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CIDADES E METRÓPOLES: UMA PERSPECTIVA GEOGRÁFICA PARA A ANÁLISE DOS “PROBLEMAS AMBIENTAIS URBANOS” Ângelo Serpa* *Professor Associado Doutor do Departamento de Geografia da Universidade Federal da Bahia e Pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected] RESUMO: Parte-se do pressuposto de que os problemas ambientais urbanos são de ordem sobretudo ética, política e econômica e que a Geografia deve se debruçar sobre a problemática ambiental buscando desvendar essas dimensões no contexto urbano e metropolitano, a partir do entendimento das relações sociedade-natureza numa perspectiva ao mesmo tempo temporal e espacial. Assim, questões emblemáticas como a distribuição espacial dos espaços públicos de natureza nas cidades, por exemplo, deveriam ser o cerne de uma discussão acadêmica profunda, que pudesse fundamentar em outras bases a gestão de áreas assim nos territórios municipais e metropolitanos. Também a gestão dos resíduos sólidos no contexto urbano e metropolitano coloca as dimensões políticas, econômicas e éticas que permeiam os chamados “problemas ambientais” urbanos na contemporaneidade. Neste artigo aprofunda-se essa discussão, analisando-se as estratégias de gestão dos resíduos sólidos e das áreas verdes, a partir do exemplo da Região Metropolitana de Salvador. PALAVRAS-CHAVE: Problemas ambientais urbanos; Gestão de resíduos sólidos; Gestão de áreas verdes; Cidade; Região metropolitana. ABSTRACT: The article starts from the purpose that the urban environmental problems are mainly on the ethical, politic and economic way, and that the Geography have to study the environmental problem looking for to disclose these aspects in metropolitan and urban context from the understanding of society and nature relations on a perspective also spatial and temporal. So, emblematic questions as spatial distribution of nature public spaces in the cities for example, needed to be the core of a deep academic debate able to offer other basis to these areas management in municipal and metropolitan territories. Also the solid residue management in urban and metropolitan context presents the politic, economic and ethical dimensions that are in the nowadays called urban “environmental problems”. This article deepens this debate, analyzing the solid residues and green areas management strategies using the Salvador Metropolitan Region example. KEY WORDS: Urban environmental problems; Solid residues management; Green areas management; City; Metropolitan region. Uma mesa redonda que se propõe a colocar a Geografia diante dos problemas ambientais urbanos nas cidades e metrópoles é particularmente instigante, especialmente no contexto de um simpósio nacional de Geografia Física Aplicada 1 . GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 23, pp. 30 - 43, 2008

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CIDADES E METRÓPOLES: UMA PERSPECTIVA GEOGRÁFICAPARA A ANÁLISE DOS “PROBLEMAS AMBIENTAIS URBANOS”

Ângelo Serpa*

*Professor Associado Doutor do Departamento de Geografia da Universidade Federal da Bahia e Pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected]

RESUMO:Parte-se do pressuposto de que os problemas ambientais urbanos são de ordem sobretudo ética,política e econômica e que a Geografia deve se debruçar sobre a problemática ambiental buscandodesvendar essas dimensões no contexto urbano e metropolitano, a partir do entendimento dasrelações sociedade-natureza numa perspectiva ao mesmo tempo temporal e espacial. Assim,questões emblemáticas como a distribuição espacial dos espaços públicos de natureza nas cidades,por exemplo, deveriam ser o cerne de uma discussão acadêmica profunda, que pudesse fundamentarem outras bases a gestão de áreas assim nos territórios municipais e metropolitanos. Também agestão dos resíduos sólidos no contexto urbano e metropolitano coloca as dimensões políticas,econômicas e éticas que permeiam os chamados “problemas ambientais” urbanos nacontemporaneidade. Neste artigo aprofunda-se essa discussão, analisando-se as estratégias degestão dos resíduos sólidos e das áreas verdes, a partir do exemplo da Região Metropolitana deSalvador.PALAVRAS-CHAVE:Problemas ambientais urbanos; Gestão de resíduos sólidos; Gestão de áreas verdes; Cidade; Regiãometropolitana.

