, o no pudiesen ser designados los árbitros, deberá recurrirse a la vía judicial.Cláusula compromisoria posterior. Son igualmente válidas las convenciones de arbitraje que celebren las partes en cualquier diferendo, aunque no se incluya una cláusula compromisoria en el acto constitutivo, contrato o estatuto social.Art. 15 ter – Valuaciones. Arbitraje pericial. Salvo que el acto constitutivo, contrato o estatuto social prevea otras reglas, las controversias a que den lugar las valuaciones de participaciones sociales, cuotas o acciones se resolverán por árbitros peritos.En tal caso, quien impugne el precio atribuido por la otra parte deberá expresar el que considere ajustado a la realidad.

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arbitraje que como un contrato especial el Anteproyecto preveía en el cuerpo principal del Código, artículos 1649 a 1665.

Lamentablemente, la revisión del Anteproyecto por parte del Poder Ejecutivo significó la eliminación total de la propuesta en la Ley de Sociedades Comerciales que se intenta mantener vigente aún frente a la derogación del Código de Comercio, conservándose solamente la regulación del arbitraje en el texto unificado del futuro Código; normativa que, como veremos, no es suficiente para atender los conflictos societarios que pueden ser superados a través de una solución arbitral.

Así las cosas, de prosperar este nuevo Proyecto de Ley, quedaría inalterado el ya transcripto artículo 15 de la Ley 19.550. Ya hemos advertido que, no obstante no estar prohibido, con la redacción de esa norma ya desde el año 1972 la Ley de Sociedades Comerciales dio prácticamente por descartado el arbitraje como mecanismo para resolver conflictos derivados del contrato de sociedad.

Frente al texto legal vigente y la jurisprudencia restrictiva que caracterizó prácticamente a todos los tribunales de comercio del país durante muchos años, la implementación de un procedimiento arbitral por medio de una reforma legislativa era lo más esperado, y sobre todo teniendo en consideración la situación existente en muchos países de la región en donde el arbitraje se encuentra en pleno desarrollo, se ampara en leyes arbitrales especiales y en prestigiosas instituciones que lo administran.

No se entienden los motivos por los cuales la legislación societaria argentina sigue siendo renuente a incorporar expresamente al arbitraje como una de las tantas formas posibles para resolver controversias internas y para disminuir el grado de conflictividad que, como vimos, afecta a todo el entorno y puede hacer peligrar la actividad económica de un país.

Pero no estará obligado a pagar uno mayor que el afirmado por la contraparte, ni ésta a cobrar uno inferior al aseverado por el impugnante. Las costas del procedimiento estarán a cargo de la parte que pretendió el precio más distante del fijado por la tasación arbitral.Si no estuviere previsto en el acto constitutivo, contrato o estatuto social el procedimiento aplicable a la pericia arbitral, deberá sustanciarse ante el Tribunal Arbitral de la Bolsa de Comercio más próximo a su domicilio.Art. 15 quáter – Medidas asegurativas y compulsorias. Colaboración judicial. Cuando por aplicación de esta ley o por convenciones de arbitraje se sometan diferendos al arbitraje, podrán los árbitros disponer medidas cautelares, asegurativas y de intervención, a menos que se las haya excluido expresamente en las cláusulas compromisorias. Podrá preverse la exigencia de notificación previa a la otra parte para ser escuchada antes de adoptar la medida.Colaboración del juez estatal. De ser necesario para el cumplimiento o ejecución de cualquier resolución del tribunal arbitral, incluido el laudo final, así como para el de las medidas asegurativas y compulsorias previstas, o las de ejecución que se hayan dispuesto, los árbitros deben requerir la intervención del juez estatal y éste deberá prestar el auxilio de la jurisdicción para la más rápida y eficaz sustanciación del proceso arbitral.

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Esto no se condice, además, con la manera en que se ha implementado la mediación y se la ha incorporado a la legislación local, conforme fuera referido con anterioridad. Si partimos de la premisa que en los métodos de resolución de disputas que son alternativos, opcionales o extrajudiciales, el principio de la autonomía de la voluntad se encuentra siempre presente y significa casi la garantía excluyente de que el mecanismo funcione mejor, no puede compartirse en esta materia que la mediación instaurada desde el año 1995 obligue a todo aquél que intente iniciar cualquier acción judicial derivada del contrato de sociedad a tramitar previamente y en forma obligatoria un proceso de mediación. Y que, por otro lado, no se legisle sobre el arbitraje societario.

Debemos pues preguntarnos por qué no brindar a los futuros justiciables todas las herramientas posibles para poder resolver sus conflictos, mediante cualquier procedimiento que ellos mismos contemplen en el contrato constitutivo o en el estatuto de la sociedad, entre los cuales debería admitirse el arbitraje. El interrogante no encuentra respuesta en nuestro ordenamiento legal.

3.2. ES EN OCASIÓN DE CELEBRAR EL CONTRATO DE SOCIEDAD CUANDO LAS PARTES SE HALLAN EN LA SITUACIÓN IDEAL PARA PAUTAR NORMAS QUE APLICARÁN COMO LA LEY MISMA –SEGÚN LO DISPONE EL ARTÍCULO 1197 DEL CÓDIGO CIVIL-, QUE REGIRÁ SUS RELACIONES HACIA ADELANTE Y QUE SERÁN APTAS PARA RESOLVER, EN SU CASO, LAS DIFERENCIAS QUE NORMALMENTE PUEDEN SURGIR A LO LARGO DE LA VIDA DE LA SOCIEDAD. DIFÍCILMENTE ESAS PAUTAS PUEDAN ADOPTARSE UNA VEZ DESENCADENADO EL CONFLICTO Y COMO PACTO SOBREVINIENTE.

Considerando que el artículo 11 de la Ley 19.550 establece como requisito esencial no tipificante para toda sociedad comercial la inclusión de una cláusula que indique el plazo de duración por el cual la misma se constituye, y en base a la habitual costumbre argentina de dotar a las sociedades –cualquiera sea su tipo, cualesquiera sean las características personales de sus socios e independientemente de la actividad a la que se van a dedicar- de un período mayoritariamente prolongado y excesivo298, no es difícil advertir que durante la larga existencia de esa sociedad que probablemente supere la de sus propios socios, surgirán conflictos de variada intensidad que merecerán ser atendidos so pena de arrastrar al ente a una escalada que puede incluso llegar a su disolución, con las nefastas consecuencias que esto puede acarrear para todo el mercado.

Frente a esta innegable y perfectamente comprobable realidad, insistimos en la necesidad de proveer a los socios y a la propia sociedad de mecanismos

298 Son innumerables las sociedades que adoptan un contrato tipo o modelo y que consignan un plazo de duración que llega hasta los 99 años.

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útiles y eficaces para enfrentar y superar los problemas provenientes de la relación societaria.

Sobre todo, para aquellas sociedades comerciales que, se reitera, explotan empresas pequeñas o familiares, en donde la resolución alternativa de conflictos se presenta como una opción sumamente valiosa, especialmente frente al procedimiento judicial, que muchas veces no se encuentra preparado para entender en disputas que, pudiendo tener una sentencia que otorgue la razón formal a una de las partes, no extingue el conflicto de fondo que generalmente posee componentes ajenos al meramente legal.299

Sin embargo, como se dijo, una vez más se ha desaprovechado la posibilidad de introducir legislativamente el arbitraje como un mecanismo especialmente previsto en el ordenamiento societario.

III.3. Hemos anticipado que, de avanzar en su tratamiento, el Proyecto de Código Civil y Comercial de la Nación hasta aquí analizado contempla al arbitraje como uno de los tantos contratos especiales contenidos en ese texto.

Efectivamente, entre los artículos 1649 y 1665, el Proyecto se dedica a regular el arbitraje como un contrato, y, a decir de algunos autores, retrocediendo a una concepción prácticamente tan antigua como el arbitraje mismo, proponiendo una reforma asistemática y poco científica.300

Excede los límites de este trabajo el análisis sobre la naturaleza del arbitraje, y la evaluación de las posturas de corte contractualista o procesalista-jurisdiccional que se desarrollaron en relación a este instituto; pero aún pudiendo decirse que el arbitraje se trata de un contrato, de un procedimiento o de ambos (naturaleza mixta contractual y jurisdiccional), lo cierto es que, en la forma en que se ha encarado el tema en esta reforma legislativa, el arbitraje no es apto para resolver las controversias derivadas de un determinado contrato de sociedad comercial.

En la medida que no se admita expresamente que el contrato constitutivo o el estatuto de una sociedad pueden prever el arbitraje como mecanismo para resolver cualquier controversia suscitada en esa sociedad, entonces el arbitraje no alcanzará el objetivo que necesitamos para superar el conflicto societario.

Un contrato debe distinguirse de un sistema de solución de conflictos. Y sin perjuicio que el arbitraje nace generalmente de un convenio voluntario, es decir, de un acuerdo que puede considerarse un contrato, el modo en que la reforma legislativa lo introduce en la esfera del derecho contractual no resulta eficaz para ser utilizado como un mecanismo de resolución de diferencias o conflictos, al menos en nuestra materia.

299 Marchesini, Gualtiero Martín, “Arbitraje en las Sociedades Familiares”, Revista de Derecho Comercial del Consumidor y de la Empresa, Año II, número 4, agosto 2011.300 Rojas, Jorge A., “El arbitraje como contrato en el Proyecto de Código”, Revista La Ley, 19-11-2012, LL 2012-F, 1003.

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El proyectado artículo 1649 dice que “hay contrato de arbitraje cuando las partes deciden someter a la decisión de uno o más árbitros todas o algunas de las controversias que hayan surgido o puedan surgir entre ellas respecto de una determinada relación jurídica, contractual o no contractual”. Del texto transcripto puede concluirse que, como lo pensó la Comisión, el arbitraje no es un contrato en sí mismo, sino que se encuentra supeditado a que una relación jurídica le de vida o no.301

Pero se entienda el arbitraje como un contrato o como un procedimiento, lo cierto es que, a los fines que nos interesa, la reforma general que incorpora a la legislación de fondo el arbitraje –que va a coexistir, además, con las normas de carácter procesal contenidas en los ordenamientos provinciales respectivos, a las cuales se les asemeja-, no va a modificar la Ley de Sociedades Comerciales y, por ende, la discusión sobre si el arbitraje es un mecanismo susceptible o no de ser utilizado para resolver controversias provenientes del contrato de sociedad no quedará resuelta.

Efectivamente, los artículos 1652 y 1653 proyectados establecen normas similares a las contenidas en los códigos procesales locales, y esas disposiciones no ayudarán a despejar el gran dilema del arbitraje societario.

El primero de esos artículos dispone que “pueden someterse a la decisión de arbitradores o amigables componedores, las cuestiones que pueden ser objeto del juicio de árbitros. Si nada se estipula en el convenio arbitral acerca de si el arbitraje es de derecho o de amigables componedores, o si no se autoriza expresamente a los árbitros a decidir la controversia según equidad, se debe entender que es de derecho”.

Y el artículo 1653 expresa que “el contrato de arbitraje es independiente del contrato con el que se relaciona. La ineficacia de éste no obsta a la validez del contrato de arbitraje, por lo que los árbitros conservan su competencia, aun en caso de inexistencia o nulidad de aquél, para determinar los respectivos derechos de las partes y pronunciarse sobre sus pretensiones y alegaciones”.

Como se ve, la incorporación del arbitraje como contrato especial del proyectado Código Civil no incluye nada que no regulen actualmente los códigos procesales de las distintas provincias argentinas.

A pesar de las sentencias judiciales favorables al arbitraje que fueron dictadas en algunas ocasiones y de las normas que pueden encontrarse a nivel administrativo como las que recoge la Resolución General N° 7/2005 de la Inspección General de Justicia que tiene a cargo el Registro Público de Comercio en la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, la Ley 19.550 debería contener expresamente una norma de admisibilidad del arbitraje como uno de los mecanismos a los que las partes puedan acudir para resolver las controversias

301 Rojas, Jorge A., íd. nota anterior

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que los separan en torno al contrato de sociedad. De no ser así, y aunque los socios lo dispongan expresamente en el contrato social, se seguirá discutiendo en doctrina y en los tribunales si el arbitraje es un método admisible para resolver todas las controversias que puedan surgir en una sociedad mercantil.

4. LA SITUACIÓN EN EL DERECHO ESPAÑOL, INTERESANTE FUENTE DE INSPI-RACIÓN PARA REGULAR EL ARBITRAJE EN ARGENTINA

Resulta interesante analizar lo sucedido al respecto en España, en donde se sabe que la jurisprudencia fue aceptando poco a poco la arbitralidad de las cuestiones societarias, hasta que en el año 1998 la Dirección General de los Registros y del Notariado admitió sin reparo el pacto arbitral estatutario, por representar no sólo la voluntad de los fundadores sino además por constituir una regla orgánica una vez que la cláusula es objeto de publicidad registral, haciéndose vinculante a todos los que sean socios en cada momento por estar sometidos a los estatutos como conjunto normativo de origen convencional. Esa admisión del arbitraje societario motivó un importante cambio en la doctrina tanto del Tribunal Supremo como de aquella Dirección.302

Un avance notable en ese ámbito supuso también la Ley de Enjuiciamiento Civil 1/2000 que introdujo cambios importantes en relación al arbitraje, consolidando la opción favorable también a la materia societaria, todo lo cual la Ley de Arbitraje 60/2003, de 23 de diciembre, terminó de recoger hasta llegar a la última reforma introducida recientemente.

La Ley 11/2011, de 20 de mayo, apareció para poner fin a la discusión doctrinaria referida al arbitraje societario, y en especial a la arbitralidad de la impugnación de los acuerdos sociales.

La referida Ley introduce así en la Ley 60/2003 dos artículos dedicados al arbitraje societario, bajo los números 11 bis y 11 ter.

En el primero de ellos, y bajo tres apartados, la Ley les reconoce a las sociedades de capital la posibilidad de “someter a arbitraje los conflictos que en ellas se planteen”; además, les permite a las sociedades ya constituidas introducir en sus estatutos sociales una cláusula de sumisión a arbitraje cuando lo decidan socios que sean titulares “de al menos dos tercios de los votos correspondientes a las acciones o a las participaciones en que se divida el capital social”, y finalmente dispone que “los estatutos sociales podrán establecer que la impugnación de los acuerdos sociales por los socios o administradores

302 Por Sentencia de abril 18-1998, el Tribunal Supremo concluyó que “la posibilidad de incluir una cláusula de convenio arbitral en los estatutos de una sociedad mercantil, los cuales quedan integrados en el contrato, es indudable, pese a que en los últimos tiempos, ciertas posiciones doctrinales lo han discutido”.

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quede sometida a la decisión de uno o varios árbitros, encomendándose la administración del arbitraje y la designación de los árbitros a una institución arbitral”, finalizando de ese modo toda discusión sobre la posibilidad de recurrir al arbitraje en casos de impugnación de acuerdos sociales.

El artículo 11 ter, por su parte, prevé la inscripción en el Registro Mercantil del laudo que declare la nulidad de un acuerdo inscribible, agregando que, en caso de encontrarse registrado el acuerdo impugnado, el laudo a inscribirse deberá determinar la cancelación de aquella inscripción y la de los asientos posteriores que resulten contradictorios con ella.

En definitiva, fue la propia Ley de Arbitraje la que introdujo la solución a las discusiones inherentes al tema, apartándose de una modificación específica en la propia Ley de Sociedades.

5. A MODO DE CONCLUSIÓN

La comparación que forzosamente debemos realizar con la situación argentina nos permite arribar a las siguientes conclusiones: en primer lugar, al carecer nuestro país de una Ley especial en materia de arbitraje nos parece inviable una solución como la alcanzada en España. Recuérdese que las normas que regulan el arbitraje están contenidas en los ordenamientos procesales locales y se refieren al instituto como un recurso procedimental; por tanto, siendo actualmente lejana la posibilidad de acceder a una Ley General de Arbitraje, creemos que la mejor opción para dar una solución más o menos inmediata a la problemática societaria es incluir el arbitraje en la Ley de Sociedades Comerciales, como una vía alternativa disponible para las partes mediante la cual puedan intentar resolver los conflictos que se pudieren plantear en el seno de una sociedad.

Y esa posibilidad es la que existe hoy de cara a la reforma legislativa que se pretende llevar adelante en materia de Derecho Privado.

Pero la pretendida unificación del Código Civil y el Código de Comercio vigentes, y la incorporación a ese texto de un contrato de arbitraje, no parece ser la solución apropiada. Por el contrario, si el Proyecto de reforma alcanza también a la Ley de Sociedades Comerciales que seguirá vigente con las modificaciones pertinentes, entonces debe ser allí donde se incorpore el arbitraje, de la manera en que lo tenía previsto la Comisión redactora en el texto de los artículos 15 y siguientes ya referidos.

La eliminación de esas normas en el Proyecto que recibirá tratamiento legislativo constituye una equivocación que no hará más que prolongar la discusión sobre el arbitraje societario, perdiéndose nuevamente una buena chance de legislar específicamente sobre una temática que merece ser atendida,

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en beneficio de la sociedad, de sus socios, de sus administradores y de todos aquellos que mantienen vínculos con un ente que, frente al conflicto, puede correr riegos tales que hasta pongan en peligro su subsistencia.

Los tribunales de comercio tienen un elevado número de expedientes vinculados a conflictos societarios, y las sentencias dictadas en esas causas difícilmente impliquen la finalización del litigio. La demora en la tramitación de los procesos atenta contra la búsqueda de una solución sustentable.

Mientras tanto, en tribunales arbitrales institucionales se pueden encontrar espacios más adecuados para debatir esos asuntos e intentar resolverlos, en la medida que la cantidad de procedimientos tramitados en los mismos es mucho menor, y resulta un ámbito propicio para atender la cuestión de manera más efectiva, intentando incluso en forma paralela instancias negociadoras o de autocomposición que se complementen con el procedimiento arbitral y siempre en pos de resolver esas controversias.

Por tanto, sería de esperar que vuelva a darse una oportunidad al arbitraje y que en el debate legislativo se atiendan las opiniones de quienes siguen viendo en ese instituto un mecanismo más para intentar resolver los conflictos societarios.

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CIDADANIA E ASPECTOS CRÍTICOS DO PROCESSO PENAL: OPINIO DELICTI MIDIÁTICA E SUA REPERCUSSÃO ÀS AVESSAS

NO PROCESSO PENAL

leandro araúJo garCia303

marCo aurélio nogueira304

mário Ângelo de oliVeira Junior305

INTRODUÇÃO

O presente estudo busca a visão crítica da atividade desempenhada pela mídia no Brasil, desde seu contorno histórico midiático (características e discursos dominantes) até o influente papel na formação da opinião pública, especialmente no que diz respeito ao direito e processo penal brasileiro.

De certa forma, atem-se à preocupação em identificar a força em que a publicidade dos atos processuais ocasiona nas partes diretamente envolvidas na demanda judicial, bem como nos terceiros que a acompanham. É dizer, transporá ao estudo da efetiva transparência do processo penal e o não retrocesso da injustiça.

A rigor, necessário se faz, acima de tudo, separar conceitos cognatos – como ocorre com a “publicidade processual” e a “publicidade social” – observados nos discursos dominantes da mídia, em que a todo o instante são encenados para a população com uma carga publicitária voltada ao interesse de determinada parcela de indivíduos (grupos sociais definidos), em concreto acordo de interesse político e, quiçá, econômico.

O tema refere-se ao estudo crítico do papel realizado pela mídia no Brasil e os seus meios de comunicação de massa que ao desempenhar o discurso midiático, tratam abusivamente do direito criminal o que, por sua vez, acabam que violando princípios inerentes ao direito penal e, de viés, da Constituição Federal. Por mais, agenciam a formação de políticas criminais que desobedecem ao Estado Democrático de Direito, transmutando para um Estado Punitivo, porquanto atentam diretamente ao princípio da intervenção penal mínima.

A preocupação, por decorrência do aumento da atividade jornalística de cunho investigativa, absorve a relevância, pois a notícia penal, ou processual penal, passou a fazer parte do dia a dia do discurso da mídia e, por conseguinte da cumplicidade social. Inverte-se o papel da legitimação punitiva, ao passo que o Estado não intervém com mesma liberdade, senão pela clarividente pressão

303 Advogado. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhaguera/SP.304 Doutor em Direito. Professor do CMDIP-FADIR-UFU.305 Pós-graduado em Direito da Administração Pública e Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia.

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da mídia, baseada pela invasão persuasiva e formadora da opinião pública “manipulada”.

Impende que, a divulgação da notícia criminal nem sempre motiva o Estado à prestação da justiça punitiva – e entenda justiça punitiva como sendo a prestação célere da Justiça, bem como a completude do sistema penal, para que assim não vague por impunidades –, mas de outro norte, a publicação de tais informações causa prejuízos às partes e a terceiros envolvidos (por exemplo, suas famílias). Num Estado Democrático de Direito, isso assola as raízes constitucionais que se pautam por salvaguardar a intimidade dos cidadãos, bem como presumi-los inocentes.

Constata-se que a mídia embasa a tutela do patrimônio do indivíduo antes do que a dignidade humana, tendo em vista que considera o Estado Punitivo ao Estado Democrático de Direito, criminalizando a pobreza e recorrendo à repressão penal seletiva e esteriotipada. Reflete-se estar discursando politicamente e voltada a interesses que não o público, mas o de classes dominantes que buscam por controlar a atividade punitiva estatal, invertendo completamente os papéis do Estado e governados. O caráter liberal de informar da mídia, não pode discorrer em desrespeito ao sistema jurídico organizado e protegido pela Constituição Federal.

Acrescente-se que o Estado Democrático de Direito é uma conquista do homem como modo de sobreviver no mundo capitalista que se baseava numa predominância desigual do setor privado, discrepando a distinção social e criando as diversas classes periféricas. A democracia como conjuntura do ordenamento jurídico é a proteção às consequências do liberalismo estatal. Mas não é este o papel que vem desempenhando a mídia, senão um retrocesso ao Estado Liberal; neste liame, a mídia enraíza o sistema penal como controle da propriedade (patrimônio), refletindo ideologia legislativa para feitura das normas penais.

Na verdade existem outros meios de controle social que não somente o sistema penal. Todavia, a mídia não utiliza desde raciocínio, ao passo que utiliza da encenação sensacionalista e preconceituosa para dilacerar os problemas criminais. Acredita que o sistema penal seja o meio mais eficaz, e por isso, utiliza-o olvidando de valores constitucionais e baseando numa política criminal criada para manipular a massa social.

A atividade midiática versa diretamente no controle social pautado numa lógica penal esteriotipada, ou seja, controle da classe dos socialmente “estranhos”, que a própria mídia os designa e os exclui. Influi-se pelos meios de comunicação capazes de reconstruir os fatos e, montando uma notícia diversa da fidedigna, ou mesmo retorcida da realidade, implicitamente manifeste o interesse da classe dominante e influencie a opinião pública acerca de determinada matéria.

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Como resultado desta atividade midiática penal, a valoração do principio da liberdade de expressão se acresce frente aos mais variados outros princípios resguardados pela Constituição. Assim, se funda numa norma capaz de pôr abaixo qualquer outro valor do ordenamento, implicando, por sua vez, numa total desproporcionalidade de análise sistêmica e inviabilizando a justiça social, objetivo da República Federativa do Brasil.

1. A PUBLICIDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1998

A princípio, dois conceitos são relevantes e devem, de pronto, serem distinguidos: a publicidade processual e a publicidade social. Não é ilusório dizer que um dos maiores marcos conquistados pelo Estado Democrático de Direito foi a publicidade dos atos, em repúdio ao sigilo que várias vezes acobertava condutas desregradas e, de certo, causadoras de afrontas aos direitos humanos.

Por initio, após a Revolução Francesa e em razão da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a publicidade detinha de mera “politiquez”. Valia-se do argumento político, independente de julgamento parcial ou corrupto, mas que acima de tudo não fosse secreto; antes, em face do público.

O segredo serviu como injustiça e falta de defesa; na época da Inquisição, por exemplo, o processo penal detinha de segredo absoluto. Contudo, as execuções eram apreciadas pela multidão que, sem saber do que defluiu do processo para que chegasse à execução (que à época era execução pessoal), se esbaldavam com os espetáculos em praça pública (forca, guilhotina, dentre outros).

A publicidade, entretanto, adveio para assegurar os direitos do cidadão, e mais, para humanizar o processo, vez que possibilita aos indivíduos a sua participação nos atos jurídicos, portanto, na defesa de seus direitos e interesses. Desse modo, a publicidade surgiu para render resultados positivos, e clarear a sombra que o segredo fazia da Justiça.

O princípio da publicidade vige no Brasil desde 1818, em contraposição ao anterior sistema lusitano, fundado no princípio do segredo. Na Carta Constitucional de 1988, observamos uma série de dispositivos que consagram a garantia da publicidade dos atos processuais

Com esse propósito, o ordenamento pátrio brasileiro, garantiu a publicidade, com normatividade constitucional (artigos 5°, LX e 93, IX), garantindo-a e, ao mesmo tempo, delimitando-a – com espeque à proteção da intimidade da pessoa, valor fundamentalmente arraigado pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Conforme preleciona Daniel Mitidiero que a publicidade é uma das características do devido processo legal brasileiro, constituindo um dos pilares constitucionais de nosso formalismo processual (MITIDIERO, 2005, p. 50)

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1.2 PUBLICIDADE COMO FENÔMENO INTERNO

A fim de controlar o exercício do poder, o processo devido é, necessariamente, exceto em algumas ocasiões, um processo público. No Brasil, os julgamentos são públicos. É um direito fundamental que possui duas funções: interna e externa.

A garantia da publicidade como fenômeno interno decorre da própria natureza dialética do processo. Com efeito, impõe-se a necessidade de que os atos judiciais se realizem através da obediência ao contraditório, que só se viabilizará mediante a devida divulgação aos participantes do procedimento enfrentado. Cuida-se, aqui, do que a doutrina denomina comumente de publicidade interna, destinada a propiciar o respeito à legalidade e à lisura dos procedimentos adotados pelo Estado na resolução dos litígios.

Costuma-se classificar a publicidade interna em imediata e mediata, relacionando-se a primeira com a presença e o contato direto com os atos processuais, enquanto que a publicidade interna mediata seria verificada através da divulgação de tais atos pelos meios de comunicação (publicação na imprensa oficial, por exemplo).

Segundo Roberto Ferreira a publicidade interna imediata é facilmente observada nos casos de oralidade do processo, enquanto que a manifestação escrita consolidaria a forma mediata (ALMADA, 2006, p.127). De qualquer modo, o objetivo da publicidade interna não enseja maiores dúvidas: evitar qualquer mitigação da garantia ao acesso relativo aos atos praticados no processo.

1.3 PUBLICIDADE COMO FENÔMENO EXTERNO

No entanto, a publicidade não se limita aos interesses dos envolvidos no litígio. Conforme já dito, trata-se de uma garantia ao efetivo exercício do poder de Estado.

A concepção moderna de Estado adota a premissa fundamental de que ao povo seja claramente demonstrado que todos os julgamentos e atos tomados pelo Poder Judiciário são realizados de forma democrática e legítima. A publicidade de tais atos, consequentemente, se revela como o imprescindível instrumento assecuratório da legitimidade e da própria validade da jurisdição. Do contrário, a estrutura social de qualquer nação restaria comprometida, visto que os cidadãos perderiam facilmente a confiança em um Estado exercente de um poder praticado a portas fechadas.

Neste sentido, bem observa Sérgio Gilberto ao referir que a ordem social é o fim primeiro da ordem jurídica e garantia constitucional de hierarquia máxima

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e acima de qualquer outra regra, haja vista que representa a sobrevivência da sociedade juridicamente organizada (PORTO, 2003, p. 30).

A publicidade externa é manifestada, portanto, através da ampla divulgação à coletividade dos atos e julgamentos oriundos do Poder Judiciário. Cumpre registrar que a divulgação dos atos possui também outro papel na consolidação do Estado moderno: além de legitimá-lo, a publicidade contribui para a constante revitalização do Judiciário e do Estado. Com efeito, a efetividade de um sistema jurídico depende de sua sustentação perante os cidadãos jurisdicionados, o que é somente possível através da divulgação transparente dos atos praticados pelos três Poderes – Executivo, Judiciário e Legislativo.

Nesta esteira, preleciona Habernas, o direito não é bastante apenas de per si, sendo necessário acoplar aos fundamentos normativos de validade - legitimidade presumida do processo legislativo sufragado pela soberania popular - os elementos concretos da vida social, tal como se apresentam nas expectativas populares cotidianas. Ora, em relação à publicidade dos atos processuais inexiste qualquer dúvida acerca da influência do cidadão na correção e no equilíbrio do Sistema Judiciário (HABERMAS, 1997, p. 138-139).

Em regra, o acesso aos autos dos processos, a audiências, sessões de julgamentos e demais atos processuais é público, sendo ilegal qualquer restrição imposta ao seu acompanhamento (dentro, obviamente, do critério da razoabilidade). Abre-se exceção apenas àqueles casos em que a defesa da intimidade ou o interesse social ou público aconselharem a adoção de uma publicidade restrita (art. 792, § 1º, do CPP). Ainda nos casos de atos processuais que corram em sigilo, entretanto, não existe vedação total. O grau máximo de restrição à publicidade compreende o processo ao qual tenham acesso, além do juiz, apenas as partes e seus procuradores. Estes em hipótese alguma podem ficar alijados dos atos processuais

2. OPINIO DELICTI: APESCTOS GERAIS

A persecução penal desenvolve-se em duas fases: uma administrativa (inquérito policial) e outra jurisdicional (ação penal). O inquérito policial é uma peça escrita, preparatória da ação penal, de natureza inquisitiva - não lhe aplicado os princípios da atividade jurisdicional. Quem o preside é o delegado de polícia que desenvolve atividade administrativa. Sua finalidade é a investigação sobre a existência de fato criminoso e sua autoria (justa causa para a ação penal), atendendo a dois objetivos: a) - dar elementos para a formação da opinio delicti do órgão acusador (convicção do promotor ou do querelante); b) - dar embasamento fático para que a ação penal tenha justa causa (decisão do juiz recebendo a acusação).

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Portanto, a opinio delicti é a convicção do órgão acusador de que existe justa causa para o início da ação penal. Uma vez formada a opinio delicti, o órgão acusador apresenta a denúncia, materializando a opinio delicti, a apresentação da denúncia ou da queixa ao juiz encerra a fase administrativa da persecução penal, iniciando-se a fase jurisdicional. A Constituição Federal, art. 129, inc. I, estabeleceu que é função institucional do Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública. Logo, se no inquérito policial o fato investigado foi classificado, pelo delegado, como crime de ação penal pública, o órgão acusador para a formação da opinio delicti é o Ministério Público.

Na persecução penal, existe um momento no qual ocorre, pelo órgão acusador e somente por ele, a formação da opinio delicti, isto é, com base nos elementos apurados no inquérito, o promotor, convencido da existência de justa causa para a ação penal, oferece a denúncia, encerrando a fase administrativa da persecução penal (BONFIM, 2012, p. 185). Neste contexto, importante destacar a influência exercida pela mídia na formação do que denominamos no texto em tela de opinio delicit midiática.

3. A MÁ INFLUÊNCIA DA MÍDIA PENAL

Impende que por mais que a publicidade buscasse como instrumento de combate às injustiças, a relação globalizada e crescente entre o discurso da mídia e o sistema jurídico, especificadamente o direito penal, merece certa posição de estudo minucioso. Ademais, “não basta que se faça justiça: é preciso que se veja que está sendo feita justiça” (MOREIRA, 1992, p. 73). A publicidade dos atos processuais se transmutou para a também publicidade a toda sociedade, trazendo desconforto jurídico e, desse modo, prejuízos à realização da Justiça (CARNELUTTI, 1955).

A reflexão se vale pela atuação da imprensa e a veemência com que expõe e acusa o delito para a sociedade. Ora, não raras vezes, infelizmente, acontecem crimes bárbaros que chocam todo o país e, nesse momento, que mais se apercebe como a mídia penal exerce seu poder, isto é, o repórter que cobre determinada matéria de cunho penal atua como se promotor de acusação fosse, dando a entender que “todo repórter é Ministério Público” (SILVA, 1984, p.66).

O discurso midiático não se apregoa da inocência, mas sim da acusação. É por isso, que a partir da notícia de certo ato ilícito praticado por determinado indivíduo, a mídia lança prejulgamentos que, de mais a mais, influenciam o pensamento social que se vê com preconceitos (no sentido de preconceituar uma situação suposta) e discriminações. É, portanto, a mídia, a força contrária à Justiça; os olhos da sociedade não se atentam à Justiça, mas à imprensa, de modo que o papel da imprensa se confunde com o papel do próprio juiz.

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Vê-se a frente de um choque de princípios, ou melhor, de norma-princípio, que de relevância constitucional, se tornam essenciais para a difusão da problemática proposta por este estudo. A liberdade de imprensa é valor constitucional que tem por prerrogativa a não censura. Entretanto, não se trata de liberdade absoluta o que, neste enfoque abordado, colide com a presunção de inocência e intimidade.

Por se dizer um discurso elusivo e massificado, a liberdade de imprensa – por vias da mídia – acaba que, na maioria das vezes, por mitigar ou eliminar as demais normas-princípio (presunção de inocência e intimidade), o que, à luz da hermenêutica, não é método eficiente e justo. Contudo, a mídia vale-se de uma predominância social e com isso, expondo seus ideais e invadindo a vida privada sem limitações.

Não longe de exemplificar, é notório nas redes de televisão o total acompanhamento de ações e diligências (por exemplo, de mandado de prisão) do órgão do Ministério Público. Contudo, a veracidade da noticia veiculada para população nem sempre pode ter certeza se realmente corresponde à realidade; pasmem, é difícil saber se a investigação é da policia ou do Ministério Público ou se da própria televisão que está presente em todos os atos (é possível prever que a própria noticia gerou a investigação).

O papel da lei é desmantelado e perde a razão de ser (a lei tem o dever de frear os anseios da população que busca a justiça das próprias razões). Todavia, é assim que o movimento é utilizado pela imprensa que trabalha impondo pressão à Justiça e popularizando os casos criminais (das barbáries às simples contravenções penais). De certo modo, faz a lei, mais uma vez, se ver frente ao abismo da pressão midiática, deixando de funcionar, tornando-se capaz de decepcionar o anseio popular – que a cada dia se desencanta pela realização da Justiça – e contagiado por suas paixões formula – ou na maioria das vezes é levado a formular – suas próprias convicções sobre o que é justo.

Incansavelmente remonta à análise do significado do discurso midiático que tem, fortemente, não somente influenciado a atividade do legislador ordinário – principalmente em matéria penal – mas, observando de forma ríspida, abica, por conseguinte, na destituição dos direitos humanos deixando de reconhecê-los, não se importando, ao menos, com direitos e garantias do cidadão.

Não delongando a tamanha problemática, basta por condescender à conclusão de Nilo Batista em que “[...] uma especial vinculação entre a mídia e o sistema penal constitui, por si mesma, importante característica dos sistemas penais do capitalismo tardio” (BATISTA, 2003, p. 251). Ora, é fundamental o estudo que resvala à forma em que os meios de comunicação em massa têm cooperado para a deterioração dos direitos humanos legitimados e, por sua vez, construindo a intervenção punitiva do Estado.

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Veja bem, o discurso midiático pautado na sua força social – ou pelo menos naquilo em que acredita ser o pensamento ideal para a sociedade – controla – mesmo que, e quase sempre, de forma manipulada – opiniões da sociedade, ao passo que acaba por se garantir como o mecanismo da manutenção social, assim, projetando a criação de medidas anormais e repassando ao indivíduo que o Estado possui função da violência punitiva.

Com a influência do crescimento globalizado, o conhecimento e a informação, através da mídia, têm chegado e sido repassado com presteza de serviço, aproximando, numa visão sociológica, a comunicação entre os povos. Desse modo, a transmissão deste conhecimento e dessa informação, são, senão, os grandes transformadores da sociedade (KUMAR, 1997).

Destarte, a importância dada ao conhecimento enraizada nos meios de comunicação verifica como mola propulsora da ampliação quantitativa – embora pouco qualitativa – da informação, tornando-se fator expressivo para o crescimento e formação de opinião social.

Ademais, é mais que mera propagação de informação – que aos montes acabam que por não se penetrarem com a real intenção – antes, consagra o próprio modo de vida social, concretizando, nos dizeres de Kumar na “moeda do poder”. Moeda esta valiosa, ao ponto de valer mais que os próprios direitos das pessoas.

Tornar-se-ia mais irônico indagar sobre o valor da informação do modo com que ela é produzida, por exemplo, na televisão, mas notório é o fato – e este sim o objeto desse estudo – de que o monopólio da informação incumbe à mídia. Não só à televisão, que por sua vez é papel importante nessa “jogada” midiática, mas também os diversos meios de aproximação e indexação de pensamentos que a internet proporciona.

Não obstante às diversas posições a respeito da sociedade de informação, frisa-se aqui, considerar, apenas, as alterações referentes ao âmbito jurídico. Portanto, direciona a visão aos efeitos que o discurso midiático estabelece e vincula o capitalismo capaz de influir e favorecer aos interesses ideológicos e político-econômicos próprios, formando e convocando “seguidores” de suas informações.

A comunicação de massa tecnicamente não é a real comunicação – em que se tem o emissor, o receptor e a mensagem em debates contínuos e, porquanto bilaterais. A comunicação de massa a que se refere neste estudo impede a resposta ou debate do receptor; é unilateral, capaz de conceder ao público a sua versão, transmitindo-a como verdade absoluta. Por mais que se vislumbre a benesse da sociedade de informação, no fundo, não se pode deixar de ressaltar a insegurança que ela nos traz. O excessivo rompimento dos fatos e o grande volume de informação (manipulada) têm gerado, afinal, uma sociedade de desinformação (CARVALHO, 2009).

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Acrescente-se, num ponto de vista filosófico, que o homem na sociedade midiática torna-se participante ativo, porém com conhecimento passivo, entrementes, de maneira dolosa que o discurso midiático difunde no seu modo pensar.

Neste introito, relembrando o valor despendido à “moeda do poder” que, por si só, refere à informação, do ponto de vista, agora jurídico, nada melhor que suplantar o seu controle. Tendo em vista seu papel social, não pode ficar à mercê; a manutenção da ordem social é legitima das pessoas e o dominador transpassa sua vontade para que os dominados (grande maioria da sociedade) cumpram como vontade própria – e o dominador não deve ser a mídia.

O monopólio midiático e sua influência no imaginário social – isto é, aquele que age na prática e no fazer da sociedade, considerado como sentido organizador do comportamento humano e das relações sociais – só exerce se reconhecido pela sociedade (CASTORIADIS, 1982).

É aqui que se atracam os poderes da mídia, vez que a produção de seus efeitos é real, porquanto o dominador (discurso midiático) sobressai aos dominados (sociedade). O grupo dominador detentor do capital econômico, idealizado governamentalmente, utiliza estratégias de forma que consolidam a sua dominação.

Valendo-se deste pensamento e não recaindo em tautologias, no campo penal os meios de comunicação de massa são fundamentais para a produção da realidade distorcida, ou seja, a indignação moral e a produção de características do delinquente.

É por esse modo explanado a fácil constatação e vislumbre existencial da influência da mídia – através de seu discurso dominante – capaz de impor a dominação e dissipar a desinformação definido a sociedade, inclusive o pensamento social, de acordo com interesses que lhe parecem, egoisticamente, verdadeiros e próprios.

O discurso da mídia não é somente a sua ideologia em buscar dominar; é, contudo, o corpo explicativo prático que prescreve, normatiza e regula assegurando à sociedade a explicação – que a seu modo de enxergar é racional – das diferenças sociais.

No âmbito jurídico, sobretudo penal, o discurso da mídia é punitivo. Através dos meios de comunicação, a sociedade é bombardeada com noticias sobre fatos suficientemente atraentes para que desvie a atenção dos telespectadores e, desse modo, acortine os problemas econômicos do país. É neste enfoque que os torneios desportivos e os crimes cometidos com crueldade, têm sido alardeados pela mídia para envolver os receptores em sua discussão e distraí-los das questões mais relevantes.

Assim, sem acesso às informações que lhe garantam uma “visão de mundo”, a população tem somente a percepção deformada da realidade,

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passada pela classe dominante, conduzindo a comportar dentro das próprias balizas impostas.

A ideologia presente no discurso midiático passa a ser, portanto, a função (o mecanismo) de vedar os olhos da sociedade para a realidade, de forma a ludibriar as pessoas, fazendo com que acreditem estarem sendo informadas da verdade. Mas, na real, estão sendo manipuladas com a ocultação.

Por esse óbvio, os meios de comunicação criam a realidade disfarçada, moldando a sociedade, manipulando a conscientização das pessoas de acordo com o interesse impregnado. Veja bem, é como afirmar que a mídia possui a técnica e a matéria-prima para fabricar o produto final (entendendo este como o pensamento da sociedade).

É denotar, portanto, que o discurso midiático dominante não encontra barreiras que o impeça de adentrar nas diversas residências, em suma, nos diversos modos de pensar e agir da população. Desse modo, no que toca ao direito penal, a criminalidade é difundida como aspecto dilacerado de idéias negativas, tais quais em que “o criminoso é um ser que na sociedade não deve viver”, “deve-se haver pena de morte”, “as penas devem ser maiores”, “o cumprimento da pena deve ser só fechado”, que “deve criar novas leis mais severas”, enfim, argumentos que ao invés de buscarem um caráter ressocializador reportam-se ao seu exímio social (a vingança).

Ora, a Constituição Federal de 1988, instituindo o modo de pensar e viver do Estado Democrático de Direito, prioriza os direitos da dignidade da pessoa humana que foram conquistados através de lutas políticas e sociais, construindo a sociedade atual. O discurso dominante sai do Estado Democrático de Direito e se aproxima do Estado Policial de Direito; assim, o discurso midiático institui o punitivismo construindo o ideal de que a criminalização, ou seja, a repressão social é a melhor solução para acabar com os conflitos sociais – principalmente com a figura do indivíduo delituoso.

Os temas criminais abordados pela mídia impõe a sua própria opinio delicti, de maneira manipulada pelos seus meios de inserção social – hodierno, muito comum na figura de apresentadores sensacionalistas que agradam ao público pelo jeito atípico de conduzir o programa jornalístico, i.é, sem tamanhas formalidades e textos pré-produzidos. Assim, os programas apresentam aos telespectadores as ideias de forma como o discurso dominante imponha – e às vezes com cunho forjado pela vontade político-econômica – sem ao menos se preocupar com a real verdade do fato.

Apresenta, contudo seu interesse e modo de ver e pensar, cabendo aos atípicos jornalistas transformarem a notícia num verdadeiro teatro de horrores, de modo que utilizam de expressões e gírias falaciais para conquistar o público, porquanto, repassarem o ideal de que a segurança social advirá quando o

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Estado resolver por punir severamente (e “severamente” no seu maior linguajar jornalístico sensacionalista se refere à “pena de morte”) os, na maioria das vezes, suspeitos de um crime.

Pode se dizer que o poder da palavra se transfere para o poder de persuasão social que o apresentador faz da noticia, se valendo de encenações e opiniões pífias, sem insurgência de, no mínimo, respaldo legal. Reportam a ideias gerais voltadas ao modo de raciocinar da sociedade, i.é, dão ao telespectador a insegurança e dúvida, vale dizer, o cidadão sem maior discernimento da questão se deixa levar pela opinião imaculada do discurso, principalmente, quando a mídia, covardemente, o coloca como “personagem da peça” ao questionar “o que deve ele fazer”, “aonde ele vai parar” e etc.

Destarte, os domínios do discurso midiático provocam a dependência do indivíduo, principalmente porque este não detêm do conhecimento técnico e, nesse sentido, a mídia o aproveita para fazê-lo pensar como ela quer. Nesta esteira, é fácil concluir que a própria mídia constrói a opinião pública, a partir do momento em que seleciona os assuntos, transmite sua opinião e a finaliza, divulgando a reação da sociedade sobre a matéria que ela mesma determinou o modo de pensar (VIEIRA, 2003).

Assim, resta límpido enfatizar que a noticia manipulada transforma a opinião pública na própria opinião publicada, de maneira passivamente que assume como verdadeiro aquilo que é divulgado. Logo, os meios de comunicação fogem da sua essência – informar – e adentram no âmbito mais interessante e lucrativo que é formar opinião, de forma que conseguem manipular a massa social a pensar e agir conforme a força dominadora os queira.

Foge-se da imparcialidade e torna-se o discurso e a influência da mídia uma comunicação unilateral capaz de produzir na “informação” a verdade inexorável, mesmo que seja, mentira. Entrementes, a imparcialidade e a veracidade que por detrás do real significado da expressão “comunicação” acaba que por ficar esfumaçado pela “realidade” proclamada nos discursos midiáticos.

Não é difícil perceber que a mídia insere sua percepção – que nem sempre é o correspondente à verdade fática – criando a realidade. Não se transmite fato (acontecimento do mundo empírico), mas sim notícia (que nada mais é do que produto do fato, todavia, com carga de interesses próprios). Contudo, a relevância dos fatos não importa sendo necessário que a notícia garanta valorização exacerbada, substituindo o interesse público, pelo interesse publicado. Ora, o que vale é a corrida pela maior audiência (custe o que custar!).

Não caindo ao absurdo de ver a perda da audiência pelo mero transparecer do verdadeiro fato, a mídia além de impor sua percepção sobre o crime deixa de pontuar questões esclarecedoras e relevantes do fenômeno, trocando assim a verdade técnica pelo espetáculo do discurso encenado e propenso a altos índices

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de audiência. Na verdade pensam que o interesse do telespectador não está em como o procedimento criminal deva acontecer, mas sim a “diversão” está em punir o agente delituoso.

Não é a toa que a política se volta para os meios de comunicação para atuarem e decidirem; o medo à represália social atinge o modo de agir da própria representação política e desse modo o Estado se vê diante de uma trincheira em guerra, vez que não pode se preocupar em solucionar nos seus verdadeiros e legais modos, devendo mesmo, causar uma impressão do que se faz ou fora feito (ZAFFARONI, 1997).

A visão dada no discurso midiático é de Estado Punitivo, que a todo o momento está em guerra; torna-se a mídia a droga mais dependente da sociedade, causando um colapso público, informando nocivamente e mais, geradora da destruição do pensamento e senso crítico – inclusive, reflexivo – do cidadão social.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por mais que a conquista dos atos processuais restou, com grande efeito, na realização da justiça limpa, justa e ética, com mesma força, entretanto, a influência da mídia, em especial no sistema penal, trouxe uma tormenta à Justiça, tendo em vista as várias discussões principiológicas envolvidas na relação direito-mídia.

A utilização do apelo emocional do discurso midiático – confirmado pelo sucesso propagandístico – vincula os próprios interesses a notícia veiculada, bastando para despertar o alvoroço social. Correlato, o apelo emocional clama por uma responsabilização que se vincula à esperança de só assim os problemas sociais estarem resolvidos.

Num contexto populista, a solução da responsabilização corresponde à manipulação da sociedade (papel este que cabe à mídia). E de maneira simplória, o debate midiático dota de uma valoração política capaz de manipular o bom senso crítico da sociedade formando o senso comum. O discurso opõe o ruim do bom, o certo do errado, o cidadão do criminoso, todavia, valorando aquilo que o interesse da classe dominante deseja com que a sociedade pense e reflita. Já trabalha no próprio discurso midiático a conclusão da reflexão proposta. Assim, atribui a responsabilização ao Estado tornando-o punitivista e prometendo que assim traria o sentimento de segurança à sociedade.

A política criminal estrutura, portanto, na manipulação da sociedade de massa. Desse modo, o homem se volta à primeira opção de segurança proposta, aparentando ser a única existente e eficiente. Essa é a verdadeira função do populismo generalizado e manipulado pelo discurso midiático dominante –

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político – de maneira bastante a responsabilizar o Estado a dar-lhe a solução do problema, sob a perspectiva de que é o que a sociedade toda deseja (senso comum).

Nesse ensejo, outra conclusão não justifica a encerrar o presente raciocínio senão a de que a opinio delicti midiática exerce o papel dilacerador ao senso crítico pessoal, formando, exclusivamente, uma opinião geral e incrédula, de modo a exercer, na massa social, uma influência capaz de pautar os ditames a serem seguidos e, na maioria das vezes, completamente às avessas do verdadeiro procedimento a ser seguido e respeitado pelo processo penal.

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OS PROGRAMAS BRASILEIROS DE DISTRIBUIÇÃO DE RENDA COMO MECANISMO DE GARANTIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E DA CIDADANIA

Jean CarloS BarCeloS martinS306

CíCero JoSé alVeS SoareS neto307

alexandre Walmott BorgeS*

1. INTRODUÇÃO

Os direitos fundamentais compreendem um ideal expresso nas normas de existência de obrigações, direitos e proibições para cada indivíduo. O texto constitucional tipifica a realização de mecanismos e políticas para efetivação desses direitos, devendo ser incorporados ao dia-dia dos cidadãos. A plena realização de garantias relativas às liberdades, os direitos individuais e sociais é o preceito da justiça social e dos valores da dignidade humana.

Sob este prisma os esforços do Estado de Bem-Estar Social na criação das condições necessárias de ações capacitadoras para o mínimo de igualdade entre os homens. A eficácia dos direitos sociais está diretamente relacionada às ações estatais assumidas no compromisso da promoção prestacional por meio de um desempenho positivo.

A constituição editou como direitos sociais básicos a educação, a saúde, o trabalho, a alimentação, a previdência e a assistência social, sendo a partir desses direitos é que deve partir a atuação estatal para melhoria das condições básicas de vida.

A inserção da complementação monetária passa então a representar uma verdadeira luta de combate ao que impossibilita o mínimo existencial da maior parte da população brasileira, que seria a fome e a miséria, em seu ciclo reprodutivo, prejudicial à sobrevivência familiar, a saúde e educação dos filhos.

Assim, segue-se breve estudo sobre os programas de transferência de renda no histórico nacional, como uma medida de desenvolvimento para possibilitar o ingresso da população carente no mercado do consumo e da superação de situações de risco.

2. O ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL (WELFARE STATE): CARACTERIZAÇÃO E A REESTRUTURAÇÃO NO CONTEXTO DAS CRISES GLOBAIS.

As primeiras décadas do século XX foram marcadas por uma série de acontecimentos nefastos ao desenvolvimento e sobrevivência da humanidade. A

306 Professor da FADIR-UFU. Mestre em Direito.307 Doutor em Sociologia. Professor do mestrado em Direito da UFU.* Doutor e Mestre em Direito pela UFSC. Atualmente é professor do programa de pós gra-duação, mestrado e especialização, e da graduação em direito da Universidade Federal de Uberlândia UFU. É diretor de pós-graduação da UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA Pró-Reitoria de pesquisa e de pós-graduação

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primeira grande guerra nos idos de 1914-1919, a crise de 1929 e, posteriormente, o desenrolar da segunda guerra mundial entre 1939 e 1945, fizeram surgir a necessidade da adoção pelos governos mundiais de políticas sociais capazes de possibilitar aos cidadãos um efetivo bem estar comum.

As políticas sociais administrativas, nesta primeira metade do século, firmaram-se no sentido da promoção do desenvolvimento econômico e combate a pobreza e o desemprego. Particularmente, foram implementadas ações que priorizavam direitos ligados à distribuição de serviços sociais, principalmente, relativos ao seguro desemprego, saúde, educação, aposentadoria, apoio aos idosos, crianças e distribuição de renda. (SPICKER, 2008, p. 79)

O termo “welfare” (bem estar), ainda nos dizeres de Paul Spicker (2008, p. 83) traz consigo ambiguidades, podendo ser utilizado: a) bem-estar, para se referir ao bem-comum coletivo da sociedade, relativo à boa gerência econômica, boa utilização de recursos em prol dos cidadãos em seus direitos de ter; b) bem-estar, referente à concretização de serviços destinados à proteção popular em condições específicas, como crianças, idosos e doentes; e c) bem-estar, no sentido de assistência financeira à população carente.

Neste sentido, observa-se a preocupação humanitária das garantias e direitos do homem, em realce ao da dignidade da pessoa, que deve se desenvolver a partir da centralização da problemática a cerca daqueles mais necessitados, combinando atividades de solidariedade ligadas ao setor público e privado. Confirmando, por conseguinte, os ideais de uma sociedade democrática de direitos.

Têm-se, então, nos dizeres de Carlos Roberto Siqueira Castro (2010, p. 256), que:

[...] os velhos embates entre os princípios da liberdade e da igualdade, que a seu tempo empolgaram a filosofia política e estiveram na crista da onda das revoluções liberais e socialistas da era moderna, extremando o Estado burguês de Direito e o Estado material de Direito, tornando-se correligionários no discurso pluralista e social-democrático da pós-modernidade, onde as energias dos homens e das instituições emprenham-se, não mais no sentido das alternativas reducionistas que privilegiam um desses postulados fundamentais da organização social e política em detrimento do outro, mas sim em prol de mais liberdade e de mais igualdade. A bem dizer, a dialética histórica entre os valores da liberdade e da igualdade acabou banalizada nas ambiguidades do vigorante protótipo de Estado social de direito, que, sem desviar-se do leito liberal, abriu-se ao encontro das águas turbulentas do conflito social. Foi, sem dúvida, na pureza indisfarçável do registro da História,

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com o propósito de preservar o compromisso ideológico com o modelo de produção capitalista que o Estado Liberal transmudou-se em Social, ensejando o intervencionismo publicista como guinada estratégica para salvaguardar o ideário e as fontes de acumulação burguesas.

Mundialmente os ideais públicos sociais podem ser exemplificados pelas políticas administrativas do “Welfare State”, adotada pelos Estados Unidos da América, ou por programas de equivalência europeia baseados na terminologia da “Proteção Social”. Ambos se diferenciam no aspecto da tipificação do beneficiário em questão e de como deveriam agir os governantes, variando, conforme avaliam Paul Spicker (2008, p. 91) e Richard Titmus (1974, p. 234), no provimento das necessidades da população através do provimento Estatal daquilo que não conseguiam por si só (welfare residual); no provimento baseado na solidariedade de ações entre Estado e sociedade (solidariedade social); no atendimento não apenas à população carente, mas a todos que procurassem pelos serviços ofertados pelo Estado, formando um verdadeiro sistema institucional do bem-estar social; e por fim, na ajuda à força trabalhadora como mecanismo regulador e articulador da economia.

Cabe aqui apontarmos as considerações do referido autor e professor da Universidade Britânica Robert Gordon, comentando que os diversos tipos de Estado do Bem-Estar Social podem agir em miscelânea de ações, benefícios e serviços à população, sendo, ao mesmo tempo, institucional e residual.

Para Spicker (2008, p. 93) os benefícios universais e serviços são os benefícios disponíveis para todos como um direito, ou, pelo menos, categorias inteiras de pessoas diferenciadas, como os idosos ou crianças. Em contra ponto os benefícios seletivos e serviços são reservados para pessoas em necessidade. Tais argumentos referem-se às mesmas questões que o bem-estar institucional e residual, mas há uma diferença marcante que não pode ser esquecida: bem-estar institucional e residual são princípios, ao passo que a universalidade e seletividade são métodos. Um sistema residual pode usar um serviço universal se for o caso, por exemplo, de cuidados de saúde associado com a saúde pública universal, e um sistema institucional precisa de alguns benefícios seletivos para garantir que as necessidades sejam atendidas.

O mesmo autor complementa suas análises, reforçando que os serviços universais podem alcançar a todos nos mesmos termos. Este é o argumento para os serviços públicos realizados nos anos de 1940, como estradas e esgotos e posteriormente estendidos aos serviços de educação e saúde (SPICKER, 2008, p. 93). A principal objeção defendida pelo Poder Público, relaciona-se ao custo dos serviços universais. A seletividade, entretanto, é muitas vezes apresentada como sendo mais eficiente, já que, menos dinheiro é gasto e apresentando um melhor resultado.

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Porém, há problemas com serviços seletivos, porque os beneficiários têm que ser identificados, o que motivaria uma demanda executória administrativa complexa e cara para ser cumprida, e, muitas vezes há problemas causados pela tentativa de incluir algumas pessoas, porém excluindo outras.

Apesar desses modelos serem utilizados quando se trata de formular conceitos diferenciadores, sua aplicação prática restringe-se apenas aos estudos acadêmicos, já que a dicotomia institucional/residual não pode ser tida como oposicionista, como foi demonstrado alhures. O que realmente deve ser notado é a extensão da responsabilidade pública na manutenção do bem-estar social, não conseguindo determinar bases estratégicas para o alcance da intervenção estatal.

Numa melhor tentativa de descrever os modelos de welfare, Esping-Andersen (1990, p. 4), propôs uma conceituação para os regimes do Estado do Bem-Estar Social, evitando a equivocada equiparação entre aquele e as políticas de melhoria das condições sociais. Seu enfoque preconiza as variáveis e os critérios da desmercantilização, ou seja, a possibilidade dos indivíduos particulares e principalmente as famílias, terem uma sobrevivência digna e aceitável, mesmo não participando diretamente no mercado. Atrelado tem-se, também, o condicionante da estratificação social, que acentua uma nova institucionalização capaz de corrigir as desigualdades, fundada na valorização das relações sociais.

Para Esping-Andersen (1990, p. 26-29), os Welfare States deveriam formar três tipos de regimes, descrevendo papéis atribuídos à junção de ações do Estado, mercado e da família. Sendo eles, o Regime liberal, regime no qual predomina o emprego de benefícios proporcionados mediante a comprovação da carência, sendo as transferências universais modestas. A assistência pública é mantida em um nível mínimo, a fim de não se constituir desestímulo à participação do indivíduo no mercado de trabalho. O Estado incentiva o mercado a prover o bem-estar, seja pelo fato de garantir apenas uma pequena provisão pública direta, ou por subsidiar mecanismos privados de bem-estar e de proteção social. Dos países que se agrupam neste arquétipo podem ser citados os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália.

No Regime “conservador” ou “coorporativista” o mercado não é visto como o único responsável pela provisão de bem-estar e dos direitos sociais, permanecendo o papel integralizador estadista na distribuição exclusiva dos benefícios. A concessão de direitos, portanto, manteve uma continuidade de classe e de status. Historicamente, tinha uma forte influência da Igreja, mantendo o seu compromisso de preservação dos valores tradicionais da família. Esta devia ter precedência sobre o Estado na provisão de bem-estar, que deveria priorizar outros serviços. Os países da Europa continental como Alemanha, França, Itália e Áustria, seguiram esse modelo.

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Como último regime de Estado de Bem-Estar, Esping-Anderson, pontua o Regime “social-democrata”, que reconhece o papel necessário de reformas sociais nos países, evitando o dualismo entre mercado e Estado, e também entre os trabalhadores, representantes da classe operária, e a classe média, estabelecendo um padrão maior de igualdade de benefícios e serviços sociais. Neste regime há uma disponibilidade de serviços de alta qualidade, atrelada à concessão de benefícios generosos, possibilitando uma integral participação dos grupos sociais carentes aos direitos usufruídos pelos de melhor situação.

O autor resume o ideal da social-democracia na seguinte frase: “todos se beneficiam; todos são dependentes e todos supostamente se sentirão no dever de contribuir” (1990, p. 28). O objetivo é incentivar a capacidade de independência dos cidadãos e não favorecer sua ligação com o mercado ou com a família. O pleno-emprego é o fator condicionante para sustentar os elevados níveis de benefícios e serviços, mantendo assim um total equilíbrio. Dentre os países onde estas características são destacadas encontram-se a Suécia, a Dinamarca e a Noruega.

Nos anos de 1970 o Estado de Bem-Estar Social evidenciou enormes mudanças sociopolíticas e econômicas, em razão das transformações globais baseadas na substituição da responsabilidade daquele como produtor de bens e serviços e da necessidade de diminuir o dispêndio de recursos públicos para financiar as políticas sociais, tendo em vista, principalmente, o choque do petróleo e a menor arrecadação econômica, levaram a um novo tipo de Estado e de sociedade pautado na forte valorização do trabalho e do emprego e na distribuição da riqueza através de políticas públicas intervencionistas.

O antigo Estado do Bem-Estar Social torna-se, em síntese, obsoleto e incapaz de resolver os problemas que essa nova ordem econômica globalizada fez surgir. Neste aspecto, François Merrien (In: DELGADO; PORTO. 2009, p. 119) comenta que economistas e especialistas internacionais propuseram políticas monetaristas de combate a inflação, a diminuição da pressão fiscal e dos encargos sociais, flexibilizando o mercado de trabalho, com recomendações no sentido da privatização de estatais, reforma das prestações sociais e da associação de entes públicos e privados.

O professor de políticas sociais comparadas da Universidade de Bergen, Noruega, Stein Kuhnle (In: DELGADO; PORTO. 2009, p. 88) analisa que com o advindo da globalização econômica, a partir do final de 1980, vários países desenvolveram regimes de Estados de Bem-Estar Social que reagissem aos diferentes desafios vivenciados pela sociedade. Ressalta que se destacam os países de economia tipicamente aberta, como os Escandinavos, nos quais o setor público é grande, a tributação é elevada, mas as políticas sociais encontram-se entre as mais amplas do mundo, considerando as necessidades cobertas e a população abrangida.

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Kuhnle comenta ainda que os EUA, Reino Unido e Hong-Kong, adotam regimes diversos, com diferentes graus de abertura econômica, focando-se nas limitações das finalidades das políticas sociais, o que tem levado a uma divergência sobre quais as melhores políticas a serem seguidas. Já o aspecto econômico de cada nação deve ser somado às diferenças culturais e sociais.

Já para Maurizio Ferrera (2007, p. 131), professor da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Milão, a grande problemática vivida por todos os governos reside no saber em disciplinar a política orçamentária, monetária e fiscal, no contexto internacional, e continuar com o financiamento dos direitos sociais para minimizar os efeitos da crise, em especial, no combate ao desemprego, pobreza e exclusão social.

No mesmo momento em que os recursos diminuíram de maneira drástica e que não é mais possível recorrer ao déficit orçamentário, os Estados de Bem-Estar Social são obrigados a financiar maciçamente as medidas de adaptação, a ajudar as reconversões industriais, a favorecer a formação profissional e a reciclagem dos trabalhadores, a assegurar uma renda mínima aos menos favorecidos. (2007, p. 131) Desta forma, com o enfrentamento de dificuldades de manutenção

do Estado provedor do bem coletivo, forma-se a ideia de uma sociedade providencia, com responsabilidade de participar diretamente na produção de bens e serviços para satisfação das necessidades básicas e propiciar a proteção de redes de relações de reconhecimento mútuo no âmbito da sociedade.

A crise do Welfare State, não ocorreu apenas nos países centrais, mas também nos países periféricos como o Brasil, que atrelado aos problemas internos do militarismo e à transição democrática, vivenciou nas décadas de 70 e 80, enormes problemas relativos ao endividamento econômico, uma má distribuição de renda e o considerável aumento da inflação que impossibilitava a manutenção de políticas capazes de sanar a problemática. Não seria outra a consequência, senão o aumento da pobreza, do número de desempregados e dos serviços públicos em geral. (BEHRING e BOSCHETTI. 2006, p. 167)

3. O ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL NO BRASIL: DO CLIENTELISMO AOS PROGRAMAS DE RENDA MÍNIMA

No Brasil, a proteção social pode ser, primeiramente, evidenciada a partir das décadas de 1920, 1930 e 1940 com ações governamentais de políticas públicas de legislação em favor dos trabalhadores, com a criação do fundo de aposentadoria e pensões pela Lei Eloy Chaves e pelos regulamentos populistas da era Vargas, culminando em 1943 na Consolidação das Leis do Trabalho,

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nacionalizando medidas restritivas à duração da jornada do trabalho, à segurança e medicina do trabalho, ao trabalho do menor e a adoção do salário mínimo.

Em 1942, ainda no governo de Getulio Vargas é criada a Legião Brasileira de Assistência – LBA, a primeira instituição assistencialista nacional, a cargo da primeira dama do Estado, com a finalidade de promover ações emergenciais às famílias dos soldados pracinhas e posteriormente estendido à população carente, em especial, idosos e crianças, através da distribuição de alimentos, roupas e remédios.

Contudo, embora houvesse ocorrido um avanço no campo das questões sociais estas ainda se restringiam a direitos apenas aos trabalhadores urbanos formais, ficando excluídos aqueles em atividades informais ou aos trabalhadores do campo, que compunham a maioria da população brasileira.

Apenas nas décadas de 60 e 70 os trabalhadores rurais passam a ter direitos sociais, com a edição do Estatuto do Trabalhador Rural (1963), posteriormente revogada pela Lei do Trabalhador Rural, Lei 5.889 de 1974 e a criação do Fundo de Assistência Rural (FUNRURAL) em 1971.

Neste mesmo período houve a unificação dos sistemas de previdência social em 1966 com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) para os trabalhadores da iniciativa privada, a criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), de contribuição compulsória dos empregadores, com dupla finalidade: (i) de garantir em caso de dispensa imotivado do trabalhador uma indenização pelo tempo de serviço prestado; e (ii) fomentar recursos para utilização pelo governo federal de políticas habitacionais, em parceria com o Banco Nacional de Habitação (BNH) também criado naquele mesmo ano.

Longe de se constituir um sistema universalista de políticas públicas, Annova Carneiro (2010, p. 68) salienta que até os anos de 1970, verificou-se no Brasil uma centralização e concentração de ações exclusivas do governo federal, que formulava e implementava uma tendência ao clientelismo e favorecimento de uma classe. Demonstrado, claramente pelos beneficiários das políticas sociais, qual sejam, os trabalhadores, contribuintes obrigatórios, seja de contribuições sociais, seja de imposto sobre a renda, ou pela participação do patronato no fomento de recursos ao Estado.

As ações públicas são caracterizadas por Marcelo Medeiros (2001, p. 12) como uma relação fundamentada entre Estado e trabalhadores, objetivando unicamente o patrimonialismo, a coopção e o corporativismo. Assim, a proteção social seria moldada num esquema que atenderia a classe operária pelo sistema de previdência social.

Ainda nesse sentido, conclui Medeiros (2001, p. 13), que

De acordo com Malloy (1979, p. 17), o sistema da previdência social reforçou, por um lado, o padrão geral do poder do Executivo federal e,

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por outro lado, para a transformação do Estado em um Estado patrimonial moderno. [...] Ao favorecer o fenômeno do corporativismo, a estrutura de seguridade criada teve o papel de minar a possibilidade de a classe trabalhadora organizar um movimento de oposição autônomo ao regime capitalista regulado pelo Estado. A previdência social contribuiu para a criação de divisões na classe trabalhadora e incentivou entre os trabalhadores uma mentalidade particularista e essencialmente dependente do clientelismo do Estado. [...] Como a institucionalização do Welfare State no Brasil teve como meta a regulação da força de trabalho em uma indústria de dimensões limitadas, apenas os grupos pertencentes ao núcleo capitalista da economia fizeram parte do compromisso. A base da exclusão dos demais grupos é a satisfação da demanda por força de trabalho (mercadoria do sistema). À medida que a indústria se expande e demanda maior volume de trabalho, aumenta a inclusão de grupos sociais na história do Welfare State brasileiro, independentemente do regime político [...].

Durante o governo da ditadura militar, o modelo para o desenvolvimento e o crescimento do país necessitava de um maior acumulo de renda, e consequentemente, uma menor distribuição de verbas em gastos sociais. O que se segue então é a repressão aos movimentos populacionais de cobrança, gerando uma maior concentração de renda, e a adoção de políticas de natureza meramente assistencialistas, de combate às doenças de massa, à melhoria da educação. (MARTINE, 1989, p. 169)

Para Carneiro (2010, p. 68) a melhor ideia sobre o modelo de Estado de Bem-Estar Social no Brasil, até a promulgação da Constituição de 1988 é de que houve uma verdadeira incompatibilidade entre as políticas de assistência e os reais direitos fundamentais sociais da população, posto que, as práticas clientelistas, sem qualquer forma de sistematização e o seu foco minimalista em apenas uma parcela dos cidadãos, não deixa dúvidas sobre sua total característica de ação restrita de bem-estar social.

Com fim da ditadura militar e a estruturação do governo da “Nova República”, baseada no slogan do “tudo pelo social”, questões sociais colocadas em pauta, principalmente no combate a pobreza, passam a ter prioridade, além de programas de distribuição de alimentos e cestas básicas (Programa de Abastecimento Popular - PAP e Programa de Distribuição Emergencial de Alimentos – PRODEA), merenda escolar (Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE), e leite para crianças por meio de entrega de vales e cupons (Programa Nacional do Leite para Crianças Carentes – PNLCC).

Contudo, a instabilidade financeira e os seguidos planos econômicos dos anos 1985-1990, levaram ao interromper ou minimização dessas políticas logo

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após sua criação. Neste cenário, é fortalecida a retomada dos movimentos da sociedade civil brasileira, principalmente com a autonomia dos sindicatos e os novos partidos políticos, ambos de fundamentação social e protecionista dos valores da dignidade humana e do trabalho, cujos avanços

obtidos no texto constitucional refletiram as demandas dos movimentos oriundas da sociedade civil, a saber, no plano social, o avanço dos direitos das mulheres, das crianças, dos índios e a inclusão do conceito de Seguridade Social, compreendendo direitos à saúde, à previdência e à assistência social. Além disso, foram introduzidos, instrumentos de democracia direta como o plebiscito, referendo e iniciativa popular, abrindo-se a possibilidade [...] de estabelecimento de mecanismos de democracia participativa. [...] Por conseguinte, a retomada do Estado democrático brasileiro de direito na década de 1980 teve como aspecto que merece destaque a consagração na Constituição dos direitos sociais como parte da demanda do novo movimento operário e popular. A assistência social, através da demanda destes movimentos, incluído os trabalhadores desta área, tinha como proposta a instituição de uma política pública, com via democrática e universalizante, compondo o tripé da seguridade social. (SILVA. 2010, p. 94/95)

A Constituição Federal de 1934, introduziu no país a política do Bem Estar Social, ainda que de forma insipiente, estabeleceu no campo dos direitos política uma reforma estrutural a assecuratória desse direito, com a implementação do voto secreto e o voto feminino. Foi criada a Justiça do Trabalho com fixação máxima da jornada diária de trabalho em 8 horas, do repouso semanal remunerado, das férias remuneradas.

Posteriormente a Era Vargas, o novo Estado Democrático promulga o texto de 1946, que manteve os antigos direitos fundamentais da carta de 34, mais assegurando o direito de greve e de livre associação sindical. Condições essas que se mantiveram quase inalteradas durante o regime militar de 1964 a 1985.

Mas foi a Carta Constitucional de 1988, que realizou a ampliação e tipificação dos direitos sociais revitalizam a necessidade de mecanismos de garantia da dignidade humana pautada no direito à saúde, à alimentação, ao trabalho, à assistência e à previdência social, responsabilizando o Estado pelo amparo à população de baixa renda e o fortalecimento da família.

Ressurge, nesse contexto, o papel primordial da família como entidade centralizadora do enfoque da reestruturação social baseada na solidariedade e no provimento pluralístico do bem-estar, providos parte pelo Estado e por uma intrigada rede familiar, com um objetivo comum de minimizar os problemas

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relacionados à pobreza, à racionalização de gastos e ao próprio desenvolvimento das nações.

Sob este aspecto a família, e em especial a mulher, tem uma maior participação na vida cotidiana dos cidadãos, posto que, já naquele período, o mercado de trabalho apresenta uma significativa parcela do sexo feminino de forma ativa, retirando-a do âmbito do domicílio, modificando e gerando conflitos que abalam a existência da tradicional entidade familiar, já que a mulher agora não mais queria se responsabilizar pela sobrevencia material do grupo (marido, filhos, idosos) e abdicar do seu espaço no campo laboral.

[...] a definição da família, como centro de atenção das políticas sociais brasileiras, também é preconizada, em decorrência da minimização do Estado, baseada na racionalização de ações e restrições, inclusive para a área social, o que repercute diretamente na implementação das políticas sociais. Entendo, portanto, que a família passa a ser considerada instância detentora de funções que ultrapassam as funções básicas de cuidado e proteção de seus membros, depositando nestas responsabilidades que, na maioria das vezes, são de competência do Estado e que por esse motivo deveriam ser por ele assumidas. (CARNEIRO. 2010, p.58) Assim, quando ocorre o afastamento do Estado para realização de

compromissos importantes na manutenção do bem-estar dos cidadãos, já que a unidade pública institucional também se encontra no foco da crise social-econômica, a família é chamada para assumir funções, que deveriam ser desempenhadas por aquele, mas que se encontram improvidas ou insuficientes.

Para Simonato (2005, p. 184), a tendência cada vez maior de diminuição de gastos públicos, e a forma minimalista de intervenção estatal, apenas naquilo que não pode ser suprido pela entidade familiar, nada mais é que a afirmação do modelo Mix do Estado do Bem-Estar, cuja finalidade se baseia no princípio da subsidiariedade e na participação mútua dos sujeitos públicos e privados para o mercado privado social e enfrentamento da pobreza e diminuição da desigualdade e exclusão.

A transferência de responsabilidade dos compromissos estatais com a proteção social para a família traz consigo a necessidade de reestruturação desta tão antiga instituição social, agora que precisa preencher as lacunas deixadas na proteção das crianças, adolescentes, idosos, deficientes e outros indivíduos a ela vinculados, levando-se em consideração que a participação do Estado somente se daria onde aquela não conseguisse alcançar.

Neste aspecto Dalva Gueiros (2002, p. 171) relata que o contexto de subsidiariedade traçado pela junção de responsabilidades da Família e do

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Estado, minimiza cada vez mais a perspectiva protecionista do segundo e sobrecarrega, por vez, a primeira que também enfrenta um cenário critico em virtude das suas condições socioeconômicas miseráveis.

Pereira (1988, p. 65) defende que esses fatos tiveram suma importância na proteção social, já que o Estado, até então clientelista, deve distorcer do seu caráter eminentemente contratual e contributivo, da previdência, para abarcar uma universalidade de benefícios e assistência não apenas aos trabalhadores segurados, e sim à totalidade da população pobre, mesmo que os que não se enquadram como segurados contribuintes.

A erradicação da pobreza no Brasil começa a ser debatida como forma de estabelecer uma garantia de crescimento econômico e bem-estar coletivo, sendo necessária uma gradual intervenção estatal no sentido de proporcionar um nível de subsistência digna à população carente. A assistência social deveria então ser um direito de todos e não exclusivamente da classe trabalhadora. A complementação monetária das famílias pobres, independentemente de uma contribuição prévia, foi vinculada como mecanismo de redistribuição de renda.

4. OS PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA NO CENÁRIO NACIONAL: AS AÇÕES DE PROTEÇÃO ÀS FAMÍLIAS POBRES, FILHOS E IDOSOS.

A partir do novo paradigma da proteção às famílias pobres, e da atenção

especial às crianças e idosos, a assistência passa a ser vista como uma normativa governamental que promoveria a prestação social e diminuiria as tensões sociais, com o reconhecimento da questão social como uma verdadeira política, em especial a de racionalização e reforma da Seguridade Social, que encontra-se em fase de expansão, mas incapaz de alcançar os segmentos da população que deveriam ser o foco das referidas políticas. (MARTINS, 2004, p. 82)

O artigo 203 da Constituição Federal de 1988, prescreve que a assistência social é direito de quem dela necessitar, e deve ser prestado pelo Estado, independentemente de qualquer tipo de contribuição, com objetivo de zelar pela proteção do grupo familiar (pais, filhos e idosos), a integração dos cidadãos ao mercado de trabalho, a habilitação e reabilitação dos portadores de necessidades e a garantia de um salário mínimo mensal aos idosos e pessoas portadores de necessidades, desde que comprovada a insuficiência de recursos para manutenção de sua subexistência e de sua família.

Em 1991, com a apresentação do Projeto de Lei do então senador Eduardo Suplicy, inicia-se o desenvolvimento do Programa de Garantia de Renda Mínima – PGRM, que beneficiaria os brasileiros maiores de 25 anos de idade com renda de até pouco mais de 2 salários mínimos, projeta uma cadeia de estudos e planejamentos de ações do governo com objetivo de minimizar a pobreza,

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estabelecendo o foco de sua atuação e o público prioritário que almeja beneficiar.O PGRM foi a primeira proposta nacional de distribuição de renda, que

mesmo apresentada em 1991 somente aprovada em 1997, regulamentada em 1998 e implementada no segundo semestre do ano seguinte. Nos dizeres de Vera Telles (1998, p. 13) foi um projeto que levantou dúvidas quanto a sua concepção e eficácia, mas ao mesmo tempo conseguiu com a polêmica se firmar como uma referência importante nos anos que se seguiram à sua aprovação.

Os avanços trazidos pela Constituição Federal de 1988, com o crescimento dos direitos e garantias fundamentais, bem como da tipificação de um conjunto de direitos sociais, contudo, somente foram se concretizando ao longo dos anos de 1990. Sendo que a crise fiscal do Estado que ainda existia neste período impossibilitou um plano de redimensionamento das políticas sociais e atendimento das necessidades do povo para redução das desigualdades.

A Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS308 somente foi publicada

308 Lei 8.742 de 7 de dezembro de 1993: Art. 1º A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.Art. 2o  A assistência social tem por objetivos:  I - a proteção social, que visa à garantia da vida, à redução de danos e à prevenção da incidência de riscos, especialmente:  a) a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; b) o amparo às crianças e aos adolescentes carentes;  c) a promoção da integração ao mercado de trabalho;d) a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; e) a garantia de 1 (um) salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família;  II - a vigilância socioassistencial, que visa a analisar territorialmente a capacidade protetiva das famílias e nela a ocorrência de vulnerabilidades, de ameaças, de vitimizações e danos;  III - a defesa de direitos, que visa a garantir o pleno acesso aos direitos no conjunto das provisões socioassistenciais. Parágrafo único.  Para o enfrentamento da pobreza, a assistência social realiza-se de forma integrada às políticas setoriais, garantindo mínimos sociais e provimento de condições para atender contingências sociais e promovendo a universalização dos direitos sociais.  Art. 3o  Consideram-se entidades e organizações de assistência social aquelas sem fins lucrativos que, isolada ou cumulativamente, prestam atendimento e assessoramento aos beneficiários abrangidos por esta Lei, bem como as que atuam na defesa e garantia de direitos. § 1o  São de atendimento aquelas entidades que, de forma continuada, permanente e planejada, prestam serviços, executam programas ou projetos e concedem benefícios de prestação social básica ou especial, dirigidos às famílias e indivíduos em situações de vulnerabilidade ou risco social e pessoal, nos termos desta Lei, e respeitadas as deliberações do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), de que tratam os incisos I e II do art. 18.  § 2o  São de assessoramento aquelas que, de forma continuada, permanente e planejada, prestam serviços e executam programas ou projetos voltados prioritariamente para o fortalecimento dos movimentos sociais e das organizações de usuários, formação e capacitação de lideranças, dirigidos ao público da política de assistência social, nos termos desta Lei, e respeitadas as deliberações do CNAS, de que tratam os incisos I e II do art. 18.  § 3o  São de defesa e garantia de direitos aquelas que, de forma continuada, permanente e planejada, prestam serviços e executam programas e projetos voltados prioritariamente para

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05 anos após a promulgação do texto constitucional, e tinha como fundamento prover os mínimos sociais por meio de ações conjuntas de iniciativa pública e privada para garantia das necessidades básicas e proteção às famílias vulneráveis e vitimizadas. Ainda no ano de 1993 foi instituído o Plano de Combate à Fome e à Miséria (PCFM), que mobilizou o movimento nacional da parceria, descentralização e solidariedade para defesa das famílias pobres.

As ações públicas no campo da assistência social, consagrada pela carta constitucional como direito social fundamental do cidadão ganharam maior alcance com a edição da Lei Orgânica de 1993, representando um novo significado para a assistência social na sociedade brasileira.

Tanto LOAS quanto PCFM, criaram propostas de transferência de renda que pudessem complementar o ganho monetário daquelas famílias, articulado paralelamente à manutenção das crianças na escola e no desenvolvimento da educação. Desta forma, seria minimizado outro grande problema brasileiro, que era o do trabalho infantil, já que como as famílias não conseguiam renda suficiente para o seu sustento havia necessidade da submissão dos menores no mercado de trabalho.

Esse fato acabava ocasionando, nos dizeres de Ana Maria Fonseca (2001, p. 47), um círculo vicioso no quadro da pobreza brasileira, o que poderia ser reduzido com o oferecimento de complemento de renda às famílias pobres, desde que suas crianças e adolescentes, entre 05 e 16 anos, estivessem matriculadas e frequentando a escola pública. Foi esse o ideal que referenciou os programas de transferência de renda a partir de 1995.

A tutela legislativa do trabalho infantil tem caráter não apenas de cunho ético-social, e sim de função higiênica e fisiológica. É sabido que o trabalho em determinadas circunstâncias poderá promover o anormal desenvolvimento de crianças e adolescentes. Esses fatores não fogem é claro do aspecto humanitário que também fundamenta no âmbito interno e externo, uma proteção especial sobre as condições dessa forma de trabalho, impondo cada vez mais restrições à sua realização.

O direito brasileiro, desde a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT regulamentou em seu Capítulo IV, artigos 402 a 441, a proteção do trabalho do menor, além da ratificação de inúmeras Convenções Internacionais da OIT sobre a temática, em especial as de número 138 e 182, que dispõem sobre o limite de idade mínima para admissão e a eliminação de toda forma degradante de trabalho infantil. Além da proibição estabelecida pelo art. 7º da Constituição Federal, inciso XXXIII, que determina a “proibição de trabalho noturno,

a defesa e efetivação dos direitos socioassistenciais, construção de novos direitos, promoção da cidadania, enfrentamento das desigualdades sociais, articulação com órgãos públicos de defesa de direitos, dirigidos ao público da política de assistência social, nos termos desta Lei, e respeitadas as  deliberações do CNAS, de que tratam os incisos I e II do art. 18.ões do CNAS, e II do art. 18.

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perigoso ou insalubre a menores de 18 (dezoito) anos e de qualquer trabalho a menores de 16 (dezesseis) anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos (quatorze) anos.

Ao mesmo tempo, mudanças quanto à assistência à saúde, sobretudo com a implementação do Programa Saúde da Família – PSF, no ano de 1994, para fazer frente ao antigo modelo tradicional de assistência primária. A estratégia Saúde da Família reafirma as diretrizes fundamentais do Sistema Único de Saúde (SUS), valendo-se da universalização, descentralização, e participação dos cidadãos, que passam a ter um responsável pelo acompanhamento permanente da saúde de um número determinado de indivíduos e famílias que moram no espaço territorial próximo. (LOURENÇÃO; SOLDER. 204, p. 159)

As políticas sociais implementadas no Brasil na década de 1990, podem ser consideradas como contrárias aos ideais universalistas, já que se focavam no caráter de benefício daqueles em situação de extrema pobreza, a exemplo dos programas de distribuição de renda até então efetivados e citados no item anterior.

Maria Lúcia Lopes Silva (2006, p. 93) destaca que novamente a reestruturação produtiva e a corrosão das bases do Estado de Bem Estar Social são colocadas em questão, já que não foi possível ainda atingir o equilíbrio do mercado produtivo e os problemas sociais. Assim, mais uma vez indaga-se o que pode ser feito pelas políticas públicas para garantir a sobrevivência de pessoas deslocadas do mercado de trabalho, já que este não se encontra disponível a todos.

E a autora, relembrando os dizeres de Esping-Anderson (1990, p. 46) discorre ainda que os Estados que se baseiam nos modelos do Welfare States, são responsáveis pela garantia do bem-estar básico de todos os cidadãos, implicando na institucionalização da plena capacidade do indivíduo de se manter independentemente de sua inclusão no emprego. As necessidades básicas relacionam-se então, à concepção de garantia de um mínimo necessário para a existência da dignidade da pessoa humana.

No campo do direito internacional, a distribuição de renda tem sido defendida por vários países, desde 1980, como reflexo das mudanças econômicas e do mercado de trabalho, que ocasionaram um aumento no desemprego e na intensificação da pobreza, conforme narrado anteriormente quando falado sobre a crise nos modelos do Welfare States.

Os programas de transferência de renda passam então a significar uma alternativa particular dos Estados ao possibilitar que a população pobre participasse do comércio, já que se encontravam marginalizadas e excluídas pela falta de trabalho, constituindo-se verdadeiramente num ato compensatório.

Em alguns países como Inglaterra, Alemanha e Holanda, as famílias com crianças até idade de 16 anos e consideradas de baixa renda, tinham direito a

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um benefício mensal monetário. A “renda inserção” foi instituída na França em 1988 e nos Estados Unidos, desde 1975 foi estabelecida uma forma de imposto de renda negativo, para aqueles que tivessem uma renda mínima e determinado números filhos, recebendo valor monetário ao invés de terem de pagar tributado. (MONTEIRO, 2008, p. 25)

A autora ressalta ainda que os programas de transferência de renda brasileira, adotados a partir de 1990 concretizaram o desígnio da luta contra os mais variados indicadores negativos vivenciados ao longo da trajetória histórica social do país. Doraliza Monteiro (2008, p. 27) relata que a concessão de ajuda financeira às famílias carentes, apresentam diversidades formais e de resultado se comparados aos mesmos projetos ofertados na Europa, seja pelos critérios de seleção, pelos valores dos benefícios e até ao fim das desigualdades sociais.

Neste mesmo propósito Maria Ozanira Silva (2004, p. 11), comenta que o pressuposto central de orientação dos programas de transferência de renda no Brasil tem uma justificativa objetiva de interrupção do ciclo de reprodução da pobreza, quando os filhos de famílias pobres são transferidos da rua ou do trabalho para a educação regular, por meio do recebimento do benefício monetária, estruturando-se nos dizeres do artigo 6º da Carta Maior, integrando as políticas básicas sociais da educação, saúde, trabalho e alimentação.

O governo federal passa então a promover gradativamente programas de transferência de renda, descentralizando ações aos municípios que agiriam como executores e fiscalizadores dos recursos enviados para o repasse às famílias. Dentre eles destaca-se a seguir 08 programas que podem ser considerados precursores ao programa do Bolsa Família, objeto de estudo deste trabalho. Assim, foram escolhidos para uma sucinta apresentação apenas sob o aspecto evolutivo das ações públicas.

O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI, instituído em 1996, em alguns Estados (Mato Grosso, Pernambuco e Sergipe), foi abrangido a todos os demais entes federativos, em 1999, trata-se de programa que objetiva erradicar o trabalho infantil, atendendo famílias com renda per capita de até ½ salário mínimo, que possuam filhos com idade entre os 07 e 16 anos, possibilitando a estes frequentar e permanecerem na escola. Fora do horário normal de aula, em centros municipais especializados, usufruem de ações sócio-educativas, tipo recreação, reforço escolar, artes, músicas, esporte, e também complementação alimentar. Para os pais existe ainda, uma complementação de renda mensal que varia de R$ 25,00 a R$ 40,00 por criança/adolescente.

Este programa reforça as políticas diretivas de erradicação da pobreza, do trabalho infantil e do estímulo à educação, já que a intenção é manter crianças ocupadas durante todo o dia, impedindo-os de procurar trabalho. A concessão do benefício fica condicionada à frequência regular à Escola cessando o benefício

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quando o adolescente atinge a idade de 16 anos. (NAHAS. 2006, p. 39)O regulamento jurídico que criou o PETI é um derivado da Lei Federal

8.743/93 – LOAS, e do artigo 24 do referido dispositivo, sendo considerado um programa de proteção social especial, e que encontra-se, desde 28 de dezembro de 2005, integrado com o Programa do Bolsa Família, conforme Portaria GM/MDS nº 666.

O PETI tem demonstrado sua contribuição para a diminuição do trabalho infantil em suas mais variadas formas, sendo considerado por Annova Carneiro (2010, p. 74) como um reflexo positivo na retirada de crianças e adolescentes do mercado de trabalho com inserção integral nas atividades educacionais. Mas, em razão da amplitude da problemática envolvendo a questão não pode ser considerado como fator de eliminação plena do mesmo.

O Benefício de Prestação Continuada – BPC, implantado também 1996, foi previsto pela Carta Constitucional de 1988 e regulamentado diretamente pela Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS, como forma de transferência de renda no valor de 1 salário mínimo, à pessoas idosas com mais de 65 anos de idade ou para as pessoas acometidas por alguma deficiência, que provem não possuir meios de prover sua subsistência ou ser ela feita pela sua família, nos termos do artigo 20309 da referida lei.

309 Lei 8.742/93 - Art. 20.  O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. § 1o  Para os efeitos do disposto no caput, a família é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.  § 2o  Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.   § 3o  Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal  per capita  seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo. § 4o  O benefício de que trata este artigo não pode ser acumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo os da assistência médica e da pensão especial de natureza indenizatória. § 5o  A condição de acolhimento em instituições de longa permanência não prejudica o direito do idoso ou da pessoa com deficiência ao benefício de prestação continuada. § 6º  A concessão do benefício ficará sujeita à avaliação da deficiência e do grau de impedimento de que trata o § 2o, composta por avaliação médica e avaliação social realizadas por médicos peritos e por assistentes sociais do Instituto Nacional de Seguro Social - INSS. § 7o   Na hipótese de não existirem serviços no município de residência do beneficiário, fica assegurado, na forma prevista em regulamento, o seu encaminhamento ao município mais próximo que contar com tal estrutura. § 8o  A renda familiar mensal a que se refere o § 3o deverá ser declarada pelo requerente ou seu representante legal, sujeitando-se aos demais procedimentos previstos no regulamento para o deferimento do pedido. § 9º  A remuneração da pessoa com deficiência na condição de aprendiz não será considerada para fins do cálculo a que se refere o § 3o deste artigo.  §10.  Considera-se impedimento de longo prazo,

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A incapacidade de prover sua própria manutenção fica condicionada ao limite de rendimentos per capita familiar, do idoso ou deficiente, não superior a ¼ do salário mínimo, e desde que não exista vinculação, ou esteja recebendo benefícios de qualquer regime de previdência social, salvo os da assistência médica e da pensão especial de natureza indenizatória.

Por ser pago diretamente pelo Instituto Nacional da Seguridade Social – INSS, que recebe e defere os pedidos do benefício, é comumente confundido com o benefício da aposentadoria por idade ou incapacidade, sendo, entretanto, institutos jurídicos completamente diversos, já que os benefícios da aposentadoria são regulados pela Lei 8.213/92, e somente são concedidos àqueles que pagam regular contribuição e possuam a condição de segurado.

Desta, forma o BPC, não garante aos beneficiários o pagamento de gratificação natalina (13º salário) ou o direito aos dependentes do recebimento da pensão em virtude de morte. Ainda, a cada dois anos, deve ser feita reavaliação das condições do beneficiado, podendo ocorrer a cessação no momento em que ocorrer a recuperação da capacidade laborativa, no caso de pessoa portadora de deficiência ou das condições econômicas do idoso ou deficiente.

A Aposentadoria Rural ou Previdência Social Rural foi determinada pela Constituição brasileira, nos termos do artigo 195, parágrafo 8º, podendo ser considerada como um Programa de Transferência de Renda pelo fato impactante na redução à pobreza da população idosa rurícola por meio de uma proteção especial, aposentadoria, para as famílias de trabalhadores do campo, independentemente da comprovação de tempo de contribuição como segurado, fixado pela Lei de Seguridade.

O beneficio da aposentadoria, de valor equivalente a 1 salário mínimo seria admitido às mulheres com a idade de 55 anos e para os homens de 60 anos, que comprovassem que tenham trabalhado em atividades rurais, por no mínimo 15 anos, ainda que de forma descontínua e mesmo sem a realização de contribuição como segurado obrigatório.

Assim, como os demais benefícios previdenciários, o trabalhador rural deveria comprovar sua condição especial, com a indicação de no mínimo

para os fins do § 2o deste artigo, aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos.  Art. 21. O benefício de prestação continuada deve ser revisto a cada 2 (dois) anos para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem. § 1º O pagamento do benefício cessa no momento em que forem superadas as condições referidas no caput, ou em caso de morte do beneficiário. § 2º O benefício será cancelado quando se constatar irregularidade na sua concessão ou utilização. § 3o  O desenvolvimento das capacidades cognitivas, motoras ou educacionais e a realização de atividades não remuneradas de habilitação e reabilitação, entre outras, não constituem motivo de suspensão ou cessação do benefício da pessoa com deficiência.  § 4º  A cessação do benefício de prestação continuada concedido à pessoa com deficiência não impede nova concessão do benefício, desde que atendidos os requisitos definidos em regulamento.

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03 provas da realização de atividade rural no período de carência até 31 de dezembro de 2010, para ter direito ao recebimento da aposentadoria. Após esse período seguiu-se as regras gerais para concessão do benefício mediante contribuição obrigatória.

O Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à Educação – Bolsa Escola, instituído pela Lei n. 10.219 de abril de 2001, o Bolsa Escola teve como objetivo beneficiar famílias com crianças e adolescentes entre 06 e 15 anos de idade, com a transferência de renda de R$ 15,00 por criança, até o máximo de três filhos, desde que comprovada a frequência mínima escolar de 85%, que seria mensalmente averiguada como elemento essencial para o recebimento dos recursos.

O programa necessitava, entretanto, de uma integração de atividades envolvendo União e Municípios, que gerenciavam o atendimento às famílias e crianças, bem como uma padronização do sistema educativo, o que significou uma reestruturação de todo aparelhamento administrativo estatal para que os objetivos específicos do mesmo pudessem ser atingidos, sendo que o valor limitado de seu componente monetário não conseguiria efeito significativo para alterar a condição de pobreza das famílias.

O Programa Bolsa Alimentação tinha como objetivo estabelecer um programa de redução das deficiências nutricionais e da mortalidade infantil nas populações mais pobres do Brasil, por meio de complementação da renda mensal para famílias com renda per capita de até ½ salário mínimo. Vinculado ao Ministério da Saúde deveria beneficiar mulheres gestantes ou em fase de amamentação ou pais com crianças de 06 meses a 06 anos de idade.

Instituído no ano de 2001, pela Medida Provisória n. 2.206-1 de 06 de setembro, correspondia à transferência de valores entre R$ 15,00 até R$ 45,00 mensais para cada família, que poderiam cumular até três bolsas-alimentação. A assistência alimentação era complementada por uma equipe do Programa Saúde da Família, que desenvolvia ações de saúde como medida de compromisso pelo recebimento do auxílio financeiro.

Como condicionante ao uso dos valores poderiam as famílias aplicá-los na aquisição de alimentos ou para compra de sementes, adubos e demais produtos para, por exemplo, empregá-los em uma horta doméstica, que possibilitassem melhoria na qualidade de vida das crianças e dos membros familiares. (TELLES, 1998, p. 25)

Com a fixação de uma agenda de compromissos a serem seguidas pelas famílias, que poderia incluir desde a realização de consultas de pré-natal para as gestantes até a manutenção regular de vacinações e comparecimento nas unidades de saúde, firmada pelos beneficiários a permanência no programa poderia ser de até 06 meses, permitida a renovação.

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Outro programa de transferência de renda criado em 2001, foi o Agente Jovem direcionado aos jovens que se encontravam fora da escola e integrantes de famílias com renda até ½ salário mínimo, entre idade de 15 e 17 anos, com situação social de risco, e que já tenham participado de outros programas sociais. Sua aplicação também se estendia aos jovens que estivessem sob medida protetiva determinada pelo Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8.069/90) ou portadores de deficiência.

A transferência de renda correspondia a um benefício de R$ 65,00 mensais, desde que comprovada, além da situação de risco narrada acima, também uma frequência escolar de no mínimo 75% nas aulas e demais atividades estabelecidas pelo programa, perdurando até o ano de 2003.

Neste ano, com a entrada em vigor do programa Bolsa Família, a metodologia do Agente Jovem foi readaptada, sendo priorizados jovens que estejam fora da escola, proporcionando-lhes capacitação prático-teórica em cursos com 300 horas aulas além da participação em atividades desenvolvidas na comunidade. (BRASIL - MDS. 2012)

Em janeiro de 2002, a Lei Federal 10.453, cria o Programa Auxílio Gás, como forma de subsidiar a compra de gás de cozinha para as famílias que se encontravam cadastrada em outros programas federais ou possuíam renda per capita de até ½ salário mínimo. Como transferência monetária seria concedido o valor de R$ 15,00 a cada dois meses.

A justificativa desse benefício, nos dizeres de Ana Oliveira (2007, p. 29), fora uma medida compensatória pela retirada das isenções tributárias do governo federal ao gás de cozinha e impossibilidade de ser custeada sua compra pelas famílias mais carentes. Em 2003, também foi incorporado ao programa Bolsa Família.

O Programa Cartão-Alimentação, criado pela Medida Provisória n. 108 de 27 de fevereiro de 2003, convertida na Lei n. 10.689 de 23 de junho daquele ano, inicia as medidas do grande programa estatal Fome Zero e do Programa Nacional de Acesso à Alimentação, cujo objetivo era o combate à fome e suas causas, por meio de várias ações promocionais da segurança alimentar, considerada o pior dos efeitos da pobreza.

O Cartão-Alimentação foi feito com a vinculação conjunta nas três esferas administrativas (União, Estados e Municípios), bem como a permanência do caráter de solidariedade da sociedade civil. Previa a transferência de renda no valor de R$ 50,00 para as famílias com renda per capita de até ½ salário mínimo, através do Cartão Cidadão, emitido em favor da mulher, considerada a responsável pelo grupo familiar (SILVA. 2004. p. 128). Contudo, conforme determina o artigo 4º da Lei 10.689/03, o programa tinha caráter temporário, não gerando direito adquirido, por seis meses prorrogáveis por até mais dois períodos.

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Percebe-se que no período de 1995 até 2003, vários programas de transferência de renda foram introduzidos pelo governo, como medida de garantia do desenvolvimento e combate a pobreza no Brasil, fortalecendo a estrutura familiar, referência em todos eles. Assim, observa-se sua natureza compensatória representada em seu aspecto de transferência monetária, como garantidor da sobrevivência imediata das famílias pobres, e sua medida de universalidade de acesso às políticas públicas condicionantes a uma autonomia futura dessas.

No final de 2003, o fundamento de existência do Estado brasileiro, tipificado no artigo 3º da Constituição Federal, retorna ao debate do cenário político, posto que, a erradicação da pobreza, das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, pautado no desenvolvimento nacional, leva ao direcionamento das políticas administrativas de otimização de gastos orçamentários, gestão única dos programas de distribuição de renda e um planejamento gerencial para alcance do público alvo e dos direitos jusfundamentais, em especial da dignidade da pessoa humana.

Surge então o Programa Bolsa Família e em 2004 o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate a Fome – MDS, em substituição ao antigo Ministério da Assistência Social, realizando a unificação de alguns programas de transferência de renda, abarcando o Bolsa Educação, Bolsa Alimentação, Auxílio Gás e Cartão Alimentação. Através, da Medida Provisória nº 132 de 20 de outubro de 2003, posteriormente convertida na Lei Federal nº 10.836 de 09 de janeiro de 2004, foi criado do Programa Bolsa Família (PBF), com o objetivo de fortalecer de forma imediata as ações governamentais contra a pobreza e miséria da população, através da consolidação de direitos sociais básicos relacionados à Educação e à Saúde, e ao desenvolvimento de todo o grupo familiar (pais e filhos) por meio de medidas complementares de geração de renda, trabalho, alfabetização e outros.

O programa está destinado ao atendimento dos grupos familiares considerados pobres sob o fundamento da renda mínima auferida pela entidade. São tidas como famílias extremamente pobres aquelas com renda mensal per capita inferior a R$ 70,00 e famílias pobres desde que a renda mensal per capital encontre entre os R$ 70,01 e até o limite de R$ 140,00. (MDS, 2012).

Como tentativa de racionalização público-administrativa, financeira e gerencial capaz de englobar as famílias pobres independentemente de estarem trabalhando, ou possuírem filhos e idosos no grupo familiar, o Bolsa Família unificou os antigos programas de transferência monetária em vigor, nos termos do parágrafo único do artigo 1º da Lei 10.836/2004, em especial o Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à Educação - Bolsa Escola, criado em de 2001, o Programa Nacional de Acesso à Alimentação - PNAA, de 2003, o Programa Bolsa Alimentação, instituído em 2001, o Programa Auxílio-Gás, de

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2002, do Cadastramento Único do Governo Federal, instituído pelo Decreto nº 3.877, de 24 de julho de 2001. Em dezembro de 2005, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI foi integrado também ao Programa Bolsa Família, com a edição da Portaria GM/MDS nº 666.

5. CONCLUSÃO

O Estado de Bem-Estar Social deve se esforçar na criação das condições necessárias de ações capacitadoras do mínimo de igualdade. A eficácia do direitos sociais esta diretamente relacionada às ações estatais que devem ser assumidos como um compromisso da promoção prestacional por meio de um desempenho positivo.

A redução dos direitos fundamentais é impossível e a responsabilidade do Estado deve inclusive efetivar as políticas de prestações materiais e jurisdicionais. O poder público é o promotor do mínimo existencial, sendo um reflexo da própria evolução humana, na busca de soluções para os problemas da vida em sociedade.

Para o Estado do Bem Estar Social os programas de transferência de renda tornam-se uma medida a ser desenvolvida para possibilitar o ingresso da população carente no mercado do consumo e da superação de sua situação de risco.

A inserção da complementação monetária passam então a representar uma verdadeira luta de combate ao que impossibilita o mínimo existencial da maior parte da população brasileira, que seria a fome e a miséria, que constitui um ciclo reprodutivo, prejudicial à sobrevivência familiar, a saúde e educação dos filhos.

Assim, a partir do final da década de 1990, vários programas foram instituídos pelo governo federal destacando-se o PETI, o PBC, o Bolsa Escola, o Cartão Alimentação, o Auxílio-Gas, o Bolsa Alimentação, o Agente jovem, todos destinados a consolidar a assistência social aos menos afortunados.

Em 2003, entretanto, um novo programa é editado para suprir as falhas estruturais nas antigas políticas governamentais, sendo criado o Programa Bolsa Família, que reunia vários programas já em vigência para serem controlados e gerenciados pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome.

A grandeza orçamentária e a amplitude de atuação do Bolsa Família, faz entretanto, colocar em debate os reflexos e objetivos desse programa, sendo colocado como um instrumento fútil de incentivo ao ócio e da manutenção da condição de pobreza. Também são apontando argumentos perversos e ameaçadores aos direitos já conquistados pela nação, levando a um questionamento de sua validade ou não.

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PROCESSO LEGISLATIVO COLABORATIVO: A PARTICIPATIVIDADE PELA INTERNET NO TRÂMITE DO PROJETO DE LEI Nº 2.126/2011

(MARCO CIVIL DA INTERNET)

THE COLABORATIVE LEGISLATIVE PROCEDURE: PARTICIPATIVITY TROUGH THE INTERNET DURING THE DRAF BILL NUMBER 2.126/2011

(BRAZILIAN CIVIL RIGHTS FRAMEWORK FOR THE INTERNET)

ruBenS BeçaK310*

João ViCtor rozatti longhi311**

RESUMO

As potencialidades do uso das tecnologias da comunicação e informação (TICs) para a construção de formas diferentes de expressão dos valores democráticos são grandes. O Marco Civil da Internet no Brasil já demonstrou que são verificáveis os corolários da democracia participativa pela construção colaborativa de um projeto de lei pela Internet, que inovando quanto ao exercício dos instrumentos constitucionais de democracia direta ou semirrepresentativa. Entretanto, a participação popular pela Internet avançou também durante as discussões no Poder Legislativo. Este trabalho procura analisar alguns resultados desta participação, em especial no que concerne à redação dos dispositivos que tratam da responsabilidade dos provedores por conteúdo inserido por terceiros.

Palavras-chave: Internet – democracia participativa – Marco Civil – responsa-bilidade civil – liberdade de expressão

ABSTRACT

The potentials of information and communication technologies (ITCs) to help people express the democratic values are great. The Brazilian Internet Civil Rights Framework has shown that it is possible to make true some thesis about participatory democracy, especially after the experience of a collaborative draft bill that was all debated by the Internet, whch is considered an innovative instrument beyond the constitutional forms of direct democracy

310 * Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e do programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da USP. Secretário Geral da USP.311 ** Professor Assistente-DE da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Professor convidado em programas de pós graduação. Mestre em Direito Civil pela UERJ.

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or semi-representational in Brazil. However, popular participation through the Internet was also possible during the discussions in the Parliament. This paper tries to analyze some results of that involvement, especially the articles about the liability of the Internet Service Providers for content inserted by the user.

Keywords: Internet – participatory democracy – Brazilian Civil Rights Framework for the Internet – civil liability – freedom of expression

SUMÁRIO: 1. A experiência de discussão colaborativa do Marco Civil e a submissão do projeto de lei como expressões da democracia partici-pativa na Internet 2.A participação popular durante o trâmite na Comis-são Especial da Câmara dos Deputados 2.1 Comissões parlamentares e sua função: breves assertivas 2.2 As audiências públicas e o portal e-democracia da Câmara dos Deputados: da proposição colaborativa à construção colaborativa 3. O sistema de retirada de conteúdo e respon-sabilidade dos intermediários: desafios à tutela do usuário

INTRODUÇÃO

Muitos preconizam que a democracia, na atualidade, deve fazer dialogar a complexidade de interesses políticos, que vão desde a tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos até os anseios dos agentes econômicos que compõem o mercado.

Por essa razão, afirma-se que o sistema democrático hodierno não pode ser uma democracia excludente, em que Estado e Sociedade Civil caminham separados. Ao revés, além dos sujeitos mencionados, agentes privados, fundações, associações de consumidores e outras entidades devem somam forças para a consecução dos princípios constitucionais.

O Marco Civil da Internet no Brasil é apontado como um exemplo da concreção desta nova faceta da democracia. Isto porque inaugurou uma forma inovadora de exercício da soberania popular, sem precedentes na história legislativa brasileira.

Como se sabe, por intermédio de plataformas púbicas de participação popular, a iniciativa contou com a maciça presença de inúmeras entidades e a possibilidade de manifestação livre por qualquer internauta, sugerindo-se inclusive a redação de dispositivos para uma lei que visasse trazer princípios norteadores das relações civis na Internet.

O Marco Civil foi submetido à apreciação do Legislativo, tornando-se o projeto de lei nº 2.126/2011 da Câmara dos Deputados.

Este trabalho tem por escopo principal analisar brevemente a experiência do marco civil como uma possível superação do tradicional modelo de representação política também em sede de produção legislativa.

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Mônica Salem Caggianno, analisando as nuances do atual modelo representativo e os possíveis entraves que enfrenta o Poder Legislativo atualmente, uma vez que sempre fora um lócus tradicional de discussão e produção de regras jurídicas do Estado moderno, levantou o seguinte problema: com a popularização da Internet, será possível um dia vivermos sem o Paramento?312

Assim, mais especificamente, este estudo busca perquirir acerca de algumas das consequências da evolução dos debates sobre o Marco Civil também em sede do Poder Legislativo, aferindo os resultados da participação popular pelo portal eletrônico e-democracia da Câmara dos Deputados, das audiências públicas e das discussões em outros fóruns sobre o texto do projeto.

Por isso, a primeira parte procura elaborar um breve contraponto entre o sistema tradicional de representação política e algumas experiências de democracia direta ou semi direta fomentadas pelo uso das Tecnologias da Informação e Comunicação, revelando alguns aspectos teóricos que levaram à iniciativa do Marco Civil.

Em um segundo momento, procura-se descrever as discussões e sua importância durante o trâmite na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, que contou com a possibilidade de participação popular durante o trâmite no Poder Legislativo.

Por último, destaca a estrutura do projeto de lei que tem por objetivo declarar direitos civis de usuários e analisa brevemente a aparente opção legislativa adotada quanto ao sistema de responsabilidade dos intermediários por conteúdo gerado por terceiros constante do atual texto.

1. A EXPERIÊNCIA DE DISCUSSÃO COLABORATIVA DO MARCO CIVIL E A SUB-MISSÃO DO PROJETO DE LEI COMO EXPRESSÕES DA DEMOCRACIA PARTICI-PATIVA NA INTERNET

O Marco Civil da Internet no Brasil tem sido objeto de diversos estudos aqui e no exterior, sendo observado por muitos pelo pioneirismo da iniciativa, pela amplitude das discussões e pela pluralidade de visões abordadas durante a fase que antecedeu a elaboração do texto original do projeto de lei.313

A concepção deste projeto de cunho inovador foi fomentada pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça em parceria com a Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas.

312 Cf. Anotações em aula proferida na disciplina “Direito parlamentar”, ministrada no curso de Pós Graduação Strictu Sensu da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em conjunto com o Prof. Dr. Rubens Beçak, no segundo semestre de 2011.313 V. por todos BECAK, Rubens; LONGHI, João Victor Rozatti . Tendencies for participatory democracy: the influences of the internet on the political representation’s profile and on the Participatory Budgeting. In: Law and Society Association International Meeting, 2012, Honolulu. Sociolegal Conversations across a sea of oceans, 2012.

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Vários tópicos foram postos em discussão aberta pelo portal do Marco Civil314 e também por sites de redes sociais. Milhares de postagens, advindas de diversos segmentos, levaram à redação de uma minuta de projeto, terminando-se a primeira fase de debates.

A minuta foi novamente submetida à apreciação popular pela Internet. Desta vez já era possível se ter por base a redação específica de cada um dos dispositivos que seriam enviados à apreciação do Poder Legislativo.

Após, o texto final do Marco Civil tornou-se o Projeto de Lei nº 2.126/2011 que iniciou seu trâmite pela Câmara dos Deputados, por iniciativa legislativa do Poder Executivo.

Preliminarmente, destaca-se que José Afonso da Silva afirma ser a democracia participativa algo entre a democracia direta e indireta, mesclando elementos de ambas.315 Por outro lado, Paulo Bonavides leciona que a democracia participativa deve ser necessariamente uma democracia direta, direito fundamental de natureza transnacional e que deve ser garantido a todos os povos. In verbis:

Um terceiro momento, todavia, já se vislumbra com formação de uma teoria constitucional que nos aparta dos modelos representativos clássicos. Pertence à democracia participativa e faz do cidadão-povo a medula da legitimidade de todo o sistema. Acaba, então a intermediação representativa, símbolo de tutela, sujeição e menoridade democrática do cidadão – meio povo meio súdito.316

Finalmente, Joaquim Falcão demonstra uma terceira via. Para o autor, um modelo constitucional verdadeiramente democrático em uma sociedade multifacetada e marcada pela complexidade de interesses em jogo, não só mescla elementos de democracia representativa e direta, com partidos políticos e eleições proporcionais de um lado e plebiscitos, referendos e projetos de iniciativa popular de outro.

Pelo contrário, afirma Falcão que a democracia neste ambiente complexo também é realizada pelos conselhos municipais, ONGs (OSSCIPs e OSs), entidades paraestatais, fundações públicas e privadas, dentre outras, razão pela

314 CULTURA DIGITAL. Marco Civil. Disponível em: http://culturadigital.br/marcocivil/. Acesso em 18 ago 2012.315 Cf. SILVA, José Afonso da. O sistema representativo e a democracia semi-direta: democracia participativa. In: CANTÚ, Hugo A. Sistema representativo y democracia semidirecta. Memorial del VII Congreso de Derecho Constitucional. Mexico: Instituto de Investigaciones Jurídicas de la Universidad Autónoma de Mexico, 2002. pp. 2-3.316 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 37.

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qual os modelos de democracia nem são sequenciais nem excedentes, mas complementares. É o que denomina de democracia concomitante.317 E uma das principais características deste ambiente político é a paulatina erosão dos limites entre Estado e Mercado, ou entre o estatal e a sociedade civil.

Muitos são os estudos, desde os primórdios da Internet, em que se reconhece na Rede das Redes um ambiente possivelmente profícuo para a concretização das premissas desta democracia contemporânea. Especificamente quando analisada a fusão entre público e privado operada pela massificação da Internet, assevera Pierre Levy:

No que diz respeito aos efeitos sobre a democracia, essa transformação da esfera pública me parece afetar positivamente os quatro domínios estreitamente independentes, que são as capacidades de aquisição de informação, de expressão, de associação e de deliberação dos cidadãos. Em suma, a computação social aumenta as possibilidade de inteligência coletiva e, por sua vez, a potência do “povo”.318

O Marco Civil parece ser uma experiência de concretização destas premissas, podendo ser observado como uma expressão diversa do próprio processo legislativo tradicional, cuja participação popular deu base à iniciativa legislativa e não se esgotou nesta fase, adentrando ao Legislativo.

Sobre o conceito e objeto do processo legislativo contido no arts. 59 e seguintes da Constituição da República, leciona José Afonso da Silva:

Por “processo legislativo” entende-se o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção, veto) realizado pelos órgãos legislativos visando à formação das leis constitucionais, complementares e ordinárias, resoluções e decretos legislativos. O procedimento legislativo é o modo pelo qual os atos do processo legislativo se realizam. Diz respeito ao andamento da matéria nas casas legislativas. As regras básicas sobre o processo legislativo aplicam-se a Estados e Municípios.319

O Marco Civil representa uma experiência em que as discussões colaborativas avançaram também em sede do Poder Legislativo, integrando,

317 Cf. FALCÃO, Joaquim. Democracia, direito e terceiro setor. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 87.318 LEMOS, André; LEVY, Pierre. O futuro da Internet: em direção a uma ciberdemocracia planetária. São Paulo: Paulus, 2010. p. 14. 319 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 6. Ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 437.

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portanto, o próprio processo legislativo. Algumas de suas peculiaridades, principalmente a participatividade nas audiências públicas promovidas no portal e-democracia da Câmara dos Deputados e em outros fóruns de discussão, determinantes na redação de certos dispositivos e determinadas opções legislativas, serão analisadas a seguir.

2. A PARTICIPAÇÃO POPULAR DURANTE O TRÂMITE NA COMISSÃO ESPECIAL DA CÂMARA DOS DEPUTADOS

“Nunca um projeto de lei foi objeto de tanta participação popular na história da Câmara dos Deputados”Deputado Alessandro Molon (PT-RJ)320

Contemporaneamente, não raras são as vozes que levantam um possível esvaziamento da função típica exercida pelo Poder Legislativo. O Parlamento, conforme salientado, foi concebido na teoria da separação das funções do poder como um local ideal para o exercício da representação política.

A concentração de atribuições estratégicas na figura do Poder Legislativo, no início do Século XX, levou muitos a sustentarem a necessidade de se limitar os poderes concedidos ao Parlamento. Neste sentido, Raymond Carré de Malberg:

A razão de a limitação dos poderes é mais difícil em uma Constituição como a francesa em que o órgão supremo, ou seja, aquele que deve ser limitado, é o Parlamento, o mesmo corpo que, por suas leis, ode conferir a si mesmo novos poderes por tempo indeterminado. Neste regime, todas as limitações parecem ser dirigidas exclusivamente contra as autoridades que não tenham sido eleitas. Assim, a autoridade judiciária é fortemente limitada pela proibição de invadir a competência legislativa ou a esfera de competência própria dos administradores. Igualmente, há também uma estrita limitação contra o Executivo, que não pode, em princípio, praticar mais atos do os que a lei autoriza, e cujo chefe não pode, ademais, em razão do regime parlamentarista, exercer o seu poder por si ou mediante um ministro de estado em estreita dependência das câmaras do parlamento. Mas, em relação a este último, parece carecer efetivamente de qualquer limitação. Afinal, não só são capazes de fixar suas leis e suas próprias competências legislativas, como o próprio regime parlamentar

320 O deputado é o relator da Comissão Especial e autor do projeto substitutivo ao do Marco Civil na Câmara (Projeto nº2.126/2011). As afirmações foram feitas em evento realizado na Americam Chamber, em 17 de agosto de 2012. Marco Civil da Internet é tema de evento na Amcham Rio - 20/08/2012 Disponível em: http://amchamrio.com/. Acesso em 29 ago. 2012.

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tende a aumentar o seu poder ao assegurar a sua supremacia sobre o executivo, fazendo depender dele toda ação do governo.321

A doutrina aponta, desta maneira, alguns mecanismos constitucionais trazidos à tona como forma de limitação a tal vocação expansiva natural do poder do parlamento. Dentre eles, podem ser citados: a separação entre poder constituinte originário e derivado e os limites materiais e procedimentais à criação das normas infraconstitucionais; mandatos parlamentares limitados no tempo; limitação de números de mandato a um mesmo indivíduo, dada a necessidade de renovação dos membros do parlamento; a divisão do órgão parlamentar em câmaras alta e baixa, sendo aquela com predileção à função de câmara moderada, com mandatos mais largos, por exemplo; proibição de acúmulo com outros cargos e, finalmente; a divisão do órgão deliberativo em comissões especiais de perfil técnico, com intuito de aprimoramento do conteúdo das normas a serem produzidas.322

Na atualidade, verifica-se uma fragmentação crescente dos parlamentos em comissões permanentes e transitórias, direcionadas ao exercício da função típica de legislar ou de outras, atípicas, como a de fiscalizar os outros poderes, sendo certo que justificam a preocupação da doutrina, principalmente quanto à sua composição, ao jogo de poder323 que determina sua criação, extinção e a condução de seus trabalhos.

3. AS COMISSÕES PARLAMENTARES, SUA COMPOSIÇÃO E FUNÇÃO: BREVES ASSERTIVAS

Postas genericamente algumas noções de Parlamento, desemboca-se na análise específica da composição das comissões parlamentares, órgão de suma

321 MALBERG, Raymond Carré de. Teoría general del Estado. Trad. José Lión Depetre. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 856322 CAGGIANO, Mônica Salem. Cit. 323 Para Roberto Amaral, a fragmentação do órgão legislativo pode ser uma ameaça aos interesses legítimos dos eleitores. Nesse sentido: Daí, em nossos parlamentos, a proliferação de bancadas de interesse de nominata inesgotável, organizadas erga partidos: são a ‘bancada’ dos evangélicos, a da saúde, a da medicina privada, a dos radialistas, a do ensino privado, a dos ruralistas e, até, a dos policiais-militares. São esses interesses, acima da representação do eleitorado ou do programa partidário, que determinam as votações em Plenário. AMARAL, Roberto. Apontamentos para a reforma política: a democracia representativa está morta; viva a democracia participativa. In: Revista de Informação Legislativa. n. 151. jul. / set. 2001. Brasília, 2001. p. 51.Disponível em: http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/ handle/bdcamara/461/analise_partidario_lima.pdf?sequence=8. Acesso em: 11 set. 2011. Contudo, a crítica do autor revela-se mais quanto aos agrupamentos que não necessariamente compõem a estrutura constitucional da função legislativa e indicam o déficit de democracia na representação política do que propriamente uma crítica à estrutura das Comissões Parlamentares.

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importância para o exercício das funções do parlamento nas circunstancias atuais. Acerca, Jose Maria Serna de la Garza:

As comissões são o cerne da estrutura organizacional e funcional do Legislativo [...]. Constituem o núcleo dos trabalhos parlamentares ou do Congresso. Sem seu trabalho, as legislaturas não podem ter nenhuma ordem específica nas suas deliberações, nem os seus acordos poderiam ter a qualidade adequada, além de que não haveria tempo para discutir os assuntos submetidos a sua consideração. A sua existência obedece então, a critérios para a divisão do trabalho e câmaras de especialização em suas atividades.324

No Brasil, a fonte normativa primária das comissões parlamentares na Constituição da República é o artigo 58 e parágrafos, dispondo seu caput que: O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.

Por sua vez, extrai-se da análise dos parágrafos subsequentes o que se enumera como espécies de comissões. Quanto à duração, do caput do dispositivo já está a distinção entra comissões temporárias e permanentes, além das comissões parlamentares de inquérito (§3º) e as representativas, formadas obrigatoriamente durante o recesso parlamentar, (§4º), que por sua própria função, são também de natureza temporária, ainda que esta última seja de caráter obrigatório.

Com relação à função que exerce cada comissão, evidentemente que é sua estrutura que reflete no desempenho de sua predileção institucional. Afinal o §2º do artigo 58 enumera as funções de cada comissão parlamentar, condicionando seu exercício à sua respectiva matéria ou competência.325

324 No original: Las comisiones parlamentarias son la parte medular de la estructura orgánica y funcional del Poder Legislativo [...]. Constituyen el núcleo fundamental del quehacer político parlamentario o congresional. Sin su trabajo, las asambleas legislativas no contarían con orden alguno en sus deliberaciones, ni sus acuerdos podrían tener la calidad debida, además de que no tendrian tiempo para analizar los asuntos sometidos a su consideración. Su existencia obedece, pues, a los criterios de división del trabajo de las cámaras y de la especialización en sus actividades.” GARZA, José Maria Serna de la Garza. Derecho Parlamentario. Mexico: UNAM, 1997. pp. 13-14. Tradução livre.325 São elas: I - discutir e votar projeto de lei que dispensar, na forma do regimento, a competência do Plenário, salvo se houver recurso de um décimo dos membros da Casa; II - realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil; III - convocar Ministros de Estado para prestar informações sobre assuntos inerentes a suas atribuições; IV - receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas; V - solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão; VI - apreciar

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Insta salientar alguns aspectos na disciplina jurídica da destinação das comissões parlamentares.

Primeiramente, José Afonso da Silva destaca a possibilidade de que um projeto de lei seja discutido e aprovado por uma Comissão, interna corporis. Narra o autor que tal dispositivo guarda suas raízes no artigo 72 da Constituição Italiana326, trazendo a hipótese de uma espécie de delegação do exercício da função típica do órgão, ainda que conclua que tal instituto mais se assemelhe uma espécie anômala de substituição condicional.327

Por último, salienta-se que, conforme dispõe o parágrafo primeiro do mesmo dispositivo: “Na constituição das Mesas e de cada Comissão, é assegurada, tanto quanto possível, a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa.”

A noção do que seria um bloco parlamentar, por seu turno, pode ser extraída, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Isto porque, o artigo 12 do Regimento traz a noção de bloco parlamentar como uma união de partidos que passam a se agrupar, dentro daquela legislatura, como uma única bancada e sob uma liderança comum.

Comissão, ademais, se diferencia de bloco parlamentar. A comissão tem função constitucional e regimental específica. No caso da Câmara dos Deputados brasileira, por exemplo, o Regimento Interno as Disciplina nos artigos 22 a 60.

O artigo 23 dispõe especificamente sobre sua composição, asseverando que: Na constituição das Comissões assegurar-se-á, tanto quanto possível, a representação proporcional dos Partidos e dos Blocos Parlamentares que participem da Casa, incluindo-se sempre um membro da Minoria, ainda que pela proporcionalidade não lhe caiba lugar. Parágrafo único. O Deputado que

programas de obras, planos nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento e sobre eles emitir parecer.326 Articolo 72 - Ogni disegno di legge, presentato ad una Camera è, secondo le norme del suo regolamento, esaminato da una Commissione e poi dalla Camera stessa, che l’approva articolo per articolo e con votazione finale. Il regolamento stabilisce procedimenti abbreviati per i disegni di legge dei quali è dichiarata l’urgenza.Può altresì stabilire in quali casi e forme l’esame e l’approvazione dei disegni di legge sono deferiti a Commissioni, anche permanenti, composte in modo da rispecchiare la proporzione dei gruppi parlamentari. Anche in tali casi, fino al momento della sua approvazione definitiva, il disegno di legge è rimesso alla Camera, se il Governo o un decimo dei componenti della Camera o un quinto della Commissione richiedono che sia discusso e votato dalla Camera stessa oppure che sia sottoposto alla sua approvazione finale con sole dichiarazioni di voto. Il regolamento determina le forme di pubblicità dei lavori delle Commissioni. La procedura normale di esame e di approvazione diretta da parte della Camera è sempre adottata per i disegni di legge in materia costituzionale [cfr. art. 138] ed elettorale e per quelli di delegazione legislativa [cfr. artt. 76, 79 ], di autorizzazione a ratificare trattati internazionali [cfr. art. 80], di approvazione di bilanci e consuntivi [cfr. art. 81].327 SILVA, José Afonso da. Comentários (cit.). p. 432.

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se desvincular de sua bancada perde automaticamente o direito à vaga que ocupava em razão dela, ainda que exerça cargo de natureza eletiva.

Por seu turno, é o artigo 27 que traz normativamente os quocientes numéricos de sua composição, acompanhado de procedimentos regimentais para garantia do seu fiel cumprimento.328 Contudo, tais normas são consideradas pela jurisprudência como de natureza de ato interna corporis, razão pela qual caberia apenas à própria casa a determinação de que fossem cumpridas.329

Portanto, é fato que a proporcionalidade é de índole democrática, devendo-se ater aos comandos da representação política. Nesse diapasão, a composição das comissões deve atender ao princípio da proporcionalidade de fato, não apenas em âmbito formal. A Comissão Especial Transitória para a análise do Marco Civil parece ter cumprido a contento estes requisitos, sendo composta por lideranças de ambas as bases.

4. AS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS E O PORTAL E-DEMOCRACIA DA CÂMARA DOS DE-PUTADOS: DA PROPOSIÇÃO COLABORATIVA À DELIBERAÇÃO COLABORATIVA

Primeiramente, destacam-se as lições de Orides Mezzaroba et alli acerca da importância de canais democráticos que fomentem a participação popular durante o processo legislativo, como o e-democracia:

[...] o Portal e-Democracia é uma iniciativa que avança no sentido de

328 Art. 27. A representação numérica das bancadas em cada Comissão será estabelecida com a divisão do número de membros do Partido ou Bloco Parlamentar, aferido na forma do § 4° do art. 8° deste Regimento, pelo quociente resultante da divisão do número de membros da Câmara pelo número de membros da Comissão; o inteiro do quociente assim obtido, denominado quociente partidário, representará o número de lugares a que o Partido ou Bloco Parlamentar poderá concorrer na Comissão. (“Caput” do artigo com redação dada pela Resolução nº 34, de 2005, em vigor a partir de 01/02/2007)329 Nesse sentido, “Mandado de segurança impetrado contra ato do Presidente da Câmara dos Deputados, que indeferiu, para fins de registro, candidatura ao cargo de 3º Secretário da Mesa, alegação de violação do art. 8º do Regimento da Câmara e do § 1º do art. 58 da Constituição. Ato do Presidente da Câmara que, tendo em vista a impossibilidade, pelo critério proporcional, defere, para fins de registro, a candidatura para o cargo de Presidente e indefere para o de membro titular da Mesa. Mandado de Segurança impetrado para o fim de anular a eleição da Mesa da Câmara e validar o registro da candidatura ao cargo de 3º Secretário. Decisão fundada, exclusivamente, em norma regimental referente à composição da Mesa e indicação de candidaturas para seus cargos (art. 8º). O fundamento regimental, por ser matéria interna corporis, só pode encontrar solução no âmbito do Poder Legislativo, não ficando sujeito à apreciação do Poder Judiciário. Inexistência de fundamento constitucional (art. 58, § 1º), caso em que a questão poderia ser submetida ao Judiciário. Mandado de segurança não conhecido, por maioria de sete votos contra quatro. Cassação da liminar concedida.” (MS 22.183, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 5-4-1995, Plenário, DJ de 12-12-1997.) Grifamos.

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dar ao cidadão finalmente o direito de se expressar, a oportunidade de interagir e opinar, permitindo que ele promova debates e compartilhe conhecimento no processo de elaboração de políticas públicas e projetos de lei de interesse estratégico nacional.330

O Congresso Nacional é inspirado em modelos parlamentares bipartidos, como o inglês, por exemplo. A Câmara dos Deputados brasileira representa a casa do povo, a câmara baixa do Legislativo nacional. Por isso, é um local propício para a participação popular no processo legislativo, sem prejuízo daquela que também pode ocorrer em sede do Senado Federal. Soma-se a tal o fato de que, dentre as funções típicas das Comissões Legislativas, está a de promover audiências públicas.

A experiência participativa do projeto de lei 2.126/2011 foi narrada pelo Relator da Comissão Especial para o tema na Casa. O Deputado Alessandro Molon (PT-RJ) relatou que foram promovidas sete audiências públicas e outros seminários em capitais de quatro das cinco regiões do país, além de Brasília. Além disso, foram ouvidos sessenta e dois especialistas e dezenas de instituições acerca dos temas propostos, que encaminharam inúmeras moções com sugestão de texto.

Em metodologia semelhante àquela adotada na fase anterior à propositura, foram estabelecidos os princípios fundamentais a serem abordados e os temas primordiais a serem discutidos. Outrossim, relatou que a pedra de toque em termos de inovação durante o trâmite na Comissão Especial foi o a participação popular pela Internet:

Além disso, como estamos tratando do estabelecimento de um marco civil para a Internet, não poderíamos deixar de utilizar essa fantástica plataforma para estimular a mais ampla participação popular. Assim, foi criado pela Câmara dos Deputados um espaço especial de discussões sobre o tema no sítio e-Democracia (http://www.edemocracia.camara.gov.br), que incluiu um “wikilegis” para recebimento de propostas de nova redação ao projeto, um fórum de discussões, sessões de bate-papo em tempo real durante as audiências e seminários, e uma biblioteca virtual com legislações, artigos, publicações, notas e vídeos. Também surgiu, de forma espontânea, a hashtag #marcocivil nos micro blogs Twitter e Identi.ca que citamos anteriormente, por meio da qual

330 SANTOS, P. M.; BERNARDES, M. B.; MEZZAROBA, O. . Democracia Eletrônica: Desafios e Perspectivas. In: Encontros Internacionais do PROCAD, 2009, Florianópolis. Colóquio sobre a Sociedade da Informação: Democracia, Desenvolvimento e Inclusão Tecnológica, 2009. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/artigo_edemocracia_procad_final_ultimo.pdf. Acesso em: 22 ago. 2011.

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recebemos incontáveis contribuições, algumas das quais terminaram por integrar este relatório. No dia 13 de junho, também de forma espontânea, teve início uma blogagem coletiva sobre o marco civil, que trouxe ao público diversos artigos aprofundados sobre o tema. A exemplo do que ocorreu no âmbito do Executivo, o texto do Projeto de Lei 2.126/2011 foi disponibilizado na íntegra na Internet, no sítio do e-Democracia. Durante os trabalhos da Comissão, a página especial do marco civil da Internet no e-Democracia recebeu aproximadamente 45 mil visitas. Os fóruns que discutiam temas relativos ao marco civil receberam mais de 200 postagens. Além disso, exatas 140 propostas de alteração ao texto do Projeto de Lei foram apresentadas por internautas no Wikilegis - algumas delas agregadas ao texto do substitutivo que ora propomos [...]. Durante os bate-papos em tempo real promovidos durante as audiências públicas e os seminários realizados pela comissão, outras 2.215 mensagens com contribuições foram transmitidas. Finalmente, milhares de mensagens sob a hashtag #marcocivil circularam – e ainda circulam – nos micro blogs Twitter e Identi.ca, contendo inclusive sugestões acatadas na confecção do substitutivo.331

Aires José Rover ressalta que: “hoje a rede internet já é uma boa mídia para a participação na política na medida em que pode ajudar as pessoas a interagirem com seus governantes, [...] de forma mais rápida e econômica.” Ao salientar que não necessariamente os meios de participação popular devam ser os oficiais, o autor adverte, porém, que “os agentes governamentais devem estar aptos para ouvir e processar o que os cidadãos têm a dizer.”332

O Marco Civil fez verificar também estas premissas. Afinal, as discussões antes e durante o tramite do texto no Legislativo ocorreram muitas vezes de forma espontânea e por meio de redes sociais que não somente o portal e-democracia, influenciando na elaboração do projeto substitutivo que delimitou melhor a redação de determinados dispositivos. Porém, conforme se verá, deve-se perquirir se esgotam suficientemente o tema ou se sugerem ainda mais dúvidas quanto à sua operatividade, em especial os dispositivos que tratam da responsabilidade civil dos intermediários pelo conteúdo inserido por terceiros.

331 Disponível em: http://edemocracia.camara.gov.br/documents/679637/277cc749-e543-4636-9ddb-736144a9b654. Acesso em: 23 ago. 2012.332 Cf. ROVER. Aires José; MEZZAROBA, Orides. Novas tecnologias: o governo eletrônico na perspectiva da governança. In: (Org.) Vladimir Oliveira da Silveira e Orides Mezzaroba. Empresa, sustentabilidade e funcionalização do Direto. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. (coleção Justiça, Empresa e Sustentabilidade; v.2). Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/novas_tecnologias_-_uninove.pdf. Acesso em: 23 ago. 2012.

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5. O SISTEMA DE RETIRADA DE CONTEÚDO E RESPONSABILIDADE DOS INTER-MEDIÁRIOS: DESAFIOS À TUTELA DOS BENS DA PERSONALIDADE DO USUÁRIO

Antes de se adentrar especificamente no tema da responsabilização pelo conteúdo inserido por terceiros, devem ser destacados brevemente alguns aspectos pontuais do Marco Civil, a fim de se ilustrar seus alicerces axiológicos. Ou pelo menos aqueles declarados pelo texto legal.

Primeiramente, o caráter principiológico e enunciativo de direitos civis é um contraponto às iniciativas que, muito antes de pontuar quais são os agentes na Rede, visavam criminalizar condutas dos usuários, em especial para a defesa de interesses patrimoniais.333

O texto legal enuncia como fundamentos: I - o reconhecimento da escala mundial da rede; II - os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; III - a pluralidade e a diversidade; IV - a abertura e a colaboração; e V - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VI – finalidade social da rede (art. 2º).

No que concerne aos princípios, enumera-os em rol exemplificativo334: I - garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição; II - proteção da privacidade; III - proteção aos dados pessoais, na forma da lei; IV - preservação da garantia da neutralidade da rede; V - preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas; VI - responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei; e VII - preservação da natureza participativa da rede (art. 3º).

Destaque para a inclusão, no substitutivo proposto pelo relator da Comissão Especial, ao desenvolvimento da personalidade e à finalidade social da rede nos respectivos rols, além da falta de delegação à regulamentação posterior do tema da neutralidade da rede.

Ademais, deve-se salientar que a finalidade primordial da lei é a de garantir a privacidade do usuário. Segundo Stefano Rodotà, o “corpo”, na era da informação, não se resume ao corpo físico, mas abrange principalmente o conjunto de dados pessoais sobre os indivíduos, principalmente os chamados dados sensíveis. Estes são parte de nosso “corpo eletrônico” e, portanto, carecem

333 Nesse sentido, V. LONGHI, João Victor Rozatti. A teoria dos sistemas dos sistemas de Niklas Luhmann e o direito à informação no direito brasileiro. O “furto” de camelos jurídicos reais na domesticação do direito da propriedade intelectual no âmbito da Internet. Artigo aprovado para publicação no XVIII Congresso Nacional do CONPEDI. São Paulo, 2009. Passim.334 Art. 3º ...omissis... Parágrafo único. Os princípios expressos nesta Lei não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria, ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte

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de tutela diferenciada por representar um aspecto diferenciado da dignidade da pessoa humana.335

O Marco Civil procura também evitar as más práticas de vigilância que hoje compõem a estrutura do modelo de negócios de muitos provedores de hospedagem e conteúdo, a quem a lei prefere chamar genericamente de “provedores de aplicações da Internet” (art. 3º, VII).

Postas as linhas gerais, chega-se ao ponto mais controverso do texto proposto. Trata-se do sistema de responsabilidade civil consagrado pela lei, supostamente visando à proteção da privacidade do usuário.

Afinal, é possível identificar-se que a estrutura da Internet tem sofrido alterações basilares nos últimos tempos. No início dos anos 2.000, os modelos de negócio da Rede passaram a se basear no desenvolvimento de plataformas que propiciassem a inserção de conteúdo pelos usuários, o que se denominou pelo slogan comercial de web 2.0.336

A remuneração dos intermediários é feita não somente por anúncios em banners e links patrocinados, mas principalmente pela chamada publicidade dirigida, baseada nos cadastros de consumidores feitos através das preferências do usuário. O marketing direcionado ou cross marketing, vai muito além de banners e links patrocinados, mas decorre da estrutura de toda a Rede, que se baseia no conteúdo inserido pelos usuários como o principal capital a ser explorado pelos intermediários.

Primeiramente, é de se salientar que a jurisprudência brasileira tem frisado como premissa básica a aplicação do CDC aos provedores de hospedagem e de conteúdo pela remuneração indireta que caracteriza a relação entre fornecedor e consumidor.

Por essa razão, a orientação predominante atualmente no STJ parte da proteção do consumidor para construir jurisprudencialmente um sistema próximo ao do notice and takedown, previsto na regulamentação estrangeira – mormente a americana e europeia. Nesse sentido, já decidiu a corte:

DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. INTERNET. RELAÇÃO DE CONSUMO. [...] FISCALIZAÇÃO PRÉVIA DO TEOR DAS INFOR-MAÇÕES POSTADAS NO SITE PELOS USUÁRIOS. DESNECESSI-DADE. MENSAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. [...] DISPONIBI-

335 Cf. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes. Tradução de Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 17.336 Cf. O’RELLY. Tim. O que é Web 2.0? Padrões de design e modelos de negócios para a nova geração de software. Publicado em http://www.oreilly.com/. Tradução: Miriam Medeiros. Revisão técnica: Julio Preuss. Novembro 2006 Disponível em: http://www.cipedya.com/web/FileDownload.aspx?IDFile=102010. Acesso em: 09 ago. 2012.

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LIZAÇÃO DE MEIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DE CADA USUÁ-RIO. DEVER. REGISTRO DO NÚMERO DE IP. SUFICIÊNCIA. [...]3. A fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, do teor das informa-ções postadas na web por cada usuário não é atividade intrínseca ao ser-viço prestado, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos termos do art. 14 do CDC, o site que não examina e filtra os dados e imagens nele inseridos. 6. Ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita que os usuários externem livremente sua opinião, deve o provedor de conteúdo ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identifi-car cada um desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada manifestação uma autoria certa e determinada. Sob a ótica da diligência média que se espera do provedor, deve este adotar as providências que, conforme as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu alcance para a individualização dos usuários do site, sob pena de respon-sabilização subjetiva por culpa in omittendo. 7. Ainda que não exija os dados pessoais dos seus usuários, o provedor de conteúdo, que registra o número de protocolo na internet (IP) dos computadores utilizados para o cadastramento de cada conta, mantém um meio razoavelmente eficiente de rastreamento dos seus usuários, medida de segurança que corresponde à diligência média esperada dessa modalidade de provedor de serviço de internet. 8. Recurso especial a que se nega provimento.337-338

337 REsp 1193764/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/12/2010, DJe 08/08/2011338 Em recente decisão, publicada em informativo sem publicação do acórdão, o STJ reiterou o posicionamento que confirma a sistemática do notice and takedown, decidindo como prazo razoável para o bloqueio do conteúdo o de vinte e quatro horas. Informativo nº 0500 - Período: 18 a 29 de junho de 2012 - Terceira Turma - REDES SOCIAIS. MENSAGEM OFENSIVA. REMOÇÃO. PRAZO. A Turma entendeu que, uma vez notificado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito, o provedor deve retirar o material do ar no prazo de 24 horas, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, pela omissão praticada. Consignou-se que, nesse prazo (de 24 horas), o provedor não está obrigado a analisar o teor da denúncia recebida, devendo apenas promover a suspensão preventiva das respectivas páginas, até que tenha tempo hábil para apreciar a veracidade das alegações, de modo que, confirmando-as, exclua definitivamente o perfil ou, tendo-as por infundadas, restabeleça o seu livre acesso. Entretanto, ressaltou-se que o diferimento da análise do teor das denúncias não significa que o provedor poderá postergá-la por tempo indeterminado, deixando sem satisfação o usuário cujo perfil venha a ser provisoriamente suspenso. Assim, frisou-se que cabe ao provedor, o mais breve possível, dar uma solução final para o caso, confirmando a remoção definitiva da página de conteúdo ofensivo ou, ausente indício de ilegalidade, recolocá-la no ar, adotando, na última hipótese, as providências legais cabíveis contra os que abusarem da prerrogativa de denunciar. Por fim, salientou-se que, tendo em vista a velocidade com que as informações circulam no meio virtual, é indispensável que sejam adotadas, célere e enfaticamente, medidas tendentes a coibir a divulgação de conteúdos depreciativos e aviltantes, de sorte a reduzir potencialmente a

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Determinados conteúdos, entretanto, carecem de tratamento diferenciado, principalmente pelos riscos que apresentam à tutela dos direitos da personalidade dos usuários.

É o caso de alguns interesses em especial, como o de crianças e adolescentes, que já vem sendo objeto da atenção especial dos tribunais e de políticas legislativas, como a do art. 241-A, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que responsabiliza criminalmente o responsável pela manutenção em seu domínio de conteúdo relativo a pedofilia se, oficialmente notificado, não proceda à sua efetiva retirada.339

Em sentido semelhante, visando à tutela de interesses análogos, já decidiu o E. STJ, mantendo a tutela antecipada que determinou não só o bloqueio de comunidades no site Orkut em que se veiculava material ofensivo a crianças e adolescentes (uma delas vítima de crime sexual) como a obrigação de impedir a criação de novas com o mesmo intuito. Em seu voto, consignou o Ministro Relator Herman Benjamin:

PROCESSUAL CIVIL. ORKUT. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. BLOQUEIO DE COMUNIDADES. OMISSÃO. NÃO-OCORRÊNCIA. INTERNET E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ASTREINTES. ART. 461, §§ 1º e 6º, DO CPC. INEXISTÊNCIA DE OFENSA. 1. [...]Orkut [...] O Ministério Público Estadual propôs Ação Civil Pública em defesa de menores – uma delas vítima de crime sexual – que estariam sendo ofendidas em algumas dessas comunidades. 2. Concedida a tutela antecipada pelo Juiz, a empresa cumpriu as determinações judiciais (exclusão de páginas, identificação de responsáveis), exceto a ordem para impedir que surjam comunidades com teor semelhante. [...] 5. A internet é o espaço por excelência da liberdade, o que não significa dizer que seja um universo sem

disseminação do insulto, a fim de minimizar os nefastos efeitos inerentes a dados dessa natureza. REsp 1.323.754-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 19/6/2012.339 Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008) Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)§ 1º Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo; (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008); II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo.(Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008); § 2º As condutas tipificadas nos incisos I e II do § 1o deste artigo são puníveis quando o responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente notificado, deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito de que trata o caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)

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lei e infenso à responsabilidade pelos abusos que lá venham a ocorrer. 6. No mundo real, como no virtual, o valor da dignidade da pessoa humana é um só, pois nem o meio em que os agressores transitam nem as ferramentas tecnológicas que utilizam conseguem transmudar ou enfraquecer a natureza de sobreprincípio irrenunciável, intransferível e imprescritível que lhe confere o Direito brasileiro. 7. Quem viabiliza tecnicamente, quem se beneficia economicamente e, ativamente, estimula a criação de comunidades e páginas de relacionamento na internet é tão responsável pelo controle de eventuais abusos e pela garantia dos direitos da personalidade de internautas e terceiros como os próprios internautas que geram e disseminam informações ofensivas aos valores mais comezinhos da vida em comunidade, seja ela real, seja virtual. 8. Essa corresponsabilidade – parte do compromisso social da empresa moderna com a sociedade, sob o manto da excelência dos serviços que presta e da merecida admiração que conta em todo mundo – é aceita pelo Google, tanto que atuou, de forma decisiva, no sentido de excluir páginas e identificar os gângsteres virtuais. Tais medidas, por óbvio, são insuficientes, já que reprimir certas páginas ofensivas já criadas, mas nada fazer para impedir o surgimento de outras tantas, com conteúdo igual ou assemelhado, é, em tese, estimular um jogo de Tom e Jerry, que em nada remedia, mas só prolonga, a situação de exposição, de angústia e de impotência das vítimas das ofensas. [...] 11. Recurso Especial não provido.340

Deve-se salientar que, em parte significativa dos Tribunais dos Estados,

há incluso decisões que se valem da responsabilidade objetiva e solidária dos provedores para além dos casos de pedofilia na Internet.341

Contudo, o Marco Civil, originalmente, procurou introduzir sistemática diversa. Os artigos 14 e seguintes trazem a necessidade de notificação judicial do provedor para a retirada de qualquer conteúdo. Além disso, dispõe também

340 (REsp 1117633/RO, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 09/03/2010, DJe 26/03/2010).341 Nesse sentido, o E. TJRJ: Apelação Cível. Rito Ordinário. Criação de perfil falso em site de relacionamentos denominado “Orkut”. Legitimidade da Google Brasil e Google Inc. Responsabilidade objetiva que decorre da disponibilização do conteúdo na rede mundial de computadores. As rés, como administradoras do site de relacionamentos, permitem a inserção de conteúdos pelos seus usuários, sem nenhuma espécie de filtro ou controle, o que remete o fato ofensivo à seara dos riscos do negócio, exsurgindo daí a responsabilidade objetiva da ré. Dano moral configurado. Quantum indenizatório excessivamente fixado, que merece ser reduzido ao patamar de R$ 9.000,00, em obediência aos critérios de proporcionalidade e razoabilidade. PROVIMENTO PARCIAL DO SEGUNDO RECURSO, PREJUDICADO O PRIMEIRO. TJRJ - PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL - APELAÇÃO CÍVEL nº 2009.001.41528 - Relator: Desembargador Ernani Klausner – Julg.: 1808/2009 – Public.: 24/08/09.

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que poderá o provedor, a pedido do usuário que inseriu as informações objeto da decisão judicial, substituir o conteúdo pelas razões que o motivaram.

O sistema adotado tem por princípio, nos termos do relator do substitutivo, a inimputabilidade da rede.342 As razões da opção legislativa foram explicitadas pelo relator. Afirma que “tal medida visa a proteger os diversos intermediários responsáveis apenas pela transmissão e roteamento de conteúdos,” asseverando que “a responsabilidade por eventuais infrações por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros cabe àqueles que a cometeram, e não àqueles que mantém a infraestrutura necessária para o trânsito de informações na Internet.”

Além disso, afirma expressamente que o sistema traz uma garantia à “indevida responsabilização de intermediários na Internet”, protegendo-se “o potencial de inovação na rede”, exceto por ordem judicial com determinação específica. Defende que o sistema procura evitar “ordens genéricas de supressão de conteúdo, com a obrigação de que a ordem judicial indique de forma clara e específica o conteúdo apontado como infringente, de forma a permitir a localização inequívoca do material.”

Por derradeiro, ressalta que o substitutivo fez constar na nova redação do dispositivo a expressa menção à proteção da liberdade de expressão, afim de se “evitar a censura, explicitando a preocupação da manutenção da Internet como um espaço de livre e plena expressão, assim como, enfatiza que “a responsabilidade de que trata o caput do artigo tem natureza civil.”

Duas últimas ressalvas devem ser feitas quanto aos riscos do sistema adotado para a tutela dos direitos da personalidade do usuário.

A primeira diz respeito à necessidade de se indicar especificamente o local das informações na Internet. No caso de danos à personalidade perpetrados pela REde, é comum que as informações se multipliquem rapidamente pela Rede. Quando o usuário efetua o pedido para a retirada, indica URLs que encontra e que estão naquele momento na Rede mundial de computadores. Por essa razão, já decidiu o E. STJ que incumbe a quem administra o site o dever técnico de impedir a divulgação do conteúdo ilícito, não lhe impondo a tarefa hercúlea de indicar precisamente as URLs:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. MENSAGENS OFENSIVAS À HON-RA DO AUTOR VEICULADAS EM REDE SOCIAL NA INTERNET (ORKUT). MEDIDA LIMINAR QUE DETERMINA AO ADMINIS-

342 Cf. BRASIL, Congresso Nacional – Câmara dos deputados. Relatório da Comissão Especial destinada a proferir parecer sobre o Projeto de Lei nº 2.126, de 2011, encaminhado ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo por meio da Mensagem nº 326, de 2011. Disponível em: http://edemocracia.camara.gov.br/documents/679637/277cc749-e543-4636-9ddb-736144a9b654. Acesso em: 30 ago. 2012. pp. 44-45.

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TRADOR DA REDE SOCIAL (GOOGLE) A RETIRADA DAS MEN-SAGENS OFENSIVAS. FORNECIMENTO POR PARTE DO OFENDI-DO DAS URLS DAS PÁGINAS NAS QUAIS FORAM VEICULADAS AS OFENSAS. DESNECESSIDADE. RESPONSABILIDADE TÉCNI-CA EXCLUSIVA DE QUEM SE BENEFICIA DA AMPLA LIBERDA-DE DE ACESSO DE SEUS USUÁRIOS. 1. O provedor de internet - administrador de redes sociais -, ainda em sede de liminar, deve retirar informações difamantes a terceiros manifestadas por seus usuários, in-dependentemente da indicação precisa, pelo ofendido, das páginas que foram veiculadas as ofensas (URL’s).2. Recurso especial não provido.343

Além disso, o segundo ponto a se destacar é a justificativa do tratamento legal dado a todo e qualquer provedores de aplicação, afirmando-se que a ausência de responsabilidade é um corolário do direito fundamental à liberdade de expressão. A liberdade de expressão não pode ser considerada em absoluto, como se fosse o único valor a ser tutelado pelo ordenamento jurídico. Nesse sentido, Rosely C. M. Maia e Wilson Gomes:

No momento da mais inflamada retórica emancipatória da Internet, a rede era entendida como uma reserva ambiental protegida por qualquer injunção de controle e filtro, e dedicada a cultivar a plena liberdade de expressão. Liberdade que, automaticamente, deveria ser considerada automaticamente como uma virtude democrática. O modelo de democracia liberal-individualista conhecido como libertarianismo encontrava na forma do ciberlibertarianismo, a sua ponta-de-lança. Rapidamente se descobriu, entretanto, que a equação segundo a qual a liberdade sempre está do lado da democracia e controle do lado da tirania é só um artifício retórico do libertarianismo na sua forma mais extremada. Há informação má, perigosa, criminosa, ofensiva à dignidade humana, injuriosa e antidemocrática, e defender seu direito de existir não é o mesmo que lutar por direitos civis no ciberespaço. Ao contrário, pode significar o engajamento na proteção ao hate speech, ao racismo publicado, à discriminação de minorias (Gomes, 2002). E se na Internet de fato floresce um espaço da liberdade de expressão e de experiência democrática, ela igualmente se transformou no paraíso dos conservadores, da ultradireita, dos racistas e dos xenófobos, um refúgio que, aliás, tem-

343 REsp 1175675/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 09/08/2011, DJe 20/09/2011

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lhes sido mais seguro e próspero que o mundo offline.344

Os dispositivos sobre a responsabilidade do provedor pelo conteúdo gerado por terceiro tiveram por duas vezes sua redação original modificada. A primeira, antes da elaboração da minuta do projeto de lei a ser encaminhada pelo Executivo, incumbia o provedor do dever de manter um canal em seu site para receber notificações e contranotificações de usuários visando a remoção de conteúdo ilícito, em sistema semelhante a sistemas estrangeiros. A redação original também equiparava usuários que administravam páginas de divulgação de conteúdo e exerciam o controle destas informações a provedores para tal fim.

O sistema engendrado foi substituído pelo atual, que contém a necessidade de ordem judicial específica para a retirada. Durante as discussões é possível identificar que, ainda que haja um forte apelo à liberdade de expressão, outros interesses estão em jogo, principalmente o dos grandes intermediários da Internet, hoje responsáveis pela maioria esmagadora das lides sobre conteúdo gerado por terceiros.345

A sistemática que parte da inimputabilidade da rede como um princípio trata de maneira genérica toda e qualquer espécie de provedor, não se atentando nem à robustez da empresa que desempenha, nem da possibilidade técnica de controle que pode exercer por intermédio dos filtros que administra.

Eli Pariser, ao analisar a contradição existente entre o discurso dos programadores de software acerca da necessidade de proteção dos direitos individuais e da grande aglutinação de poder que o controle dos meios tecnológicos proporciona, adverte: “Se o código é a lei, como na famosa declaração de Larry Lessig, é importante entendermos o que os novos legisladores têm em mente. Precisamos entender aquilo em que acreditam os programadores do Google e do Facebook.”346 Em outro trecho, é enfático ao afirmar quais acredita serem as reais intenções dos grandes intermediários ao preconizar uma liberdade absoluta e irrestrita como base de suas condutas na Rede:

Com muita frequência, os executivos do Facebook, Google e outras empresas socialmente importantes se fazem de bobos: são os revolucionários sociais quando lhes convêm e empresários amorais quando não. E as duas posturas deixam muito a desejar.347

344 GOMES, Wilson; MAIA, Rosely C. M. Comunicação e democracia. Problemas & perspectivas. São Paulo: Paulus, 2008. pp. 321-322. 345 Nesse sentido, V. as discussões sobre os artigos 19 e seguintes da primeira versão do Marco Civil, onde é possível se os autores da proposta de reforma. Disponível em: http://culturadigital.br/marcocivil/debate/. Acesso em 29 ago. 2012.346 PARISER, Eli. O filtro invisível. O que a Internet está escondendo de você. Trad. Diego Alfaro. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 23. 347 Id. p. 156.

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As asseverações do autor, ainda que baseadas em declarações específicas de inúmeros especialistas estrangeiros sobre o tema, ainda carecem de verificação e, caso verdadeiras, podem ser contornadas quando transpostas à realidade nacional. Principalmente se aprovada a atual redação proposta no substitutivo proposto pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados.

Afinal, as duas ressalvas expressas no corpo do caput artigo 15, podem nortear os futuros trabalhos hermenêuticos acerca do tema. O primeiro diz respeito à menção expressa à garantia da liberdade de expressão e o segundo é a frase ao final que ressalva acerca da possibilidade de coexistência com outros sistemas de responsabilização em legislações diversas.

A pré-ponderação de valores que dá maior peso à liberdade de expressão, em abstrato e sem prejuízo de outros valores do ordenamento igualmente relevantes que podem prevalecer no caso concreto, é de grande valia para o intérprete. Valores como a tutela de aspectos da personalidade como imagem atributo, privacidade, dentre outros não podem ser simplesmente deixados de lado na Internet.

Eis a importância, portanto, do Parlamento para o abrandamento dos interesses em jogo na elaboração do texto legal. Criar um sistema de responsabilidade civil que parte do pressuposto da irresponsabilidade por todo e qualquer conteúdo, fazendo depender o dever de retirá-lo do ar de provimento judicial específico sobre o exato local da informação, pode deixar sem proteção alguma o elo mais fraco desta corrente: o usuário.

Utilizar como subterfúgio o caráter absoluto da liberdade de expressão para acobertar modelos de negócio irresponsáveis parece ser a subversão completa dos valores constitucionais, que sempre tiveram as situações subjetivas existenciais como corolário do epicentro axiológico do ordenamento: a dignidade da pessoa humana. Em outros termos, usar o direito fundamental à liberdade de expressão como base da “inimputabilidade” de todo e qualquer intermediário da rede esconde a tutela de um único direito fundamental em detrimento de todos os outros: a livre iniciativa.

