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Neste artigo pretendo explorar as intersec- ções entre espaço urbano, instituições acadêmicas, organizações culturais e formas de sociabilidade, por um lado, e suas inflexões na modelagem de distintas gerações de intelectuais, por outro. 1 Ten- do por base os trabalhos de Mary Gluck (1985) so- bre a geração de Lukács em Budapeste, de Clarck (1986) sobre Paris e a pintura da “vida moderna”, de Schorske (1988) sobre o modernismo em Vie- na, de Raymond Williams (1982) sobre o grupo Bloomsbury, de Thomas Bender (1993) sobre Nova York e seus intelectuais e de Maria Arminda Arruda do Nascimento (2001) sobre a relação en- tre sociedade e cultura em São Paulo, pretendo abordar, numa perspectiva comparativa, as simili- tudes e as diferenças entre os intelectuais “paulis- tas” da revista Clima (editada entre 1941 e 1944) e os “nova-iorquinos” nucleados pela Partisan Re- view (lançada em 1937). Delineados os termos e o conteúdo substantivo da comparação proposta, o artigo se fecha com uma tentativa, ainda explora- tória, de pensar esse círculo de intelectuais norte- americanos à luz do modelo teórico construído por Elias para analisar as dimensões estruturais re- correntes na figuração “estabelecidos-outsiders”. Os editores da Partisan Review (Philip Rahv, William Phillips, Dwight Macdonald, Cle- ment Greenberg, Mary McCarthy, mais tarde, Delmore Schwartz e William Barrett) e seus co- laboradores (Alfred Kazin, Lionel Trilling, Diana Trilling, Irving Howe, Elizabeth Hardwick, Han- nah Arendt, Nicolas Chiaramonte, Sidney Hook, Edmund Wilson, Meyer Schapiro, entre outros) renovaram a discussão sobre a relação entre mo- dernismo nas artes e radicalismo na política. Anti-stalinistas fervorosos, de início marxistas, alinhados ao campo político da esquerda norte- CIDADES E INTELECTUAIS: os “nova-iorquinos” da Partisan Review e os “paulistas” de Clima entre 1930 e 1950 Heloisa Pontes Artigo recebido em outubro/2002 Aprovado em abril/2003 RBCS Vol. 18 nº. 53 outubro/2003

CIDADES E INTELECTUAIS: os “nova-iorquinos” da ... · (1986) sobre Paris e a pintura da “vida moderna”, de Schorske (1988) sobre o modernismo em Vie-na, de Raymond Williams

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Neste artigo pretendo explorar as intersec-ções entre espaço urbano, instituições acadêmicas,organizações culturais e formas de sociabilidade,por um lado, e suas inflexões na modelagem dedistintas gerações de intelectuais, por outro.1 Ten-do por base os trabalhos de Mary Gluck (1985) so-bre a geração de Lukács em Budapeste, de Clarck(1986) sobre Paris e a pintura da “vida moderna”,de Schorske (1988) sobre o modernismo em Vie-na, de Raymond Williams (1982) sobre o grupoBloomsbury, de Thomas Bender (1993) sobreNova York e seus intelectuais e de Maria ArmindaArruda do Nascimento (2001) sobre a relação en-tre sociedade e cultura em São Paulo, pretendoabordar, numa perspectiva comparativa, as simili-tudes e as diferenças entre os intelectuais “paulis-tas” da revista Clima (editada entre 1941 e 1944) e

os “nova-iorquinos” nucleados pela Partisan Re-view (lançada em 1937). Delineados os termos e oconteúdo substantivo da comparação proposta, oartigo se fecha com uma tentativa, ainda explora-tória, de pensar esse círculo de intelectuais norte-americanos à luz do modelo teórico construídopor Elias para analisar as dimensões estruturais re-correntes na figuração “estabelecidos-outsiders”.

Os editores da Partisan Review (PhilipRahv, William Phillips, Dwight Macdonald, Cle-ment Greenberg, Mary McCarthy, mais tarde,Delmore Schwartz e William Barrett) e seus co-laboradores (Alfred Kazin, Lionel Trilling, DianaTrilling, Irving Howe, Elizabeth Hardwick, Han-nah Arendt, Nicolas Chiaramonte, Sidney Hook,Edmund Wilson, Meyer Schapiro, entre outros)renovaram a discussão sobre a relação entre mo-dernismo nas artes e radicalismo na política.Anti-stalinistas fervorosos, de início marxistas,alinhados ao campo político da esquerda norte-

CIDADES E INTELECTUAIS: os “nova-iorquinos” da Partisan Reviewe os “paulistas” de Climaentre 1930 e 1950

Heloisa Pontes

Artigo recebido em outubro/2002Aprovado em abril/2003

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americana, foram aos poucos migrando do seupólo mais radical, representado pelos trotskistas,para o campo dos liberais democratas e dos con-servadores.2 Herdeiros do legado modernista, fa-miliarizados com o cosmopolitismo no plano dacultura, atentos à produção intelectual e artísticalocal, eles marcaram a cena cultural nova-iorqui-na dos anos de 1930, 1940 e 1950 e contribuíramdecisivamente para a valorização, em novas cha-ves, da cultura norte-americana. Como intelec-tuais generalistas, pertenciam a uma geração quetinha a literatura como centro de sua educação.Como críticos da cultura, resenhistas e polemis-tas, fizeram do ensaio o meio por excelência deexpressão e encontraram nas revistas literárias epolíticas o seu fórum institucional de divulgação.Como integrantes de um círculo predominante-mente literário, não se restringiram aos seuscampos de especialização, diferenciando-se, as-sim, dos acadêmicos em sentido estrito. Oriun-dos, a maioria deles, de famílias pobres de ju-deus imigrantes vindos da Europa Oriental paraos Estados Unidos – onde nasceram – fizeramnome na contra-mão da experiência dos pais,graças ao desempenho brilhante que tiveram nasescolas públicas e, posteriormente, nos centrosde ensino superior de Nova York.

Desse encontro entre os filhos talentosos dasegunda geração de imigrantes judeus destituídosde capital social e econômico com alguns jovensnorte-americanos promissores, oriundos de famí-lias brancas, protestantes e abonadas, em umaconjuntura fervente de radicalismo político, de-pressão econômica e em meio a uma cidade emintensa transformação, como Nova York, consti-tui-se uma das mais inquietantes e intrigantes ge-rações de intelectuais norte-americanos.3 Entre osjudeus desse círculo, que atingiram a vida adultano final dos anos de 1920 ou começo de 1930,encontram-se: Philip Rahv (1908-1973), WilliamPhillips (1907-), Clement Greenberg, (1909-1994),Lionel Trilling (1905-1975), Diane Trilling (1905-),Meyer Schapiro (1905-1996) Sidney Hook (1902-1989). Incluem-se também os nascidos na décadade 1910, que atingiram a maturidade no final dosanos de 1930, como Lionel Abel (1910-), AlfredKazin (1915-), Delmore Schwartz (1913-1966),

Daniel Bell (1919-), e outros mais jovens, nasci-dos no decênio de 1920, como Irving Howe(1920-1993) e Nathan Glazer, entre outros. A elesjuntaram-se os não judeus, Frederick Dupee(1904-1979), Wiliam Barrett (1913-), Dwight Mac-donald (1906-), Mary McCarthy (1912-1989) – nacondição de editores da Partisan Review – e co-laboradores como Edmund Wilson (1895-1972),Elizabeth Hardwick (1916-), entre outros. Comexceção de Barrett, os demais provinham de fa-mílias norte-americanas prósperas e protestantes.Por fim, cabe mencionar os europeus refugiadosque chegaram nos Estados Unidos no início daSegunda Guerra Mundial e se integraram ao cír-culo: Nicolas Chiaramonte e Hannah Arendt(1906-1975) – da mesma etnia da maioria deles,com a diferença que seus pais eram judeus ale-mães, educados e de classe média alta.

* * * *

Até os anos de 1920, os intelectuais e escri-tores norte-americanos tinham a Europa como rotaobrigatória e referência fundamental, sentindo-semuitas vezes como uns “desterrados na própriaterra” (para usar uma célebre expressão de SérgioBuarque de Holanda que se aplica tanto à intelec-tualidade brasileira como à norte-americana naépoca). Mas a partir dos anos de 1930, com a De-pressão, e de 1940, com a entrada dos EstadosUnidos na Guerra e sua progressiva hegemoniaeconômica e política, somadas à consolidação dasua cultura acadêmica e de suas instituições cultu-rais, observa-se uma reorientação da intelectuali-dade local com as suas congêneres européias. Pa-ris deixara de ser a capital cultural do mundo.Nova York, com seus novos movimentos artísticos,sobretudo com o abstracionismo, seus críticos dearte, seus museus e poderosos mecenas, converte-se no novo pólo de atração mundial. Contribuírampara isso não só as instituições locais, respaldadaspor suas elites dirigentes, como os novos círculosde intelectuais, entre eles os intelectuais nova-ior-quinos ligados a Partisan Review.

Parecidos e distintos dos “paulistas” de Cli-ma, eles oferecem um bom contraponto para umasociologia da vida intelectual. Sobretudo, se ao

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lado da recuperação das especificidades das histó-rias culturais e intelectuais das cidades de NovaYork e São Paulo, formos capazes de avançar nainvestigação de um conjunto de problemas socio-lógicos pertinentes para o adensamento da pers-pectiva comparativa. Entre eles: a relação entreorigem social (e etnia, no caso norte-americano),transformações na estrutura social e no campo cul-tural das respectivas cidades e suas implicaçõesnas trajetórias dos integrantes mais expressivosdesses grupos; o lugar do ensaio na modelagemda identidade intelectual desses grupos; as rela-ções (e tensões) desses intelectuais com a culturaacadêmica e política da época; o impacto e a in-fluência que receberam dos intelectuais e artistaseuropeus, direta ou indiretamente, seja em razãoda importância que os últimos tiveram na monta-gem de instituições universitárias (como a Facul-dade de Filosofia da Universidade de São Paulo ea New School for Social Research de Nova York),seja pelo impacto da sua presença na cena cultu-ral e intelectual das respectivas cidades, onde serefugiaram antes ou durante a Segunda Guerra emdecorrência de perseguições políticas e étnicas.Além dessas dimensões, outra que parece impor-tante para a análise desses círculos de intelectuais,de suas experiências sociais e do tipo de sociabi-lidade praticada por eles diz respeito às inflexõesde gênero na conformação desses grupos.

Começo então pela última questão, relativa àposição das mulheres na divisão do trabalho e nouniverso de sociabilidade desses círculos de inte-lectuais. Mas no lugar de construir, de saída umargumento analítico, vou fazer aquilo que todoantropólogo, por ofício ou vocação, pratica nodia-a-dia do seu métier: contar casos, com a aten-ção voltada para as dimensões menos óbvias dainteração social, como meio de apreender a dinâ-mica vívida e tumultuada da vida social.