ABSTRACT:The article starts from the purpose that the urban environmental problems are mainly on the ethical,politic and economic way, and that the Geography have to study the environmental problem lookingfor to disclose these aspects in metropolitan and urban context from the understanding of societyand nature relations on a perspective also spatial and temporal. So, emblematic questions asspatial distribution of nature public spaces in the cities for example, needed to be the core of adeep academic debate able to offer other basis to these areas management in municipal andmetropolitan territories. Also the solid residue management in urban and metropolitan contextpresents the politic, economic and ethical dimensions that are in the nowadays called urban“environmental problems”. This article deepens this debate, analyzing the solid residues and greenareas management strategies using the Salvador Metropolitan Region example.KEY WORDS:Urban environmental problems; Solid residues management; Green areas management; City; Metropolitanregion.

Uma mesa redonda que se propõe acolocar a Geografia diante dos problemasambientais urbanos nas cidades e metrópoles

é particularmente instigante, especialmente nocontexto de um simpósio nacional de GeografiaFísica Aplicada1 .

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Para a Geografia, trata-se (sempre!) dareconstituição do todo espacial, como propostopor Santos (1992), que pressupõe o abandonodas velhas dicotomias - Geografia Humanaversus Geografia Física, por exemplo - e a buscanão só das semelhanças, mas também dasdiferenças entre os lugares, regiões, paisagense territórios que expressam a totalidade doespaço. É preciso, sobretudo, pensar o espaçocomo algo dinâmico e mutável, reflexo econdição da/ para a ação dos seres humanos,como espaço vivido, algo passível de“apropriação” (SERPA, 2006).

A segunda questão suscitada pelatemática da mesa proposta leva também àdiscussão da problemática ambiental no mundocontemporâneo, especificamente sobre o papelda Geografia frente aos “problemas ambientaisurbanos”, que pode ser desdobrada – talvezde modo pouco consensual e polêmico – nosseguintes questionamentos:

- Qual a especificidade dos “problemasambientais” no contexto urbano e metropolitano?

- Qual o papel da Geografia frente a umanatureza “ocultada” pelas estratégias dosagentes hegemônicos de produção do espaçourbano e metropolitano?

A hipótese aqui defendida é que osproblemas ambientais urbanos são de ordemsobretudo ética, política e econômica e que aGeografia deve se debruçar sobre a problemáticaambiental buscando desvendar essas dimensõesno contexto urbano e metropolitano, a partir doentendimento das relações sociedade-naturezanuma perspectiva ao mesmo tempo temporal eespacial.

É necessário situar, antes de tudo, adiscussão em um contexto mais geral, na escalado Planeta. Os movimentos ecológicos têm suaorigem vinculada às conferências internacionaisdas comunidades científicas e, inicialmente, seposicionavam em relação à preservação denichos da paisagem natural, à manutenção do“equilíbrio ecológico”. Um marco histórico dessemomento foi a Conferência de Estocolmo, em

1972, marcada pelo acirrado debate em tornodos riscos da degradação ambiental e dasnecessidades de desenvolvimento de algumasnações, e que resultou na emergência de umnovo agente/sujeito, as organizações não-governamentais, assim como na formulação depolíticas de zoneamento ambiental e na criaçãode órgãos de competência preservacionista.Isso tudo implicou também na institucionalizaçãode unidades de conservação, inclusive emcontextos urbanos/metropolitanos, e deinstrumentos de mensuração da qualidadeambiental (MENEZES, 1999).

Nos anos 1980, a noção de sustentabilidadeecológica vai substituir paulatinamente a ênfase napreservação, explicitando a diferença entrepreservação, ligada à intocabilidade dosecossistemas naturais, e a conservação, comocombinação dinâmica entre as característicasinovadoras e as preexistentes. A ECO 92 no Rio deJaneiro vai enfatizar, dentro desse contexto, odebate sobre a qualidade ambiental, a participaçãosocial e a cidadania, as densidades urbanas, oemprego urbano, o direito ao habitat e a divulgaçãodas boas práticas de gestão/intervenção (MENEZES,1999).

Os novos paradigmas ambientais vãoexplicitar, no entanto, uma contradição, já que asociedade capitalista contemporânea está fundadana produção e no consumo de bens oligárquicos,bens que só existem se forem para poucos e umasociedade fundada na produção de bensoligárquicos é uma sociedade insustentável(ALTVATER, apud GONÇALVES, 2001).Sustentabilidade ambiental pressupõe, portanto,equidade social. O que está em jogo aqui é oparadoxo entre a multiplicação do consumo(desigual) ou o estímulo ao consumismo desenfreadoe a idéia mesma de “desenvolvimento sustentável”,cuja cientificidade é cada vez mais difícil de sustentar.