Por esta razão, ainda que com maciça participação popular, a experiência do Marco Civil ainda não parece ser a personalização da preconizada morte do Poder Legislativo, mas apenas a evidência de uma de suas muitas funções constitucionais, qual seja, a de promover a participação popular como elemento enriquecedor e fortalecedor da deliberação.

CONCLUSÃO

A Internet, de fato, trouxe inúmeras mudanças na forma como cidadão compreende o Estado e com ele interage. As possibilidades para a participação popular são muitas e várias experiências são apontadas como bem sucedidas no exercício da cidadania neste novo milênio.

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O Marco Civil da Internet no Brasil é visto como uma manifestação da democracia participativa. As fases anteriores à propositura do projeto de lei pelo Executivo nacional contaram com milhares de participações das mais variadas vertentes.

A participação popular pela Internet não se restringiu a este momento, adentrando aos debates também em sede legislativa. Várias foram as audiências públicas e a participação popular pela Internet foi maciça tanto no portal e-democracia da Câmara dos Deputados como em outros fóruns de discussões pela Rede

Portanto, é possível se afirmar que se o Marco Civil da Internet no Brasil já havia inovado como exemplo de democracia participativa na instrumentalização de mecanismo sui generis de exercício da iniciativa popular e apresentou uma espécie de projeto de lei colaborativo, também pode ser observado pela influência da participação dos cidadãos nas deliberações legislativas.

Por isso, pode ser analisado não só pelo prisma da colaboratividade na confecção do projeto de lei, mas, outrossim, pela interatividade entre o cidadão e os representantes durante os trabalhos da Comissão Especial da Câmara, em um verdadeiro processo legislativo colaborativo.

Desta maneira, enquanto muitos preconizam a perda de sentido no Parlamento, deve-se partir da premissa de que é necessário a compreensão de quais as atuais funções do Poder Legislativo.

O aprimoramento dos dispositivos acerca da responsabilização dos intermediários da Internet pelo conteúdo inserido por terceiros contido no substitutivo ao projeto de lei, ainda que tímido, abre maiores possibilidades para a efetiva tutela de aspectos da personalidade do usuário, como sua imagem atributo, imagem retrato, honra, identidade, dentre outros.

Logo, é possível se verificar que o uso da Internet na construção da Democracia hoje não pode ser tratado de maneira superficial. Não se pode aceitar acriticamente elucubrações acerca de uma possível “morte” do Legislativo.

Pelo contrário. Deve-se sim enaltecer as possibilidades que o uso da tecnologia inaugura para a estruturação de uma forma diversa de legislar, mais colaborativa e participativa.

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SISTEMA CONSTITUCIONAL DE CRISES NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

(ESTADOS DE SÍTIO E DEFESA)

alexandre Walmott Borges348

CarloS eduardo artiaga Paula349

moaCir henrique Júnior350

RESUMO

O presente trabalho visa estudar o sistema constitucional de crise na Constituição de 1988 em uma perspectiva históricas, sistemática e analítica e, para tanto, serão analisados os princípios basilares e fundamentadores do sistema jurídico de crises, além da realização de comparações entre as Constituições brasileiras pretéritas e a atual Carta Magna. Por fim, será realizada descrição normativa minuciosa dos institutos jurídicos dos estados de sítio e defesa.

Palavras-Chave: sistema – crise – constituição – sítio – defesa.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho denomina-se sistema constitucional de crise na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 a realizará descrição normativa da legislação constitucional especial dos estados de sítio e defesa, bem como das disposições que lhes são comuns. Este estudo utilizou como princípio as normas da Constituição de 1988, comparando-a com os sistemas das constituições anteriores. Foram consolidados argumentos típicos do direito constitucional e de teoria da constituição sobre uma perspectiva analítica, utilizando como meio de pesquisa obras doutrinárias de teoria da constituição e direito constitucional positivo, bem como de outros ramos do direito, como o direito criminal e o direito administrativo dos quais se extraem conceitos e definições. O tema é exposto e problematizado sobre uma perspectiva analítica, histórica e sistemática.

348 Professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Fº - UNESP. Graduação e mestrado. Professor da Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Graduação e mestrado. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. [email protected] Mestrando em direito pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. [email protected] Doutorando em Direito pela Universidade de Barcelona.

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1. ABERTURA DO TEXTO

O Estado Democrático de Direito pressupõe um ordenamento rígido, cuja alteração deverá submeter-se a um processo mais dificultoso e solene que o previsto para as leis ordinárias, pois possui aversão às lacunas e vazios supridos pelo arbítrio de autoridades governamentais. Neste prisma, as constituições rígidas possuem grande importância como elemento necessário à estabilidade das instituições fundamentais, pois elas capacitam definir, com certa exatidão, a competência dos poderes governamentais; impedem a modificação de dispositivos que, por sua natureza, estão sujeito a ligeiras circunstâncias sociais. “Colocam o direito acima da lei. Contribuem, também, para que o conteúdo das Constituições se faça mais facilmente compreensível para o comum dos homens, educando-os civicamente” (MELLO, 1980: 67). Ademais, as constituições rígidas prevêem estipulam os preceitos fundamentais a determinado ordenamento e proporcionam uma base eficaz para a sua permanência e continuidade. Nesse prisma, o direito constitucional possui grande relevância, pois “rege a organização do Estado. Dá-lhe uma forma determinada, e fixa os princípios cuja observância é necessária para que essa forma não se altere (MELLO, 1980: 71).

O Estado é instituição fundamental na organização constitucional rígida, todavia, não é a única, pois há outras que agem em campos diversos e não são menos indispensáveis ou menos dignas. A declaração de direitos, portanto, não deve compreender só os direitos individuais, mas, outrossim, os direitos humanos, sociais e políticos. Portanto, o Estado não deve intrometer-se na parte que não lhe diz respeito e, para isto, são postos limites nas Constituições evitando abusos por parte dos governantes.

No ordenamento jurídico brasileiro, a constituição prevê limites rígidos às mudanças constitucionais, os quais podem ser formais, materiais ou circunstanciais. O primeiro grupo refere-se à iniciativa para propor emendas; ao quorum de aprovação e, por último, à vedação de propor a mesma emenda constitucional por mais de uma vez em uma única sessão legislativa. Os materiais resumem-se nas cláusulas pétreas que são normas que o Constituinte Originário buscou proteger, impedindo que seu conteúdo fosse suprimido. Por fim, os circunstanciais que são períodos em que é vedado realizar emendas à Constituição Federal, como a intervenção federal o estado de defesa e o estado de sítio, sendo que os dois últimos são objetos do presente trabalho.

O ordenamento jurídico, por vezes, esbarra em situações de “anormalidade” em que está em risco a sobrevivência da própria ordem jurídica e, portanto, deve valer-se de instrumentos rápidos e efetivos utilizados para se restabelecer a “normalidade”. Conforme Ferreira Filho (1999 apud FACCIOLLI, 2002), a

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experiência histórica ensina que todos os povos, inclusive os cultos e prósperos, passam por motivos de agitação, de desordem, de insubmissão, que não podem ser sufocados pelas medidas ordinárias de polícia e que não podem ser extintos dentro do respeito absoluto às garantias dos direitos fundamentais. Nestes estados, pode o poder público dilatar o seu campo de atuação definidos pelo legislador constituinte, conferindo ao Poder Executivo a prerrogativa de agir sem observar certos direitos e garantias ordinárias.

Conforme Maximiliano (1956), as leis ordinárias vigem em períodos ordinários em que se presumem determinadas condições de paz, tranqüilidade e concórdia social relativa. Os esparsos distúrbios existentes não deixam de ser ordinários, pois já estão previstas na própria ordem jurídica e permitem ao Estado a devida prevenção e repressão. Caso esta condição de “normalidade” mude, em situações como guerra civil, externa ou mesmo a existência de expressivo grupo que não observa os princípios constitucionais, é necessário permitir a relativização de certos direitos e garantias para que tais grupos não utilizem os freios legais e a lentidão estatal como meios favoráveis à instabilidade constitucional.

Os estados de crise constitucional lidam com os paradigmas da ordem e liberdade, não conseguindo conciliá-los de forma plena, apesar de ambas estarem intrinsecamente ligadas. A segurança, ou seja, a ordem é condição indispensável da liberdade.

Os estados de crise constitucional além de estarem previstos em normas constitucionais rígidas devem, mesmo em situações extremas, prever balizas mínimas para garantir a segurança e não suprimir os direitos e garantias individuais, como a vida, acesso à justiça e dignidade da pessoa humana.

2. TERMINOLOGIA

No Estado Democrático de Direito, a organização social é regulada por normas jurídicas que submetem não apenas os cidadãos, mas o próprio Estado e devem ser observados os direitos e garantias individuais e coletivos. Ocorre que, para resguardar o próprio Estado Democrático de Direito, a ordem jurídica prevê soluções para os momentos de tormenta institucional e política que, conforme Motta Filho e Santos (2004: 556) constituem fórmulas preventivas ou repressivas para atender as contingências da crise que “visam à estabilização e a defesa da Constituição contra processos violentos de mudança ou perturbação da ordem constitucional, mas também a defesa do Estado quando a situação crítica derive de guerra” (SILVA, 2004:741). Tratam-se dos sistemas constitucionais de crise que constituem “o conjunto coordenado de normas constitucionais que, informadas pelos princípios da necessidade e temporalidade, tem por objetivo

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as situações das crises e por finalidade a mantença ou o restabelecimento da normalidade constitucional” (SANTOS, Aricê Moacyr Amaral, 1989 apud Silva, 2004, 741).

O presente trabalho intitula-se estado de sítio e estado de defesa que são nomenclaturas utilizadas pela Constituição da República Federativa do Brasil do qual são espécies do gênero do sistema constitucional de crises. Canotilho (2000) utiliza a expressão estados de necessidade constitucional e “suspensão do exercício de direitos fundamentais”. O ilustre Doutrinador ainda observa que várias outras expressões são utilizadas para referir-se a esta mesma questão, tais como, “defesa da República”, “suspensão de garantias fundamentais”, “defesa de segurança e ordem pública”, “estado de exceção constitucional”, “proteção extraordinária do estado”, mas que todas levam a um único significado.

Motta Filho e Santos (2004) oportunamente observam que a terminologia “estado de exceção” não coaduna com o Estado Democrático de Direito, pois implicam em uma situação de “supressão” ou “vazio de direito”. Adotam como terminologia correta os “estados de legalidade extraordinária” (MOTTA FILHO; SANTOS, 2004: 562) ou, ainda, sistemas constitucionais de crise.

3. O DIREITO DE NECESSIDADE CONSTITUCIONAL

O constitucionalismo do século XIX, apesar de haver precedentes, inclusive fora do âmbito constitucional, como no direito romano na teoria do jus extremae necessitatis e em salus rei publica suprema lex esto que exprime um direito de exceção em casos de crise estatal e social, defende que o estado de exceção deve ter como alicerce a Constituição e remissão de sua regulamentação para a lei infraconstitucional, evitando lacunas que permitiriam uma complementação legislativa sensivelmente subversora dos próprios princípios constitucionais.

Trata-se do direito de necessidade constitucional que visa garantia a própria vida do Estado face a uma agressão externa ou comoção intestina grave. Todavia, este estado deve ser implementado por um período determinado, conforme princípio da temporariedade e não pode haver supressão total de direitos. Portanto, em situações de crise e de emergência (guerra, tumultos, calamidades públicas), utiliza-se os próprios recursos constitucionais necessários, adequados e proporcionais, para se obter o restabelecimento da “normalidade”, sendo utilizado por tempo determinado e as garantias são apenas suspensas, não podendo ser extintas ou suprimidas. Portanto, não se visa obter uma causa de justificação para uma excludente de culpa por fatos ou medidas praticadas para a defesa da ordem constitucional351, mas uma causa

351 Diferente do modelo inglês que confere prerrogativas ao Executivo em momento de crises por

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justificativa que exclua a idéia de ilicitude dos mesmos fatos ou medida, ou seja, supera a idéia de “ilicitude constitucional” para reconhecer o direito e dever das autoridades constitucionalmente competentes para recorrer a meios excepcionais, necessários, adequados e proporcionais para afastar perigos graves ou situações de crises que ameaçam a ordem constitucional.

Há uma inserção do direito dos sistemas de crise na órbita do direito constitucional para limitar o arbítrio dos executores das medidas de crise.

José Joaquim Gomes Canotilho (2000) enfatiza que é essencial ao estado constitucional impor a regulamentação do estado de necessidade na órbita constitucional e não há direito excepcional alheio à constituição.

Ademais, o direito de necessidade constitucional encontra paralelos no âmbito do direito internacional (estado de guerra), do direito penal (p.ex., legítima defesa), do direito civil (p.ex., legítima defesa e direito de resistência) e do direito administrativo (p.ex., estado de necessidade administrativa).

O direito de necessidade é jurisdicizado por meio de indicação dos órgãos de soberania competentes para a adoção de medidas necessárias e apropriadas ao restabelecimento da normalidade constitucional.

Nesta linha, seguem a Constituição Portuguesa de 1976, a Constituição Sueca de 1975, a Constituição Espanhola de 1978 e a Constituição Brasileira de 1988.

4. DIREITO DE CRISE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Diego Valadés (1977 apud SILVA, 2004) e David Easton (1968 apud SILVA, 2004) observam que o equilíbrio constitucional implica em uma distribuição de poder de certa forma eqüitativa a ponto de nenhum grupo sobrepor-se aos demais. Este equilíbrio é gerado por um rígido sistema constitucional, sem o qual o estado de exceção não passará de uma simples ditadura352. Quando se rompe com este balanço de poderes, um próprio órgão previsto constitucionalmente, geralmente o Executivo, absorve grande parcela de um poder ilimitado e, por conseguinte, implantam um regime ditatorial. Diego Veladés (1977 apud SILVA, 2004) observa que este regime é, com freqüência, utilizado para preservação do domínio de uma determinada classe dominante.

No Brasil, o sistema de crises era mais utilizado “com o intuito de reprimir simples divergências político-partidárias que de defesa constitucional”

meio do documento do Bill de Indemnidade que serve para “apagar” a responsabilidade penal ou civil dos membros do Executivo e seus subordinados, quando, em casos de emergência, violem as constituições ou as leis.352 Ditadura é compreendida como amplos e diversos poderes outorgados a determinado ente político que, apesar das prerrogativas, submete-se a preceitos mínimos da ordem jurídica. Difere-se dos estados totalitários em que o soberano não está inserto na ordem que impõe e, portanto, possui poder total.

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(SILVA, 2004: 742). A Constituição de 1937 implantou a ditadura de Vargas, declarando em todo o país o estado de emergências (art. 186). Em 1964 a 1978, o Brasil viveu um permanente estado de exceção, consubstanciado nos Atos Institucionais. Com o AI n.º 5 de 13 (treze) de dezembro de 1968 que vigorou até 10 (dez) de outubro de 1978, foi permitido fechar Casas Legislativas, cassar mandatos populares, demitir funcionários, suspender direitos políticos, aposentar e punir magistrados e militares; tudo com o fito de coibir adversários políticos, sustentar os detentores do poder e os interesses da classe dominante. Esta normatividade perdurou com a Emenda Constitucional de 1969 e com a Emenda Constitucional 11/78, incorporando mecanismos de poder substitutivos dos atos institucionais.

O ordenamento jurídico brasileiros possui uma predileção pelo estado de sítio por inserir a medida de defesa no âmbito constitucional; por suspender certos direitos e não toda a Carta Magna e também por prever limites legais e jurisdicionais para limitar o âmbito de atuação das autoridades responsáveis por executar a medida, conforme será explanado abaixo.

4.1 CONSTITUIÇÃO DE 1824

A Carta de 1824 admitia a hipótese de suspensão de garantias constitucionais quando houvesse “rebelião e invasão inimigos”. Esta suspensão competia o Legislativo, mas em seu recesso cabia ao Executivo instaurá-lo, prestando contas à Assembléia na primeira oportunidade. Ademais, permitia-se que as Assembléias Provinciais instaurassem o estado de sítio.

4.2 CONSTITUIÇÃO DE 1891

A Carta de 1891, como sistema constitucional de crise, utilizava expressamente o termo estado de sítio em seu art. 34. A competência para decretá-lo era do Congresso Nacional e, na sua ausência, do Presidente da República. Difere-se da Constituição de 1824 que permitia aos Entes Federados decretar a medida de crise. O estado de sítio “suspende garantias constitucionais (art. 80), traz conseguintemente a suspensão de uma parte da Constituição, e o acto de declaral-o estabelece uma lei de excepção” (CAVALCANTI, 2002: 118, sic). O alcance da medida e os direitos que ficarão suspensos estavam ao arbítrio das autoridades instituidoras, porém, estas deverão observar critérios de razoabilidade e proporcionalidade, conforme observado por Cavalcanti (2002: 121, sic): “a extensão dessa providencia extraordinária ha de medir-se pela gravidade e grandeza do perigo da patria”. Deve, ainda, observar o princípio da temporalidade, pois se assim não fosse seria conferido ao arbítrio

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da “autoridade constituir-se em dictadura por todo o tempo que lhe parecesse” (CAVALCANTI, 2002: 121, sic).

É instituído quando a segurança pública o exigir e correndo a pátria iminente perigo nos casos de emergência por força estrangeira ou de comoção interna. Quando a agressão estrangeira ou a comoção intestina assumiam grandes proporções, ameaçando a República com grande risco, o estado de sítio podia ser declarado de imediato, independentemente da autorização do Congresso. Conforme Cavalcanti (2002: 119-120), o código penal da época permitia, em casos de motim, tumulto, assuada ou sedição, a autoridade policial utilizar-se de força armada e prisão preventiva, independentemente de mandado judicial. Era vedado coibir as imunidades parlamentares e as do Presidente da República.

Era conferido ao Congresso o controle da medida, podendo aprovar ou suspender o estado de sítio decretado pelo Executivo, por intermédio do Chefe do Executivo ou por seus agentes, sendo que as autoridades que ordenaram a medida respondiam pelos abusos cometidos. A Constituição de 1891 é omissa quanto à obrigatoriedade de convocar o Parlamento durante o recesso parlamentar e ainda prevê que o Presidente e os Executores da medida deverão apresentar relatório motivado após o ato legislativo especial, não lhe impondo o ônus de apresentar documentos ou provas, nem prevendo sanções rígidas para crime de responsabilidade.

4.3. CONSTITUIÇÃO DE 1934

A Constituição de 1934 manteve o estado de sítio nas mesmas linhas, porém cuidou-se de regular minuciosamente certas providências, a fim de evitar os abusos praticados pela Constituição anterior. O Presidente da República declara o estado de sítio com a prévia autorização do Legislativo. Em recesso do Congresso Nacional, o Chefe do Executivo poderá decretar a medida com a aquiescência da Seção Permanente do Senado Federal e, nos próximos 30 (trinta) dias a Assembléia Legislativa deverá se reunir, independente de provocação, para averiguar os motivos determinantes da instauração da medida, mantendo-a ou rejeitando-a. É decretado por 90 (noventa) noventa dias prorrogáveis por igual período de cada vez, permitidos a restrição de direitos e garantias concernentes à liberdade física, à correspondência e às publicações em geral, à liberdade de reunião e de tribuna e à inviolabilidade de domicilio. Permanecia, em qualquer hipótese, as imunidades parlamentares. Cessada a medida, devem seus executores apresentar relatório minucioso das medidas adotadas e estes poderão ser responsabilizados civil e criminalmente pelos abusos cometidos. Permitiu ao legislador infraconstitucional editar lei regulamentar para a guerra ou de emergência de guerra.

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Com a intentona Comunista de 1935, as normas constitucionais do estado de sítio foram emendadas, implementando um tipo específico do estado de sítio, utilizado quando houvesse comoções intestinas graves com finalidades subversivas das instituições políticas e sociais. Este último é equiparado ao estado de guerra e nele estariam suspensas todas as garantias constitucionais, com exceção daquelas a que se fizesse menção expressa o decreto de instauração.

4.4 CONSTITUIÇÃO DE 1937

Utilizava a denominação estado de emergência e estado de guerra para referir-se ao Estado de sítio (art. 166), decretado pelo Presidente independentemente de autorização do Parlamento, durante o qual deixaria “de vigorar a Constituição nas partes indicadas pelo Presidente da República” (art. 171). Na realidade, trata-se de sistema de suspensão da Constituição e não estado de sítio.

4.5 CONSTITUIÇÃO DE 1946

A Constituição de 1946 trata do sistema constitucional de crise em seus artigos 206 a 215. Ela retorna ao sistema tradicional, prevendo duas modalidades de estado de sítio: a primeira aplicada em casos de comoção intestina grave ou de sua ameaça, admitindo-se a suspensão de algumas garantias constitucionais e na segunda, utilizada em casos de guerra externa ou guerra civil que admitiria maior suspensão de direitos e garantias, desde que especificadas em lei específica. A medida de crise é instituída por intermédio de lei pelo Congresso Nacional e na ausência deste por meio de decreto do Presidente da República que deverá, de imediato, convocar o Legislativo para se reunir dentro de quinze dias, a fim de aprovar ou não o estado de sítio.

Na hipótese de comoção intestina grave, a medida somente poderá vigorar por 30 (trinta) dias prorrogáveis por igual período e os direitos a serem restritos estão expressamente previstos na Constituição. Na hipótese de guerra externa poderá ser instituído o estado de sítio por todo o tempo em que a ameaça perdurar e a Carta Magna é omissa quanto aos direitos restringidos. Durante o estado de sítio subsistem as imunidades parlamentares, mas poderão ser suspensas caso o parlamentar atue de forma incompatível com a defesa da nação, o que será apurado com a deliberação de dois terços dos membros da Câmara ou do Senado.

Expirado o estado de sítio, cessam os seus efeitos, obrigando o Presidente da República especificar e justificar as providências adotadas. O controle do Poder Judiciário permanece durante toda a medida, mas abarca somente os atos ilegais e não os discricionários.

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4.6 CONSTITUIÇÃO DE 1967

A Constituição de 1967, em sua redação primitiva, consagrou o estado de sítio em casos de grave perturbação da ordem ou ameaça de sua irrupção e guerra, durante o qual era previsto a suspensão de certas garantias (art. 152), tais como: a) obrigação de residência em localidade determinada; b) detenção em edifícios não destinados aos réus de crimes comuns; c) busca e apreensão em domicílio; d) suspensão da liberdade de reunião e de associação; e) censura de correspondência, da imprensa, das telecomunicações e diversões públicas; f) uso ou ocupação temporária de bens das autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista ou concessionárias de serviços públicos, assim como a suspensão do exercício do cargo, função ou emprego nas mesmas entidades.

Permitia criação de lei regulamentar que autorizasse outras medidas em crises graves decorrentes de fatores de subversão ou corrupção (art. 152, § 3º). A competência para decretar era exclusiva do Presidente da República, sujeitando o ato à apreciação do Congresso.

Permanecia por no máximo sessenta dias, podendo ser prorrogada por igual prazo com justificação do Presidente da República ao Congresso Nacional. Caso este não esteja reunido, será convocado imediatamente pelo Presidente do Senado Federal.

As imunidades dos Parlamentares prevalecem, exceto quando suspensa por voto secreto de dois terços dos membros da Casa a que pertencer o congressista. Ademais, subsiste o controle pelo Poder Judiciário dos atos ilegais.

Com a emenda do Ato Institucional n.º 5 de 13 de dezembro de 1968, permitia-se a decretação do estado de sítio sem a aprovação do Congresso ou quaisquer outras limitações primitivamente previstas no texto constitucional.

A Emenda Constitucional n.º 1 de 17 de outubro de 1969, em seu artigo 182, previu uma suspensão transitória e parcial da Constituição, instaurando um estado de extraordinário, análogo ao estado de guerra da carta de 1937, com o fito de debelar a subversão e extinguir a corrupção.

4.7 EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 11/1978

A Emenda n.º 11 de 13 de outubro de 1978 deu nova redação à matéria inovando no ordenamento jurídico brasileiro ao mesmo tempo em que revogou o Ato Institucional n.º 5. O sistema constitucional de crises somente era instaurado para preservar ou prontamente estabelecer, em locais determinados e restritos, a ordem pública ou a paz social, ameaçadas por calamidades ou graves perturbações, quando estas últimas não implicarem em medidas mais drásticas (art. 155).

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O estado de sítio é decretado pelo Presidente da República com a aprovação do Congresso nos casos de “guerra ou a fim de preservar a integridade e a independência do País, o livre funcionamento dos poderes e de suas instituições, quando gravemente ameaçados ou atingidos por fatores de subversão” (art. 156). As hipóteses de sua decretação são taxativas, bem como os direitos a serem restringidos, admitindo outras hipóteses regulamentadas em lei específica (art. 156, § 6º). Persiste por 180 (cento e oitenta) dias renováveis até durar a situação que gerou sua decretação.

Outra inovação é o estado de emergência, declarado pelo Presidente da República, mas não sujeito à apreciação do Legislativo (art. 158), utilizado em casos de guerra ou para repelir atividades subversivas. As medidas são as mesmas aplicadas no estado de sítio, com a diferença de que o prazo é de 90 (noventa) dias renovável por uma só vez por igual período. Para ser ouvido sobre sua decretação, previu o Conselho Constitucional (art. 159), composto pelo Presidente da República, o Vice-Presidente, os Presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, o Ministro da Justiça e um dos Ministros das Forças Armadas.

5. DIREITO CONSTITUCIONAL DE CRISE NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

O processo de elaboração da Nova Carta Magna atualmente em vigor buscou ao máximo reagir em desfavor do autoritarismo vivido durante o período militar. Isto se reflete no tratamento dado à questão da emergência, a começar pelo nome do título V: “Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas” que manifesta não apenas a proteção do Estado, mas também da Soberania Nacional e a Pátria em sua manifestação mais concreta, consubstanciada pelas instituições democráticas.

A defesa do Estado difere-se sobremaneira da defesa de um determinado “sistema político”, pois, por detrás de um sistema político há diversos interesses privados que visam utilizar dos poderes extraordinários em seu próprio benefício (Baracho, 1987 apud Ivo Dantas, 1989). O sistema brasileiro constitucional de crises não mais visa “a defesa deste ou daquele regime político ou de uma particular ideologia ou de um grupo detentor do poder” (SILVA, 2004: 740-741).

A nova Constituição de 1988 estabelece um sistema geral de exceção que não se afasta muito do que adotou a Emenda n.º 11/78, prevendo dois sistemas de resposta: um mais brando – o estado de defesa – e outro mais rigoroso, o estado de sítio.

O primeiro se destina a “preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave

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e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções da natureza” (BRASIL, 1988, art. 136, caput). Já o segundo volta-se para a “ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia” das medidas tomadas no estado de defesa, e, também, para os casos de “declaração de guerra” ou de “resposta a agressão armada estrangeira” (BRASIL, 1988, art. 137, I e II). A diferença entre o estado de sítio e de defesa encontra-se no grau de gravidade. Enquanto o primeiro cabe a situações de gravidade mais elevada, no segundo, o problema é menor. Ademais, o estado de defesa possui abrangência territorial pontual, enquanto o estado de sítio poderá ser limitado a uma determinada área do território nacional (art. 138, caput).

5.1 DO ESTADO DE DEFESA

Conforme Ivo Dantas (1989) o art. 136, que regulamenta o estado de defesa, corresponde ao art. 152 caput do texto constitucional de 67/69, embora este se utilizava da expressão “medidas de coercitivas”.

A medida está inserida no título V, “Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas” e, no capítulo I, há a previsão legal: “Do Estado de Defesa e do Estado de sítio” (BRASIL, 1988, grifos nossos). Neste título, Estado uma forma de organização política. Já, no art. 136, quando se refere a estado de defesa, “estado” refere-se a uma “situação”, circunstância”, “conjuntura”, um Ser em um dado momento; achar-se (em certa condição). Esta segunda noção é compatível aos estados de sítio e defesa, por estarem lastreados pelos princípios da necessidade e temporalidade.

5.1.1 INSTAURAÇÃO DO ESTADO DE DEFESA

Da expressão decretar o estado de defesa entende-se que a espécie legislativa que instaura o estado de defesa é o decreto manifestador do chefe do Poder Executivo que nada mais é do que a determinação do Chefe do Estado, nos termos da CF, art. 84, IV. O controle do Congresso Nacional ainda subsiste, pois é de sua competência exclusiva “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”, nos termos do art. 49, V, CR/88.

O estado de defesa trata-se de faculdade pessoal do Presidente, advindas da expressão “O Presidente da República pode (...)” (BRASIL, 1988). Deste texto, todavia, há uma indagação crucial ao afirmar que “o Presidente da República ouvirá os Conselhos da República e ao Conselho de Defesa Nacional” (Brasil, 1988, art. 136, caput), ou seja, a decisão final do Chefe do poder executivo subordina-se a estes órgãos ou a decisão de ambos em nada vinculará a decisão

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do Presidente da República? Conforme interpretação sistêmica, em que se analisa o todo constitucional, Ivo Dantas (1989) afirma que pela análise do “espírito constitucional”, havendo divergência entre a posição dos Conselhos e do Presidente da República deve-se preponderar a decisão daqueles. Dantas (1989) ainda observa que, caso haja divergência entre o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, a posição daquele (Conselho da República) deve preponderar por ter uma composição mais eclética.

Contudo, a doutrina majoritária, como Mota e Spitzcovsky (2004), Ferreira Filho (2009), Chimenti (2005), Capez (2008), entende que o parecer de ambos Conselhos não é, senão, opinativo, pois não vincula o Presidente da República que, mesmo contra o parecer, poderá solicitar a autorização do Congresso Nacional para aprovar o estado de defesa (ou decretar o estado de sítio). José Afonso da Silva (2004) entende que a audiência dos Conselhos da República e de Defesa Nacional é obrigatória, sob pena de inconstitucionalidade da medida. Todavia, são apenas órgãos consultivos que não vinculam o Presidente da República, mas caso este decida contra aqueles, poderá ensejar hipótese de crime de responsabilidade.

Em 24 (vinte e quatro) horas o decreto deverá ser encaminhado ao Congresso com a respectiva justificativa que, no prazo de 10 dias deverá aprová-lo (conforme art. 49, IV da CF) ou rejeitá-lo (art. 136, §§ 4º, 6º e 7º da CF), sempre por maioria absoluta. “Por se tratar de medida de exceção, creio que o decurso do prazo sem manifestação do Congresso implica em imediata suspensão do decreto” (CHIMENTI, 2005: 132). Ivo Dantas (1989) ressalta que, quando o texto constitucional menciona que rejeitada a medida pelo Congresso, cessa imediatamente o estado de defesa, não há que se esperar a publicação no Diário Oficial do Congresso, bastando somente a comunicação escrita do Presidente da República ao executor da medida.

Caso o Congresso esteja em recesso, será convocado no prazo de cinco dias para apreciar a matéria nos dez primeiros dias de seu recebimento e funcionar durante todo o tempo que vigorar o estado de defesa, conforme art. 136, § 6º. Na sessão legislativa extraordinária, o Congresso somente poderá deliberar sobre a matéria, conforme art. 57, § 7º, cabendo-lhe ainda, por iniciativa da “Mesa, e ouvidos os líderes partidários, designar Comissão composta por cinco de seus membros para acompanhar e fiscalizar a execução das medidas”, sejam elas referentes ao estado de defesa ou ao estado de sítio (art. 140, CF/88). Todavia, conforme Ivo Dantas (1989), o Congresso não poderá apresentar emendas aditivas ou supressivas ao decreto do Presidente da República que instituir o estado de defesa, por trata-se de ato privativo do Chefe do Poder Executivo, nos termos do art. 84, IV da CR/88. Ademais, como limites materiais fixados constitucionalmente o decreto presidencial não poderá inovar, cabendo ao Congresso acatar ou rejeitar a medida. Daí a importância da justificativa presidencial.

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O Congresso Nacional assume participação efetiva face à decretação do estado de defesa, diferente da Constituição de 1967, com a emenda n.º 1 de 1969, que em seu art. 158 estipulava que o Presidente deveria apenas informar o Congresso sem ter qualquer posição contrária às medidas adotadas. O § 4º do art. 136 da CF/88 menciona que o Presidente da República submeterá o decreto a decretação do estado de defesa ao Congresso Nacional que apreciará por maioria absoluta. Por fim, rejeitado o decreto, cessa imediatamente o estado de defesa (art. 136, § 7º), e, em conseqüência, se o Congresso voltará ao seu período de recesso.

5.1.2 REQUISITOS PARA A OCORRÊNCIA DO ESTADO DE DEFESA

Ao decretar a medida, devem-se fixar, de maneira clara e objetiva, os objetivos reais ao serem alcançados os quais devem preservar ou prontamente restabelecer a ordem pública em locais restritos e determinados. Infere-se, portanto, que a medida já pode ser aplicada a partir da ameaça, não sendo necessário que sejam atingidas a paz social e a ordem pública.

Para a ocorrência do estado de defesa, é necessária a ocorrência de grave e iminente instabilidade institucional, sendo que esta deriva de obra humana ou por calamidades de grandes proporções da natureza. Frise-se que a instabilidade institucional deve ser grave e iminente, enquanto a calamidade da natureza deve ser em grandes proporções. Sem estes requisitos, o Congresso Nacional deverá rejeitar a medida. Portanto, não há que se considerar a greve como algo fora da normalidade para justificar a implantação do estado de defesa, pois primeiramente é direito constitucionalmente previsto no art. 9º da Constituição que preceitua: “É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender” (BRASIL, 1988) e, portanto, não está “fora da normalidade”. Em segundo lugar, a calamidade é sempre uma situação de desajuste no âmbito de sua verificação.

Esta medida se justifica, pois, em situações de calamidade, seja natural - ciclone, tornado, furacão, terremoto, maremoto, inundação, seca prolongada - ou ato derivado do homem – peste, epidemia, fome, incêndio -, poderão as autoridades públicas ver dificultados os esforços para instalar hospitais, postos, depósitos e abrigos, permitindo ao Poder Público tomar medidas mais rígidas para remediar a situação.

5.1.3 REQUISITOS DO DECRETO QUE INSTITUIR O ESTADO DE DEFESA

As restrições de direitos e garantias a viger durante o estado de defesa observam os parágrafos primeiro e segundo do art. 136 da Constituição da

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República de 1988 que preceituam que apresentam o aspecto material do estado de defesa, apontando o conteúdo da norma jurídica proferida pelo Poder Executivo que deve limitar-se ao parâmetro legal. Além disso, conforme Ivo Dantas (1989) a Constituição ao utilizar a expressão “nos termos e limites da lei” está a requerer a elaboração de lei que discipline a utilização desta norma de crise.

O primeiro ponto a ser estipulado no decreto de defesa é o tempo de duração que será de trinta dias, prorrogáveis uma só vez por igual período. Este prazo não é absoluto, pois, caso o Congresso Nacional rejeite a medida de defesa, cessa desde logo os efeitos, conforme verifica-se nos §§ 4º e 5º do art. 136, CF/88. O prazo de 30 (trinta) e 60 (sessenta) dias são limites máximos a serem observados. Caso haja a expiração deste prazo, “o remédio será a decretação do estado de sítio, com base na autorização legal prevista no art. 137, I, da Constituição Federal”. (ALEXANDRINO e PAULO, 2007: 862)

O segundo item será fixar as áreas a serem abrangidas que, na verdade, trata-se do desdobramento do próprio caput, quando menciona “locais restritos e determinados”. Conforme Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2007), por uma interpretação constitucional sistemática, o estado de defesa não poderá abranger todo o território nacional, pois, se assim fosse, a medida a ser adotada seria o estado de sítio. Ademais, neste estado, somente após a publicação do decreto, as áreas serão especificadas.

O último aspecto é a menção das medidas coercitivas a vigorarem, pois é facultado ao Presidente da República utilizar algumas das medidas ou todas, mas não pode exasperar os limites constitucionais estipulados. O texto constitucional é omisso em não determinar ao Poder Executivo as pessoas encarregadas da execução do estado de defesa.

A constituição de 1988 além de diferenciar a duração dos dois estados, estabeleceu restrições quanto às matérias, além de dividi-las em dois grupos, o primeiro utilizado na hipótese de grave e iminente instabilidade institucional, com as restrições de reunião, ainda que exercida no seio das associações; sigilo de correspondência; sigilo de comunicação telegráfica e telefônica (art. 136, I, a, b e c) e o segundo na hipótese de calamidades de grandes proporções na natureza, que cheguem a comprometer a ordem pública e a paz social em que se aplica a hipótese do art. 136, II.

Os direitos não são suprimidos ou extintos e sim limitados, apertados o que os torna estreito. Os limites deverão ser definidos em lei e não no decreto do estado de defesa. Como esta regulamentação ainda não existe, resta a alternativa do Poder Executivo utilizar-se da medida provisória, prevista no art. 62, CR/88, em razão da relevância e urgência da matéria.

A reunião, compreendida como “agrupamento voluntário de diversas pessoas que, previamente convocadas, acorrem ao mesmo lugar com objetivos

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comuns” (CRETELLA JÚNIOR, 1992: 3359) poderá ser restringida, limitando os direitos previstos no art. 5º, XVI, XVII e XIX. Ivo Dantas (1989) entende que esta restrição atingirá também a associação profissional e sindical prevista no art. 8º, caput.

Poderá o decreto determinar restrições ao sigilo de correspondência ou ao sigilo de comunicação telegráfica e telefônica, sendo que estas deverão ser utilizadas concomitantemente, conforme se depreende pelo uso na conjunção “e” no texto constitucional, relativizando o disposto no Art. 5º, XII.

Na hipótese de calamidade pública, o decreto que instituir o estado de defesa indicará quais os bens e serviços públicos que serão objeto de ocupação e uso temporários, buscando-se minorar os efeitos provocados pelo desastre público. Esta ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos não eximem a União da responsabilidade prevista pelo art. 37, § 6º, CR/88.

5.1.4 LIMITES CONSTITUCIONAIS DO ESTADO DE DEFESA

O parágrafo terceiro do art. 136 e seus respectivos incisos voltam-se para os limites constitucionais da medida, com respaldo nos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil. Assim, mesmo existindo uma legalidade especial, o Presidente da República e os executores do decreto de exceção não estão isentos de responsabilidade.

O inciso I prevê que “a prisão por crime contra o Estado determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de corpo de delito à autoridade policial” (Brasil, 1988). Inicialmente, observa-se a utilização do termo “crime contra o Estado” enquanto no restante do texto constitucional, utiliza-se a expressão “crime político”, conforme de averigua do art. 102, II, b e art. 109, IV.

Ivo Dantas (1989) acredita que a nível doutrinário há uma indefinição quando a diferença entre crime político e crime contra o Estado, embora aquele (crime político) é utilizado quando se trata de lesão à ordem política ou as instituições públicas, enquanto o crime contra o Estado seria uma espécie daquele atrelada à soberania estatal.

O responsável pela lesão deve comunicar de imediato ao Juiz competente, ou seja, a comunicação deve ser instantânea, sem que haja espaço entre a prisão e o ato comunicativo, o que, não sendo realizado, caracterizará ato ilícito e abuso de poder, garantindo-lhe o direito ao habeas corpus. Não havendo a possibilidade da comunicação escrita e formal, esta pode ser feita por outros meios, tais como telegrama, telefone e serviços radiofônicos. O juiz, ao verificar aspectos de ilegalidade da prisão realizará o relaxamento ex officio,

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determinando de imediato a expedição de alvará de soltura que também deverá ser cumprido de imediato pela autoridade competente. Ademais, é facultado ao preso realizar o exame de corpo de delito, haja visto o impedimento à tortura nos termos do art. 5º, XLIX. Ivo Dantas (1989: 62) critica tal dispositivo por o requerimento deveria ser feito à autoridade judiciária competente e não à autoridade policial.

A comunicação da prisão ao juiz deverá, obrigatoriamente, ser acompanhada por declaração relatando as condições físicas e mentais do detido no momento em que foi autuado, visando assegurar a sua integridade física. Mota e Spitzovsky (2004) observam que esta exigência terá grande efeito quanto à responsabilidade da autoridade tendo em vista de eventuais abusos cometidos, pois esta declaração terá presunção de legitimidade, cabendo à parte prejudicada realizar prova em contrário.

O Executor da prisão poderá ter à sua disposição o detido pelo prazo máximo de dez dias, a partir do qual a medida torna-se ilegal, dando ensejo a habeas corpus. O juiz, sendo provocado pela autoridade policial, poderá prorrogar o prazo, determinando período específico “que, cremos, não poderá ser renovado”. (DANTAS, 1989: 64). Em virtude da prisão ser por motivos político-ideológicos (crime contra o Estado) , é vedada a incomunicabilidade do preso.

Como nos estados de crise constitucional vedam a incomunicabilidade do detento, Tourinho Filho e Mirabete (2003 apud MOTTA FILHO e SANTOS, 2004: 562) entendem que o art. 21 do Código de Processo Penal que permite a incomunicabilidade estaria revogado, pois se nos estados de legalidade extraordinária esta prática estaria vedada, quanto mais nos estados de normalidade. Em sentido oposto, entendem Greco Filho e Damásio E. de Jesus (2003 apud MOTTA FILHO e SANTOS, 2004: 562) afirmando que a incomunicabilidade do preso é vedada nos estados de crise constitucional, pois neles são restringidos outros direitos individuais, sendo esta vedação como salvaguarda para o cidadão. Todavia, alegam que a incomunicabilidade, em nenhuma hipótese, se estende ao advogado e sua ocorrência configura crime de abuso de autoridade (Lei 4.898/65).

5.2 ESTADO DE SÍTIO

O ordenamento jurídico brasileiro para a regulamentação do estado de sítio utiliza-se o sistema rígido que prevê limites específicos das medidas utilizadas nesse estado, traçando-lhes os detalhes. Difere-se do sistema da common law que utiliza o sistema flexível da martial law.

Conforme Silva (2004: 748), o estado de sítio consiste em instaurar uma legalidade extraordinária por determinado tempo e em certa área, objetivando

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preservar a normalidade constitucional, perturbada por motivo de comoção grave de repercussão nacional ou por situação de beligerância com Estado estrangeiro.

5.2.1 – INSTAURAÇÃO DO ESTADO DE SÍTIO

Para se instaurar o estado de sítio, o Presidente da República e somente ele (pois trata-se de ato pessoal) deve ouvir o Conselho de República e o Conselho de Defesa Nacional. A manifestação destes dois conselhos é obrigatória, sob pena de inconstitucionalidade da decretação da medida. Todavia, conforme a doutrina majoritária, sua manifestação é meramente opinativa e não vincula do Chefe do Poder Executivo. Há um controle prévio que não pode ser suplantado por ser uma conditio sine qua non, sob pena do decreto estar eivado de inconstitucionalidade formal, por lhe faltar requisito essencial e não facultativo. Ivo Dantas (1989) critica o controle prévio por ser demorado e, no estado de sítio, necessita-se de respostas prontas e imediatas.

Após ouvidos os Conselhos, o Presidente da República deve solicitar a concordância prévia do Congresso Nacional. Trata-se de decisão política, cujo controle de legalidade pode ser exercido pelo Supremo Tribunal Federal. O Congresso deverá deliberar por maioria absoluta, conforme previsto no parágrafo único do art. 137.

O art. 57 da Constituição Federal prevê que “o Congresso Nacional reunir-se-á, anualmente, na Capital Federal, de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 1º de agosto a 22 de dezembro” (BRASIL, 1988). Qualquer reunião fora deste prazo será extraordinária e observará o disposto nos parágrafos sexto e sétimo deste mesmo artigo. Apesar da maior gravidade e urgência que no estado de defesa, o Constituinte manteve o prazo de 5 (cinco) dias para o Presidente do Senado Federal convocar o Congresso a fim de apreciar o ato. Ivo Dantas (1989), partindo da premissa do controle prévio do Congresso ser essencial ao decreto do estado de sítio, critica o dispositivo, afirmando que, pela crise constitucional expressa pela proposta do estado de sítio, o Congresso deveria reunir-se em, no máximo, quarenta e oito horas ou seu controle deveria ser posterior. A constituição não prevê prazo específico para apreciar o ato, como o faz no estado de defesa.

Em sentido contrário, Ferreira Filho (1989) admite que, estando em recesso o Congresso Nacional, o estado de sítio poderá ser decretado pelo Presidente da República, mas deverá ser imediatamente convocado o Congresso para se reunir dentro de cinco dias, a fim de apreciar o ato (art. 138, § 2º).

“O Congresso Nacional permanecerá em funcionamento até o término das medidas coercitivas” (BRASIL, 1988, ART. 138, §3º). Trata-se de garantir a representação do povo, acompanhando todas as medidas e acontecimentos, além de evitar convocações na hipótese de prorrogação de prazo.

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Após a publicação do estado de sítio, com prévia aprovação do Congresso, o Presidente da República designará o executor das medidas e as áreas abrangidas. Esta decisão, por ser posterior, não se submete à apreciação do Congresso Nacional.

5.2.2 – REQUISITOS PARA A OCORRÊNCIA DO ESTADO DE SÍTIO

Nos termos do inciso I do art. 137, o estado de sítio surge com comoção de grave repercussão nacional, ou seja, deve haver uma subversão profunda que ponha em perigo as instituições, a tranqüilidade e vida dos cidadãos, ameaçando-lhes os direitos. Não são suficientes simples desordens e motins, pois estes podem ser suprimidos pela ordem constitucional ordinária. A repercussão geral deverá ter seus efeitos irradiados por todo o território nacional, embora não se deve exigir uma igualdade perfeita na proporção de tais efeitos, pois os fenômenos político-sociais, em circunstâncias excepcionais, não podem ser mensurados materialmente.

Alternativamente, o inciso I do art. 137 permite a decretação do estado de sítio quando as medidas adotadas durante o estado de defesa tornam-se ineficazes. Não é medida imposta ao Presidente da República, mas uma faculdade posta à sua disposição que deverá ser apreciada previamente pelo Congresso Nacional.

Nas hipóteses do inciso I do art. 136 ARAÚJO e NUNES JÚNIOR (2001, apud CHIMENTI, 2005) denominam de estado de sítio repressivo.

O inciso II do art. 137, denominada por CHIMENTI (2005: 132) por “estado de sítio defensivo”, prevê a hipótese de “declaração do estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira” (BRASIL, 1988). Conforme Capez (2008), o termo guerra significa agressão armada estrangeira. A guerra em questão deve ser aquela declarada, pois, “sendo regime de exceção o estado de sítio deve ser interpretado restritivamente” (DANTAS, 1989: 83).

5.2.3 – REQUISITOS DO DECRETO QUE INSTITUIR O ESTADO DE SÍTIO

O art. 138 caput e respectivo § 1º tratam do conteúdo material do decreto do estado de sítio que indicará, obrigatoriamente, a) sua duração; b) as normas necessárias a sua execução e c) as garantias constitucionais que ficarão suspensas.

Na hipótese de declaração de guerra ou resposta à armada estrangeira (art. 137, II) poderá o estado de sítio ter uma vigência igual ao período em que perdurar os fatos que a fundamentaram. Todavia, não impede o Presidente da República de estipular prazo determinado para a vigência das medidas. Ademais, caso o pressuposto, como a guerra, deixe de existir antes do término do prazo, será desde logo suspenso o decreto.

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A duração máxima do estado de sítio dependerá da causa de sua decretação. Na hipótese do art. 137, I da Constituição Federal, o prazo poderá ser de trinta dias e sua prorrogação, de cada vez, só será possível por igual período. A cada dilação de prazo, o Presidente deverá submeter sua intenção ao crivo do Congresso Nacional, consoante art. 137, parágrafo único. Na hipótese de declaração de guerra ou resposta à armada estrangeira (art. 137, II) poderá o estado de sítio ter uma vigência igual ao período em que perdurar os fatos que a fundamentaram. Todavia, não impede o Presidente da República de estipular prazo determinado para a vigência das medidas. Ademais, caso o pressuposto, como a guerra, deixe de existir antes do término do prazo, será desde logo suspenso o decreto.

Quanto às normas necessárias a sua execução, Ivo Dantas (1989) critica a expressão “garantias fundamentais que ficarão suspensas”, pois, por ser o Estado de sítio uma forma de legalidade especial rígida, somente poderão ser atingidas aquelas matérias constitucionalmente previstas. Assim, nenhuma garantia poderá ser “suspensa”, pois os direitos individuais e coletivos, cujo exercício e gozo poderão ser assegurados pelas Garantias Constitucionais, tais como mandado de segurança, mandado de injunção, habeas corpus e habeas data, serão suspensos. Todavia ainda são cabíveis as garantias, caso seja aplicada medidas além daquelas previstas no art. 139 da Constituição. Este dispositivo era expresso na Constituição de 1946 que previa em seu art. 215: “A inobservância de qualquer das prescrições dos arts. 206 a 214 tornará ilegal a coação e permitirá aos pacientes recorrerem ao Poder Judiciário” (BRASIL, 1946). Na constituição atual, todavia, este preceito ainda subsiste de forma implícita.

Em sentido contrário, Ferreira Filho (2007) afirma que é intrínseco ao estado de sítio a suspensão de garantias constitucionais (de garantias –limite ou defesa), ou seja, a proteção específica de determinados direitos fundamentais”, as quais deverão também ser indicadas no decreto instaurador.

Conforme art. 137, I, para a decretação do estado de sítio, a repercussão deverá ser nacional. Todavia, não é necessário ter como área atingida todo o território nacional, já que a constituição se refere a “áreas abrangidas”. Estas podem ser ampliadas ou reduzidas ao arbítrio do Chefe do Poder Executivo, posto que não se submete à apreciação do Congresso. Esta unilateralidade de escolha também aplicam-se ao executores do estado de sítio. Este aspecto, todavia, não exime a responsabilidade pelos atos ilícitos praticados durante o período em que estiveram respondendo pela Legislação excepcional, conforme art. 141 da Carta Magna.

5.2.4 MEDIDAS RESTRITIVAS CABÍVEIS DURANTE O ESTADO DE SÍTIO

Na vigência do estado de sítio ou estado de defesa, a Constituição de modo geral continua em vigor, porém admite certas restrições delimitadas

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taxativamente nas normas sobre os estados excepcionais. Estas serão regidas pelo decreto presidencial. O artigo 139 enumera as medidas restritivas cabíveis quando da verificação da hipótese de “comoção grave de repercussão nacional”, como previsto no art. 137, inciso I, mas nada diz acerca da possibilidade aventada no inciso II daquele mesmo artigo, ou seja, a de “declaração de estado de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira”. Ivo Dantas (1989) afirma que o texto constitucional só admite restrição à ordem constitucional normal se o decreto estiver baseado no inciso I do art. 137, já que nenhuma referência é feita à hipótese do inciso II do mesmo artigo. A interpretação deverá ser restritiva, pois o sistema jurídico brasileiro adota o sistema rígido de legalidade especial. Em sentido contrário, CAPEZ (2008) e CHIMENTI (2005:133) defendem que “o estado de sítio decretado com base no inc. II do art. 137, em tese, admite a suspensão de qualquer direito ou garantia constitucional, desde que prevista na autorização do Congresso Nacional”.

É evidente que o estado de sítio, com fulcro no inciso II do art. 137 demanda de extrema rigidez, por tratar-se de situação crítica. Todavia, a inexistência de limites materiais expressos ou cujo reconhecimento seja claro e evidente corresponde a um verdadeiro vazio constitucional e acarreta implicações negativas na proteção dos direitos constitucionais, fornecendo uma perigosa margem a interpretações de conveniência de forças políticas eventualmente no comando.

A questão poderia ser sanada pelo exercício do “poder reformador”, ou seja, pela apresentação de emenda constitucional que estabeleça de maneira adequada seus limites ou que os equipare aos já previstos para os casos do “inciso I” (as demais situações em que pode ocorrer estado de sítio). Todavia, a inexistência desta emenda constitucional demanda árduo trabalho dos operadores do direito.

Algumas balizas mínimas devem ser observadas. Elidio Alexandre Borges Marques (2009) afirma que estes limites “mínimos” estariam estabelecidos em tratados internacionais sobre direitos humanos no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), ou seja, os direito a vida, proibição à tortura e escravidão, reconhecimento da personalidade, liberdade religiosa e a legalidade penal.

As exceções temporárias previstas no art. 139 abrangem somente as pessoas e não atingem o funcionamento dos Poderes do Estado, seja o Legislativo, seja o Judiciário que poderá ser acionado por aquele que julgue atingido por medida não prevista no art. 139 da Constituição.

Nos termos do art. 139, I, no estado de sítio, pode-se determinar a permanência de alguém em local previamente estabelecido, sustando a vigência do direito individual de locomoção, com fulcro no art. 5º, XV da Constituição,

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garantido pelo habeas corpus, o qual também fica suspenso, mas não por completo. Ivo Dantas (1989) bem analisa que a suspensão deste instituto processual constitucional somente será possível nos casos referentes aos incisos I e II, mas será aplicado, em todo o seu conteúdo, se, por exemplo, alguém for preso por determinação de qualquer autoridade, em virtude de dívida civil que não abrange as hipóteses de pensão alimentícia e depositário infiel.

No inciso II do art. 139: “detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns” (BRASIL, 1988), relativiza-se o princípio contido no art. 5º, inciso LXI, o qual “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (BRASIL, 1988). A detenção e reclusão distinguem-se pela gravidade do crime, da lesão ou do perigo, ficando a reclusão reservada aos crimes mais graves e a detenção para os crimes mais leves. Ademais, a reclusão é cumprida em regime fechado, aberto ou semi-aberto; ao passo que a detenção, em regime semi-aberto ou aberto, salvo a necessidade de transferência a um regime fechado (BRASIL, 1984). No estado de sítio, aplica-se a detenção a qualquer pessoa a quem o executor da medida excepcional entender que deverá afastar do convívio social.

Caso não se aplique a reclusão ao invés da detenção, ou seja, há o recolhimento da pessoa em penitenciárias, colônias agrícolas, industriais ou estabelecimentos similares destinados a presos ou condenados por crimes comuns em detrimento da detenção em locais especiais, há o ensejo ao habeas corpus. A detenção, portanto, deve ser realizada em algum outro local destinado para tal fim, tal como os quartéis das forças armadas. Esta norma deve ser interpretada restritivamente por tratar-se de norma restritiva de direitos.

O inciso III do art. 139 permite “restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei” (BRASIL, 1988). Trata-se de exceções permitidas durante este estado ao art. 5º, XII, XIV e ao art. 220, §§ 1º e 2º da própria constituição.

Nestas restrições não se inclui a difusão de pronunciamento dos parlamentares em suas Casas Legislativas, desde que liberada pela respectiva mesa, consoante parágrafo único do art. 139. A correta compreensão desde dispositivo vincula-se à concepção de imunidade parlamentar. As imunidades pertencem não à pessoa do parlamentar, mas sim ao mandato que exercem em nome do povo nos sistemas representativos. Tem o liame de garantir que as funções dos membros do Legislativo sejam exercidas sem qualquer restrição, seja do próprio Poder ou dos particulares. A garantia do parágrafo único do art. 139 está indissoluvelmente ligada ao § 8º do art. 53. O legislador agiu

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corretamente ao estender as imunidades parlamentares para o estado de sítio, primeiramente, pois a subsistências da imunidades é algo indispensável para efetivo controle pelo Congresso Nacional.

Todavia, conforme Ivo Dantas (1989), há um grande equívoco na continuação do § 8º do art. 53 que permitem a suspensão das imunidades “(...) mediante o voto de dois terços da casa respectiva, nos casos de atos, praticados fora do recinto do Congresso, que sejam incompatíveis com a execução da medida” (BRASIL, 1988). Inicialmente, mesmo fora do espaço físico do Congresso, o parlamentar poderá estar no exercício do mandato, como, por exemplo, quando desloca-se para verificar as detenções realizadas conforme art. 139, II. Por outro lado, o Parlamentar, mesmo inserto no espaço físico do Congresso, poderá não estar atuando no exercício do seu mandato, quando, por exemplo, apresenta-se como orador em um comício político ou dando uma entrevista coletiva, considerado nestes atos como um mero cidadão e como tal responsável pelos seus atos. Em segundo lugar, a Imunidade não pertence à pessoa do parlamentar e sim à função e, portanto, são irrenunciáveis, já que são meros usuários daquilo que, em essência, pertence a todos os que estão sob o império soberano do Estado. Por fim, é incongruente vincular as exclusões de restrições do art. 139, III com um juízo de valor da Mesa diretora dos trabalhos, mesmo porque não se prevê recurso desta decisão à apreciação do Plenário e, “mesmo que os Regimentos, ora em fase de elaboração, o façam, não temos muita certeza de sua constitucionalidade”. (DANTAS, 1989: 110)

O inciso IV do art. 139 que prevê a suspensão total à liberdade de reunião torna esta medida mais rígida que as restrições a este direito previstas no estado de defesa (art. 136, §1º, I, a).

A busca e apreensão em domicílio prevista no art. 139, V, relativiza a inviolabilidade domiciliar, contida no art. 5º, XI. Ivo Dantas (1989) adota uma concepção ampla de domicílio, compreendendo-o como casa, escritório, repartição ou outros análogos, considerados com algo concreto e não mero conceito jurídico.

A intervenção nas empresas e serviços públicos (art. 139, VI) é outra hipótese permitida durante o estado de sítio. Ivo Dantas (1989) entende que o conceito de serviço público deve ser amplo, abrangendo o serviço público direto, exercidos por entes da Administração Pública direta, como a União, estados, Distrito Federal e municípios e também o indireto exercido por permissionários e concessionários de serviços públicos, visando manter a continuidade na prestação do serviço. Facultará ao executor da medida excepcional afastar de seus cargos aqueles que dirigem a empresa, colocando à sua frente, enquanto durar a situação, pessoa de confiança, que, ao final do período, será igualmente responsável pelas medidas que adotar.

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Durante o estado de sítio, é facultado ao Estado requisitar bens, relativizando o princípio da função social da propriedade, prevista no art. 170, III da Constituição. Trata-se de hipótese de intervenção do estado na propriedade.

5.3 ELEMENTOS COMUNS AOS ESTADOS DE SÍTIO E DEFESA

Nesta última seção que trata sobre os estados de sítio e defesa o legislador estipula regras jurídicas de caráter genérico aplicadas todas as normas de exceção.

Inicialmente, conforme observa Pedro Lenza (2005), as medidas excepcionais somente poderão ser aplicadas dentro dos limites constitucionais e em hipótese fática de crise constitucional. “Se as medidas de exceção forem aplicadas em tempos de normalidade democrática, a Constituição estará sendo violada, configurando-se autêntico golpe de estado” (ARAÚJO e NUNES JÚNIOR, 1999 apud LENZA, 2005: 422).

O Art. 141 garante à Mesa do Congresso Nacional, após ouvidos os líderes partidários, designar Comissão composta por cinco de seus membros. Serão membros compostos de ambas casas, tanto o Senado Federal quanto a Câmara dos Deputados. Decorre do controle concomitante à duração da medida conferido ao Congresso no art. 58 da Constituição, in verbis: “O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação” (BRASIL, 1988). Nos estados de legislação especial de crise, as comissões são temporárias, já que são caracterizados pela delimitação temporal.

O Congresso Nacional permanecerá em funcionamento durante toda a duração das medidas emergenciais e este, conforme observa CHIMENTI (2005) pode a qualquer momento suspender o estado de defesa e o estado de sítio (art. 49, IV da CF).

O estado de defesa não será superior a trinta dias, prorrogáveis por mais trinta (art. 136, § 2º) e o estado de sítio possui período variável de duração de acordo com a fundamentação do decreto (art. 138, § 1º). Neste raciocínio, vencido o prazo, vence também todos os efeitos que tenham sido gerados por ela, retomando a sociedade à regulamentação constitucional em sua plenitude. Após, haverá responsabilização dos executores da medida pelos ilícitos cometidos. Ora, os estados de emergência são limitados aos parâmetros constitucionais, não podendo exorbitá-los sob pena da responsabilidade prevista do art. 141 da Constituição. A responsabilização é compreendida em seu sentido amplo, incluindo tanto a cível, criminal e administrativa.

Após cessar o estado de sítio e defesa, as medidas aplicadas serão informadas pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, especificando e justificando as providências tomadas, a fim de demonstrar a legalidade dos

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atos praticados pelos agentes e executores da medida, podendo o Congresso ouvir a Comissão especial que as acompanhou e fiscalizou. Segundo CAPEZ (2008), caso o Congresso não aceite as justificativas, estará caracterizado crime de responsabilidade, regulado pela Lei 1.079/50. Trata-se do controle posterior do Congresso Nacional. Este controle possui ainda um caráter público para notificar os interessados para saber o total de atingidos pelas medidas de emergência e ter elementos suficientes para acionar os executores e agentes. Ainda, conforme Motta Filho e Santos (2004) verifica-se que a responsabilidade dos agentes estatais é objetiva (art. 37, § 6º da Constituição Federal de 1988), sem prejuízo das penalidades passíveis de aplicação aos executores e seus agentes.

Ademais, subsiste, o acesso à via judiciária por ser meio de defesa típico do Estado de Direito.

Os abusos e ilegalidades poderão ser reprimidos por intermédio de mandado de segurança e habeas corpus, pois “a excepcionalidade da medida não possibilita a total supressão dos direitos e garantias individuais, e tampouco configura um salvo-conduto aos agentes políticos para total desrespeito à constituição e às leis” (MORAES, 2004: 671).

Não cabe ao judiciário analisar a conveniência ou oportunidade da medida, pois é decisão essencialmente política e não se sujeita à apreciação do Poder Judiciário.

CONCLUSÃO

Em suma, o presente trabalho propõe a analisar o sistema constitucional de crises na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, utilizando obras doutrinárias de teoria da constituição e direito constitucional positivo sob uma perspectiva analítica, realizando comparações entre diversos sistemas de crise.

No primeiro capítulo, verifica-se que o sistema estatal está sujeito a crises, como guerras civis e externas, comoções intestinas, bem como desastres naturais, os quais são cada vez mais iminentes e ameaçam a integridade do Estado. Todavia, o sistema para a superação destas crises deve estar inserido em um ordenamento constitucional rígido que preveja direitos e garantias individuais ainda que mínimos. O presente trabalho utiliza a terminologia sistema constitucional de crise a qual considera sistemas previstos em uma constituição rígida, bem como os direitos e garantias que ficarão restritos nestes estados excepcionais. A Constituição de 1988 prevê dois institutos de crise, quais sejam: estado de sítio e defesa. Dever-se-á evitar expressões como “estado de exceção” que implica em uma situação de “vazio de direito”, a qual não coaduna com o Estado Democrático de Direito.

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No segundo capítulo, observa-se que o direito do estado de defender-se é tão primitivo quanto o direito à legitima defesa para repelir ameaça atual, iminente e injusta. Daí, advém o direito de necessidade estatal o qual deverá ser limitada por balizas como a necessidade da medida, temporalidade e obediência irrestrita aos comandos constitucionais.

Em uma análise histórica das constituições brasileiras, verifica-se que o sistema de crises era na verdade utilizado para reprimir divergências político-partidárias e não para a defesa do Estado, conforme se observa nas Constituições de 1937 e 1967/69. Ademais, possui uma predileção ao estado de sítio, prevendo os estados críticos inseridos na constituição.

Na Carta Magna Brasileira de 1988, no Titulo V, há a previsão da “Defesa do estado e das Instituições Democráticas”. Por este nome, verifica-se a preocupação do constituinte em preservar não apenas o estado, mas o ordenamento democrático e a ordem jurídica. O sistema constitucional de crise brasileiro prevê os institutos do estado de defesa e estado de sítio. Inicialmente, verifica-se que o estado de defesa é utilizado para preservar, em locais determinados, a ordem pública quando ameaçadas por instabilidade ou atingidas por calamidades de grandes proporções naturais. É instituído pelo Presidente da República por meio de decreto, após ouvir, previamente, o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, cujo parecer é, conforme a doutrina majoritária, opinativo. Vinte e quatro horas após a decretação, o ato deverá ser submetido ao Congresso que decidirá, por maioria absoluta, a permanência ou não da media. São previstos os direitos a serem restringidos, bem como os limites constitucionais da medida.

Caso apresente ineficaz o estado de defesa ou ocorram fatos de comoção grave de repercussão nacional (art. 137, I) ou declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira (art. 137, II), a Constituição prevê o estado de sítio, o qual é decretado pelo Presidente, ouvidos os Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, mas a aprovação do Congresso Nacional deverá ser prévia. Na hipótese do art. 137, I, a medida é aprovada por trinta dias, podendo ser prorrogada, de cada vez, pelo mesmo prazo. A hipótese do art. 137, II poderá ser decretada por todo o tempo que perdurar a guerra ou agressão armada estrangeira. A constituição prevê os direitos a serem restringidos na hipótese do art. 137, I. Todavia, é lacunosa com relação ao art. 137, II sem prever os direitos a serem restringidos e, conforme a doutrina majoritária, cabe a adoção de qualquer medida. Todavia, ainda que extrema a crise constitucional, balizas mínimas deverão ser preservadas.

Durante os estados de sítio e defesa, permanecerá controle concomitante do Congresso Nacional que poderá designar Comissão para acompanhar e fiscalizar as medidas que estão sendo adotadas. Os agentes das medidas

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responderão civil e criminalmente pelos abusos e ilegalidades praticados e, findo o estado de crise, o Presidente da República comunicará ao Congresso Nacional as providências adotas de forma completa e minuciosa, indicando os nomes dos atingidos pelos estados e indicando as restrições adotadas. Subsiste o controle pelo Poder Judiciário que abrange apenas os atos ilegais e não os discricionários.

Portanto, conclui-se que na Constituição de 1988 se busca superar as situações de crise para garantir a ordem democrática e não mais permitir o império do arbítrio do Estado, haja vista que este somente pode agir nos estritos termos e limites estabelecidos pela lei. Assim, caso os preceitos constitucionais não sejam observados, a medida é nula e seus executores serão responsabilizados cível e criminalmente. Implica, também, que nem todos os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos serão restringidos ou suspensos, mas somente aqueles em relação aos quais há expressa autorização legal. Valores basilares como o direito à vida, à dignidade da pessoa humana, à honra e ao acesso ao Poder Judiciário deverão ser preservados, pois os sistemas constitucionais de crise não tratam de situação de arbítrio estatal, mas sim de uma legalidade extraordinária, minuciosamente regulamentada pela Constituição Federal. As lacunas legislativas deverão ser interpretadas de forma restritiva, sob uma análise histórica, sistemática e analítica, evitando abuso por parte dos executores da medida. Os limites da necessidade, temporalidade e obediência irrestrita aos comandos constitucionais deverão ser sempre observados garantindo não apenas a superação de crise, mas também a sobrevivência do ordenamento jurídico democrático.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos a Deus, à CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e à Faculdade de Direito “Professor Jacy de Assis” por proporcionar condições suficientes para desenvolver este trabalho.

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UNA APROXIMACIÓN A LA TUTELA INTERNACIONAL DE LOS DERECHOS DE LOS AGRICULTORES

FranCiSCo gómez FonSeCa353

1. CUESTIONES PREVIAS

Como es sabido, con la domesticación de los animales y las plantas se produce un gran giro en el sistema agrario, sustituyéndose la mera recolección y caza por la verdadera explotación agrícola y la relación entre las plantas y los seres humanos se convierte en una relación de estrecha dependencia. Nuestros ancestros, por lo tanto, realizaron una labor de selección de plantas salvajes para su reproducción y de esta forma consiguieron (mediante la clasificación de aquellas variedades que mejor resistían y mejor se adaptaban a las condiciones climáticas, de irrigación, etc.) producciones no solo de mejor calidad sino de mayor cantidad.

A partir de esta selección y de la organización de los grupos sociales en comunidades con fines de supervivencia, el conocimiento y las semillas mejoradas a través de los procesos empíricos fueron compartidos libremente llevando aparejada la expansión simultánea a la de las poblaciones humanas, logrando una propagación regular en todos los continentes y entornos ambientales –en los que se repetían los procesos de selección y clasificación de semillas y animales-.

La expansión del fenómeno agrícola ha conducido a la especialización de los roles en la agricultura, por lo que estos agricultores primarios fueron también los primeros obtentores vegetales, al separar las semillas que reproducían en mayor cantidad los rasgos deseados, guardándolas para las siguientes cosechas.

Por un lado, el intercambio de semillas desarrollado a partir de la actividad agrícola fue dando lugar a la combinación, mediante la plantación mixta de las semillas intercambiadas, de las especies y creando, por ende, nuevas variedades vegetales354.

Por otro, el incremento demográfico produjo un aumento proporcional de la demanda alimentaria, obligando a la sistematización de la agricultura hasta convertirla en un fenómeno a gran escala, produciendo entonces un cambio profundo del modelo agrícola. Este cambio determinó a los gobiernos a destinar

353 DEA. Doctorando en Derecho Internacional Privado (Universitat de València). Profesor Asociado de Derecho Internacional Privado de la Facultat de Dret de la Universitat de València. PEPP Scholar354 DHAR, Bisjawit. Sui Generis Systems for Plant Variety Protection. Options under TRIPS. A discussion paper. Quaker United Nations Office. Geneva, 2002. p. 5.

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enormes recursos para la investigación en el campo de la agricultura, permitiendo la producción de semillas mejoradas para entregar a los agricultores y de esta forma hacer más eficiente el sistema productivo industrializado. Gracias a la intervención gubernamental en el proceso productivo, los agricultores, en la mayoría de los casos, compraban las semillas mejoradas o las recibían de las instituciones encargadas de su mejoramiento, fenómeno que dio como resultado el que los agricultores no tuvieran que volver a seleccionar y conservar sus propias semillas y haciéndolos dependientes, entonces, de los productores de semillas y separando para siempre los roles de los agricultores y de los obtentores vegetales.

Como es usual en los procesos productivos, y en mayor medida en aquellos sectores que resultan de máxima importancia para la supervivencia humana, la industrialización del sector alimentario lleva aparejado el surgimiento de un negocio generador de ganancias millonarias pero que a la vez implica enormes riesgos e inversiones en el desarrollo de nuevas semillas capaces de producir cada vez mayores cantidades de alimentos de mejor calidad. La necesidad de proteger estas grandes inversiones impone diversas restricciones a las actividades llevadas a cabo por los agricultores, prohibiendo, por ejemplo, la práctica de compartir las semillas compradas, o cultivadas por ellos mismos e incluso la prevención del acto de volver a plantar aquellas semillas resultantes de sus cosechas355. Los avances tecnológicos resultantes de estas inversiones, es necesario reconocerlo, han hecho posible la manipulación de rasgos específicos en las semillas, permitiendo por ejemplo, incrementar la producción o la resistencia a enfermedades y plagas356.

2. LA PROTECCIÓN DE LOS DERECHOS DE LOS AGRICULTORES: LA NECESI-DAD DE ADAPTAR LOS ESQUEMAS JURÍDICOS A LA REALIDAD AGRÍCOLA.

Debido a las enormes inversiones y los grandes riesgos a los que se enfrenta el sector, el fenómeno de la comercialización de la agricultura conlleva una necesidad de mayor protección de los derechos y de restricción de la utilización de los productos, generalmente en forma de Derechos de Propiedad Intelectual357 (DPI), tales como patentes, obtenciones vegetales y otros.

A través del tiempo, se han expresado serias dudas en relación a la viabilidad y funcionalidad, a largo plazo, del sistema productivo agrícola industrializado.

355 Un uso agrícola desde tiempos inmemoriales, pero además de suma importancia para la supervivencia y , por supuesto, la seguridad alimentaria. 356 DHAR, Bisjawit. Op.cit. p.6 357 Para efectos del presente trabajo, nos referiremos a los derechos de Propiedad Intelectual tal y como se concibe en el derecho anglosajón, es decir, englobando tanto el concepto de propiedad intelectual como el de propiedad industrial utilizado en los sistemas de derecho continental.

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Buena parte de los expertos son escépticos sobre todo en lo que se refiere a la expansión de este modelo hacia los países en vías de desarrollo. Ahora bien, si tomamos en cuenta que de la viabilidad de este modelo depende la seguridad alimentaria de todos los habitantes del planeta, entonces debemos reconocer que nos encontramos ante una situación que reviste una máxima importancia. Así, podemos destacar las soluciones que las corrientes principales proponen, que son básicamente tres: en primer lugar encontramos aquella vertiente que agrupa a los que proponen la implantación de sistemas sostenibles, erigidos alrededor de la biodiversidad y la ecología. En segundo lugar, podemos señalar aquella corriente a la que pertenecen los que se muestran seguros de la capacidad inventiva de los seres humanos y por tanto consideran que el sistema actual puede seguir evolucionando y adaptándose de forma tal que logre los objetivos planteados en el momento de su creación, aún con las limitaciones que plantea. Por último encontramos aquellos que responden a los intereses económicos de las grandes industrias productoras, y por tanto promueven modelos y visiones agrícolas mucho más intensas e industrializadas como la senda a seguir358.

Sin embargo, no debemos perder de vista que el desarrollo de la mayor parte de la biodiversidad agrícola existente se debe a las actividades creativas de los agricultores tradicionales a través de los años y este aporte debe ser, cuanto menos, reconocido y recompensado359.

Ahora bien, la seguridad alimentaria es un aspecto de especial relevancia al hablar de los DA. Como se ha señalado, de la producción agrícola depende, en gran medida, el sustento mundial, especialmente en aquellas zonas que mayoritariamente cuentan con sistemas agrícolas de subsistencia, y por esto es absolutamente necesario proteger a los agricultores de la amenaza que supone la destrucción del material fitogenético autóctono, y en mayor medida ante el difícil acceso a las semillas cuando éstas han sido modificadas genéticamente y por ende, protegidas por derechos de propiedad intelectual360. Otro de los factores por mejorar es la absoluta falta de reconocimiento del aporte de los agricultores al mejoramiento agrícola, es decir, la creación e implementación de sistemas legales de protección que se ajusten a la realidad y las necesidades del colectivo agrícola y al mismo tiempo logren compensar adecuadamente los aportes del mismo a la sociedad.

358 Sistemas estos que analizaremos con mayor profundidad en líneas posteriores.359 CORREA, Carlos M. Traditional Knowledge and Intellectual Property. Issues and options surrounding the protection of traditional knowledge. A discussion paper. Quaker United Nations Office. Geneva, 2001. p. 7360 DRAHOS, Peter. Developing Countries and International Intellectual Property Standard-Setting. Volume 5, Issue 5. The Journal of World Intellectual Property. Blackwell Publishing Ltd. UK, 2002. p. 15

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3. DE LO GENERAL A LO ESPECIAL: UNA TUTELA ESPECÍFICA EN FUNCIÓN DE CADA SECTOR

Así las cosas, podemos dividir las necesidades específicas de la seguridad alimentaria según su rango de acción, teniendo en cuenta que estás probablemente variarán, por tanto, de acuerdo con las situaciones con las que cada rango deba lidiar. De esta forma, podemos afirmar que encontramos una variedad de situaciones y/o acciones a nivel global, a nivel regional/nacional y en el plano de las pequeñas comunidades y ámbitos domésticos que debemos analizar361.

A. EN EL PLANO GLOBAL

En primer lugar, en el plano global debemos, desarrollar de la mejor forma posible nuestra habilidad para minimizar, administrar y reaccionar al fenómeno del cambio climático y las disrupciones en la producción alimentaria. Una de las maneras consiste en la utilización y la provisión de niveles adecuados de almacenamiento para que a partir de éstos, se pueda lograr la implementación de planes de distribución de alimentos en momentos de emergencia. En segundo lugar, debemos asegurarnos que la utilización de las tecnologías modernas no se convierta en un elemento más de disrupción en el proceso de producción y distribución de los alimentos, evitando que su aplicación constituya, entre otros factores, un riesgo ecológico con consecuencias imposibles de prever362.

B. EN EL PLANO REGIONAL Y NACIONAL

En el plano regional y nacional, debemos asegurar, primero, la capacidad de los países para producir y/o importar los alimentos requeridos por la población, implementando, de nuevo, un modelo de distribución y de aseguramiento de los derechos de los habitantes que permita producir o adquirir los alimentos necesarios (mediante la producción propia, la compra e incluso el trueque, como ya indicamos o mediante la implantación de sistemas especiales que aseguren la disponibilidad de los alimentos).

La creación y consolidación de un aparato funcional de Investigación y Desarrollo (I+D), que incluya a la totalidad de los agricultores del territorio y que también permita lidiar con las variabilidades agro-ecológicas y económicas

361 DRAHOS, Peter. Op. Cit, p. 11362 LESKIEN, Dan; FLITNER, Michael. Intellectual Property Rights and Plant Genetic Resources: Options for a Sui Generis System. Number 6. Issues in Genetic Resources. International Plant Genetic Resources Institute. Rome, 1997. p. 9.

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y el fenómeno del cambio climático es, en definitiva, uno de los pilares necesarios para cumplir con los objetivos trazados363.