Sociabilidade, posição das mulheres e divisão do trabalho intelectual

Nova York, final de 1930. Num domingo demanhã, quatro jovens e uma jovem dirigem-se aum encontro que será decisivo na vida de todos

eles. William Philips, Philip Rahv, Dwight Macdo-nald, Fred Dupee e Mary McCarthy preparam-separa almoçar com um dos mais renomados críticosliterários da época, Edmund Wilson, de quem es-peram o apoio necessário para a consolidação darevista que estavam lançando. Queriam dele achancela do nome próprio, este bem simbólicodos mais prezados nos campos de produção cul-tural e intelectual, como mostrou Bourdieu (1984),capaz de produzir por si só uma curiosa “contami-nação de prestígio” para todos e tudo que gravi-tam ao seu redor. “Glória de empréstimo”, diriaoutro arguto analista da vida em sociedade, nocaso o nosso escritor Machado de Assis.

Os jovens de Nova York sabiam disso por co-nhecimento direto da cena intelectual da época e,indiretamente, pela experiência social que confor-mou a trajetória de todos. Dois deles eram judeuse os demais vinham de famílias de classe médiaalta, unidos pelo projeto comum de editar uma re-vista de cultura, a Partisan Review, engajada numdos poucos e precisos momentos de radicalismopolítico que tomou conta da parcela mais atuantee significativa da intelectualidade nova-iorquina daépoca. Adeptos do marxismo, críticos ferrenhosdo stalinismo, gravitando num caldo de culturaque unia o cosmopolitismo no plano da cultura aoradicalismo na política, eram próximos do trotskis-mo e admiradores entusiastas de Trotski. Em dis-puta aberta com os comunistas e com o Partido,eles precisavam do aval de nomes de peso, comoo de Edmund Wilson, para galgarem posiçõesmais sólidas e garantir uma visibilidade maior paraa revista que estavam em vias de lançar.

Todos estavam ansiosos para o encontro,preocupados em causar uma boa impressão noconvidado, mas apenas um se vestiu de um modoligeiramente inadequado para a ocasião. No caso,Mary McCarthy que, no lugar de adotar o estilo“nervosamente displicente” dos rapazes, sobre-in-vestiu na escolha da roupa e apareceu linda, comum vestido preto de seda, mais apropriado parauma recepção de casamento do que para um en-contro de negócios promovido no escritório deuma revista radical. De lá partiram todos para umrestaurante na Union Square.

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Eles estavam na faixa dos vinte anos e Ed-mund Wilson na meia-idade. A única mulher dogrupo naquela ocasião, Mary não foi particular-mente notada por Wilson que conversou especial-mente com Dwight Macdonald e com Fred Dupee.Com exceção de Dwight – o mais “bem nascido”do grupo –, todos os demais estavam nervosos,sentiam-se com a língua presa e aguardavam comansiedade o garçom para pedirem os drinques.Menos Edmund Wilson que com um gesto irritadodeclinou a oferta. Eles entenderam rápido o reca-do e fizeram o mesmo, de modo que o almoço, aseco, rolou menos solto do que desejavam e cen-trou-se em torno das proposições programáticasda Partisan Review, do anti-stalinismo convicto deseus editores e dos números que eles estavam pre-parando para dar seqüência ao lançamento, em1937, da revista. Wilson concordou que eles deve-riam tentar conseguir de Trotski uma contribuiçãoassinada.4 Em seguida falaram do livro que Ed-mundo Wilson estava escrevendo sobre o marxis-mo em conexão com a Revolução Russa. O livro,Rumo à estação Finlândia, só seria lançado em1940. Mas bem antes disso, Wilson colaborariacom a revista e causaria uma revolução na vida dealguns de seus editores.

Não neste almoço, que correu dentro do es-perado. Mas no encontro seguinte que ele teriacom Mary McCarthy, a crítica de teatro regular darevista, que aos 25 anos, divorciada do seu primei-ro marido, o ator Jonhsrud, estava vivendo comPhilip Rahv, o único imigrante do grupo, que che-gara aos Estados Unidos em 1922, sozinho, com 14anos, para morar com um irmão mais velho emOregan, enquanto o resto de sua família permane-cia na Palestina, depois de uma passagem pelaÁustria, motivada pelo pogrom de que fora vítimaem 1917. Autodidata, não completou o segundograu e fez toda a sua formação como leitor obsti-nado nas bibliotecas públicas norte-americanas.Em 1932, mudou-se para Nova York, entrou emcontato com os comunistas, ingressou no Partido edois anos depois, junto com o amigo William Phil-lips, lançou o embrião da Partisan Review, patroci-nada pelo John Reed Club. O empreendimentoocorreu em meio aos processos de Moscou movi-dos por Stálin. Estes, somados à visão dos comu-

nistas norte-americanos sobre o lugar da cultura ede sua função atrelada a objetivos políticos, moti-varam a ruptura de Phillips e Rahv com o Partido.O nome da revista, porém, ficou como proprieda-de intelectual deles e foi reutilizado no lançamen-to da nova Partisan Review em 1937.

O mais politizado do grupo, Rahv parecia,naquela ocasião, particularmente incomodadocom o convite que Mary recebera, da parte de Ed-mund Wilson, para um segundo encontro que oexcluía juntamente com os demais rapazes da re-vista. Eles, ao mesmo tempo em que insistiampara que ela fosse, estavam temerosos do seu de-sempenho, pois não achavam que Mary fossemuito bem informada no plano político. Por issonão escondiam o medo de que a inexperiênciapolítica dela pudesse fazer com que a revista pa-recesse ingênua aos olhos do crítico experiente.Ela que tinha uma história de vida singular – órfãde pai e mãe, falecidos praticamente no mesmodia em decorrência da gripe espanhola de 1918,educada até os 12 anos por um casal aterrorizan-te de tios-avós ressentidos e a partir daí pelo avômaterno, advogado renomado, protestante, casa-do com uma judia excêntrica – não entendia, porexemplo, as razões substantivas que levaram osrevolucionários russos a assassinarem o Tsar e suafamília. Não porque fosse desinformada e simporque sua formação fora feita em colégios cató-licos e completada no famoso college de Vassar,onde estudavam as moças talentosas de elite daépoca, como a própria Mary e a poetisa ElizabethBishop, por exemplo.

Se a mudança para Nova York, em 1936, al-terara radicalmente o destino de Mary, em 1938,quando do seu segundo encontro com Wilson,ela que já estava um passo a frente das moças dasua época em termos da vida amorosa e, em cer-to sentido, profissional ainda estava um passoatrás, segundo a avaliação dos rapazes da revista,do clima de radicalismo político da época. Porisso resolveram “treiná-la” para o encontro. Entreas medidas adotadas, além das conversas sobretemas mais políticos, três martines secos, consu-midos um pouco antes do encontro. De modoque Mary já chegou calibrada para um jantar quetodos, ela inclusive, supunham que deveria trans-

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correr no padrão do almoço anterior: conversasvariadas sobre cultura e política, conduzidas comfluência e a seco por Edmund Wilson.

O que “rolou”, porém, estava bem longe doscript imaginado. Para surpresa de Mary, Wilsonbebia, e bem, e só não fez isso no primeiro en-contro porque naquele dia ele acordara de ressa-ca. Sem coragem de recusar os drinques ofereci-dos por ele e menos ainda de mencionar osmartines consumidos antes, ela bebeu mais que ohabitual. Resultado: Mary se empolgou, roubou acena, soltou a língua e, encontrando em Wilsonum ouvinte atento, fez da sua vida o tema da noi-te. Depois apagou. Quando voltou a si, no dia se-guinte, estava deitada na cama, num quarto des-conhecido. Sua primeira medida foi certificar-sese estava sozinha ou acompanhada. Nem umanem outra no sentido que a atemorizara. Marga-reth, a outra convidada do jantar da véspera, es-tava dormindo na cama ao lado e Wilson, queapenas depositara as duas no hotel e incumbira aamiga de passar a noite com a Mary, encontrava-se em casa.5

No terceiro encontro, Mary e Wilson acaba-riam a noite juntos, na cama do escritório da casadele. De lá para frente, a história seguiria o cursoprevisível dos relacionamentos triangulares. Divi-dida e dilacerada, Mary não sabia se rompia comPhilip Rahv ou com Wilson. Acabou casada comWilson, 17 anos mais velho que ela, seu segundomarido oficial e pai de seu único filho. Com o ca-samento, Mary se afastaria da Partisan Review e sereorientaria para a ficção. Em grande parte graçasà influência e aos métodos pouco usuais de Wil-son que, acreditando no talento da mulher comoescritora e duvidando da qualidade da crítica tea-tral de Mary, costumava trancá-la, às tardes, no es-critório, para que ela se disciplinasse na prática daescrita cotidiana.

Esta história resumida de uma vida atribula-da, fascinante e instigante como foi a de MaryMcCarthy – memorialista de mão cheia, conheci-da não só por seus talentos literários mas pela suainteligência cortante e língua ferina6 – oferece umcontraponto interessante para introduzirmos ooutro termo da comparação proposta: o Grupo

Clima, seu universo de sociabilidade, o lugar e aposição das mulheres.

O Grupo Clima

Formado no início de 1939, em São Paulo,por jovens estudantes da Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras (nascidos entre 1916 e 1920),unidos por fortes laços de amizade e por uma in-tensa sociabilidade, o Grupo Clima era integradopor Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio SallesGomes, Lourival Gomes Machado, Ruy Galvão deAndrada Coelho, Gilda de Mello e Souza, entreoutros. Juntos lançaram-se na cena cultural pau-lista por meio de uma modalidade específica detrabalho intelectual: a crítica aplicada a teatro, ci-nema, literatura e artes plásticas.

Décio e Paulo Emílio, amigos desde os tem-pos de colégio, eram filhos de médicos com des-tacada projeção nos círculos da elite paulista daépoca. O mesmo aplicava-se ao pai de AntonioCandido, médico conceituado, com vasta cliente-la no interior de Minas. Como o pai de Décio, eletambém se formara na Faculdade de Medicina doRio de Janeiro e interessava-se tanto pela medici-na como pela literatura. Rui Coelho, filho de umadvogado de renome, e o mais novo do grupo,publicou seu primeiro trabalho – um longo ensaiosobre Proust – aos 21 anos, na revista Clima, queprojetaria todos na cena cultural paulista, Gildainclusive – a prima de segundo grau do “papa” domodernismo brasileiro, Mário de Andrade, e futu-ra mulher de Antonio Candido.