A idéia de desenvolvimento sustentável é umaidéia diluidora, entre outras coisas, porque temorigem num campo do agir humano cujanatureza é produzir consensos. Sabemos que aidéia de desenvolvimento sustentável não surgiuem nenhuma área acadêmica, nem em

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nenhuma área científica. É uma idéia que surgiuno campo diplomático. Foi no interior daComissão Brundtland da ONU que essa idéiaganhou, por assim dizer, cidadania, como umaidéia que agradaria a todo mundo e, portanto,não diria o que precisava ser dito. Aliás,sublinhe-se, é da natureza do campo diplomáticobuscar os consensos, até porque o diplomata éaquele cuja função é evitar a guerra(GONÇALVES, 2001, p. 143).

Como o famoso e infundado índice de“metros quadrados de áreas verdes por habitante”,cuja origem deve-se muito provavelmente a um“boato ecológico”2 (YÁZIGI, 1994), erramos aoconsiderar científicos conceitos, índices e variáveisque não possuem legitimidade acadêmica. O índicede áreas verdes, além de não possuirfundamentação teórica e empírica, diz pouco, muitopouco, sobre as verdadeiras raízes do problema,assim como a idéia de Desenvolvimento Sustentável.

Desenvolvimento Sustentável para quem?Metros quadrados de áreas verdes para quem? Aquestão emblemática da distribuição espacial dosespaços públicos de natureza nas cidades, porexemplo, deveria ser o cerne de uma discussãoacadêmica profunda, que pudesse fundamentar emoutras bases a gestão de áreas assim nos territóriosmunicipais e metropolitanos. Também a questão dagestão dos resíduos sólidos no contexto urbano emetropolitano coloca as dimensões políticas,econômicas e éticas que permeiam os chamados“problemas ambientais” urbanos nacontemporaneidade. Pretende-se aprofundar agoraessa discussão, baseados na análise dasestratégias de gestão dos resíduos sólidos e dasáreas verdes, a partir do exemplo da RegiãoMetropolitana de Salvador.

Gestão de Resíduos Sólidos na RegiãoMetropolitana de Salvador

Em Salvador e sua região metropolitana,o aterro sanitário foi adotado como a soluçãomais “adequada” para a disposição final dosresíduos sól idos. As razões alegadas pelaCONDER – Companhia de DesenvolvimentoUrbano do Estado da Bahia, órgão ligado aoGoverno do Estado, foram principalmente atecnologia, que conjugaria baixos custos,eficiência e faci lidade operacional, e apreservação ambiental, associada àimplantação desses equipamentos. O órgãoganhou o Prêmio Top de Ecologia 1996 peloprograma de implantação dos aterros sanitáriosna RMS.

De acordo com o site da CONDER, oPrograma de Destinação Final de ResíduosSólidos foi iniciado na RMS, beneficiandodiretamente seus dez municípios, com aconstrução de quatros grandes aterros (Fig. 1):Aterro Metropolitano Centro (para aspopulações de Salvador, Lauro de Freitas eSimões Filho – Fig 2), Aterro Integrado Pontado Ferrolho (Candeias e São Francisco doConde), Aterro Integrado Camaçari/Dias D’Ávila(Camaçari e Dias D’Ávila) e Aterro Integrado Ilha(Vera Cruz e Itaparica – Fig. 3). Para implantaçãona RMS, o programa contou com financiamentodo Banco Mundial e contrapartida do Governodo Estado. Depois disso a CONDER construiumais 12 aterros sanitários no Estado da Bahia,geralmente de uso compartilhado por dois outrês municípios. Cerca de 95% do lixo produzidona metrópole soteropolitana são depositadosnos aterros3 .

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Defendida como a solução maisadequada ambientalmente, o programa deimplantação dos aterros sanitários obedeceu auma lógica sobretudo econômica, explicitadaposteriormente na gestão terceir izada doprincipal aterro – o Aterro Metropolitano Centro– pela empresa Vega Bahia Tratamento deResíduos S.A. A Vega Bahia, empresa coligadada VEGA e sucedânea do consórcio VEGA-Satrod, é a operadora do Aterro Centro até

2020. A concessão, ganha em 2000, prevê arealização dos serviços de construção eoperação do sistema de transporte e destinaçãofinal dos resíduos de Salvador. A VegaAmbiental, que já era responsável pelos serviçosde coleta e varrição do município de Salvador,passou através de sua col igada aresponsabilizar-se também pelos serviços detratamento e destinação destes mesmosresíduos (www.vega.com.br).