Por otro lado, tanto a nivel comunitario como a nivel doméstico debemos poner en marcha todos aquellos programas que nos permitan instruir y desarrollar las habilidades necesarias para la producción de alimentos y la satisfacción de las necesidades alimentarias de forma tal que estas resulten cubiertas apropiadamente, garantizando el sustento alimentario para estos grupos sociales básicos. Con estos programas debemos utilizar tácticas de administración y prevención de riesgos que puedan adaptarse a las costumbres y necesidades de los grupos locales para la disminución de la pobreza y programas que permitan su prevención y eliminación, prestando apoyo a los habitantes de áreas o ambientes marginales, con la intención de incrementar su productividad. En caso de ser necesario, debemos incluso considerar el desplazamiento interno de los habitantes, asegurándonos de lograr su reinserción en el sistema productivo social y consiguiendo su sustento alternativo. Sin embargo, es también de suma importancia la puesta en marcha de proyectos educativos que incidan en la importancia de la igualdad de género y la redistribución de las labores domésticas y no domésticas, ya que se ha demostrado que el papel de la mujer en los sistemas de producción agrícola reviste una enorme importancia y por tanto es necesario ocuparnos de la concienciación social en relación con este tema.364

Por último, y no por ello menos importante, debemos lograr la prevención de conflictos civiles armados, que como regla general afectan de manera especial a las poblaciones agrícolas, entre otras cosas debido a su ubicación geográfica365, y lograr que la alimentación, y en específico el acceso y la producción de alimentos, deje de ser utilizada como un arma más en el conflicto.

4. DEFICIENCIAS DEL SISTEMA DE PROTECCIÓN DE LOS DERECHOS AGRÍCOLAS

Algunos de los problemas que distan a la agricultura de una tutela jurídica eficaz son, entre otros:

Primero, la falta de una definición conceptual completa -y aceptada de forma general- de los DA y el desarrollo de su contenido.

363 HELFER, Laurence R. Derechos de Propiedad Intelectual sobre variedades vegetales. Regímenes Jurídicos Internacionales y opciones políticas para los gobiernos. FAO Estudio Legislativo 85. Organización de las Naciones Unidas para la Agricultura y la Alimentación. Roma, 2005. p. 11364 Ver el informe de FAO sobre el rol de la mujeres en la agricultura moderna: FAO. El estado mundial de la agricultura y la alimentación. Las mujeres en la agricultura. Cerrar la brecha de género en aras del desarrollo.” Organización de las Naciones Unidas para la Agricultura y la Alimentación. Roma, 2011.365 Las zonas agrícolas se encuentran fuera de los centros poblacionales, tienen menos habitantes como regla general y se encuentran aisladas en muchas ocasiones por obstáculos naturales que dificultan su protección, por lo que son más vulnerables en caso de acciones de guerra.

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Segundo, la gran diversidad de regulaciones, normas y reglas de diversa naturaleza y contenido que podrían serles aplicados y que en muchos casos se encuentran en uso y vigentes, lo que produce un solapamiento de regulaciones que genera problemas de aplicación práctica.

Tercero, el auge del fenómeno de la biopiratería, que implica la apropiación, sin que medie compensación o remuneración alguna, de los recursos naturales de un Estado. La biopiratería se ha convertido en uno de los mayores males que afectan a la agricultura tradicional, violando de manera directa los DA. La biopiratería, entonces, hace más necesaria la introducción de alguna forma de protección de los derechos de aquellos que administran o manejan los recursos biológicos de las comunidades dueñas de los conocimientos agrícolas366.

Con todo, y más allá de los problemas que pueda causar la biopiratería, la protección de las nuevas variedades de plantas refleja la tendencia a la conversión de todos aquellos derechos y conocimientos que en algún momento fueron considerados como pertenecientes a todos los individuos y naciones, a elementos pertenecientes al ámbito de la propiedad privada. Es así como nos encontramos ante el hecho de que el fenómeno de la privatización de los recursos, conocimientos y medios de producción ha ido ganando fuerza en las últimas dos décadas. Esta tendencia se refleja en el campo de la agricultura con el desarrollo progresivo de un sistema legal internacional cada vez más tendiente a favorecer la propiedad privada sobre semillas modificadas genéticamente por sobre el acceso público a las mismas y el intercambio de conocimientos relacionado a estas367.

Desde el punto de vista mercantil, la introducción de la protección de las variedades vegetales encuentra justificación en el hecho de que dicha protección promueve la seguridad alimentaria. Por descontado, la ingeniería genética es una gran oportunidad para incrementar la productividad de las cosechas en un mundo que encuentra una grave carestía de tierras de arado y cuya población crece a un ritmo muy acelerado. Partiendo de la misma premisa, la seguridad alimentaria también justifica la protección de los DA sobre sus propias variedades, ya que la protección de los intereses de este grupo es garantía del sustento a largo plazo para la mayoría de la población de los países en vías de desarrollo. Otras razones que pueden esgrimirse para justificar la introducción

366 La introducción de derechos de propiedad intelectual en los procesos de ingeniería genética, si bien no contrarresta completamente la biopiratería, por lo menos visibiliza el problema de la protección de los conocimientos tradicionales.367 LESKIEN, Dan; FLITNER, Michael. Op.cit. p. 9

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de la protección de las variedades vegetales incluye el rol que juegan los agricultores en el desarrollo, conservación y aumento de la biodiversidad agrícola, y por supuesto, en la utilización sostenible de dichos recursos.

DIFERENTES MODOS DE PROTECCIÓN

Así las cosas, los sistemas de cada Estado podrían elegir entre diversas opciones de protección de los DA. Pueden elegir, por ejemplo, proteger únicamente los intereses económicos de los obtentores comerciales mediante la introducción de un sistema de patentes, que se encuentre en pleno cumplimiento de las obligaciones impuestas por el ADPIC. Este sistema de patentes resulta excluyente por su naturaleza y sus efectos, al utilizar la creación de monopolios de explotación sobre bienes que forman parte de los DA368. Puede también otorgar derechos sobre obtenciones vegetales y de esta forma introducir derechos que incluyan algunas excepciones a favor de los diversos obtentores y agricultores, tal y como se recoge en el Convenio Internacional para la Protección de las Obtenciones Vegetales (UPOV). Puede también decidir otorgar derechos únicamente a los obtentores, introduciendo al mismo tiempo un esquema de repartición de beneficios que tenga en cuenta, por ejemplo, las obligaciones derivadas de el Convenio sobre la Biodiversidad (CBD), cuyo principal objetivo es lograr la consecución de un sistema sostenible y respetuoso de la naturaleza. Finalmente, puede ir más allá de las opciones precedentes y proteger a todos los actores relevantes en el campo de la administración de la agricultura, desde los agricultores y las comunidades, hasta los obtentores comerciales y los gobiernos estatales, otorgando una protección que incluya no solamente las obligaciones derivadas del Acuerdo de la OMC sobre los Aspectos de los Derechos de Propiedad Intelectual relacionados con el Comercio (ADPIC), sino también las obligaciones y derechos contenidos en los diversos tratados internacionales existentes sobre el tema369.

La posibilidad de desarrollar un régimen sui-generis de protección de las variedades vegetales de los agricultores dentro del marco de ADPIC370 debe considerarse como una alternativa válida también. Como hemos señalado, la implementación de la protección de los DPI en relación con las nuevas variedades de plantas surge como un aliciente para la investigación y desarrollo de estas variedades. Sin embargo, no todos los sistemas de protección de los DPI son aplicables a todos los sistemas de producción agrícola ni a todos los países,

368 MARTÍNEZ CAÑELLAS, Anselmo. La Protección Dual de la propiedad industrial de las plantas transgénicas: como invenciones y como variedades vegetales. 1/2011, InDret. Barcelona, 2011. p. 6.369 HELFER, Laurence R. Op.cit. p. 15370 Artículo 27 ADPIC.

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puesto que para su implementación debe tomarse en cuenta las necesidades y características de cada uno de los sistemas productivos, así como de los sistemas legales en los que se pretende implementar tales DPI . Para la creación de los sistemas de DPI en relación con los derechos de los agricultores, es necesario tomar en consideración la naturaleza del sistema productivo y las especificidades del mismo. Asimismo, debemos reconocer también que la función alentadora de la investigación se ha desvirtuado con el transcurrir del tiempo, y es cada vez más frecuente que el principal objetivo perseguido por los obtentores resulte ser de naturaleza meramente comercial. En la práctica, comprobamos como cada vez con mayor asiduidad se ignora la contribución de los agricultores tradicionales a la diversidad fitogenética de la que se nutren esas nuevas variedades371.

LOS DERECHOS DE LOS AGRICULTORES

Nos aventuraremos a definir los DA como todos aquellos derechos de reproducción y utilización de material fitogenético, así como del reconocimiento, en forma de compensación monetaria, o de cualquier otro tipo, de la contribución de los agricultores a la creación de nuevas variedades vegetales. Es un concepto que se encuentra íntimamente ligado a todas las aportaciones que en el transcurso del tiempo han llevado a cabo los agricultores mediante la utilización de una gran variedad de técnicas tradicionales propias.

Esta definición no resulta completa sin integrar el concepto de los conocimientos tradicionales, que por su propia naturaleza es un elemento imprescindible para la configuración tanto de la protección legal, como del tratamiento práctico que debe implementarse en relación con los DA. Los conocimientos tradicionales, como veremos con mayor detenimiento en líneas posteriores, son todos aquellos conocimientos que se derivan de prácticas tradicionales y que constituyen un cúmulo de información sumamente importante para el desarrollo de los recursos fitogenéticos (en el caso que nos ocupa) y de las variedades vegetales utilizadas en la agricultura.

Como colofón, y cada vez con mayor frecuencia, la utilización tanto de las nuevas técnicas industriales, como de las nuevas variedades vegetales hace que se desarrolle un mercado sustitutivo de los cultivos tradicionales, que persigue mayores beneficios y se basa en la idea del libre mercado, pero que tiende a no reconocer la importancia de los aportes de los agricultores tradicionales para su desarrollo. Los DA, por tanto, deben tomar en cuenta todos aquellos aspectos relacionados con la agricultura tradicional y su evolución para resultar efectivos372.

371 DHAR, Bisjawit. Op.cit. p. 8. 372 CORREA, Carlos M. Traditional Knowledge and Intellectual Property. Issues and options

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OPCIONES DE PROTECCIÓN DE LAS VARIEDADES VEGETALES: SIS-TEMAS. CUÁLES?

A lo largo del tiempo se han realizado variados intentos por lograr la implementación de un sistema que logre proteger las variedades vegetales, reconociendo y regulando al mismo tiempo la importancia de los aportes de los DA en relación con estas. Por la diversa naturaleza de los elementos que los componen, encontramos también una gran variedad de instrumentos internacionales que, de una forma u otra, se refieren a la regulación de los DA373.

Así, en primer lugar debemos señalar que dentro de los esfuerzos realizados, encontramos tanto el Convenio sobre la Diversidad Biológica (CDB) como el Tratado Internacional sobre los recursos fitogenéticos para la agricultura y la alimentación (TIRFAA).

El CDB se refiere, como veremos más adelante, a aspectos específicos sobre la utilización de los recursos biológicos de los Estados y por esto, es de aplicación en relación con las variedades vegetales y los DA.

La posibilidad del desarrollo de un régimen sui-generis de protección de las variedades vegetales de los agricultores, dentro del marco de ADPIC, es decir, como DPI, es también una alternativa a considerar. La implementación de la protección de los DPI en relación con las nuevas variedades de plantas parte de la idea de los DPI como un aliciente para la investigación y desarrollo de estas variedades. Sin embargo, es claro que no todos los sistemas de protección de los DPI son aplicables a todos los sistemas de producción agrícola ni a todos los países, puesto que para su correcta implementación debe tomarse en cuenta las necesidades y características de cada uno de los sistemas productivos374, así como de los sistemas legales en los que se pretende implementar tales DPI . Para la creación de los sistemas de DPI se debe, entonces, analizar profundamente la naturaleza del sistema productivo y las especificidades del mismo para lograr una regulación adecuada. Es necesario reconocer también que el papel aliciente de la investigación se ha venido desvirtuando con el transcurrir del tiempo, y en la práctica deja de lado las contribuciones de los agricultores a la diversidad fitogenética de la que se nutren las nuevas variedades.375

EL CONVENIO SOBRE LA DIVERSIDAD BIOLÓGICA

La ratificación de este Convenio afirma la soberanía de los países sobre sus recursos biológicos, introduciendo el concepto de “interés común”, que

surrounding the protection of traditional knowledge. A discussion paper. Op.cit. p. 20373 DRAHOS, Peter. Op.cit. p. 13374 LESKIEN, Dan; FLITNER, Michael. Op.cit. p. 7375 DHAR, Bisjawit. Op.cit. p. 24.

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implica que la protección de la biodiversidad de los distintos países es no sólo interés de cada país en particular, sino también de la comunidad internacional en términos generales.

Aspecto a destacar del Convenio es el reconocimiento que realiza de la necesidad de la conservación, al tiempo que reconoce también la legitimidad de la utilización de los recursos biológicos que cubren, por ejemplo, las necesidades básicas de alimentación de los individuos. Asimismo, el convenio regula el acceso a los recursos biológicos y la repartición de los beneficios que de su utilización se desprendan. Pretende el convenio establecer un marco que reconozca y respete los derechos soberanos de los países que aportan los recursos genéticos y biológicos, facilitando, al mismo tiempo, el acceso por parte de los usuarios. El acceso a los recursos, por tanto, debe ser en las “condiciones mutuamente convenidas” y es sujeto al “consentimiento fundamentado previo” del país de origen de los recursos. De la misma forma, el convenio es uno de los pocos tratados que ofrece una declaración sobre la relación del tratamiento y administración de los recursos biológicos y los derechos de propiedad intelectual376.

Establece asimismo, el concepto de diversidad biológica como bien mundial de valor inestimable para la supervivencia de las generaciones presentes y futuras.

En las zonas con mayor potencial productivo del mundo se han sustituido las variedades autóctonas con variedades o cultivos modernos, pasando de sistemas de subsistencia a sistemas de mercado u orientados hacia el mercado.

ACUERDO SOBRE ASPECTOS DE LA PROPIEDAD INTELECTUAL RE-LACIONADOS CON EL COMERCIO

La idea es implementar un sistema de protección de las nuevas variedades vegetales que tome en cuenta tanto los aportes realizados por los agricultores mediante sus técnicas agrícolas tradicionales a lo largo de los años, como la innovación y la inversión realizada por los obtentores comerciales, que mediante la utilización de la biotecnología logran mejorar las especies vegetales y adaptarlas de forma tal que rindan mejores y mayores frutos.

Estos dos conceptos, es decir, los DA y los DOV, no tienen porqué estar reñidos o ser antagónicos, debido a que el convenio ADPIC en su redacción es sumamente flexible y permite la implementación, por los Estados parte, de un sistema de protección sui – generis377. La posibilidad de implementar un sistema sui-generis en los términos del convenio, es que se implica que dicho sistema puede ser desarrollado ajustándose a la realidad y a las necesidades específicas

376 Artículo 16.5 Convenio sobre Diversidad Biológica. 377 DHAR, Bisjawit. Op.cit. p. 14.

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tanto de los sistemas legales, como de los sistemas productivos y económicos de los diversos estados. Esto es sumamente importante, y beneficioso para el caso de los países en vías de desarrollo, que de esta forma logran un sistema que no resulta demasiado oneroso o restrictivo para sus intereses sociales y económicos378.

Desde hace poco más de dos décadas, surge una tendencia muy marcada de privatización de los recursos, el conocimiento y los medios de producción. Durante la llamada “Primera Revolución Verde”, la inyección de fondos públicos para la investigación e innovación en materia vegetal fue sumamente importante, y permitió el crecimiento del sector agrícola, pero también el mejoramiento sustancial de las variedades vegetales y por tanto, de los productos provenientes de este sector. La inversión pública, motivada por el bien común, y encaminada precisamente a lograr la seguridad alimentaria, fue poco a poco reemplazada por la inversión del sector privado, que vio en el sector biotecnológico alimentario, una fuente de abundantes ingresos y por tanto, un nicho de mercado emergente379.

“El concepto de derechos del agricultor es más amplio, de naturaleza distinta a los DPI, y su aplicación plena exigiría contar con otros instrumentos a nivel nacional.”380

- definición precisa de la materia bajo protección, el convenio TRIPS menciona las variedades vegetales, pero no las define, por lo que deja a discreción de los legisladores nacionales la delimitación de este concepto. - Establecimiento de un sistema dual: para las variedades modernas, y bajo un sistema UPOV, se deben incluir los requisitos de novedad, uniformidad, estabilidad, y un carácter diferenciable. Sin embargo, en aras de lograr un efectiva protección de las variedades podría establecerse para las variedades agrícolas tradicionales, algunos requisitos menos estrictos, y limitarse, por ejemplo, a que exista una caracterización adecuada y diferenciable381.

“La inclusión de las variedades campesinas como materia susceptible de protección implicaría apartarse radicalmente de los regímenes de DPI

378 LESKIEN, Dan; FLITNER, Michael. Op.cit. p. 10.379 Como sabemos, los seres humanos podemos prescindir de realizar gastos en diversos rubros, pero no podemos prescindir de los alimentos, lo que hace que esta industria sea más importante aún. Es durante la llamada “segunda revolución verde”, entonces, que las compañías de capital privado empiezan a apostar fuertemente por el sector y a realizar una gran inversión económica en el mismo, esperando obtener réditos mucho mayores y relegando la inversión pública a un segundo plano –aunque no eliminándola completamente-.380 CORREA, Carlos M. Elementos para la protección legal de las variedades vegetales de los agricultores. número 1. Revista La Propiedad Inmaterial. Bogotá, 2000. p. 44381 MARTÍNEZ CAÑELLAS, Anselmo. Op.cit. p. 6.

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existentes. Una de las dificultades más serias para proteger esas variedades, es su naturaleza esencialmente variable”382

La implementación de los DA debe verse como un medio vital para detener la erosión genética y como una ayuda invaluable para la seguridad alimentaria. De la misma forma, puede verse también como parte del eje central de la lucha contra las desigualdades en el mundo, y por tanto, como un elemento importante de la lucha contra la pobreza.

El objeto de los DA es, en primer lugar, las variedades vegetales tradicionales y el conocimiento y las innovaciones relacionadas a estas. Sin embargo, esto no implica que los agricultores deban constituirse en los dueños de estas variedades y conocimiento de manera individual. Entre otras consideraciones, porque un enfoque individualista de los DA resultaría en un sistema excesivamente oneroso, que anularía totalmente los beneficios que resultarían de la protección de los derechos. En cualquier caso, parece que también este sistema individual iría en detrimento de los mismos derechos que pretenden protegerse, es decir, el conocimiento comunitario y el derecho fundamental y práctica ancestral de intercambio de semillas para el cultivo.

El acceso de los agricultores a los recursos tecnológicos en materia agrícola, los incentivos económicos o de otra naturaleza, dirigidos a las comunidades agrícolas, la conservación in situ y la capacitación de los agricultores, son las medidas principales en los que la mayoría de los autores concuerdan que deben conformar el sistema de DA, puesto que es a partir de estas ideas, que puede construirse un sistema efectivo y consciente de protección tanto de los recursos agrícolas y del conocimiento tradicional generado a lo largo de los años, como de los intereses económicos derivados de estos.

No podemos soslayar la importancia del derecho al libre acceso y escogencia de los recursos genéticos agrícolas, que debe, necesariamente, ir de la mano con la libertad de compartir y mejorar dichos recursos y la libre venta de los productos derivados, dentro de cualquier esquema de protección de los DA. Estos elementos son una parte fundamental del sistema de conservación e innovación agrícola. Asimismo, es necesario incluir, en cualquier esquema de protección y reconocimiento de los DA, junto con las variedades tradicionales, las variedades producidas por los obtentores mediante la utilización de medios tecnológicos.

La utilización de los derechos de propiedad intelectual en relación con los DA, debe ser cuidadosamente sopesada y matizada, y es que diversos autores consideran que estos derechos resultan insuficientes para la adecuada protección de los recursos genéticos vegetales y por tanto estiman que un sistema

382 CORREA, Carlos M. Elementos para la protección legal de las variedades vegetales de los agricultores Op.cit. p. 44.

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de protección sui generis - ajustado a las diversas necesidades y componentes de los sectores agrícolas - de los DA, es la opción a considerar por su extrema flexibilidad y adaptabilidad383.

El reconocimiento de la contribución de los agricultores al fondo genético mundial es visto, por una parte de la doctrina, como un medio compensatorio por el uso de los recursos y del conocimiento generados de manera tradicional. Sin embargo, en el momento de la repartición de los beneficios y de la efectiva implementación de un sistema de DA, debe tenerse en cuenta cuáles pueden ser los aspectos negativos generados a partir de la regulación y protección mediante uno u otro sistema.

EL TRATADO INTERNACIONAL SOBRE LOS RECURSOS FITOGENÉTI-COS PARA LA AGRICULTURA Y LA ALIMENTACIÓN (TIRFAA)

El Tratado en primer lugar y primordialmente reconoce la contribución enorme que los agricultores y sus comunidades han aportado y siguen aportando a la conservación y al desarrollo de los recursos fitogenéticos. Esta contribución es, como señalamos en líneas anteriores, la base de los Derechos de los agricultores, incluyendo la protección de los llamados conocimientos tradicionales, y, aspecto sumamente importante, el derecho de los agricultores y grupos indígenas y comunitarios a participar equitativamente en la distribución de los beneficios y en la adopción de decisiones nacionales relativas a los recursos fitogenéticos. Establece, por tanto, la responsabilidad de los gobiernos de aplicar estos derechos384.

Sus principales objetivos son la conservación y utilización sostenible de los recursos fitogenéticos para la alimentación y la agricultura, y la distribución justa y equitativa de los beneficios derivados de su utilización en armonía con el Convenio sobre la Diversidad Biológica, para una agricultura sostenible y la seguridad alimentaria385.

El Tratado permite los países establecer un sistema multilateral “eficaz, efectivo y transparente386” para simplificar el acceso a los recursos fitogenéticos para la alimentación y la agricultura, estableciendo al mismo tiempo un sistema justo y equitativo de repartición de los beneficios generados por dichos recursos. De esta forma, mediante un «Acuerdo de transferencia de material» los países

383 DRAHOS, Peter. Op.cit. p. 10.384 CORREA, Carlos M. Traditional Knowledge and Intellectual Property. Issues and options surrounding the protection of traditional knowledge. A discussion paper. Quaker United Nations Office. Geneva, 2001. p. 385 www.planttreaty.org/ Última revisión, 27 de abril de 2013. 386 Ibídem.

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que hayan ratificado el Tratado, establecerán todas aquellas condiciones de acceso y de distribución de los beneficios.

LA INTERACCIÓN ENTRE LOS DIVERSOS SISTEMAS DE PROTECCIÓN.

El conjunto de obligaciones que surge de este acervo de disposiciones y tratados, necesariamente debe tomarse en cuenta a la hora de establecer un sistema sui generis como el permitido por ADPIC:

- Los Estados tienen los derechos soberanos sobre sus propios recursos naturales, incluyendo los recursos genéticos. - Los DA que surgen de la contribución pasada, presente y futura de los agricultores en la conservación, mejoramiento y divulgación de los recursos vegetales genéticos deben reconocerse para de esta forma reconocer y permitir a los agricultores, sus comunidades y países en todas las regiones del mundo, la participación total de los beneficios derivados en el presente y en el futuro, de la utilización mejorada de los recursos genéticos vegetales, mediante la obtención de variedades vegetales u otros métodos científicos.- La diversidad biológica (biodiversidad), incluyendo la diversidad genética, debe ser conservada, mejorada y utilizada de forma sostenible. Las patentes y otros derechos de propiedad intelectual, deben constituir un apoyo a estos objetivos y no constituir una barrera para su consecución. - El acceso a los recursos genéticos debe sujetarse al “Consentimiento Fundamentado Previo” . Cuando el acceso sea concedido, debe serlo en las condiciones mutuamente pactadas. - Los beneficios derivados de la utilización comercial o de cualquier tipo de los recursos genéticos deberán ser repartidos de forma justa y equitativa, de acuerdo con las condiciones acordadas, bilateral o multilateralmente. - Los resultados de la investigación y el desarrollo derivados de la utilización de recursos genéticos, así como la tecnología que se utilizada con estos recursos, deberá ser compartida de forma justa y equitativa de acuerdo con los términos pactados. La transferencia de las tecnologías relevantes para la conservación de la biodiversidad y el acceso al uso sostenible de sus componentes, y a las tecnologías que utilizan los recursos genéticos deben ser provistas y/o facilitadas bajo los términos más justos y favorables387.

387 CORREA, Carlos M. Traditional Knowledge and Intellectual Property. Issues and options surrounding the protection of traditional knowledge. A discussion paper. Op.cit. p. 14

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- Los conocimientos indígenas y comunitarios, las innovación y las prácticas relacionadas con las plantas y los recursos genéticos vegetales, deben ser protegidos y promovidos. Deben tomarse medidas especiales para asegurar este paso, incluyendo mecanismos que garanticen el consentimiento libre e informado388.

De la misma forma, podemos analizar algunos principios rectores reguladores de los recursos genéticos y que por supuesto, cumplen también una función informadora en el tema.

PRINCIPIO DE SOBERANÍA NACIONAL SOBRE LOS RECURSOS GENÉTICOS

Es el principio universalmente aceptado que establece que los recursos genéticos vegetales son una herencia de la humanidad y en consecuencia, deben ser accesibles sin restricción alguna.

Algunas dificultades que pueden surgir en la aplicación del principio de soberanía, dificultades que no constituyen limitaciones al derecho derivado, pero que si pueden hacerlo menos significativo:

Exclusividad: La determinación de la accesibilidad a los recursos genéticos depende, en buena parte, de la posibilidad de establecer la exclusividad de dichos recursos.

En la práctica, sucede con muchísima frecuencia, que los recursos genéticos son compartidos por dos o más países. Mientras que es argumentable el hecho de que dos o más países tengan derechos soberanos sobre los recursos, es claro que estos derechos no se extienden a los recursos de cada cual389.

CONTROL DEL ACCESO A LOS RECURSOS GENÉTICOS:

Una dificultad añadida en el ejercicio del principio de soberanía y los derechos derivados, es la gran dificultad que puede existir a la hora de controlar efectivamente el acceso a los recursos genéticos. Es a partir de la firma de la CDB que empieza una ola de protección del acceso a los recursos, cada vez son más los países que implementan legislaciones acordes con este control, aunque aún antes de la entrada en vigor de la CDB, ya varios países contaban con algún tipo de regulación reconociendo el principio de soberanía sobre esta clase de recursos. Sin embargo, tal y como es el caso con las leyes en general, éstas serán eficaces en la medida en que pueda controlarse su cumplimiento.

388 HELFER, Laurence R. Op.cit. p. 12389 CORREA, Carlos M. Traditional Knowledge and Intellectual Property. Issues and options surrounding the protection of traditional knowledge. A discussion paper. Op.cit. p. 15

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En el caso específico del control de cumplimiento de la legislación de acceso, existe una dificultad añadida, y es que las semillas son pequeñas y por tanto fácilmente transportables y fáciles de encubrir, por lo que el control físico se hace casi imposible. Un pequeño número de semillas que logren evadir los controles y salgan del país hace que el país pierda el control efectivo de dicho recurso. Es necesario aclarar que el hecho de perder el control sobre el recurso no significa que el país pierda su derecho soberano, si significa, sin embargo, que la herramienta para el ejercicio de este derecho, cual es el control exclusivo sobre el recurso, ya no se encuentra al alcance del país.

EL ACCESO A LOS RECURSOS FITOGENÉTICOS CON BASE EN LOS TÉRMINOS ACORDADOS DE FORMA MUTUA

El derecho soberano de los Estados sobre sus recursos implica tanto la posibilidad de explotación de los mismos, como la posibilidad de negar el acceso a ellos.

Como ejemplo, el TIRFAA en ningún momento admite la posibilidad del libre acceso a los recursos genéticos de los países, en su lugar señala las condiciones bajo las que los Estados deben permitir el acceso a muestras de sus recursos y permitir su exportación, cuando estos recursos hayan sido solicitados con fines de investigación científica, obtención de nuevas variedades vegetales o conservación de recursos fitogenéticos y excluye la posibilidad de acceder a los recursos con fines comerciales, cuestión que si bien es certera formalmente, en la práctica resulta casi imposible de separar entre los motivos comerciales del acceso y los propósitos de acceso para la reproducción de las semillas390.

En cualquier caso, en seno del TIRFAA, el acceso a las muestras debe ser gratuito, pero siempre en los términos del intercambio mutuo o de las condiciones pactadas voluntariamente. En lugar de afirmar que el tratado propugna entonces el acceso gratuito a los recursos, podemos sostener que el tratado autoriza tres formas de acceder a los recursos fitogenéticos, a saber: de forma gratuita, basada en el intercambio de los recursos, o finalmente, la disposición de los recursos en los términos acordados por las partes. Estas tres modalidades de acceso se encuentran también en la CDB, sin embargo, únicamente se menciona explícitamente la última (art. 15.4), reforzándola con el “Consentimiento Informado Previo”. El CIP es, en definitiva, un instrumento fiable y muy apropiado para asegurarse el cumplimiento de las obligaciones derivadas de los Tratados y Convenciones internacionales, sin embargo, no es el único instrumento que puede utilizarse con este propósito391.

390 DRAHOS, Peter. Op.cit. p.9. 391 CORREA, Carlos M. Alcances jurídicos de las exigencias de divulgación de origen en el sistema de patentes y derechos de obtentor. Año I, Número 2. Iniciativa para la prevención de la biopiratería, documentos de investigación. Sociedad Peruana de Derecho Ambiental. Lima, 2005.

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TÉRMINOS MUTUAMENTE ACORDADOS

Mientras que el TIRFAA condiciona el acceso a los recursos a las negociaciones entre los proveedores y los gobiernos y las instituciones encargadas del manejo del campo de los recursos fitogenéticos, la CDB únicamente establece la obligación de negociar entre aquellas partes que permiten el acceso y otras instituciones. Sin embargo, al establecer la legislación necesaria, las partes hacen que sus condiciones de acceso sean vinculantes para aquellos obtentores o agricultores (de carácter privado) de recursos.

Aún cuando el convenio es harto flexible y permite una considerable discreción a los contratantes, los términos en que se consiente deben, necesariamente, ceñirse a las disposiciones de la CDB392.

EL CONSENTIMIENTO INFORMADO PREVIO

Es un principio que está conectado de forma inextricable con el requerimiento del consentimiento mutuo y su otorgamiento dependerá de los términos establecidos para el acceso y la utilización de los recursos393. Se basa precisamente en el conocimiento y negociación de los términos y condiciones de los acuerdos de acceso a los recursos fitogenéticos y constituye un elemento de control de dicho acceso, permitiendo, entre otras cosas, que los Estados que comparten sus recursos puedan mantener, hasta cierto punto, un grado de dominio sobre la utilización de dichos recursos.

APROBACIÓN E INVOLUCRAMIENTO DE LOS POSEEDORES DEL CONOCIMIENTO

El artículo 8 (j) de la CDB establece que las partes contratantes deben, en la medida de lo posible, y siempre que sea apropiado, promover una amplia aplicación de los conocimientos, innovaciones y prácticas tradicionales, e instar la equitativa distribución de los beneficios derivados de la utilización de dichos conocimiento, innovaciones y prácticas, contando con “la aprobación y la participación de quienes posean estos conocimientos”. De esta forma, la CDB condiciona el acceso a los recursos fitogenéticos tanto a los acuerdos alcanzados por las partes como a la inclusión y aprobación de la repartición de los beneficios por parte de los poseedores del conocimiento tradicional. Sin embargo, es necesario apuntar que este último requisito se encuentra limitado a lo establecido por la legislación nacional de cada Estado, lo que implica que la legislación interna tomará precedencia sobre el tratado en este tema en particular.

392 DRAHOS, Peter. Op.cit. p. 12393 HELFER, Laurence R.Op.cit. p.14.

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El convenio omite señalar cómo esta clase de “CIP” de naturaleza nacional debe compaginarse con el CIP de carácter internacional mencionado en líneas anteriores. Podemos señalar que una forma de relacionar ambos procedimientos sería la de supeditar el proceso del CIP internacional a la consecución del CIP nacional por parte de las comunidades involucradas394.

DISTRIBUCIÓN DE BENEFICIOS

La utilización sostenible, la conservación de la biodiversidad y la equitativa distribución de beneficios derivados del aprovechamiento de los recursos genéticos son los objetivos que persigue la CDB al reconocer el derecho de los Estados de determinar y regular el acceso a sus recursos fitogenéticos y al establecer al mismo tiempo la necesidad del CIP y de las condiciones y términos mutuamente acordados. El principio de distribución de beneficios es un principio de común utilización en el derecho internacional. Más allá de la diversidad de lenguaje jurídico utilizado en los diversos instrumentos internacionales, o de los actores involucrados en dichos instrumentos, el principio de que todos aquellos que por años han sido responsables de la protección y han proveído recursos fitogenéticos deben participar de los beneficios surgidos de la utilización de estos recursos y del conocimiento que los mismos llevan aparejados.

El razonamiento que fundamenta la idea de la distribución de los beneficios es que aquellos que conservan y desarrollan recursos genéticos mediante su utilización sostenible deben ser compensados por sus esfuerzos, a la vez que deben obtener beneficios que les incentiven a continuar con esta labor395.

De acuerdo con la CDB (15 (7)), las partes contratantes deben implementar todas aquellas medidas legislativas, administrativas o de políticas públicas que tengan como fin último la distribución justa y equitativa de los resultados de la investigación, por lo que el desarrollo y los beneficios surgidos a partir de la utilización comercial o de cualquier otra naturaleza que se le de a los recursos genéticos deben compartirse con los proveedores de estos recursos.

Mas aún, las partes contratantes deben impulsar, a nivel nacional también, el equitativo reparto de los beneficios surgidos de la utilización del conocimiento, innovación y prácticas tradicionales. Para lograr este propósito, ciertamente no es suficiente asegurar que los beneficios serán de las partes proveedoras de los recursos. La compensación debe necesariamente dirigirse también a todas aquellas personas que conservan la biodiversidad.

Los beneficios pueden repartirse en efectivo o mediante la utilización otros medios, tales como beneficios monetarios, regalías o el acceso a los productos biotecnológicos derivados de la utilización de los recursos genéticos.

394 DRAHOS, Peter. Op.cit. p. 15.395 CORREA, Carlos M. Traditional Knowledge and Intellectual Property. Issues and options surrounding the protection of traditional knowledge. A discussion paper.Op.cit. p. 17

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El convenio deja a discreción de la partes las cuestiones de forma de los convenios multilaterales o bilaterales, generales o individuales, de repartición de beneficios. Sin embargo, estos convenios deben necesariamente cumplir con los objetivos generales de el convenio. En particular, cualquier convenio de repartición de beneficios debe asegurar la participación de aquellos poseedores de los recursos y del conocimiento relacionado a ellos.

Tanto la CDB como el Código Internacional de Conducta para la Recolección y Transferencia de Germoplasma Vegetal (CICRTG), de la FAO sugieren como una medida importante, la construcción de una plataforma de investigación científica en todos aquellos países que son proveedores de los recursos genéticos. El CICRTG propone, como forma de compensación de los beneficios derivados del uso del germoplasma, diversas medidas de capacitación, apoyo para la investigación, apoyo para programas de evaluación y mejoramiento de las especies locales, así como el suministro de la información técnica y científica obtenida de dicho germoplasma. El convenio requiere que los contratantes se involucren en el desarrollo y la investigación científica basada en los recursos genéticos provistos por las demás partes contratantes, con la completa participación de estas, siempre que sea posible dentro de su territorio.

CONCLUSIONES

Como se desprende de los conceptos, soluciones y propuestas expuestos en líneas anteriores, se ha realizado a nivel mundial un enorme esfuerzo para reconocer y proteger el aporte de los agricultores a la alimentación, el comercio y el desarrollo. Es precisamente debido a la importancia que reviste este aporte que resulta necesaria la implementación de sistemas que protejan eficaz y adecuadamente a las comunidades y grupos sociales que se dedican a las actividades agrícolas.

El anterior trabajo no pretende, ni mucho menos, detallar todas y cada una de las opciones y sistemas de protección de los recursos fitogenéticos, las variedades vegetales y/o los conocimientos tradicionales. La intención es ofrecer un vistazo al panorama mundial en la materia, pero con un enfoque particular sobre los derechos de los agricultores.

La particular naturaleza de estos derechos y recursos hace que su protección resulte complicada, por el embrollado tejido de relaciones que encontramos entre los diversos tratados y convenios multilaterales existentes. Estos tratados y convenios a su vez, con contadas excepciones, persiguen muy diversos resultados, por lo que resultan, en la mayoría de los casos incompatibles entre ellos. Si a este panorama le agregamos las particulares legislaciones nacionales de los países firmantes de los convenios, encontramos una enmarañada y

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confusa realidad legal que no aporta si no inseguridad jurídica. El tema reviste especial importancia para aquellas economías agrícolas

de subsistencia, tan abundantes en el continente americano, pero también para aquellos países que cuentan con una enorme diversidad biológica y un acervo relevante de conocimientos tradicionales, fruto de una importante población indígena.

En particular, debemos resaltar entonces la necesidad de los países de contar e implementar en sus legislaciones, ya sea mediante la adopción de leyes nacionales y/o la firma de los diversos convenios y tratados, un sistema que permita la efectiva protección de sus propios recursos naturales. Así, creemos que es importante que dicha legislación contenga al menos dos de los principios explicados supra: El principio del consentimiento informado previo y el principio de la equitativa distribución de los beneficios, puesto que son estos los que reconocen más eficazmente los derechos de los agricultores. Un sistema adaptado a las necesidades particulares de cada nación debe resultar de la implementación de estos principios.

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ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, ATIVISMO JUDICIAL E DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: CONSIDERAÇÕES GERAIS

gioVana gadia396

1. INTRODUÇÃO

A Constituição Federal brasileira de 1988 trouxe em seu bojo diversas modificações no tratamento do direito à saúde no país. O acesso universal, amplo e irrestrito, a criação do SUS – Sistema Único de Saúde, e, de modo extremamente relevante, o tratamento dado ao tema, que a partir de então foi abordado como direito fundamental e de aplicabilidade imediata, foram algumas das diversas inovações trazidas pelo texto constitucional.

Inobstante a obrigação da Administração Pública em fazer cumprir as determinações constitucionais, especialmente no que toca às garantias de acesso à saúde no Brasil, tem se tornado bastante comum nos últimos anos que o indivíduo que tenha se sentido prejudicado pela negativa de seu direito de acesso à saúde questione a recusa através de interposição de ação perante o Poder Judiciário. Daí a relevância do assunto, visto que tal situação serve como inspiração para as mais apaixonadas discussões que promovem o embate entre aqueles que defendem a legitimidade do Poder Judiciário em atuar na garantia desses direitos e seus opositores, que alertam que tal prática de intervenção na autonomia do Poder Executivo pode colocar em jogo elementos que são importantes pilares do Estado.

O confronto de importância entre o direito individualizado e aquele planejado para atender à coletividade é, na grande maioria dos casos, o mote que serve como palco das discussões mais acaloradas. Isto posto, como se efetivar e concretizar a garantia de acesso ao direito fundamental à saúde por parte da Administração Pública, se esta vê atrelada em sua essência a um orçamento rígido, limitado e com suas despesas previamente determinadas?

No trabalho que ora se propõe a desenvolver, busca-se analisar tal questão sopesando ambos os lados (Administração e indivíduo), com o intuito de, ao final, deixar exposto o panorama do cenário brasileiro acerca da responsabilidade da Administração Pública em prover a todos o acesso ao direito à saúde, bem como dos caminhos alternativos através da intervenção do Poder Judiciário que os que se sentirem lesados em seu direito poderão utilizar. Para tanto, utilizar-se-á o método dedutivo, partindo-se de considerações preliminares acerca da Administração Pública e sua função típica e da responsabilidade de garantir

396 Mestranda em Direito UFU.

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o acesso à saúde que lhe é atribuída na busca de atender ao interesse público, para então se chegar à investigação específica e aprofundada sobre a dicotomia garantia fundamental/limitação orçamentária; e também se utilizará, ainda que perfunctoriamente, o método dialético, expondo prerrogativas da Administração Pública que acabarão por se tornarem limitações quando do exercício da garantia ao direito à saúde do cidadão.

Buscar-se-á também explicitar o confronto entre os institutos do mínimo necessário à manutenção da dignidade humana e a reserva do possível devem ser tratadas sob a ótica da proporcionalidade, de forma a que se alcance a melhor e mais justa forma de ação, a fim de que a Administração Pública cumpra seu encargo de fazer chegar à população o alcance dos direitos constitucionalmente garantidos, sem, com isso, comprometer seriamente as políticas públicas previamente delimitadas e aprovadas em seu orçamento.

2. CONSIDERAÇÕES PROPEDÊUTICAS SOBRE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

No direito público, o termo administração caracteriza a atuação que realiza aquele que não é senhor absoluto, quem detém competência para gerir e, via de conseqüência, o ônus de prestar contas da gestão realizada. Nesse sentido, pode-se dizer que Administração Pública seria a estrutura responsável por gerir o Estado e prestar contas de tal gestão, pelo que tal figura pode ser interpretada em sentido objetivo e subjetivo.

Objetivamente, escrito com letras minúsculas, administração pública configura o desempenho das atividades administrativas. Neste tipo de abordagem não se atribui importância aos sujeitos, mas à atividade realizada para atender às necessidades da sociedade, nos termos exigidos pelo regimento jurídico administrativo e viabilizado pela estrutura disponível. Pode-se afirmar, portanto, que a administração pública é o exercício da função administrativa, a atuação do Estado no objetivo de cumprir as determinações exaradas pelas normas de direito público, submetidas ao controle de juridicidade.

Di Pietro (2005, p. 59-61) bem assinala que, sob um viés objetivo, a administração pública “é uma atividade concreta, porquanto coloca em execução a vontade do Estado contida na lei. Sua finalidade é satisfazer direta e indiretamente os fins do Estado, sob o regime de direito público”.

Subjetivamente, a expressão traz em seu conteúdo a definição de correspondência ao conjunto de órgãos e entidades administrativas que praticam a função administrativa. Grafada em letras maiúsculas, a Administração Pública designaria então os órgãos das pessoas federativas e as entidades administrativas a elas relacionadas que, atuando de ofício, satisfazem necessidades sociais a partir do cumprimento das normas legais. A terminologia se refere a todas as

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pessoas que exercem a atividade administrativa, nomeando todos os órgãos das pessoas públicas e privadas a quem cabe exercer função administrativa, ainda que pertencentes ao Poder Judiciário ou Legislativo.

A Administração Pública não deve ser confundida com qualquer desses poderes estruturais. Embora incumba ao Poder Executivo a função de administrador por excelência, Carvalho Filho (2011, p. 11) salienta que nos Poderes Judiciário e Legislativo há numerosas tarefas que constituem atividade administrativa, citando o exemplo da organização interna dos serviços e de seus servidores para concluir que todos os órgãos e agentes destes Poderes que estiverem exercendo função administrativa serão integrantes da Administração Pública. Nesse sentido, feliz fora o legislador constituinte ao traçar diretrizes constitucionais mais especificamente relacionadas à Administração Pública na Seção I, Capítulo 7, intitulado “Da Administração Pública”, artigos 37 a 43 da Constituição Federal de 1988.

A lição de Meirelles (2011, p. 66) merece destaque pela transparência com que brinda a definição:

[...] a Administração Pública é o conjunto de órgãos instituídos para consecução dos objetivos do Governo. [...] Numa visão global, a Administração é, pois, todo o aparelhamento do Estado preordenado à realização de serviços, visando à satisfação das necessidades coletivas. Os atos que pratica são denominados atos administrativos, atividades neutras vinculadas à lei ou à norma técnica.

O Estado realiza as atividades administrativas objetivando beneficiar a coletividade: ainda quando praticada visando a atender a um interesse estatal imediato, seu fim deverá ser sempre voltado a garantir a satisfação do interesse público. Se esse objetivo não for comprovado, comprometer-se-á a atuação da Administração Pública por desvio de finalidade.

Conforme preleciona Carvalho Filho (2011, p. 29),

[...] não é o indivíduo em si o destinatário da atividade administrativa, mas o grupo social num todo. Saindo da era do individualismo exacerbado, o Estado passou a caracterizar-se como Welfare State (Estado/bem-estar), dedicado a atender ao interesse público. Logicamente, as relações sociais vão ensejar, em determinados momentos, um conflito entre o interesse público e o interesse privado, mas, ocorrendo esse conflito, há de prevalecer o interesse público.

Com efeito, o interesse público é sempre cortejado por quem detém poder. Por conseqüência, situações há em que, desvirtuado, o interesse público

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acaba por acobertar e justificar intenções menos nobres disfarçadas de “razões de Estado”, artifício usado como escudo protetor contra críticas e represálias, para fazer-se da máquina administrativa joguete para atender a interesses particulares e ter imunidade até mesmo à atuação e controle do Poder Judiciário.

Justen Filho (2005, p. 39-41) bem obtempera a rspeito:

O interesse público não se confunde com o interesse do Estado, com o interesse do aparato administrativo ou do agente público. É imperioso tomar consciência de que um interesse é reconhecido como público porque é indisponível, porque não pode ser colocado em risco, porque suas características exigem sua promoção de modo imperioso.

Insta frisar ser função típica da Administração Pública velar pelo interesse público, interpretá-lo e aplicá-lo aos casos concretos que lhe são apresentados. Ato contínuo, se a Administração Pública não puder se valer para o exercício de suas funções e das prerrogativas que lhe são atribuídas - como a imperatividade e a presunção de legitimidade dos atos que pratica por exemplo -, seria o reinado do caos e total comprometimento da segurança jurídica.

Dessume-se disso que o princípio da supremacia do interesse público é um dos corolários que norteiam o Direito Administrativo. Sua observância garante que a prevalência dos interesses da sociedade perante os interesses particulares, evitando a desagregação que haveria se cada indivíduo ou setor da coletividade buscasse a concretização de seus interesses particulares em detrimento da sociedade em si considerada.

A realização desses interesses impõe ao agente público uma atuação concreta na busca de sua satisfação. À concretização de um fim que equivalha aos valores e necessidades sociais convencionou-se chamar de interesse público primário, o qual, segundo Barroso (2005, p. 56), é a razão de ser do Estado e se resume aos fins que são de sua obrigação promover, como justiça, segurança e o bem-estar social. Prossegue o mencionado autor conceituando interesse público secundário sendo aquele relacionado à pessoa jurídica de direito público que figure como parte de uma relação jurídica. É o interesse do erário, voltado para o objetivo de maximizar arrecadação e minimizar despesas (BARROSO, 2005, p.56).

Em síntese, o interesse público é a soma dos interesses individuais que se coincidem em torno de um bem a que se atribui valor ou utilidade de fundo moral ou material. Passa a denotar caráter público quando dele compartilham um determinado numerário de pessoas que fazem parte de uma comunidade específica, tornando-se interesse de todo o grupo ou, ao menos, um querer predominante da comunidade.

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Em uma sociedade democrática, o interesse público e o particular são igualmente respeitados. Quando o interesse individual é preterido em razão da importância e natural predominância do interesse público, deverá ser compensado mediante a conversão em um tipo de valor, como acontece a título de exemplo nos processos de expropriação de propriedade particular para atender interesse público. O ordenamento jurídico-constitucional brasileiro é composto por vários dispositivos que ratificam essa orientação.

Entrementes, frise-se que tal supremacia não decorre de um permanente antagonismo entre o interesse individual e aquele dito público. Como argumenta Escola (1989, p. 243):

O interesse público, de tal maneira, não é de entidade superior ao interesse privado, nem existe contraposição entre ambos: o interesse público só é prevalecente, com respeito ao interesse privado, só tem prioridade ou predominância, por ser um interesse majoritário, que se confunde com o querer valorativo atribuído à comunidade. Esta prevalência se funda, também, no fato de que o interesse público, concebido dessa forma, e como o caracteriza Gordillo, haverá de resultar em maiores direitos e benefícios para todos e cada um dos indivíduos da comunidade, que, por isso, justamente, aceitam voluntariamente aquela predominância que lhes é vantajosa. Esta prioridade e essa aceitação voluntária não se produzem quando, em um suposto interesse público – que já sabemos que, em realidade, não é tal – não é possível reconhecer e distinguir uma maioria de interesses individuais, como ocorre quando se apresenta somente como um interesse do Estado, da administração, do partido governante, do hierarca, etc. Por isso tem-se sustentado, com razão, que o interesse público no qual cada indivíduo não possa encontrar ou identificar sua porção concreta de interesse individual é uma simples falácia – Gordillo.

A grande questão que se impõe é a necessidade de se encarar a supremacia do interesse público como um instituto que trabalha de mãos dadas com a garantia da eficácia dos direitos fundamentais. Freitas (2004, p. 34-35) preleciona que “o princípio do interesse público exige a simultânea subordinação das ações administrativas à dignidade da pessoa humana e o fiel respeito aos direitos fundamentais”. Não é outro o entendimento de Sarmento (2005, p. 82-83), quando defende a necessidade de que a doutrina reconheça a dimensão objetiva dos direitos fundamentais:

Como se sabe, a idéia da dimensão objetiva prende-se à visão de que os direitos fundamentais cristalizam os valores mais essenciais de uma

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comunidade política, que devem se irradiar por todo o seu ordenamento, e atuar não só como limites, mas também como impulso e diretriz para a atuação dos Poderes Públicos. Sob esta ótica, tem-se que os direitos fundamentais protegem os bens jurídicos mais valiosos, e o dever do Estado não é só o de abster-se de ofendê-los, mas também o de promovê-los e salvaguardá-los das ameaças e ofensas provenientes de terceiros. E para um Estado que tem como tarefa mais fundamental, por imperativo constitucional a proteção e a promoção dos direitos fundamentais dos seus cidadãos, a garantia destes direitos torna-se também um autêntico interesse público.

O problema que persiste é que nos tempos atuais a sociedade evoluiu para um complexo sistema de relações, e dele decorrem uma variada gama de interesses, todos com semelhante carga de relevância: públicos, primários e passíveis de proteção pela Administração Pública, mas que se diferenciam pelas amplitudes que assumem.

Diante desse cenário, percebe-se a necessidade de ponderação e confrontamento entre tais interesses, na busca “do melhor interesse público, aquela solução ótima que realize ao máximo cada um dos interesses em jogo”. A noção do “melhor interesse público”, segundo Sarmento, somente pode ser alcançada partindo-se de um procedimento racional que abarca a disciplina constitucional de interesses individuais e coletivos específicos, bem como de um juízo de ponderação que tornará viável a concretização de todos eles na maior amplitude possível. O instrumento a ser utilizado na produção desse raciocínio ponderativo é o princípio da proporcionalidade (SARMENTO, 2005, p. 151-167), onde se sopesarão os interesses confrontantes e, diante da situação fática apresentada, buscar a solução ideal que garanta a maior realização possível dos anseios almejados.

A atividade de ponderação torna-se menos complexa quando o conflito envolve direitos fundamentais, que têm prevalência em princípio garantida pela Constituição brasileira. Não obstante, a ponderação continua extremamente necessária para que se possa garantir a efetiva realização do interesse público em sua real dimensão.

3. A SAÚDE ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL

Desde sua abordagem pelos primeiros textos constitucionais, os direitos fundamentais sofreram várias modificações, evoluindo no que toca a seu conteúdo, eficácia e concretização. No intuito de traçar a linha de desenvolvimento desses direitos diante do contexto histórico, convencionou-

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se, como anteriormente explicitado, a utilização das expressões “geração” ou “dimensão” de direitos. Essa classificação, nos dizeres de Sarlet (2010, p. 46)

[...] não aponta, tão somente, o caráter cumulativo do processo evolutivo e para a natureza complementar de todos os direitos fundamentais, mas afirma, para além disso, sua unidade e indivisibilidade no contexto do direito constitucional interno, e, de modo especial, na esfera do moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Jellinek, em sua obra intitulada “Sistema dos Direitos Públicos”, formulou concepção original de acordo com a qual o indivíduo vinculado ao Estado encontra sua posição a este cunhada por quatro espécies de situações jurídicas – status, seja com sujeito de deveres, seja como titular de direitos. A partir desta concepção, Alexy desenvolve sua teoria classificatória dos direitos fundamentais, segundo a função por eles exercida no ordenamento jurídico e a estrutura deôntica de suas normas, são estes divididos em três grandes grupos – os direitos a algo, as liberdades e as competências (OLSEN, 2010, p. 2010).

Em que pese a importância de compreender cada aspecto da classificação ora apresentada, o foco de atenção e direcionamento do estudo volta-se para os direitos fundamentais em sentido estrito, também denominados de direitos fundamentais sociais. Os direitos fundamentais sociais objetivam assegurar, mediante a compensação das desigualdades sociais, o exercício de uma liberdade e igualdade real/efetiva, que pressupõem o comportamento ativo do Estado. Neste contexto, Sarlet ( 2010, p. 284) preleciona que

[...] os direitos sociais de natureza positiva (prestacional) pressupõem seja criada ou colocada à disposição a prestação que constitui seu objetivo, já que objetivam a realização da igualdade material, no sentido de garantirem a participação do povo na distribuição pública de bens materiais e imateriais.

O direito à saúde está inserido dentre aqueles denominados “de segunda dimensão”. A Revolução Industrial ocorrida no Século XIX foi um período de grande prosperidade vivida pela sociedade, mas que teve um elevado preço: sacrifício de uma enorme parcela da população, essencialmente da classe trabalhadora, que atuava em condições deploráveis. A extenuante jornada de trabalho, a inexistência de um salário mínimo, férias ou qualquer descanso regular, somados à exploração do trabalho infantil acabaram por gerar uma grande insatisfação da classe trabalhadora, que se organizou para reivindicar direitos que lhes garantissem condições mais dignas e razoáveis.

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É nesse contexto conflituoso que nasce o Estado do bem-estar social que, não obstante o vínculo essencial com as ideias capitalistas envolve-se na busca da promoção de maior igualdade social e melhores condições de trabalho, além de se comprometer a garantir os direitos econômicos, sociais e culturais, que são aqueles relacionados às necessidades primárias dos seres humanos, como alimentação, saúde, educação e moradia.

O início do século XX é marcado pela Primeira Grande Guerra e pelo estabelecimento de direitos sociais. A Constituição do México de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919 foram pioneiras na positivação desses direitos. No Brasil, a Constituição de 1934 é o marco inicial em que se verifica a perspectiva de evidenciação dos direitos sociais, culturais e econômicos, bem como dos direitos coletivos ou de coletividade, correspondendo aos direitos de igualdade.

É, contudo, somente após a Segunda Guerra Mundial que esses direitos realmente foram consagrados em um maior número de textos constitucionais e diplomas internacionais. Goiabeira Rosa e Vieira Rosa (2012, p. 139-140) bem obtemperam a respeito:

Além disso, os horrores da Segunda Guerra Mundial despertaram efetivamente a Humanidade para a necessidade de tutela do ser humano quanto aos seus valores e individualidade. O nazismo e o fascismo, com suas ideologias racistas e xenófobas, permitiram atrocidades a tal ponto de simplesmente se ignorarem atributos como a individualidade, liberdade, consciência e tantos outros, desprezando-se por completo a importância da pessoa humana individualmente considerada no contexto da evolução social. Some-se a isso o desprezo aos direitos da pessoa humana, nas várias ditaduras que assolaram o mundo no século XX. [...] Outros acontecimentos resgataram os ideais kantianos de ser humano enquanto centro do sistema social e normativo, tais quais a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Constituição de 1949 da República Federal da Alemanha (antiga Alemanha Ocidental). Esta consagrou e expressamente reconheceu a dignidade da pessoa humana enquanto princípio supremo em seu artigo 1º: “a dignidade humana é inviolável. Respeitá-la e a proteger será obrigação de toda autoridade estatal” (ALEMANHA, 1949, tradução nossa). Surge então o novo paradigma antropocêntrico do ordenamento jurídico: num novo contexto em que o Código deixa de ser o sustentáculo do Direito Privado e dá lugar à Constituição Federal, deixa-se de tratar a personalidade e seus direitos única e primordialmente à luz do prisma patrimonial – isto é, restritamente ao ressarcimento por danos materiais ainda que a ofensa tenha sido exclusivamente à personalidade e seus elementos -, para se

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enfocar a pessoa humana em si enquanto objeto de tutela: reconhece-se a dignidade humana como bem primordial a ser tutelado e protegido.

Bem assim, os direitos fundamentais da pessoa humana constituem espécie do gênero “direitos humanos”. São, em sentido material, pretensões que em determinado momento histórico firmam-se a partir da perspectiva do valor da dignidade humana. (MENDES; BRANCO, 2011, p. 159). Se historicamente os direitos humanos estão relacionados com valores como vida, dignidade, liberdade e outros mais, serão considerados como direitos fundamentais aqueles que têm serventia a alguns desses valores. São denominados “fundamentais” porque, sem a sua concreta presença, não há como garantir uma convivência digna, livre e igual em plenitude para todos os indivíduos.

Há uma ligação intrínseca entre constitucionalismo e direitos fundamentais. Como preleciona Canotilho (1993, p. 528), os direitos formalmente fundamentais são aqueles expressos em normas jurídicas de vocação constitucional, ou seja, normas formalmente constitucionais. Daí depreende-se que fundamentais são aqueles direitos especificamente expressos no corpo do texto constitucional, bem como aqueles que foram protegidos mais rigidamente pelo legislador constituinte, seja pela declaração de sua imutabilidade ou pela imposição de instrumentos mais complexos para que se concretize sua modificação. Tal cenário é conseqüência natural dos direitos que figuram como objeto da proteção do Estado. Os valores mais preciosos da existência humana devem ser tutelados por uma legislação com caráter vinculante de força extrema, imune às ocasionalidades e aos destemperos que ocorrem isoladamente e poderiam colocá-los em risco.

Os direitos fundamentais têm atuado como o agente motor de um grande processo de expansão da jurisdição constitucional. Como bem colocado por Santos, “a abertura que as normas declaratórias de direitos propiciam permite uma atividade interpretativa mais complexa, viabilizando uma atividade jurisdicional mais intervencionista” (SANTOS, 2011, p. 65).

Observa-se que o direito à saúde enquanto direito fundamental social possui a característica de exigir do Estado a promoção de ações concretas e efetivas, que garantam o cumprimento dos preceitos constitucionais que tratam do tema como direito de todos, tais como construção de hospitais, fornecimento de medicamentos, campanhas de vacinação para erradicação de doenças, e principalmente políticas de conscientização e prevenção.

O tratamento da saúde como direito humano e fundamental, abarcado pela proteção e tutela pelo Estado, é fruto de longa e gradativa evolução não apenas no que concerne aos conceitos de Direito, mas da própria concepção do que seja a saúde em si mesma considerada. É dizer: se nas sociedades primitivas,

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relacionava-se a saúde a aspectos de cunho mágico-religioso a ponto de a doença significar desobediência às leis divinas (SCLIAR, 2007, p. 30), a evolução da Humanidade possibilitou igualmente o desenvolvimento do hodierno conceito previsto no preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde (1946), segundo o qual “saúde é um estado de completo bem estar físico, mental e social, e não somente ausência de doença”397. Conforme Goiabeira Rosa e Vieira Rosa (2012, p. 145), a saúde deixou de ser um simples estado de ausência de doença, e passou a ser entendida como um estado de equilíbrio entre o físico e o psicológico do ser humano – coloquialmente, entre corpo e espírito.

Amparando-se em tal concepção, a saúde de uma pessoa reúne simultaneamente características individuais, físicas e psicológicas, resultando ainda do ambiente social e econômico em que ela vive. Nesse sentido, objetivando proteger o direito à saúde, o direito sanitário tem o importante condão de definir, no cenário da sociedade, quais os direitos e deveres do Estado, das famílias, da coletividade, das empresas e dos indivíduos.

No direito brasileiro a saúde somente foi tratada como matéria constitucional a partir da Constituição de 1934, que estabelecia, em seu art. 10, II, ser de competência executiva concorrente da União e dos Estados a organização de sua prestação. Por sua vez, o texto constitucional de 1937 aborda o tema da saúde como serviço público essencial da República, determinando ser de competência privativa da União a sua normatização, bem como de competência suplementar dos Estados a possibilidade de legislar acerca dos casos relacionados a saneamento básico, medidas profiláticas e organização de casa de saúde (artigos 16, XXVII e 16, c). A Carta de 1946 e a de 1967 seguiram a tendência do diploma constitucional anterior.

É, entretanto, a partir da Constituição de 1988, momento em que a saúde foi reconhecida expressamente como um direito humano fundamental, direito de todos e dever do Estado, que o Direito Sanitário consolidou-se em definitivo no país. Daí em diante as questões relativas à saúde da população foram acompanhadas, disciplinadas e organizadas de forma muito mais intensa pelo direito brasileiro.

Consolidando o processo de evolução do sistema público de saúde, a Carta Magna de 1988 consagrou o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde como um direito de cidadania. Desta forma, o direito à saúde passou a ter

397 No original: Health is a state of complete physical, mental and social well-being and not merely the absence of disease or infirmity.

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como seu garantidor o princípio da universalidade, sendo elevado ao nível de direito e garantia fundamental, norma dotada de eficácia plena.

Citada por Vizeu (2006, p. 115-116), Groti bem esclarece a questão da universalidade do direito à saúde:

Princípio da Generalidade ou universalidade: embora alguns o vejam como um princípio autônomo, é mais uma manifestação do princípio da igualdade, isto é, a possibilidade de que o serviço possa ser exigido e usado por todos. Significa que o mesmo deve atender, indistintamente, a todos que dele necessitem, independentemente do poder aquisitivo, satisfeitas as condições para sua obtenção. Sua manutenção constitui um dever legal, podendo ser exigido tanto daqueles que tenham a competência para instituí-lo quanto daqueles que o executem. (...) A prestação dos serviços públicos deve considerar as condições e diferenças dos usuários e a determinação da expansão dos serviços voltada para a consecução do atendimento universal, de modo a possibilitar o acesso a tais serviços a todos, independentemente das forças do mercado.

Bem assim, o artigo 6º da Constituição define expressamente a saúde como direito humano fundamental social, e o artigo 196 dispõe que a saúde é direito de todos e dever do Estado, determinando a promoção de políticas sociais e econômicas que garantam sua consecução e o acesso igualitário e universal às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. A partir deste último dispositivo, pode-se avaliar o sistema de organização, manutenção e fiscalização da saúde no país: nele está inserida a disposição de que a saúde é direito de todos e dever do Estado, e a determinação da execução de políticas públicas que possibilitem o acesso universal ao direito fundamental.

A saúde é direito humano fundamental indispensável ao real desenvolvimento do país. É por isso que as ações e serviços de saúde são, no ordenamento jurídico brasileiro, considerados de relevância pública, conforme se depreende do artigo 197 da Constituição Federal, devendo estar sujeitos aos mecanismos de controle social de uma democracia, para evitar eventuais abusos a esse Direito.

A efetivação do Direito à Saúde depende fundamentalmente da atuação do Estado, uma vez que sua promoção, proteção e recuperação estão sempre relacionadas a uma determinada ação a ser tomada pelos órgãos estatais, seja ela de alçada legislativa, tal como a elaboração de leis que visem proteger ou garantir o acesso às prestações sanitárias, de âmbito executivo, tal como a execução de políticas públicas referentes ao fornecimento de medicamentos, ou mesmo de caráter judiciário, como a prestação jurisdicional em resposta a questionamento de cidadão que se sinta lesado em seu acesso ao direito à saúde.

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Torna-se patente que o direito à saúde dos indivíduos implica um comprometimento estatal que o garanta. O acesso à saúde, elencado no rol dos direitos fundamentais sociais, impõe ao Estado a adoção de políticas sociais e econômicas que objetivem reduzir o risco dos agravos e o acesso universal à promoção, proteção e a recuperação da saúde. Baseado no dispositivo normativo da Constituição Federal ora apresentado é mister a produção de algumas observações.

Exige-se uma superação da teoria estrita de classificação das normas constitucionais em espécies preestabelecidas, realizadas por alguns doutrinadores, isto porque, compreender o disposto no art. 196 como uma norma de caráter estritamente programática, incapaz de produzir efeitos imediatos, somente indicando diretrizes a serem observadas pelo poder público, significaria negar a força normativa da Constituição (MENDES; BRANCO, 2011, p.309). Nesta esteira, conforme ensina Canotilho (2010, p. 49):

O direito à saúde é direito fundamental, dotado de eficácia e aplicabilidade imediatas, apto a produzir direitos e deveres nas relações dos poderes públicos entre si e diante dos cidadãos, superada a noção de norma meramente programática, sob pena de esvaziamento do caráter normativo da Constituição.

Utilizando-se como paradigma o disposto no 5° §1° da Constituição Federal, segundo o qual “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade direta”, percebe-se que o mandamento normativo previsto no art. 196 é de caráter preceptivo e não meramente programático, uma vez que os direitos fundamentais têm sua base na Constituição e não na lei, sendo direcionados a “todos”, atuando tanto como direito individual quanto direito coletivo. Mesmo sendo um direito clássico de segunda dimensão e possuindo caráter preponderantemente social, é sobretudo um direito público subjetivo exigindo do Estado uma relação jurídica obrigacional.

Ao determinar ser um dever estatal, o artigo em comento estabelece que além do direito à saúde há o dever fundamental de prestação da saúde por parte dos entes federativos (União, Estados-membros e Municípios). Não sem motivo, a Constituição atribuiu competência para legislar sobre a proteção e defesa da saúde concorrentemente à União, aos Estados e Municípios (art. 24, XII, e 30, II, da Constituição Federal). Importante destacar que à União cabe o estabelecimento de normas gerais (art. 24, §1°); aos Estados, suplementar a legislação federal (art. 24, §2°); e aos Municípios, legislar sobre assuntos de interesse local, podendo igualmente suplementar a legislação federal e estadual, o que couber (art. 30, I e II).

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O disposto no art. 23, II refere-se à competência comum em aspecto administrativo, cabendo aos entes da federação desenvolver políticas públicas que visem à redução de doenças, à promoção, à proteção e à recuperação da saúde, sendo, portanto, responsáveis solidários pela saúde junto ao indivíduo e à coletividade.

Outrossim, a Constituição Federal, ao mesmo tempo em que reconhece a saúde como direito de todos, confere ao Estado a responsabilidade de organizar um conjunto de ações e serviços públicos de saúde capazes de reduzir os riscos de doenças e de outros agravos à saúde, bem como de garantir à população o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde (SANTOS, 2010, p. 201). Tem-se como exemplo a criação do Sistema Único de Saúde – SUS, instituído no Brasil através da promulgação da Carta Constitucional de 1988 e resultado das propostas de reforma sanitária que traziam em seu bojo a necessidade de se alterar o falho sistema vigente desde 1975.

O SUS é uma instituição pública e nacional, fundada no princípio da universalidade do atendimento, a indicar que a assistência à saúde deve atender irrestritamente a toda população. Suas diretrizes são a administração descentralizada, a integralidade do atendimento e a participação da comunidade. O SUS representa a mais importante instituição jurídica do Direito Sanitário brasileiro, integrando e organizando todas as outras que fazem parte do universo sanitário no país: não obstante constituído como sistema público, o SUS compreende as redes pública e privada de saúde, esta última utilizada por meio de contratação ou convênio firmado com o Poder Público, conforme as previsões constitucionais relativas ao tema.

Outrossim, em âmbito infraconstitucional o acesso à saúde está organizado em um complexo sistema que envolve a participação dos referidos entes federativos, que atuam em regime de direito público, bem como de entidades privadas, que tem sua atividade pautada ora pelo direito público, ora pelo privado. A norma do artigo 198 da Constituição Federal foi regulamentada em caráter infraconstitucional através da edição da Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990, denominada de Lei Orgânica da Saúde. A lei estabelece a estrutura e o modelo operacional do já mencionado SUS, apresentando sua forma de organização e de funcionamento. Nestes termos, as ações e serviços de saúde são de relevância pública, integrantes de uma rede regionalizada e hierarquizada, segundo o critério da subsidiariedade, e constituem um sistema único (MENDES; COELHO; BRANCO, 2010, p.833).

O art. 2° da lei supracitada apresenta expressamente o direito à saúde como um direito fundamental, cabendo ao Estado prover as condições

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indispensáveis para seu pleno exercício e concretização. Típico direito de segunda dimensão, o direito à saúde, conforme legislação infraconstitucional diretamente relacionada ao dispositivo constitucional clama do Estado uma ação prestacional positiva. Entretanto, é importante ressaltar que o dever estatal de prestação, no que tange o direito à saúde, não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade (art. 2º, §2º da lei 8.080/90). Isto porque, nas lições de Leal (2009, p. 164):

O direito à saúde não pode se concretizar, ou pelo menos não se concretiza somente através de uma política constitucional, eis que está é, prima facie, uma projeção imperativa sobre órgãos constitucionais do Estado das contingência de várias esferas da sociedade.

Desta forma, a Constituição brasileira consagra o Sistema Único de Saúde como a instituição responsável pelo serviço público de saúde e ações concernentes à sua realização, composto de uma rede regionalizada e hierarquizada, organizado em acordo com a descentralização, com direção única em cada esfera de governo e atendimento integral.

O SUS necessita de financiamento permanente, munido de constância e equilíbrio suficiente para garantir o cumprimento dos objetivos constitucionalmente estabelecidos. Por essa razão a Constituição tratou do financiamento das ações e serviços de saúde, sendo complementada pelas Leis 8080/90 e 8142/90. Entretanto, é notório que em diversas situações o Sistema criado não comporta o atendimento das necessidades apresentadas pelos indivíduos que dele dependem para ter seu direito à saúde concretizado: o confronto entre os institutos do mínimo existencial e da reserva do possível acabam por fundamentar o crescente volume de demandas judiciais que surgem, todas alavancadas pelo desejo de seus impetrantes em ver alcançado o direito fundamental garantido constitucionalmente.

Assim, diante da dicotomia estatal entre a obrigação e a possibilidade concreta de garantir a saúde ao cidadão, surge o fenômeno do ativismo judicial, decorrente da situação que se estabelece após o advento da Constituição Federal de 1988: de um lado, a Constituição Federal garantindo expressamente o caráter de imediata realização dos direitos fundamentais, traduzido, neste caso específico, pelo fornecimento do acesso à saúde; de outro, a Administração Pública e a dificuldade em se efetivar com plenitude de satisfação a todos os pleitos que se lhe chegam, e as responsabilidades decorrentes da aprovação ou negativa dessas solicitações.

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4. DO ATIVISMO JUDICIAL ENQUANTO MECANISMO DE GARANTIA DO ACESSO À SAÚDE

No que concerne ao direito à saúde, a Constituição de 1988 impôs ao legislador ordinário o ônus de abordar as ações públicas destinadas a garantir o direito fundamental social mencionado da forma mais ampla, abrangente e concreta possível. Contudo, por mais universal que se pretenda o atendimento e o acesso à saúde, a realidade fática demonstrou não ser possível às ações públicas garantir todas as situações reais existentes, o que delega ao Poder Judiciário a legitimidade para, sempre que for acionado, suprir a eventual atitude omissiva do Estado, intervindo nas políticas públicas de saúde.

Acerca de tal inércia do Poder Público, Afonso da Silva (2008, p. 598) bem explica:

Ainda mais importante seria o papel do Judiciário, em conjunto com o Ministério Público, como controlador das políticas públicas já existentes. Boa parte dos problemas de efetividade do direito à saúde (e também de outros direitos sociais) decorre muito mais de desvios na execução de políticas públicas do que falas na elaboração dessas mesmas políticas. Nesses termos – ou seja, como controlador da execução de políticas já existentes -, o Judiciário conseguiria, ao mesmo tempo, pensar os direitos sociais de forma global, respeitar as políticas públicas planejadas pelos poderes políticos, não fazer realocação irracional e individualista de recursos escassos e, sobretudo, realizar com maior eficiência dos direitos sociais.

Nessa linha de raciocínio vislumbra-se o ativismo judicial, fenômeno que desperta diversos questionamentos e acaloradas discussões no cenário jurídico e na sociedade. Caracteriza-se, segundo Almeida (2011), “pelas decisões judiciais que impõem obrigações ao administrador, sem, contudo, haver previsão expressa”.

Montesquieu, ao discorrer acerca das funções estatais, defendia que o Poder Legislativo se caracterizava pelo condão de produzir as leis, e de corrigir as que já foram feitas. Segundo Medeiros (2011, p. 87), Montesquieu enfatizava que o Poder Executivo era o poder de fazer a paz ou a guerra e garantir a segurança, bem como se referia ao poder de julgar como que correspondente ao poder de punir os crimes ou de julgar as lides entre interesses particulares. A figura do juiz era por ele descrita como “a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que lhe não podem moderar nem a força nem o rigor” (MEDEIROS, 2011, p. 87).

Não obstante a evolução do princípio da separação dos poderes, impende ressaltar que a Constituição Federal de 1988 regulou as relações entre os Poderes

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Legislativo, Executivo e Judiciário, definindo e delimitando suas atribuições e direitos e deveres de seus membros, e, finalmente, regulando o relacionamento entre os órgãos de poder. Outrossim, o que se pode verificar é a existência de diversas situações dispostas na Constituição Federal em que um poder exerce controle sobre as funções incumbidas ao outro.

Dentre os mecanismos de controle, é de se destacar a possibilidade de o Poder Judiciário controlar a constitucionalidade das políticas públicas realizadas pelo Estado. Não parece haver dúvidas de que o sistema de controle de constitucionalidade previsto na Constituição de 1988 atribuiu competência ao Poder Judicante para, sempre mediante provocação e no bojo de um processo judicial, sindicar negativamente o ato do Poder Público que venha a embasar determinada política pública adotada ou em vias de ser pelo Estado, reconhecendo, se for o caso, a sua contrariedade ao texto constitucional. Com efeito, após 1988 o Poder Judiciário tornou-se o guardião por excelência dos valores expressos na Carta Magna, possuindo papel de destaque na sociedade brasileira.

Conforme Barroso (2010), o ativismo judicial é uma escolha do magistrado, que pode interpretar as normas constitucionais ampliando seu significado e abrangência, o que normalmente acaba por significar uma retração do Poder Legislativo:

A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público.

Faz-se relevante explicitar a diferença existente entre judicialização e ativismo judicial. Judicialização é fenômeno de grande complexidade e que possui dimensões diversas: consubstancia-se numa espécie de transferência de decisão dos Poderes Executivo e Legislativo para o Poder Judiciário, que então estabelece as normas de conduta a serem adotadas pelos demais poderes quando do tratamento dos assuntos em questão.

A expressão “judicialização da política” foi utilizada a partir da obra de Neal Tate e Vallinder, para os quais, segundo Júnior (2011):

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[...] a judicialização da política pode ser contextualizada tanto na expansão da área de atuação dos órgãos do Poder Judiciário, com a transferência de decisões da arena política para a arena judicial, quanto na propagação dos métodos típicos do processo judicial para fora dos tribunais, como a designação de relatores, votos, recursos, audiências públicas e até mesmo o socorro a precedentes.

A seu turno, Barroso (2010) difere de modo bem claro os institutos da judicialização e do ativismo:

A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da mesma família, freqüentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. (...) Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais.

Infere-se, portanto, ter o ativismo judicial extrema relevância no contexto social. Como importante instrumento disponível para qualquer indivíduo que se encontre em vias de ter seus direitos prejudicados, ou, ainda, que já tenham sido efetivamente lesados na garantia do acesso à saúde, a possibilidade de o cidadão ter seus questionamentos revisitados pelo Poder Judiciário é de grande valia.

Por óbvio que não se defende a utilização ilimitada e acintosa deste instituto. Na pretensão de se construir um Estado que respeite liberdades, torna-se fundamental que o exercício do poder seja realizado balizado em um sistema de freios e contrapesos capazes de conter os Poderes e fazê-los andar dentro dos parâmetros constitucionalmente estabelecidos. A interferência de um Poder sobre o outro somente se legitima quando tem por objetivo garantir que o princípio da limitação dos poderes atue para impedir abusos e jamais para que um Poder predomine sobre o outro. O direito à saúde deve ser encarado como direito prima facie, mas isso não significa ignorar ou menosprezar outros valores constitucionais merecedores de igual consideração.

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A atuação do Judiciário na garantia do acesso ao direito à saúde não pode se converter em uma autorização para que os órgãos jurisdicionais venham a desempenhar uma função que a Constituição Federal não lhe tenha atribuído (MEDEIROS, 2011, p. 108).

O número cada vez mais volumoso de sentenças judiciais interferindo em políticas públicas de saúde tem compelido administradores a se debruçarem sobre demandas individualizadas e particulares, o que poderia ser um desvio de atenção na produção, execução e avaliação das políticas públicas que deveriam ser propostas para alcançar a maioria da sociedade. Vale registrar o comentário de Souza Neto (2008, p. 529): “em setores como o da saúde, decisões judiciais que não consideram problemas de organização administrativa podem gerar consequências contrárias aos próprios valores que pretendem promover”.

Daí se observa que, se de um lado o princípio da dignidade humana do qual se depreende o conceito do mínimo necessário a uma existência digna exige que a Administração Pública produza os meios necessários ao atendimento das necessidades que lhe são apresentadas, utilizando-se para tanto, em muitas situações, do ativismo judicial como instrumento precioso de atuação, de outro lado a Administração Pública coloca em xeque a interveniência do Poder Judiciário valendo-se em sua defesa do instituto da reserva do possível, da limitação de seus recursos, do escasso orçamento e da necessidade prioritária em se atender a comunidade em detrimento de interesses isolados.