As afinidades que os uniram, decorrentes desuas origens sociais semelhantes, da vivência pa-recida que tiveram na infância e adolescência, dotipo de formação cultural que receberam de suasfamílias e das escolas que freqüentaram, foram re-forçadas e sedimentadas ao longo do período emque cursaram a Faculdade de Filosofia. Para mui-tos deles, essa instituição representou bem maisdo que um espaço de profissionalização. Foi, an-tes de tudo, o centro irradiador que conformou ouniverso de sociabilidade do grupo. Ali construí-ram as relações pessoais, intelectuais, afetivas e,em alguns casos, amorosas, que marcariam para

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sempre suas vidas. Tais foram, por exemplo, oscasos de Décio e Ruth de Almeida Prado e de An-tonio Candido e Gilda de Mello e Souza.

A única mulher do grupo que conquistouum “nome próprio”, em razão de sua trajetóriaacadêmica e dos trabalhos que produziu nas áreasde sociologia e estética, o caso de Gilda de Melloe Souza é particularmente interessante para pen-sarmos a assimetria das relações de gênero no in-terior desse círculo e, ao mesmo tempo, paraavançarmos na comparação proposta entre os in-telectuais “paulistas” do grupo Clima e os intelec-tuais nova-iorquinos da Partisan Review.

Enquanto no final dos anos de 1930, emNova York, as mulheres do grupo já podiam pra-ticar uma sociabilidade arrojada, como vimos rapi-damente a partir do caso da escritora MaryMcCarthy, em São Paulo, as moças e os rapazes deClima eram bem mais comportados. Relembrandoesse período, Gilda afirma que

[...] saíamos muito juntos. A partir de certo momen-to, creio que só conseguíamos nos divertir se esti-véssemos juntos. Em geral nos encontrávamos nofim da tarde, nas aulas de Maugüé. Era já noitinhaquando saíamos dos cursos para a réplica ligeira-mente européia da Praça da República de então.Os plátanos, a algazarra dos pardais, o vento frio,o eco francês da voz de Maugüé – que carregandoa sua serviette, ia à nossa frente, discutindo a aulacom algum aluno – tudo isso nos envolvia numadoce miragem civilizada. Se não tínhamos nenhu-ma tarefa escolar urgente, seguíamos dali para onosso quartel-general, a Confeitaria Vienense, naBarão de Itapetininga. Era ali que entre um crois-sant e um ice chocolate alemão (pois ninguém be-bia no nosso grupo) combinávamos uma esticadaao cinema, quase sempre um filme francês [...](Mello e Souza, 1984, p. 135).

Esse aspecto bem comportado da sociabili-dade do grupo contrasta com a dos intelectuaisnova-iorquinos. Menos atirados que eles, os inte-grantes de Clima eram antes de tudo universitáriosrecatados. Assim, se em termos da sociabilidademundana, os nova-iorquinos estariam mais próxi-mos dos nossos modernistas, do ponto de vista doperfil intelectual do grupo, deles se afastam em as-pectos decisivos. Críticos de cultura em sua maio-

ria, com exceção de alguns poucos escritores,7 elesse parecem, intelectualmente, mais com os mem-bros de Clima do que com os modernistas.

Essa dimensão é central tanto para a compa-ração que estou propondo entre eles, como paradiscutirmos a posição que as mulheres tinham nointerior desses círculos. Nesse sentido, se a histó-ria narrada anteriormente com a intenção de deli-near a sociabilidade do grupo – as peripécias amo-rosas de Mary McCarthy e a posição que elaocupou na divisão do trabalho intelectual da en-tão recém-lançada Partisan – nos lembra (e mui-to) as vivências também atribuladas e fascinantesdas nossas modernistas Tarsila do Amaral, AnitaMalfatti e Patrícia Galvão, dela se distingue em vá-rios aspectos. A começar pela formação universi-tária em literatura que Mary recebeu em Vassar, oque a habilitou a estrear na cena cultural nova-ior-quina como crítica de teatro – e só um pouco maistarde como escritora, voltada também para a críti-ca de cultura. Tarsila do Amaral (1886-1973) e Ani-ta Malfatti (1889-1964) eram pintoras e não críti-cas.8 E se Patrícia Galvão (1910-1962) – maisconhecida como Pagu – fez as duas coisas comoMary, isto é, escreveu ficção e crítica de teatro,isso se deu numa conjuntura distinta da sua apari-ção no modernismo, quando era ainda uma cole-gial, transformada “em boneca”9 pelo casal Tarsilae Oswald de Andrade. Antes, é claro, do romanceavassalador que teve com Oswald e do nascimen-to, em 1930, do filho de ambos, Rudá de Andrade,e da entrada deles no Partido Comunista em 1931.A primeira de uma série de acontecimentos políti-cos que marcariam a vida de Pagu no decênio de1930: das viagens à volta ao mundo (quando es-tréia como repórter), aos longos meses que morouem Paris (sem o marido e o filho), onde fora pre-sa em julho de 1935, como militante comunista es-trangeira. Repatriada, voltaria ao Brasil e, por duasvezes, em 1935 e 1938, seria presa novamente. Li-bertada em julho de 1940, depauperada e magér-rima, Pagu iniciou um romance com Geraldo Fer-raz, com quem viveria até o fim da sua vida. Demodo que foi só nos anos de 1940 que ela reto-mou a vida intelectual, ligando-se ao periódico so-cialista Vanguarda Literária, em 1945, e iniciando,no ano seguinte, a sua colaboração regular no Su-

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plemento literário do Diário de São Paulo. Sua es-tréia como crítica de teatro, porém, só ocorreriaem 1957, quando ela e Ferraz já estavam residin-do em Santos.

Se me estendi no caso de Pagu foi paramostrar que tanto ela como as nossas modernis-tas pintoras são e não são comparáveis à escrito-ra norte-americana Mary McCarthy. São, se usar-mos como critério as vidas amorosas atribuladasou tumultuadas que tiveram e o fato de teremsido mulheres que desafiaram os padrões domi-nantes de moralidade e de gênero na época. Nãosão, se mantivermos o foco no perfil dos círculosintelectuais e artísticos a que pertenceram. Nestadimensão, a comparação de Mary com Gilda deMello e Souza mostra-se pertinente, pois tantouma como outra, além de serem produtos davida universitária em sua interface com o sistemacultural mais amplo das cidades em que construí-ram suas vidas profissionais, fizeram parte de cír-culos com um perfil intelectual parecido. No casode Gilda e de outras mulheres da sua geraçãoque integraram o Grupo Clima, o acesso à forma-ção intelectual que tiveram na Faculdade de Filo-sofia, somado à vivência inédita de uma sociabi-lidade fortemente ancorada na vida universitária,permitiu a várias delas reorientar o papel socialpara o qual haviam sido educadas: mães e donasde casa. O impacto dessa experiência renovado-ra propiciada pela Faculdade foi enorme, sobre-tudo para aquelas que efetivamente tentaram in-ventar para si um novo destino, como foi o casode Gilda. Mas isso se deu às custas de conflitos,inseguranças e dilemas muito específicos. Sobre-tudo no início, quando não se sentiam social-mente seguras para se inserirem no campo inte-lectual predominantemente masculino da época.As dificuldades preliminares que enfrentaram,transmutadas sob a forma de inseguranças pes-soais, foram sendo contornadas, mas não elimi-nadas, à medida que construíam novos modelosde conduta e atuação.

No período em que a revista Clima foi pro-duzida, estava em curso a montagem de um novosistema de produção intelectual, e iniciavam-se astransformações dos papéis femininos que Gildade Mello e Souza e outras mulheres de sua gera-

ção iriam viver, com as ambigüidades e dilemasmencionados acima. Nesse contexto de dupla re-definição, Gilda, que estreara em Clima com umconto, seguindo o conselho de Mário de Andradede que seria bom para a revista ter alguém dedi-cado exclusivamente à ficção, abandonou o papelque lhe fora reservado e parou de escrever ficção.Seu gesto, reforçado ao que tudo indica pela au-sência de críticas claramente favoráveis à sua pro-dução como contista, teve um sentido preciso: re-cusar a posição e o papel que os companheirosda revista lhe atribuíram. Insurgir-se contra asduas modalidades socialmente mais adequadas deexpressão intelectual para as mulheres na época,a ficção e a poesia, foi talvez o seu “primeiro atode liberdade”,10 ainda que arrevesado.

Enquanto Gilda largava a ficção para se lan-çar no campo universitário e na área da sociologiaestética, Mary McCarthy deixava a crítica de teatropara se notabilizar como escritora. Diferenças deestilo, de personalidade, de parcerias amorosas edo campo intelectual em que ambas estavam inse-ridas. Mas ao lado dessas diferenças, inegáveis, épreciso sublinhar também as semelhanças, poistanto uma como outra são impensáveis sem a pre-sença das instituições de ensino superior, das trans-formações que estavam ocorrendo na estrutura so-cial das cidades de São Paulo e Nova York noperíodo, das novas modalidades de recrutamentosocial dos intelectuais e de expressão simbólica dasdimensões de gênero.

Os intelectuais de Nova York vistos de longe e de forma comparativa

As relações que uniam esses intelectuais deNova York eram, a um só tempo, morais, pes-soais, políticas, e, em alguns casos, conjugais. Elesnão apenas “envelheceram juntos” como apare-cem, com muita freqüência, sob a forma de per-sonagens nas memórias que escreveram. Retratosde época, de pessoas, de um universo intelectuale cultural específico, no interior do qual ganha-ram nome e autoridade – por si mesmos e comoparte inseparável dos círculos a que pertenciam –,essas memórias são uma fonte preciosa para en-

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tendermos o tipo de sociabilidade que pratica-vam, as fofocas que circulavam na época, os amo-res, casamentos e separações, os conflitos, as ini-mizades, as alianças que fizeram.11

A profusão de conflitos entre eles12 contrastacom a ausência de atritos manifestos entre os in-tegrantes mais expressivos do Grupo Clima, cujasrelações foram marcadas pela convivência íntimae pela ausência de competição explícita. Isso seexplica menos pela personalidade dos membrosdesses grupos e mais pelo tipo distinto de sistemacultural em que estavam inseridos.

No caso paulista e no início dos anos de1940, segundo o então estreante de 22 anos, An-tonio Candido, todos tinham “em preparo um tra-balho de história, ou de sociologia, ou de estéticaou de filosofia, como os maiores (da geração an-terior) tinham romances” (Candido, 1945, p. 34).Com exceção de Gilda de Mello e Souza, que pu-blicou primeiro ficção, todos os outros começaramcom um artigo de crítica e não se aventuraram napoesia como os maiores da geração anterior. Naspalavras de Antonio Candido, emitidas no auge desua juventude, todos eram “críticos e estudiosos‘puros’, no sentido de que, neles, dominará sem-pre esse tipo de atividade” (Idem, ibidem).