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A idéia de “gestão eficiente e moderna”do Aterro Centro pela Vega esconde a discussãosobre os aspectos éticos, econômicos e políticos,relacionados à implantação de taisequipamentos no contexto metropolitano, jáque a questão da coleta seletiva e da reciclagemde lixo passa a significar menos lucro para agestão empresarial dos aterros: É a quantidadede lixo recolhida que importa e não seureaproveitamento. Pouco se fala também da vidaútil desses equipamentos, que poderia ser

alongada caso o programa de gestão eimplantação dos aterros estivesse associado aprogramas de coleta e reciclagem de lixo nocontexto urbano e metropolitano.

Mesmo diante das ações tímidas dospoderes públicos nessa direção, catadores,Organizações Não-governamentais ecooperativas de reciclagem acabam cumprindoum papel social importante. Parte do lixo lançadono Aterro Metropolitano Centro, localizado nas

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proximidades do Centro Industrial de Aratu,poderia ser reaproveitada, aumentando suavida útil e retardando a necessidade de criarnovos aterros, o que beneficiaria o ambienteurbano e pouparia, sem dúvida, recursospúblicos. Algumas inst ituições doam às

cooperativas objetos recicláveis retirados doseu lixo. Mas a maioria ainda descarta pápeis,plásticos e vidros misturados ao lixo doméstico- restos de vegetais e alimentos - nos caminhõesconvencionais de coleta diária (Jornal da Facom,15 de junho de 2007).

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Os técnicos da Diretoria de Operaçõesda Limpurb, o órgão municipal de limpezaurbana de Salvador, confessam não haver umapolítica pública de assistência às cooperativasde catadores da cidade. Eles reconhecem ospápeis sócio-ambiental e econômico dascooperativas de reciclagem, contudo descrevema postura delas como cômoda: “Não temosorçamento específico para esse setor. Fazemoso possível cedendo terrenos, caminhões,máquinas às cooperativas que alegam essasnecessidades, mas elas precisam se esforçarmais. Afinal, o dinheiro público não pode serinjetado em lugar algum sem segurança eplanejamento” (Jornal da Facom, 15 de junhode 2007).

Para a Limpurb, a criação de novascooperativas reduz ou desconcentra o poucoincentivo dado a projetos de reciclagem, nãoconsiderando isso responsabilidade daadministração municipal: “É da natureza dascooperativas serem originadas de um grupomobil izado de pessoas. Não cr iamoscooperativas. Elas são cr iadas e seusidealizadores pedem nosso reconhecimento eauxílio”. Mesmo assim, existem 18 cooperativasde coleta de lixo reciclável em Salvador, porémelas são incapazes de absorver a maioria doscatadores. A burocracia não é o único empecilhoà entrada dessa massa de catadores emcooperativas: O aumento extraordinário depessoas envolvidas com reciclagem fez ospreços caírem e as cooperativas não podemampliar seus quadros. Depois de subtraídas asdespesas com água, luz e impostos, o restantedo faturamento é dividido entre os sócios oucooperados e, quanto mais sócios, menores ossalários (Jornal da Facom, 15 de junho de 2007).

Gestão territorial dos espaços públicosde natureza em Salvador

Os espaços públicos de natureza sãoabordados no Plano D iretor deDesenvolvimento Urbano de Salvador sob doisaspectos: pela ótica ambiental, vistos como“espaços verdes” e de conservação, e pela

ót ica do lazer, vistos enquanto espaçospúblicos voltados para a recreação e oentretenimento. Sob a ótica ambiental, osparques compõem um sistema de espaços depreservação ambiental, subdividido em doissubsistemas: o das áreas de conservação,cuja impor tância deve-se ao seu valorecológ ico ou à sua s ignif i cânc ia para aqualidade urbano-ambiental, caracterizadaspelos Parques de Natureza (exemplos: SãoBartolomeu e Abaeté) e pelos ParquesUrbanos (exemplos: Zoobotânico, da Cidadee Pituaçu); e o das áreas de valor urbano-ambiental, do qual fazem parte os Parques deRecreação (Dique do Tororó, Jard im dosNamorados, Costa Azul e Aeroclube) e osEspaços Abertos Urbanizados (praças,mirantes, jard ins públ icos, áreas verdesintegrantes de loteamentos, campos equadras poliesportivas).