5. DO MÍNIMO EXISTENCIAL E DA RESERVA DO POSSÍVEL

De fato, muito se questiona acerca do confrontamento entre os institutos denominados “mínimo existencial” e “reserva do possível” na garantia e cumprimento dos preceitos constitucionais atinentes aos direitos fundamentais. Ainda que o acesso à saúde seja direito fundamental expressamente previsto na CF/88, tal prerrogativa não é ilimitada: ainda que obrigada a cumprir os ditames constitucionais, a Administração Pública dispõe de um orçamento finito, e em diversas situações é na defesa deste argumento e sob a motivação de se estar defendendo o interesse público, que o Estado termina por negar o acesso ao direito expresso na Constituição Federal.

Mínimo existencial e reserva do possível são dois institutos valiosos no aprofundamento do estudo acerca do direito sanitário, seu acesso no Brasil e a garantia de sua concretização via de atuação da Administração Pública.

Foi na Alemanha que se verificou originalmente a ideia de direito fundamental e da garantia de uma vida com dignidade. A discussão acerca de que se garantisse o mínimo indispensável a uma existência digna obteve posição de destaque após o início da vigência da Constituição Alemã de

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1949, a qual consagrou e expressamente reconheceu a dignidade da pessoa humana enquanto princípio supremo em seu artigo 1º: “a dignidade humana é inviolável. Respeitá-la e a proteger será obrigação de toda autoridade estatal”398 (ALEMANHA, 1949, tradução nossa).

Bem assim, a primeira decisão de que se tem notícia a garantir a essência da vida com dignidade foi dada pelo Tribunal Federal Administrativo alemão em seu primeiro ano de funcionamento. Tal decisão reconheceu a existência de um direito subjetivo do indivíduo carente a ser auxiliado materialmente pelo Estado, fundamentando a posição no postulado da dignidade da pessoa humana, nos direitos à vida e à liberdade, e na crença de que o indivíduo, para ser reconhecido como titular de direitos e obrigações, necessita, primordialmente, ter garantida a manutenção de suas condições de existência.

É da lição de Torres (2009, p. 36-37) que se pode depreender a grandeza do instituto:

Não é qualquer mínimo que se transforma em mínimo existencial. Exige-se que seja um direito a situações existenciais dignas. Sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais de liberdade. A dignidade humana e as condições materiais da existência não podem retroceder aquém de um mínimo, do quem nem os prisioneiros, os doentes mentais e os indigentes podem ser privados. O mínimo existencial não tem dicção constitucional própria. Deve-se procurá-lo na ideia de liberdade, nos princípios constitucionais da dignidade humana, de igualdade, do devido processo legal e da livre iniciativa, na Declaração dos direitos Humanos e nas imunidades e privilégios do cidadão. Só os direitos da pessoa humana, referidos a sua existência em condições dignas, compõem o mínimo existencial. [...] Não se confunde com o direito á vida, que tem duração continuada entre o nascimento e a morte e a extensão maior que o de existência, que é situacional e não raro transitória. A Corte Constitucional da Alemanha define o mínimo existencial como o que é necessário à existência digna.

Não se pode, entretanto, simplificar o conceito, sob o risco de que se acabe por confundir o que se trata por mínimo existencial com a ideia do mínimo necessário à sobrevivência do indivíduo. São duas vertentes diversas: embora o mínimo existencial englobe por sua abrangência o mínimo necessário à sobrevivência dos seres humanos não se limita a este, dado que amplia seu

398 No original: Die Würde des Menschen ist unantastbar. Sie zu achten und zu schützen ist Verpflichtung aller staatlichen Gewalt.

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campo de significado para muito além da simples sobrevida humana. Como se vê através do entendimento de Sarlet (2010, p. 23):

Tem-se como certo que a garantia efetiva de uma existência digna abrange mais do que a garantia da mera sobrevivência física, situando-se, portanto, além do limite da pobreza absoluta. Sustenta-se, nesta perspectiva, que se uma vida sem alternativas não corresponde às exigências da dignidade humana, a vida humana não pode ser reduzida à mera existência. Registre-se, neste contexto, a lição de Heinrich Scholler, para quem a dignidade da pessoa humana apenas estará assegurada quando for possível uma existência que permita a plena fruição dos direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possível o pleno desenvolvimento da personalidade.

Há que se ressaltar que o direito mínimo para uma existência digna em razão de sua essência eminentemente fundamental é orientado pelo Estado. Isso quer dizer que é responsabilidade da Administração Pública prover e garantir o acesso ao mínimo necessário à dignidade humana, atuando na concretização dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente. Essa relação do instituto com a prestação estatal é analisada por Bitencourt Neto (2010, p. 128):

Sendo o direito ao mínimo para uma existência digna a reserva de eficácia da dignidade da pessoa humana, quanto à garantia de meios mínimos para tanto, admitir a necessidade de intervenção legislativa prévia à eficácia plena de sua dimensão prestacional seria esvaziar de sentido o próprio direito. Assim, se para os demais direitos fundamentais, em especial os direitos sociais, a eficácia plena como direito a prestações depende da interposição legislativa, a fim de assegurar, em especial, o respeito ao princípio democrático e à repartição de funções, o mesmo não vale no caso do direito ao mínimo existencial. Se assim fosse, seria inviável justificar a possibilidade de adscrição de um tal direito a disposições jusfundamentais, na medida em que tem como conteúdo exatamente a execução direta de dimensões de outros direitos fundamentais. (...) Se o direito ao mínimo existencial postula uma intervenção do Estado protetora contra a ameaça de terceiros, impõe o dever de legislar que, se for descumprido, autoriza intervenção jurisdicional direta para regular a norma de solução do caso concreto. Por outro lado, impondo também uma intervenção estatal que assegure prestações materiais mínimas para uma existência digna, dirige-se inicialmente ao legislador, para a escolha dos meios e a definição dos recursos necessários para tanto. Não obstante,

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ficando inerte o legislador, ou regulando o direito de modo insuficiente, autoriza também aqui intervenção jurisdicional direta para regular a norma de solução do caso concreto.

Assim, conclui-se que o mínimo fundamental não pode ser confundido com o que se chama comumente de mínimo de sobrevivência: enquanto este abrange a garantia da vida humana dentro de padrões estritamente biológicos – entenda-se, o mínimo para o indivíduo sobreviver, aquele busca englobar a vida humana com qualidades – ou seja, vida com dignidade.

O mínimo existencial, compreendido como todo o conjunto de prestações materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida condigna, no sentido de uma vida saudável, tem sido identificado, segundo Sarlet (2010), como constituindo o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais, blindado contra toda e qualquer intervenção que ocorra por parte da sociedade ou do Estado. No Brasil, embora não exista uma previsão constitucional expressa que abarque a garantia do mínimo existencial, a garantia de uma existência digna está expressamente presente no rol dos princípios e objetivos da ordem constitucional econômica (art. 170, caput), e implicitamente em todo o arcabouço constitucional advindo do princípio basilar da dignidade humana e seus corolários.

Entretanto, não se pode olvidar que a concretização das prestações indispensáveis à efetivação dos direitos fundamentais está condicionada à disponibilidade de recursos financeiros: o acesso ao direito à saúde respeita um orçamento pré-determinado, e é aí que o instituto da reserva do possível toma seu lugar como argumento que embasa diversas negativas ao direito constitucionalmente garantido. Assim, percebe-se que a utilização do instituto da reserva do possível vem em confrontamento à autorização indistinta de acesso a diversos direitos fundamentais, mais especialmente, no caso do presente trabalho, à prestação sanitária.

Os recursos destinados à satisfação dos interesses dos indivíduos não são ilimitados, e daí tem-se o início da ponderação acerca da necessidade de se ter por base um orçamento que funcione como referência mestra no atendimento dos pleitos formulados. Sarlet (2010, p. 60) demonstra o alcance do instituto:

Justamente pelo fato de os direitos sociais na sua condição de direitos a prestações terem por objeto prestações estatais vinculadas diretamente à destinação, distribuição (e redistribuição), bem como à criação de bens materiais, aponta-se, com propriedade, para sua dimensão economicamente relevante. Já os direitos de defesa, por serem, na sua condição, direitos subjetivos, em primeira linha, dirigidos a uma

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conduta omissiva, são geralmente considerados destituídos desta dimensão econômica, na medida em que o bem jurídico que protegem (vida, intimidade, liberdades, etc.) pode ser assegurado – como direito subjetivo exigível em Juízo – independentemente das circunstâncias econômicas, ou, pelo menos, sem a alocação direta, por força de decisão judicial, de recursos econômicos. Diretamente vinculada à característica dos direitos fundamentais sociais a prestações está a problemática da efetiva disponibilidade de seu objeto, isto é, se o destinatário da norma se encontra em condições de dispor da prestação reclamada, encontrando-se, portanto, na dependência da real existência de meios para cumprir com sua obrigação.

Denota-se que o caráter de finitude dos recursos do Estado constitui limitador fático efetivo à concretização de direitos fundamentais a prestações, dentre eles o acesso à saúde. De acordo com o conceito de reserva do possível, a efetividade dos direitos fundamentais a prestações estaria diretamente subordinada à reserva constituída pelas capacidades financeiras do Estado, visto serem direitos que dependem do financiamento do erário público para serem realizadas.

A partir dessas considerações é possível fazer algumas análises. A primeira delas é a de que um Estado com limitação de recursos econômicos deve agir com proporcional responsabilidade quando das decisões acerca de sua destinação, o que nem sempre podemos constatar no cenário político brasileiro. Também é relevante mencionar que essas decisões acerca da aplicação dos recursos materiais disponíveis dependem em muito da situação socioeconômica vivenciada, o que faz com que as ações fiquem ao cargo de órgãos políticos, já que não há, na Carta Constitucional, regras para essa destinação.

Acerca da reserva do possível, Bornholdt (2005, p. 100-103) bem salienta:

Não será tolerável a tentativa de limitação de um direito fundamental que se baseie em noções vagas, como a de leis gerais, ou da ordem jurídica, vista de modo holístico. Um tal critério não seria baseado em direito positivo, e nos colocaria novamente em face de uma tirania de valores. Ademais, seria certamente esquisito que fosse o legislador quem definisse a suposta ordem hierárquica da Constituição. [...] Nestes campos, não se pode permitir generalizações.

Portanto, percebe-se que a análise da aplicabilidade da reserva do possível não pode ser feita de forma superficial, adotando o conceito genericamente para todas as situações que se apresentarem perante o Poder Público. Torna-

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se imperioso o estabelecimento de critérios amadurecidos e aprofundados por parte da autoridade estatal competente para decidir sobre a prestação ou negativa do direito pleiteado, sob pena de se ver afastado o objetivo principal do Estado - a promoção do bem estar da coletividade. Para tanto, vale a lição de Sarlet (2010, p. 33):

Assume relevo o princípio da proporcionalidade, que deverá residir a atuação dos órgãos estatais e dos particulares, seja quando exercem função tipicamente estatal, mesmo que de forma delegada (com destaque para a prestação de serviços públicos) seja aos particulares de um modo geral. (...) A proporcionalidade haverá de incidir na sua dupla dimensão como proibição do excesso e de insuficiência, além de, nesta dupla acepção, atuar sempre como parâmetro necessário de controle dos atos do poder público, inclusive dos órgãos jurisdicionais, igualmente vinculados pelo dever de proteção e efetivação dos direitos fundamentais. Isso significa que os responsáveis pela efetivação dos direitos fundamentais, inclusive e especialmente no caso dos direitos sociais, onde a insuficiência ou inoperância (em virtude da omissão plena ou parcial do legislador e administrador) causa impacto mais direto e expressivo, deverão observar os critérios parciais de adequação (aptidão do meio no que diz com a consecução da finalidade almejada), necessidade (menor sacrifício do direito restringido) e proporcionalidade em sentido estrito (avaliação da equação custo-benefício – para alguns, da razoabilidade no que diz com a relação entre os meios e os fins), respeitando sempre o núcleo essencial do direito restringido, mas também não poderão, a pretexto de promover algum direito, desguarnecer a proteção de outro no sentido de ficar aquém de um patamar minimamente eficiente de realização e de garantia do direito.

Não é outro o entendimento de Olsen ao tratar da proporcionalidade perante o confronto dos institutos da reserva do possível e do mínimo existencial. Segundo seu entendimento, uma prestação insuficiente por parte do Estado corresponderia a uma violação à Constituição. Para se mensurar a violação real, ou a atuação justificável constitucionalmente de uma restrição no âmbito normativo do direito que se busca, é necessário que se empreenda análise da legitimidade e da constitucionalidade material e formal da justificativa fornecida pelo Estado para a sua omissão (OLSEN, 2010).

Como a reserva do possível vinculada à noção de escassez de recursos corresponde a uma restrição extrajudicial aos direitos fundamentais sociais - diminui a responsabilidade estatal relacionada à obrigação contida nesses

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direitos, prejudicando as posições jurídicas que seus titulares possuem -, não estará sujeita ao controle de constitucionalidade formal, como a reserva de lei. Estará, entretanto, sujeita ao controle de legitimidade e constitucionalidade material, melhor dizendo, se o bem jurídico que a restrição visa proteger naquele fato concreto justifica a afetação desvantajosa do direito fundamental social.

Citada por Olsen (2010, p. 306), Ferrari confirma seu posicionamento:

(...) no que tange ao direito à saúde, cabe reconhecer um verdadeiro direito subjetivo público positivo e individual a prestações materiais, deduzidos diretamente da Constituição, ainda que limitado ao mínimo necessário para a proteção da vida humana. Porém como observa Canotilho, mesmo o cidadão tendo um direito a prestações existenciais mínimas, não significa que reconhecer um direito seja sinônimo de impor ao poder público o modo de realizar esse direito, pois órgãos estatais dispõem de um espaço, indispensável, de discricionariedade, o que não quer dizer extensão absoluta, mas estar condicionado pelo que denominou de “determinantes condicionais heterônomas.

Assim, quando uma norma obriga ao Estado a certas prestações materiais, ela não pode determinar aquilo que se mostre de impossível realização. Sarmento aponta que a colocação da reserva do possível junto ao direito fundamental, no entendimento de Leivas, é uma afirmação de que a análise dos direitos fundamentais deve ser realizada levando-se em consideração outros direitos fundamentais que aos primeiros se contrapõem (SARMENTO, 2008, p. 287). A colisão regular de princípios constitucionais que se confrontam com direitos fundamentais sociais, como por exemplo o de terceiro que invoca o amparo do Poder Judiciário para ver garantido seu direito e o princípio da Separação de Poderes, somente será alcançado através de ponderação e análise do caso concreto. A reserva do possível, dessarte, não significa a ineficácia ou a inaplicabilidade do direito fundamental, mas sim a necessidade da aplicação de princípios como a proporcionalidade e a razoabilidade sempre que houver um caso fático real para ser avaliado.

Contudo, ainda que os direitos de natureza prestacional sejam vinculados à existência de possibilidade material de sua realização, o direito ao mínimo existencial não pode ser atrelado a tal limite posto que a dignidade da pessoa humana exige, como prioridade da ação da Administração Pública, a garantia de condições necessárias para uma existência digna.

Os programas de ação são um dever da Administração Pública, pois constituem a forma mais adequada de atender aos direitos dos sujeitos que se encontram na posição positiva de vantagem no tocante ao direito prestacional à saúde.

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Segundo o entendimento de Queiroz, no cumprimento do dever de materialização dos direitos fundamentais sociais e no caso da prestação à saúde, vislumbra-se no campo administrativo uma limitação da liberdade discricionária de atuação do administrador. A Administração Pública não detém um campo de liberdades indeterminadas de atuação quanto à escolha de opções oportunas e convenientes, imune ao controle judicial, não podendo agir ou deixar de agir na realização desses direitos sob o amparo de um poder discricionário, diante da ausência de definição do conteúdo pelas normas que expressam os mencionados direitos. Sua ação discricionária deve ser a de buscar a melhor realização dos direitos fundamentais sociais prestacionais (QUEIROZ, 2011, p. 132).

A questão da discricionariedade compreenderia o espaço encontrado pela Administração Pública no texto legal para determinar o objeto e o motivo do ato administrativo, levando em consideração os critérios de a oportunidade e conveniência. Entretanto, as escolhas adotadas somente terão conteúdo de legitimidade se alcançarem o interesse público, essência da própria finalidade da norma a ser interpretada discricionariamente.

Exercendo a discricionariedade, a Administração Pública deverá atentar-se à lei e ao interesse público que nela está contido, não encerrando, destarte, poder algum de livre escolha do motivo e do objeto não especificados expressamente pela lei, sendo assim um poder essencialmente vinculado à finalidade da norma. Segundo Queiroz (2011, p. 137):

A vinculação da discricionariedade ao interesse público ganha um adensamento com a ideia de constitucionalização dos direitos, devendo a atuação da Administração Pública estar sempre voltada ao cumprimento dos mandamentos constitucionais, principalmente aos direitos fundamentais, visto que as normas constitucionais estão no patamar máximo de todos ordenamento jurídico e que os direitos fundamentais, como fundamentais, todos eles, constituem-se em prioridades constitucionais. A Administração Pública, como Poder Público vinculado aos direitos fundamentais, não pode agir em desconformidade com suas indicações, exigindo sempre uma situação voltada à realização desses direitos. A discricionariedade é, pois, um exercício vinculado ao atendimento dos direitos fundamentais.

O controle da atuação discricionária da Administração Pública deve ser realizado de maneira ampla porque grande é a vinculação da Administração Pública aos direitos fundamentais. Entretanto, referido controle deverá se proceder somente no que diz respeito à discricionariedade administrativa. Se o poder discricionário é prerrogativa da Administração Pública de poder

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integrar a norma em aberto da forma mais eficaz possível, constitui um recurso hábil à efetivação da norma fundamental abstrata. Assim, segundo Maria do Socorro Azevedo Queiroz, as escolhas administrativas que atendam de forma satisfatória aos direitos fundamentais sociais prestacionais e aos mandamentos constitucionais não são passíveis de sindicância pelo Poder Judiciário, cabendo, entretanto, uma apreciação de seus limites nesse campo de proteção (QUEIROZ, 2011, p. 141).

A medida do controle judicial deve ser proporcional ao tamanho da vinculação existente. Se a Administração Pública está vinculada aos direitos fundamentais prestacionais pelas normas contidas na Constituição Federal o controle deverá ser total, mas a análise dos pressupostos de conveniência e oportunidade, subjetivos no ato discricionário, influenciarão em muito no resultado da verificação.

O Supremo Tribunal Federal brasileiro vem adotando uma postura de reafirmação da vinculação da Administração Pública às normas relacionadas às prestações de saúde, limitando o poder discricionário e evitando que o mesmo seja confundido com poder absoluto de livre atuação, e assumindo o controle judicial de constitucionalidade destes atos do Poder Executivo. O STF tem decidido que a Administração Pública está vinculada à prioridade de realizar os direitos fundamentais, devendo observar essa vinculação no momento de elaboração de seu orçamento e aplicação de seus recursos. Percebe-se ainda a prevalência do entendimento segundo o qual, sempre que as condições mínimas de vida estiverem sendo colocadas em perigo e não houver ação governamental eficiente para debelar o risco, o Judiciário estaria legitimado a intervir. O Supremo Tribunal Federal vem trabalhando com o método de ponderação de bens, que reconhece o direito subjetivo a um mínimo existencial, vinculado diretamente ao princípio da dignidade da pessoa humana (ESTEVES, 2007, p. 105).

6. CONCLUSÃO

O tratamento do direito à saúde no Brasil evoluiu gradativamente e teve seu ápice com a Constituição Federal de 1988, onde foi alçado à categoria de direito fundamental, sendo seu acesso garantido irrestrita e universalmente à todos que dele necessitem, sem qualquer distinção. Pode-se também verificar a responsabilidade que pesa sobre os ombros da Administração Pública em concretizar esse direito constitucionalmente expresso, visto caber ao Estado criar políticas de promoção, proteção, prevenção e recuperação da saúde, e, para tanto, há um orçamento previamente determinado.

Inobstante, é notório que mesmo se tomando por certa a grande evolução do tratamento à saúde que a Constituição de 1988 oferece, muitos são os

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interesses que terminam rejeitados pela Administração Pública. Isso ocorre em diversas situações e, não raras vezes, aquele que tem seu direito negado ou se sente lesado termina por requerer o amparo do Poder Judiciário na tentativa de ver corrigida a suposta injustiça que lhe foi imposta.

Assim é que se percebe o avolumado montante de ações em trâmite pelos tribunais pátrios, que ilustra o fenômeno crescente do ativismo judicial e a interveniência do Poder Judiciário na atuação do Poder Executivo, avaliando a constitucionalidade de suas ações e decisões.

Sobressai-se de tal análise a dualidade entre “mínimo existencial” e “reserva do possível”, conceitos francamente usados na defesa de um e outro posicionamento: para aqueles que defendem maior autonomia do Poder Executivo na prestação do direito à saúde e à sua negativa, o argumento é de que se deve respeitar um orçamento prévio e limitado, sem o que se coloca em risco toda a segurança das relações, políticas públicas e demais necessidades prioritárias do interesse público.

Em contrapartida, para os que acreditam dever a dignidade da pessoa humana ser o princípio a nortear todos os demais, e que o direito fundamental deve ser prioritário e prevalecer sobre qualquer outra atuação da Administração Pública, o conceito de mínimo existencial é basilar, funcionando como uma garantia muito maior que simplesmente o mínimo necessário à existência ou à sobrevivência, mas sim um conjunto de direitos que garanta também a dignidade desta existência.

Isto posto, diante de todas as assertivas que compõem o presente estudo, a utilização do princípio da proporcionalidade ocorre como sendo o grande trunfo dos aplicadores do Direito. Somente aplicando-se tal princípio ao caso concreto, somente avaliando-se a situação fática pela ótica proporcional é que se poderá alcançar um resultado justo, equânime e que realmente seja o espelho do que almeja o interesse público. A atuação da Administração Pública deve ser pautada pela busca incessante do atendimento satisfatório aos anseios dos membros de sua comunidade, e garantir a concretização dos direitos fundamentais constitucionalmente expressos, como o direito à saúde é, sem qualquer dúvida, parte de extrema relevância de sua atividade em nome do interesse público.

Aliar a responsabilidade com os recursos públicos à prioridade de se garantir a satisfação dos direitos considerados como fundamentais à dignidade humana, valendo-se para tanto do filtro da proporcionalidade para avaliar o caso concreto, tem sido a vertente adotada pelo Poder Judiciário brasileiro nos casos em que a Administração Pública não consegue alcançar o real interesse da sociedade.

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O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO: REFLEXÕES SOBRE OS PROBLEMAS META-JURÍDICOS

REFERENTES DO DIREITO FUNDAMENTAL AODESENVOLVIMENTO DEMOCRÁTICO

ProF. dr. Saulo de oliVeira Pinto Coelho (uFg)399

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS: LEVANDO A SÉRIO O PAPEL DO DIREITO NA PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO.

O presente trabalho tem como objetivo central alavancar estudos justeoréticos traduzidos em um novo olhar sobre o fenômeno da experiência jurídica entorno do Desenvolvimento e da promoção e garantia dos Direitos Fundamentais a ele correlatos, muitas vezes compreendidos por meio de visões reducionistas, incapazes de perceber a transversalidade necessária que a abordagem constitucional dos instrumentos de efetivação de tais direitos carece, se pensada no contexto hiper-complexo das sociedades contemporâneas, de maneira integrada e sinérgica. Diante da tarefa de lançar um olhar compreensivo sobre o macro-modelo constitucional do desenvolvimento humano, pretende-se, no presente recorte, descobrir novas abordagens, marcadas pelo aprofundamento metodológico da interdisciplinaridade e pelas conexões criativas propiciadas por essa perspectiva, quanto levada à sério do ponto de vista de um rigor epistelomológico.

O pano de fundo temático dessa investigação é a preocupação e a consciência da relevância, no Direito atual, de se traçar um diagnóstico acerca dos problemas relacionados ao controle constitucional das políticas públicas de efetivação dos direitos fundamentais do homem, notadamente àqueles ligados ao Desenvolvimento social e humano.

A pluralidade, a diversidade, a maleabilidade e fluidez dos referenciais e instituições, são características inequívocas da complexidade que define as sociedades democráticas contemporâneas. Nesse ambiente de transformação e re-significação constante das bases sociais de convívio, poucas são as Instituições políticas que podem permanecer firmes como fundamentos da interação humana em sociedade. Certamente os Direitos Fundamentais da Pessoa Humana assumem esse papel. Porém, não sem dificuldades. Eles próprios sofrem, nos dias atuais, de um grande ruído significacional, visto que, como ponte entre a

399 Saulo Pinto Coelho é mestre e doutor em Teoria do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); é professor efetivo da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás e compõe o corpo docente do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da UFG.

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modernidade (ocidental) e a contemporaneidade (plurilateral), passam por uma abertura semântica rumo à internalização progressiva da diversidade que define nossa atual sociedade. Ao lado da re-significação dos Direitos Fundamentais do Homem, também passam pelo mesmo processo as estruturas sociais de efetivação desses Direitos.

Os Direitos Fundamentais fornecem as bases para a compreensão da dialética entre as permanências e as transformações, entre a unidade e a pluralidade, entre a igualdade e a diversidade, nas sociedades contemporâneas. Os instrumentos, instituições e políticas constitucionais de efetividade do macro-projeto de sociedade justa que tais direitos delineiam, precisam receber uma compreensão igualmente consertada, capaz de dar conta das dialéticas e dos paradoxos da hiper-complexidade social. Tais questões deságuam no debate sobre os próprios instrumentos político-constitucionais de promoção do desenvolvimento humano.

Numa sociedade contemporânea, dotada das características acima citadas, a própria idéia de Desenvolvimento e de Direito ao Desenvolvimento carecem de uma melhor explicação, posto que a reducionista linearidade que a noção moderna de desenvolvimento pode suscitar é incompatível com a inequívoca pluridimenssionalidade que o convívio humano suscita na contemporaneidade. O macro-projeto constitucional de efetivação da Dignidade da Pessoa Humana pode encontrar na idéia de Desenvolvimento Humano Democrático o norte do qual tanto necessita, em tempos em que a indefinição é o que define a sociedade; e em que a anormalidade – o inusitado, suscitado pela transformação – é a regra e não a exceção.

Porém, para servir de norte compreensivo desse debate, ou seja, de referencial compreensivo para a conformação dos direitos fundamentais entre si e desses com os instrumentos e políticas constitucionais de efetivação de tais direitos, a idéia de Desenvolvimento e de Direito Fundamental ao Desenvolvimento precisa ganhar densidade lingüística, doutrinária e jurisdicional, efetivando um contorno normativo integrador da diversidade social, política, econômica e cultural em que vivemos.

Os saberes humanísticos de nosso tempo buscam laços interdisciplinares, inclusive, senão fundamentalmente, no Direito, onde as mais avançadas investigações, as verdadeiras investigações de fronteira, são dadas no plano da interconexão entre Direito e Humanidades. Nesse plano, as ciências jurídicas, num mundo de profundas interconexões e laços criativos, precisam aprender a dosar a racionalidade com a historicidade, como na perspectiva hegeliana (cf. HORTA, 2011), alargando suas fronteiras rumo ao universo da interdisciplinaridade, em analogia aos estudos braudelianos (cf. BRAUDEL, 1983), que redesenharam o conhecimento histórico na identificação de suas interfaces com a Geografia, a Economia e a Cultura400.

400 Tal como bem observado pelos Professores Borges Horta e Mayos Solsona, coordenadores do

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O sentido primordial dessa investigação é, assim, lançar um olhar macro-reflexivo sobre a dinâmica constitucional complexa das sociedades democráticas contemporâneas no que tange à idéia de Desenvolvimento, tendo como enfoque uma abordagem compreensiva da totalidade do fenômeno jurídico, alimentado por abordagens metodológicas adequadas ao imprescindível espírito da interdisciplinaridade, que deve revestir o macro-modelo constitucional de efetivação do desenvolvimento humano democrático, necessariamente plural e multifacetado.

Nesse primeiro ensaio investigativo sobre a temática, a proposta é traçar algumas compreensões sobre os limites do pensamento jurídico tradicional para lidar com o macro-modelo social centrado no Direito Fundamental ao Desenvolmimento Humano Democrático. Propõe-se entender os contornos e panos de fundo compreensivos básicos que permeiam a idéia de Direito Fundamental ao Desenvolvimento, para daí entender como vem sendo estruturada a densificação significacional e jurisdicional desse direito nos Estados Constitucionais Contemporâneos, o que nos levará necessariamente a discutir o próprio desenvolvimento do Direito e seus paradigmas atuais, rumo a uma experiência nomológica não-reducionista e verdadeiramente interdisciplinar.

2. O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E SEUS PRESSUPOSTOS COMPRE-ENSIVOS FUNDAMENTAIS

A Declaração da ONU sobre Direito ao Desenvolvimento, de 1986, comunica de modo cabal que o foco do Desenvolvimento como direito é o esforço pela promoção dos direitos humanos e sociais a todos. Nesse documento já está claramente configurado tratar-se de direito plurifacetado, de caráter não somente econômico, mas também social, cultural e política, que visa ao constante incremento do bem-estar a todos, num ambiente de participação política livre e igualitária de modo que todos possam ter igual acesso à “distribuição justa” dos bens e benefícios produzidos pela sociedade.

O Direito ao desenvolvimento é um direito a que o Estado promova constante planejamento e regulação das atividades sociais tendo como objetivo o incremento do bem estar e a melhoria da qualidade de vida para todos, bem como tendo como foco a justa distribuição dos resultados econômicos e sociais do desenvolvimento. O direito ao desenvolvimento, nesse sentido, é um direito que se traduz no dever do Estado de fomentar e regular as atividades sociais induzindo o incremento igualitário e capilarizado das condições dignas de vida. É um direito a que o Estado haja segundo um plano ou arranjo esconômico-

Grupo Internacional de Pesquisa em Cultura, História e Estado, nas últimas reuniões de trabalho do Grupo.

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social coerente com a promoção do igual e progressivo acesso aos Direitos individuais e sociais da Pessoa Humana. Não é um direito traduzido em norma programática, no sentido tradicional dessa expressão (cf. SILVA, 2010), mas é um direito dotado de programaticidade marcante (cf. BONAVIDES, 1993) é um direito que reveste o Estado de obrigação de condutas e ações, mais do que de obrigações de resultado.

Para a ONU direito ao desenvolvimento traduz-se no correlato dever dos Estados e da sociedade respectivamente de promover e respeitar o desenvolvimento integral dos seres humanos, em suas dimensões econômica, social, política e cultural. Nos consideranda da Declaração considera-se dever dos Estados a promoção da descolonização, a prosperidade econômica e social e a paz, como ações indispensáveis àquilo que as Nações Unidas então entenderam como Desenvolvimento.

O caráter sistêmico da noção de desenvolvimento, para o qual já chamamos atenção em texto anterior (cf. PINTO COELHO; GUIMARÃES, 2011), evidencia-se quando na Declaração deixa-se claro que o Direito ao Desenvolvimento somente se pode compreender, “considerando que todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis e interdependentes, e que, para promover o desenvolvimento, devem ser dadas atenção igual e consideração urgente à implementação promoção e proteção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, e que, por conseguinte, a promoção, o respeito e o gozo de certos direitos humanos e liberdades fundamentais não podem justificar a negação de outros direitos humanos e liberdades fundamentais”.

A Declaração reconhece que o sujeito do direito ao desenvolvimento é a pessoa humana em geral e que o Estado e o detentor do dever primário de promovê-lo, bem como reafirma que esse é um direito inalienável traduzido na igual oportunidade para o desenvolvimento. Nessa perspectiva, o Direito ao Desenvolvimento estabelece, enquanto direito universal do homem, que a toda pessoa humana deve ser oportunizado habilitar-se a participar do desenvolvimento “para nele contribuir e dele desfrutar”. Depreende-se da declaração que o Direito ao Desenvolvimento se subdivide em quatro âmbitos indissociáveis: o direito a participar do desenvolvimento econômico; o direito a participar do desenvolvimento social; o direito a participar do desenvolvimento cultural; e o direito a participar do desenvolvimento político. Da participação plena nesses quatro âmbitos do desenvolvimento resultaria o gozo de toda a plêiade de direitos humanos indispensáveis à realização da Dignidade Humana.

Em que pese a pessoa humana ser tratada como sujeito do direito ao desenvolvimento, convertendo o objetivo das ações estatais quanto a essa questão no dever de garantir que todos os cidadãos sejam beneficiários do

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desenvolvimento, a Declaração comunica que por seu turno todas as pessoas possuem responsabilidade pelo desenvolvimento, na medida da sua situação social e das funções e atividades que desempenham na sociedade, devendo agir todos de modo a escolher os caminhos capazes de guardar sinergia com o acesso igualitário ao bem estar e à prosperidade social. Ademais, é reforçado que o Estado tem o dever de formular políticas sociais para o desenvolvimento cujos resultados positivos possam ser justamente distribuídos entre todos. Assim, enquanto o Estado possui o dever de formular e regular de modo participativo as políticas públicas para o desenvolvimento democrático (cf. PEREIRA, 2008) ou seja com justa e igualitária distribuição dos benecíficios alcançados, devendo fazer seus programas, projetos e ações funcionarem de modo coerente com tais políticas de desenvolvimento, os indivíduos e pessoas privadas, possuem o dever, no âmbito de suas respectivas autonomias, agir segundo as opções mais coerentes com o desenvolvimento democrático.

Chama atenção os artigos quarto e quinto da Declaração, que trata do dever da comunidade de Estado em atuar sinergicamente para estimular a o incremento de desenvolvimento nos países em desenvolvimento. Não é usada a expressão países subdesenvolvidos, mas esses também aqui estariam situados. Haveria, assim, um outro âmbito do Direito ao Desenvolvimento, enquanto direito internacional vinculador e estruturador de relação jurídica entre os Estados Desenvolvidos e os Estados em Desenvolvimento, em que estes gozariam do direito de receber não só a colaboração dos primeiros, mas sobretudo o direito de não serem impedidos pelos primeiros de se desenvolver de modo pleno e acelerado. Trata-se do direito ao desenvolvimento igualitário também no plano internacional. Daqui se desdobram uma série de questões envolvendo a relação entre globalização, auto-determinação e desenvolvimento.

Em suma, o direito ao desenvolvimento é o direito à existência de políticas públicas para o desenvolvimento que: a) não se restrinja ao aspecto econômico, mas contemple também os aspectos social, cultural e político, internalizando essas demais variáveis nas equações econômicas e nas tomadas de decisão relativas ao planejamento econômico (desenvolvimento econômico); b) não incremente as desigualdades entre ricos e pobres, nacionais e estrangeiros, homens e mulheres, patrões e empregados, mas justamente promova a redução dessas desigualdades (desenvolvimento social); c) que garanta haver uma regulação intercomunicada das diferentes áreas da atividade econômica e social, de modo que tais atividades possam retroalimentar um arranjo social de melhoria equânime da qualidade de vida que pense o homem não apenas como trabalhador e consumidor, mas em sua plenitude enquanto sujeito livre, ativo e pensante (desenvolvimento cultural); e d) por fim, um desenvolvimento regulado, planejado e programado democraticamente, em que a sociedade

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como um todo não somente participe desse planejamento e das tomadas de decisão nele contidas, mas também colha democraticamente os resultados desse planejamento (desenvolvimento político).

3. O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E OS PROBLEMAS DE SUA DENSI-FICAÇÃO NOMOLÓGICA E JURISDICIONAL

O direito ao desenvolvimento é considerado como pertencente à categoria dos “direitos fundamentais de solidariedade” (PEIXINHO; FERRARO, 2009). Como tal, o problema de sua densificação jurídica (nomológica e jurisdicional) situa-se no momento da passagem da crise do modelo do Estado Social de Direito aos contornos do emergente Estado Democrático de Direito contemporâneo. Mais que isso, no plano da teoria jurídica, situa-se no momento de superação do paradigma do positivismo jurídico pelos esforços justeoréticos atualmente agrupados como pós-positivistas e neoconstitucionalistas (cf. BARROSO, 2008). O pano de fundo dessa nova perspectiva jurídica, que vem refletindo o desenvolvimento atual do Direito reside no movimento mais profundo das transformações ocorridas no plano da Hermenêutica Contemporânea (STRECK, 2011) que em verdade condensa as transformações relativas à superação do paradigma da moderna filosofia da consciência, para o atual paradigma da contemporânea filosofia da linguagem.

Como direito fundamental de solidariedade, o direito ao desenvolvimento possui um caráter eminentemente principiológico, complexo, transversal e prospectivo, que exige da linguagem jurídica que o densifica, no plano da elaboração normativa e respectiva aplicação nomativa, uma abordagem não-reducionista dos contextos de regulação e aplicação, bem como uma perspectiva interdisciplinar para a construção das estruturas e instrumentos de eficácia do mesmo, que tal como visto, exige a organização de políticas públicas de regulação e indução de um desenvolvimento qualificado em termos democráticos.

Daí se desdobram outros desafios, quais sejam: a) primeiramente, o de se construir uma regulação em abstrato realmente densa e precisa para a tutela do direito ao desenvolvimento, que possa impulsionar uma sistematicidade mínima para a tratativa jurídica desse direito; b) em segundo lugar, o desafio de se procedimentalizar de maneira eficiente os processos de avaliação, fiscalização e licenciamento das atividades privadas que possuem implicação direta na fruição do direito ao desenvolvimento; c) em terceiro lugar, o de se introduzir e capilarizar nas estruturas institucionais da Administração Pública o dever jurídico de zelar por esse direito em todas as ações e atividades da gestão pública, inclusive e sobretudo por meio de Planos e Programas governamentais deveras sinérgicos e coerentes com esse direito; d) por fim, o

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desafio de estruturar e efetivar o controle jurisdicional das atividades privadas e públicas no que tange à garantia desse direito, tanto no plano do controle administrativo, quanto no plano do controle judicial; e) o que implica, ainda, no problema da aplicabilidade direta e imediata desse direito, como direito fundamental, nas situações e nos conflitos concretos.

Quanto à primeira questão, a perspectiva jurídica da modernidade procura isolar a linguagem jurídica (formada por proposições normativas científicas) das demais linguagens científicas (formadas por proposições descritivas), bem como das demais linguagens normativas (formadas por proposições normativas, porém não científicas). Essa é a postura encontrada nos normativismos abstratos, tais como o purismo nomológico kelseniano (cf. REALE, 1999). O resultado dessa postura é duplo: uma regulação jurídica em abstrato extrinsecamente hermética (carente de interdisciplinaridade extrínseca com as áreas não jurídicas do conhecimento), bem como intrinsecamente hermética (carente de uma interdisciplinaridade intrínseca ao próprio Direito, convertendo os diferentes campos do direito em micro-sistemas normativos fechados, com baixo grau de comunicabilidade entre si). Essa departamentalização do direito ocorre em paralelo com a própria setorialização do Estado (GOZZI, 1998, p. 411-412) e forma um ambiente regulatório pouco fecundo para o direito ao desenvolvimento, que tem em sua ontologia um caráter eminentemente transversal. Quanto nos voltamos para áreas como o Direito Ambiental, o Direito Urbanístico, o Direito Sanitário, o Direito Econômico, e outras que diretamente se relacionam com o direito ao Desenvolvimento, como sub-áreas do Direito, tais como o Direito Educacional, o Direito Regulatório dos Serviços Públicos, o Direito Minerário, o Direito Agrário, etc., essa áreas, se pensadas como micro-sistemas, vão organizar um arranjo social cada qual reducionista à sua maneira. Sobre isso, já advertimos (COELHO; MORAIS, 2011, p. 110 et seq.) que é preciso que se supere essa perspectiva jurídica para se pensar a interação necessária entre todas as políticas públicas com suas respectivas relações, frente ao desafio do desenvolvimento democrático.

Talvez o maior desafio que se pode ter hoje nessa seara da construção plenamente interdisciplinar e sistematizada de uma regulação do direito ao desenvolvimento, seja a aquele que se remeta à regulação, licenciamento e fiscalização de empreendimentos privados de grande porte, bem como dos arranjos produtivos locais, regionais e nacionais. No Brasil, essa segunda questão chave do desafio de efetivação direito ao desenvolvimento se traduz no desafio do aprimoramento de instrumentos jurídicos como o licenciamento ambiental (deveria se converter em um licenciamento efetivamente sócio-ambiental401) e do zoneamento ecológico-econômico.

401 Sobre o instituto do licenciamento ambiental no Brasil, cabe ressaltar que a questão não

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A própria Administração Pública, em suas políticas, por vezes carece de perceber na necessidade de consertar a regulação de uma política com a regulação de outra, causando, em certas situações, incoerências intrínsecas quanto ao atendimento ao direito ao desenvolvimento402. Evitar essas incoerências constitui um terceiro desafio-chave.

Quanto ao quarto e quinto desafio apontados, o problemas da densificação jurisdicional do direito ao desenvolvimento também se traduz em necessidades de transformações na própria perspectiva jurídica imperante nos tribunais. É necessário, seguindo a proposta de Dworkin, levar a sério o direito ao desenvolvimento como direito dotado do vigor e do alcance de um autêntico direito fundamental, portanto dotado de máxima aplicabilidade, máxima eficácia e amplitude, cujo limite se dá apenas na necessidade de ponderabilidade com os demais direitos fundamentais em jogo em uma situação concreta. O Brasil carece de uma linguagem jurisdicional do direito ao desenvolvimento; urge construí-la.

Veja-se que essas questões referentes à efetivação do Direito ao desenvolvimento, em que pese transcenderem ao mero campo do Direito, passam também pela efetivação de transformações no Direito contemporâneo, rumo a uma perspectiva integradora e não-reducionista do Direito.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO ATUAL E OS DESAFIOS POSTOS PELO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO

Todas essas questões levantas nos conduzem a considerar que e o Desenvolvimento Democrático, como projeção normativa instrumentalizadora do Direito à Dignidade da Pessoa Humana, impõe ao Direito atual o desafio de evitar dois problemas eminentes: evitar um Desenvolvimento Poiético e evitar um Desenvolvimento Mimético.

Quanto ao desenvolvimento mimético, trata-se de fenômeno que sói ocorrer em países de desenvolvimento tardio.

Após a segunda guerra mundial, as teorias do desenvolvimento postas em circulação eram por demais simplórias. Um estreito economismo levava a

diz respeito à ausência de preocupação à abordagem os impactos sociais nos licenciamentos. O problema centra-se no fato de que, em que pese a previsão jurídica de análise desses aspectos, as características da regulação desse licenciamento e as práticas institucionais entorno do mesmo fazem com que o peso e a capilaridades das discussões ambientais nesses licenciamentos sejam nitidamente maiores do que das discussões e análises centradas nos problemas sociais.402 Quanto a essa questão vide os simbólicos problemas referentes às políticas de estímulo da industria automobilística, que concorre com as políticas de trânsito e acessibilidade (cf. RIBEIRO; FLORY, 2011, p.185-203), e as políticas de estímulo à industria sucro-alcooleira, que por vezes olvida as políticas como a do combate ao trabalho em condições precárias bem como o combate ao desmatamento (cf. COELHO; NASCIMENTO, 2011)

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pensar que, uma vez assegurado o crescimento rápido das forças de produção, seria provocado um conseqüente processo completo de desenvolvimento que se alcançaria a todos ou quase todos pois repercutiria para todas as regiões geográficas e culturais, todos os setores econômicos e todas as classes sociais (SACHS, 1986, p. 30).

As elevadas taxas de crescimento experimentadas no pós-guerra não confirmaram tais projeções, pelo contrário. Nos países industrializados, os problemas sociais típicos (desemprego estrutural, insuficiência da previdência social, baixa tutela dos direitos e necessidades dos idosos, dos deficientes e das demais minorias não produtivas) não foram solucionados de uma maneira estável porque esses problemas não somente volviam, mas se também se somavam a problemas sociais, lógicos e ecológicos novos, quando das inevitáveis recaídas negativas desse crescimento tão veloz (SACHS, 1986, p. 95).

No contexto monista e unificante da globalização (cf. MAYOS, 2012) a reprodução desse modelo simplório de desenvolvimento no contexto do então chamado Terceiro Mundo (aqui estamos a incluir, em termos atuais, tanto os países pobres, quanto os chamados emergentes, ou países de modernidade tardia) produz o fenômeno do desenvolvimento mimético, que é a reprodução do caminho outrora percorrido pelos países industrializados, e provoca a intensificação dos acima citados efeitos indesejados do desenvolvimento reducionista (o mero crescimento econômico) e, consequentemente, o maldesenvolvimento se torna uma realidade tão nefasta quanto o nãodesenvolvimento (COELHO; MELO, 2011b). Constata-se da experiência vivida na segunda metade do século XX uma modernização muito rápida realizada na periferia do mundo capitalista se deu, via de regra, às custas do aumento das desigualdades entre a minoria privilegiada e a maioria dos pobres (SACHS, 1986, p. 97), em detrimento das populações rurais, com custos sociais e ecológicos na maioria das vezes exorbitantes, e conseqüentes danos e problemas quase irreversíveis.

A persistente confusão entre o crescimento e o desenvolvimento mostra-se particularmente grave e intensa no fenômeno do desenvolvimento mimético. Tendo-se em mente que o crescimento continua sendo condição necessária ao desenvolvimento, apesar de não ser, de modo algum, requisito suficiente; assim sendo, nessas situações miméticas, as manifestações do maldesenvolvimento impingem uma revisão dos instrumentos conceituais tradicionalmente empregados na análise da problemática do desenvolvimento (COELHO; MELO, 2011b). Exige-se, portanto, uma postura de revisão crítica dos modelos já empregados e de contextualização permanente dos aspectos que nos paradigmas observados são considerados positivos, para que se possa evitar que, em contextos outros (tais como são os existentes em países de modernidade tardia, como o Brasil), esses aspectos positivos não se convertam em negativos e

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os que já foram tomados como negativos nos modelos paradigmas não venham a se tornar ainda mais problemáticos.

A superação dos estados de crise, cujos sintomas são justamente o esgotamento de um estilo de desenvolvimento apenas parcialmente bem sucedido e empregado em um contexto já passado, exige, em Estados como o Brasil, uma postura institucional de contenção do chamado desenvolvimento mimético. Nossos contextos são outros e, portanto devemos ter, na busca por efetivar o direito ao desenvolvimento, o duplo cuidado de não reproduzir os mesmo erros dos modelos desenvolvimentistas alienígenas e de não transformar os acertos desses em erros, por falta de contextualização e atualização. Afinal, como bem afirma Guimarães (1997, p.16) não é a riqueza – crescimento econômico – em si o fator decisivo ao bem-estar coletivo, mas sim o uso que uma coletividade faz dela.

Quanto ao desenvolvimento poiético, trata-se de fenômeno que ocorre como conseqüência de uma ligação cada vez mais intensa entre Estado e Economia. O desenvolvimento poiético é uma conseqüência de um fenômeno típico da contemporaneidade: o Estado Poiético, distorção economicista do Estado de Direito.

Para Joaquim Salgado (1998, p. 46 et seq.), o Estado de Direito estrutura-se como Estado Ético Mediato, em que o bem comum fundamental que da razão-de-ser e legitimidade ao Estado é comunicado, organizado e efetivado na forma de direitos: os Direitos Fundamentais. Por meio desses, passa a ser possível avaliar com um critério minimamente objetivo de correção as ações do Estado (em sentido amplo, incluindo aí as ações governamentais e legislativas). Os direitos podem ser regulados por meio da linguagem jurídica e podem ser gerenciados, fomentados, promovidos e tutelados pelo Estado, por meio das linguagens, burocrática, gerencial e econômica, que lhe são também próprias. Ocorre que o Estado Social de Direito, ao se fazer como Estado-Interventor, Estado-Empreendedor e Estado-Provedor, somente consegue assim proceder por também se fazer como Estado-Fiscal (GOZZI, 1998, p. 411). Assiste-se, assim, durante o século XX, a uma interação cada vez mais promíscua entre o sistema ético-político-jurídico do Estado e aquele sistema que esse Estado deveria controlar e racionalizar, o sistema da sociedade-civil empreededora, ou sistema de necessidade, o sistema econômico, portanto. Assim, cada vez mais dependente da prosperidade econômica para fazer valer suas ambições sociais, o Estado Social cada vez mais passa a conviver com o risco de se converter em Estado Poiético, ou, melhor dizendo, ocorre o risco que deixar fazer com que a dimensão poiética existente dentro do próprio conceito de Estado (e que deveria nele existir como mero instrumento e não como essencialidade do Estado) suplante a dimensão ética do Estado (cf. HORTA, 2011).

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Num contexto como esse, é sempre um risco o desvirtuamento do desenvolvimento democrático em um desenvolvimento poiético, que é o desenvolvimento sustentado no próprio desenvolvimento, a postura desenvolvimentista solipsista, em que o desenvolvimento passa a ser uma razão em si mesma, afastando-se da sua verdadeira e justa fundamentação, a promoção da dignidade humana, para volver-se para si mesmo e fundamenta-se no aspecto poiético do desenvolvimento que é o crescimento econômico. Quando o critério de desenvolver deixa de ser a promoção da dignidade da pessoa humana para ser a sustentação do próprio Estado, de suas metas, de seu desempenho, a questão acaba por se converter e reduzir ao alcance das metas apenas economicamente estruturadas e compreendidas. Aí, o próprio Estado desvirtua-se como conceito e o desenvolvimento se converte apenas em desenvolvimento econômico, tendencialmente particularizante e excludente, sem conectar-se necessariamente com o desenvolvimento humano, tendencialmente democratizante e includente.

Ao mesmo tempo em que novas compreensões dialéticas e pluridimen-sionais do Direito surgem no horizonte do pensamento jurídico atual (em ge-ral classificadas como compreensões pós-positivistas e neoconstitucionalistas), surgem também visões neo-reducionistas do Direito, da qual podemos indicar como exemplo mais eloqüente a Análise Econômica do Direito (FARALLI, 2000, p. 65 et seq.). Em que pese a busca atual por tratativas realmente interdi-ciplinares, transversais e pluridimensionais dos problemas jurídicos, observa-se que paralelamente ganham espaço na atual teoria do Direito abordagens que, sob a aparência de aproximar o Direito de outras searas do conhecimento, aca-bam por insular o Direito e instrumentalizar a linguagem jurídica como mera resultante de uma outra linguagem não-jurídica. No caso da Análise Econômica do Direito (a atual escola da Law and Economics), a economia para por ser a base de redução explicativa dos fenômenos jurídicos.

Contra essa constatação, os arautos da Law and Economics costumam dizer que a visão da analítica econômica dos fenômenos jurídicos não é reducionista porque, ao contrário do determinismo histórico marxista, que também abordava o Direito como resultante (super-estutura social) das relações econômicas de dominação (infra-estutura social), na atual Análise Econômica do Direito a relação entre Direito e Economia não é de uma causalidade unilateral, do segundo para o primeiro. Compreende-se que, da mesma maneira que a economia tensiona, sugestiona e impulsiona os arranjos regulatórios jurídicos, o Direito e suas transformações autopoiéticas também impulsionam mudanças econômicas, retroalimentando o recíproco sistema relacional entre Direito e Economia.

Em que pese esse esforço da Analise Econômica do Direito por pensar a relação Direito e Economia enquanto relação de recíproca implicação, o problema

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do Direito, que é o problema da efetivação dos Direito Fundamentais do Homem, dentre eles o estruturador Direito ao Desenvolvimento, não pode ser pensado apenas do ponto de vista das variáveis econômicas, muito menos ter a satisfação das metas economicamente estruturadas o seu critério básico de compreensão. O tratamento poiético do Direito acaba por dar às metas econômicas e gerenciais do Estado um caráter de fim-em-si-mesmas que é incompatível com o Estado de Direito. Dentro dessa perspectiva, é necessário ponderar que o problema da efetivação do Direito ao Desenvolvimento não pode ser poieticamente reduzido ao problema do alcance das metas econômicas e gerencias do Estado. Os direitos em-si que compõem o direito ao desenvolvimento humano democrático não se reduzem à variáveis e metas econômicas e fruição desses direitos não necessariamente é alcançada com o atingir de tais metas e a observância de tais variáveis. Em que pese essas metas e variáveis serem importantes indicadores de desenvolvimento, não são garantem necessariamente o desenvolvimento, quanto menos o desenvolvimento qualificado como direito humano, que é o desenvolvimento democrático.

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REFERÊNCIAS

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GUIMARÃES, Roberto Pereira. Desenvolvimento sustentável: da retórica à formulação de políticas públicas. In: BECKER, Bertha K.; MIRANDA, Mariana (org.). A geografia política do desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

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NATURALEZA JURÍDICA Y EFECTIVIDAD DE LAS RECOMENDACIONES DE LA

ORGANIZACIÓN INTERNACIONAL DEL TRABAJO

Jorge Fontoura403

luiz eduardo gunther404

SUMARIO: 1 Introducción; 2 Elaboración normativa de la OIT; 3 Convenios y Recomendaciones, una distinción necesaria; 4 Naturaleza jurídica de las recomendaciones de la OIT; 5 La efectividad de las recomendaciones en el ordenamiento jurídico brasileño; 6 Conclusiones; 7 Referencias.

1. INTRODUCCIÓN

Como si en un inusual reflujo histórico, surge una “internacional” ahora no más laboral, y sí financiera y especuladora, indiferente a los melindres de la historia o geografía: ubi bene ibi patria. Parece realizarse, con efecto, lo que Pio XI vaticinó, con premonición pontificia, como il imperialismo internazzionale del denaro.

Ante tal cuadro, la efectividad jurídica de las normativas de la OIT, a merced de su naturaleza universal, gana importancia única en la historia de las relaciones laborales. Solamente ellas, como nuevas órbitas jurisdiccionales, están aptas a hacer frente al carácter también universal de los desdoblamientos jurídicos de la mundialización de la economía, por su lado más perverso, que “cosifica” el trabajo, flexibilizando y reduciendo derechos ancestrales en pro de la ideología de maximización del lucro, disuadida en el binomio competitividad-productividad.

2. ELABORACIÓN NORMATIVA DE LA OIT

Teniendo la relevante misión de cumplir en materia de dignif icación del trabajo y de protección de los trabajadores y de sus familias, dispone la OIT de dos instrumentos jurídicos fundamentales: “los convenios y

403 Doctor en Derecho Internacional por la Universidad de Parma y por la USP; Profesor titular y examinador de los concursos de ingreso al Curso de Preparación para la Carrera de Diplomático del Instituto Rio Branco; abogado, árbitro internacional y consultor.404 Profesor del Centro Universitario Curitiba – UNICURITIBA; Juez Camarista de Trabajo junto al TRT de la 9ª. Región; Doctor en Derecho del Estado por la UFPR; Miembro de la Academia Nacional de Derecho del Trabajo, de la Academia Paranaense de Derecho del Trabajo, del Instituto Histórico y Geográfico de Paraná, del Centro de Letras de Paraná y de la Asociación Latino-Americana de Jueces de Trabajo – ALJT.

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las recomendaciones aprobadas por la Asamblea General por mayoría de 2/3. Las primeras son obligatorias luego de su ratificación por los Estados. Las segundas son meramente indicativas”405.

Interesa, particularmente, en la actividad de la OIT, la creación de normas internacionales, con la finalidad de que la legislación del trabajo de los Estados miembros realice las finalidades sociales de la organización, como esclarece Lobo Xavier: “Los convenios y las recomendaciones son aprobadas en la Conferencia por mayoría de dos tercios”. No contiene un régimen con eficacia inmediata en los ordenamientos del Estado, ya que este tiene el derecho de ratificar o no los textos aprobados, debiendo, sin embargo, en todo caso informar periódicamente acerca del estado de la legislación y de las prácticas nacionales en relación a los aspectos planteados.

Los convenios, después de haber sido ratificadas, establecen la obligación a los respectivos estados de aplicarlas, conformando su legislación y práctica a los principios en ellas contenidos, quedándose tal aplicación sujeta a control. “Las recomendaciones constituyen una orientación y anteceden, muchas veces, a la elaboración de una convención sobre la materia”406.

Según Cesarino Júnior, son fuentes del derecho internacional del trabajo sólo los reglamentos de los órganos constitutivos de la OIT y los convenios internacionales en materia de trabajo, cuyos proyectos aprobados por las Conferencias Generales de la OIT, sean ratificados por considerable número de Estados participantes:

“Los convenios internacionales del trabajo no tienen, por sí mismas, efecto obligatorio; es por su ratificación que un Estado asume la obligación de ponerlas en ejecución. Su promulgación en la órbita del derecho interno introduce las disposiciones de la convención en el orden jurídico nacional. Para cada convención se establecen reglas específicas relativas a su entrada en vigor y se encuentran contenidas en sus cláusulas finales. Hay instrumentos idénticos a los convenios en cuanto a su forma y a su elaboración, pero que no deben obligatoriamente, como los convenios, ser sometidos a ratificación. Se trata de resoluciones, que son meras invitaciones a los Estados a seguir ciertas reglas”407.Explicando los convenios de la OIT, Amauri Mascaro Nascimento refiere

405 PEREIRA, André Gonçalves; QUADROS, Fausto de. Manual de direito internacional público. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1997. p. 557. La traducción nos pertenece. 406 XAVIER, Bernardo da Gama Lobo. Iniciação ao direito do trabalho. Lisboa: Editorial Verbo, s/d. p. 327.407 CESARINO JÚNIOR, Antônio Ferreira. Direito social. São Paulo: LTr e Edusp, 1980. p. 83. La traducción nos pertenece.

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que: “La Conferencia de la Organización Internacional del Trabajo se reúne periódicamente votando decisiones que pueden obligar a los Estados-miembros. Esas deliberaciones revisten la forma de convenios internacionales del trabajo. Difieren, por lo tanto, de los tratados internacionales porque, al contrario de éstos, no resultan de entendimientos directos entre los países interesados, pero sí de discusiones ocurridas en el marco de la OIT, en cuyo seno es procesada su elaboración y posterior aprobación en carácter oficial. Por consiguiente, los convenios internacionales son normas jurídicas emanadas de la Conferencia Internacional de la OIT, destinadas a constituir reglas generales y obligatorias para los Estados deliberantes, que las incluyen en su ordenamiento jurídico interno, observadas las respectivas prescripciones constitucionales”408.

Al discurrir acerca de los actos jurídicos de las Organizaciones Inter-nacionales, Rodríguez Carrión distingue aquellos cuyo contenido es obligato-rio en sí, no obstante exige un comportamiento formal por parte de los Esta-dos: “... Así, el artículo 19 de la Constitución de la Organización Internacional del Trabajo dispone ciertas obligaciones específicas de comportamiento de los Estados con relación a los convenios o recomendaciones y que no implican obligatoriedad alguna al respecto de sus contenidos. Conforme al párrafo 5º de dicho precepto,

“En el caso de un convenio:

a) el convenio se comunicará a todos los Miembros para su ratificación;b) cada uno de los Miembros se obliga a someter el convenio, en el término de un año a partir de la clausura de la reunión de la Conferencia (o, cuando por circunstancias excepcionales no pueda hacerse en el término de un año, tan pronto sea posible, pero nunca más de dieciocho meses después de clausurada la reunión de la Conferencia), a la autoridad o autoridades a quienes competa el asunto, al efecto de que le den forma de ley o adopten otras medidas;”.

Por su parte, el párrafo 6º dispone,

“En el caso de una recomendación:

a) la recomendación se comunicará a todos los Miembros para su examen, a fin de ponerla en ejecución por medio de la legislación nacional o de otro modo;

408 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Compêndio de direito do trabalho. SP: LTr e Edusp, 1976. p. 72-73. La traducción nos pertenece.

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Con estos presupuestos el Estado habrá cumplido su obligación jurídica mediante el respetoso cumplimento de su obligación de comportamiento, sin que dicho comportamiento se vincule a ninguna obligación del resultado pretendido por el contenido material del acto en cuestión”409.

Francisco de Assis Ferreira, por su parte, explicita que las Conferencias de la OIT alcanzan la plenitud de su finalidad a través de tres instrumentos:

“a) convención, contienen normas que pueden ser objeto de ratificación por los Estados-miembros;b) recomendaciones, cuya materia no es apropiada hasta el momento para ser objeto de convención;c) resolución, simple sugerencia para que los Estados-miembros adopten las medidas propuestas”410.

3. CONVENIOS Y RECOMENDACIONES, UNA DISTINCIÓN NECESARIA

Las recomendaciones son estimadas como razonables siempre que la materia discutida no admita, aún un tratamiento convencional, ya sea por la precariedad político-jurídica de su adopción, o por el carácter incierto del tema suscitado.

Balmaceda presenta cuatro distinciones principales entre convenios y recomendaciones, tomando en cuenta sus estructuras normativas:

1) lo convenios constituye una forma de tratado internacional, no así la recomendación; 2) lo convenio puede ser, por consiguiente, objeto de ratificación por el correspondiente Estado, lo que lógicamente no puede ocurrir con una recomendación; 3) ratificada una convención, el Estado “tomará las medidas necesarias para efectivizar las disposiciones de dicha convención” (Constituición de la OIT, art. 19, Nº 5, letra d). Siendo improcedente la ratificación de recomendaciones, no estando vigente, pues, a su respecto, dicha obligación por parte de los Estados; 4) Mientras que en el caso de los convenios pueden presentarse diversos problemas de interpretación, vigencia, denuncia, revisión y efectos en caso de la retirada de un Estado de la OIT, todos derivados de la ratificación del instrumento, ninguna de esas situaciones tiene lugar en lo que concierne a las recomendaciones411.

409 CARRIÓN, Alejandro J. Rodríguez. Lecciones de derecho internacional público. 4. ed. Madrid: Tecnos, 1998. p. 258. La traducción nos pertenece. 410 FERREIRA, Francisco de Assis. Lições de direito do trabalho. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1969. p. 495. La traducción nos pertenece. 411 MONTT BALMACEDA, Manuel. Princípios de derecho internacional del trabajo. 2. ed. Santiago de Chile: Editorial jurídica de Chile, 1998. p. 135. Traducción nos pertenece.

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El tema, de suma importancia, mereció tratamiento detallado de Nicolas Valticos, en su clásico “Derecho Internacional del Trabajo412”, que procuramos resumir así:

1) la convención es el procedimiento – tipo de la reglamentación interna-cional del trabajo, siendo ella solamente pasible de ser objeto de ratificación y crear una red de obligaciones internacionales, seguidas de medidas de control;

2) la recomendación es un accesorio, estando su papel definido a partir del principio general según el cual se adopta esa forma cuando el objeto tratado no será de adopción inmediata de una convención. Pueden ser distinguidas tres funciones principales de la recomendación: a) es la forma más apropiada cuando un tema aún no está maduro para la adopción de una convención, y la recomen-dación derivada de una autoridad de la Conferencia contribuyó para la creación de una consciencia social común, abriendo espacio para la adopción posterior de una convención; b) una Segunda función es la de servir de complemento a una convención, pudiendo ser útil para inspirar a los gobiernos, aunque sin el mismo carácter obligatorio que los términos de una convención; c) la recomendación tie-ne un valor intrínseco en cierto número de casos: cuando las normas que contiene poseen un carácter técnico detallado, esto puede ser útil a las administraciones nacionales, contribuyendo para la elaboración de una legislación uniforme sobre la materia, dejando, no obstante la posibilidad de implementar adaptaciones con-forme a la necesidad de los países; la misma cosa ocurre cuando la recomenda-ción trata de cuestiones en las cuales las situaciones y las prácticas cambian de un país a otro de tal manera que difícilmente se podría pensar en compromisos internacionales estrictos respecto de las medidas preconizadas;

3) la recomendación cumple así, junto a la convención, una función útil en varios aspectos, residiendo la diferencia existente entre los dos instrumen-tos en el aspecto relativo a la eficacia, una vez que, por definición, una re-comendación no puede ser objeto de compromisos internacionales y que los Estados disponen del margen que deseen para darle el efecto que juzguen opor-tuno, aunque estén obligados a someter tanto las recomendaciones, como los convenios, a las autoridades nacionales competentes, informando acerca de la ejecución de esta obligación y respecto al curso dado a tal o cual recomen-dación. Estas medidas no son comparables, sin embargo, con las obligacio-nes que la ratificación de una convención impone y con el control sistemático de que es objeto la ejecución de tales obligaciones;

4) aunque la recomendación sea considerada como la pariente pobre de la convención, deben tenerse presentes dos puntos: a) dada la naturaleza de las cuestiones que generalmente son objeto de recomendación, la alternativa no siempre se presenta entre una recomendación y una convención, sino entre una

412 VALTICOS, Nicolas. Derecho internacional del trabajo. Trad. Maria José Triviño. Madrid: Tecnos, 1977. p. 234-236.

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recomendación y la ausencia de toda norma internacional o en la existencia de una convención que obtendría tan pocas ratificaciones que perdería toda autoridad; b) es indiscutible que algunas de las recomendaciones han tenido una influencia considerable en numerosos países, siendo rutilante ejemplo la recomendación nº 119, de 1963, acerca de la Terminación de la Relación de Trabajo.

4 . NATURALEZA JURÍDICA DE LAS RECOMENDACIONES DE LA OIT

Siguiendo a Arnaldo Süssekind, los convenios de la OIT, al ser ratificados por Brasil, constituyen auténticas fuentes formales de derecho. Sin embargo, “las recomendaciones aprobadas por la Conferencia Internacional del Trabajo actúan apenas como fuentes materiales de derecho, porque sirven de inspiración y modelo para la actividad legislativa”413.

El mismo autor explicita la obligatoriedad de sumisión de los instrumentos normativos de la OIT a la autoridad nacional competente, conforme el derecho público interno del Estado-Miembro, en el plazo de dieciocho meses de la deliberación: “los convenios para que, una vez aprobados (en el caso de Brasil, por el Congreso Nacional), sean formalmente ratificadas por acto jurídico; las recomendaciones, para que el órgano competente decida sobre la conversión de las reglas sugeridas, en el todo o en parte, en normas jurídicas de eficacia nacional, conforme establece el mismo art. 19 de la Constitución de la OIT”414.

Celso Lafer, al analizar la convención, prevista en el recurrente art. 19 de la Constitución de la OIT, resalta la importante característica del quórum de deliberación, debiendo ser aprobada por 2/3 de los delegados presentes en la Conferencia, lo que había llevado a Georges Scelle a entender que a voluntad propia de la Organización, por los 2/3 de los delegados presentes, crea el acto regla. La obligación que el Estado asume, por la ratificación y promulgación de la convención, siempre según Scelle, por ser un elemento conexo, dependiente de este mecanismo de creación de normas, es un simple acto –condición, vinculado a la voluntad jurídica expresa de la OIT, por fuerza de la votación mayoritaria de los 2/3415.

Según Lafer, “en lo referente a la convención, la originalidad mayor de la OIT está en el mecanismo da su adopción por la regla de los 2/3, por lo tanto, acto-regla, y su aprobación y ratificación posterior por los Estados, como acto-

413 SÜSSEKIND, Arnaldo. Comentários à Constituição. 1º Vol. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1990. p. 336. La traducción nos pretenece. 414 Idem.415 LAFER, Celso. A Organização Internacional do Trabalho. Obra coletiva Tendências do direito do trabalho contemporâneo. III Vol. SP: LTr, 1980. p. 332. (rever referência) La traducción nos pertenece.

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condición416”. Menciona, aún, el mismo autor, “que por su propia naturaleza, las recomendaciones no son ratificadas por los países-miembros de la OIT, como ocurre con los convenios, siendo por eso menos convincente. Por esa razón, las recomendaciones frecuentemente son, para usar a semejanza de lo que emplea Vicente Marotta Rangel, el soft law que antecede al hard law de la convención”417.

Al estudiar la naturaleza jurídica de esos dos importantes documentos, João Mota de Campos418 esclarece que los convenios de la OIT se distinguen de la generalidad de las otros convenios internacionales por un trazo significativo: el Estado no está obligado a ratificarla, pero por fuerza del art. 19, párrafo 5º, de la Constitución de la OIT, las autoridades gubernamentales deben someterla a ratificación al órgano nacional competente, lo que no ocurriría con las recomendaciones, que no están sujetas a ratificación por los Estados-miembros, teniendo apenas la finalidad de proveer orientaciones a los Estados en la conducción del orden interno y en la adopción de legislación. Serían diferentes, entonces, porque mientras la convención es el “instrumento de la uniformización del derecho socio-laboral en los Estados que la ratifican”, recomendación sería “instrumento de aproximación de las legislaciones de los Estados que aceptan darle seguimiento, implementándola más o menos fielmente en el orden jurídico interna”419.

Acerca de la recomendación, de forma contundente, Evaristo de Mora-es señala que hay igualmente expresa exigencia de su sumisión a la autoridad competente en el derecho interno, aunque sin necesidad de ratificación for-mal. Sin esta, no obstante convertida en ley o ya estando en la respectiva legisla-ción interna en consonancia con su texto, no se queda el Estado-miembro liberado de los informes anuales. Les cabe informar periódicamente al Director General de la Repartición Internacional del Trabajo (RIT) respecto al estado actual de la legislación interna y de las medidas tomadas para su efectiva aplicación420.

Siempre en el mismo diapasón, Néstor de Buen precisa que los convenios a pesar de las distinciones ya señaladas equivalen a un tratado celebrado entre Estados; las recomendaciones son simples sugerencias que se dirigen a los Estados para que, si fueran aceptadas, se formule un envío al legislativo nacional421.

416 Idem.417 Ibidem, p. 331.418 CAMPOS, João Mota de. Organizações internacionais. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. p. 407-408.419 Ibidem, p. 409.420 MORAES FILHO, Evaristo de; MORAES, Antonio Carlos Flores de. Introdução ao direito do trabalho. 7. ed. São Paulo: LTr, 1995. p. 234.421 BUEN, Néstor de. Derecho del trabajo. Tomo primeiro. 3. ed. México: Porrúa, 1979. p. 390.

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Mario de la Cueva enseña que el art. 19 de la Constitución de la OIT establece la diferencia entre los convenios y las recomendaciones: lo primero es equivalente a un tratado celebrado por los poderes ejecutivos de los estados, y debe ser aceptado o rechazado en sus términos, sin que puedan introducirse en él modificaciones. En contrapartida, la recomendación es una sugerencia que se dirige a los estados y en caso de que, si es aceptada, se formule un proyecto de ley, en armonía con ella, para ser discutido por el poder legislativo422. De la Cueva, resume aún esas diferencias en una fórmula que le parece apropiada: la convención, ratificada por el órgano competente del estado, se transforma automáticamente en derecho positivo, mientras la recomendación necesita una ley posterior que positive sus principios423.

Examinando, las recomendaciones de carácter internacional, QuocDinh, las define: “La recomendación es un acto que emana, un principio, de un órgano intergubernamental y que propone a sus destinatarios un determinado comportamiento”424. Y menciona la definición de recomendación propuesta en 1956 por M. Virally: “resolución de un órgano internacional dirigida a uno o varios destinatarios (e implicando) una invitación a la adopción de un determinado comportamiento, acción o abstención”425. Aduce aún, cuanto a sus grados de coercibilidad, que la recomendación es un acto desproveído de efectos obligatorios. El sentido jurídico del térmico coincide con su sentido corriente. Los destinatarios no son obligados a someterse y no cometen infracción en el caso de no respetarla. Advierte, sin embargo, acerca del valor normativo de las recomendaciones: “La falta de fuerza obligatoria de las recomendaciones no significa que no tengan cualquier alcance. Si fuera ese el caso, sería difícil explicar la obstinación de los debates que condujeron a su adopción. El impacto político es muchas veces fundamental y también su valor jurídico no es de despreciar”426.

En relación a sus efectos jurídicos nos muestra Dinh que ciertas recomendaciones se benefician de efectos jurídicos reforzados, no obstante permaneciendo, en sí mismas, actos no obligatorios. Y explica: los medios de presión indirectos aplicados para ese fin distinguen según a la aplicación que se deba proceder por parte de los Estados o de los órganos de organizaciones internacionales, y según el problema se pone en un contexto de simple cooperación o en una organización integrada. “Tratándose de Estados, el

422 LA CUEVA, Mario de. El nuevo derecho mexicano del trabajo. Tomo I. 6. ed. México: Porrúa, 1980. p. 36.423 Ibidem, p. 36-37.424 DINH, Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito internacional público. Trad. Vítor Marques Coelho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. p. 343.425 Ibidem, p. 335.426 Ibidem, p. 252-253.

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ejemplo clásico es proporcionado por los actos de las organizaciones competentes para adoptar proyectos de convenios sobre la forma de recomendaciones”427.

No es ocioso recordar lo que menciona el art. 19, ítem seis (6), de la letra b, de la Constitución de la OIT: “cada uno de los Miembros se obliga a someter la recomendación, en el término de un año a partir de la clausura de la reunión de la Conferencia (o, cuando por circunstancias excepcionales no pueda hacerse en el término de un año, tan pronto sea posible, pero nunca más de dieciocho meses después de clausurada la reunión de la Conferencia), a la autoridad o autoridades a quienes competa el asunto, al efecto de que le den forma de ley o adopten otras medidas;”, art. 19, ítem seis (6), de la letra b.

Se detiene ahí cierta flexibilidad de la obligación jurídica asumida, conforme dice: “las autoridades nacionales conservan plena libertad de decisión sobre la oportunidad de transformar la recomendación en norma interna”428.

Resulta imperioso relevar el control a posteriori de las recomendaciones, bien como el papel pionero de la OIT sobre este tema, así expresa QuocDinh: “Las técnicas más utilizadas continúan siendo los procesos de control a posteriori apoyados en la obligación para los Estados de proporcionar informes periódicos, de responder a cuestionarios o de explicar sus demoras ante órganos políticos o peritos (...).La OIT desempeñó un papel pionero al respecto; su experiencia se generalizó (ONU, OCDE, OTAN, etc.) en ámbitos tan diversos como la protección de los derechos del hombre, la coordinación de las políticas económicas y el desarmamiento”429. 5. EFECTIVIDAD DE LA RECOMENDACIÓN DE LA OIT DEL ORDENAMIENTO JURÍDICO BRASILEÑO

Brasil parece aún no haber definido bien como deben ser recibidas las recomendaciones de la OIT en su territorio. Tal situación puede ser verificada recientemente cuando fue promulgada la Convención nº 182, que trata de la “Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e a Ação Imediata para sua Eliminação”. Con efecto, el mismo Decreto que promulgó la Convención nº 182, también “promulgó”, por así decir, la Recomendación nº 190, y la publicó, en copia adjunta430.

Tal procedimiento, como se vio, contraría la posición doctrinaria predominante que dice que la convención es un tratado, sujeto a ratificación, pero no la recomendación, que se constituye en invitación a la adopción de un proyecto de ley, para que sea discutido por el poder legislativo.

427 Ibidem, p. 349.428 Idem.429 Idem.430 Decreto nº 3.597, de 12-01-2000. Revista LTr, Vol. 64, nº 09, septiembre de 2000, p. 1214/1218

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La confusión terminológica, o conceptual, surgió, aparentemente, porque tanto la convención como la recomendación exigirían sujeción a los Estados-Miembros y serían pasibles de control sistemático.

En cuanto al procedimiento que incumbe prácticamente a los Estados-miembros, se tiene como asentado que la convención se destina a ser enviada para ratificación (art. 19, ítem 5, de la letra a, de la Constitución de la OIT); y en la recomendación, su efectividad debe darse por medio de una ley nacional o por cualquier otra forma a la sugerencia de las Naciones, como estipula o art. 19, ítem 6, de las letras a, de la Constitución de la OIT.

En cuanto al control ejercido por la Organización acerca los convenios y recomendaciones aprobados por la Conferencia Internacional y enviados a los Estados-Miembros, se observa que: a) en cuanto a los primeros, obtenido el consentimiento de la autoridad competente, el Estado-miembro comunica la ratificación al Director-General de la Repartición Internacional del Trabajo y toma las medidas para efectivizar las disposiciones; no habiendo asentimiento, ninguna obligación tiene el Estado-miembro, excepto informar el Director-General acerca de la legislación y práctica observada en relación al asunto de que trata la comunicación (art. 19, ítem cinco (5), e la letra d/e de la Constitución duo II); b) en cuanto a las segundas, los Estados-miembros dan conocimiento al mismo Director-General de las medidas tomadas para someter la recomendación a la autoridad competente, y sobre la legislación y práctica observada relacionada al asunto de que trata la recomendación, art. 19, ítem 6, de las letras c/d, de la Constitución da OIT.

No poseyendo la recomendación status, o naturaleza jurídica de tratado, es equívoca la invocación del art. 84, VIII, de la CF/88, y la promulgación y publicación conjunta de la Recomendación y de la Convención por Decreto Ejecutivo.

En ese sentido, más aún, se pronunció el Consultor General de la República Dr. Adroaldo Mesquita da Costa, en dictamen del 27 de marzo de 1968, en el cual aseveró que “las Recomendaciones de la OIT” “tratan de materia de orden social e no se destinan a crear compromisos internacionales” e que “deben ser sometidas a los órganos técnicos del Ministerio de Trabajo, los que elaborarán el proyecto de ley a ser ofrecido al Congreso Nacional, se así lo entendiera el Poder Ejecutivo”431.