Como produtos do novo sistema de produ-ção intelectual implantado na Faculdade de Filoso-fia da Universidade de São Paulo, por intermédiodos professores estrangeiros (franceses, em parti-cular), Antonio Candido e seus amigos mais pró-ximos do Grupo Clima renovaram a tradição en-saística brasileira. Situados entre os literatos, osmodernistas, os jornalistas polígrafos e os cientis-tas sociais, construíram seu espaço de atuação pormeio da crítica, exercida em moldes ensaísticosmas pautada por preocupações e critérios acadê-micos de avaliação. O fato de atuarem ao mesmotempo como críticos de cultura, acadêmicos e pro-fessores universitários sinaliza o alcance das trans-formações que estavam ocorrendo ao longo dasdécadas de 1940 e 1950 no sistema cultural paulis-ta, decorrentes em larga medida da introdução denovas maneiras de conceber e praticar o trabalhointelectual. Nesse contexto, fizeram a “ponte” en-tre a Faculdade de Filosofia e as instâncias maisamplas de produção e difusão cultural da cidade.

Escrevendo sobre modalidades variadas dacrítica de cultura, deram visibilidade à nova men-talidade universitária que estava sendo definidapela Universidade de São Paulo. Mas no lugar defazerem uma crítica apoiada apenas na discussãode posições teóricas, centraram-se principalmentena análise interna da produção cultural veiculadano período. Além disso, cada um dos editoresmais expressivos da revista Clima especializou-senuma área da cultura, que, embora fronteiriça,como a crítica literária, de cinema, de teatro, deartes plásticas, permitia aplainar os eventuais con-flitos entre eles.

Em Nova York, por contraste, além da produ-ção cultural e acadêmica ser bem mais segmenta-da e especializada na época, pesava ainda o fatode a maioria dos integrantes da Partisan estar vol-tada para a crítica literária como domínio principalde suas atividades intelectuais (descontados os ca-sos dos críticos de arte, Clement Greenberg, Me-yer Schapiro e Rosenberg).

Se ambos os grupos tinham em comum a crí-tica de cultura e o ensaio como modo privilegiadode expressão, o mesmo não se pode dizer a res-peito da origem social de seus integrantes. En-quanto os membros de Clima pertenciam ao setorda burguesia formado por profissionais liberais, al-tos funcionários, fazendeiros e industriais médios;os intelectuais de Nova York – com exceção de unspoucos “bem nascidos”, oriundos de prósperas fa-mílias protestantes – eram provenientes sobretudoda segunda geração de famílias pobres de judeusimigrantes. Tanto num caso como no outro, essasinjunções lhes davam “um ar de família, um viésdefinido de enxergar o real” (Mello e Souza, 1984,p. 135) – nas palavras precisas de Gilda de Mello eSouza, que, utilizadas para explicar as razões quepropiciaram e alimentaram o convívio intenso deseu grupo de juventude, aplicam-se também aosintelectuais nova-iorquinos.

Se o “viés definido de enxergar o real” apre-senta conteúdos distintos em função das experiên-cias sociais diversas desses intelectuais, é precisoressaltar a existência de um solo estrutural e insti-tucional semelhante que torna possível e justificaa comparação proposta neste artigo. Em primeirolugar, cabe sublinhar que eles deram prossegui-

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mento, em novas chaves, ao trabalho de consoli-dação da cultura moderna, cujo impulso inicialfora emitido pelos modernistas que os precede-ram. Tendo a França como modelo e, em várioscasos, como lugar de moradia temporária, esses“repatriados começaram a se empenhar em produ-zir em casa o similar nacional” (Costa, 2001, p.27).13 Repatriados simbólicos, no caso dos moder-nistas; reais, no caso de muitos dos intelectuais deNova York ligados a Partisan Review, em razão daimigração forçada dos pais, por razões econômi-cas e perseguições religiosas, vítimas em suamaioria dos pogroms que tiveram lugar na Europana segunda metade do século XIX.

Instalados em solo norte-americano, viven-do nos bairros “étnicos” de Nova York, sobretu-do no Bronx, onde se concentravam judeus e ita-lianos, antes de sua ocupação pelos negros, essesfilhos de imigrantes, nascidos norte-americanos,trilharam o caminho típico reservado à segundageração. Primeiro freqüentaram a escola pública,aprenderam bem o inglês, destacaram-se comoalunos brilhantes e encontraram as condiçõesinstitucionais e culturais necessárias para se tor-narem universitários e realizaram o “destino” es-perado pelos pais, que depositaram neles todasas esperanças de um futuro melhor e o sonhonorte-americano de ascensão social. Mas isso sedeu às custas de uma vivência dilacerada, per-meada por toda sorte de sentimentos ambivalen-tes, vividos no registro individual da culpa, do tu-multo interno e da vergonha em relação aosprogenitores e familiares em geral. Pobres, imi-grantes, religiosos, os pais falavam inglês com so-taque e apenas na esfera pública formal, em casae na vizinhança usavam o iídiche, freqüentavama sinagoga, trabalhavam duro, divertiam-se pou-co. Restritos, de início, à sociabilidade familiar eda vizinhança, pais e filhos, se já não viviam maisconfinados em guetos, sentiam que Manhattanera mais longe que a Europa. A proximidadegeográfica era atravessada por uma colossal dis-tância social que, quando suplantada pelos fi-lhos, implicou uma viagem sem volta marcada àsinagoga, na suspensão dos preceitos familiares ereligiosos dos pais e na adesão a um outro uni-verso de valores: cosmopolita, no plano da cultu-

ra, radical, no âmbito da política, agnóstico, aves-so, num primeiro momento, às questões religio-sas em sua interface com os problemas étnicos.

Atingindo o início da idade adulta num con-texto marcado pela grave crise econômica de1929, eles viveram esse período como um mo-mento paradoxal de liberdade. Nas palavras deum dos editores da Partisan Review, William Bar-rett, aquilo que Sartre disse a respeito da situaçãoda intelectualidade francesa durante a ocupaçãoalemã (“nunca fomos tão livres” quanto naquelemomento) aplica-se com perfeição para descrevera experiência de uma parcela dos artistas e inte-lectuais (ou candidatos a) nova-iorquinos no pe-ríodo da Depressão. Sem trabalho fixo e sem asobrigações próprias da carreira e da vida profis-sional, eles puseram a inteligência e a curiosida-de a serviço da ampliação dos interesses culturais.

Se a Depressão implicou a suspensão tempo-rária do sonho acalentado pelos pais de ascensãosocial dos filhos, ela permitiu também que eles sereencontrassem no terreno mais arriscado da polí-tica. Como muitos dos imigrantes operários, os paistraziam da Europa a cultura socialista. E foi nessecontexto preciso e, sob muitos aspectos, singularna história norte-americana – no interior do qual aclasse operária, os imigrantes e a “plebe” ganharamvisibilidade na cena política e na literatura da épo-ca – que os filhos desses imigrantes, já antenadoscom o cosmopolitismo no plano da cultura, porconta de sua socialização na cultura acadêmica daépoca, aderiram ao marxismo e se enfronharamnas polêmicas travadas entre comunistas e trotskis-tas. Nas palavras de outro integrante do círculo daPartisan Review, Irving Howe:

[...] o radicalismo dos anos 30 deu aos intelectuaisde Nova York o seu estilo distintivo: o faro pelapolêmica, o gosto pela grande generalização,uma impaciência com aquilo que eles enxerga-vam (muitas vezes paroquialmente) como erudi-ção paroquial, uma perspectiva internacionalista,uma crença tácita na unidade – ainda que ela es-tivesse fora do nosso alcance – do trabalho inte-lectual (Howe, 1990, p. 244).14

A adesão ao marxismo, o afastamento dasproposições políticas e culturais do Partido Comu-

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nista, o acirramento da convicção anti-stalisnista(sinalizada com bastante clareza pelo lançamentoem 1937 da Partisan Review), a defesa da perspec-tiva internacionalista, tudo isso correu junto e emmeio às transformações da paisagem social e cul-tural da cidade de Nova York. No âmbito da pro-dução acadêmica, áreas de saber que até então ti-nham sido monopólio das elites brancas eprotestantes, como a filosofia e a literatura inglesa,começaram a ser “invadidas” pelos estudantes ju-deus mais talentosos, que, minoritários na Univer-sidade de Colúmbia (a instituição universitária demaior prestígio da cidade na época), encontraramna Universidade de Nova York (UNY) e, especial-mente no City College, o espaço intelectual neces-sário para darem prosseguimento aos estudos su-periores e à militância política de esquerda.15

Havia um clima de urgência no ar e uma sensaçãode que, malgrado a crise econômica e o medo or-questrado da “ameaça vermelha” representadapela Revolução Russa e perpetrado pela direita, osEstados Unidos poderiam converter-se numa de-mocracia de tipo socialista. Esse tipo de utopia po-lítica, acalentado por parcelas minoritárias da cida-de mais avançada dos Estados Unidos, palco dasvanguardas culturais e artísticas da época, não tar-daria a emitir sinais de falência múltipla.

Primeiro, como resultado da entrada dos Es-tados Unidos na Segunda Guerra Mundial e de suaprogressiva hegemonia no plano político e econô-mico. Segundo, pelas implicações da Guerra Fria,do marcartismo e do anti-comunismo desenfreadoque tomou conta das elites políticas norte-ameri-canas, não só das mais alinhadas à direita como deum parcela dos liberais da época. Terceiro, peloprogressivo conservadorismo de muitos dos inte-lectuais de Nova York, que, marxistas e radicaisnos anos de 1930, anti-stalinistas fervorosos nosanos de 1940, defensores do liberalismo e da de-mocracia, inventaram uma ginástica classificatóriadas mais extravagantes para, na década de 1950,afirmarem-se como “anti-anti-comunistas”, parcial-mente afinados com os ideários do socialismo de-mocrático, em luta aberta contra todo tipo de to-talitarismo.16 Por fim, pelo peso que a questãojudaica, ausente na perspectiva internacionalistapartilhada por eles no decênio de 1930, passou a

ter na agenda intelectual dos debates e escritosproduzidos no pós-Guerra. A revelação dos cam-pos de concentração, do Holocausto e das atroci-dades cometidas durante a Guerra pelos alemães,a ampliação das bases econômicas e sociais da co-munidade judaica em Nova York e da influênciade seus membros mais expressivos nos círculosculturais de maior prestígio da cidade, o arrefeci-mento do radicalismo e da visada internacionalis-ta, tudo isso, somado, contribuiu para que os inte-lectuais nova-iorquinos fizessem uma releitura desuas experiências passadas, sobretudo daquelasrelativas à vida em família, e dessem início à pro-blematização de um tema que até então estiveraausente de suas preocupações cosmopolitas: aidentidade judaica.