O relatório f inal que fundamenta oPlano Diretor indica, no tocante à distribuiçãoespacial da cobertura vegetal no município deSalvador, a presença de três macro-compartimentos com configurações distintas,cuja relevância deveria determinar políticasdiferenciadas para conservação e recuperaçãodos padrões observados. O mesmo relatórioanalisa também a distribuição espacial dasáreas com maior “valor ecológico”1 noterritório municipal, identificando três grandesbolsões de cobertura vegetal correspondentesàs f lorestas ombrófi las em estágio derecuperação avançado e/ ou às restingas.

Verifica-se que alguns dos parquesurbanos e de natureza mencionadosanteriormente (P ituaçu, Abaeté, SãoBartolomeu e da Cidade) aparecem entre asáreas da c idade com médio a alto valorecológico, o que deveria determinar, comoindicado pelo Plano Diretor, políticas públicasde conservação, preservação e recuperaçãoambiental; no entanto, as polít i cas derequal if i cação do espaço público,empreendidas no território municipal a partirdos anos 1990, parecem contradizer essalógica, como veremos a seguir.

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Depois da segunda metade dos anos1990, a cidade do Salvador empreendeu umapolítica sistemática de criação e reabilitação deparques e jardins públicos. Não por acaso, esseperíodo coincide com duas importantesmudanças relativas ao conjunto das grandescidades do mundo e, em particular, daquelassituadas nos países ditos “emergentes”, ondeesses fenômenos vão ocorrer com maisintensidade.

A primeira corresponde a uma novaideologia cuja origem situa-se no continenteeuropeu: as noções de desenvolvimento e dacidade “sustentáveis” (EMELIANOFF, 2004). Oprincípio de base se apóia na idéia de que amelhoria da qualidade de vida urbana valorizaa imagem e a atratividade das cidades, as áreasverdes servindo a esse fim. A segunda mudançaestá relacionada com a evolução sócio-econômica do Brasil. Se os anos 1970-1980foram marcados pelo aumento do poder(econômico e político) das classes médias, emmeados dos anos 1990 assiste-se, nas maioresaglomerações urbanas do país, um aumento

expressivo das desigualdades entre ricos epobres. Esta evolução encontra reflexo napaisagem urbana, que testemunha o surgimentode novos bairros residenciais servidos decentros comerciais e boa infra-estrutura urbana,do mesmo tipo que aqueles encontrados nospaíses mais prósperos.

A leitura do mapa de áreas protegidas(Fig. 4), do Plano Diretor de DesenvolvimentoUrbano de Salvador, mostra de modo eloqüenteesta nova ideologia de desenvolvimentosustentável. A cidade inventariou de modosistemático as potencialidades ecológicas doconjunto da aglomeração. O inventário dividiua cidade em unidades de conservação, comgraus dist intos de qualidade ecológica dacobertura vegetal. Constata-se que uma grandeparte da aglomeração urbana é composta poráreas protegidas, que ocupam superfíciesconsideráveis do tecido urbano: é o casoprecisamente da Baía de Todos os Santos e detoda a parte norte da cidade, que correspondemtambém às reservas hídricas necessárias aoabastecimento da aglomeração.

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A qualidade ecológica da cobertura vegetalnão parece constituir, no entanto, um critériodeterminante para a implantação de áreasprotegidas. Isso pode ser constatado, por exemplo,para o Parque de Pituaçu (alta qualidade ecológicada cobertura vegetal existente, mas sem proteçãoem toda sua extensão). Inversamente, unidadesde conservação mais importantes em superfície(Parque Metropolitano de Pirajá e São Bartolomeu)apresentam qualidade ecológica média e sãoprotegidas em toda sua extensão.

