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A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS DOS TRABALHADORES NAS REGIÕES DE FRONTEIRA
Cristiane Batista Arrua Allgayer1 Adelson Luiz Correia2
RESUMO:
Este trabalho visa identificar os mecanismos e instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos do trabalhador fronteiriço e a forma como ocorre a implementação das normas protetivas e de aplicação das leis trabalhistas nas regiões de fronteira. Para a realização da pesquisa foi utilizado o método bibliográfico e documental, mediante revisão de textos e documentos, que inclui um estudo acerca dos trabalhadores das cidades gêmeas de Bela Vista e Bella Vista Norte, situadas entre Brasil e Paraguai, diante da ocorrência do efeito fronteira. Trata-se de pesquisa descritiva e exploratória, e o principal marco teórico adotado é a teoria de Francisco de Vitoria, relativa ao jus communicationis, que defende a livre circulação de pessoas no mundo como direito natural, de forma que a interação de um povo com os demais, fundamenta-se nas condições básicas que definem o processo de comunicação que são a racionalidade, universalidade, consenso e solidariedade. Verificou-se que a fronteira é um espaço povoado de contradições e similaridades, caracterizada por intensas relações sociais, econômicas e políticas que podem ocorrer tanto de forma pacífica quanto conflituosa, exigindo para seu estudo, compreensão interdisciplinar, diante de sua complexidade. Estando o trabalhador fronteiriço inserido nesse contexto, adquire definição legal e regime jurídico próprio que decorrem de sua condição especial de trabalhador que cruza a fronteira com habitualidade para exercer labor, mas que regressa ao país de origem. Diante da permanência habitual do trabalhador na referida região de fronteira e das interações ocorridas nesse espaço, diversas normas provenientes dos organismos internacionais emanam diretrizes de proteção dos direitos humanos e sociais.
Palavras-chave: fronteira, trabalhador fronteiriço, direitos humanos, cidades-gêmeas 1 INTRODUÇÃO
Este trabalho foi realizado a partir do interesse de identificar os mecanismos e os
instrumentos internacionais de proteção dos Direitos Humanos do trabalhador fronteiriço, bem
como as formas de implementação das normas protetivas e de aplicação das leis trabalhistas em
1 Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) 2 Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS),
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regiões de fronteira. A motivação central da investigação teórica veio do reconhecimento de que,
mais que marcos físicos que dividem a territorialidade das gentes, as fronteiras são marcos
simbólicos culturais e comportamentais.
O trabalho nas fronteiras ocorre sob o contexto dessas relações limítrofes e complexas.
Entre a legalidade e a ilegalidade, muitos trabalhadores têm em seu cotidiano o tráfego
fronteiriço como parte da rotina de trabalho. Residentes em um país e trabalhadores em outros,
vivem os lados do pertencimento e do “ser estrangeiros” de maneira repetida e natural. Contudo,
as relações de trabalho que desenvolvem vivem um diálogo constante entre a realidade de seu
país e a do que ingressa para trabalhar, muitas vezes conflitante, em que o sentido de uma
universalidade de direitos e deveres se mostra desejável para situações mais consistentes de
proteção laboral.
As violências e dificuldades que se constituem nas fronteiras a partir das relações de
trabalho são formadas a partir de uma cultura repetida de problemas migratórios associados ao
trabalho. Embora a maioria das ocorrências envolvam emigrantes, indivíduos que abandonam o
seu país para residir e trabalhar em outro, há aquelas que se inserem nas vivências cotidianas e
que apresentam um ambiente quase sempre de invisibilidade das relações fronteiriças. Desta
constatação, surgiu a necessidade de identificar quais os campos de valorização e dificuldade
aos Direitos Humanos nas relações fronteiriças de trabalho que envolvem o cotidiano de gentes
de nacionalidades distintas.
Como hipótese, o tecido teórico foi investigado para constatar ou refutar a alegação de
que as relações fronteiriças de trabalho cotidiano, com o trânsito de pessoas como parte das
rotinas diárias, representam uma faceta de invisibilidade e baixa representatividade dos Direitos
Humanos – contudo, são uma temática emergente em razão dos problemas e das espoliações que
podem se envolver em relações de trabalho e humanitárias conduzidas pelo desrespeito, a
desconsideração e a baixa responsividade legal-normativa.
Para esta finalidade, a metodologia adotada corresponde à classificação de Vergara
(1998), qualificada em descritiva quanto aos fins, porque visa descrever como ocorre o
fenômeno denominado efeito fronteira, no contexto das relações laborais do trabalhador
fronteiriço, orientado pela dimensão teórica de Francisco de Vitoria, sobre o jus
communicationis3, que defende a livre circulação das gentes pelo mundo como direito natural, e
3 Ius communicationis significa direito de comunicação com outros povos. Na perspectiva de Francisco de Vitoria, trata – se de uma espécie de direito universal que se constitui da inclinação humana de se ligar e experienciar contatos, vivências e contribuições com outros povos (HOBUSS; CARMO, 2017)
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bibliográfica e documental quanto aos meios, com a revisão de textos nacionais e internacionais
e de documentos pertinentes.