Outsiders, em sua maioria, nos anos de1930, sob todos os aspectos (origem social, capi-tal cultural e econômico, procedência étnica, filia-ções doutrinária), os intelectuais de Nova York,sobretudo aqueles ligados às revistas Partisan Re-view e Commentary, foram paulatinamente mi-grando não só de posição política como de statusintelectual e social. Por volta do final da SegundaGuerra, no momento em que recebiam sinais ine-quívocos da influência intelectual que exerciamna cidade, eclodiram as primeiras crises internasdo grupo. Na visão de Irwing Howe, que podeser tomada como expressão condensada da auto-representação desses intelectuais,

[...] talvez houvesse uma relação entre crise inter-na e influência externa. Tudo aquilo que os man-tinha atuantes – a idéia do socialismo, a defesado modernismo literário, o ataque à cultura demassa, um jeito especial de criticismo literário –foi julgado como irrelevante nos anos do pós-guerra. Mas como grupo, no momento exato emque a desintegração interna começara seriamen-te, os intelectuais de Nova York podiam serprontamente identificados. Os líderes do grupoeram Rahv, Phillips, Trilling, Rosenberg e Kazin.O principal teórico político era Hook. Os escrito-res e poetas ligados ao meio de Nova York eramDelmore Schwartz, Saul Bellow, Paul Goodmane Isaac Rosenfeld. E scholar o mais reconhecido,assim como a força moral inspiradora, era MeyerSchapiro (Howe, 1990, pp. 251-252).

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Dessa lista, os grandes ausentes são os não-judeus, como Dwight Macdonald e William Bar-rett, por exemplo, e as mulheres, como MaryMcCarthy, Elizabeth Hardwick, Diana Trilling eHannah Arendt, reconhecidamente a intelectualmais influente e vigorosa desse círculo, rapida-mente incorporada por ele logo após a sua che-gada em Nova York em 1941. Seu livro As origensdo totalitarismo, escrito no final dos anos de 1940e publicado em 1951, foi um acontecimento eteve uma recepção estrondosa entre eles.

Nesse mesmo período, no Brasil, os inte-grantes do Grupo Clima, afinados com os ideáriosda esquerda, também partilhavam a crítica ao to-talitarismo, contrapunham-se ao Partido Comunis-ta, criticavam o stalinismo e defendiam um socia-lismo de tipo democrático. Mas, diferentementedos intelectuais nova-iorquinos, que, após a en-trada dos Estados Unidos na Guerra e, sobretudo,no pós-Guerra, foram deixando o pólo mais à es-querda do espectro político, os intelectuais de Cli-ma, que, de início, eram mais interessados naagenda cultural do que no debate político (comexceção de Paulo Emílio), passaram a ter umaatuação mais engajada. Primeiro, por meio dosdois manifestos que publicaram na revista Clima(em 1942 e 1943), onde lançaram, segundo Anto-nio Candido, as bases para a construção de umaação socialista, “sem sectarismo mas sem transi-gência”, fundada na “fidelidade à Revolução Rus-sa” e no “marxismo como base”, mas aberta “àscorrentes filosóficas e políticas do século” com opropósito imediato de “lutar contra o EstadoNovo e o fascismo” (Candido, 1986, p. 61). Em se-guida, pelo fato de se manterem como defensoresintransigentes da liberdade de expressão e dosvalores democráticos, nos dois contextos demaior repressão política no país, o Estado Novo ea Ditadura Militar.

Para além das diferenças políticas e das ori-gens sociais diversas desses dois círculos de inte-lectuais, eles são um dos produtos mais bem aca-bados do sistema cultural moderno implantadonas cidades de São Paulo e Nova York no decor-rer dos anos de 1930 a 1950, num momento emque a vida acadêmica e a crítica de cultura esta-vam intimamente entrelaçadas na esfera pública

da cidade, nas suas realizações mais expressivas,nos seus projetos mais arrojados.

Ao contrário da maioria dos campi universi-tários norte-americanos que, em certo sentido,eram e continuam sendo isolados e auto-suficien-tes em relação ao meio urbano no qual se situam,as instituições de ensino superior em Nova Yorkjamais perderam a conexão com a vida mais am-pla da cidade. De fato, elas são impensáveis semo dinamismo cultural da cidade, o jornalismo, aseditoras, os artistas, os museus, as galerias, os in-telectuais, os diversos grupos étnicos que, com-posto por levas de imigrantes, deram uma feiçãoparticular à cidade.

Tanto lá como aqui, assiste-se no domínioda produção cultural e intelectual a uma amplia-ção do recrutamento social de seus praticantes.Exemplar nessa direção são os intelectuais nova-iorquinos e, no caso brasileiro, os atores e as atri-zes de origem humilde ou imigrante que se incor-poraram ao Teatro Brasileiro de Comédia (comoCacilda Becker e Nydia Licia, entre outros) e vá-rios estudantes da Faculdade de Filosofia da Uni-versidade de São Paulo que, uma vez formados,se destacariam nas suas respectivas áreas de espe-cialização. O exemplo mais notório nessa direçãoé o de Florestan Fernandes. Sua origem social, so-mada às dificuldades de toda ordem que enfren-tara na infância e na adolescência, dificilmentelhe franquearia o ingresso nas faculdades onde seformavam as nossas elites dirigentes, como as deDireito, Politécnica ou Medicina. Do encontro en-tre jovens talentosos, instituições e projetos arro-jados e cidades em intensa transformação comperfil de metrópoles, afastadas dos centros for-mais de poder político, deu-se a criação das con-dições sociais e simbólicas para a produção doscírculos de intelectuais rastreados nesse artigo.

Os intelectuais de Nova York vistos pelo prisma da configuração “estabelecidos-outsiders”

A reorientação política dos intelectuais deNova York, decorrente em parte da alteração daposição social de seus integrantes e da conquista

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da autoridade cultural e simbólica, parece ser in-separável da consolidação, no pós-Guerra, da he-gemonia econômica, militar e política dos EstadosUnidos no cenário internacional e da polarizaçãoproduzida no plano interno pela Guerra Fria. Acrítica ao totalitarismo e ao stalinismo ganhou,nesse contexto, alianças inesperadas e conteúdosdiversos daqueles exibidos pelo clima de radica-lismo dos anos de 1930.17

Essa formulação tem algo de reducionismopolítico e de “verdade sociológica”. Para aplainaros deslizes reducionistas e dar consistência aoseventuais acertos sociológicos, vou utilizar o mo-delo “estabelecidos-outsiders” de Elias como opropósito de refletir melhor sobre a posição daintelectualidade nova-iorquina. Para resumir umpercurso teórico e analítico dos mais vigorosos nocampo das ciências sociais, como é o de NorbertElias, vou apenas sublinhar que as configuraçõessociais estudadas por ele sob o prisma do modelomencionado acima permitem apreender, de umamaneira renovada, um conjunto de fenômenosempíricos que, à primeira vista, parecem avessos auma generalização conceitual mais abrangente.Dentre eles, as relações entre negros e brancos,entre judeus e não judeus, entre burgueses e aris-tocratas, entre grupos operários idênticos sobqualquer critério morfológico (nível de renda, es-colaridade, domicílio, ocupação profissional etc.)e distintos em termos simbólicos.18 Em todas essasrelações, sobretudo naquelas que apressada eequivocadamente vêm sendo rotuladas como “ét-nicas”, o que se verifica, segundo a análise deElias, é a existência de níveis variados de interde-pendência entre os grupos, expressos por umadistribuição desigual de poder e por processoscomplexos de atribuição de sentido que enredamtodos num jogo dilacerado pela afirmação da su-perioridade de uns e da inferioridade de outros.Aplicada ao caso das relações entre os alemães eos judeus alemães no final do século XIX, Eliasmostra que o ressentimento dos primeiros, os “es-tabelecidos”, em relação aos segundos, era decor-rente, em larga medida, do fato destes, os “outsi-ders”, terem começado a ocupar posições depoder e de prestígio tidas até então como mono-pólio dos “estabelecidos”.

Afirmando-se na economia e na cultura, osjudeus alemães, vistos como um grupo socialmen-te inferior, ameaçavam a auto-representação deparcelas expressivas dos alemães. Expresso sob aforma do ressentimento, esse sentimento encontraa sua contrapartida na posição, também em certosentido “em falso”, da sociedade alemã no séculoXIX. Como mostra Elias,

Faz pouco tempo – somente depois de 1870 –que a sociedade alemã dominante passou, elamesma, de um status relativamente baixo e fre-qüentemente humilhante em relação aos Estadosnacionais europeus considerados estabelecidos, auma posição de poder relativamente elevada. Emrazão desse fato, a consciência que ela tinha deseu status e de sua identidade era particularmen-te incerta e frágil, comparada àquela de outrasnações mais antigas e unificadas há muito tempo.A minoria judia, que constituía uma grupo margi-nal no país, irritava então especialmente os gru-pos estabelecidos cristãos e provocava uma ani-mosidade particular porque os próprios gruposestabelecidos, em razão de seu destino, mostra-vam-se inquietos quanto ao seu status e à suaidentidade. [...] Para formular as coisas com maisprecisão, poder-se-ia dizer: quanto menos se eraseguro de seus status, mais se era anti-semita(1991, pp. 153-154).

Essa reflexão de Elias é particularmente su-gestiva para lançarmos uma hipótese final sobre asituação dos intelectuais de Nova York ao longodos decênios de 1930 a 1950 e para entendermoso progressivo conservadorismo político de seusintegrantes. Eles, que num primeiro momento,ocupavam uma posição de “outsiders” em relaçãoàs elites dirigentes, brancas e protestantes, forammigrando de lugar e tornaram-se os “estabeleci-dos” no plano cultural e da autoridade intelectualnos anos de 1950.

Um dos sinais inequívocos dessa nova con-dição é dado pela profusão de memórias e de es-critos desses intelectuais a respeito deles mesmos.Tudo se passa como se ao lado da marca que dei-xaram nos seus respectivos campos de atuação,eles não medissem tempo e energia para reconta-rem a história do grupo, de forma a aparar as frin-chas da imagem que construíram sobre si mesmos.

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Essa busca pelo monopólio da representação legí-tima e autorizada, recorrente em todos os círculosde intelectuais e artistas com algum destaque nahistória cultural, ganha contornos específicos nocaso dos intelectuais de Nova York. Se tomarmosas diversas reflexões que fizeram sobre eles mes-mos como expressões condensadas da auto-repre-sentação que gostariam de ver preservadas, talvezpossamos descobrir novas pistas de análise.