Neste documento aparecem igualmentee freqüentemente superpostas as áreas dedomínio público (entre elas, os parques ejardins) e as zonas não edificáveis. Essas zonasaparecem destacadas nas áreas maisdensamente povoadas da aglomeração,correspondendo sempre aos parques e jardinspúblicos: Essas áreas são raramenteprotegidas, não apresentando, em geral, umaqualidade ecológica digna de nota (como, porexemplo, os Parques Costa Azul, das Esculturas

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e o Jardim dos Namorados). Enquanto algunsparques são extremamente pobres emcobertura vegetal, não possuindo também nadade excepcional em termos de qualidadeestética, e representam um papel significativona cena urbana, outros, preciosos em termosecológicos, não recebem qualquer tipo deprojeto ou intervenção. Como interpretar essacontradição?

A correlação entre riqueza e pobreza decertos bairros da cidade e o valor ecológico decertas áreas – classificadas como unidades deconservação – são fatores importantes para acompreensão dos processos de segregaçãosócio-espacial em Salvador, especialmente seanalisarmos a distribuição da renda dos chefesde domicílio, com foco naqueles de maior (acimade 20 salários mínimos – Fig. 5) e de menorpoder aquisitivo (até dois salários mínimos – Fig.6), que podem ajudar na tentativa de elucidaçãodesses processos.

Constata-se, em primeiro lugar, que ascamadas de baixa renda ocupam a maior parteda superfície da aglomeração, com exceçãodaquelas áreas l itorâneas banhadas peloOceano Atlântico, situadas na porção sudeste

e norte da península soteropolitana, onde seconcentram as camadas de maior renda. Osresponsáveis pelos domicíl ios mais ricosconcentram-se espacialmente na parte litorâneaatlântica sul e sudeste e em torno do Parquede Pituaçu. A repartição das classes de rendamais alta, incluindo as classes médias, coincideexatamente com a localização dos projetos maisrecentes de cr iação ou requalificação deparques públicos. Parques que passaram porprocessos recentes de reabilitação urbana comoos de Pituaçu ou da Cidade encontram-seimediatamente próximos aos bairrosconsiderados “nobres”.

Assim, fica evidente que projetos,programas e intervenções recentes foramrealizados em função de estratégias devalorização do solo urbano, em bairros commaior concentração de população de melhorpoder aquisitivo. Estas estratégias baseiam-seem um modelo ideal de cidade, onde a criaçãode espaços públicos, o “embelezamentourbano”, entre outros, constituem estratégiasde market ing urbano, de acordo com oparadigma de Barcelona. As opções de desenhourbano adotadas e a estética desses espaçosreforçam seu caráter mercadológico.

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A estratégia de promoção de umaimagem posit iva de Salvador através darevalorização de seus espaços públicos fazparte do rece ituário do planejamentoestratégico. Este modelo aposta na criação deholdings, consórcios ou empresas mistas paraexecutar ações de desenvolvimento urbano.Tanto a requalif icação como a adoção deespaços públicos por empresas pr ivadassegue a lógica da visibilidade e da expectativade retorno at ravés da propaganda e domarketing.

O problema é que esses programas nãoatendem, via de regra, as áreas periféricas dacidade, onde o abandono de parques e praçasé notório. É este exatamente o caso do Parquede São Bartolomeu, localizado no SubúrbioFerroviário, um remanescente de Mata Atlânticaque abriga a nascente do Rio do Cobre,considerado espaço sagrado para os praticantesdo Candomblé (SERPA, 1996; 1998). O estadode abandono, os assaltos freqüentes, odescaso e a ausência de políticas públicas parao parque inviabilizam os ritos do Candomblé,afastando seus praticantes do local.

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À guisa de conclusão: problemasambientais ou problemas éticos, políticos eeconômicos?

Retomando a questão colocadainicialmente, reafirma-se que os problemasambientais urbanos são, sobretudo, problemaséticos, políticos e econômicos, o que reafirmatambém o papel da Geografia no sentido dediscutir as relações sociedade-natureza em suasdimensões espaço-temporais, vendo a cidadee a metrópole como formações sócio-econômicasespecíficas.

A gestão desses problemas requeriniciativas de articulação intermunicipal e umacooperação interadministrativa eficiente, o quepressupõe governos municipais com autonomiade gestão. No Brasil, ainda são limitadas ascompetências locais e, na Região Metropolitanade Salvador, é evidente a confusão decompetências na gestão do espaçometropolitano. Grandes programas desaneamento e habitação popular são conjuntosde projetos articulados no âmbito estadual, comfinanciamento do Governo Federal, e executados

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no espaço metropolitano com pouca participaçãodas administrações municipais. Por outro lado,a terceirização dos serviços – como no caso dagestão dos resíduos sólidos ou na adoção deespaços públicos de natureza por empresasprivadas – pode inviabilizar o surgimento desoluções inovadoras.