Ya Rezek había detectado esa incorrección en el envio de la recomendación, afirmando haber “registro, na história recente do parlamento brasileiro, da aprovação de recomendação da Conferência Internacional do Trabalho, mediante decreto legislativo (Dec. Leg. nº 51, de 30 de junho de 1974, aprovando a Recomendação nº 139, adotada na 55ª sessão da OIT). Não há inconveniente algum em que o governo envie ao Congresso o texto dessas

431 DOU de 18 de abril de 1968.

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recomendações, que pretendem operar como fonte de inspiração legislativa. O erro está em recebê-las como se fossem tratados, e em aprová-las por decreto legislativo, como que supondo possível a sua ratificação”432.

La reciente Exposición de Motivos nº 189, del 16 de junio de 2000, del Ministerio de Relaciones Exteriores, enviada por el Ministro de Estado interino, de Relaciones Exteriores, al Señor Presidente de la República, esclarece bien esa cuestión: “Foram encaminhadas em 1988 à apreciação do Congresso Nacional Recomendações adotadas pela Conferência Internacional do Trabalho em diversas ocasiões, no período de 1962 a 1985. O Relator da mensagem na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado federal concluiu que não caberia o exame por aquela egrégia Comissão, uma vez que as Recomendações, diferentemente das Convenções da OIT, são meramente exortatórias e não possuem caráter impositivo e que devem, tão somente, ser apresentadas às autoridades nacionais que podem legislar internamente sobre a matéria” 433.

Con alguna salvedad el Ministro de Estado interino, de Relaciones Exte-riores que: “Embora as Exposições de Motivos nº 10, de 14 de janeiro de 1987 e nº 102, de 14 de abril de 1987, que deram origem à mencionada Mensagem, tenham indicado que, nos termos do Artigo 19, parágrafo 6, inciso (d), da Cons-tituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT), as Recomendações não são consideradas documentos vinculatórios, mas deveriam ser submeti-das às autoridades competentes, objetivando tão somente que delas tomassem conhecimento, não há na Mensagem nº 165/1988 referência explícita de que não caberia aprovação legislativa da matéria”434.

Finalmente, somete el Ministro a la apreciación del Presidente de la República la Exposición de Motivos, acompañada del Proyecto de Mensaje al Congreso Nacional: “que solicita a suspensão da apreciação pelo Poder Legislativo de Mensagem nº 65/1988, pelo qual foram encaminhados os textos das Recomendações adotadas pela Conferência Internacional do Trabalho, em diversas ocasiões, no período de 1962 a 1985”435.

De todo oportuna, pues, la exposición hecha respecto de la recomendaci-ón que, sin embargo se asemeja, en la forma de aprobación por la Conferencia Internacional del Trabajo de la OIT, quórum de 2/3, a la convención, con esta no se confunde, ya que una Convención de la OIT es igual a un Tratado Internacional y una Recomendación de la OIT es una invitación a los Estados-Miembros para que adopten las medidas en ella preconizadas por intermedio de su legislación nacional.

Por fin, las Resoluciones y Conclusiones de Reuniones Especiales, que

432 REZEK, J. F. Direito dos tratados. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 159.433 O texto da EM nº 189, DAI- MRE – PAIN, de 16-06-2000. 434 Texto antes citado.435 Texto anteriormente citado.

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también se constituyen en normas emanadas de la OIT, son consideradas por algunos autores como constitutivas de derecho internacional del trabajo. Acerca del tema, se refiere Balmaceda que: “As resoluções adotadas pela Conferência Internacional do Trabalho representam, em geral, valiosas pautas destinadas a orientar aos Estados e à própria OIT em matérias de sua competência”. Algunas han dado sitio a arduas discusiones en el seno de la Conferencia; otras constituyen verdaderos principios para los órganos de fiscalización de la OIT, como sucede, por ejemplo, con las resoluciones acerca de la “Independência do Movimento Sindical” e sobre “os Direitos Sindicais e Suas Relações com as Liberdades Civis, adotadas, respectivamente, nas Conferências de 1952 e 1970” 436.

A esas normas deben agregarse las conclusiones de las “Reuniões Especiais, todas destinadas a orientar por intermédio da OIT a política social dos Estados em aspectos específicos” 437.

6. CONCLUSIONES

La indudable importancia de la efectividad de las normas de la OIT, en un momento em que asistimos uma deconstrucción de derechos y garantías laborales resplandece en el siempre presente recuerdo de João Oreste Dalazen: “a OIT somente ganhará maior expressão internacional à medida em que os padrões mínimos de proteção ao trabalho que aprovar estiverem atrelados em pactos de comércio global. Idealmente, é indispensável que a OIT e a Organização Internacional do Comércio (OMC) deem-se as mãos de modo a que no comércio internacional haja exigência efetiva das normas mínimas universais de proteção do trabalho”438.

Si fuera cierto que los convenios y recomendaciones de la OIT, aún que con diferente grado de la norma cogente, posee su importancia maximizada en el actual contexto internacional de las relaciones de trabajo, en vista de los vientos y mareas de la globalización, no siendo menos cierto que su efectividad reposa en la lista y correcta adhesión que la comunidad internacional venga a conferirles. Estados que no incorporan o que dan tratamiento equivocado a las normativas de la OIT, colaboran para la ruptura de un recorrido civilizatorio irrenunciable, delante del cual todos somos compelidos por el deber de la fianza.

436 437 438 DALAZEN, João Oreste. Relatório de participação na 88ª Reunião da Conferência Internacional do Trabalho – Genebra – 2000. Revista do TST. vol. 66, nº 3, julho a setembro de 2000. Brasília-DF, p. 242-243.

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Erradicación de la explotación de la mano de obra infantil en Brasil: Una Cuestión de respecto a la dignidad Humana.

Eradication of the explotación of child labor in Brazil: A Question of respect for human dignity.

ViViane Coêlho de SélloS Knoerr

Doctora en Derecho del Estado – Derecho Constitucional por la Pontifí-cia Universidad Católica de São Paulo - PUC/SP; Maestría en Derecho de las Relaciones Sociales por la Pontifícia Universidad Católica de São Paulo – PUC/SP; Especialista en Derecho Procesal Civil por la Pontifícia Universidad Católica de Campinas - PUCAMP/SP; Profesora Universi-tária de Graduación y Pós-graduación; Abogada; Pesquisadora Cientí-fica, Professora de Maestría y Coordenadora del Programa de Maestría en Derecho Empresarial y Ciudadania del Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.

[email protected]

[email protected]

Fernando guStaVo Knoerr

Doctor en Derecho del Estado – Derecho Administrativo por la Uni-versidad Federal do Paraná - UFPR; Maestría en Derecho del Estado – Derecho Administrativo por la Universidad Federal do Paraná - UFPR; Profesor Universitário de Graduación y Pós-graduación; Abogada; Pes-quisador Científico, Professor de Maestría del Programa de Maestría en Derecho Empresarial y Ciudadania del Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.

[email protected]

[email protected]

Sumario: 1. El problema de la dignidad humana en la infancia y en la adolescencia; 2. Exploración del niño, del adolescente y la violencia urbana; 3. La realidad brasileña; 4. Proyectos para la erradicación de la exploración del trabajo infantil; 5. Presión comercial y programas internacionales; Bibliografía.

Palabras-Llave: Dignidad humana; erradicación de la exploración; el trabajo infantil.

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RESUMEN

El presente artículo objetiva establecer una reflexión sobre esta arma silenciosa contra el desarrollo social y regional que es el problema de la exploración de la mano de obra infantil y tejer un análisis relativo al liame que ensambla las causas y consecuencias de esta práctica, por medio del estudio de sus diversas caracteristícas, provocando una discusión sobre la naturaleza jurídica del vínculo entre el menor de edad empleado y su patrón, sin, entretanto, proponerse agotar el asunto, apenas buscando traerlo para el mundo academico, con el objetivo de suscitar las ideas de justicia, derechos fundamentales, dignidad humana y derechos sociales, además de analizar los proyectos nacionales que tienen por finalidad la erradicación de la exploración del trabajo infantil, las formas de presión comercial y los programas internacionales para su erradicación.

Keywords: human dignity; eradication of exploration; children work.

ABSTRACT

The present article intent to promote a reflection concerning this silent arm against the social and regional debelopment that is the problem of children work and to set up an analysis about the intermission that joins the causes and the consequences of this practical, above a study of it’s different characteristics, moving a discussion about the legal nature of the bond between the child worker and the employer, without viewing a conclusive approach, but only getting it to the academic world trying to suscitate the justice idea, fundamental rights, human dignity and social rights, and also analysis the national projects to the end of children labour exploration, the forms of commercial pressure and the international programs to it’s eradication.

1. EL PROBLEMA DE LA DIGNIDAD HUMANA EN LA INFANCIA Y EN LA ADOLESCENCIA.

Todo hombre es digno de respecto, desde su concepción hasta la muerte. 439

439 Véase en André Franco MONTORO. La Cultura de los Derechos Humanos – Importancia de la Declaración Universal de los Derechos del Hombre en el siglo XX. Carlos Aurélio Mota de SOUZA y Roberto BUENO (orgs.). 50 años de Derechos Humanos p. 39: “Conforme la Declaración Universal de los Derechos de la Persona Humana, el ser humano pasa a ser afirmado “contra toda aquella tradición de cepticismo, de indiferencia, una tesis que representa um valor fundamental. Significa la afirmación de que, allá de las voluntades de los poderosos, arriba del poder economico, del poder político, existe um valor fundamental, que es la dignidad individual de todas las personas, de toda la familia humana. Ese documento es firmado por todas las naciones. Algunas Constituciones, como la Española, declaran expresamente la Constitución como parte integrante. Otras Constituciones si no lo afirman expresamente (no hacen referencia expresa a

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No obstante el problema de la injusticia social, el discurso empresarial se vuelve hacia el comprometimiento para con el desarrollo sustentable de la economia, los recursos naturales y los valores perseguidos por la Constitución, presupuestos de una sociedad libre, justa y solidária, basada en la valorización del trabajo humano, en la igualdad de derechos y en la protección del niño y del adolescente, como actos de responsabilidad social que deben ser pautados en las cuatro virtudes cardinales preconizadas por Santo Tomás de Aquino: “prudencia, justicia, fortaleza y templanza”.440

Vivimos en una sociedad en que la mayoría de población vive y cria sus niños en condiciones precárias, dada la problemática de la desigualdad en la distribuición de renta, lo que reduce las posibilidades de ascensión individual. Sin embargo, es por el crecimiento y desarrollo de los indivíduos que se construye un Estado fuerte, siendo imperativa e imprescindible la erradicación de la pobreza, de la marginalización y del total analfabetismo, funcional o político. 441 De acuerdo con las palabras de Maria Marta Seguin, la exploración del trabajo infantil es considerada como fuerza de trabajo. Dice: “La participación del menor de edad en el mercado de trabajo es un tema constantemente cuestionado en virtud de la realidade social que conduce niños y adolescentes a una labor no adecuada e, a veces, hasta deshumana. Encontrar mecanismos legales adecuados que atiedan las particularidades de cada región del Pais y que

la Declaración) toman, como la Constitución Brasileña, los Derechos Humanos Fundamentales como punto básico de toda la legislación. Esta vuelta a la afirmación de un valor humano es lo que se denomina el retorno a la ética. El valor fundamental de la persona humana es la base de uma concepción ética. Es por eso que hoy es impresionante como en todos los sectores de la actividad humana encontramos una preocupación con la ética. Si fuesemos a una libreria, en cualquier parte del mundo, vamos observar: “La Ética y la Estadística”, “La Ética y la Biologia”, “La Ética y la Medicina”, “La Ética y el Derecho”, “La Ética y la Política”, La Ética y los Negócios”. Hay uma vuelta a la Ética. El Profesor Giannotti, de la Facultad de Filosofia de la Universidad de São Paulo, haciendo uma conferencia sobre esse tema, cuestionaba: “Por qué será que la ética volvió a ser una gran preocupación de la Filosofia y de la Cultura Contemporánea? En el campo de la Filosofia, el capitulo más importante es la discusión de la Axiologia, es la discusión de los valores. Cual tendria sido la razón de toda esa preocupación con la Ética? El autor hace la pregunta y la deja suelta. Reflexionando sobre eso, podemos tentar una respuesta. Tal vez esta respuesta pueda ser sintetizada en el título de um romance célebre de Balzac: Las ilusiones perdidas. Se pretendió – construir um mundo sin ética, sin respecto a la persona humana y las consecuencias fueron trágicas. Eso se verifica en cada uno de de los campos de la Cultura. Examino en este trabajo que ustedes tienen en manos las consecuencias de esto en el campo del Derecho, de la Economia, de la Política, de la Ciencia y de la Cultura”. 440 Tomás de AQUINO. La Prudência: La virtud de la decisión correcta, p.5 441 En el decir provocativo de Leonardo BOFF, en El Águila y la Gallina, 19 ed. Petrópolis, Ed. Vozes, 1997, p. 30: “Nosotros fuimos criados a imagen y semejanza de Dios! Pero hubo personas que nos hicieron pensar como gallinas. Muchos de nosotros todavía creemos que somos efectivamente gallinas. Mas, somos águilas”

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posibiliten ecuacionar el campo de atuación del menor es una tarea de las más difíciles y de mayor importancia. Algo es cierto: el desarrollo de este filón de fuerza de trabajo solamente conseguirá engendrar buenas oportunidades donde exista flexibilización”. 442

A la responsabilidad de los gobernantes viene agregarse la responsabilidade social de las empresas o compañías del sector privado y la concientización de la sociedad 443, una vez que es del interés común que se logren los derechos fundamentales, permitiendo a todos no apenas la busca como también el acceso a la felicidad 444, especialmente en lo que se refiere a una educación básica de calidad, salud pública preventiva eficiente, atendimiento clínico y atención hospitalar eficaz y vivienda segura, teniendo como objetivo la formación de ciudadanos comprometidos con la organización de la sociedad y trabajadores capacitados para criar y educar sus hijos sin admitir que los mismos sean víctimas de abusos, efectivandose asi la democracia.445

442 Maria Marta SÉGUIN. Fuerza de Trabajo del Menor. Elida SÉGUIN (Organizadora). Aspectos Jurídicos del Niño: Sociedad Brasileña de victimologia, p. 91.5. Al respecto, André Franco MONTORO, Obra Cit., pp .42 y 44: Por eso, la Conferencia de Copenhague pone claramente que “lo social, el respecto debe ser el valor fundamental de toda economia a servicio de la persona humana”. Podemos asi concluir que la economia debe estar a servicio de la dignidad fundamental de la persona humana. Economia no es un valor absoluto. El lucro no es un valor absoluto. El mercado tiene sus cualidades, pero debe ser reglado” E este es el ideal democrático y el valor de la dignidad de toda persona humana. De ahí continua: “El régimen democrático es el régimen normal de convivencia humana”. La democracia es el gran valor de la vida política. Maritain, que fue uno de los redactores de la Declaración Universal de los Derechos del Hombre, en un pasage de su Tratado de Política dice: “La tragédia de las democracias es que todavía no consiguieron realizar la democracia. Pero apesar de sus limitaciones, la democracia es el unico camino por donde pasan las fuerzas progresivas de la História Humana”. 443 444 E reportandonos a Marco Túlio CICERO. La virtud y la felicidad, p. 25: “La virtud por si misma es suficiente para hacer el hombre feliz, pero no feliz en sumo grado. Que la mayor parte de las cosas reciben su denominación de aquello de lo que se componen principalmente, aunque les falte algo; como cuando se habla de las fuerzas, de la salud, de las riquezas, de las honras, de la gloria: todas estas son cosas que se juzgan por el género y no por lo más o por lo menos. Que asi la felicidad, aunque carezca de algunos bienes, pero tenga los principales, no deja de ser feliz”445 Ver André Franco MONTORO, Op. Cit., p. 45: “La Democracia es um valor fundamental de la vida pública y por todo lo que vimos, podemos identificar en ella tres dimensiones fundamentales: La Democracia moderna debe ser social, participativa y pluralista. Social en el sentido de que el mayor problema de la sociedad de hoy es la injusticia social, es la marginalización, es el hambre que una gran parte de la humanidad está sufriendo. Llegamos a la luna, tenemos medios para acabar con el hambre y no lo hacemos! La culpa es nuestra y de cada uno! No es de este o de aquel jefe aislado! Es necesário criar una conciencia, una cultura de los Derechos Humanos. Por eso, una democracia moderna tiene que ser social – mirar, en primer lugar, para los problemas de la sociedad.”

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2. LA EXPLORACIÓN DEL NIÑO Y DEL ADOLESCENTE Y LA VIOLENCIA URBANA

El trabajo infantil ha sido utilizado en las calles de las grandes ciudades en especial por las facciones criminales y la violencia urbana refleja la mala formación de los niños y adolescentes brasileños. 446 El acto no es justificado, pero para poder entender el por qué de tanta violencia es que debemos focalizar las condiciones en que muchos niños y jóvenes viven. Habitantes de tugurios o de periferias (areas carentes) cercados por el bajomundo del tráfico de drogas y “doctrinados” por los medios de comunicación principalmente televisivo, que predican el consumismo exagerado, el tener, el poder.

En la ausência de la prestación de los servicios públicos esenciales, grupos de criminales organizados van seduciendo niños y adolescentes, enseñandoles las ventajas de participar de las actividades del submundo, o secundario-mundo, teniendo el carácter y la personalidad en formación, sin ninguna base moral sólida y de buenos costumbres. Padres ausentes, muchas veces, debido a la falta de responsabilidad y amor, otras, por motivos sociales y afectivos, o por la dura jornada de trabajo, que no les permite conceder a sus hijos la vigilancia y orientación debidas, al final terminan por verlos perdidos. Como dice Morin: Todos deben poseer algunos principios que los conduzcan a respetar la vida, el derecho y la libertad de sus semejantes. No estoy hablando solamente en términos morales, pero en patriotismo. Sucede que, en nuestra sociedad cada vez más deshecha, la interiorización de esa regla disminuye.

El adolescente es el más alcanzado porque es el eslabon débil de la sociedad; él cambia el capullo familiar por grupos cada vez más organizados…”447

El tiempo de convivencia con los colegas, que ven en la vida criminal el camino para poder tener acceso a bienes de consumo y adquirir respecto en su comunidad, aunque por una óptica distorcida de valores, tanto de la escuela como del cuarto de los tugurios, vecinos y hasta de amigos es mucho más grande de lo que podría ser con sus reales educadores y orientadores, una vez que en las escuelas públicas la presencia y la disciplina escolar se convirtieron en algo facultativo, llevando niños y adolescentes a enveredar por trillas o caminos casi siempre sin vuelta, optando por la criminalidad en razón de la rebeldia. El origen de la violencia con la que actualmente coexistimos se produce no apenas en las calles, pero primeramente en las famílias a veces agresivas otras permisivas. 448

446 Para tanto consideremos los artículos 7º, inciso XXXIII y 227 párrafo 3º, I, de la Constitución Federal, la Lei nº 8.069 del 13/07/1990 – Estatuto del Niño y del Adolescente, articulos 402 a 443 de la CLT y todavia el texto de la Enmienda Constitucional nº 20, art. 1º, inciso XXXIII. 447 Edgar MORIN, Alfredo Pena VEJA y Bernard PAILLARD. Diálogo sobre el conocimiento, p.77 448 Roberto João ELIAS. Derechos Fundamentales del Nino y del Adolescente, pp. 3 y 4: El articulo

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El respecto al hombre, a sus derechos básicos, a sus necesidades afectivas y materiales que le proporcionen un crecimiento mentalmente saludable, para que se convierta en una persona digna, depende de la família, del gobierno, de la escuela y de la sociedad, o mejor: es una cuestión de Estado. E. Franco Montoro parafraseando Einstein observa: “La función de la educación no se puede limitar a la transmisión de conocimientos. Ella debe ayudar el jóven a crecer en um espírito tal que, los espíritos éticos fundamentales (de honor, de veracidad, de respecto al prójimo, de solidaridad) sean para el jóven el aire que respira. La enseñanza apenas no puede hacer eso”. Continúa observando que: la Declaración Universal establece: “La educación será orientada en la dirección del pleno desarrollo de la personalidad humana y del respecto a los derechos y libertades fundamentales. Ella pomoverá la comprensión, la tolerancia y la amistad entre todas las naciones y todos los grupos sociales y religiosos. E coadyuvará en las actividades de las Naciones Unidas a favor de la manutención de la paz”.449

La violência doméstica practicada por celos, desequilíbrio, autorita-rismo y vícios afecta a todos los miembros de una família, 450 principal-mente los niños que aún están en formación. Quién se somete a malos tra-tos, por cualquier razón, carencia afectiva, baja auto-estima, miedo de la pérdida (dependencia emocional), o dependencia financiera del otro, tiene estremecida su dignidad. Que es, como lecciona Maria Helena Diniz: “en el lenguaje jurídico en general, quiere decir: a) calidad moral que infunde res-pecto; b) honra; c) titulo o cargo de elevada graduación; d) respectabilidad e) nobleza o calidad de lo que es noble.” 451

3º del ECA preceptua que el niño y el adoslescente gozan de todos los Derechos Fundamentales inherentes a la persona humana, sin perjuicio de la protección integral. No podria ser diferente, una vez que el art. 5º de la Constitución Federal atesta que “todos son iguales ante la ley, sin distinción de cualquier naturaleza” y, por consecuencia, le son garantizados todos los Derechos, a comezar por el principal que es el Derecho a la vida. Acrescenta, todavía, el art. 3º del ECA que a los menores les son aseguradas facilidades y oportunidades que le propicien el desarrollo fisico, mental, moral, espiritual y social. Eso en condiciones de libertad y dignidad. Al tratar del Derecho a la libertad esta es relativa, considerandose la relación del patrio poder (o poder familiar, conforme el Cídigo Civil del año 2002) y también las limitaciones que deben ser impuestas como forma de protección. Inadmisible es el tratamiento de forma indigna dispensado al niño y al adolescente, lo que podrá ser considerado como crimen, conforme los arts. 228 y siguientes del ECA.” 449 André Franco MONTORO, Op. Cit., pp 44 y 45. 450 Prof. Dr. Pedro DALLARI. Los Derechos Humanos del siglo XVIII y su Actualidad. Carlos Aurélio Mota de SOUZA y Roberto BUENO (orgs.). 50 años de Derechos Humanos, p. 71: Es preciso punir con justicia en la medida de la ley y que la execucion de la sentencia tambien se haga con justicia, siempre respetando la dignidad de la persona humana. Este es un problema de Derechos Humanos.” 451 Maria Helena DINIZ. Op. Cit., vol.2, p. 133.

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En estos términos, verificando el eslabón de ligación y de interdependencia entre la dignidad humana relativamente a cuestiones de carácter social fundamental como la ciudadanía, la democracia, los valores éticos, el construtivismo, la sus-tentabilidad, la adoción de posiciones afirmativas por parte del sector empresarial en asociación o sociedad público-privada, objetivamos favorecer y proporcionar la concretización de la Constitución Federal, encontrando en la problematización del trabajo infantil, medios avaliativos de una nueva posición y mentalidad que se forman a partir de programas que tienen como objetivo su erradicación.

3. LA REALIDAD BRASILEÑA

La Constitución Federal 452 de 5 de octubre de 1988 originalmente estableció como

derecho de los trabajadores urbanos y agrícolas, además de otros que tengan por finalidad la mejoria de su condición social, la “prohibición de trabajo nocturno peligroso o

insalubre para los menores de dieciocho años y de cualquier trabajo para los menores de catorce años, salvo en la condición de aprendiz”. Pero, una alteración del límite legal para la admisión de niños y adolescentes en relación de empleo fue introducida en nuestro sistema jurídico por la Enmienda Constitucional nº. 20, de 15 de diciembre de 1988 (DOU 16.12.1998), modificando el inciso XXXIII del artículo 7º, pasando “a cohibir todo y cualquier trabajo a los menores de edad de 16 (dieciséis) años, a no ser en la condición de aprendiz, a partir del 14 (catorce años).” 453

Sin embargo, la utilización de la mano de obra del trabajo infantil, 454

452 Erotilde Ribeiro dos Santos MINHARRO, El Niño y el Adolescente en el Derecho del Trabajo, p. 55, resalta que la Convención nº 138 de la Organización Internacional del Trabajo al tratar la edad mínima de admisión para empleo, establece en su art. 2º que todo país-miembro que la ratifique “especificará, en declaración anexa a la ratificación, una edad mínima de admisión a empleo o trabajo en su territorio” y “resalvado lo dispuesto en los arts. 4º y 8º de esta Convención, ninguna persona con edad inferior a aquella especificada en la declaración será admitida a empleo o trabajo en cualquier ocupación”. Todavía, la misma Convención exceptua las actividades artisticas y deportivas: La Convención nº 138 de la OIT y la Directiva nº 33/94 de la Unión Europea, acrecentan que “no se sujetan a la limitación de edad en las actividades artísticas, deportivas y afines. 453 Erotilde Ribeiro dos Santos MINHARRO. El Nino y el Adolescente en el Derecho del Trabajo, p. 55. 454 Nilson de Oliveira NASCIMENTO. Manual Del Trabajo del Menor, p. 23,24: “En las lecciones de Segadas Vianna, el Códogo de Hamurabi, datado más de dos mil años antes de Cristo, es apuntado como el primer texto de protección al trabajo de los menores, que en aquella epoca trabajaban como aprendices. En Egipto, bajo las dinastías XII a XX, los ciudadanos eran obligados a trabajar sin distinción de nacimiento o fortuna. Los menores también estavan inseridos en esa regla general e, a ejemplo de las demás personas, necesitaban trabajar, respetándose el relativo grado de dasarrollo físico de cada una de ellas. En Grécia y en Roma los hijos de los esclavos pertenecian

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principalmente en áreas rurales, o regiones agricolas, es constituída por menores de edad que trabajan en precarias condiciones comprometiendo así su salud física y mental. De esta manera, se convierten en indivíduos que no desarrollan su capacidad cognitiva, presentando dificultades de aprendendizaje, de producción y por esta razón dotados de baja auto-estima. Aqui, nos encontramos nuevamente con el problema de la miséria que hace con que los padres de estos niños sean los primeros en conducir sus hijos a la faena para que agreguen “algunas monedas” al presupuesto para la sobrevivencia de la família.

En la región Norte del Brasil existe el gran desafío de los Programas de Erradicación del Trabajo Infantil en las diversas actividades economicas. Hay programas o políticas públicas de asistencia social que vienen siendo implantados por las secretarías de los estados, pero aún son escasos para obstaculizar que niños sean explorados por el trabajo esclavo a lo largo del território nacional.

Conforme propaga Soleny Hamu, 455 Secretária del Fórum Nacional de Erradicación del Trabajo infantil en Brasil:

Se distingue entonces la importancia de tenerse hoy en el Brasil una red nacional de fóruns o de comisiones estatales de combate al trabajo infantil estimulando así

las articulaciones a nivel de los estados.

Observa que en las cinco regiones del Estado Brasileño hay programas para la erradicación del trabajo infantil y de acuerdo con informaciones repasadas

a los señores de estos y eran obligados a trabajar, bien sea directamente para sus propietarios, bien sea como forma de sueldo a terceros en benefício de sus dueños. En Roma, a partir de la organización de las corporaciones de trabajo para hombres libres, los hijos de estos trabajaban como aprendices para más tarde ingresar en el mismo ofício de su padre. En la antigüedad el trabajo del menor se volvia para un sistema de producción familiar y tipicamente de subsistencia. El trabajo no se apartaba del ámbito domestico y tenia una finalidad puramente artesanal. Las enseñanzas del ofício eran transmitidas de padre para hijo y el carácter del aprendizaje era su principal característica. En la Edad Média surgieron las corporaciones de ofício y el menor aprendiz estaba sujeto a los enseñamientos del maestro y del compañero, sin recibir cualquier salário y a veces pagando al maestro o al señor feudal para aprender el oficio. Las corporaciones de oficio eran agrupamientos que reunian artesanos de una misma localidad y rama de actividad, compuesto por los maestros, por los compañeros y por los aprendices. El trabajo del menor era didático, se volvia para el aprendizaje de un oficio. En la época predominaban las industrias domésticas que se mantenian por medio del trabajo de campesinos que, sin desligarse de la tierra, se instalaban alrededor de las casas de los propietários y se empeñaban en la producción con la participación de todos los miembros de la familia, inclusive los menores.” 455 Soleny Hamu. Informe del Fórun Nacional de la Erradicación del Trabajo Infantil. In Erradicação do Trabalho Infantil: dimensionando as experiencias de Pernambuco, Mato Grosso do Sul e Bahia. (org. Carola Carvajal Arregui), São Paulo: EDUC; IEE/PUC - SP; FINEP, 2000, pp. 67-69.

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por las propias Comisiones Estatales de Erradicación del Trabajo Infantil, las correspondientes actividades economicas y los lugares donde son efectivamente desarrollados corresponden a los siguientes espacios determinados:

I. Región Norte: Ceramica o alfareria (Pará), Filtro de mina de diamantes (RO)

II. Región Nordeste: Sisal (BA y PB), Casas de Harina y Caña de Azúcar (PE), Mina - Pedrera (BA), Frutas (PE), Naranja (SE).

III. Región Sudeste: Calzados y Tabaco (SP), sectores no especificos (Campinas y Ribeirão Preto/SP), Caña de Azúcar (RJ), Niños de la Calle (Victória/ES, Paracatu y Belo Horizonte /MG).

IV. Región Centro-Oeste: Hierba-mate (MS), Braquearia (MS), Carbón (MS), basura - reciclage (MS) y sector no específico (DF).

V. Región Sul: Tabaco (RS), Calzados (RS).

4. LOS PROYECTOS PARA LA ERRADICACIÓN DE LA EXPLORACIÓN DEL TRABAJO INFANTIL

La fiscalización y funcionamiento de los programas dirigidos a la erradicación de la exploración de la mano de obra infanto-jovenil, asi como la implementación de nuevos proyectos debe ser intensa y contar con la participación de la sociedad, 456 boicoteando la aquisición de bienes cuyos

456 Elizabeth de Melo RICO y Raquel RAICHELIS (ORGS.). Gestão Social: Uma Questão em Debate, pp. 84 y 131: Se ampliará asi el foso entre la sociedad civil y la “sociedad política”, entre el Estado y los indivíduos organizados, foso que pasará a comprometer simultáneamente la organización/selección de la demanda social y la calificación de las respuestas gubernamentales. Todavía más: faltando esa sintonia, la sociedad civil quedará subsumida a la fragmentación y al corporativismo: el asociacionismo se expandirá rápida y copiosamente, vocalizando una creciente pauta de reivindicaciones, mas no pondrá en jeque los arreglos hegemonicos. No se politizará dejando de funcionar, de modo regular y eficaz, como contrapeso del Estado. ... No se puede pensar en iniciativas que puedan tornar más efectivas las políticas sociales sin hacer un diagnóstico de como están funcionando actualmente, la cobertura (extensión y calidad) y el impacto redistributivo de esas politicas en la sociedad brasileña. Teóricamente, en la Constitución, en las leyes, en atención a los grupos vulnerables, están asegurados avances significativos en relación al pasado, sea del punto de vista del reconocimiento de que las politicas sociales son Derechos y por tanto deben ser universales, sea del punto de vista de una nueva constitucionalidad democrática que construye nuevos espácios públicos y mecanismos de gestión que completan la participación de representantes de la sociedad civil. Aunque existan avanzos del punto de vista jurídico, resultantes de conquistas de la movilización social en la afirmación de los Derechos Universales,

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proveedores directos o indirectos sean exploradores de la mano-de-obra infantil. Asi, en el decir del profesor João Baptista Herkenhoff:

“Toda persona es miembro de la sociedad en razón de la dignidad que le es inherente. Seria incompatible con el reconocimiento de esa dignidad admitir que las personas vivieran aisladas, sin vínculo de comunión... Los Derechos económicos, sociales y culturales deben ser proveídos, (...) en razón de la dignidad de la persona humana. Negaria la creencia en la dignidad de la persona humana relegar las personas a su propia suerte, cuidando cada uno de si. Afronta la dignidad humana defender un modelo de Estado y de sociedad que se abstiene de proveer los Derechos económicos, sociales y culturales indispensables a la salvaguardia del sustrato humano de los seres.”457

En el decir de José Luiz da Cunha Júnior: “En ese sentido mucho se ha discutido sobre el papel y la finalidad del Derecho. Como instrumento regulador de conductas, deberia ser capaz de proporcionar amplio desarrollo social, al mismo tiempo que sedimentaria su meta fundamental que es la concretización del ideal de justicia. Poner, finalmente, el hombre en el camino de su realización plena... es necesário ver el Derecho como un aspecto particular de una realidad compleja. Un instrumento elaborado por el hombre para hacerle frente a las necesidades sociales y que no puede ser el único medio de realización de la justicia. El núcleo principal de la problemática social debe ser buscado en el proprio hombre y en su relación existencial con el planeta Tierra.

El Derecho es fruto de la interacción desequilibrada del hombre con el meio natural, con tan graves repercusiones en la sociedad a punto de ser considerado por algunos filósofos un instrumento de poder de una clase sobre otra.” 458

Es fundamental considerar que aunque sean representaciones del “debenir”, los valores inseridos en el texto esencial y permanente de la Constitución se encuentran implicitos en el principio de la dignidad de la persona humana, fundamento de la República, informador del legislador, del interprete y del próprio aplicador de la ley o, todavía, un Principio General del Derecho del cual se constituye, como dice Jean–Louis Bergel, “la base de toda construcción jurídica” 459, cuyos critérios de avaluación o calificación son de fijación subjetiva y en si mismas dependen de un juício de valor por parte del criador, del intérprete y del aplicador de las normas de Derecho. 460

el hecho es que las politicas sociales están cada vez más en crisis.” Justiça, direito do povo, p. 88. 457 João Baptista HERKENHOFF. Justiça, direito do povo, p. 88. 458 José Luiz da Cunha JUNIOR. Essência e Consciência: Uma Breve Reflexão sobre a Existência Humana. Pp. 17-18. 459 Jean-Louis BERGEL. Op. cit. 118. 460 Guillermo Garcia de VINUESA. Las mil y una reflexiones de nuestro tiempo y de todos los tiempos. 47: “Legitimidad ilegitima, legalidad ilegal y democracia demagógica. Las tres surgen de un consenso espúrio: la adhesión de la masa irresponsable cuya “opinión condicionada” refleja la

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Esto es lo que acaba por hacer con que el própio legislador trate al mismo tiempo como valor, como principio y como Derecho Fundamental los mismos objetos. Ejemplo de eso es que tal cual la dignidad, el bien-estar, valor constitucional, es conducido para el rol de los principios fundamentales de nuestro sistema jurídico por el art. 3º de la Constitución Federal 461 al establecer entre los objetivos del Estado, la construcción de una sociedad libre, justa y solidária, la erradicación de la pobreza, de la marginalización y la promoción del bien de todos. 462

voz de mando de demagogos y políticos de barricada carcomidos por resentimientos y ebrios de poder”. 461 CF/88, art.3º: “Constituyem objetivos fundamentales de la República Federativa del Brasil: I - construir una sociedad libre, justa y solidária; II – garantizar el desarrollo nacional; III – erradicar la pobreza e la marginalización y reducir las desigualdades sociales y regionales; IV – promover el bien de todos, sin preconceptos de origen, raza, sexo, color, edad e cualquier otras formas de discriminación.” 462 Complementese con el entendimiento sobre la materialidad de la cuestión a partir de Valeriano ALTOÉ. O Trabalho infanto-juvenil no Brasil. Elida SÉGUIN (organizadora). Aspectos Jurídicos da Criança: Sociedade Brasileira de Vitimologia, pp. 105 - 106: “Los dispositivos constitucionales, de naturaleza prohibitiva, preceptuan el limite mínimo de edad, resalvado el aprendizaje. Consonante la Constitución Federal fue elaborado el Estatuto del Niño y del Adolescente, que dedica un capítulo específico al “Derecho a la Profesionalización y a la protección del trabajo” del menor. El Estatuto conceptua el niño como persona de edad no superior a 12 años e adolescente aquel en la faja de edad entre los 12 y 18 años. Vários fueron los que “se erguieron para criticar esa norma legal. Llegaron a afirmar que la formación de los menores podria ser seriamente perjudicada con su prematuro ingreso al servicio de las empresas”. Pero, debemos admitir que nuestro estágio social no proporciona una renta per capita capaz de permitir la conservación del menor en los pupitres escolares. Todavía, llamamos la atención a que la Organización Internacional del Trabajo entiende que la protección debe atenerse al desarrollo economico de cada pais. Entretanto, con la modificación del sistema de prevensión social, ocurrida con la edición de la Enmienda Constitucional nº 21, la faja de edad fué aumentada y el adolescente empleado pasó a ser todo aquel con más de 16 años y menor de 18 años de edad, regido por contrato de trabajo, pero no en la condición de aprendiz. Para agravar la situación, debemos observar que el parráfo único del artículo 4º de la CLT equipara a tiempo de servício efectivo el período de prestación del servício militar, lo que dificulta la obtención de empleo para el adolescente a partir de los 17 años, una vez que el patrón quedará obligado a recoger contribuciones para el Fondo de Garantia por Tiempo de Servício – FGTS sobre el sueldo que el menor recibia. Solamente nos toca esperar que ocurra una reforma de las normas del trabajo, ojetivando normas jurídicas más compatibles con nuestra realidad para el trabajo del menor. No podemos tener una disciplina tan rígida como la actual, impidiendo que el menor sea amparado, bajo pena de aumentar la legión de ociosos y en el futuro de delincuentes juveniles. Brasil es uno de los paises que más hace uso del trabajo infantil, según datos de la Organización Internacional del Trabajo (OIT). Cerca de dos de cada diez niños brasileños entre diez y catorce años de edad trabajan. Debe notarse que en esta cuestión Brasil se encuentra en situación crítica en América Latina, superior apenas al Paraguai y Haiti. Agrava que la mayoria de esos niños consigue ganarse al máximo un sueldo mínimo. Según datos del Instituto Brasileño de Geografia y Estatistica (IBGE), casi la mitad de ellos trabaja cuarenta o más horas semanales. Por eso, los pequeños trabajadores están, en general, expuestos a largas jornadas de

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5. PRESIÓN COMERCIAL Y PROGRAMAS INTERNACIONALES

Según los registros de Maria do Carmo Brand de Carvalho: 463

“En febrero de 1989, el periódico norte-americano Footwear News denunció al mundo que en Brasil, mas especificamente en el Valle de los Sinos, Rio Grande do Sul, 20% de la mano-de-obra utilizada en la indústria de calzados es constituída por menores que trabajan en condiciones precárias y comprometen su salud por el contacto directo con la pega usada en la confección de sapatos. Las carteras de trabajo son emitidas ilegalmente con edicto o certificación judicial que las autoriza.” (Revista Ceap, 1991:27)

Outros tantos puntos pueden ser citados demostrando violaciones a la dignidad del niño y del adolescente que Brasil, a partir de 1992, se convirtió en uno de los 25 países apoyados por el Programa Internacional para la Eliminación del Trabajo Infantil (IPEC), instituído por la Organización Internacional del Trabalho (OIT). Esta es una cuestión de Derechos Humanos.

Complementando el sentido amplio del vocablo, todavia encontramos en la misma obra el concepto de dignidad humana en lenguaje filosófica, como siendo “el principio moral de que el ser humano debe ser tratado como un fin y nunca como un médio.”464 Esto indica que la dignidad es un principio que rige todos los derechos fundamentales y el hombre debe ser comprendido como el ser que representa la máxima evolución de las especies animales, un ser pensante, realizador y establecedor del proprio destino, de si mismo y de la vida en el planeta. A partir de este prisma, Dalmo de Abreu Dallari registra que la dignidad humana es exactamente el valor mayor de la espécie y que nos diferencia de las demás, poniendonos en un patamar especifico y superior. Asi dice:

“Para los seres humanos no puede haber cosa más valiosa que la persona humana. Essa persona, por sus características naturales, por ser dotada de inteligencia, conciencia y voluntad, por ser más que una sencilla porción de matéria, tiene una dignidad que la pone arriba de todas las cosas de la naturaleza. Aún las teorias llamadas materialistas, que no quieren aceptar la espiritualidad de la persona humana, siempre fueron forzadas a reconocer que existe en todos los seres humanos una parte no material. Existe una dignidad inherente a la condición humana, y la preservación de esa dignidad hace parte de los Derechos Humanos”. 465

trabajo y a bajos sueldos, lo que dificulta sus estudios y recreación.” 463 Maria do Carmo Brant de Carvalho. O combate ao trabalho infantil na voz y na agenda da sociedade e do estado brasileiro. In Op. Cit., p. 25. 464 Maria Helena DINIZ. Op. Cit. , vol. 2, p. 133.465 Dalmo de Abreu DALLARI. Direitos humanos e cidadania, p. 9.

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Visto esto, podemos afirmar que “lo ideal seria que el adolescente no trabajara. El delicado período de transición biopsicosocial entre la infancia y la face adulta es propicio para la adquisición de conocimientos, el desarrollo del intelecto, de la moral y de la personalidad, el despertar del espiritu crítico y la descubierta del mundo, de la libertad y de la propia identidad. En fin, es el período en que el adulto está en formación. Mejor seria que las actividades desarrolladas por el adolescente fueran hacia esa dirección y realizadas con cierta ligereza y desprendimiento, sin la exigencia y opresión características del ambiente de trabajo, pues se debe llevar en cuenta la suceptibilidad propia de la edad. El adolescente demanda investimiento, y de él no se deberia esperar productividad – mucho menos se deberia exigirla”466.

Dignidad Humana es cada uno ejercer su libertad con seguridad, en igualdad a los demás que aprecian el bien común. El derecho individual a la seguridad es respaldado por el ideal de libertad que por su vez sugiere igualdad, bien-estar y dignidad, sus principios fundamentales. Consonante Dalmo de Abreu Dallari: “El respecto por la dignidad de la persona humana debe existir siempre, en todos los lugares y de manera igual para todos”. 467

466 Caio Franco SANTOS. Contrato de Emprego do Adolescente Aprendiz: A Aprendizagem de acordo com a Lei 10.097/2000, pp. 13, 14, e 15: Estudios e actividades deportivas, sociales, culturales y recreación son más importantes en esa delicada faja de formación física y psicosocial. El trabajo en la adolescencia es marcado por aspectos negativos y perjudiciales. El Ministério del Trabajo, en publicación sobre trabajo del niño y del adolescente, resalta algunas consecuencias del trabajo precoz de orden economica, politica y psicosocial, entre otras. Quanto a los trabajos prohibidos, se observa que el adolescente, en relación al adulto, es más susceptible a agentes nocivos y a ambientes insalubres o peligrosos, está más sujeto a accidentes de trabajo y es más explorado, pués su servicio es muy mal remunerado. Aún tratandose de trabajo permitido por ley, sobresaltan consecuencias negativas, entre ellas destacamos las siguientes:a) Aumento de la pobreza: el trabajo del menor es peor remunerado que el del adulto y retira puestos de trabajo que podrian ser ocupados por padres de família. Descalificado, inexperiente, inmaturo, inseguro, dócil e impotente en las relaciones de trabajo, el menor acepta casi todo. Asi el sistema de exploración reduce la renta média de las famílias.b) Comprometimiento de la formación del ciudadano y del trabajador: El trabajo precoz, cuando no retira el menor del sistema de enseño, perjudica su aprovechamiento. El enseño regular deberia prepararlo para la ciudadania plena en una sociedad compleja y de cultura letrada. Si el rendimiento escolar no es satisfactório, la calificación profesional es deficitaria. Si el ciudadano tiene una limitada conciencia politica, deja de ejercer una influencia positiva en los cambios sociales comprometiendo el propio desarrollo del pais. Asi se siega el potencial del trabajador e se disminuye el ciudadano: se dá la exclusión social.c) Ruptura del desarrollo de la personalidad: El adolescente necesita crecer en ambiente social y familiar que le proporcione seguridad y estructura para el desarrollo de su identidad y autoconfianza. Si es submetido desde muy temprano a presiones de responsabilidad y de disciplina, bajo el signo de la lucha por la sobrevivencia, sus expectativas se desvanecen y el desarrollo de sus funciones psiquicas afectivas y cognitivas sufren inflencias negativas.” 467 Dalmo de Abreu DALLARI. Op. Cit., p.9.

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Verificamos tadavia que los valores constitucionales de la libertad y de la seguridad, no obstante prenunciados para sustentar las normas jurídicas, se configuran bajo la forma de derechos fundamentales, individuales y colectivos. Tal qual determinan el titulo y el capitulo constitucional en que se encuentran, siendo esenciales para la comprensión de que el niño y el adolescente sometidos al trabajo tienen su seguridad y su libertad cercenadas, su desarrollo comprometido y su dignidad afectada.

Además, es oportuno recordar el escolio de José Alfonso da Silva al respecto: “Dignidad de la persona humana es un valor supremo que atrae el contenido de todos los Derechos Fundamentales del Hombre, desde el Derecho a la vida”. (negritamos). Clasifica la Dignidad como valor “concebido como referencia constitucional unificadora de todos los Derechos Fundamentales.” 468 De ahi la fijación de la Lei Mayor Brasileña de considerar la dignidad como Principio Fundamental de nuestra República a ser aplicado en la interpretación de las leyes tornando concreta la determinación constitucional. Bajo este enfoque interpretativo, toda la población formadora del Estado tiene el deber de combatir el trabajo infantil y exigir que a los niños y adolescentes sea dado el tratamiento previsto en la Constitución y en el Estatuto del Nino y del Adolescente - ECA.

Asi, “Si la necesidad del adolescente de obtener renta es una realidad que no puede ser superada a corto o médio plazo, es deber de la lei dispensarle especial protección para evitar la exploración, poniendolo a salvo de ambientes o actividades que impliquen peligro a su salud y minimizar el impacto negativo que el trabajo precoz tiene en su formación profesional e intelectual. La inserción del adolescente en el mercado de trabajo debe ocurrir de la forma menos perjudicial posible.” 469

468 José Afonso da SILVA. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 96. 469 Caio Franco SANTOS. Contrato de Empleo Del adolescente Aprendiz. El Aprendizage de acuerdo con la Lei 10.097/2000, pp.18-19: “El contrato de aprendiz se presenta como solución plausible. Por un lado, dá al adolescente la oportunidad de recibir un salário de forma digna, con garantia de derechos de trabajo y de prevención social. Por otro lado, no descuida su formación, pués exige que el adolescente frecuente el estudio fundamental y le proporciona calificación profesional en un determinado ofício. El aprendizaje previsto en la Constitución Federal como única excepción a la prohibición del trabajo a los menores de 16 años (art. 7º, XXXIII – el adolescente puede convertirse en aprendiz a partir de los 14 años) es un instituto específico, regularizado en sección própia en la CLT. No se trata, pués, de un aprendizaje cualquiera, pero de un contrato especial de empleo, en el que el adolescente se somete a una formación técnica-profesional en un ofício, con clases teoricas ministradas en una entidad educacional profesional y actividades práticas desarrolladas en la empresa. Después de la reforma del aprendizaje promovida por la Lei 10.097/2000, la Consolidación de las Leyes del Trabajo- CLT pasó a ofrecer a las entidades sin fines de lucro la posibilidad de dar asistencia al adolescente de forma lícita, sobre todo sin perjudicar su formación profesional y sin someterlo a la indignidad de la exploración de su fuerza

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De acuerdo con lo que enuncia Maria Luiza Marcílio, la “voluntad universal de promover el hombre se expressa recurrentemente, desde entonces, bajo da diversidad de las fórmulas y del respecto a las diferencias del Otro. El respecto cada vez mayor por la persona humana se inscribe en un combate secular, todavia distante de terminar... En fin, otra caracteristica del humanismo de hoy está en la lenta tomada de conciencia y de una solidariedad universal.” 470

Cayo Magri observa que después de la Enmienda Constitucional nº 20, “el trabajo infantil, mientras sea caracterizado por la edad mínima pasa a ser todo aquel que es ejercido por menores de 16 años... otro presupuesto es la articulación de las organizaciones de la sociedad civil, del Estado, en los diferentes niveles, teniendo un especial diseño para la participación del sector productivo: trabajadores y empresarios... Un programa de erradicación del trabajo infantil que no tenga la posibilidad de avanzar en la intrumentalización de la fiscalización del Estado y de la sociedad civil y que no tenga condiciones de construir y rehundir permanentemente el marco legal, se expone a sérios peligros de sustentabilidad. El Estado por si solo, no es capaz de investir y fiscalizar todas las cuestiones que envuelven el trabajo infantil... por ejemplo, la criación de códigos de conducta voluntárias, cláusulas contractuales, acuerdos colectivos de trabajo, son eficientes instrumentos de fiscalización e intervención locales.” 471

Conforme Arabela Rota, 472 Oficial Senior de Proyectos de la Unidad de Políticas Públicas y Derechos del Fondo de las Naciones Unidas para la Infancia – Unicef, son destacados tres campos de acción que viabilizan la erradicación del trabajo infantil: la familia, la escuela y la comunidad.

Haciendo nuestras sus palabras: “La escuela debe ser notada en la perspectiva de la jornada ampliada,

de la mejoria del enseño, de la capacitación de profesores. La familia debe ser trabajada en el contexto de actividades de orientación, apoyo y de mejoria de renta. La comunidad debe ser reforzada en acciones de movilización y refuerzo de las parcerias. Esos programas han producido las más variadas parcerias, entre las que destacamos, en el ámbito federal, el Fórun Naional de Erradicación del Trabajo Infantil que es un espacio de movilización de la sociedad civil, del

de trabajo. Ahora, las entidades pueden intermediar la contratación de aprendices, asumiendo la condición de empleadoras.” 470 Maria Luiza MARCILIO. Jaques Maritain e o pensamento humanista contemporâneo. In Ensaios em Homenagem a Franco Montoro: Humanismo e Política. Colección Instituto Jaques Maritain do Brasil (Org. Lafayette Pozzoli y Carlos Aurélio Mota de Souza). São Paulo: Loyola, 2001, p. 208. 471 Caio MAGRI . Dilemas e peculiaridades do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. In Op. Cit., pp. 54-55. 472 Arabela ROTA. As dimensões da avaliação. In. Op. Cit., p. 123 -127.

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gobierno, de empleadores y trabajadores. En los espacios estaduales tenemos los fóruns, las comisiones estaduales y regionales y en los espacios municipales, las comisiones locales. Esa ha sido la más fuerte expresión de la mobilización en un trabajo articulado de parcerias.

Esas invenciones en la familia, en la escuela y en la comunidad deben ser ajustadas y adecuadas al marco legal internacional (Convención de los Derechos del Niño y del Adolescente y Convenciones 138 y 182 de la OIT) y al marco legal nacional (la Constitución Federal y el Estatuto del Niño y del Adolescente).

Es importante destacar la posibilidad de ser accionado el Sistema de Garantia de Derechos a todo derecho violado. Componen ese sistema: los Consejos Tutelares, los Consejos de Derechos, la Justicia Especializada de la Infancia y de la Juventud e las Defensorias Públicas: las Comisarias Especializadas y los Centros de Defesa.

Además del Estatuto, existe toda una legislación del trabajo, civil, penal, reglamentos y normas que necesitan ser conocidas para que se pueda transitar por ese marco legal donde están situados los tres campos de acción enunciados anteriormente.

El Unicef, en el ambito de coperación tecnica e financiera, viene actuando en el intento de ajustar a los programas un concepto claro de evaluación dentro un sistema de información y monotoramiento. Es posible presentar un instrumento sencillo que podrá auxiliar en el esbozo de ese sistema.”

João Batista de Azevedo Marques observa que “las cuatro ultimas décadas vividas por la humanidad experimentaron tantas y tamañas modificaciones sociales, políticas y economicas que dinamitaron la estructura social vigente, dejado pensadores y políticos perplejos por la velocidad de los cambios y por la falta de un rumbo más seguro a ser seguido por la humanidad.”473

En raciocinio que complementa este pensamiento, advierte Maria Beatriz Mello da Cunha, 474 cordenadora nacional del Programa Internacional para la Eliminación del Trabajo Infantil (IPEC), de la Organización Internacional del Trabajo (OIT):

“Es fundamental criar instrumentos y sistemas que puedan medir, analizar y evaluar los resultados de los programas no solo sobre el publico-albo, pero también sobre el contexto en que se desarrollan… En el campo de la educación,

473 J. B. de Azevedo MARQUES. Democracia, Violência e Direitos Humanos.Pp. 59 e 60.474 Maria Beatriz Mello da CUNHA. A trajetória da avaliação na erradicação do trabalho infantil. In. Op. Cit., p. 112, dice: “La sustentabilidad de los programas depende de la ejecución de acciones integradas entre los tres niveles de gobierno, las organizaciones de la sociedad civil y la comunidad local y de forma más amplia, de las cuestiones referentes al desarrollo local. Otra cuestión comun a los programas es la necesidad de preverse proyectos para la calificación de los adolescentes que son desligados.” Optamos por negritar los términos traidos del texto original.

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por ejemplo, hay necesidad de capacitar profesores y educadores de la jornada ampliada. En el momento de la implantación de los programas, no se tenía la dimensión del esfuerzo de capacitación que tendria que ser hecho. Además, es necesario mejorar la calidad del enseño publico y desarrollar un proyecto pedagógico para la jornada escolar ampliada. Los programas también deben contemplar: el esfuerzo constante de la fiscalización de la represión del uso de la mano-de-obra infantil; la aplicación eficaz de la legislación nacional; la generación de renta para las famílias de los niños trabajadores; y la promoción del desarrollo socio-economico local.”

En estos términos, concluimos observando que la construcción de una sociedad libre, justa y solidária prevista como objetivo de la República Brasileña por la Constitución Federal depende de factores sociales y compromisos en forma de parceria público-privada que vengan a efectivar la responsabilización común por el desarrollo del Estado Brasileño y aplicación de las Normas Constitucionales, asi como la concientización de todos sobre los derechos fundamentales de la persona humana y en especial los derechos referentes al niño y al adolescente.

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LIMITAÇÕES JURÍDICAS E SOCIOECONÔMICAS À CONSOLIDAÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR

LIMITATIONS JURIDIQUES ET SOCIO-ÉCONOMIQUES À CONSOLIDATION DE L’AGRICULTURE FAMILIALE

FranCiSCo Cardozo oliVeira475

marileia tonietto476

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Contexto socioeconômico do meio rural brasileiro. 2.1 Ma-trizes da estrutura agrária. 2.2 Estrutura agrária atual. 3. Arcabouço legal agrário. 3.1 Esta-tuto da Terra e do Trabalhador Rural. 3.2 Função social da propriedade e Contratos agrários. 4. Restrições legais e socioeconômicas que interferem na consolidação da agricultura fa-miliar. 4.1 A regulação jurídica da propriedade da terra. 4.2 Políticas agrícolas e agricultura familiar. 5. Considerações finais. 6 Referências.

RESUMO

O presente trabalho objetiva analisar a viabilidade da agricultura familiar. Procede-se à análise da configuração do espaço rural a partir das matrizes agrárias que sustentam a formação socioeconômica do campo e que refletem na atual estrutura fundiária. Analisa-se o arcabouço legal agrário e suas implicações na dinâmica social do campo, destacando-se o contexto de criação do Estatuto da Terra e as diferentes interpretações acerca da função social da propriedade rural. Por fim, apontam-se as limitações sociais, econômicas e legais que intervêm na consolidação da agricultura familiar, mediante análise de políticas agrárias e agrícolas. Ainda que o acesso à terra se constitua requesito essencial para a melhoria das condições objetivas de vida e de trabalho no campo, infere-se que a consolidação da agricultura familiar requer políticas públicas mais abrangentes, capazes de contemplar outras dimensões, para além do direito de propriedade.

Palavras-chave: estrutura agrária, agricultura familiar, políticas públicas.

475 Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Professor de Direito Civil do Centro Universitário Curitiba e da Escola da Magistratura do Paraná e Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.476 Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná, acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba e integrante do grupo de pesquisa “A Regulação Contemporânea do Direto de Propriedade Empresarial”, vinculado ao mestrado do Unicuritiba.

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RÉSUMÉ

Cette étude vise à analyser la viabilité de l’agriculture familiale. Il Passe à l’analyse de la configuration du espace rural à partir des matrices agraires qui soutiennent la formation socio-économique du champ et qui reflètent la structure actuelle de la propriété foncière. Il analyse les implications juridiques agraires et dynamiques sociales dans le champ, en soulignant le contexte de la création du Statut de la Terre et les différentes interprétations de la fonction sociale de la propriété rurale. Enfin, le point sur les limitations des questions sociales, économiques et juridiques impliquées dans la consolidation de l’agriculture familiale, à travers l’analyse des politiques agricoles . Bien que l’accès à la terre pour constituer condition essentielle pour l’amélioration des conditions objectives de vie et de travail dans le champ, il semble que la consolidation de l’agriculture familiale nécessite des politiques plus globales, capables d’envisager d’autres dimensions, au-delà du droit à l’propriété.

Des Mots-Clés: structure agraire, l’agriculture familiale, politiques publiques.

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem por objetivo investigar a viabilidade da agricultura familiar no contexto das políticas públicas, o que pressupõe analisar a estrutura socioeconômica do meio rural brasileiro, o arcabouço legal norteador das políticas para o campo, além das restrições legais e socioeconômicas que interferem na consolidação da agricultura familiar.

A análise começa por contextualizar a dinâmica rural, as matrizes da estrutura agrária e seu caráter bimodal: o setor principal, composto por proprietários de extensas áreas territoriais, margeados por um setor secundário, compreendido por trabalhadores rurais e pequenos proprietários ou posseiros. Em seguida, mediante análise do censo agropecuário, analisa-se a atual estrutura agrária, ainda concentrada, ao mesmo tempo em que evidenciado o vigor da agricultura familiar como categoria social e econômica. A análise alcança os atores sociais do campo e o uso da tecnologia como fator de desenvolvimento rural. Por fim, o trabalho trata do arcabouço legal agrário. Busca-se apontar os principais dispositivos legais, o sentido de sua criação e suas implicações nas dinâmicas sociais. A análise termina apontando alguns constrangimentos legais e socioeconômicos que intervêm na consolidação da agricultura familiar, relacionadas a políticas agrárias e agrícolas.

No que se refere aos procedimentos metodológicos, o estudo foi elaborado mediante a realização de pesquisas a partir de fontes secundárias, adotando por

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método a dialética crítica, devendo-se levar em conta o que sustenta Pedro Demo (1981), no sentido de admitir a impossibilidade de estabelecer-se absoluta neutralidade entre o pesquisador e o objeto de estudo, a começar pela própria escolha do tema.

1. CONTEXTO SOCIOECONÔMICO DO MEIO RURAL BRASILEIRO

1,1 MATRIZES DA ESTRUTURA AGRÁRIA

A realidade social brasileira é marcada, historicamente, por conflitos fun-diários. Segundo Caio Prado Júnior (1979), a grande exploração agromercantil, de extensa base territorial, sempre esteve no centro das atividades rurais, na maioria das zonas geoeconômicas brasileiras; ele faz referência ao que chama de bimodalismo, apontando a existência de dois “setores”: principal e secundá-rio. O secundário se constituiu e se manteve em função do principal. O “setor secundário” apresenta-se sob duas formas: a) inserido nos grandes domínios, como atividade marginal de trabalhadores empregados na grande exploração; b) compreendendo atividade autônoma de pequenos produtores que trabalham por conta própria em suas terras ou arrendadas. A agricultura familiar se insere do denominado setor secundário.

De acordo com José Eli da Veiga (2000) esse caráter bimodal da estrutura agrária brasileira, a que Caio Prado se refere, está na contramão do que ocorreu em países considerados desenvolvidos, que não prescindiram de um conjunto de políticas públicas capazes de possibilitar a liberação do potencial da agricultura familiar, em função de suas características.

Existem divergências entre as concepções de Caio Prado Jr e Alberto Passos Guimarães acerca das características socioeconômicas do processo de formação do País. Alberto Passos Guimarães (1968) considerava o Brasil incurso num processo com características remanescentes do feudalismo, em razão da estrutura fundiária marcada pelo latifúndio e do baixo uso de tecnologias. Caio Prado Júnior o entendia como submetido a circunstâncias decorrentes de uma estrutura socioeconômica organizada nos quadros do capitalismo internacional, um ‘negócio’, gerido e comandado pelos colonizadores, cuja sustentação era feita mediante exploração de mão de obra de grandes contingentes populacionais inseridos à força no sistema, compostos por escravos índios, inicialmente, africanos, e, mais tarde, imigrantes europeus, estes em limitadas áreas do território nacional..

Em perspectiva histórica, José Carlos Evangelista de Araújo (2005) descreve o contexto que revela o sentido da criação da Lei de Terras (Lei n.º 601, de 18 de setembro de 1850); sem condições jurídicas e econômicas de

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acesso à terra, aos pobres do campo restaria a condição de assalariamento ou de agregados das grandes propriedades. O processo de ocupação do interior do Brasil caracterizou-se pela confrontação entre o posseiro e o latifundiário e ou grileiro477. Na medida em que as regiões ocupadas pelos posseiros eram valorizadas, eles eram expulsos pelo latifúndio, havendo a gradual expansão da fronteira agrícola no sentido Leste – Oeste do País.

A crescente inserção do País na economia mundial, aliada à especulação imobiliária, promove alianças entre os ‘senhores da terra’ e o grande capital agroindustrial e financeiro, logrando modernizar-se às expensas da exclusão dos pequenos e médios agricultores e da manutenção da estrutura fundiária concentradora que se estabeleceu no Brasil desde a colonização portuguesa (ARAÚJO, 2005). Esse quadro desencadeia reações que estimulam a organização dos trabalhadores reivindicando seu direito de acesso à propriedade da terra. Conforme assinala Ruy Mauro Marini (2012) o regime de propriedade de terras acaba por estrangular a oferta de alimentos e de matérias primas requeridas pela indústria e pelo crescimento urbano, o que impulsiona o aumento dos preços e estimula movimentos reivindicativos de massa porque concentra os rendimentos da agricultura em mãos de uma minoria e obstaculiza a expansão do mercado interno para a produção industrial. Daí o sentido do que Ruy Mauro Marini qualifica dialética específica do subdesenvolvimento brasileiro configurada pela necessidade de financiamento da produção industrial pela atividade agrícola ou por capitais externos da produção, cuja dinâmica acaba por conduzir a crises, com desdobramentos sociais e políticos.

2. ESTRUTURA AGRÁRIA ATUAL

Com o propósito de chamar a atenção para o cenário da estrutura fundiária brasileira, José Eli da Veiga (2000, p. v, vi), na apresentação de obra que reedita artigos acerca da questão agrária no Brasil, publicados por Caio Prado Júnior na Revista Brasiliense da década de 1960, utiliza-se de “fotos instantâneas tomadas em distintos momentos do processo co-evolutivo dos dois setores” – secundário e principal – o que ele denomina de bimodalismo. Ao comparar os dados dos censos agropecuários de 1950 e 1995/1996, observa que em 1950 as propriedades de extensa base territorial (setor principal) ocupavam 75% da área total, dispondo de 5 milhões de trabalhadores rurais, entre estes incluíam-se assalariados e parceiros. O setor secundário era constituído por enorme contingente destes trabalhadores residentes nas grandes fazendas, além

477 Grilo: refere-se a imóvel registrado e legalizado mediante utilização de títulos falsificados, de forma a se apresentarem em papeis, tinta e selos antigos. Ao que possui terras griladas, diz-se grileiro (PLÁCIDO E SILVA, 2002).

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de famílias de agricultores instalados em pequenos e médios estabelecimentos, comprimidos nos 25% da área restante.

Num outro momento, ou na “foto instantânea” tirada em 1995/1996, registrou-se a existência de 785 mil estabelecimentos do setor principal, ocupando área de 63% e dispondo de quatro milhões de trabalhadores. O setor secundário era composto por parte destes empregados residentes nas grandes fazendas, além de 13 milhões de pessoas que viviam em quatro milhões de pequenos e médios estabelecimentos rurais, ocupando 37% da área restante. Comparando os momentos históricos, o autor conclui que “no final do milênio, o essencial da estrutura agrária brasileira continua a ser o bimodalismo engendrado pelos ‘velhos padrões do passado colonial’” (VEIGA, 2000, p. vi).

Nesse mesmo sentido, Hoffmann e Ney (2010) reforçam, com base na análise dos dados dos censos agropecuários de 1975, 1980, 1985, 1995/1996 e 2006, que a desigualdade na distribuição da propriedade rural manteve-se praticamente inalterada ao longo do período analisado. Um indicativo é o índice de Gini478 da distribuição de terra, que se manteve na casa dos 0,85479.

O censo agropecuário de 2006480 (IBGE, 2009) retrata, no contexto do Brasil agrário, a importância da agricultura familiar. Sua relevância se evidencia não apenas em termos numéricos, são 4.367.902 unidades familiares, perfazendo percentual de 84,4% dos estabelecimentos rurais brasileiros, comprimidos numa área de 24,3% do total de estabelecimentos agropecuários. Já os não familiares, apesar de representarem 15,6% do total, detêm 75,7% da área ocupada.

O mesmo documento também demonstra o vigor da agricultura familiar481, ao retratar os percentuais de alimentos cultivados, evidenciando seu fundamental papel na promoção da segurança alimentar do País, assegurando o fornecimento de alimentos para o mercado interno.

478 O índice de Gini é um indicador de desigualdade utilizado para verificar o grau de concentração de terra e da renda. Varia no intervalo de zero a 1: se mais próximo de 1, maior é a desigualdade na distribuição; se mais próximo de zero, menor é a desigualdade. O índice de Gini da distribuição da terra é igual a 0,86 em todos os censos analisados. Em 2006, os 50% menores estabelecimentos ficam com apenas 2,3% da área total ocupada, ao passo que os 5% maiores ficam com 69,3% da área (MDA, 2012).479 Houve variação apenas na terceira casa decimal: censos agropecuários de 1985, 0,857; de 1995/1996, 0,856; e de 2006, 0,854 (HOFFAMANN; NEY, 2010).480 O conceito de agricultura familiar utilizado pelo censo agropecuário é o delimitado pela Lei n.º 11.326, de 24/07/2006, que define as diretrizes que orientam a formulação da “Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais” (IBGE, 2009).481 Participação da agricultura familiar nos cultivos: 87,0% da produção de mandioca, 70,0% de feijão (sendo 77,0% do feijão-preto, 84,0% do feijão-fradinho, caupi, de corda ou macáçar e 54,0% do feijão de cor), 46,0% do milho, 38,0% do café, 34,0% do arroz, 58,0% do leite (58,0% do leite de vaca e 67,0% do leite de cabra); 21,0% do trigo. Na produção animal: 59,0% do plantel de suínos, 50,0% do plantel de aves, 30,0% dos bovinos (IBGE, 2009).

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Contudo, apesar da pujança da agricultura familiar, é desproporcional o aporte de recursos financeiros destinados para a agricultura familiar e para a empresarial (agronegócio). No plano safra 2012/2013, o governo liberou 115,5 bilhões de reais destinados à agricultura empresarial e 22,3 bilhões de reais para a agricultura familiar, o que evidencia o viés político e ideológico no incentivo à produção do campo482.

De acordo com Sérgio Sauer (2008), o agronegócio, termo que se materializou por iniciativa da Associação Brasileira de Agribusiness (Abag) e de grandes empreendimentos a ela vinculados, em 1993, ao associar-se à ideia de utilização de técnicas intensivas de produção e ao aparato da Revolução Verde483, contrapõe-se, por um lado, à lógica do latifúndio e das grandes extensões de terra destinadas à especulação e, por outro, à produção de subsistência. A construção da categoria agricultura familiar também se deu na década de 1990. Essa expressão, do mesmo modo oriunda do modelo norte-americano, buscava estabelecer uma ruptura com a noção de ineficiência associada à pequena produção ou à produção de subsistência ou camponesa. O autor destaca a criação, em 1995, do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), fruto das mobilizações e reivindicações dos trabalhadores rurais por políticas agrícolas diferenciadas para os setores historicamente marginalizados e empobrecidos do campo, como elemento fundamental para a construção da noção de agricultura familiar. Este conceito se consolidou nos meios acadêmicos, governamentais e no movimento sindical de trabalhadores rurais, coordenado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Assim, ao se referir ao embate político e teórico entre agronegócio e agricultura familiar, o autor aponta que o objetivo do conceito de agricultura familiar – como contraponto ao agronegócio - foi o de “construir uma representação, para o segmento social, capaz de distanciá-lo da visão de atraso e ineficiência até mesmo de ‘aversão’ ao mercado ...” (SAUER, 2008, p. 25)

Para Schneider e Niederle (2008), em termos conceituais, agricultores familiares e camponeses pertencem ao mesmo grupo social e apresentam semelhanças entre si, a exemplo da precariedade de acesso a bens produtivos, como terra, recursos financeiros, canais de comercialização. Utilizam mão de obra familiar, cujos laços de consanguinidade imprimem coesão ao grupo

482 Informações obtidas nos sítios oficiais do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) 483 Revolução Verde: intervenção do Estado e de organismos internacionais no meio rural de países da América Latina com o objetivo de superar o atraso e a pobreza que impediam sua integração aos processos de modernização do campo, mediante substituição dos fatores de produção (ênfase na disseminação de sementes híbridas ou melhoradas, fertilizantes e maquinário moderno) (SCHNEIDER, 2010).

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social, que compreende trabalho e produção como um todo indivisível. E, ainda, mantém a produção, em maior ou menor grau, para o autoconsumo, o que lhes confere certa autonomia cultural e econômica.

Na medida em que se intensificam os processos de mercantilização e integração ao mercado, reduz-se a autonomia social e econômica das unidades familiares. Assim, a manutenção e a persistência das unidades familiares estão diretamente relacionadas às diversas formas de integração social, econômica e cultural no interior do capitalismo (SCHNEIDER; NIEDERLE, 2008).

Na estrutura agrária brasileira se reproduz, ao longo do tempo, o caráter concentrador de renda; nesse contexto, a agricultura familiar oscila entre assimilar práticas mercantis de integração ao mercado e a busca de alternativas de produção agrícola e de obtenção de renda.

3. ARCABOUÇO LEGAL AGRÁRIO

3.1 ESTATUTO DA TERRA E DO TRABALHADOR RURAL

Raymundo Laranjeira (2000) revela o contexto de criação do Estatuto da Terra, por ele considerada a lei básica do agrarismo brasileiro. Sua elaboração se deu a partir das orientações econômicas de Roberto Campos484, com o fim de intervenção mais concreta da economia capitalista no mundo rural. O propósito do Estatuto era o de reorganizar a estrutura fundiária do País, de forma a oferecer condição ao desejado desenvolvimento.

Octávio Mello Alvarenga (2004) também escreve acerca da origem do Estatuto da Terra. O autor afirma, com base nas conclusões de Roberto Campos enquanto embaixador brasileiro em Washington, que toda a legislação agrária da América Latina provinha de orientação dos Estados Unidos, a partir da derrota sofrida pelos norte-americanos em seu intento de invadir Cuba, em 1961. A estratégia adotada frente à ameaça comunista era promover leis de reforma agrária de viés capitalista. Essa orientação se concretiza em reunião envolvendo todos os países americanos, realizada em 1961 em Punta Del Este.

Para Francisco Graziano (2004), o Estatuto da Terra já nasce conservador, constituindo-se em instrumento jurídico capaz de dar sustentação à expansão do sistema capitalista no campo.

Os militares, comandados por Castelo Branco, surpreendentemente roubaram a bandeira da esquerda e promulgaram o Estatuto da Terra, propondo a chamada ‘solução democrática’ à ‘opção socialista’. (...) Estava evidente a estratégia: ao destruir o latifúndio e promover a empresa

484 Ministro do Planejamento do governo de Humberto de Alencar Castello Branco.

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rural, fortalecia-se o empreendedor rural, aumentando a produtividade junto com a melhor distribuição da posse da terra. Os camponeses tenderiam a se aburguesar (2004, p. 14).

No contexto de surgimento do Estatuto da Terra, os trabalhadores rurais, em especial, eram mantidos à margem de qualquer proteção legal, apesar de vigorar, desde 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho, Decreto-Lei n.º 5.452. Não havendo quem os representasse, permaneceram isolados, ignorando a maior parte de seus direitos. Por tal motivo, Caio Prado Júnior (2000) manifesta sua surpresa quando da promulgação da Lei n.º 4.214, de 2 de março de 1963, em razão do descaso com que a elaboração do projeto de lei foi tratado pelas forças políticas à época que, segundo o autor, não se aperceberam da potencialidade renovadora que a nova lei poderia imprimir à estrutura econômica e social agrária e, por extensão, ao trabalhador rural. Tanto que a considerou como “verdadeira complementação da lei que aboliu a escravidão em 1988” (PRADO JÚNIOR, 2000, p. 143).

Contudo, houve falha do legislador por não levar em conta as gritantes diferenças existentes entre as relações de trabalho que se configuram no campo e as que se estabelecem nos setores urbanos. A lei se limitou a simplesmente transpor as disposições legais já existentes para os trabalhadores da cidade, com raras exceções. Uma das deficiências fica evidenciada logo na definição do trabalhador rural, que o descreve como “toda pessoa física que presta serviços a empregador rural, em propriedade rural ou prédio rústico, mediante salário pago em dinheiro ou in natura, ou parte in natura e parte em dinheiro”. Entretanto, há categorias de trabalhadores que estabelecem relações de trabalho cuja natureza real caracteriza vínculo empregatício, embora formalmente apresentem caráter diverso, a exemplo dos parceiros e meeiros. Portanto, grande parte das reais relações de trabalho mostram-se mascaradas pelo formalismo jurídico, fazendo perdurar a exclusão do trabalhador rural da proteção legal (PRADO JÚNIOR, 2000, p. 145).

Na prática, porém, sua aplicação foi tímida, tendo sido revogada, em 08 de junho 1973, pela Lei n.º 5.889, regulamentada pelo Decreto n.º 73.626/74. Este diploma legal, por sua vez, continua tão somente estendendo aos trabalhadores rurais o mesmo tratamento conferido aos urbanos, apenas levando em conta algumas poucas peculiaridades que os diferenciam.

4. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E CONTRATOS AGRÁRIOS

No contexto do direito agrário ocorrem as maiores distorções no uso e fruição do direito de propriedade, causando conflitos que chegam, inclusive, a violar os direitos humanos485.

485 Um exemplo emblemático é o massacre de Eldourado dos Carajás/PA, ocorrido em 17 de abril

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Cumprir a função social da propriedade agrária, portanto, pressupõe contribuir para a promoção do bem estar, de forma a atender às necessidades da comunidade, gerando emprego, aumentando a renda, possibilitando equilíbrio entre as diversas camadas sociais e efetivando o desenvolvimento rural com justiça social.

Com a Constituição da República de 1988, a função social é adotada como princípio fundamental. Como observa Didier Júnior (2012), dois princípios fundamentais estabelecidos no artigo 170 regem a ordem econômica: a propriedade privada e a sua função social, elementos que estruturam a regulação da iniciativa privada. Numa análise superficial, ambos os princípios

poderiam ser entendidos como antitéticos, na verdade se complementam, sendo a função social, atualmente, vista como parte integrante do próprio conteúdo do direito de propriedade, seu outro lado — ‘só há direito de propriedade se este for exercido de acordo com a sua função social’ (DIDIER JÚNIOR, 2012, p. 2).

Particularmente para a propriedade rural, o artigo 186, da Constituição da República, indica os requisitos necessários para atender a sua função social, desde que cumpridos de forma simultânea. A Lei n.º 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, repetindo o já estabelecido pela Constituição Federal, disciplina e regulamenta as disposições sobre a reforma agrária, tanto que o caput do artigo 9º da lei repete o artigo 186 e incisos, da Constituição Federal. Como se trata de lei complementar, destinada a regulamentar as normas constitucionais, seu texto descreve, pormenorizadamente, os requisitos constitutivos da conceituação jurídica de função social, aplicada à propriedade agrária.

Para Araújo (2000), as exigências previstas no Estatuto da Terra, em particular o artigo 2º, parágrafo 1º, equivalem àquelas que integram o artigo 9º da Lei n.º 8.629/93. Da mesma forma, a esses deveres, incumbe ao Estado obrigações correspondentes, quais sejam: a) promover condições de acesso do trabalhador à propriedade da terra; b) cuidar para que a propriedade agrária realize sua função social, promovendo a justa remuneração do trabalhador, tornando-o beneficiário dos aumentos de produtividade e promovendo o bem estar coletivo, conforme exarado no Estatuto da Terra, parágrafo 2º, também do artigo 2º. A autora conclui que a distorção existente na estrutura agrária nacional, assentada na grande propriedade, deve-se ao absenteísmo do proprietário, cujas finalidades, de forma geral, são especulativas.

Por outro lado, Francisco Graziano (2004, p. 14) defende que a reforma agrária perdeu o sentido. As transformações havidas na agricultura nos anos de

de 1996, que resultou na morte de 19 trabalhadores sem terra.

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1970 e 1980 constituíram-se na “primeira revolução agrícola”, período marcado não apenas pela manutenção, como também pela expansão da grande produção rural, o que propiciou aos latifúndios converterem-se em empresas rurais.

Segundo Araújo (2000, p. 166), com o propósito de “ampliar os limites da inafetabilidade da grande propriedade” é que surge a figura da ‘propriedade produtiva’, prevista na Lei n.º 8.629. A autora associa a função social da propriedade à dimensão econômica:

... a diretriz norteadora do sistema normativo agrário brasileiro é aquela consubstanciada no condicionamento da propriedade à sua função social. Um conceito que não é apenas jurídico, mas é, também, um conceito econômico, de profunda repercussão social, visto que a terra é um fator de produção indispensável ao desenvolvimento da economia agrícola e, consequentemente, ao desenvolvimento nacional (ARAÚJO, 2000, p. 166).