Vejamos, nesse sentido, como um dos maisargutos integrantes do grupo, o crítico literário eprofessor universitário Irving Howe, reflete sobrea mudança de status, de reconhecimento social ede posição dos seus pares. A seu ver, isso não im-plicou na produção de qualquer conexão com

[...] uma classe estável de altos funcionários públi-cos ou com um segmento significativo dos ricos.Eles não tinham conexões em Washington. Elesnão moldaram os gostos oficiais ou dominantes.E não podiam exercer o tipo de controle sobre aopinião cultural que o establishment londrino pa-rece ter logrado manter até recentemente. Críticoscomo Trilling e Kazin eram ouvidos pelo pessoaldo setor editorial. Rosenberg e Greenberg pelaspessoas do mundo da arte, mas dificilmente elespoderiam ser considerados algo tão formidávelcomo um establishment (1990, p. 266).

Se o termo de comparação for o grupoBloomsbury,19 como quer Irving Howe, certamen-te ele tem razão ao insistir no ponto de que os in-telectuais nova-iorquinos não conseguiram o mes-mo grau de influência e projeção desfrutado pelocírculo inglês. Entre outras razões, porque os últi-mos eram oriundos de uma fração dominante daburguesia inglesa. Mas o fato de que as origenssociais assim como a projeção e a influência des-ses círculos fossem diversas não deve nos impe-dir de circunscrever algumas das recorrências es-truturais observadas na posição dos mesmos.Guardadas as devidas proporções, o círculo de in-telectuais de Nova York tornou-se com o tempotão ou mais estabelecido que o grupo de Blooms-bury. Não porque seus membros tenham enrique-cido, estabelecido conexões formais com Was-hington ou com as elites dirigentes, tampoucoporque se concentraram apenas – o que está lon-

ge de ser pouco nos anos de 1950 – na crítica dacultura, das artes e da literatura. E sim porque elesse tornaram uma elite cultural exatamente no pe-ríodo em que a sua comunidade “étnica” de ori-gem adquiria posições cada vez mais sólidas emNova York, que pouco lembravam a situação deseus “parentes pobres” imigrantes.

Uma menção à situação profissional dosmembros mais expressivos da Partisan Review nodecênio de 1950 é necessária para dar contornosmais consistentes à afirmação acima. Philip Rahv,agnóstico e marxista, fez-se reconhecido por suasintervenções na intersecção da cultura com a polí-tica, pela sua capacidade de “farejar” e descobrirjovens escritores, pelos inúmeros ensaios que pu-blicou e organizou sobre literatura russa e norte-americana, especialmente – Dostoievski, Tolstoi eHenry James eram os escritores de sua predileção.20

Autodidata, dominava seis línguas (russo, inglês,alemão, francês, hebraico e iídiche) e era um críti-co literário renomado quando foi convidado, em1958, para ser professor de literatura em Brandeis– famoso college de Boston, conhecido por suaousadia intelectual e institucional, e por contratarum número expressivo de intelectuais judeus, nas-cidos nos Estados Unidos ou refugiados da Euro-pa, como Herbert Marcuse, por exemplo.

Na época em que lecionou em Brandeis,Rahv estava casado com Nathalie Swan, sua se-gunda mulher oficial e terceira relação conjugal,constituída pouco tempo depois de sua separa-ção de Mary McCarthy que, como vimos, o dei-xara para casar-se com Edmund Wilson. Tendoestudado em Vassar no mesmo período queMary, Nathalie provinha de uma família rica eera arquiteta de profissão. Nela, Rahv encontra-ria “a perpétua Guggenheim”,21 segundo a for-mulação precisa e irônica de outro membro docírculo, William Barrett.

Um dos poucos não judeus do grupo, masprofundamente identificado com eles, a ponto dese dizer um “assimilado”,22 Barrett graduou-se emfilosofa no City College (integrado por uma maio-ria de estudantes judeus), antes de ir para a Euro-pa no início dos anos de 1940, onde entraria emcontato com o existencialismo francês do qual setornou especialista. Professor de filosofia da Uni-

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versidade de Nova York (NYU), amigo do poeta eescritor Delmore Schwartz (que também foi editorda Partisan) desde os tempos em que ambos fre-qüentaram alguns cursos de pós-graduação naUniversidade de Colúmbia, Barrett foi colega dedepartamento de Sidney Hook, a figura mais po-lêmica do círculo. Marxista convicto nos anos daDepressão, anti-stalinista furioso nas décadas se-guintes, ensaísta brilhante, graduado em filosofiano City College, Hook foi professor de filosofia daUniversidade de Nova York, onde ingressou em1931 e permaneceu até a sua aposentadoria. Láteve como aluno William Phillips, quando este es-tava fazendo o mestrado, depois de se graduarem filosofia no City College e antes de se douto-rar em Colúmbia. Inicialmente comprometidocom a literatura proletária e com o radicalismodos anos de 1930, Phillips, sempre em conjuntocom Rahv, distanciou-se definitivamente dos co-munistas ao lançar, em 1937, a revista que os tor-naria conhecidos na cidade. Seus interesses inte-lectuais concentravam-se na crítica literária e nojornalismo cultural.

Os críticos de arte da Partisan Review, Cle-ment Greenberg e Meyer Schapiro, eram figurasde destaque nesse campo nos anos de 1950. Oprimeiro teve uma estréia retumbante na cena cul-tural nova-iorquina, graças ao artigo “Avant-gardeand kitsch”, publicado em 1939 na Partisan Re-view. Defensor intransigente do formalismo noplano analítico e do expressionismo abstrato nor-te-americano, Greenberg foi o primeiro crítico areconhecer a importância de Jackson Pollock(contribuindo, assim, para projetá-lo como o pin-tor norte-americano mais importante na época) ea tratar os artistas modernos de Nova York comoparte de uma escola coletiva.

Meyer Schapiro, por sua vez, professor dehistória da arte em Colúmbia, onde ingressou, aos16 anos, graças a duas bolsas de estudo que rece-beu (Pulitzer e Regents, respectivamente), gra-duou-se em 1924 e doutorou-se em 1928, no mes-mo ano em que começou a ensinar história daarte nessa instituição. Em 1952, tornou-se profes-sor titular de Colúmbia, especializado tanto naarte moderna como na medieval. Reconhecidopor seus escritos, por sua erudição, por sua verve

como professor, suas aulas tinham um público ca-tivo. Nas palavras de um de seus alunos, MarshallBerman, autor de Tudo que é sólido desmanchano ar, suas aulas eram

[...] como sexo, música ou algumas poucas expe-riências tão estimulantes: ele nos mostrava a ri-queza de existir [...] ele projetava uma correnteimpressionante de imagens, modernas e medie-vais [...] ele fazia ousados saltos ao passado, emculturas radicalmente diferentes, em distintas vi-sões do futuro [...] (Berman, 1996).

As observações apaixonadas do ex-alunosão contrabalançadas, num registro mais irônico,pelos comentários de dois dos seus contemporâ-neos na Partisan. Afiada, Mary McCarthy alardea-va que ele era “uma boca à procura de um ouvi-do” (apud Barrett, 1982, p. 53). Rahv não deixavapor menos ao dizer que após uma hora de con-versa telefônica com Schapiro “podia-se obter umPhD” (apud Barrett, 1982, p. 69).

Assim como Schapiro, Lionel Trilling tambémse graduou em Colúmbia, em 1925. O primeiro ju-deu a integrar um departamento de literatura in-glesa nessa universidade, tornou-se membro está-vel de seu corpo docente em 1939. Fazendo doensaio seu meio privilegiado de expressão, autorde estudos importantes sobre a relação entre lite-ratura e psicanálise, Trilling – ao contrário deSchapiro, que segundo seu ex-aluno Berman “ba-nhava-nos na arte que nos fazia ver a alegria e abeleza do mundo moderno” – “forçava-nos a lera literatura moderna de tal maneira que nos faziaimaginar se ainda sobrava algo para viver” (Ber-man, 1996). Espécie de livre-pensador, ele foidentre todos os integrantes do círculo dos intelec-tuais nova-iorquinos, o mais resistente na atribui-ção da importância da questão judaica na sua tra-jetória e formação.

No pólo oposto, encontrava-se Alfred Kazin.O primeiro a editar um livro de memórias voltadopara a tematização do seu passado de filho de imi-grantes pobres judeus, ele foi também o primeiromembro do grupo a enveredar pelo estudo da for-mação da tradição literária norte-americana. Onnative grounds, seu primeiro livro escrito nesta di-reção, graças a uma bolsa de estudos que recebeu

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da Guggenheim Memorial Foudantion, data de1942 e foi publicado quando ele tinha 27 anos. Omenos engajado do grupo, mais interessado na li-teratura do que na política, Kazin era um crítico li-terário renomado nos anos de 1950. Dividia essaposição com Lionel Trilling e Irving Howe.

No caso de Howe, a conquista do nome pró-prio deu-se, de um lado, pela militância política –em 1950, após colaborar com a Partisan Review,onde estreara em 1946, criou Dissent, a revistamais à esquerda no período. De outro lado, pelasua intensa e profícua atividade como resenhistada revista Time, onde trabalhou quatro anos emperíodo parcial. Trotskista na juventude, convoca-do a servir o exército norte-americano durante aSegunda Guerra, Howe foi enviado ao Alaska nes-se período. Encarregado de tarefas burocráticas,dedicou os dois anos passados ali a ler compulsi-vamente sobre os mais variados assuntos. Os li-vros eram aqueles disponíveis na biblioteca doacampamento do exército. Mas para a sua sorte,esta era intelectualmente bem equipada, de modoque, encorajado a aprender e impossibilitado deperseguir qualquer especialização, leu e aprendeumuito nesse período. Em suas palavras, “por purodesinteresse da mente, nenhuma universidade queeu tenha conhecido mais tarde se equiparava a es-ses meses no Alaska” (Howe, 1982, p. 95). Vindode alguém como ele, que ensinou em universida-des do porte de Stanford (entre outras), o comen-tário dá o que pensar. Formado como a maioriados judeus do círculo pelo City College, onde segraduou em literatura inglesa, em 1940, Howe es-treou como professor universitário em 1953, emBrandeis, onde Rahv também ensinaria, como vi-mos, a partir de 1958.