O que está em jogo, portanto, é asustentabilidade política de programas de cunhosocial, econômico e ambiental, o que requerinovações político-administrativas para gerarmecanismos de part icipação cidadã ecooperação social entre os diferentes agentesprodutores de espaço, no contexto urbano emetropolitano.

E a Geografia certamente tem muito adizer e a propor nesse contexto! Em primeirolugar, por ser uma disciplina de síntese, não

podendo se permitir autonomizar quaisqueraspectos, sejam eles f ísicos ou humanos,ambientais ou culturais, políticos, econômicos ousociais. Em segundo lugar, porque, no caso do“ambiente urbano e metropolitano”, o discursoambiental acaba afastando-se muitas vezes daquestão central posta pelo “desenvolvimentoda sociedade urbana – a crise urbana –inventando o anti-urbano, criando a cidadedesumana” e, com isso, perdendo de vistatambém “o sent ido da obra do homem”(CARLOS, 1994, p. 75).

Trata-se, para a Geografia, de analisardialeticamente os problemas postos por umasociedade urbana que, ao longo da história, foihumanizando a natureza, construindo ereconstruindo o mundo material como extensãode si mesma, ampliando a própria naturezaorgânica dos seres humanos sobre o Planeta.

Notas

1 O texto, aqui apresentado com algumasmodificações, subsidiou a participação do autorcomo palestrante da mesa-redonda “Cidades eRegiões Metropolitanas: a Geografia frente aosproblemas ambientais urbanos”, no âmbito do XIISimpósio Brasileiro de Geografia Física Aplicada,realizado na Universidade Federal do Rio Grandedo Norte, entre 9 e 13 de Julho de 2007.

2 “No Brasil se repete muito que a ONU estabelecepara os centros urbanos, um mínimo de 16 m2de áreas verdes por habitante; já ouvimos o índicede 12 m2 apenas. Em colóquios com funcionáriosda ONU, ouvimos que até então a ONU jamaisestabelecera este patamar, que talvez tenha sidoa opinião pessoal de alguém da ONU que visitouo Brasil há duas décadas...” (YÁZIGI, 1994, p.89-90).

3 Os aterros são construídos em sistema de células,escavadas no solo como valas em formaretangular e recobertas posteriormente com umamanta de Polietileno de Alta Densidade (PEAD) ecamadas de argila, o que impede a contaminaçãodo solo pelo líquido percolado produzido pelo lixo,mais conhecido como “chorume”. O sistema demanta protetora e de condutores subterrâneosagiliza e direciona a coleta do chorume para

lagoas artificiais de tratamento, e posteriorliberação sem nenhum risco ao meio-ambiente.As células destinadas à disposição do lixo, ocupamgeralmente as cumeadas dos terrenos escolhidosem forma de platôs, sendo sempre recobertaspor novas camadas de argila para evitar aexposição do lixo e o conseqüente atrativo paraurubus, roedores e insetos. As áreas escolhidaspara a implantação dos aterros são sempresubmetidas a Estudos e Relatórios de ImpactosAmbientais (EIA-RIMA) promovidos pela Conder,apresentados posteriormente às comunidadesenvolvidas, analisados e aprovados peloConselho Estadual do Meio Ambiente (Cepram)(www.conder.ba.gov.br).

4 Para avaliação do valor ecológico foram utilizadosos seguintes indicadores: Importância do ecotoposobre funções particulares do sistema Þ presençade componentes chaves na manutenção dadinâmica do sistema, concorrendo para amanutenção do seu equilíbrio dinâmico;endemismo e valor biogeográfico Þ presença deespécies endêmicas, representativas do ambienteem termos da sua biogeografia;representatividade ecológica Þ presença de

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ecossistemas importantes comrepresentatividade geográfica, considerando-sea totalidade do sistema objeto da análise;raridade / unicidade Þ presença de espécies raras

e de sistemas raros, considerando-se áreasadjacentes e de influência direta; naturalidade Þpresença de ambientes onde as tipologiasvegetais aproximam-se do estado climático.

Bibliografia

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Trabalho enviado em fevereiro de 2008

Trabalho aceito em março de 2008

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