2 OS EFEITOS DA GLOBALIZAÇÃO E A FORMAÇÃO DE BLOCOS ECONÔMICOS NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO NA REGIÃO DE FRONTEIRA
A respeito das consequências da globalização para o direito do trabalho, Norris (1998)
destaca a expansão das hipóteses de relações laborais que envolvem mais de um ordenamento
jurídico, derivadas das migrações internacionais de trabalhadores e do desenvolvimento da
atividade internacional das empresas.
Pereira (2015, p. 27) afirma que:
A globalização ou mundialização, termo preferido pelos autores franceses, é considerada uma maneira, por meio de elementos econômicos e políticos (dentre outros), de “destruir as fronteiras” do Estado-Nação. Todavia, a globalização, apesar de seu conteúdo doutrinário, não tem conseguido o seu intento na práxis, ou seja, na efetividade do dia a dia.
Assiste-se, pois, à formação de blocos regionais como a União Europeia, o Tratado de
Livre Comércio da América do Norte, que reúne os Estados Unidos, o Canadá e o México, o
bloco informal do oriente, com os chamados Tigres Asiáticos e o Mercado Comum do Sul
(MERCOSUL), reunindo o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai, incluídos mais tarde
também, o Chile e a Bolívia. Na formação desses blocos, Barros (1997, p. 181) destaca que a
circulação dos trabalhadores compõe uma das etapas do processo de integração, que, numa
perspectiva do Direito, reflete cinco liberdades básicas, a saber:
[...] livre circulação de mercadorias sem fronteiras alfandegárias; circulação de capital,
que supõe uma moeda única; liberdade de concorrência, que submete todos os
produtores às mesmas regras jurídicas e encargos iguais; liberdade de estabelecimento,
que permite ao produtor instalar-se onde deseja, no próprio Estado ou em outros; a
produção como significando trabalho e liberdade de circulação de trabalhadores nos
limites do Estado ou fora deste.
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Embora a circulação de trabalhadores no decorrer do tempo venha sendo motivada,
dentre as várias razões, pela necessidade de colonizar, desejo de desbravar, interesse de povoar,
ou sonho de integrar, existe um território onde essa movimentação sempre se deu de maneira
menos perceptível, em razão da quase ausência de deslocamento espacial, porém, de modo muito
intenso, no que se refere às possibilidades de relacionamentos e entrelaçamentos de âmbito
formal e (ou) funcional. Esse território é a fronteira, espaço povoado de contradições e
similaridades, experiente nas relações sociais, econômicas, e políticas nem sempre pacíficas,
nem sempre conflituosas, que revelam um convívio, uma integração digna de estudo.
Na fronteira, em especial naquelas regiões onde se situam as “cidades-gêmeas4”,
desenvolvem-se comumente relações de trabalho onde o trabalhador de um país presta serviço
no outro e vice-versa, movimentando-se quase diariamente entre um e outro país, no
desempenho desse mister.
Os textos normativos nacionais e internacionais são o alicerce e sustentação para se
identificar o trabalhador que presta esse serviço e qual a proteção legal a ele destinada, bem
como que país detém a jurisdição para apreciar e julgar o conflito.
3 AS REGIÕES DE FRONTEIRA
Para a compreensão das regiões de fronteira, exige-se a percepção interdisciplinar
desta, tendo em vista a sua complexidade. Acerca da pluralidade cultural presente na convivência
dos povos nas regiões de fronteiras José de Souza Martins explica:
[...] é uma situação de convivência marcada pela pluralidade cultural e social e pelo estabelecimento de um espaço inteiramente novo na relação com o outro, ou seja, um espaço de afirmação e reconhecimento da diferença que dá sentido à existência dos diferentes povos (MARTINS, 2009, p. 26).
4 Cidades-gêmeas é um termo utilizado para identificar municípios que se localizam ao lado de outro que, por sua vez, é parte de outro país. O Brasil tem 32 cidades nessas condições, 7 delas no Mato Grosso do Sul, na faixa da fronteira Brasil-Paraguai. Bela Vista é uma delas, lado a lado com Bella Vista do Norte, no Paraguai.