Dwight Macdonald, o único jornalista profis-sional do grupo, oriundo, como vimos, de uma fa-mília de classe média protestante e próspera, estu-dou em escolas particulares, formou-se em Yale,uma das universidades de maior prestígio nos Es-tados Unidos, integrou o corpo de editores da Par-tisan Review até o ano de 1943, quando saiu da re-vista, em razão de discordâncias políticas com osdemais editores que defendiam a entrada dos Esta-dos Unidos na guerra, para fundar a Politics, queexistiu até 1949. Por fim, é preciso mencionar os

nomes de Mary McCarthy, Elisabeth Hardwick,Diana Trilling e Hannah Arendt. Cada uma à suamaneira e em seus respectivos campos de atuação– a primeira como escritora, a última como filóso-fa e as duas outras como críticas literárias e ensaís-tas – já tinha conquistado, nos anos de 1950, nomepróprio, independentemente das parcerias amoro-sas. Elas circulavam com autoridade na cena inte-lectual e cultural da cidade e eram reconhecidascomo mulheres brilhantes.

No decênio de 1950, eles e elas formavamuma elite cultural que, distinta do grupo Blooms-bury, não era, como queria Irving Howe, menos“estabelecida” que ele. A diferença entre esses cír-culos, que existe e precisa ser levada a sério, ad-vém do fato de que os primeiros, os nova-iorqui-nos, viveram de início os dilaceramentos própriosda condição de “outsiders”. Estes, como vimos,exprimiam-se por meio de sentimentos tumultua-dos e ambivalentes, misto de culpa, vergonha eressentimento pela origem e condição de seusprogenitores. Pais e mães enredados na vida durade operários, alfaiates, costureiros, pintores deparede, tintureiros, vendedores ambulantes, paraquem os filhos eram “o único fim de suas existên-cias”, nas palavras de Alfred Kazin – cuja infânciae adolescência foi dominada pelo pensamentoque repartia o mundo entre os “de dentro e os defora” (Kazin, 1951, p. 55). Na visão de IrvingHowe, “o lar significa privação”, por isso a dificul-dade em trazer algum amigo não judeu para co-nhecer sua família. “Eu ficaria envergonhado demostrar meus pais a ele, assim como de mostrá-loaos meus pais” (Howe, 1982, p. 5).

A situação que eles viveram de início eracompletamente distinta (e desconhecida) dos inte-grantes do grupo inglês que, de tão seguros da suacondição social, podiam-se permitir liberdades ou-sadas na época, como se referirem a si mesmospelo primeiro nome e não pelo sobrenome, comoera usual entre as elites inglesas. Além disso, épreciso enfatizar que os intelectuais judeus nova-iorquinos alcançaram a condição de “estabeleci-dos” no momento em que a cidade, que dava sen-tido, direção e vazão à produção (e àsociabilidade) do grupo, se tornara a capital cultu-ral contemporânea e o centro de referência de um

48 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 53

país que há muito perdera o estatuto de ex-colô-nia para se transformar na nação mais “estabeleci-da” do mundo. Prisioneiros dessa condição de “es-tabelecidos” numa nação “estabelecida”, essesintelectuais, ao mesmo tempo em que deixarammarcas indeléveis na cultura norte-americana, vi-veram a ambivalência decorrente da tentativa dese manterem críticos ao totalitarismo e de se afirma-rem às vezes como anti-comunistas, outras comoanti-anti-comunistas, num país praticante do plura-lismo cultural, mas afeito às lógicas duais no do-mínio da política.

NOTAS

1 Este artigo, apresentado no Grupo de PensamentoSocial da Anpocs, em outubro de 2002, é parte deuma pesquisa mais ampla desenvolvida junto às bi-bliotecas e aos arquivos da Universidade de Stan-ford, Estados Unidos, durante o segundo semestrede 2001 e primeiro semestre de 2002, graças a umabolsa de pós-doutoramento no exterior que recebido CNPq. Agradeço aos coordenadores do GT aci-ma mencionado, Fernanda Peixoto e Marcos ChorMaio, pelo incentivo para publicá-lo, e a RicardoBenzaquén de Araújo pelos comentários feitos porocasião da apresentação. Sou especialmente grata aGuita Debert, Sergio Miceli e Maria Filomena Gre-gori pela leitura aguda. Por fim, quero agradecer aocomitê acadêmico da Anpocs pelo parecer instigan-te que recebi. Incorporei, na medida do possível,algumas das sugestões, reformulei afirmações maisperemptórias ou obscuras, deixei outras em abertoou inconclusas, para trabalhos futuros.

2 As revistas culturais mais importantes de Nova Yorknos anos de 1940 e 1950 são uma das fontes privi-legiadas para a apreensão das sucessivas transfor-mações nas posições políticas desses intelectuais.Nesse sentido, destacam-se: Partisan Review, criadaem 1937; Politics (1944-1949), editada por DwightMacdonald que, em 1943, deixou o corpo editorialda Partisan, junto com Clement Greenberg; Com-

mentary, fundada em 1945, editada por Eliot Cohen(até o seu suicídio em 1959) e depois por NormanPodhoretz, tinha entre os seus colaboradores o nú-cleo da intelligentsia norte-americana judaica; Dis-

sent, lançada por Irving Howe e Lewis Coser, em1950. No campo cultural da época, atravessado por

uma série de clivagens de ordem política, enquan-

to a Partisan Review vai paulatinamente ocupando

uma posição de centro, Politics e Dissent situam-se no

pólo mais à esquerda e Commentary mantém-se

mais à direita.

3 Para um entendimento circunstanciado dos intelec-

tuais de Nova York e do contexto cultural e político

no qual estavam inseridos, consultar os livros de Ja-

mes Gilbert (Writers and partisans, 1992), Alexander

Bloom (Prodigal sons: the New York intellectuals and

their world, 1986), Terry Cooney (The rise of the New

York Intellectuals, 1986), Alan Wald (The New York

Intellectuals: the rise and decline of the anti-stalinist

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ville (Critical crossing: the New York intellectuals in

postwar America, 1991), David Laskin (Partisans:

marriage, politics, and betrayal among the New York

intellectuals, 2000), Claudia Pierpont (Passionate

minds: women rewriting the world, 2001) e os traba-

lhos do historiador da cultura, Thomas Bender (New

York intellect, 1987; Intellect and public life, 1993, e

Budapest and New York [organizado em conjunto

com Carl E. Schorkse], 1994).

4 O que de fato aconteceu em 1938, quando Trostsky

escreveu o artigo “Art and politics” para o número

de agosto-setembro da revista.

5 As informações relativas aos episódios menciona-

dos nessa parte do artigo foram retiradas do livro de

Mary McCarthy, Intellectual memoirs (1992).

6 Atestadas, por exemplo, pela atitude da escritora

Lillian Hellman, que nos anos de 1980 moveu um

processo de danos morais contra Mary envolvendo

uma soma significativa de dinheiro, o qual só não

chegou à sua tramitação final porque Mary foi aco-

metida por um câncer fatal no pulmão. Apoiada o

tempo todo por Hannah Arendt, com quem mante-

ve uma relação intensa de amizade e uma profícua

correspondência, Mary McCarthy é uma das mulhe-

res mais interessantes e polêmicas do grupo. Suas

memórias, fascinantes do ponto de vista literário e

informativo, são um manancial para o aprofunda-

mento das convenções de gênero nos círculos inte-

lectuais de maior prestígio da época.

7 Com exceção de Mary McCarthy, Elizabeth Hardwick,

Saul Bellow e Delmore Schwartz, não havia outros

escritores dentro do círculo dos intelectuais nova-ior-

quinos, os quais tinham uma cabeça muito mais críti-

ca do que artística (cf. Jumonville, 1991, p. 9).

CIDADES E INTELECTUAIS 49

8 A literatura sobre o modernismo é extensa e daria,por si só, um artigo. Para efeitos de “comprovação”da interpretação que estou propondo (e que mere-ce uma reflexão mais alentada, a ser feita em outraocasião), remeto o leitor interessado no aprofunda-mento da dimensão de gênero no círculo modernis-ta ao recém-lançado livro de Sergio Miceli, Nacio-nal estrangeiro, 2003.

9 A expressão é do artista plástico Flávio de Carvalhoe encontra-se reproduzida no “Roteiro de uma vida-obra”, incluído no livro de onde retirei os dados so-bre Pagu (cf. Augusto de Campos, 1982, p. 320).

10 Idem, p. 147.

11 Entre os livros de memórias publicados por eles atéa metade dos anos de 1960, destacam-se: A walkerin the city (1951) de Alfred Kazin, Memoirs of a re-volutionist (1957) de Dwight Macdonald, Againstthe America grain (1962) de Dwight Macdonald,Starting out in the thirties (1965) de Alfred Kazin. Apartir do início dos anos de 1970, como resultadodo envelhecimento de vários deles, do questiona-mento que sofreram por parte das gerações maisnovas, sobretudo daquelas ligadas à nova esquerda,da publicação do livro de memórias da celebradadramaturga e escritora Lillian Hellman, Scoundreltime (1976), eles voltam à cena editorial e apostamtodas as fichas na reconstrução memorialística desuas trajetórias profissionais, experiências pessoaise engajamentos políticos. O livro de Lillian Hellman,premiado e aclamado pela crítica, sucesso de públi-co, é um libelo contra o macartismo dos anos de1950 e uma crítica dura ao silêncio de muitos dos in-telectuais de Nova York em relação ao período demaior arbitrariedade política da história norte-ameri-cana. Uma grande parte dos livros que publicaram aseguir traz senão uma refutação contundente à visãode Lillian Hellman, ao menos uma reconstrução dopassado que enfatiza o alinhamento de seus auto-res no campo político do anti-stalinismo, numa ten-tativa de demarcarem as suas diferenças em relaçãoao anticomunismo desenfreado dos conservadoresde direita e de enfatizarem a importância que tive-ram na cena cultural e editorial. Entre os livros nes-sa linha, destacam-se: We must march my darlings(1977) de Diana Trilling, Essays on literature andpolitics (1978) de Philip Rahv, New York Jew (1978)de Alfred Kazin, The Truants (1982) de William Bar-rett, A view of my own (1982) de Elizabeth Hard-wick, A margin of hope (1982) de Irving Howe, Apartisan view (1983) de William Phillips, Out of step

(1987) de Sidney Hook, Conversations with LillianHellman (1986) editado por Jackson Bryer, Essays,selections (1990) de Irving Howe, Intellectual me-moirs (1992) de Mary McCarthy, Writing dange-rously (1992) de Carol Brightman, Between friends:the correspondence of Hannah Arendt and MaryMcCarthy (1995) editado por Carol Brightman.

12 Como a que ocorreu, por exemplo, na relação dosdois principais editores da Partisan Review, PhilipRahv e William Phillips, que romperam de forma in-tempestiva na década de 1960, depois de anos deconvivência estreita.