Justamente esse viés economicista é criticado por Francisco Cardozo Oliveira (2011). Conquanto o direito de propriedade, atendida sua função social, seja erigido ao nível de direito e garantia fundamental, o autor considera que a objetivação dos propósitos da funcionalização do direito de propriedade imobiliária enfrenta limitações quanto a sua efetiva concretização. Tal dificuldade resulta da realidade histórica brasileira, que sobrepõe os interesses da propriedade privada aos interesses do trabalho, além da cultura liberal de preservação dos interesses proprietários.

A sobreposição dos interesses da propriedade privada sobre os do trabalho fica evidente, também, nas relações contratuais agrárias. Segundo José dos Santos Pereira Braga (2000, p. 313), os contratos de arrendamento, parcerias e uma gama de outras figuras atípicas traduzem-se em “formas de exploração indireta da terra e aviltamento do trabalhador rural, a que a lei empresta jurisdicidade.” Essas formas contratuais violam o princípio da função social da propriedade, porque estabelecem uma série de relações injustas entre os contratantes proprietários, muitas vezes ausentes, e trabalhadores sem condições de acesso à terra. O autor entende que o arrendamento e as parcerias rurais, regulados pelo Estatuto da Terra, representam real impedimento ao cumprimento da função social da propriedade agrária e à consequente realização da justiça social no campo, pois, ao garantir o desempenho econômico do imóvel, excluindo-o da reforma agrária, nega o direito fundamental de acesso à terra.

É necessário ponderar, contudo, que a funcionalização do contrato e do uso da terra pode produzir efeitos independentemente da titulação proprietária dado que, em última análise, a efetividade da função social resulta do uso e da utilidade que possam se materializar na realidade da vida social complementares ou mesmo contrapostos a finalidades estritamente mercantis.

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5. RESTRIÇÕES LEGAIS E SOCIOECONÔMICAS QUE INTERFEREM NA CON-SOLIDAÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR

5.1 A REGULAÇÃO JURÍDICA DA PROPRIEDADE DA TERRA

Segundo Francisco Graziano (2004), o marco legal a partir do qual se desencadearam ações governamentais em torno da reforma agrária foi o Estatuto da Terra, Lei n.º 4.504, de 1964. Para o autor, os avanços tecnológicos contribuíram para estender a fronteira agrícola e aumentar a produtividade em todas as regiões, produtos cultivados e tipos de produtor. Como consequência, as terras improdutivas foram diminuindo e os preços das desapropriações aumentando. O custo estimado para assentar uma família é de R$50 mil, ainda que em áreas distantes e com solos empobrecidos ou cobertos por vegetação. Francisco Graziano atribui a esses fatores a adoção, pelo governo federal, da reforma agrária “de mercado”, que consiste na compra de terras mediante negociações. E embora tenha reconhecido os aumentos de produtividade agropecuária, mesmo assim considera não haver mais terras para desapropriar, restando ao Poder Público a compra direta de fazendas, ainda que produtivas.

O Ministério Público Federal, entretanto, não assimilou a premissa de escassez de terras improdutivas; em 2010 o Ministério Público Federal ingressou com Ação Civil Pública, em face da União e do INCRA; a demanda teve o propósito de “corrigir os índices de produtividade que informam o conceito de produtividade de imóveis rurais, para efeito de definir o cumprimento de sua função social, conforme disposto no art. 186 da Constituição Federal de 1988” e, por consequência, disponibilizar terras para desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Um dos fundamentos da Ação diz respeito à defasagem dos índices atualmente praticados pelo INCRA, os quais foram fixados em 1980, tomando como referência o censo agropecuário de 1975 (MPF, 2010, p. 2).

A Lei n.º 8629/1993 estabelece parâmetros capazes de mensurar a produtividade de imóvel rural; o art. 6º enfatiza o primeiro termo do binômio ‘produtividade-justiça social’, que consagra o imóvel rural como ‘bem de produção’, e tenta determinar, mediante a utilização de graus de exigências, o cumprimento da função social da propriedade rural. Para que o imóvel seja considerado produtivo, deve-se levar em conta dois graus: o de utilização da terra (Grau de Utilização da Terra - GUT); e o de eficiência na sua exploração (Grau de Eficiência na Exploração - GEE). No primeiro, o índice deve ser igual ou superior a 80%, considerando-se a relação entre área efetivamente utilizada e área aproveitável total do imóvel; no segundo, o legislador exigiu eficiência igual ou superior a 100%. (ALVARENGA, 1997)

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Deve-se considerar, contudo, que a função social da propriedade não se limita à dimensão econômica relacionada à produtividade. O texto constitucional vai além, ao abranger aspectos trabalhistas e ambientais. Parecer Conjunto (2004), elaborado pelo Procurador Federal, Valdez Adriani Farias, e pelo Advogado da União, Joaquim Modesto Pinto Júnior, acerca da propriedade rural e sua função social, analisa a aparente antinomia entre a norma do artigo 185, II, e do artigo 186 da Constituição Federal. Ao referirem-se às condicionantes da função social da propriedade, eles apontam divergências interpretativas. Segundo os juristas, existem entendimentos que sustentam nítida distinção entre função social da propriedade e produtividade, entendendo suscetíveis de reforma agrária áreas improdutivas sob o ponto de vista meramente econômico; outros afirmam que a produtividade, ainda que estreitamente vinculada à função social, constituiria apenas uma de suas condicionantes. A premissa deve ser a de realizar intepretação sistemática da Constituição de modo a alcançar na mensuração da função social elementos econômicos e sociais.

O simples reconhecimento jurídico de um direito de propriedade abstrato, alheio à complexidade da realidade social e histórica não é capaz de evidenciar o potencial de funcionalização. A função social contempla relações sociais e econômicas surgidas do conflito de interesses entre proprietários e não-proprietários. Daí a razão de a tutela da propriedade funcionalizada requerer a análise de valores da situação concreta, de forma a confrontar os interesses em conflito. Em termos de agricultura familiar o principal eixo do conflito de interesses está relacionado à estrutura agrária que concentra renda e monopoliza formas de produção agrícola.

6. POLÍTICAS AGRÍCOLAS E AGRICULTURA FAMILIAR

Um vez considerado que o acesso à propriedade da terra pode não ser suficiente para a consolidação da agricultura familiar, emerge a necessidade de conjugação de esforços em torno de políticas em benefício da agricultura familiar. Buainain, Romeiro e Guanziroli (2003) defendem a necessidade de implementar-se políticas agrícolas e agrárias destinadas ao fortalecimento e à consolidação da agricultura familiar, como forma de promover o desenvolvimento com equidade no espaço rural brasileiro. Consideram que no Brasil, a migração campo cidade representa o êxodo de refugiados do campo, muito diferente da realidade da Europa e dos Estados Unidos, onde as oportunidades do setor urbano-industrial suplantavam os fatores de expulsão da população rural. Por tais razões, no Brasil, para os que resistem em permanecer no campo, perduram situações precárias não apenas quanto ao acesso à terra, mas também relacionadas à educação, tecnologia e serviços de infraestrutura. Apesar desse quadro, a análise dos sistemas produtivos

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mostra que a agricultura familiar utiliza, de forma intensiva, os poucos recursos de que dispõe, sendo capaz de responder com geração de renda quando recebe apoio suficiente. Como estratégia de reprodução social, a agricultura familiar combina o desenvolvimento de variadas atividades produtivas, com distintos prazos de maturação e com fluxos de despesas e de receitas alternados. Entretanto, diversos são os condicionantes que interferem no desempenho das unidades familiares de produção, desde instituições e valores culturais familiares, até o contexto social e econômico onde se inserem, a disponibilidade de recursos, tecnologia, água, acesso a informação e à terra (BUAINAIN; ROMEIRO; GUANZIROLI, 2003).

Segundo Batalha, Buainain e Souza Filho (2013), é corrente o entendimento de que o fortalecimento da agricultura familiar depende da agregação de valor às matérias-primas por ela produzidas. Como estratégias de viabilização desse processo, são apontados o cultivo e a comercialização de produtos que evidenciem suas peculiaridades, tais como origem, sabor e fabricação artesanal. No que se refere ao acesso a tecnologias, os autores consideram que o escasso nível tecnológico da agricultura familiar não se restringe apenas à inadequação tecnológica disponível. Mesmo quando apropriada e ao seu alcance, a tecnologia não se transforma em inovação em razão da falta de condições capazes de propiciar a sua adoção. Nesse sentido, é preciso reconhecer que a viabilidade e a consolidação da agricultura familiar relacionam-se a um conjunto de fatores e de agentes, o que exige uma análise sistêmica.

No âmbito gerencial, os desafios a agricultura familiar são os seguintes: a) gestão de sistema, que se refere ao desenvolvimento de estratégias e mecanismos capazes de dar conta das relações entre os agricultores e outros agentes das cadeias produtivas, e mesmo dentro do próprio segmento, de forma a torná-los menos dependentes de comerciantes e de indústrias; b) gestão familiar da propriedade, relacionada aos obstáculos resultantes de instrumentos gerenciais disponíveis inapropriados, dos reduzidos investimentos em pesquisa e tecnologia empregados no segmento, da descapitalização das unidades produtivas familiares, impedindo o acesso a tecnologias e aos benefícios oriundos de seu uso, da educação formal precária do meio rural e da falta de capacitação dos técnicos responsáveis pela assistência e extensão rural destinada aos agricultores familiares.

Outra dificuldade reside na compreensão do funcionamento dos canais de comercialização, que requer articulações entre os agentes atuantes à jusante e à montante da porteira da unidade de produção familiar (BATALHA; BUAINAIN; SOUZA FILHO, 2013).

Em razão de inúmeros fatores - formação histórica e cultural, condições ambientais e maior ou menor alcance das políticas públicas - a agricultura familiar é heterogênea e complexa, o que exige adequar instrumentos de gestão

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à realidade das unidades familiares de produção, sem ignorar as condições de infraestrutura de que dispõem (energia elétrica, estradas vicinais, assistência técnica, entre outros). O simples acesso à terra, desse modo, não é suficiente para assegurar o sucesso da agricultura familiar.

Nesse sentido, Ivaldo Gehlen (2004) defende que a implementação de políticas públicas eficientes, capazes de superar heranças históricas de exclusão social, dispensam políticas compensatórias. Observa, entretanto, que as políticas tradicionais de concessão de crédito, por exemplo, não são suficientes para superar as desigualdades que ainda perduram entre populações do campo (quilombolas, negros, indígenas). O autor citar o exemplo do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) que reproduz uma racionalidade ‘moderna’, fundada na competitividade. Contudo, a agricultura familiar tem racionalidades que se fundamentam em valores éticos e de relação com o meio ambiente que não se enquadram na lógica mercantil (GEHLEN, 2004, p. 94, 95).

Para Schneider, Mattei e Cazella (2004), a criação do Pronaf representa a legitimação e o reconhecimento da categoria de agricultores familiares pelo Estado brasileiro, até então identificados como pequenos produtores ou agricultores de subsistência. Na história do País, não houve nenhuma política pública, de alcance nacional, desenhada e implementada para o segmento. Originariamente, o programa nasce em 1994, com a designação de Provap (Programa de Valorização da Pequena Produção Rural), sendo reformulado em 1995 e acaba institucionalizado, em 1996, mediante o Decreto Presidencial n.º 1.946.

As normas do Pronaf previam a criação de conselhos gestores como condição de acesso a recursos financeiros disponibilizados em sua linha de atuação destinada a financiamentos de infraestrutura e serviços. Nesse sentido, Ricardo Abramovay (2001) observa o entendimento de estudiosos do tema acerca da constatação de que a criação do Pronaf representou uma sensível mudança nas políticas públicas voltadas para campo.

Não há dúvida de que o simples fato de recursos federais destinados a um município passarem pela mediação de um conselho formado por representantes da sociedade local já constitui uma inovação organizacional significativa. Mas para que esta conquista marque um fortalecimento da sociedade civil, é necessário que ela se traduza em real aumento da capacidade de geração de renda e da confiança da sociedade em suas possibilidades de desenvolvimento (ABRAMOVAY, 2001, p. 122).

O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE, 2006) desenvolveu pesquisa com o propósito de avaliar os impactos do Pronaf na qualidade de vida das famílias de agricultores, nos seus estabelecimentos e

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sistemas produtivos, bem como na economia local e regional do Paraná. A amostra estudada compreendeu um universo de 2.400 beneficiários, distribuídos nos grupos C, D e E do Pronaf486, safra 2004-2005, em 144 municípios do Paraná, com 800 entrevistas para cada um dos grupos. (IBASE, 2006).

Os resultados da investigação são profícuos, mas extensos. Por tal razão, destacam-se algumas das conclusões, como forma de tentar retratar os impactos dessa política pública no Paraná.

Houve significativo aumento no acesso ao crédito pela agricultura familiar487, tanto no âmbito federal quanto no Estado do Paraná. Entretanto, o programa mostrou-se incapaz de implementar, de forma abrangente, linhas de crédito para agroindústria e agroecologia, além de dificultar a diversificação produtiva, embora haja demanda para tais modalidades de crédito. Revela-se, ainda, deficiente quanto à geração de renda proveniente da adoção de processos de agregação de valor às matérias-primas cultivadas, pondo em questionamento a política de agroindustrialização da produção familiar.

As politicas desenvolvidas, apesar dos benefícios, ainda não se mostram suficientes para alterar de forma significativa os constrangimentos sociais, econômicos e jurídicos para a agricultura familiar.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Persistem, no Brasil, problemas estruturais relacionadas à concentração fundiária e aos conflitos pela posse e uso do solo no espaço rural. Os dados estatísticos dos últimos censos agropecuários revelam que a desigualdade na distribuição da propriedade no campo mantém-se praticamente inalterada ao longo do tempo, caracterizando o velho bimodalismo presente desde o Brasil colônia.

Enquanto os grandes estabelecimentos rurais, representados pelo agronegócio, propiciam a obtenção de expressivos ganhos na balança comercial do País, enfatizando o viés econômico desse modelo de produção, sua lógica

486 No âmbito do Pronaf, os agricultores familiares tomadores de crédito são diferenciados em grupos, de forma a ajustar as condições de financiamento à realidade econômica de cada um. Grupo A: assentados de reforma agrária; B: agricultores familiares, remanescentes de quilombos, indígenas e trabalhadores rurais com renda bruta anual de até R$2.000,00; A/C: agricultores provenientes dos processos de reforma agrária, aos quais se destina o primeiro crédito de custeio; C: agricultores familiares com renda bruta anual entre R$2.000,00 e R$14.000,00; D: agricultores com renda bruta anual entre R$14.000,00 e R$40.000,00; E: agricultores com renda bruta anual entre R$40.000,00 e R$60.000,00 (IBASE, 2006).487 Comparando-se a safra 2000/2001 e 2005/2006, o número de contratos do Pronaf no País teve um crescimento superior a 110%, período que registrou também aumento do volume de recursos de R$2,2 bilhões para 7,6 bilhões. No Paraná, nesse mesmo período, houve incremento de 41% no número de contratos, com volume de recursos passando de R$313,8 milhões para R$827,8 milhões (IBASE, 2006).

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produtiva está invariavelmente associada ao monocultivo, ao uso intensivo de agrotóxicos e aos vazios demográficos decorrentes da concentração de terras.

A agricultura familiar, grande responsável pelo abastecimento de alimentos no País, caracteriza-se pela complexidade e diversidade de componentes, de lógicas produtivas e de formas de reprodução social. Em razão das limitações a que está submetida - reduzida disponibilidade de terra e de infraestrutura - adota sistemas diversificados, estruturados na mão de obra familiar, buscando reduzir riscos econômicos e alimentares. Como consequência de suas práticas, logra utilizar os recursos de que dispõe de maneira mais intensa.

O arcabouço legal contribui para conservar a assimetria no tratamento dispensado aos distintos modelos, a começar pela Lei de Terras de 1850, que reforçou a concentração fundiária, tornando cativa a terra em face da libertação dos escravos. Na década de 1960, surgem o Estatuto da Terra (Lei n.º 4.504/64) e o Estatuto do Trabalhador Rural (Lei n.º 4.214/63); o primeiro, mesmo tendo por objetivo expandir o capitalismo no campo, mediante a realização da reforma agrária e da disseminação da pequena propriedade rural, não logrou êxito, pois era necessário eliminar o latifúndio, o que significava afrontar os interesses de proprietários rurais; o segundo, apesar de considerado por Caio Prado Júnior como complementação da lei que aboliu a escravidão, mostrou-se incapaz de compreender a realidade do campo; relações de trabalho com características de vínculo empregatício eram tomadas, em razão do formalismo jurídico, como sendo de arrendamento, parceria e meação, práticas desenvolvidas por agricultores familiares sem ou com pouca terra.

A Constituição Federal de 1988 incorporou o instituto da função social da propriedade, ao mesmo tempo em que propiciou a descentralização das ações do Estado como forma de efetivar o acesso das populações a políticas públicas. Na década de 1990, os movimentos sociais do campo constroem politicamente o conceito de agricultura familiar, evidenciando sua importância não apenas no aspecto econômico, em termos produtivos e de ocupação de mão de obra, mas também nas dimensões social, ambiental e cultural. O conceito de agricultura familiar está regulado Lei da Agricultura Familiar e dos Empreendimentos Familiares Rurais n.º 11.326, de 24/07/2006.

Essa trajetória evidencia que os agricultores familiares e trabalhadores rurais estão forjando um projeto de sociedade em que o campo assume um papel de protagonismo. A clássica vinculação do rural ao atraso e à precariedade cede lugar a noções de desenvolvimento rural e de sustentabilidade, que contemplam não apenas o crescimento econômico e os ganhos em produção e produtividade, mas também as dimensões socioculturais, políticas e ambientais envolvidas nos processos produtivos e de reprodução social dos sujeitos do campo.

Contudo, apesar dos avanços e da reconhecida importância de determinadas políticas públicas, ainda não se observou alteração significativa nas condições de vida dos produtores rurais.

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SOCIEDADE DE RISCO, NOVA QUALIDADE DE RISCO RISCO PAN COLETIVO E DIREITO PENAL

edSon FiSCher488 FáBio andré guaragni489

A teia social490, aquilo que se convencionou chamar de “sociedade”, muda no decorrer do tempo e o Direito Penal (um ramo do Direito particularmente complexo e poderoso, e um produto social) se molda para poder atender aos fins para ele designados ao longo do tempo – quer sejam esses fins legítimos ou ilegítimos, velados ou declarados – visando, assim, a atender à função que lhe foi imposta em determinada época: geralmente algum tipo de controle social, manutenção ou modificação da ordem vigente, garantia (mesmo que por atuação tardia) do pacto social tácito (ou imposto) vigente naquele momento, dentre outros.

Esta adaptação operada pelo Direito Penal (muitas vezes no intento de garantir sua própria sobrevivência, como um instrumental que ainda se faça necessário) costuma ser ditada pelo poder organizacional que molda a teia social de seu tempo, geralmente o poder econômico. Neste sentido, Nilo Batista491:

Quem quiser compreender, por exemplo, o direito assírio, o direito romano, ou o direito brasileiro do século XIX, procure saber como assírios, romanos e brasileiros do século XIX viviam, como se dividiam e se organizavam para a produção de bens e mercadorias; no marco da proteção e da continuidade dessa engrenagem econômica, dessa “Ordem Política e “social”.

488 Bacharel em Direito e Especialista em Direito Penal e Criminologia489 Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Realizou estágio Pós-Doutoral na Università degli Studi di Milano. Professor da Escola da Magistratura do Paraná - EMAP e professor da Fundação Escola do Ministério Público do Paraná – FEMPAR. Atualmente é professor titular do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.490 Prefere-se empregar, na tentativa de alcançar o sentido aqui almejado, o termo teia social para se referir ao fenômeno de interação humana, com todas suas nuances de poder e reflexibilidade, em lugar do termo comumente utilizado – sociedade – posto que se entende que este último pode passar uma idéia equivocada de unidade e consenso, além de deixar de açambarcar toda a referida complexidade do fenômeno que é organizado em forma de rede – idéia muito melhor exprimida pela expressão teia.491 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Editora Revan. Rio de Janeiro. 8ª Edição, p. 19.

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Nesta perspectiva, espera-se que o Direito Penal de agora, em um fenômeno quase que “natural”492, esteja adaptado ou adaptando-se às particularidades da atual teia social, a qual parece ser regida pela relevante existência e tentativa de controle - função sempre precípua para o Direito Penal – do risco, tanto que se convencionou chamá-la de “Sociedade de Risco”, como dito por Ulrich Beck493.

Para continuar a existir, o Direito Penal deve se adaptar à Sociedade de Risco Global que ora se apresenta e, de fato, tem tentado fazê-lo (muitas das incongruências e dificuldades enfrentadas por tal ramo do Ordenamento Jurídico se devem ao fato de ele operar com mecanismos e organismos ainda não adaptados a esta nova realidade). Depara-se, no entanto, com uma conjuntura nunca dantes enfrentada, talvez nunca antes imaginada: uma realidade rápida, líquida, mutável e perigosa, além de, como já dito, nova e original – embora alguns autores afirmem que pouca coisa realmente mudou, o que teria ocorrido seria apenas uma troca dos riscos do passado por outros da atualidade.

Tentar-se-á demonstrar, neste ensaio, que tal crítica talvez não proceda. Entende-se que houve sim uma mudança no tipo (na qualidade), na quantidade e nas dimensões dos riscos atuais em relação aos riscos outrora existentes, bem como em toda a teia social e nos pilares de sua estrutura e organização.

1. SOCIEDADE DE RISCO GLOBAL

Antes de qualquer coisa, para se adentrar ao cerne do aqui exposto, tentar-se-á conceituar aquilo que se entende por Sociedade de Risco Global, conforme proposto por Ulrich Beck494. Para tanto, apresentar-se-á suas características principais.

Basicamente, se pode entender como Sociedade de Risco Global aquele tipo de teia social que é: global (eficientemente interligada, pela facilidade e rapidez de transporte e de comunicação), rápida, líquida, semi infronteiriça, e convivente com grandes potencialidades (oriundas do imenso poderio técnico-científico construído e acumulado pela humanidade) e assim, conseqüentemente, assombrada por enormes riscos (oriundos do mesmo poderio técnico-científico). Riscos que, ainda por cima, são alavancados pela já apontada velocidade de transporte e de comunicação, além de ser – esta teia social – profundamente reflexiva.

492 Evidentemente se percebe aqui que o Direito e seus fenômenos nada têm de naturais, pelo menos não no sentido biológico do termo (próprio das ciências biológicas) – a menos que seja considerado como uma manifestação intrínseca involuntária decorrente da essência específica (da espécie) humana, mas isso é outra discussão – escolheu-se o termo somente para melhor se ilustrar aquilo que se pretendia comunicar, levando em conta a limitação inerente à fala e à escrita – Teoria da Linguagem493 BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo Global. Siglio Veintiuno de España Editores. 2002494 BECK,Ulrich. La Sociedad del Riesgo Global. Siglio Veintiuno de España Editores. 2002.

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Este tipo de organização social é caracterizado por alguns fenômenos bastante visíveis e únicos, tais quais:

a) Ausência de “bandeiras coletivas” e aquilo que se pode chamar de geração do “primeiro eu” – não se observa mais indivíduos unidos por ideais sociais ou coletivos comuns, em maior escala, nem mesmo auto-engajamento ou abnegação particular em nome de tais ideais (filiações partidárias, posicionamento geral consciente, etc.). Também se nota, na maioria dos indivíduos, sobretudo nos mais jovens, uma busca quase que incessante por prazer rápido, imediato e perene (perene não no sentido de duradouro, mas de incessante), além da dificuldade de comprometimento com obrigações de qualquer tipo e de suportar frustrações temporárias – o que implica optar, quase sempre, pelo caminho mais rápido, mesmo que menos consistente495.

b) Mudança de posições na relação “hierárquica” e de dependência entre Estado e Corporação – observa-se, hoje em dia, tanto em cidades pequenas quando em urbes maiores (embora o fenômeno seja mais explícito nas primeiras) uma mudança na relação entre estes dois entes, tendo em vista que, antes, o Estado ocupava o papel “dominante” e definidor, coisa que não mais ocorre atualmente.

O que se observa hoje em dia, em alguns casos, é uma quase subjetação do Estado pela Corporação, com o primeiro curvando-se sob a segunda e buscando atender aos seus interesses, numa relação de interdependência que beira a submissão. Existem determinadas empresas, multinacionais, que têm um faturamento maior que o PIB de alguns países. Também é comum se observar autoridades executivas (municipais na maioria das vezes, mas não somente estas) em posição de solicitantes perante as empresas, muitas vezes até disputando o interesse de determinada companhia em instalar-se na região (fazendo para isso todo tipo de concessão, oferecendo vantagens e “serviços”, quase colocando a máquina estatal – que é pública – à disposição da corporação), ao contrário do que ocorria antigamente, quando determinada companhia (corporação) precisava angariar a permissão estatal para ali se alocar, atendendo ela aos ditames estatais.

c) Progressiva ruptura da idéia de Estado-Nação, com enfraquecimento da identidade cultural própria, estreitamento das fronteiras (às vezes até ruptura das mesmas) e abdicação cada vez maior da soberania (entendida como poder supremo no âmbito interno e independente no âmbito internacional) com organização em grandes blocos de interesse – MERCOSUL, União Européia, ALCA etc – rumando, aparentemente, para nações ou “aldeias” globais.

d) Ausência de moral coletiva generalizada, com formação de pequenos grupamentos sociais pueris (muitas vezes de duração e consistência efêmeras)

495 A intenção aqui é apenas retratar o fenômeno; não se pretende fazer nenhuma alusão ou valoração moral do descrito.

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com determinada identidade moral (não necessariamente positiva ou negativa), muitas vezes denominados de “tribos” modernas. Ausência de crenças peremptórias e estanques.

e) Aumento na tolerância496 com as diferenças e opções de vida e comportamento destoantes da maioria.

f) Reflexibilidade intensa – todas as relações de influência hoje em dia parecem ser intensamente reflexivas. Não é mais o país colonizador que unilateralmente influência o colonizado, ambos se influenciam e se moldam continuamente. Portugal influencia e influenciou o Brasil que, reflexivamente influencia o primeiro (por meio, por exemplo, de produtos midiáticos como as telenovelas). A própria música e as demais manifestações artísticas brasileiras exercem influência no exterior, bem como valores religiosos e culturais africanos são vistos em países da América do Norte e Europa, os quais, por sua vez, influenciam a África em questões consumistas. Ou os povos árabes que são aculturados pelas grandes potências, mas, devido entre outros fatores à posse de petróleo, transferem valores de sua cultura para estes mesmos povos ocidentais, dentre tantos outros exemplos possíveis de reflexibilidade.

Fenômeno este (reflexibilidade) que é observado não só na relação entre povos, mas também nas relações interpessoais e entre Estado e indivíduo – não existe diploma jurídico mais reflexivo que a Constituição, seguido pelos Códigos Penais e Processuais Penais. É importante ressaltar que a reflexibilidade sempre existiu, pois jamais se observou uma relação de influência totalmente unilateral; o que se tem hoje em dia é uma exacerbação desta condição reflexiva.

h) Intenso fluxo de informações e “democratização” do conhecimento, bem como tendência irreversível ao acúmulo e especialização, setorização do mesmo. Não se encontram mais conhecedores generalistas (pessoas capazes de dar conta, com propriedade, de todas as áreas do conhecimento existentes) hoje em dia. O conhecimento tende a ser vasto, mas também muito aprofundado e específico.

i) Guetização da dita burguesia – os detentores de maior poder econômico tendem a “guetizar-se”, formando pequenos guetos que seriam os espaços de tranqüilidade, tais como a casa bem cercada, o centro de compras (shopping center), os clubes de recreação, estacionamentos, dentre outros locais onde o risco de confronto com a camada menos favorecida é diminuído.

496 O termo tolerância é bastante complicado: enseja certa hierarquia na sua aplicação e também uma idéia de permissão. Como se o que tolera – portanto correto – permitisse, concedesse ao tolerado – por tanto não correto – a possibilidade de manifestação ou existência que, embora não muito agradável será tolerada, permitida e concedida pelo tolerante, sempre, é claro, dentro dos limites arbitrariamente estabelecidos para esta “tolerância”. A tolerância enseja sempre uma relação vertical. O mais adequado seria empregar o termo respeito, que enseja uma relação horizontal.

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O grande problema ocorre no deslocamento entre esses espaços de tranqüilidade, quando se está desprotegido e sujeito às interações e intempéries sociais primitivamente violentas, as quais se deseja evitar e que geram a sensação de insegurança mais palpável, mais facilmente percebida.

j) Intensa e prolífica geração de riscos, oriundos do grande acúmulo técnico e potencializados pela velocidade de transporte e comunicação, gerando o aumento dos potencias lesivos reais, o aumento do imaginário popular sobre os estes potenciais (medo do risco, rapidamente propagado pelos eficientes meios de comunicação), causando também o chamado risco de risco e, obviamente, tentativas de controle desta situação.

j) Aparente incapacidade das instituições referenciais básicas (popularmente conhecidas como “autoridades”) em resolver problemas urgentes e crescentes, tais como o desemprego, pelo aporte econômico clássico – manutenção do capitalismo irresponsável, almejado por tanto tempo.

k) “Explosividade” social, com tendência revoltosa (seja legítima ou não) das camadas antes mais submissas da população, gerando novas demandas (e novos riscos) com as quais as já citadas instituições referenciais básicas parecem não conseguir lidar – exemplo a “Primavera Árabe”.

l) Revolução de gêneros e liquefação dos antes bem definidos papéis sociais e familiares.

m) Aumento, mesmo que insipiente, na força do discurso jus naturalista dos Direitos Humanos e incorporação, lenta e progressiva, deste ideal na consciência coletiva global.

n) Tendência ao aumento no número e na efetividade das intervenções internacionais, novamente enfraquecendo a idéia de Estado – Nação.

Toda esta teia social nova, denominada Sociedade de Risco Global, se apresenta como a realidade atual, forçando e ditando novas interações humanas e exigindo adaptação por parte de todos os setores sociais.

Como não poderia deixar de ser, o Direito Penal – que pretende sobreviver – responde a este conclame, acabando por atuar, para bem e para mal, como um instrumento de gestão de risco, um ineficaz (mas, talvez, indispensável por enquanto) gestor de uma qualidade e de uma quantidade de risco nunca dantes vistos.

2. CRÍTICAS À IDÉIA DE SOCIEDADE DE RISCO E RISCOS DE QUALIDADE MAIOR – SUPOSIÇÃO DE QUE SÓ OCORREU UMA TROCA DOS RISCOS ANTIGOS POR NOVOS RISCOS DE IGUAL PREPONDERÂNCIA

Existe uma corrente, de certa maneira encabeçada por Jhon Adams, que diz que a conjuntura social ora presente não é algo inédito nem absolutamente novo, capaz de gerar novas necessidades e diferentes tipos de interação e respostas sociais.

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Esta linha afirma, em resumo, que o que ocorreu foi apenas uma troca dos riscos anteriores por riscos novos, próprios do tempo atual, mas de igual valor (qualidade e potencialidade), tendo em vista que antigamente se estava muito mais sujeito a saques e a crimes violentos, nas aldeias medievais, por conta da ausência estatal e incapacidade (técnica) do mesmo em se fazer presente e responder (coibir tais práticas), por exemplo. Poder-se-ia levantar também a idéia de que, em tempos remotos, as tecnologias de controle e gestão de risco eram menos eficientes do que as atuais, com isso reforçando seu ponto de vista, dentre demais argumentos, apontados ou não na crítica existente.

Tentar-se-á demonstrar, a seguir, que tais críticas não parecem prosperar sob um olhar analítico mais acurado e, ao mesmo tempo, mais abrangente – no sentido de se olhar “mais de cima”, para se ter uma visão mais generalizada e, também, de descer ao ponto específico, para que o conhecimento pretensamente seja tanto amplo, quanto profundo, assim como as ilações dele oriundas.

3. IMPROCEDÊNCIA DAS CRÍTICAS – MUDANÇA QUANTITATIVA E QUALI-TATIVA DOS RISCOS E RISCO PAN COLETIVO

Conforme a argumentação anterior, as críticas resumidamente apontadas (no sentido de que não houve efetiva mudança no panorama mundial do risco, ocorrendo apenas uma troca dos anteriores por riscos próprios do tempo - da conjuntura social - atual) não parecem ser acertadas, ao menos não totalmente, como se tentará demonstrar.

Entende-se que houve sim uma mudança significativa tanto no quadro geral de riscos apresentados (imediatos ou futuros, reais ou potenciais), quanto na qualidade (potencial lesivo e alcance, dentre outros) desses mesmos riscos e, também, na própria teia social.

Em primeiro plano, há que afastar a idéia de troca, como se os riscos anteriores (invasões, violências sexuais e ataques à vida e ao patrimônio – basicamente toda a conflitividade violenta, primitiva, também conhecida como “criminalidade clássica”) tivessem sido substituídos por riscos novos.

Isso não parece ser o que ocorre efetivamente, pois, aparentemente, o que se tem é um acúmulo dos riscos “antigos” com os riscos mais “modernos”, além de uma superpotencialização, uma exacerbação dos riscos primitivos, fortemente alavancados pelo potencial tecnológico de alcance ordinário – armas de melhor qualidade, venenos, suportes eletrônicos, dentre outros.

A experiência empírica demonstra que não desapareceram da teia social nem do imaginário popular os riscos que podem ser chamados de clássicos (os antigos). Ainda que não tenham aumentado (o que parece ser o caso – um aumento quantitativo considerável), continuam a existir na mesma quantidade

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proporcional (a população mundial cresceu, ampliaram-se as possibilidades de escassez de recursos, apesar da tecnologia melhor, o que vem a contribuir para o aumento do número de situações de conflito): parece ocorrer um número proporcionalmente igual ou até maior de invasões, violências sexuais, ataques ao patrimônio e violações da vida e da integridade física, se comparado a épocas mais remotas, quando a figura equivalente ao Estado era menos presente, geograficamente falando, e, portanto, estes riscos tenderiam a serem maiores – como na Idade Média, ou até na Antiguidade Clássica, por exemplo.

Além disso, percebe-se que estes conflitos primitivos tornaram-se progressivamente mais danosos, graças ao incremento técnico dos instrumentos de destruição individuais disponíveis – armas individuais, pequenos artefatos explosivos (para invasões e agressões), sejam eles de manufatura artesanal ou industrial –, acesso a aparelhos eletrônicos e de comunicação (computadores usados para furtos ou fraudes, por exemplo), facilidade de transporte (para fugas e perseguições), acesso a informação e ao conhecimento úteis para fins violentos, dentre outros.

Ou seja: os riscos clássicos ainda existem, em quantidade igual ou superior à de antigamente, coexistindo com os riscos modernos e sendo, ainda por cima, potencializados.

Aliás, parecem ser justamente essas as causas de um dos fenômenos mais presentes e visíveis (e, portanto, constituinte) daquilo que se convencionou chamar de Sociedade de Risco Global: a “guetização” da burguesia, já tratada anteriormente.

Juntamente com isso, há que se observar o que talvez seja a constatação mais poderosa contra as críticas apresentadas: a mudança qualitativa (tanto de potencial danoso quanto de alcance deste potencial) nos riscos que se apresentam hoje.

Na melhor das hipóteses (mais adequado seria dizer na pior das hipóteses), os riscos primitivos eram coletivos, ou em casos extremos, megacoletivos. Porém, geralmente se configuravam como individuais ou microcoletivos.

Individuais, porque eram determinantes para um único indivíduo ou para uma família, quando muito para um clã ou uma tribo – no caso de ataques de grupos armados com as armas disponíveis à época, assassinatos premeditados ou pequenas guerras de clãs, por exemplo, para seqüestrar mulheres, crianças, fazer escravos ou se apoderar de recursos patrimoniais.

Microcoletivos quando estes riscos eram determinantes para um aglomerado populacional maior, como aldeia inteira ou várias aldeias, um ramo étnico ou uma ramificação cultural única (não se concebia, até pouco tempo atrás, a perda de uma pequena cultura isolada como agressão afeta à toda a humanidade). Seriam exemplos guerras um pouco maiores, algumas catástrofes

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naturais (na época o homem tinha um reduzido potencial para causá-las) ou erros da engenharia rudimentar, entre outras possibilidades óbvias.

Poderiam ser entendidos como coletivos quando esses riscos afetavam um número tal de pessoas que suas identidades fundiam-se em uma identidade coletiva supra-individual (embora não existisse, ainda, a clara definição de interesse coletivo, no viés oriundo do princípio da alteridade497) de porte condizente com à época, tais como uma Cidade Estado, um grande grupo étnico ou até um Estado Nação medieval. Seriam exemplos desses riscos os casos de Guerras entre nações (França e Inglaterra), grandes invasões ou mudanças climáticas regionais (as quais, aparentemente, o homem ainda não tinha poderio para ocasionar, ao menos não de maneira tão rápida).

Por fim, os raríssimos casos onde os riscos eram (na pior hipótese imaginável à época, repita-se) megacoletivos. Tal quadro se pintava quando o risco poderia afetar (embora de forma bem mais lenta do que atualmente) uma região de porte continental, várias Nações, ou, até, singrar os mares – na forma e velocidade possibilitadas pela tecnologia disponível à época.

Um dos exemplos plausíveis de se encaixar nesta categoria de risco antigo é o do Peste Negra ou Peste Bubônica, que assolou a Europa. É justamente esse exemplo que poderia ser usado com mais força para questionar o argumentado neste ensaio, haja vista à ameaça (risco) da Peste Negra, que ultrapassou a maioria das fronteiras presentes ao seu tempo – tento geográficas quanto sociais e intelectuais.

A Peste Bubônica era um risco megacoletivo, sujeito às limitações e aos potenciais (tanto danoso como de enfrentamento, profiláticos) existentes no seu tempo de ocorrência. Embora tenha sido sim algo terrível, sua propagação se deu de forma lenta para os padrões atuais (tanto que os surtos eram separados regionalmente por períodos de anos) bem como seu alcance foi limitado ao alcance de locomoção da época. Ademais, por mais terrível que tenha sido (e de fato o foi) sua causa principal estava intimamente relacionada à falta de higiene,

497 Este tipo de interesse coletivo, oriundo do princípio da alteridade (reconhecer-se a si mesmo na figura do outro, havendo para tanto a necessidade de se respeitar – não tolerar – a manifestação subjetiva diferenciada de outra psique auto determinada, portanto digna), por sua vez advindo da Teoria da Linguagem, é muito recente nas organizações sociais. Esse tipo de interesse coletivo ou difuso é concebido como aquele que é afeto a todos os seres humanos, na medida em que é necessário para prover-lhes a auto-realização ou (e) a sua perpetuação, portanto, condição sine qua non à sua existência digna (portanto humana) e ao reconhecimento do outro como outro diferente, mas horizontalmente igual (detentor dos mesmos direitos e potencialidade e merecedor de respeito e reconhecimento – jusnaturalismo). Em tempos anteriores, o germe daquilo que se entendia como interesse comum era identificado com o interesse dos detentores do poder ou, quando muito, com o de uma classe ou tribo específica (sem, contudo, conceber o outro como um diferente, porém horizontalmente igual posicionado): como uma tribo que tem como seu interesse coletivo escravizar os integrantes de outras tribos.

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de informação e conhecimento – tanto que ela não se manifestou da mesma forma em povos com uma tradição de assepsia mais arraigada, como os árabes e os japoneses, por exemplo. Grande parte dos seus efeitos (caos populacional de “ordem pública”, mortes) se deu graças ao obscurantismo existente na Idade Média, tendo em vista que o combate a Peste é, para os padrões atuais, tarefa relativamente simples: ela foi erradicada com a introdução de uma nova espécie de rato, não portador da pulga transmissora e com a popularização de medidas de higiene e saneamento básico. Por mais horrível que tenha sido a Peste Negra, seus efeitos e seu potencial lesivo não se comparam nem com os efeitos nem com os potencias presentes nos riscos atuais, que são muito maiores.

Hoje em dia os novos riscos existentes, além de estarem acumulados com riscos antigos potencializados, têm uma diferença intrínseca em termos de qualidade, potencial e alcance: são pan coletivos.

Pan coletivos porque, graças ao aporte tecnológico que sofreram (aumento exponencial e cumulativo da técnica disponível à sua criação e facilidade e velocidade de transporte/propagação) seu alcance pode se dar em nível mundial: ameaçar, verdadeiramente, toda a humanidade ou uma parte significativa dela – e em uma velocidade nunca antes imaginada.

Uma mentira, uma calúnia hoje em dia tem o poder de arrasar rapidamente com a imagem (auto imagem e imagem social) de uma pessoa – basta ver como é difícil desaforar eficientemente um júri atualmente – graças à velocidade e à qualidade dos meios de comunicação. A informação se propaga rápida e eficazmente e praticamente não pode mais ser contida ou apagada; pode, quando muito, ser revertida.

Uma epidemia causada por um vírus geneticamente modificado – que por conta disto tende a ser muito mais nocivo e resistente – pode se propagar mundialmente em questão de semanas ou até de dias, não deixando tempo hábil para uma reorganização e reação efetiva por parte da humanidade, graças aos eficazes meios de transporte e enfraquecimento das fronteiras498.

Um artefato nuclear (ou várias artefatos somados) pode destruir, em questão de horas, uma região de tamanho continental, ou até global, tornando-a intolerante à vida humana.

Graças à comunicabilidade e à reflexibilidade, uma crise financeira iniciada (como um estopim mesmo) em um país qualquer, desde que ocupe posição nevrálgica, pode se alastrar para o mundo inteiro, gerando um caos social tal que se torne incontrolável, a partir do momento em que começar a prejudicar a circulação e a distribuição de bens e serviços e obstar o acesso a serviços de saúde e a meios de subsistência (alimentos que, hoje em dia, não são

498 Não que este enfraquecimento seja algo ruim ou indesejável, pelo contrário, se bem controlado ele poder um degrau útil à legítima bandeira dos direitos humanos.

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mais produzidos regionalmente de forma auto-suficiente e sim concentrados por tipos em determinadas regiões e depois distribuídos globalmente).

Uma crise ambiental causada pela desídia humana pode afetar nações inteiras e espalhar-se para outras que nem mesmo colaboraram diretamente para a situação, como um desequilíbrio climático de proporções mundiais, causando conseqüências muito parecidas com as apontadas na eventual crise financeira.

Estes e tantos outros exemplos possíveis de se elucubrar (mas, nem de longe, fantasiosos) jamais encontraram paralelo na História conhecida. Os riscos atuais têm um alcance, um potencial lesivo e uma velocidade de propagação singulares na existência humana, graças, em grande parte, ao apogeu técnico científico que se configurou nas últimas décadas e, também, por conta de todas as demais características da Sociedade de Risco Global. Eles não são mais coletivos nem megacoletivos. São pan coletivos. Globalmente coletivos.

Além disso, existem outras mudanças gritantes nos riscos atuais, as quais também merecem ser apontadas.

Uma delas é diminuição – ou em alguns casos a extinção – da capacidade individual de guarnecimento e de enfretamento perante estes riscos. Em tempos anteriores, um homem (uma família, um clã) tinham, em certa medida, plenas condições de se preparar e de se defender da grande maioria dos riscos apresentados.

Bastava, de certa forma, para se prevenir contra invasões e ataques à vida e ao patrimônio, se cercar (erguer edificações, cercas, castelos), se armar (tanto individualmente como formar pequenas milícias ou grupos de segurança, mesmo que familiares) e se agrupar (pequenos burgos ou comunidades) além de outras medidas práticas eficientes, como valer-se de fama intimidatória, cães499 ou armadilhas, por exemplo.

Eram meios bastante eficientes de enfrentamento a esta qualidade de risco, tanto que, apesar da potencialização que estes riscos sofreram, esses

499 Não é a toa que a consolidação da maioria das raças molossóides (cães grandes, pesados, braquicéfalos – focinho curto -, bravos e com grande instinto de territorialidade, apesar de letárgicos e de expectativa de vida curta, embora se reproduzam em grande número e necessitem de poucos cuidados), como Mastins, se deu na Idade Média, tendo como base animais desenvolvidos na antiguidade clássica e antes, em regiões como parte da Grécia – embora lá ainda se observasse uma preferência por um outro tipo de animal,, mais versátil – e na Ásia ou Eurásia- Mesopotâmia. A utilização de cães de lupóides (mais próximos ao lobo, embora consideravelmente menores, como quase todos os cães existentes), tendo exemplo básico o Pastor Alemão, se deu em um tempo onde a proteção básica territorial já contava com meio mais eficientes, acumulando, com isso mais funções ao leque de atribuição depositadas nos cães “de guarda e combate” (ataque, proteção individual e deslocamento em grandes distâncias), necessitando, assim, de um animal mais versátil. Na perspectiva mais coletiva, também é interessante observar, que os fundamentos da equitação técnica (o cavalo foi e em alguns casos ainda é uma importante peça de guerra), oriundos da Grécia Antiga – com Xenofonte – foram em grande parte recuperados e utilizados na Idade Média, com as devidas adaptações e limitações, mesmo antes começo do Renascimento.

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meios continuam a ser usados (estes e outros meios similares) até hoje para guarnecimento frente à tais ameaças. A própria “guetização” da burguesia (fenômeno constituinte da Sociedade de Risco Global), com suas casas muradas, espaços de interação social (clubes, faculdades e centro de compras) bem cercados e protegidos e uso de segurança pessoal, dentre outras atitudes, é um claro exemplo disso.

Até contra um risco de violência de nação contra nação era possível se defender. Bastava formar um exército bem preparado, erguer muralhas e ter uma boa diplomacia, na maioria dos casos.

Porém, nenhum homem ou grupo de homens pode, individualmente, se precaver contra uma epidemia causada por um vírus modificado, nem contra um ataque nuclear, ou contra uma crise financeira ou ambiental global. Ao que parece, nem mesmo uma nação contemporânea conta, individualmente, com este poder, haja vista à dificuldade que se enfrenta para lidar, nos tempos que correm, com as ações terroristas.

Outra mudança bastante significativa está na capacidade de uma só pessoa (apenas um homem ou uma mulher) gerar risco e infringir danos. Em tempos passados, nem mesmo um rei tinha possibilidade de acabar, por si só, com uma população inteira. Ele necessitava de apoio, tanto logístico, quanto financeiro e moral de outras instituições, outros homens e estava sujeito à uma enorme gama de variáveis (resistência da população ameaçada, mudanças na política e na economia, dentre outros) que fugiam totalmente de seu controle, tornado a “tarefa” impossível de ser executada de forma individual.

Na atual conjuntura, esta realidade se modificou. Com um artefato nucelar ou algo de potencial similar (uma arma química, biológica) um só individuo pode infringir um dano coletivo dantesco. O fenômeno conhecido como terrorismo se vale dessa premissa.

Da mesma forma (por conta do poderio proporcionado pela técnica), o potencial destrutivo da negligência (da imprudência) aumentou exponencialmente. Alguém que tenha em mãos a responsabilidade de controle de uma tecnologia sensível e o faz de maneira descuidada (na imensa maioria das vezes sem qualquer dolo ou intenção lesiva), coloca em risco uma quantidade muito grande de pessoas (a depender, até uma quantidade global de pessoas) e pode causar danos de impacto mundial reverberado.

Uma pessoa que, por ventura, deixe vazar um oleoduto submarino, causando degradação ambiental, para se ficar em um exemplo simples, dentre tantos outros mais complexos possíveis. E esta, é uma situação nova, singular e muito difícil de enfrentar. Ela nasce do acúmulo técnico.

Por fim, se deve apontar também, que a capacidade de regeneração e de recuperação pelos danos causados por estes riscos (quando eles se tornam

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efetivos, passando de risco de dano para dano propriamente dito) encontram-se severamente diminuídas. Em alguns casos, ela parece ser até mesmo inexistente – pode existir um dano irrecuperável.

Uma degradação nuclear grave pode tornar uma região inteira inabitável por longo período, um patrimônio genético que se perca ou que se altere (uma extinção, por exemplo) pode nunca mais ser restabelecido, dentre outras hipóteses possíveis. Tudo isso graças ao alcance e a velocidade de ocorrência e propagação desses danos, própria dessa nova realidade social.

Com todos esses exemplos e características (que não são limitantes, outros mais poderiam ser acrescentados) percebe-se que esta realidade social é inédita na História conhecida. Sendo assim, não se pode dizer que houve uma troca de riscos antigos por riscos novos equivalentes, apenas respeitando as particularidades (detalhes) do atual espaço tempo.

O que parece se operar é um acúmulo dos riscos antigos (potencializados) com riscos novos e inéditos, tanto no que se refere ao seu alcance, quanto ao seu potencial e à sua velocidade de propagação. Ou seja, um acúmulo com os inéditos riscos pan coletivos.

4. CONSEQÜENTE IDENTIFICAÇÃO DO INTERESSE DIFUSO

Como era de se esperar, a partir dos argumentos apresentados, os discursos de poder (nos quais se encaixa o Direito Penal), se quiserem sobreviver como discursos e como uma necessidade, têm de, levando em conta a reflexibilidade500,

500 A reflexibilidade é um conceito importantíssimo para se tentar entender quaisquer interações e manifestações sociais atuais. Já sabendo do que ela se trata é importante ressaltar que, todo poder que se pretenda perene precisa, necessariamente, de um discurso de manutenção. Do contrário (só pela força) ele até se impõe imediatamente, mas não se sustenta a longo prazo. É preciso uma racionalização discursiva para sua perpetuação. Porém, este discurso não pode ser unilateral. Para sobreviver, ele precisa levar em conta, como levou para se formar, os anseios e o resultado de todas as interações e todos os núcleos de poder real que o compõe (mesmo os dominados, “clientes” desse discurso são uma fonte de poder, tanto que são considerados e a eles o discurso é destinado), moldando-se, em um resultado final reflexivamente determinado. Ou seja: básica e simplificadamente o discurso é fruto da vontade de um lado (geralmente o lado mais forte se manifesta primeiro) que atinge os demais lados, que são por este discurso moldados, porém, esse discurso recebe um aporte, uma modificação oriunda desse primeiro lado atingindo, sendo diferentemente moldado e o outro lado reage a tal mudança, adaptação que é sentida e também “reagida” pelos demais, assim de maneira sucessiva, ou seja, reflexivamente. É esta reflexibilidade a única coisa capaz de conferir um pouco de legitimidade (por mais perigosos que seja o uso desse termo) a qualquer discurso e é justamente por isso que a Constituição (o mais reflexivo de toso os discursos jurídicos, por atender ao resultado da soma dos poderes reais de forma mais plena, seguido de perto pelo discurso punitivo) é o mais legítimo (ou menos ilegítimo, se assim se preferir) documento político jurídico existente e, portanto, é ela e seus ideais maiores (fundantes) a base de saída para qualquer atuação pública, em sentido amplo ou estrito.

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fornecer respostas a esta nova conjuntura, a ela se adaptando. E um dos primeiros passos rumo a esta adaptação (ou uma das primeiras conseqüências dela), é a identificação dos interesses difusos, no sentido conferido pelo princípio da alteridade501.

Isso é necessário para que o Direito Penal possa atuar de forma condizente com as funções que dele se esperam atualmente e é observado na preocupação, tanto legislativa (em menor grau) quanto de atuação dos operadores e pensadores do Direito, que buscam proteger e tutelar interesses sem um titular identificável ou único, de uma maneira mais coletiva e bem diferente da pensada antigamente, como a ordem econômica (entendida como a regularidade justa e equitativa da circulação de bens e serviços, visando garantir acesso universal aos bens da – e meios de – vida, tentando assegurar os lados mais fracos desta tensão de interesses, e não mais como simples intervenção estatal na economia) a proteção e consideração de minorias, a conservação do meio ambiente (como um direito de todos, na medida que é necessário para auto-realização humana), o “nascimento” de um Direito do Consumidor (também afeto à ordem econômica, mas também como proporcionador de satisfação e regulador social – controle dos detentores do poder econômico) e gradativo combate ao abusos estatais (a identificação do Estado como um facilitador do reconhecimento do outro como um ser digno – alteridade – e não mais como um fim em si mesmo – ética, no sentido de um valor sobre outro), dentre outros pontos.

Essa é uma forte tendência da atualidade e parece ser o caminho inalienável para um Direito Penal que se deseje, ao menos na medida do possível, justo e coerente com o funcionalismo502 e que seja afeto ao já apontado princípio da alteridade.

5. PROLIFERAÇÃO DE CRIMES VAGOS

Como conseqüência desta mudança conceitual e funcional que vem sofrendo o Direito Penal, se observa a proliferação (ou aumento, não entendendo proliferação como um termo necessariamente negativo, de descontrole) dos chamados crimes vagos: aqueles onde o sujeito passivo (“vítima”, ou, melhor dizendo, titular do bem jurídico protegido) não é determinado. É uma entidade ou coletividade destituída de personalidade jurídica individualizável, é difuso.

Como a resposta básica, primária do Direito Penal é definir, pela criminalização primária, condutas que ele deseja reprimir (até por respeito a

501 Vide nota nº 8.502 Atribuir funções ao Direito Penal, respeitando, é claro os princípios que lhe são asilares, bem como as demais conquistas civilizatórias – por exemplo, direitos humanos.

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um de seus princípios condicionantes, o da reserva legal), é quase natural503 que este tipo de crime passe a ser criado em velocidade maior, pois coerente com a realidade social em que se vive.

Era de se esperar que condutas que supostamente afetem tais interesses, agora protegidos, passem a ser definidas como crime. Tendo em vista que valores (bens jurídicos) que antes não eram considerados, passaram a ter destaque e relevância primordial, na atual conjuntura de espaço tempo (até mesmo para saudável e possível perpetuação da espécie humana), o Direito Penal (que é uma resposta possível a este fato, apesar de toda discussão existente – e válida - acerca de sua necessidade, legitimidade e eficiência) passa, quase que inalienavelmente (até mesmo por pressão social e por necessidade de sobrevivência), a ocupar-se dessas práticas delitivas novas, como os crimes contra meio ambiente, contra honra coletiva, contra a ordem econômica, tentando, assim, dar a resposta que dele é cobrada, tentado regular e – evidentemente – coibir tais condutas, desestimulando sua prática, a qual é considerada danosa (muito danosa) à sociedade, globalmente considerada.

E este fenômeno realmente vem ocorrendo, basta se observar a inflação legislativa tocante a este tipo de crime, bem como toda produção jurisprudencial e doutrinária (muitas vezes, mas nem sempre, tentando apenas adaptar um Direito Penal antigo a esta nova realidade, de maneira forçosa, sem as mudanças necessárias) pertinente ao tema. Não é algo difícil de constatar.

E, como os titulares desses bens jurídicos (que estão em forte destaque no momento) não podem ser definidos, a proliferação dos crimes vagos é o caminho quase que obrigatório para o Direito Penal, se este quiser continuar a ser relevante (ou tendo uma função efetiva e condizente, como se preferir).

6. OPÇÃO DE POSICIONAMENTO

Com tudo isso (mudança da realidade social, necessidade de transformação e adaptação do Direito Penal) não se pretende afirmar que os riscos antigos deixaram de ser relevantes, nem que não mereçam qualquer tipo de controle. Ao contrário, eles são presentes e preponderantes e devem sim ser enfrentados (quer seja com Direito Penal, quer seja com políticas públicas ou mudanças sociais), mas, para responder a eles, ao menos no âmbito jurídico-criminal, já existe o bem sedimentado “Direito Penal Clássico”.

O que o novo Direito Penal (entendido em sentido amplo) tem de dar conta, de forma cumulativa, é dessa nova realidade que a ele se apresenta e que dele clama posicionamento.

Mesmo com todo perigo que circunda uma reestruturação do Direito e do Sistema Penal (repressão excessiva, violação de garantias, dentre tantas outras)

503 Observar a ressalva feita ao tema natural em questões jurídicas, constante na nota nº 3.

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é inegável que esta reestruturação está se operando, independentemente das vontades em contrário. Não é possível – por conta daquilo que se pode chamar de “imperativo de maturidade”, concernente com o princípio da realidade oriundo da Psicanálise – simplesmente negá-la e fechar-se ao discurso, em uma atitude quase infantil.

Há que enfrentar a questão, de maneira dialética, tentando fazer com que essa reestruturação – necessária – se opere de modo a conseguir sim o controle social desejável (enquanto este se fizer necessário), dentro das possibilidades e da razoabilidade.

Lembrando, sempre, que o ser humano, qualquer que seja, é sempre um fim para a norma e para sociedade, jamais um meio ou ferramenta; e fazendo com que o – necessário - novo Direito Penal tenha roupagem e organização aptas a dar conta desta sua nova função; sem esquecer que deve fazer isso de maneira a tornar-se (se é que isso é possível para um sistema punitivo, mas isso é outra discussão) um proporcionador e garantidor de humanidade, no sentido de proporcionar a efetivação do princípio da alteridade e de proteger este mesmo princípio, o que é, no fundo, sua função maior (e seu único suporte de - alguma - legitimidade), mesmo que para isso precise de uma organização totalmente diversa da anterior – desde que seja humana.

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LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PRINCÍPIO DA LIVRE INICIATIVA

WilSon CarloS de CamPoS Filho504

miguel KFouri neto505

Sumário: 1. Introdução; 2. A teoria dos sistemas e a teoria das fontes do direito; 2.1 A teoria dos sistemas de LUHMANN; 2.2 A teoria das fontes do direito; 3. Breves aponta-mentos sobre a evolução do Estado liberal para o Estado social, tornando-se, atualmente, Estado social, de Direito; 4. Limitações constitucionais ao princípio da livre iniciativa; 4.1 A constitucionalização do Direito Civil e a nova perspectiva do princípio da autonomia privada; 4.2 O princípio constitucional da livre iniciativa e algumas limitações impostas pela Constituição Federal de 1988; 4.3 Os princípios da dignidade da pessoa humana, da qual deriva a cláusula de boa-fé, enquanto limitadores do princípio da livre iniciativa; 5. Considerações finais; 6. Referências bibliográficas.

RESUMO

O princípio da livre iniciativa figura, certamente, entre aqueles mais expressivos quando o assunto é a liberdade do setor empresarial para o desenvolvimento das suas atividades, buscando a produção do lucro. Esse tomou uma conotação ainda mais importante a partir da Constituição de 1988, que, não obstante seu caráter social e democrático de Direito, não perdeu, por outro lado, o viés liberalista quando se trata do exercício da atividade econômica.

Assim, em razão da sua relação com o princípio da autonomia privada e por representar, o princípio da livre iniciativa, um mecanismo de liberdade do exercício da atividade econômica, acaba por veicular deveres de cunho positivo e negativo, tanto para o Estado, quanto para a sociedade. Não é, ademais, o princípio da livre iniciativa ilimitado, encontrando no princípio da dignidade da pessoa humana, princípio da qual se extrai a boa-fé e a eticidade, limitadores constitucionais da sua interpretação e aplicação.

504 Professor de Direito Tributário na graduação e pós-graduação em Direito. Professor Seminarista no IBET – unidade Campo Grande. Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba – UniCuritiba. Pós-graduado em Direito Tributário pelo IBET e em Direito Administrativo pela UNIDERP-Anhanguera. Advogado Tributarista em Campo Grande e Curitiba. 505 Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Estadual de Londrina. Licenciado em Letras-Português pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Oficial da Polícia Militar do Paraná pela Academia Policial Militar do Guatupê. Professor do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.

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Palavras-Chave: Livre iniciativa; dignidade da pessoa humana; boa-fé; limitações.

SUMMARY506

The principle of free initiative is certainly among those most expressive when it comes to freedom of the business sector for the development of its activities, seeking the production of profit. This took a connotation even more important from the 1988 Constitution, which, despite its social and democratic character of law, not lost, however, the liberal bias when it comes to the exercise of economic activity.

Thus, because of its relationship with the principle of private autonomy and represent the principle of free enterprise, a mechanism for exercising freedom of economic activity, ultimately vehicular duties imprint positive and negative, both for the state and for society. There is, moreover, the principle of unlimited free enterprise, finding the principle of human dignity, which is extracted principle of good faith and ethics, constitutional constraints on its interpretation and application.

Keywords: Free enterprise, human dignity, good faith; limitations.

1. INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988, se analisadas suas premissas jurídico-ideológicas, possui, por um lado, conotação fortemente social, consagrando-se, pois, um Estado Social e Democrático de Direito, com alta carga axiológica a partir dos fundamentos da República brasileira, dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, dos direitos sociais e do trabalho, do direito ao meio ambiente equilibrado, entre outros.

Ao mesmo tempo, a Carta Republicana apresenta um viés liberalista, não aquele de outrora, que sucedeu o período absolutista, mas, sim, no sentido de estimular o livre exercício da atividade econômica pela iniciativa privada, na qual o Estado apenas atuará subsidiariamente, nos termos permitidos pela Constituição (art. 173, da CRFB) e como agente regulamentador e fiscalizador.

E nesse contexto constitucional se encontra o princípio da livre iniciativa, como expressão desse liberalismo proveniente da norma fundamental e que vem, na essência, possibilitar o livre exercício de trabalho, ofício, profissão e de atividade econômica, sem que haja intervenção estatal plenamente justificada por parâmetros constitucionais.

506 Em tradução livre.

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Em sendo esse o escopo do princípio da livre iniciativa, buscar-se-á neste ensaio descortinar seu conteúdo e associá-lo a outros valores ou princípios constitucionais, explícitos ou não, para possibilitar a análise se tal princípio é de observância absoluta ou encontra limitadores na ordem constitucional brasileira. Em outras palavras, a partir do método indutivo-dedutivo, pretende-se responder aos seguintes questionamentos: existem limitações constitucionais ao princípio da livre iniciativa? Quais são elas, em caso positivo?

Definidos o tema, o problema e o método, passa-se a estudar o princípio da livre iniciativa na perspectiva do Direito Constitucional brasileiro, naturalmente sem a pretensão de esgotar o assunto, tamanha a sua complexidade, relevância e implicações jurídico-constitucionais.

2. A TEORIA DOS SISTEMAS E A TEORIA DAS FONTES DO DIREITO

Como caminho necessário para se compreender que o princípio da livre iniciativa, apesar do seu status constitucional, encontra limitações no próprio texto da Constituição Federal, deve-se, ainda que de forma sucinta e sem qualquer pretensão de esgotar o tema, passar os olhos na teoria dos sistemas e das fontes do direito, institutos importantes para a compreensão do tema em estudo.

2.1 A TEORIA DOS SISTEMAS DE LUHMANN507

Nesse trabalho, em que pese opiniões em sentido contrário, parte-se do pressuposto que o direito é um sistema autopoiético, pois, enquanto sistema complexo, possui as características de ser autorregulável e autorreferenciável. CRISTIANO CARVALHO pondera que “os sistemas jurídicos modernos têm em si mesmos as regras de sua auto-produção, são, portanto, autorreferenciáveis”508.

Os sistemas autopoiéticos são assim caracterizados porque todos os elementos necessários às suas operações são produzidos internamente no próprio sistema, ou seja, o sistema autopoiético se auto-alimenta. A autopoiese, teoria desenvolvida pelos chilenos HUMBERTO MATURANA e FRANCISCO VARELLA, tomou como objeto o ser vivo enquanto sistema ao mesmo tempo fechado, em sua organização interna, e aberto para as informações advindas do ambiente.

Fazendo uma síntese das propriedades de funcionamento do sistema autopoiético, uma vez mais se recorre às lições de CRISTIANO CARVALHO, que adota a seguinte classificação:

507 Escrevemos sobre o tema Teoria dos Sistemas in Fundamentos do Estado e do Direito, p. 101-103.508 Teoria do Sistema Jurídico – direito, economia, tributação, p. 130.

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(i) é auto-regulável: significa que o sistema consegue manter o seu equilíbrio interno através da troca de informação com o ambiente. As respostas (“feedback”) do ambiente às mensagens que envia o fazem ajustar a sua ação futura;

(ii) é auto-gerativo: significa que o sistema produz seus próprios elementos;

(iii) é auto-referenciável: significa que o sistema tem em si mesmo as regras de sua auto-produção, i. e, o sistema fala sobre si mesmo (função metalinguística).509

Em verdade, o sistema autopoiético é fechado sintaticamente e aberto semanticamente, ou seja, é fechado operacionalmente, mas aberto cognitivamente, razão de ser autorregulável e autorreferenciável, mas apesar de produzir os elementos necessários à sua manutenção, há interação com o meio ambiente, que não o influencia diretamente, mas esse contato faz com que a sua estrutura processe as informações e perturbações advindas do ambiente, fazendo-o evoluir.

Da mesma forma, essa abertura semântica permite que o sistema autopoiético se comunique com outros subsistemas, que apesar de serem fechados operacionalmente, são interdependentes. Em outras palavras, o sistema autopoiético é formado por subsistemas que apesar de fechados, se intercomunicam, sendo essa a característica que torna vivo o sistema.

É por isso que MATURANA diz que o sistema autopoiético, por produzir a si próprio, em produção contínua, apresenta uma característica de clausura organizacional, o que significa que o sistema é autônomo no sentido de processar as informações enviadas pelo ambiente, pois, são as mensagens deste ambiente que irão estimular o sistema autopoiético.

LUHMANN e GUNTHER TEUBNER afirmam categoricamente a autopoiese do sistema jurídico, que é fechado operacionalmente (ou normativamente), mas aberto cognitivamente, i. e, aberto às mensagens do ambiente, o que é condição para o processo autopoiético. A consequência da autopoiese para o domínio jurídico é a consagração da autonomia sistêmica, em relação aos demais sistemas sociais510.

Qual a importância da autopoiese para o estudo, ainda que breve, do conteúdo e das limitações ao princípio da livre iniciativa? Demonstrar que sua análise não se contenta apenas com o conteúdo da ciência jurídica, mas

509 Sistema, competência e princípios, in EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI (coord.), Curso de Especialização em Direito Tributário – Estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho, p. 862.510 Teoria..., op. cit., p. 130.

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também, que tal princípio deve ser lido a partir dos fundamentos da ciência econômica e social, ambas com suas regras e fundamentos próprios, que, todavia, interagem e se comunicam para tornar o sistema vivo e, a partir daí, possibilitar a conclusão da existência de limitadores constitucionais a este princípio da ordem econômica.

Esses sistemas se comunicam e se inter-relacionam, nos termos da abertura semântica antes mencionada, demonstrando, pois, a autopoiese do sistema em que inserido o princípio constitucional da livre iniciativa.

Feitas essas considerações sobre a teoria da autopoiese do sistema jurídico, necessário se faz alguns comentários acerca das fontes do direito.

2.2 A TEORIA DAS FONTES DO DIREITO511

A doutrina tradicional, talvez por não emprestar a devida atenção a este importante instituto jurídico que são as fontes do direito, contenta-se em descrevê-la fazendo associação com as fontes de água, transparecendo a ideia de que se trata do nascedouro do direito, de onde promana o direito. É por essa razão que se perguntado aos operadores do direito o que são fontes do direito, a maioria deles responderá se tratar das leis, doutrina, jurisprudência e até mesmo dos costumes.

Embora o tema das fontes do direito não seja o objetivo principal neste trabalho dado o objeto de investigação, valendo-se de uma concepção díspar daquela comumente descrita pela doutrina acerca da análise deste instituto, busca-se demonstrar uma forma diferente de enxergar tal fenômeno jurídico, onde fontes do direito são os focos ejetores de normas jurídicas, enquanto processos de enunciação.

Por fontes do direito havemos de compreender os focos ejetores de regras jurídicas, isto é, os órgãos habilitados pelo sistema para produzirem normas, numa organização escalonada, bem como a própria atividade desenvolvida por esses entes, tendo em vista a criação de normas. Significa dizer, por outros torneios, que não basta a existência de órgão devidamente constituído, tornando-se necessária sua atividade segundo as regras previstas no ordenamento512.

Todavia, tratar de fontes do direito deve levar o intérprete a refletir sobre o fato de que regra jurídica alguma ingressa no sistema do direito positivo sem que seja introduzida por outra norma, tratada pela doutrina como veículo introdutor de normas jurídicas. Isso nos autoriza a falar em “normas introduzidas” e “normas introdutoras”. Nos limites dessa proposta, “fontes do direito” serão os acontecimentos do mundo social, que juridicizados por regras do sistema e credenciados para produzir normas jurídicas que “introduzam” no

511 Escrevemos sobre o tema Fontes do Direito in Fundamentos..., op. cit., p. 98-100.512 CARVALHO, PAULO DE BARROS. Curso de Direito Tributário, p. 47.

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ordenamento outras normas, gerais e abstratas, gerais e concretas, individuais e abstratas ou individuais e concretas.513

Nesta perspectiva, pode-se afirmar, na linha de investigação proposta por PAULO DE BARROS CARVALHO, que o sistema do direito positivo é integrado por normas “introdutoras” e “introduzidas”, enquanto que o conjunto de fatos aos quais a ordem jurídica atribuiu teor de juridicidade, se tomados na qualidade de “enunciação” e não como “enunciados”, estarão formando o território das fontes do direito posto. Esta diferenciação proposta permitirá operar com as fontes como algo diferente do direito posto.

Diante dos pressupostos firmados, é possível sustentar que o estudo das fontes do direito está voltado para os fatos enquanto enunciação, que fazem nascer regras jurídicas introdutoras, de forma que tal realidade social só assume essa condição por estar prevista em outras normas jurídicas.

É por essa razão que LOURIVAL VILANOVA sentencia que:

As normas de organização (e de competência), e as normas do “processo legislativo”, constitucionalmente postas, incidem em fatos e os fatos se tornam jurígenos. O que denominamos “fontes do direito” são fatos jurídicos criadores de normas: fatos sobre os quais incidem hipóteses fácticas, dando em resultado normas de certa hierarquia.514

O direito nasce, portanto, dos fatos que desencadeiam o processo de produção de normas jurídicas (enunciação), culminando com o produto legislado, ou enunciado prescritivo que, nesta concepção, nada mais é, senão, que veículo introdutor de normas jurídicas, ou seja, norma de estrutura.

Não se pode deixar de ressaltar as palavras de RODRIGO SANTOS NEVES, que assevera: “Como poderia o direito nascer de uma lei, ou de um julgado de um tribunal? O direito nasce do seio da sociedade, devido às necessidades desta e para supri-las. O direito não nasce da vontade do legislador – como afirmam os positivistas – nem do entendimento de um tribunal sobre uma determinada matéria (pois isto é apenas uma interpretação do direito)”515.

Por fim, nesta perspectiva apresentada, as fontes do direito deixam de ser analisadas como fontes formais (que nas palavras de PAULO DE BARROS CARVALHO, são as fórmulas que a ordem jurídica estipula para introduzir regras no sistema);516 e passam a ser analisadas apenas sob

513 Ibidem, p. 48.514 Causalidade e Relação no Direito, p. 24.515 Função Normativa e Agências Reguladoras – Uma contribuição da Teoria dos Sistemas à Regulação Jurídica da Economia, p. 39.516 Curso..., op. cit., p. 52.

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a perspectiva de fonte material (que na visão do mesmo autor, se ocupam dos fatos da realidade social que, descritos hipoteticamente nos supostos normativos, têm o condão de produzir novas proposições prescritivas para integrar o direito posto), que se analisadas como ato de enunciação, são fontes de normas jurídicas.

É por essa razão que doutrina, costumes e jurisprudência não podem ser considerados como fontes do direito, enquanto que as leis, ou instrumento primários de normas, assim como os instrumentos secundários de normas jurídicas, são, nessa perspectiva, apenas veículos utilizados para inserir as normas jurídicas no sistema posto.

Feitas essas considerações sobre a teoria das fontes do direito e sobre a autopoiésis do sistema jurídico, já é possível avançar e começar a tratar do processo de transformação do Estado liberal para o Estado social.

3. BREVES APONTAMENTOS SOBRE A EVOLUÇÃO DO ESTADO LIBERAL PARA O ESTADO SOCIAL, TORNANDO-SE, ATUALMENTE, ESTADO SOCIAL, DE DIREITO

Sabe-se que desde a concepção da teoria da “Tripartição dos Poderes” por LOCKE e MONTESQUIEU e tendo em vista a rápida evolução da economia, notadamente a partir da revolução industrial que, por consequência, desencadeou uma concomitante evolução da sociedade, o Estado vem passando por alterações em sua estrutura, seja do ponto de vista jurídico, social ou econômico.

Influenciado pela Revolução Francesa de 1789, que forjada nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade (Liberté, Egalité, Fraternité como diria JEAN-JACQUES ROUSSEAU), formou-se um Estado eminentemente capitalista, cujos objetivos eram proteger os interesses da burguesia. Vislumbrava-se, à época, a concepção do Estado Liberal. Nesse sentido são as palavras de PAULO BONAVIDES, que aduz: “A Revolução Francesa significou o triunfo do liberalismo. Do liberalismo, apenas, e não da democracia, nem sequer da democracia política”517.

Juridicamente, também por influência pela Revolução Francesa, onde os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade foram usados para alçar a classe burguesa ao poder, houve alteração no arcabouço normativo da sociedade que até então estava sufocada pelo regime absolutista, pois, surgiu a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Constituição Francesa de 1789 e o Código Civil napoleônico, inaugurando o viés liberalista da sociedade europeia a partir do final do século XVIII.

517 Do Estado Liberal ao Estado Social, p. 43.

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Nesse sistema de Estado (Estado Liberal) vigia a “lei do mais forte”, isto é, eram os interesses privados que ditavam os caminhos da economia, onde o papel do Estado era tão-somente preservar as funções de saúde, segurança, justiça e guarda da soberania. A vigência do Estado liberal se torna mais perceptível a partir da Revolução Industrial, onde novos sistemas de produção são colocados em prática, a exemplo da mecanização da linha de produção e a introdução de novos conhecimentos tecnológicos, que propiciaram a massificação da produção, a maximização dos lucros e geração de recursos para o Estado.

Ocorre que ao mesmo tempo em que se experimentava uma evolução tecnológica dos meios de produção, também a sociedade evoluía e a classe operária, força motriz da produção passou a perceber sua importância no mecanismo de produção e a exigir melhores condições de trabalho e moradia, além de salários que fossem compatíveis com a jornada de trabalho exercida.

Por outros termos, em razão propriamente do abuso de poder econômico da classe burguesa, a sociedade passou a exigir do Estado a garantia dos direitos fundamentais, ou seja, que o Estado, não conceda apenas uma liberdade formal, mas sim a liberdade material que lhes garantissem aqueles direitos fundamentais e, também, tomasse uma postura interventiva, interferindo na economia em nome do interesse público.

Em razão dessa evolução social, o Estado deixa de agir como Estado Mínimo e passa a tomar uma postura intervencionista, de regulação. Como leciona JOAQUIM B. BARBOSA GOMES: “(...) de um Estado absenteísta e mero garantidor da ordem e do cumprimento dos contratos, expressão máxima do direito de propriedade, o mundo assistiu à emergência de um Estado intervencionista, provedor de prestações tendentes a minimizar e a corrigir as imperfeições e iniquidades do sistema capitalista”518. O Estado teve que abandonar sua postura negativa, de não intervenção, típica do regime liberal, para passar a adotar uma postura positiva, de intervenção e regulação econômico-sociais.

Foi a partir do primeiro pós-guerra, com o advento da Constituição Mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar de 1919 que a figura do Estado intervencionista ganhou força. Em detrimento do liberalismo, onde o Estado mantinha uma postura negativa, ou seja, de não intervenção ou de intervenção mínima nas relações de cunho privado, o “walfare state” faz com que o Estado modifique sua postura, que a partir de então passa a ser positiva, exercendo um papel mais ativo de intervenção, regulando as relações jurídicas públicas e privadas como forma de compor conflitos e fazer com que a sociedade adote uma postura social.

518 Agências Reguladoras: A metamorfose do Estado e da Democracia – uma reflexão de Direito Constitucional e Comparado, in Revista de Direito Constitucional e Internacional, p. 39.

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A Constituição mexicana representa o marco inicial do Estado Social, pois, garantiu em seu texto, até mesmo como reflexo dos anseios sociais, a implementação de direitos e garantias individuais para o cidadão, especialmente porque deu nova roupagem normativa ao direito social do trabalho e ao direito de propriedade, fazendo valer, no segundo caso, a função social da propriedade.

Neste sentido é precisa a lição de FÁBIO KONDER COMPARATO:

O que importa, na verdade, é o fato de que a Constituição mexicana em relação ao sistema capitalista foi a primeira a estabelecer a desmercantilização do trabalho, ou seja, a proibição de equipará-lo a uma mercadoria qualquer, sujeita à lei da oferta e da procura no mercado. Ela firmou o princípio da igualdade substancial de posição jurídica entre trabalhadores e empresários na relação contratual de trabalho, criou a responsabilidade dos empregadores por acidentes do trabalho e lançou, de modo geral, as bases para a construção do moderno Estado Social de Direito, e, portanto, da pessoa humana, cuja justificativa se procurava fazer, abusivamente, sob a invocação da liberdade de contratar.519

Não menos importante foi o papel desempenhado pela Constituição Alemã (1919), pois, foi a primeira Carta Política que na Europa impôs restrições ao liberalismo econômico até então experimentado, já que, expressamente, consagra direitos à saúde, previdência social, trabalho e educação, entre outros.