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Em razão da grande diversidade e da luta pelo reconhecimento dos povos que vivem
na fronteira, essa se caracteriza como uma região de conflitos, disputas de poder em um contexto
de expansão capitalista como bem diz ainda José de Souza Martins:
[...] a fronteira tem um caráter litúrgico e sacrifical, porque nela o outro é degradado para, desse modo, viabilizar a existência de quem o domina, subjuga e explora. [...] é na fronteira que encontramos o humano no seu limite histórico (MARTINS, 2009, p. 11).
Nessa perspectiva de conflito, a fronteira tem sua representação negativa
potencializada com a influência da mídia no imaginário popular, pois divulga a fronteira como
um local de perigo, ilegalidade e violência, sendo descrita como “terra de ninguém”
(ALBUQUERQUE, 2010, p. 38)
A fronteira é lugar de intensa articulação, informação, comunicação, interatividade
com complementaridades variadas e dinâmicas, sendo um conceito mutável e flexível. Tanto
que também a sua dinâmica específica (da fronteira) pode ser chamada de efeito-fronteira ou
confundir-se com ele.
Para Lamberti e Oliveira (2008), a descrição da fronteira não só pode ser limite que
separa duas nações, colocando em evidência as identidades, mas também algo que dilui
processos, por indicar um espaço de tangência e, por isso, de potenciais identificações e
possibilidades sociais, culturais, econômicas e políticas.
Ocorre que, na atualidade a fronteira não perdeu a função política, relacionada à defesa
da soberania, delimitadora de territórios nacionais e seus sistemas regulatórios. De fato, o termo
fronteira não apenas se refere a uma região (zona) ou faixa, mas também ao limite internacional
com o qual, não raro, é confundida.
De acordo com Steiman e Machado (2002), a fronteira é caracterizada como espaço de
interações, contatos e fluxos sociais, econômicos e culturais, movidos por diferenças, através do
limite internacional. Por sua vez, a faixa de fronteira brasileira, conforme Lei n. 6.634/1979, (art.
1º: faixa paralela à linha divisória terrestre do território nacional), é legalmente delimitada para
atender ao poder do Estado.
3.1 A DINÂMICA DO EFEITO-FRONTEIRA
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O efeito fronteira é um fenômeno ligado às interações fronteiriças, que pode ocorrer
nas áreas econômicas, mediante atividades lícitas e ilícitas, sociais, trabalhistas, jurídicas,
culturais, políticas, etc. Trata-se de efeito causado “pela fronteira (faixa, zona ou limite) sobre a
sociedade e espaço” (MARTINS, 2010, p. 239), havendo necessidade de que “a investigação
científica leve ao enfrentamento de sua complexidade...o cotidiano (a fronteira como lugar e
local) em um raciocínio multiescalar e contextualizador” (MARTINS, 2010, p. 239).
Os efeitos da proximidade na fronteira entre dois ou mais países (efeito-fronteira)
podem afetar seus habitantes, não necessariamente apenas os que moram na zona fronteiriça,
mas também quem mora a quilômetros de distância da citada região, diante de instituições,
práticas, sujeitos e modos de vida particulares e específicos da zona de fronteira. Por exemplo,
o deslocamento de brasileiros de Campo Grande/MS para fazer compras em Pedro Juan
Caballero/PY, divisa com Ponta Porã/MS.
Por outro lado, difícil falar-se em fronteira e efeito-fronteira sem observar que ambos
se relacionam, ainda que de forma não absoluta, à questão da legalidade e da ilegalidade em
geral, além da trabalhista, principalmente para fins deste estudo.
A legalidade na região de fronteira ocorre na maioria das relações econômicas,
jurídicas, tributárias e sociais: compra e venda de produtos, com recolhimento de tributos,
circulação de pessoas por meio da obtenção de vistos, relações trabalhistas dentro da legislação
etc. Todavia, as relações de circulação de mercadorias, bens e pessoas, podem acontecer
mediante situações de ilegalidade, como o contrabando de produtos, o tráfico internacional de
drogas e armas, ou o tráfico internacional de pessoas, inclusive na modalidade de trabalho
escravo (trabalho com redução à condição análoga à de escravo).
Diante dessas proposições, pode-se considerar, como conceito de efeito-fronteira, o de
ser a repercussão própria da existência da fronteira, em diversos tipos de atividades e ações
(lícitas ou ilícitas) das pessoas, empresas e instituições, a partir de costumes e identidades
específicas do (e no) território fronteiriço.
Lopes (2009, p. 350) defende que “aos fronteiriços é atribuído um regime especial
porque vivem em uma região de jurisdições divididas, ou sobrepostas: uma zona de transição
entre duas realidades nacionais”. Vale dizer que os trabalhadores fronteiriços moram em uma
cidade de um país e trabalham em outro país, em cidade contígua à de residência.