13 Se essa observação é corrente nos estudos sobre omodernismo brasileiro, ela ganha uma nova dimen-são a partir do instigante estudo de Iná CamargoCosta, Panorama vermelho (2001), voltado para aanálise da formação do teatro moderno norte-ame-ricano e redigido com o propósito de oferecer umatrama mais consistente para a comparação com aformação do teatro moderno no Brasil.

14 Esta e as demais citações dos intelectuais nova-ior-quinos que serão reproduzidas no restante do arti-go foram traduzidas pela autora.

15 Segundo Alexander Bloom, a partir dos anos de1920 observa-se um clima de anti-semitismo nosEstados Unidos, expresso, por exemplo, por meiouma série de restrições que os estudantes judeuscomeçaram a enfrentar nas universidades norte-americanas. Mas, mesmo assim, dois dos maiorescolaboradores de Partisan, Lionel Trilling e MeyerSchapiro, ainda puderam, nessa época, se graduarna Universidade de Colúmbia. O que não foi pos-sível aos membros mais novos desses intelectuaisjudeus, nascidos entre 1915 e 1925. Nenhum delescursou a Colúmbia. A única alternativa de que dis-punham, em razão quer da precária situação fami-liar, quer do acirramento da discriminação étnicaobservada nas universidades norte-americanasnos anos de 1930, era o City College. DelmoreSchwartz, nesse contexto, foi uma exceção. Oriun-do de uma família judia de classe média, graduou-se em filosofia, em 1935, na New York Universitye fez a pós-graduação em Harvard (cf. AlexanderBloom, 1986, cap. 2, “A New York education”, eShatzky e Taub, 1999).

16 Referência às disputas classificatórias e políticas que

tiveram lugar entre os intelectuais de Nova York a

partir do início dos anos de 1950, quando Philip

Rahv, William Phillips (os principais editores da

Partisan), entre outros, criaram o termo “anti-anti-

50 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 53

comunista” para se diferenciarem, de um lado, do

anti-comunismo da direita norte-americana e, de

outro, dos anti-comunistas liberais como Sidney

Hook e Elliot Cohen (editor da Commentary). Mar-

cando, assim, o seu alinhamento junto à parcela dos

“nova-iorquinos” mais à esquerda no período,

como Clement Greenberg, Meyer Schapiro, Dwight

Macdonald, Irving Howe e Lewis Coser (os dois úl-

timos eram editores da Dissent), entre outros.

17 Cabem aqui esclarecer que a caracterização mais

geral do realinhamento político desses intelectuais,

feita ao longo do artigo em termos de seu progres-

sivo conservadorismo, corresponde, de um lado, à

maneira dominante com que eles foram vistos pela

esquerda norte-americana nos anos de 1960 e 1970.

Conservadores, neste caso, é um qualificativo atri-

buído a eles pelos integrantes dessa também cha-

mada “nova esquerda” norte-americana. De outro

lado, é preciso salientar que o envolvimento de vá-

rios desses intelectuais com organizações que rece-

beram na década de 1960 denúncias por suas liga-

ções supostas ou reais com a CIA contribuiu para

o acirramento dessa percepção. Basta mencionar,

nesse sentido, a participação de Sidney Hook, Elliot

Cohen, William Phillips, Diana Trilling, entre outros,

no American Comittee for Cultural Freedom (funda-

do em 1949) e no Congress for Cultural Freedom,

entidades voltadas à defesa da democracia, contra o

totalitarismo e o comunismo. Em 1967, veio à tona

a informação que a segunda recebia suporte e di-

nheiro da CIA. O autor da denúncia, Jason Epstein,

escreveu o artigo “The CIA and the intellectuals”,

publicado no New York Review of Books, em abril de

1967. O efeito dessa revelação foi quase o de uma

“bomba” a estilhaçar a imagem e a credibilidade po-

lítica desses intelectuais anticomunistas que se con-

sideravam liberais. A denúncia foi contestada por

alguns dos intelectuais citados. Sobre esse assunto,

ver Diana Trilling, We must march my darlings,

1977, e Wiliam Phillips, A partisan view, 1983.

18 Ver, nesse sentido, o livro de Norbert Elias e John

Scotson, Os estabelecidos e os outsiders (2000). É

preciso não esquecer que este livro atualiza uma

das dimensões analíticas presentes na figuração “es-

tabelecidos-outsiders”. A saber, aquela em que as

posições sociais de cada um dos grupos, por esta-

rem assentadas em critérios morfológicos idênticos,

ganham uma fixidez no plano da repartição de po-

deres. Enquanto os recursos simbólicos de cada um

dos grupos se mantiverem inalterados, a posição de

poder de um sobre o outro permanece a mesma.

Isso não quer dizer que o modelo não possa ser

aplicado a grupos que, “outsiders” de início, pos-

sam vir a se tornar “estabelecidos” ou a ameaçarem

a posição dos estabelecidos, como bem mostra Elias

em outros trabalhos, notadamente em Os alemães e

em Mozart: sociologia de um gênio.

19 Para uma análise densa e provocativa desse círculo,conferir o artigo de Raymond Williams, “The Blooms-bury fraction”, 1982, pp. 148-169.

20 A esse respeito, consultar o ensaio memorialísticoque Mary McCarthy escreveu sobre Rahv, algunsmeses depois da morte dele, para o New York TimesBook Review, em 17 de fevereiro de 1974.

21 A observação de Barret refere-se à prestigiada e co-biçada bolsa de estudos fornecida para intelectuaisde destaque em diversos campos de conhecimentopela John Simon Guggenheim Memoral Founda-tion. Transcrita em Andrew Dvosin, Literature in apolitical world, 1997, p. 103.

22 Comentando a sua identificação com os judeus,William Barrett enfatiza que ela se iniciou de manei-ra reflexiva e deliberada. Em suas palavras, “I waspro-Jewish because the Jews seemed to me thepeople of the mind”. Cf. The truants, 1982, p. 23.

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RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 175

CIDADES E INTELECTUAIS:OS “NOVA-IORQUINOS” DAPARTISAN REVIEW E OS“PAULISTAS” DE CLIMA,ENTRE 1930 E 1950

Heloisa Pontes

Palavras-chavePartisan Review e revista Clima;Nova York e São Paulo; Sociologia davida intelectual; Cultura e política;Cidades, intelectuais e sociabilidade.

O artigo analisa, numa perspectivacomparativa, as similitudes e asdiferenças entre os intelectuais“nova-iorquinos” nucleados pelaPartisan Review e os “paulistas” darevista Clima. Herdeiros todos elesdo legado modernista, familiariza-dos com o cosmopolitismo no planoda cultura, atentos à produção int-electual e artística local, ele mar-caram a cena cultural paulista enova-iorquina dos anos de 1940 e1950. Os últimos renovaram a dis-cussão sobre a relação entre mod-ernismo nas artes e radicalismo napolítica. Como intelectuais eescritores, diferenciaram-se dosacadêmicos em sentido estrito.Como críticos e resenhistas, fizeramdo ensaio o meio por excelência deexpressão e encontraram nas revis-tas literárias e políticas de NovaYork o seu fórum institucional.Parecidos e distintos dos “paulistas”de Clima, eles oferecem um bomcontraponto para adensarmos ainvestigação da vida intelectual emSão Paulo no período. Sobretudo, seao lado da recuperação das especi-ficidades das histórias culturais e int-electuais das cidades de Nova Yorke São Paulo, formos capazes deavançar na investigação de um con-junto de problemas sociológicospertinentes para o aprofundamentoda perspectiva comparativa.

CITIES AND INTELLECTUALS:THE PARTISAN REVIEW“NEW YORKERS” AND THECLIMA “PAULISTAS,”BETWEEN 1930 AND 1950

Heloisa Pontes

Key words Partisan Review and the Clima mag-azine; New York and Sao Paulo;Sociology of the intellectual life;Cities, intellectuals, and sociability.

The paper analyses, in a compara-tive perspective, both the similaritiesand the differences of the “NewYorker” intellectuals, gathered by thePartisan Review, and the “Paulistas,”gathered by the Clima magazine.Being heirs to the modernist legacy,familiarized with cultural cosmopoli-tanism, and aware of the intellectualand artistic local production, theytook the stage in the “Paulista” and“New Yorker” cultural scene in the1940’s and 1950’s. The latter couldalso renovate the discussion on therelationship between modernism inthe arts and radicalism in politics. Asboth intellectuals and writers, theywere distinct from the academics inthe strict sense. As critics andreviewers, they made the essay theirexpression means by excellence,finding in the New Yorker literaryand political magazines their institu-tional forum. At the same time simi-lar and distinct to the Clima“Paulistas,” they provide a reason-able counterpoint to go deeper inthe investigation of the intellectuallife in Sao Paulo in that period. Thatwill be done if we, above all, areable to advance over the investiga-tive scope of prevailing sociologicalproblems aside the recuperation ofthe particularities of the cultural andintellectual history of the cities ofNew York and Sao Paulo, in order todeepen the comparative perspective.

LES VILLES ET LES INTEL-LECTUELS: LES NEW-YORKAISDE LA PARTISAN REVIEW ETLES “PAULISTAS” DE CLIMA,ENTRE 1930 ET 1950

Heloisa Pontes

Mots-clésPartisan Review et revue Clima; NewYork et São Paulo; Sociologie de la vieintellectuelle; Culture et politique;Villes, intellectuels et sociabilité.

L’article analyse, suivant une perspec-tive comparative, les similitudes et lesdifférences entre les intellectuels new-yorkais réunis par la Partisan Reviewet les “paulistas” de la revue Clima.Héritiers du légat moderniste, famil-iarisés à un cosmopolitisme sur leplan de la culture et attentifs à la pro-duction intellectuelle et artistiquelocale, ils ont marqué la scène cul-turelle paulista et new-yorkaise desannées 1940 et 1950. Ces derniers ontrénové la discussion à propos de larelation entre le modernisme dans lesarts et le radicalisme en politique. Entant qu’intellectuels et écrivains, ils sedifférencient des académiciens dansle sens strict. En tant que critiques etrecenseurs, ils ont fait de l’essai lemoyen par excellence de l’expressionet ont rencontré dans les revues lit-téraires et politiques de New Yorkleur forum institutionnel. Semblableset différents des “paulistas” de Clima,ils offrent une bonne contre-mesurepour que l’on puisse approfondir larecherche à propos de la vie intel-lectuelle à São Paulo au cours de cettepériode. Particulièrement si, parallèle-ment à la récupération des particular-ités des histoires culturelles et intel-lectuelles des villes de New York et deSão Paulo, nous étions capables d’a-vancer dans la recherche d’un ensem-ble de problèmes sociologiques perti-nents à l’approfondissement de laperspective comparative.