São por essas razões, pela garantia naquelas Constituições de direitos sociais aos trabalhadores; a normatização do respeito aos direitos e garantias individuais do cidadão, entre eles o direito à saúde, à assistência social e à propriedade é que se identifica a transição político-institucional do Estado Liberal para o Estado Social, especialmente porque há uma libertação dos operários do controle e subserviência da classe burguesa.

PAULO BONAVIDES aduz que:

À medida, porém, que o Estado tende a desprender-se do controle burguês de classe, e este se enfraquece, passa ele a ser, consoante as aspirações de Lorenz Von Stein, o Estado de todas as classes, o Estado fator de conciliação, o Estado mitigador de conflitos sociais e pacificador necessário entre o trabalho e o capital. Nasce, aí, a noção contemporânea do Estado social.520

LUIZ ROBERTO BARROSO é preciso ao sintetizar:

519 A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, p. 177.520 Do Estado..., op. cit., p. 185.

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Na segunda fase, referida como ‘modernidade’ ou Estado Social (‘welfare state’), iniciada na segunda década do século que se encerrou, o Estado assume diretamente alguns papéis econômicos, tanto como condutor do desenvolvimento como outros de cunho distributivista, destinados a atenuar certas distorções do mercado e a amparar os contingentes que ficavam à margem do progresso econômico. Novos e importantes conceitos são introduzidos, como os de função social da propriedade e da empresa, assim como se consolidam os ‘direitos sociais’, tendo por objeto o emprego, as condições de trabalho e certas garantias aos trabalhadores521.

Iniciou-se, portanto, a fase do Estado social, que no caso brasileiro, a partir da Constituição Federal de 1988, evoluiu para um Estado Social e Democrático de Direito, sendo, pois, esta evolução relevante para se entender que a Carta Magna de 1988 possui, em sua essência, viés liberalista, como no capítulo da ordem econômica (art. 170 e seguintes), nele inserido a preservação do princípio da livre iniciativa, mas, também, possui escopo fortemente social, onde o Estado, por vezes exercendo o papel de Estado interventor, encontra no próprio texto supremo, condicionantes e limitadores para o exercício da atividade econômica por parte da pessoa física ou jurídica.

4. LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PRINCÍPIO DA LIVRE INICIATIVA

Superada a etapa de demonstrar a aplicabilidade da teoria dos sistemas e das fontes do direito para a resolução do problema proposto e, ainda, já tendo havido uma breve incursão na evolução do Estado brasileiro de liberal para social e democrático de direito, onde se antecipa que a possibilidade de intervencionismo estatal é uma das formas de limitação ao princípio da livre iniciativa, faz-se necessário tratar, ainda que a passos largos, do processo de constitucionalização do Direito Civil e da autonomia privada, que se encontram intimamente relacionadas ao conteúdo do princípio da livre iniciativa.

4.1 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL E A NOVA PERSPECTIVA DO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA

O fenômeno da constitucionalização do direito civil já não é novidade na ciência jurídica brasileira – embora ainda carente de mais estudos aprofundados – e se materializou a partir da imposição pela Constituição Federal de 1988

521 Agências Reguladoras. Texto disponível no endereço eletrônico http://jus.com.br/revista/texto/3209/agencias-reguladoras, com acesso em 06.02.2013.

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de que novos valores deveriam ser tutelados e protegidos pela ordem jurídica, especialmente pelo princípio da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho, como os direitos (i) do consumidor; (ii) da criança e do adolescente, (iii) da família; (iv) de propriedade, assim como a boa-fé na relações jurídicas, o contrato, entre outros tantos valores.

A impossibilidade de o Código Civil abranger todos os valores protegidos pela nova ordem Constitucional acabou por propiciar o aparecimento de microssistemas jurídicos, materializados por legislações esparsas, como, v.g., o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e o Estatuto da criança e do adolescente (ECA), todos eles submetidos a uma ordem superior, emanada diretamente da Constituição Federal de 1988, de forma que perdeu a codificação civil o seu “status” de centro da ordenação jurídica, que passou a conceber a Constituição Republicana como o fundamento de validade de “toda” a ordem jurídica brasileira.522

ORLANDO GOMES, em feliz síntese, aduz que:

Essa condensação dos valores essenciais do direito privado passou a ser cristalizada no direito público. Ocorreu nos últimos tempos o fenômeno da emigração desses princípios para o Direito Constitucional. A propriedade, a família, o contrato, ingressaram nas Constituições. É nas Constituições que se encontram hoje definidas as proposições diretoras dos mais importantes institutos do direito privado (sic).523

Para sintetizar o que se pretende expor nesse trabalho acerca da Constitucionalização do Direito Civil, destacam-se as palavras de GUSTAVO TEPEDINO:

De modo que, reconhecendo embora a existência dos mencionados universos legislativos setoriais, é de se buscar a unidade do sistema, deslocando para a tábua axiológica da Constituição da República o ponto de referência antes localizado no Código Civil.

522 PABLO STOLZE e RODOLFO PAMPLONA FILHO, tratando sobre a Constitucionalização do Direito Civil sustentam: “Por tudo isso, a Constituição Federal, consagrando valores como a ‘dignidade da pessoa humana, a valorização social do trabalho, a igualdade e proteção dos filhos, o exercício não abusivo da atividade econômica’, deixa de ser um simples documento de boas intenções a passa a ser considerada como um corpo normativo superior que deve ser diretamente aplicado às relações jurídicas em geral, subordinando toda a legislação ordinária” – in Novo Curso de Direito Civil, parte geral, p. 48.523 A agonia do Código Civil – conferência pronunciada no encontro Nacional de Mestres de Direito Civil, realizado em homenagem ao professor Orlando Gomes: Sans Adieu – 50 anos de cátedra. Salvador: Ed. Ciência Jurídica, s.d., p. 76.

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(...)

Trata-se, em uma palavra, de estabelecer novos parâmetros para a definição de ordem pública, relendo o direito civil à luz da Constituição, de maneira a privilegiar, insista-se ainda uma vez, os valores não-patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo atendimento deve se voltar a iniciativa econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais.524

Sob outro viso, voltando os olhos para o princípio da autonomia privada, é preciso esclarecer, mesmo que de forma sintética, qual o seu conteúdo no atual estágio de desenvolvimento da ordem jurídica brasileira e, com isso, ser possível demonstrar sua intimidade com o conteúdo e limitações do princípio da livre iniciativa.

A autonomia da vontade, tratada pela doutrina tradicional como sendo a possibilidade de alguém dispor e regulamentar sobre seus interesses ao firmar uma obrigação, ou seja, estipular de forma livre o acordo de vontades, segue a linha do Código Civil de 1916, que prestigiava o “ter” e não o “ser”, exatamente como fez o Código de Napoleão, que entrou em vigor em 21 de março de 1804 e, foi, em verdade, a inspiração para as várias codificações civis de viés liberalista, inclusive no Brasil, com o Código Civil Beviláqua.

Isso significa dizer, por outros torneios, como o faz GIOVANNI ETTORE NANNI, que o princípio da autonomia da vontade “prestigia o individualismo exacerbado (...), sendo pura demonstração do voluntarismo que colide com o que hodiernamente apreende-se com o avanço do direito das obrigações”525. Continua o mesmo autor, mas desta feita citando ORLANDO GOMES, aduzindo que:

O voluntarismo clássico atribuía à vontade o papel de fonte exclusiva da criação do direito, a tal ponto que ignorava a existência anterior do direito objetivo, somente mais tarde vindo-se a reconhecer que a vontade individual não passa, como disseram os MAZEUD, de um comutador que dá passagem a uma corrente cuja fonte se encontra alhures. Admitir a força criadora da vontade individual era consagrar o arbítrio.526

524 Temas de Direito Civil, p. 13 e 22. O autor em destaque entende inadequada a utilização do adjetivo “constitucionalização”.525 A evolução do direito civil obrigacional: a concepção do direito civil constitucional e a transição da autonomia da vontade para a autonomia privada, in RENAN LOTUFO (coord.), Cadernos de autonomia privada, p. 168-169.526 Idem.

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Nesse sentir, não se pode olvidar que o princípio da autonomia da vontade perdeu espaço para a autonomia privada, que traz consigo a possibilidade de criar normas individuais e concretas de caráter negocial, que, todavia, possui um escopo social mais amplo porque se sujeita à limitação estatal e na vontade manifestada pelo ordenamento jurídico, i. é, continuam os particulares titulares, agora, de autonomia privada, sendo esta, todavia, jungida ao interesse público e social estabelecido pela ordem jurídica interna.

É por essa razão, que GIOVANNI ETTORE NANNI esclarece, destacando o viés constitucional da autonomia privada: “Efetivamente, a autonomia privada é circundada de limites não apenas ideológicos, mas, reais e jurídicos, impostos para garantir que as relações jurídicas revestidas daqueles aspectos já citados que decorrem da constitucionalização do direito civil, tais como a liberdade, a justiça social, a igualdade e a solidariedade”527. Arremata o autor:

Não se fala mais na vontade ilimitada do indivíduo para firmar um negócio, mas na relação da vontade privada que encontra espaço ou autonomia no ordenamento jurídico com a vontade de outrem para firmar-se uma relação jurídica obrigacional. Não prevalece mais a vontade interna do sujeito, mas a vontade observada externa e objetivamente, diante do ordenamento jurídico em consonância à autonomia privada528.

EMÍLIO BETTI assevera:

É uma fanfarronada socialmente absurda a afirmação, frequentemente repetida, de tal desmesurado e autossuficiente poder dos contratantes na realidade social de uma comunidade; ao passo que é evidente, na realidade, que o consenso que transparece em um contrato a respeito de um certo complexo de interesses, para que tenha efeito obrigatório, tem de corresponder a uma função socioeconômica típica, que é objeto de valoração por parte da ordem jurídica, a qual cabe avaliar se tal merece-lhe a tutela (art. 1.322).

Dado que o direito outorga aos atos de autonomia privada uma tutela apenas quando correspondem a determinadas funções socialmente úteis, ou seja, funções caracterizadas por uma tipicidade sobretudo social, e dado que, em tal ordem de ideias, a proteção da função socioeconômica (causa) do negócio vem a constituir a ratio iuris das normas que reconhecem a autonomia privada, é óbvio que o tratamento jurídico correspondente

527 Ibidem, p. 168-169.528 Ibidem, p. 172-173.

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está em constante referência àquele elemento fundamental (causa) que determina o fenômeno da recepção da órbita do direito.

A essa altura, é necessário lembrar que a doutrina que se mostra ainda tenazmente ligada ao dogma da vontade assume condição perplexa e contraditória, quando se trata de diferenciar as fontes em que a obrigação decorre do negócio jurídico e aquelas em que o nascimento da obrigação prescinde de uma vontade conforme ou de uma aceitação. É o caso, inconscientemente, de Barassi, que oscila entre a suposta onipotência da vontade individual dirigida à produção de efeitos jurídicos e as exigências da solidariedade social e da cooperação, que justificam o empenho da fides e o surgimento das obrigações, independentemente de uma intenção consciente, voltada àqueles efeitos jurídicos.529

A transcrição foi longa, mas, necessária, pois, EMILIO BETTI, nas três passagens citadas, demonstra com precisão a transição da autonomia da vontade para a autonomia privada. Trazendo para o direito brasileiro, deixa claro, o autor, a influência da Constituição Federal nessa transição, vez que os valores por ele citados, no ordenamento jurídico pátrio, tem status de norma constitucional, permitindo-se, a seguir, o enfrentamento do princípio da livre iniciativa.

4.2 O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LIVRE INICIATIVA E ALGUMAS LIMI-TAÇÕES IMPOSTAS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

O princípio constitucional da livre iniciativa encontra respaldo na Constituição Federal de 1988 em duas passagens bem delimitadas530, ou seja, no Título I, que trata dos princípios fundamentais da república brasileira, artigo 1º, inciso IV531, assim como no Título VII, que trata da ordem econômica e financeira e capítulo I, que vai expor os princípios gerais da atividade econômica, especialmente o artigo 170, “caput” e parágrafo único532.

529 Teoria Geral das Obrigações, p. 390, 392 e 394, respectivamente. 530 Embora o próprio texto constitucional, em diversas outras passagens – a exemplo o art. 3º, inciso I trata da liberdade, dando ênfase a esse importante fundamento da Carta Constitucional.531 A CF/88: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”; (g.n.).532 A CF/88: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica,

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JOSÉ AFONSO DA SILVA, dissertando sobre o princípio da liberdade de iniciativa, ensina que:

A liberdade de iniciativa envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e a liberdade de contrato. Consta do art. 170, como um dos esteios da ordem econômica, assim como de seu parágrafo único, que assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo casos previstos em lei.533

Todavia, o princípio da livre iniciativa deve ser lido a partir da transição do Estado liberal para o social, abordado em capítulo precedente, de forma que está com a razão JOSÉ AFONSO DA SILVA quando lembra que as normas jurídicas extraídas a partir do artigo 170 e parágrafo único, da Carta Magna de 1988, devem ter seu sentido e alcance construídos a partir de uma Constituição “preocupada com a justiça social e com o bem-estar coletivo”534.

Por sua vez, GILMAR FERREIRA MENDES, INOCÊNCIO MÁRTI-RES COELHO e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO, primeiro citando GASTÃO ALVES DE TOLEDO e, depois MIGUEL REALE, ao tratar do prin-cípio da livre iniciativa, sustentam:

(...) enquanto a livre iniciativa aponta para a liberdade política, que lhe serve de fundamento, a livre concorrência significa a possibilidade de os agentes econômicos poderem atuar sem embaraços juridicamente justificáveis, em determinado mercado, visando à produção, à circulação e ao consumo de bens e serviços. (GASTÃO ALVES DE TOLEDO).

Ora, livre iniciativa e livre concorrência são conceitos complementares, mas essencialmente distintos. A primeira não é senão a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição de riquezas, assegurando não apenas a livre escolha das profissões e das atividades econômicas, mas também a autônoma eleição dos processos ou meios julgados mais adequados à consecução dos fins visados. Liberdade de fins e de meios informa o princípio da livre iniciativa, conferindo-lhe um valor primordial, como resulta da interpretação conjugada dos citados arts. 1º e 170.535 (sic).

independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. (g.n.).533 Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 793. 534 Ibidem, p. 794.535 Curso de Direito Constitucional, p. 1292.

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Pode-se definir o princípio da livre iniciativa, com JOSÉ AFONSO DA SILVA, da seguinte forma:

(...) a liberdade de iniciativa econômica privada, num contexto de uma Constituição preocupada com a realização da justiça social (o fim condiciona os meios), não pode significar mais do que “liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro estabelecido pelo poder público, e, portanto, possibilidade de gozar das facilidades e necessidade de submeter-se às limitações postas pelo mesmo”. É legitima, enquanto exercida no interesse da justiça social. Será ilegítima, quando exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário. Daí porque a iniciativa econômica pública, embora sujeita a outros tantos condicionamentos constitucionais, se torna legítima, por mais ampla que seja, quando destinada a assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.536

Embasado nas lições transcritas, já se pode concluir que o princípio da livre iniciativa representa importante mecanismo de liberdade do exercício da atividade econômica, nos termos do interesse público-social e, como tal, impõe deveres de cunho positivo e negativo, tanto para o Estado, quanto para a sociedade.

Para o Estado, os deveres positivos consubstanciam-se na atuação como agente normativo e regulador da atividade econômica (artigo 174, da CRFB) e na imposição para que o Poder Público tome medidas que estimulem o desenvolvimento de atividade econômica por parte da iniciativa privada, buscando o fortalecimento da economia e o desenvolvimento nacional, que se dá, basicamente, à custa de um mercado forte e competitivo. Já os deveres negativos impostos ao Estado demonstram que a regra geral é de não intervenção, salvo os casos previstos expressamente na própria Constituição, como a possibilidade de o Estado desenvolver atividade econômica (artigo 173, da CF/88).

Por outro lado, existem também os deveres impostos à sociedade em geral pelo princípio da livre iniciativa. Os deveres positivos são no sentido de que a atividade empresarial não pode ter por objetivo apenas a busca pelo lucro, mas também o desenvolvimento nacional, a geração de emprego e renda, a realização da justiça social e o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. Já os deveres negativos, de certa forma estão intimamente relacionados aos positivos, e vislumbra-se na proibição da prática de monopólio, de forma que seja estimulado o livre exercício da atividade econômica, como forma de estimular a concorrência, assim como proibir a prática de “dumping” por parte das empresas brasileiras ou que possuam sede ou sucursal no território brasileiro, entre outras.

536 Curso..., op. cit., p. 794.

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Enfrentados o conteúdo e algumas limitações ao princípio da livre iniciativa, pode-se, enfim, analisar outras limitações constitucionais a este importante princípio da atividade econômica.

4.3 OS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DA QUAL DERI-VA A CLÁUSULA DE BOA-FÉ, ENQUANTO LIMITADORES DO PRINCÍPIO DA LIVRE INICIATIVA

Demonstrou-se nos tópicos anteriores, a íntima relação existente entre o princípio da livre iniciativa e a autonomia privada, ambos contextualizados a partir da Constituição Federal de 1988 e exercendo influência mútua. Se a relação entre livre iniciativa e autonomia privada é íntima, pode-se dizer, ao mesmo tempo, que a influência exercida pelo sistema em relação ao primeiro, causa ressonância no segundo, e vice-versa537.

Busca-se, então, demonstrar, que a influência exercida pelo princípio da dignidade da pessoa humana538, princípio da qual se extrai a boa-fé e a eticidade na evolução da definição do conteúdo da autonomia privada, ao mesmo tempo, implica em reflexão sobre a forma como o princípio da livre iniciativa deve ser interpretado, a partir do contexto constitucional, eis que parece ser inegável a influência da dignidade da pessoa humana na liberdade de iniciativa.

O princípio da dignidade da pessoa humana, nas palavras de JOSÉ AFONSO DA SILVA,

(...) é um valor que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. “Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer ideia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa

537 Destaca GIOVANNI ETTORE NANNI, embora tratando sobre o direito das obrigações [que em tudo e por tudo se aplica ao raciocínio ora desenvolvido] que “(...) as limitações impostas à livre iniciativa atingem também a autonomia privada, face a relação existente entre ambas. Essas limitações viabilizam o direito das obrigações, além do próprio poder de iniciativa, as interferências admitidas nos negócios firmados em decorrência da autonomia privada, como por exemplo, os negócios contrários à boa-fé, a resolução ou adequação dos contratos por onerosidade excessiva, a lesão, o enriquecimento sem causa etc.” – in A evolução, op. cit., p. 180.538 A CF/88: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:III - a dignidade da pessoa humana;”

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dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir a ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana”. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a ordem social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana539.

A definição acima destacada por si só demonstra a forte influência que o princípio da dignidade da pessoa humana exerce na construção do sentido e alcance do princípio da livre iniciativa, moldando fortemente o capítulo da ordem econômica e descortinando que a regra é da não intervenção, da livre possibilidade do exercício da atividade econômica, que, no entanto, não se apresenta com caráter absoluto, pois, encontra limitações no próprio texto constitucional, especialmente nos fundamentos da República Federativa do Brasil.

E desse princípio da dignidade da pessoa humana, como decorrência lógica, porém implícita, no texto constitucional, que se extrai as condutas a serem tomadas no livre exercício da atividade econômica, pautando-as por comportamento ético e realçando a boa-fé, pois, somente dessa maneira estará sendo respeitado o verdadeiro conteúdo da norma jurídica plasmada no princípio da livre iniciativa.

É por essa razão que o já citado GIOVANNI ETTORE NANNI esclarece que “é esse o preceito exigido nas relações jurídicas: a boa-fé como padrão de comportamento universal, objetivamente considerado, em respeito à dignidade da pessoa humana, dentro da prescrição de uma sociedade em busca da liberdade, da justiça e da solidariedade”540.

Deve-se, ademais, deixar registrado que esse comportamento de eticidade e boa-fé, como corolário da dignidade da pessoa humana não é exigido apenas nas relações jurídicas de cunho privado, mas também e necessariamente – em razão da plena aplicabilidade do princípio da legalidade – às relações jurídicas de direito público, onde um dos atores envolvidos é o Estado, ora entendido em acepção lata.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

(i) Na perspectiva apresentada neste ensaio, o direito é visto como um sistema autopoiético, que é fechado sintaticamente e aberto semanticamente, ou seja, é fechado operacionalmente, mas aberto cognitivamente, razão de

539 Curso..., op. cit., p. 105.540 A evolução, op. cit., p. 189.

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ser auto-regulável e auto-referenciável, de forma que apesar de produzir os elementos necessários à sua manutenção, há interação com o meio ambiente, tornando-se vivo porque abriga no seu interior subsistemas que se comunicam e essa abertura semântica permite a comunicação com outros sistemas.

(ii) O estudo das fontes do direito está voltado para os fatos enquanto enunciação, que fazem nascer regras jurídicas introdutoras, ou seja, o direito nasce dos fatos que desencadeiam o processo de produção de normas jurídicas (enunciação), culminando com o produto legislado, ou enunciado prescritivo que, nesta concepção, nada mais é, senão, que veículo introdutor de normas jurídicas, ou seja, norma de estrutura. Essa perspectiva de fontes materiais do direito permite a afirmação de que doutrina, costumes e jurisprudência não podem ser consideradas fontes do direito, enquanto as leis são, apenas, veículos introdutores de normas jurídicas no sistema posto.

(iii) Não se pode confundir Regime de Estado e Regime de Governo. O Regime de Governo no Brasil atual541, sem dúvida, é de Estado Social e Democrático de Direito, todavia, o Regime de Estado brasileiro, partindo-se de uma interpretação sistemático-teleológica da Constituição Federal, especialmente dos títulos “Dos Princípios Fundamentais”, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” e da “Ordem Econômica e Financeira” em determinado sentido é Social de Direito e, em outro sentido, Liberal, o que se permite dizer que o Brasil não é nem Estado máximo, tampouco Estado mínimo.

(iv) o princípio da livre iniciativa, sinteticamente, pode ser definido como a liberdade de desenvolvimento do exercício de atividade econômica no quadro estabelecido pelo poder público, e, portanto, a possibilidade de gozar das facilidades e necessidade de submeter-se às limitações postas pelo mesmo, nas palavras de JOSÉ AFONSO DA SILVA, não sendo, entretanto, princípio absoluto, encontrando, pois, limitações no próprio seio constitucional.

(v) a abrangência e conteúdo do princípio da livre iniciativa encontra limitações constitucionais, v.g., na justiça social, no bem-estar coletivo, na necessidade de que seja observado o interesse público-social no exercício da atividade econômica e, sobremaneira, no princípio da dignidade da pessoa humana, do qual se pode extrair, ainda, a necessidade de observância de um comportamento ético e de boa-fé no exercício da atividade econômica.

541 O Governo Fernando Henrique Cardoso, em função das suas políticas de Governo e da onda de privatização e desestatização da economia, pode ser considerado como neoliberal.

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PROCESSO LEGISLATIVO COLABORATIVO: A PARTICIPATIVIDADE PELA INTERNET NO TRÂMITE DO PROJETO DE LEI Nº 2.126/2011

(MARCO CIVIL DA INTERNET)

THE COLABORATIVE LEGISLATIVE PROCEDURE: PARTICIPATIVITY TROUGH THE INTERNET DURING THE DRAF BILL NUMBER 2.126/2011

(BRAZILIAN CIVIL RIGHTS FRAMEWORK FOR THE INTERNET)

ruBenS BeçaK542*

João ViCtor rozatti longhi543**

RESUMO

As potencialidades do uso das tecnologias da comunicação e informação (TICs) para a construção de formas diferentes de expressão dos valores democráticos são grandes. O Marco Civil da Internet no Brasil já demonstrou que são verificáveis os corolários da democracia participativa pela construção colaborativa de um projeto de lei pela Internet, que inovando quanto ao exercício dos instrumentos constitucionais de democracia direta ou semirrepresentativa. Entretanto, a participação popular pela Internet avançou também durante as discussões no Poder Legislativo. Este trabalho procura analisar alguns resultados desta participação, em especial no que concerne à redação dos dispositivos que tratam da responsabilidade dos provedores por conteúdo inserido por terceiros.

Palavras-chave: Internet – democracia participativa – Marco Civil – responsa-bilidade civil – liberdade de expressão

ABSTRACT

The potentials of information and communication technologies (ITCs) to help people express the democratic values are great. The Brazilian Internet Civil Rights Framework has shown that it is possible to make true some thesis about participatory democracy, especially after the experience of a collaborative draft bill that was all debated by the Internet, whch is considered an innovative instrument beyond the constitutional forms of direct democracy

542 * Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e do programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da USP. Secretário Geral da USP.543 ** Professor Assistente-DE da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Professor convidado em programas de pós graduação. Mestre em Direito Civil pela UERJ.

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or semi-representational in Brazil. However, popular participation through the Internet was also possible during the discussions in the Parliament. This paper tries to analyze some results of that involvement, especially the articles about the liability of the Internet Service Providers for content inserted by the user.

Keywords: Internet – participatory democracy – Brazilian Civil Rights Frame-work for the Internet – civil liability – freedom of expression

Sumário: 1. A experiência de discussão colaborativa do Marco Civil e a submissão do projeto de lei como expressões da democracia participativa na Internet 2. A partici-pação popular durante o trâmite na Comissão Especial da Câmara dos Deputados 1.1 Comissões parlamentares e sua função: breves assertivas 1.2 As audiências públicas e o portal e-democracia da Câmara dos Deputados: da proposição colaborativa à construção colaborativa 3. O sistema de retirada de conteúdo e responsabilidade dos intermediários: desafios à tutela do usuário

INTRODUÇÃO

Muitos preconizam que a democracia, na atualidade, deve fazer dialogar a complexidade de interesses políticos, que vão desde a tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos até os anseios dos agentes econômicos que compõem o mercado.

Por essa razão, afirma-se que o sistema democrático hodierno não pode ser uma democracia excludente, em que Estado e Sociedade Civil caminham separados. Ao revés, além dos sujeitos mencionados, agentes privados, fundações, associações de consumidores e outras entidades devem somam forças para a consecução dos princípios constitucionais.

O Marco Civil da Internet no Brasil é apontado como um exemplo da concreção desta nova faceta da democracia. Isto porque inaugurou uma forma inovadora de exercício da soberania popular, sem precedentes na história legislativa brasileira.

Como se sabe, por intermédio de plataformas púbicas de participação popular, a iniciativa contou com a maciça presença de inúmeras entidades e a possibilidade de manifestação livre por qualquer internauta, sugerindo-se inclusive a redação de dispositivos para uma lei que visasse trazer princípios norteadores das relações civis na Internet.

O Marco Civil foi submetido à apreciação do Legislativo, tornando-se o projeto de lei nº 2.126/2011 da Câmara dos Deputados.

Este trabalho tem por escopo principal analisar brevemente a experiência do marco civil como uma possível superação do tradicional modelo de representação política também em sede de produção legislativa.

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Mônica Salem Caggianno, analisando as nuances do atual modelo representativo e os possíveis entraves que enfrenta o Poder Legislativo atualmente, uma vez que sempre fora um lócus tradicional de discussão e produção de regras jurídicas do Estado moderno, levantou o seguinte problema: com a popularização da Internet, será possível um dia vivermos sem o Paramento?544

Assim, mais especificamente, este estudo busca perquirir acerca de algumas das consequências da evolução dos debates sobre o Marco Civil também em sede do Poder Legislativo, aferindo os resultados da participação popular pelo portal eletrônico e-democracia da Câmara dos Deputados, das audiências públicas e das discussões em outros fóruns sobre o texto do projeto.

Por isso, a primeira parte procura elaborar um breve contraponto entre o sistema tradicional de representação política e algumas experiências de democracia direta ou semi direta fomentadas pelo uso das Tecnologias da Informação e Comunicação, revelando alguns aspectos teóricos que levaram à iniciativa do Marco Civil.

Em um segundo momento, procura-se descrever as discussões e sua importância durante o trâmite na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, que contou com a possibilidade de participação popular durante o trâmite no Poder Legislativo.

Por último, destaca a estrutura do projeto de lei que tem por objetivo declarar direitos civis de usuários e analisa brevemente a aparente opção legislativa adotada quanto ao sistema de responsabilidade dos intermediários por conteúdo gerado por terceiros constante do atual texto.

1. A EXPERIÊNCIA DE DISCUSSÃO COLABORATIVA DO MARCO CIVIL E A SUBMISSÃO DO PROJETO DE LEI COMO EXPRESSÕES DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NA INTERNET

O Marco Civil da Internet no Brasil tem sido objeto de diversos estudos aqui e no exterior, sendo observado por muitos pelo pioneirismo da iniciativa, pela amplitude das discussões e pela pluralidade de visões abordadas durante a fase que antecedeu a elaboração do texto original do projeto de lei.545

A concepção deste projeto de cunho inovador foi fomentada pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça em parceria com a Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas.

544 Cf. Anotações em aula proferida na disciplina “Direito parlamentar”, ministrada no curso de Pós Graduação Strictu Sensu da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em conjunto com o Prof. Dr. Rubens Beçak, no segundo semestre de 2011.545 V. por todos BECAK, Rubens; LONGHI, João Victor Rozatti . Tendencies for participatory democracy: the influences of the internet on the political representation’s profile and on the Participatory Budgeting. In: Law and Society Association International Meeting, 2012, Honolulu. Sociolegal Conversations across a sea of oceans, 2012.

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Vários tópicos foram postos em discussão aberta pelo portal do Marco Civil546 e também por sites de redes sociais. Milhares de postagens, advindas de diversos segmentos, levaram à redação de uma minuta de projeto, terminando-se a primeira fase de debates.

A minuta foi novamente submetida à apreciação popular pela Internet. Desta vez já era possível se ter por base a redação específica de cada um dos dispositivos que seriam enviados à apreciação do Poder Legislativo.

Após, o texto final do Marco Civil tornou-se o Projeto de Lei nº 2.126/2011 que iniciou seu trâmite pela Câmara dos Deputados, por iniciativa legislativa do Poder Executivo.

Preliminarmente, destaca-se que José Afonso da Silva afirma ser a democracia participativa algo entre a democracia direta e indireta, mesclando elementos de ambas.547 Por outro lado, Paulo Bonavides leciona que a democracia participativa deve ser necessariamente uma democracia direta, direito fundamental de natureza transnacional e que deve ser garantido a todos os povos. In verbis:

Um terceiro momento, todavia, já se vislumbra com formação de uma teoria constitucional que nos aparta dos modelos representativos clássicos. Pertence à democracia participativa e faz do cidadão-povo a medula da legitimidade de todo o sistema. Acaba, então a intermediação representativa, símbolo de tutela, sujeição e menoridade democrática do cidadão – meio povo meio súdito.548

Finalmente, Joaquim Falcão demonstra uma terceira via. Para o autor, um modelo constitucional verdadeiramente democrático em uma sociedade multifacetada e marcada pela complexidade de interesses em jogo, não só mescla elementos de democracia representativa e direta, com partidos políticos e eleições proporcionais de um lado e plebiscitos, referendos e projetos de iniciativa popular de outro.

Pelo contrário, afirma Falcão que a democracia neste ambiente complexo também é realizada pelos conselhos municipais, ONGs (OSSCIPs e OSs), entidades paraestatais, fundações públicas e privadas, dentre outras, razão pela

546 CULTURA DIGITAL. Marco Civil. Disponível em: http://culturadigital.br/marcocivil/. Acesso em 18 ago 2012.547 Cf. SILVA, José Afonso da. O sistema representativo e a democracia semi-direta: democracia participativa. In: CANTÚ, Hugo A. Sistema representativo y democracia semidirecta. Memorial del VII Congreso de Derecho Constitucional. Mexico: Instituto de Investigaciones Jurídicas de la Universidad Autónoma de Mexico, 2002. pp. 2-3.548 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 37.

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qual os modelos de democracia nem são sequenciais nem excedentes, mas complementares. É o que denomina de democracia concomitante.549 E uma das principais características deste ambiente político é a paulatina erosão dos limites entre Estado e Mercado, ou entre o estatal e a sociedade civil.

Muitos são os estudos, desde os primórdios da Internet, em que se reconhece na Rede das Redes um ambiente possivelmente profícuo para a concretização das premissas desta democracia contemporânea. Especificamente quando analisada a fusão entre público e privado operada pela massificação da Internet, assevera Pierre Levy:

No que diz respeito aos efeitos sobre a democracia, essa transformação da esfera pública me parece afetar positivamente os quatro domínios estreitamente independentes, que são as capacidades de aquisição de informação, de expressão, de associação e de deliberação dos cidadãos. Em suma, a computação social aumenta as possibilidade de inteligência coletiva e, por sua vez, a potência do “povo”.550

O Marco Civil parece ser uma experiência de concretização destas premissas, podendo ser observado como uma expressão diversa do próprio processo legislativo tradicional, cuja participação popular deu base à iniciativa legislativa e não se esgotou nesta fase, adentrando ao Legislativo.

Sobre o conceito e objeto do processo legislativo contido no arts. 59 e seguintes da Constituição da República, leciona José Afonso da Silva:

Por “processo legislativo” entende-se o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção, veto) realizado pelos órgãos legislativos visando à formação das leis constitucionais, complementares e ordinárias , resoluções e decretos legislativos. O procedimento legislativo é o modo pelo qual os atos do processo legislativo se realizam. Diz respeito ao andamento da matéria nas casas legislativas. As regras básicas sobre o processo legislativo aplicam-se a Estados e Municípios.551

O Marco Civil representa uma experiência em que as discussões colaborativas avançaram também em sede do Poder Legislativo, integrando,

549 Cf. FALCÃO, Joaquim. Democracia, direito e terceiro setor. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 87.550 LEMOS, André; LEVY, Pierre. O futuro da Internet: em direção a uma ciberdemocracia planetária. São Paulo: Paulus, 2010. p. 14. 551 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 6. Ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 437.

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portanto, o próprio processo legislativo. Algumas de suas peculiaridades, principalmente a participatividade nas audiências públicas promovidas no portal e-democracia da Câmara dos Deputados e em outros fóruns de discussão, determinantes na redação de certos dispositivos e determinadas opções legislativas, serão analisadas a seguir.

2. A PARTICIPAÇÃO POPULAR DURANTE O TRÂMITE NA COMISSÃO ES-PECIAL DA CÂMARA DOS DEPUTADOS

“Nunca um projeto de lei foi objeto de tanta participação popular na história da Câmara dos Deputados”Deputado Alessandro Molon (PT-RJ)552

Contemporaneamente, não raras são as vozes que levantam um possível esvaziamento da função típica exercida pelo Poder Legislativo. O Parlamento, conforme salientado, foi concebido na teoria da separação das funções do poder como um local ideal para o exercício da representação política.

A concentração de atribuições estratégicas na figura do Poder Legislativo, no início do Século XX, levou muitos a sustentarem a necessidade de se limitar os poderes concedidos ao Parlamento. Neste sentido, Raymond Carré de Malberg:

A razão de a limitação dos poderes é mais difícil em uma Constituição como a francesa em que o órgão supremo, ou seja, aquele que deve ser limitado, é o Parlamento, o mesmo corpo que, por suas leis, ode conferir a si mesmo novos poderes por tempo indeterminado. Neste regime, todas as limitações parecem ser dirigidas exclusivamente contra as autoridades que não tenham sido eleitas. Assim, a autoridade judiciária é fortemente limitada pela proibição de invadir a competência legislativa ou a esfera de competência própria dos administradores. Igualmente, há também uma estrita limitação contra o Executivo, que não pode, em princípio, praticar mais atos do os que a lei autoriza, e cujo chefe não pode, ademais, em razão do regime parlamentarista, exercer o seu poder por si ou mediante um ministro de estado em estreita dependência das câmaras do parlamento. Mas, em relação a este último, parece carecer efetivamente de qualquer limitação. Afinal, não só são capazes de fixar suas leis e suas próprias competências legislativas, como o próprio regime parlamentar

552 O deputado é o relator da Comissão Especial e autor do projeto substitutivo ao do Marco Civil na Câmara (Projeto nº2.126/2011). As afirmações foram feitas em evento realizado na Americam Chamber, em 17 de agosto de 2012. Marco Civil da Internet é tema de evento na Amcham Rio - 20/08/2012 Disponível em: http://amchamrio.com/. Acesso em 29 ago. 2012.

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tende a aumentar o seu poder ao assegurar a sua supremacia sobre o executivo, fazendo depender dele toda ação do governo.553

A doutrina aponta, desta maneira, alguns mecanismos constitucionais trazidos à tona como forma de limitação a tal vocação expansiva natural do poder do parlamento. Dentre eles, podem ser citados: a separação entre poder constituinte originário e derivado e os limites materiais e procedimentais à criação das normas infraconstitucionais; mandatos parlamentares limitados no tempo; limitação de números de mandato a um mesmo indivíduo, dada a necessidade de renovação dos membros do parlamento; a divisão do órgão parlamentar em câmaras alta e baixa, sendo aquela com predileção à função de câmara moderada, com mandatos mais largos, por exemplo; proibição de acúmulo com outros cargos e, finalmente; a divisão do órgão deliberativo em comissões especiais de perfil técnico, com intuito de aprimoramento do conteúdo das normas a serem produzidas.554

Na atualidade, verifica-se uma fragmentação crescente dos parlamentos em comissões permanentes e transitórias, direcionadas ao exercício da função típica de legislar ou de outras, atípicas, como a de fiscalizar os outros poderes, sendo certo que justificam a preocupação da doutrina, principalmente quanto à sua composição, ao jogo de poder555 que determina sua criação, extinção e a condução de seus trabalhos.

2.1 AS COMISSÕES PARLAMENTARES, SUA COMPOSIÇÃO E FUNÇÃO: BREVES ASSERTIVAS

Postas genericamente algumas noções de Parlamento, desemboca-se na análise específica da composição das comissões parlamentares, órgão de suma

553 MALBERG, Raymond Carré de. Teoría general del Estado. Trad. José Lión Depetre. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 856554 CAGGIANO, Mônica Salem. Cit. 555 Para Roberto Amaral, a fragmentação do órgão legislativo pode ser uma ameaça aos interesses legítimos dos eleitores. Nesse sentido: Daí, em nossos parlamentos, a proliferação de bancadas de interesse de nominata inesgotável, organizadas erga partidos: são a ‘bancada’ dos evangélicos, a da saúde, a da medicina privada, a dos radialistas, a do ensino privado, a dos ruralistas e, até, a dos policiais-militares. São esses interesses, acima da representação do eleitorado ou do programa partidário, que determinam as votações em Plenário. AMARAL, Roberto. Apontamentos para a reforma política: a democracia representativa está morta; viva a democracia participativa. In: Revista de Informação Legislativa. n. 151. jul. / set. 2001. Brasília, 2001. p. 51.Disponível em: http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/ handle/bdcamara/461/analise_partidario_lima.pdf?sequence=8. Acesso em: 11 set. 2011. Contudo, a crítica do autor revela-se mais quanto aos agrupamentos que não necessariamente compõem a estrutura constitucional da função legislativa e indicam o déficit de democracia na representação política do que propriamente uma crítica à estrutura das Comissões Parlamentares.

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importância para o exercício das funções do parlamento nas circunstancias atuais. Acerca, Jose Maria Serna de la Garza:

As comissões são o cerne da estrutura organizacional e funcional do Legislativo [...]. Constituem o núcleo dos trabalhos parlamentares ou do Congresso. Sem seu trabalho, as legislaturas não podem ter nenhuma ordem específica nas suas deliberações, nem os seus acordos poderiam ter a qualidade adequada, além de que não haveria tempo para discutir os assuntos submetidos a sua consideração. A sua existência obedece então, a critérios para a divisão do trabalho e câmaras de especialização em suas atividades.556

No Brasil, a fonte normativa primária das comissões parlamentares na Constituição da República é o artigo 58 e parágrafos, dispondo seu caput que: O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.

Por sua vez, extrai-se da análise dos parágrafos subsequentes o que se enumera como espécies de comissões. Quanto à duração, do caput do dispositivo já está a distinção entra comissões temporárias e permanentes, além das comissões parlamentares de inquérito (§3º) e as representativas, formadas obrigatoriamente durante o recesso parlamentar, (§4º), que por sua própria função, são também de natureza temporária, ainda que esta última seja de caráter obrigatório.

Com relação à função que exerce cada comissão, evidentemente que é sua estrutura que reflete no desempenho de sua predileção institucional. Afinal o §2º do artigo 58 enumera as funções de cada comissão parlamentar, condicionando seu exercício à sua respectiva matéria ou competência.557

556 No original: Las comisiones parlamentarias son la parte medular de la estructura orgánica y funcional del Poder Legislativo [...]. Constituyen el núcleo fundamental del quehacer político parlamentario o congresional. Sin su trabajo, las asambleas legislativas no contarían con orden alguno en sus deliberaciones, ni sus acuerdos podrían tener la calidad debida, además de que no tendrian tiempo para analizar los asuntos sometidos a su consideración. Su existencia obedece, pues, a los criterios de división del trabajo de las cámaras y de la especialización en sus actividades.” GARZA, José Maria Serna de la Garza. Derecho Parlamentario. Mexico: UNAM, 1997. pp. 13-14. Tradução livre.557 São elas: I - discutir e votar projeto de lei que dispensar, na forma do regimento, a competência do Plenário, salvo se houver recurso de um décimo dos membros da Casa; II - realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil; III - convocar Ministros de Estado para prestar informações sobre assuntos inerentes a suas atribuições; IV - receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas; V - solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão; VI - apreciar programas de obras, planos nacionais,

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Insta salientar alguns aspectos na disciplina jurídica da destinação das comissões parlamentares.

Primeiramente, José Afonso da Silva destaca a possibilidade de que um projeto de lei seja discutido e aprovado por uma Comissão, interna corporis. Narra o autor que tal dispositivo guarda suas raízes no artigo 72 da Constituição Italiana558, trazendo a hipótese de uma espécie de delegação do exercício da função típica do órgão, ainda que conclua que tal instituto mais se assemelhe uma espécie anômala de substituição condicional.559

Por último, salienta-se que, conforme dispõe o parágrafo primeiro do mesmo dispositivo: “Na constituição das Mesas e de cada Comissão, é assegurada, tanto quanto possível, a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa.”

A noção do que seria um bloco parlamentar, por seu turno, pode ser extraída, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Isto porque, o artigo 12 do Regimento traz a noção de bloco parlamentar como uma união de partidos que passam a se agrupar, dentro daquela legislatura, como uma única bancada e sob uma liderança comum.

Comissão, ademais, se diferencia de bloco parlamentar. A comissão tem função constitucional e regimental específica. No caso da Câmara dos Deputados brasileira, por exemplo, o Regimento Interno as Disciplina nos artigos 22 a 60.

O artigo 23 dispõe especificamente sobre sua composição, asseverando que: Na constituição das Comissões assegurar-se-á, tanto quanto possível, a representação proporcional dos Partidos e dos Blocos Parlamentares que participem da Casa, incluindo-se sempre um membro da Minoria, ainda que pela proporcionalidade não lhe caiba lugar. Parágrafo único. O Deputado que se desvincular de sua bancada perde automaticamente o direito à vaga que ocupava em razão dela, ainda que exerça cargo de natureza eletiva.

regionais e setoriais de desenvolvimento e sobre eles emitir parecer.558 Articolo 72 - Ogni disegno di legge, presentato ad una Camera è, secondo le norme del suo regolamento, esaminato da una Commissione e poi dalla Camera stessa, che l’approva articolo per articolo e con votazione finale. Il regolamento stabilisce procedimenti abbreviati per i disegni di legge dei quali è dichiarata l’urgenza.Può altresì stabilire in quali casi e forme l’esame e l’approvazione dei disegni di legge sono deferiti a Commissioni, anche permanenti, composte in modo da rispecchiare la proporzione dei gruppi parlamentari. Anche in tali casi, fino al momento della sua approvazione definitiva, il disegno di legge è rimesso alla Camera, se il Governo o un decimo dei componenti della Camera o un quinto della Commissione richiedono che sia discusso e votato dalla Camera stessa oppure che sia sottoposto alla sua approvazione finale con sole dichiarazioni di voto. Il regolamento determina le forme di pubblicità dei lavori delle Commissioni. La procedura normale di esame e di approvazione diretta da parte della Camera è sempre adottata per i disegni di legge in materia costituzionale [cfr. art. 138] ed elettorale e per quelli di delegazione legislativa [cfr. artt. 76, 79 ], di autorizzazione a ratificare trattati internazionali [cfr. art. 80], di approvazione di bilanci e consuntivi [cfr. art. 81].559 SILVA, José Afonso da. Comentários (cit.). p. 432.

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Por seu turno, é o artigo 27 que traz normativamente os quocientes numéricos de sua composição, acompanhado de procedimentos regimentais para garantia do seu fiel cumprimento.560 Contudo, tais normas são consideradas pela jurisprudência como de natureza de ato interna corporis, razão pela qual caberia apenas à própria casa a determinação de que fossem cumpridas.561

Portanto, é fato que a proporcionalidade é de índole democrática, devendo-se ater aos comandos da representação política. Nesse diapasão, a composição das comissões deve atender ao princípio da proporcionalidade de fato, não apenas em âmbito formal. A Comissão Especial Transitória para a análise do Marco Civil parece ter cumprido a contento estes requisitos, sendo composta por lideranças de ambas as bases.

2.2 AS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS E O PORTAL E-DEMOCRACIA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS: DA PROPOSIÇÃO COLABORATIVA À DELIBERAÇÃO COLABORATIVA

Primeiramente, destacam-se as lições de Orides Mezzaroba et alli acerca da importância de canais democráticos que fomentem a participação popular durante o processo legislativo, como o e-democracia:

[...] o Portal e-Democracia é uma iniciativa que avança no sentido de dar ao cidadão finalmente o direito de se expressar, a oportunidade de

560 Art. 27. A representação numérica das bancadas em cada Comissão será estabelecida com a divisão do número de membros do Partido ou Bloco Parlamentar, aferido na forma do § 4° do art. 8° deste Regimento, pelo quociente resultante da divisão do número de membros da Câmara pelo número de membros da Comissão; o inteiro do quociente assim obtido, denominado quociente partidário, representará o número de lugares a que o Partido ou Bloco Parlamentar poderá concorrer na Comissão. (“Caput” do artigo com redação dada pela Resolução nº 34, de 2005, em vigor a partir de 01/02/2007)561 Nesse sentido, “Mandado de segurança impetrado contra ato do Presidente da Câmara dos Deputados, que indeferiu, para fins de registro, candidatura ao cargo de 3º Secretário da Mesa, alegação de violação do art. 8º do Regimento da Câmara e do § 1º do art. 58 da Constituição. Ato do Presidente da Câmara que, tendo em vista a impossibilidade, pelo critério proporcional, defere, para fins de registro, a candidatura para o cargo de Presidente e indefere para o de membro titular da Mesa. Mandado de Segurança impetrado para o fim de anular a eleição da Mesa da Câmara e validar o registro da candidatura ao cargo de 3º Secretário. Decisão fundada, exclusivamente, em norma regimental referente à composição da Mesa e indicação de candidaturas para seus cargos (art. 8º). O fundamento regimental, por ser matéria interna corporis, só pode encontrar solução no âmbito do Poder Legislativo, não ficando sujeito à apreciação do Poder Judiciário. Inexistência de fundamento constitucional (art. 58, § 1º), caso em que a questão poderia ser submetida ao Judiciário. Mandado de segurança não conhecido, por maioria de sete votos contra quatro. Cassação da liminar concedida.” (MS 22.183, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 5-4-1995, Plenário, DJ de 12-12-1997.) Grifamos.

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interagir e opinar, permitindo que ele promova debates e compartilhe conhecimento no processo de elaboração de políticas públicas e projetos de lei de interesse estratégico nacional.562

O Congresso Nacional é inspirado em modelos parlamentares bipartidos, como o inglês, por exemplo. A Câmara dos Deputados brasileira representa a casa do povo, a câmara baixa do Legislativo nacional. Por isso, é um local propício para a participação popular no processo legislativo, sem prejuízo daquela que também pode ocorrer em sede do Senado Federal. Soma-se a tal o fato de que, dentre as funções típicas das Comissões Legislativas, está a de promover audiências públicas.

A experiência participativa do projeto de lei 2.126/2011 foi narrada pelo Relator da Comissão Especial para o tema na Casa. O Deputado Alessandro Molon (PT-RJ) relatou que foram promovidas sete audiências públicas e outros seminários em capitais de quatro das cinco regiões do país, além de Brasília. Além disso, foram ouvidos sessenta e dois especialistas e dezenas de instituições acerca dos temas propostos, que encaminharam inúmeras moções com sugestão de texto.

Em metodologia semelhante àquela adotada na fase anterior à propositura, foram estabelecidos os princípios fundamentais a serem abordados e os temas primordiais a serem discutidos. Outrossim, relatou que a pedra de toque em termos de inovação durante o trâmite na Comissão Especial foi o a participação popular pela Internet:

Além disso, como estamos tratando do estabelecimento de um marco civil para a Internet, não poderíamos deixar de utilizar essa fantástica plataforma para estimular a mais ampla participação popular. Assim, foi criado pela Câmara dos Deputados um espaço especial de discussões sobre o tema no sítio e-Democracia (http://www.edemocracia.camara.gov.br), que incluiu um “wikilegis” para recebimento de propostas de nova redação ao projeto, um fórum de discussões, sessões de bate-papo em tempo real durante as audiências e seminários, e uma biblioteca virtual com legislações, artigos, publicações, notas e vídeos. Também surgiu, de forma espontânea, a hashtag #marcocivil nos micro blogs Twitter e Identi.ca que citamos anteriormente, por meio da qual recebemos incontáveis contribuições, algumas das quais terminaram por

562 SANTOS, P. M.; BERNARDES, M. B.; MEZZAROBA, O. . Democracia Eletrônica: Desafios e Perspectivas. In: Encontros Internacionais do PROCAD, 2009, Florianópolis. Colóquio sobre a Sociedade da Informação: Democracia, Desenvolvimento e Inclusão Tecnológica, 2009. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/artigo_edemocracia_procad_final_ultimo.pdf. Acesso em: 22 ago. 2011.

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integrar este relatório. No dia 13 de junho, também de forma espontânea, teve início uma blogagem coletiva sobre o marco civil, que trouxe ao público diversos artigos aprofundados sobre o tema. A exemplo do que ocorreu no âmbito do Executivo, o texto do Projeto de Lei 2.126/2011 foi disponibilizado na íntegra na Internet, no sítio do e-Democracia. Durante os trabalhos da Comissão, a página especial do marco civil da Internet no e-Democracia recebeu aproximadamente 45 mil visitas. Os fóruns que discutiam temas relativos ao marco civil receberam mais de 200 postagens. Além disso, exatas 140 propostas de alteração ao texto do Projeto de Lei foram apresentadas por internautas no Wikilegis - algumas delas agregadas ao texto do substitutivo que ora propomos [...]. Durante os bate-papos em tempo real promovidos durante as audiências públicas e os seminários realizados pela comissão, outras 2.215 mensagens com contribuições foram transmitidas. Finalmente, milhares de mensagens sob a hashtag #marcocivil circularam – e ainda circulam – nos micro blogs Twitter e Identi.ca, contendo inclusive sugestões acatadas na confecção do substitutivo.563

Aires José Rover ressalta que: “hoje a rede internet já é uma boa mídia para a participação na política na medida em que pode ajudar as pessoas a interagirem com seus governantes, [...] de forma mais rápida e econômica.” Ao salientar que não necessariamente os meios de participação popular devam ser os oficiais, o autor adverte, porém, que “os agentes governamentais devem estar aptos para ouvir e processar o que os cidadãos têm a dizer.”564

O Marco Civil fez verificar também estas premissas. Afinal, as discussões antes e durante o tramite do texto no Legislativo ocorreram muitas vezes de forma espontânea e por meio de redes sociais que não somente o portal e-democracia, influenciando na elaboração do projeto substitutivo que delimitou melhor a redação de determinados dispositivos. Porém, conforme se verá, deve-se perquirir se esgotam suficientemente o tema ou se sugerem ainda mais dúvidas quanto à sua operatividade, em especial os dispositivos que tratam da responsabilidade civil dos intermediários pelo conteúdo inserido por terceiros.

563 Disponível em: http://edemocracia.camara.gov.br/documents/679637/277cc749-e543-4636-9ddb-736144a9b654. Acesso em: 23 ago. 2012.564 Cf. ROVER. Aires José; MEZZAROBA, Orides. Novas tecnologias: o governo eletrônico na perspectiva da governança. In: (Org.) Vladimir Oliveira da Silveira e Orides Mezzaroba. Empresa, sustentabilidade e funcionalização do Direto. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. (coleção Justiça, Empresa e Sustentabilidade; v.2). Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/novas_tecnologias_-_uninove.pdf. Acesso em: 23 ago. 2012.

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3. O SISTEMA DE RETIRADA DE CONTEÚDO E RESPONSABILIDADE DOS INTERMEDIÁRIOS: DESAFIOS À TUTELA DOS BENS DA PERSONALIDADE DO USUÁRIO

Antes de se adentrar especificamente no tema da responsabilização pelo conteúdo inserido por terceiros, devem ser destacados brevemente alguns aspectos pontuais do Marco Civil, a fim de se ilustrar seus alicerces axiológicos. Ou pelo menos aqueles declarados pelo texto legal.

Primeiramente, o caráter principiológico e enunciativo de direitos civis é um contraponto às iniciativas que, muito antes de pontuar quais são os agentes na Rede, visavam criminalizar condutas dos usuários, em especial para a defesa de interesses patrimoniais.565

O texto legal enuncia como fundamentos: I - o reconhecimento da escala mundial da rede; II - os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; III - a pluralidade e a diversidade; IV - a abertura e a colaboração; e V - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VI – finalidade social da rede (art. 2º).

No que concerne aos princípios, enumera-os em rol exemplificativo566: I - garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição; II - proteção da privacidade; III - proteção aos dados pessoais, na forma da lei; IV - preservação da garantia da neutralidade da rede; V - preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas; VI - responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei; e VII - preservação da natureza participativa da rede (art. 3º).

Destaque para a inclusão, no substitutivo proposto pelo relator da Comissão Especial, ao desenvolvimento da personalidade e à finalidade social da rede nos respectivos rols, além da falta de delegação à regulamentação posterior do tema da neutralidade da rede.

Ademais, deve-se salientar que a finalidade primordial da lei é a de garantir a privacidade do usuário. Segundo Stefano Rodotà, o “corpo”, na era da informação, não se resume ao corpo físico, mas abrange principalmente o conjunto de dados pessoais sobre os indivíduos, principalmente os chamados

565 Nesse sentido, V. LONGHI, João Victor Rozatti. A teoria dos sistemas dos sistemas de Niklas Luhmann e o direito à informação no direito brasileiro. O “furto” de camelos jurídicos reais na domesticação do direito da propriedade intelectual no âmbito da Internet. Artigo aprovado para publicação no XVIII Congresso Nacional do CONPEDI. São Paulo, 2009. Passim.566 Art. 3º ...omissis... Parágrafo único. Os princípios expressos nesta Lei não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria, ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte

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dados sensíveis. Estes são parte de nosso “corpo eletrônico” e, portanto, carecem de tutela diferenciada por representar um aspecto diferenciado da dignidade da pessoa humana.567

O Marco Civil procura também evitar as más práticas de vigilância que hoje compõem a estrutura do modelo de negócios de muitos provedores de hospedagem e conteúdo, a quem a lei prefere chamar genericamente de “provedores de aplicações da Internet” (art. 3º, VII).

Postas as linhas gerais, chega-se ao ponto mais controverso do texto proposto. Trata-se do sistema de responsabilidade civil consagrado pela lei, supostamente visando à proteção da privacidade do usuário.

Afinal, é possível identificar-se que a estrutura da Internet tem sofrido alterações basilares nos últimos tempos. No início dos anos 2.000, os modelos de negócio da Rede passaram a se basear no desenvolvimento de plataformas que propiciassem a inserção de conteúdo pelos usuários, o que se denominou pelo slogan comercial de web 2.0.568

A remuneração dos intermediários é feita não somente por anúncios em banners e links patrocinados, mas principalmente pela chamada publicidade dirigida, baseada nos cadastros de consumidores feitos através das preferências do usuário. O marketing direcionado ou cross marketing, vai muito além de banners e links patrocinados, mas decorre da estrutura de toda a Rede, que se baseia no conteúdo inserido pelos usuários como o principal capital a ser explorado pelos intermediários.

Primeiramente, é de se salientar que a jurisprudência brasileira tem frisado como premissa básica a aplicação do CDC aos provedores de hospedagem e de conteúdo pela remuneração indireta que caracteriza a relação entre fornecedor e consumidor.

Por essa razão, a orientação predominante atualmente no STJ parte da proteção do consumidor para construir jurisprudencialmente um sistema próximo ao do notice and takedown, previsto na regulamentação estrangeira – mormente a americana e europeia. Nesse sentido, já decidiu a corte:

DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. INTERNET. RELAÇÃO DE CONSUMO. [...] FISCALIZAÇÃO PRÉVIA DO TEOR DAS

567 Cf. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes. Tradução de Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 17.568 Cf. O’RELLY. Tim. O que é Web 2.0? Padrões de design e modelos de negócios para a nova geração de software. Publicado em http://www.oreilly.com/. Tradução: Miriam Medeiros. Revisão técnica: Julio Preuss. Novembro 2006 Disponível em: http://www.cipedya.com/web/FileDownload.aspx?IDFile=102010. Acesso em: 09 ago. 2012.

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INFORMAÇÕES POSTADAS NO SITE PELOS USUÁRIOS. DESNECESSIDADE. MENSAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. [...] DISPONIBILIZAÇÃO DE MEIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DE CADA USUÁRIO. DEVER. REGISTRO DO NÚMERO DE IP. SUFICIÊNCIA. [...]3. A fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, do teor das informações postadas na web por cada usuário não é atividade intrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos termos do art. 14 do CDC, o site que não examina e filtra os dados e imagens nele inseridos. 6. Ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita que os usuários externem livremente sua opinião, deve o provedor de conteúdo ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada manifestação uma autoria certa e determinada. Sob a ótica da diligência média que se espera do provedor, deve este adotar as providências que, conforme as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu alcance para a individualização dos usuários do site, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo. 7. Ainda que não exija os dados pessoais dos seus usuários, o provedor de conteúdo, que registra o número de protocolo na internet (IP) dos computadores utilizados para o cadastramento de cada conta, mantém um meio razoavelmente eficiente de rastreamento dos seus usuários, medida de segurança que corresponde à diligência média esperada dessa modalidade de provedor de serviço de internet. 8. Recurso especial a que se nega provimento.569-570

569 REsp 1193764/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/12/2010, DJe 08/08/2011570 Em recente decisão, publicada em informativo sem publicação do acórdão, o STJ reiterou o posicionamento que confirma a sistemática do notice and takedown, decidindo como prazo razoável para o bloqueio do conteúdo o de vinte e quatro horas. Informativo nº 0500 - Período: 18 a 29 de junho de 2012 - Terceira Turma - REDES SOCIAIS. MENSAGEM OFENSIVA. REMOÇÃO. PRAZO. A Turma entendeu que, uma vez notificado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito, o provedor deve retirar o material do ar no prazo de 24 horas, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, pela omissão praticada. Consignou-se que, nesse prazo (de 24 horas), o provedor não está obrigado a analisar o teor da denúncia recebida, devendo apenas promover a suspensão preventiva das respectivas páginas, até que tenha tempo hábil para apreciar a veracidade das alegações, de modo que, confirmando-as, exclua definitivamente o perfil ou, tendo-as por infundadas, restabeleça o seu livre acesso. Entretanto, ressaltou-se que o diferimento da análise do teor das denúncias não significa que o provedor poderá postergá-la por tempo indeterminado, deixando sem satisfação o usuário cujo perfil venha a ser provisoriamente suspenso. Assim, frisou-se que cabe ao provedor, o mais breve possível, dar uma solução final para o caso, confirmando a remoção definitiva da página de conteúdo ofensivo ou, ausente indício de ilegalidade, recolocá-la no ar, adotando, na última hipótese, as providências legais cabíveis contra os que abusarem da prerrogativa de

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Determinados conteúdos, entretanto, carecem de tratamento diferenciado, principalmente pelos riscos que apresentam à tutela dos direitos da personalidade dos usuários.

É o caso de alguns interesses em especial, como o de crianças e adolescentes, que já vem sendo objeto da atenção especial dos tribunais e de políticas legislativas, como a do art. 241-A, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que responsabiliza criminalmente o responsável pela manutenção em seu domínio de conteúdo relativo a pedofilia se, oficialmente notificado, não proceda à sua efetiva retirada.571

Em sentido semelhante, visando à tutela de interesses análogos, já decidiu o E. STJ, mantendo a tutela antecipada que determinou não só o bloqueio de comunidades no site Orkut em que se veiculava material ofensivo a crianças e adolescentes (uma delas vítima de crime sexual) como a obrigação de impedir a criação de novas com o mesmo intuito. Em seu voto, consignou o Ministro Relator Herman Benjamin:

PROCESSUAL CIVIL. ORKUT. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. BLOQUEIO DE COMUNIDADES. OMISSÃO. NÃO-OCORRÊNCIA. INTERNET E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ASTREINTES. ART. 461, §§ 1º e 6º, DO CPC. INEXISTÊNCIA DE OFENSA. 1. [...]Orkut [...] O Ministério Público Estadual propôs Ação Civil Pública em defesa de menores – uma delas vítima de crime sexual – que estariam sendo ofendidas em algumas dessas comunidades. 2. Concedida a tutela antecipada pelo Juiz, a empresa cumpriu as determinações judiciais (exclusão de páginas,

denunciar. Por fim, salientou-se que, tendo em vista a velocidade com que as informações circulam no meio virtual, é indispensável que sejam adotadas, célere e enfaticamente, medidas tendentes a coibir a divulgação de conteúdos depreciativos e aviltantes, de sorte a reduzir potencialmente a disseminação do insulto, a fim de minimizar os nefastos efeitos inerentes a dados dessa natureza. REsp 1.323.754-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 19/6/2012.571 Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008) Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)§ 1º Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo; (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008); II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo.(Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008); § 2º As condutas tipificadas nos incisos I e II do § 1o deste artigo são puníveis quando o responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente notificado, deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito de que trata o caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)

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identificação de responsáveis), exceto a ordem para impedir que surjam comunidades com teor semelhante. [...] 5. A internet é o espaço por excelência da liberdade, o que não significa dizer que seja um universo sem lei e infenso à responsabilidade pelos abusos que lá venham a ocorrer. 6. No mundo real, como no virtual, o valor da dignidade da pessoa humana é um só, pois nem o meio em que os agressores transitam nem as ferramentas tecnológicas que utilizam conseguem transmudar ou enfraquecer a natureza de sobreprincípio irrenunciável, intransferível e imprescritível que lhe confere o Direito brasileiro. 7. Quem viabiliza tecnicamente, quem se beneficia economicamente e, ativamente, estimula a criação de comunidades e páginas de relacionamento na internet é tão responsável pelo controle de eventuais abusos e pela garantia dos direitos da personalidade de internautas e terceiros como os próprios internautas que geram e disseminam informações ofensivas aos valores mais comezinhos da vida em comunidade, seja ela real, seja virtual. 8. Essa corresponsabilidade – parte do compromisso social da empresa moderna com a sociedade, sob o manto da excelência dos serviços que presta e da merecida admiração que conta em todo mundo – é aceita pelo Google, tanto que atuou, de forma decisiva, no sentido de excluir páginas e identificar os gângsteres virtuais. Tais medidas, por óbvio, são insuficientes, já que reprimir certas páginas ofensivas já criadas, mas nada fazer para impedir o surgimento de outras tantas, com conteúdo igual ou assemelhado, é, em tese, estimular um jogo de Tom e Jerry, que em nada remedia, mas só prolonga, a situação de exposição, de angústia e de impotência das vítimas das ofensas. [...] 11. Recurso Especial não provido.572

Deve-se salientar que, em parte significativa dos Tribunais dos Estados,

há incluso decisões que se valem da responsabilidade objetiva e solidária dos provedores para além dos casos de pedofilia na Internet.573

572 (REsp 1117633/RO, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 09/03/2010, DJe 26/03/2010).573 Nesse sentido, o E. TJRJ: Apelação Cível. Rito Ordinário. Criação de perfil falso em site de relacionamentos denominado “Orkut”. Legitimidade da Google Brasil e Google Inc. Responsabilidade objetiva que decorre da disponibilização do conteúdo na rede mundial de computadores. As rés, como administradoras do site de relacionamentos, permitem a inserção de conteúdos pelos seus usuários, sem nenhuma espécie de filtro ou controle, o que remete o fato ofensivo à seara dos riscos do negócio, exsurgindo daí a responsabilidade objetiva da ré. Dano moral configurado. Quantum indenizatório excessivamente fixado, que merece ser reduzido ao patamar de R$ 9.000,00, em obediência aos critérios de proporcionalidade e razoabilidade. PROVIMENTO PARCIAL DO SEGUNDO RECURSO, PREJUDICADO O PRIMEIRO. TJRJ - PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL - APELAÇÃO CÍVEL nº 2009.001.41528 - Relator: Desembargador Ernani Klausner – Julg.: 1808/2009 – Public.: 24/08/09.

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Contudo, o Marco Civil, originalmente, procurou introduzir sistemática diversa. Os artigos 14 e seguintes trazem a necessidade de notificação judicial do provedor para a retirada de qualquer conteúdo. Além disso, dispõe também que poderá o provedor, a pedido do usuário que inseriu as informações objeto da decisão judicial, substituir o conteúdo pelas razões que o motivaram.

O sistema adotado tem por princípio, nos termos do relator do substitutivo, a inimputabilidade da rede.574 As razões da opção legislativa foram explicitadas pelo relator. Afirma que “tal medida visa a proteger os diversos intermediários responsáveis apenas pela transmissão e roteamento de conteúdos,” asseverando que “a responsabilidade por eventuais infrações por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros cabe àqueles que a cometeram, e não àqueles que mantém a infraestrutura necessária para o trânsito de informações na Internet.”

Além disso, afirma expressamente que o sistema traz uma garantia à “indevida responsabilização de intermediários na Internet”, protegendo-se “o potencial de inovação na rede”, exceto por ordem judicial com determinação específica. Defende que o sistema procura evitar “ordens genéricas de supressão de conteúdo, com a obrigação de que a ordem judicial indique de forma clara e específica o conteúdo apontado como infringente, de forma a permitir a localização inequívoca do material.”

Por derradeiro, ressalta que o substitutivo fez constar na nova redação do dispositivo a expressa menção à proteção da liberdade de expressão, afim de se “evitar a censura, explicitando a preocupação da manutenção da Internet como um espaço de livre e plena expressão, assim como, enfatiza que “a responsabilidade de que trata o caput do artigo tem natureza civil.”

Duas últimas ressalvas devem ser feitas quanto aos riscos do sistema adotado para a tutela dos direitos da personalidade do usuário.

A primeira diz respeito à necessidade de se indicar especificamente o local das informações na Internet. No caso de danos à personalidade perpetrados pela REde, é comum que as informações se multipliquem rapidamente pela Rede. Quando o usuário efetua o pedido para a retirada, indica URLs que encontra e que estão naquele momento na Rede mundial de computadores. Por essa razão, já decidiu o E. STJ que incumbe a quem administra o site o dever técnico de impedir a divulgação do conteúdo ilícito, não lhe impondo a tarefa hercúlea de indicar precisamente as URLs:

574 Cf. BRASIL, Congresso Nacional – Câmara dos deputados. Relatório da Comissão Especial destinada a proferir parecer sobre o Projeto de Lei nº 2.126, de 2011, encaminhado ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo por meio da Mensagem nº 326, de 2011. Disponível em: http://edemocracia.camara.gov.br/documents/679637/277cc749-e543-4636-9ddb-736144a9b654. Acesso em: 30 ago. 2012. pp. 44-45.

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CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. MENSAGENS OFENSIVAS À HONRA DO AUTOR VEICULADAS EM REDE SOCIAL NA INTERNET (ORKUT). MEDIDA LIMINAR QUE DETERMINA AO ADMINISTRADOR DA REDE SOCIAL (GOOGLE) A RETIRADA DAS MENSAGENS OFENSIVAS. FORNECIMENTO POR PARTE DO OFENDIDO DAS URLS DAS PÁGINAS NAS QUAIS FORAM VEICULADAS AS OFENSAS. DESNECESSIDADE. RESPONSABILIDADE TÉCNICA EXCLUSIVA DE QUEM SE BENEFICIA DA AMPLA LIBERDADE DE ACESSO DE SEUS USUÁRIOS. 1. O provedor de internet - administrador de redes sociais -, ainda em sede de liminar, deve retirar informações difamantes a terceiros manifestadas por seus usuários, independentemente da indicação precisa, pelo ofendido, das páginas que foram veiculadas as ofensas (URL’s).2. Recurso especial não provido.575

Além disso, o segundo ponto a se destacar é a justificativa do tratamento legal dado a todo e qualquer provedores de aplicação, afirmando-se que a ausência de responsabilidade é um corolário do direito fundamental à liberdade de expressão. A liberdade de expressão não pode ser considerada em absoluto, como se fosse o único valor a ser tutelado pelo ordenamento jurídico. Nesse sentido, Rosely C. M. Maia e Wilson Gomes:

No momento da mais inflamada retórica emancipatória da Internet, a rede era entendida como uma reserva ambiental protegida por qualquer injunção de controle e filtro, e dedicada a cultivar a plena liberdade de expressão. Liberdade que, automaticamente, deveria ser considerada automaticamente como uma virtude democrática. O modelo de democracia liberal-individualista conhecido como libertarianismo encontrava na forma do ciberlibertarianismo, a sua ponta-de-lança. Rapidamente se descobriu, entretanto, que a equação segundo a qual a liberdade sempre está do lado da democracia e controle do lado da tirania é só um artifício retórico do libertarianismo na sua forma mais extremada. Há informação má, perigosa, criminosa, ofensiva à dignidade humana, injuriosa e antidemocrática, e defender seu direito de existir não é o mesmo que lutar por direitos civis no ciberespaço. Ao contrário, pode significar o engajamento na proteção ao hate speech, ao racismo publicado, à discriminação de minorias (Gomes, 2002). E se na Internet de fato floresce um espaço da liberdade de expressão e de experiência

575 REsp 1175675/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 09/08/2011, DJe 20/09/2011

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democrática, ela igualmente se transformou no paraíso dos conservadores, da ultradireita, dos racistas e dos xenófobos, um refúgio que, aliás, tem-lhes sido mais seguro e próspero que o mundo offline.576

Os dispositivos sobre a responsabilidade do provedor pelo conteúdo gerado por terceiro tiveram por duas vezes sua redação original modificada. A primeira, antes da elaboração da minuta do projeto de lei a ser encaminhada pelo Executivo, incumbia o provedor do dever de manter um canal em seu site para receber notificações e contranotificações de usuários visando a remoção de conteúdo ilícito, em sistema semelhante a sistemas estrangeiros. A redação original também equiparava usuários que administravam páginas de divulgação de conteúdo e exerciam o controle destas informações a provedores para tal fim.

O sistema engendrado foi substituído pelo atual, que contém a necessidade de ordem judicial específica para a retirada. Durante as discussões é possível identificar que, ainda que haja um forte apelo à liberdade de expressão, outros interesses estão em jogo, principalmente o dos grandes intermediários da Internet, hoje responsáveis pela maioria esmagadora das lides sobre conteúdo gerado por terceiros.577

A sistemática que parte da inimputabilidade da rede como um princípio trata de maneira genérica toda e qualquer espécie de provedor, não se atentando nem à robustez da empresa que desempenha, nem da possibilidade técnica de controle que pode exercer por intermédio dos filtros que administra.

Eli Pariser, ao analisar a contradição existente entre o discurso dos programadores de software acerca da necessidade de proteção dos direitos individuais e da grande aglutinação de poder que o controle dos meios tecnológicos proporciona, adverte: “Se o código é a lei, como na famosa declaração de Larry Lessig, é importante entendermos o que os novos legisladores têm em mente. Precisamos entender aquilo em que acreditam os programadores do Google e do Facebook.”578 Em outro trecho, é enfático ao afirmar quais acredita serem as reais intenções dos grandes intermediários ao preconizar uma liberdade absoluta e irrestrita como base de suas condutas na Rede:

Com muita frequência, os executivos do Facebook, Google e outras empresas socialmente importantes se fazem de bobos: são os

576 GOMES, Wilson; MAIA, Rosely C. M. Comunicação e democracia. Problemas & perspectivas. São Paulo: Paulus, 2008. pp. 321-322. 577 Nesse sentido, V. as discussões sobre os artigos 19 e seguintes da primeira versão do Marco Civil, onde é possível se os autores da proposta de reforma. Disponível em: http://culturadigital.br/marcocivil/debate/. Acesso em 29 ago. 2012.578 PARISER, Eli. O filtro invisível. O que a Internet está escondendo de você. Trad. Diego Alfaro. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 23.

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revolucionários sociais quando lhes convêm e empresários amorais quando não. E as duas posturas deixam muito a desejar.579

As asseverações do autor, ainda que baseadas em declarações específicas de inúmeros especialistas estrangeiros sobre o tema, ainda carecem de verificação e, caso verdadeiras, podem ser contornadas quando transpostas à realidade nacional. Principalmente se aprovada a atual redação proposta no substitutivo proposto pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados.

Afinal, as duas ressalvas expressas no corpo do caput artigo 15, podem nortear os futuros trabalhos hermenêuticos acerca do tema. O primeiro diz respeito à menção expressa à garantia da liberdade de expressão e o segundo é a frase ao final que ressalva acerca da possibilidade de coexistência com outros sistemas de responsabilização em legislações diversas.

A pré-ponderação de valores que dá maior peso à liberdade de expressão, em abstrato e sem prejuízo de outros valores do ordenamento igualmente relevantes que podem prevalecer no caso concreto, é de grande valia para o intérprete. Valores como a tutela de aspectos da personalidade como imagem atributo, privacidade, dentre outros não podem ser simplesmente deixados de lado na Internet.

Eis a importância, portanto, do Parlamento para o abrandamento dos interesses em jogo na elaboração do texto legal. Criar um sistema de responsabilidade civil que parte do pressuposto da irresponsabilidade por todo e qualquer conteúdo, fazendo depender o dever de retirá-lo do ar de provimento judicial específico sobre o exato local da informação, pode deixar sem proteção alguma o elo mais fraco desta corrente: o usuário.

Utilizar como subterfúgio o caráter absoluto da liberdade de expressão para acobertar modelos de negócio irresponsáveis parece ser a subversão completa dos valores constitucionais, que sempre tiveram as situações subjetivas existenciais como corolário do epicentro axiológico do ordenamento: a dignidade da pessoa humana. Em outros termos, usar o direito fundamental à liberdade de expressão como base da “inimputabilidade” de todo e qualquer intermediário da rede esconde a tutela de um único direito fundamental em detrimento de todos os outros: a livre iniciativa.

Por esta razão, ainda que com maciça participação popular, a experiência do Marco Civil ainda não parece ser a personalização da preconizada morte do Poder Legislativo, mas apenas a evidência de uma de suas muitas funções constitucionais, qual seja, a de promover a participação popular como elemento enriquecedor e fortalecedor da deliberação.

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CONCLUSÃO

A Internet, de fato, trouxe inúmeras mudanças na forma como cidadão compreende o Estado e com ele interage. As possibilidades para a participação popular são muitas e várias experiências são apontadas como bem sucedidas no exercício da cidadania neste novo milênio.

O Marco Civil da Internet no Brasil é visto como uma manifestação da democracia participativa. As fases anteriores à propositura do projeto de lei pelo Executivo nacional contaram com milhares de participações das mais variadas vertentes.

A participação popular pela Internet não se restringiu a este momento, adentrando aos debates também em sede legislativa. Várias foram as audiências públicas e a participação popular pela Internet foi maciça tanto no portal e-democracia da Câmara dos Deputados como em outros fóruns de discussões pela Rede

Portanto, é possível se afirmar que se o Marco Civil da Internet no Brasil já havia inovado como exemplo de democracia participativa na instrumentalização de mecanismo sui generis de exercício da iniciativa popular e apresentou uma espécie de projeto de lei colaborativo, também pode ser observado pela influência da participação dos cidadãos nas deliberações legislativas.

Por isso, pode ser analisado não só pelo prisma da colaboratividade na confecção do projeto de lei, mas, outrossim, pela interatividade entre o cidadão e os representantes durante os trabalhos da Comissão Especial da Câmara, em um verdadeiro processo legislativo colaborativo.

Desta maneira, enquanto muitos preconizam a perda de sentido no Parlamento, deve-se partir da premissa de que é necessário a compreensão de quais as atuais funções do Poder Legislativo.

O aprimoramento dos dispositivos acerca da responsabilização dos intermediários da Internet pelo conteúdo inserido por terceiros contido no substitutivo ao projeto de lei, ainda que tímido, abre maiores possibilidades para a efetiva tutela de aspectos da personalidade do usuário, como sua imagem atributo, imagem retrato, honra, identidade, dentre outros.

Logo, é possível se verificar que o uso da Internet na construção da Democracia hoje não pode ser tratado de maneira superficial. Não se pode aceitar acriticamente elucubrações acerca de uma possível “morte” do Legislativo.

Pelo contrário. Deve-se sim enaltecer as possibilidades que o uso da tecnologia inaugura para a estruturação de uma forma diversa de legislar, mais colaborativa e participativa.

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