São grandes problemas, na região citada, desde a enorme informalidade, passando pela
negação aos trabalhadores de seus direitos trabalhistas e previdenciários, até chegar a sérios e
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intrincados problemas de Direitos Humanos Trabalhistas, tais como: trabalho escravo, trabalho
infantil, discriminação no trabalho, desrespeito à saúde e ao meio ambiente e toda sorte de
“condições degradantes de trabalho”.
4 CONCEITO DE TRABALHADOR FRONTEIRIÇO NA NOVA LEI DE MIGRAÇÃO BRASILEIRA (LEI Nº 13.445, DE 24/05/2017)
A nova normativa migratória no país, a Lei 13.445, de 24 de maio de 20175, que adota
como marco os direitos humanos em substituição à segurança nacional, dispõe sobre os direitos
e deveres do migrante e do visitante, regula sua entrada e estada no país e refere-se ao residente
fronteiriço no artigo 23 e seguintes, prescrevendo que poderá ser concedida autorização para o
residente fronteiriço para realização dos atos da vida civil, a fim de facilitar a sua livre circulação.
A mudança é latente na nova legislação, sendo que agora passa-se a contemplar a livre
circulação de pessoas, estando o trabalho incluído no termo “realização dos atos da vida civil”
de forma implícita. Mas, no parágrafo único abre a possibilidade de que condições específicas
poderão ser estabelecidas em regulamento ou tratado.
Já o trabalhador migrante é definido na Convenção nº 97 da Organização Internacional
do Trabalho, ora em diante denominada de OIT, que foi recepcionada pelo Brasil através do
Decreto Legislativo nº 20/65 e promulgada através do Decreto nº 58.819/66, no seu artigo 11.1,
in verbis:
[...] para os fins da presente convenção, o termo ‘trabalhador migrante’ designa uma pessoa que emigra de um país para outro com vista a ocupar um emprego que não seja por sua conta própria; inclui todas as pessoas admitidas regularmente na qualidade de trabalhador migrante.
Por essa convenção, pode-se compreender o trabalhador fronteiriço como uma espécie
de trabalhador que está contida na definição de trabalhador migrante, porém, não se aplica a
Convenção 97 ao trabalhador fronteiriço.
5 No dia 24 de maio de 2017 foi sancionada, com vetos, a nova Lei de Migração, proposta através do Projeto de Lei PLS 288/2013, pelo senador Aloysio Nunes Ferreira, que dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante. Disponível em: http://www.politize.com.br/nova-lei-de-migracao/#top. Acesso em 13/08/2017.
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Por sua feita, a Convenção n.143, de 4 de junho de 1975, privilegia que ocorra a
regularização do trabalhador em condições ilegais (não afastando a sua aplicação ao trabalhador
fronteiriço), estabelecendo punições para os traficantes de mão de obra e para os empregadores
de mão de obra escrava (PEREIRA, 2015, p. 65 a 66).
4.1 CONCEITO DE TRABALHADOR FRONTEIRIÇO NA NORMA INTERNACIONAL
Um dos conceitos formulados para orientar a aplicação do Tratado de Roma diz que
trabalhador fronteiriço é o trabalhador assalariado ou não assalariado que exerce a sua atividade
em um estado membro diferente daquele onde reside, regressando a este último pelo menos uma
vez por semana. Embora não tenha sido ratificada pelo Brasil, a Convenção de Nova Iorque
define com propriedade trabalhador fronteiriço como consta em seu art. 2º, 2, “a”, como “o
trabalhador migrante que conserva a sua residência habitual num Estado vizinho a que regressa,
em princípio, todos os dias ou, pelo menos, uma vez por semana”. Quanto ao termo “trabalhador
migrante”, a mesma Convenção, em seu art. 2º, 1, conceitua como “pessoa que vai exercer,
exerce ou exerceu uma atividade remunerada num Estado de que não é nacional”
(CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE, Resolução 45/158 da Assembleia Geral da ONU em
18 de dezembro de 1990, online).
Nas definições de trabalhador migrante não há referência à localização geográfica do
país de origem do trabalhador e nem de sua residência habitual. Dessa forma, embora evidente
a diferenciação conceitual entre as duas figuras de trabalhadores que estão sendo tratadas, no
plano internacional, pode-se afirmar que um trabalhador fronteiriço é um tipo de trabalhador
migrante, ou seja, o trabalhador migrante constitui um gênero, do qual trabalhador fronteiriço é
uma espécie.
5 DIREITOS HUMANOS E A QUESTÃO DAS VULNERABILIDADES DOS TRABALHADORES NAS REGIÕES DE FRONTEIRA
Em uma reportagem do ano de 2016, uma rede brasileira contra o trabalho infantil
discutiu a grave condição de exploração da mão-de-obra infantil ocorrida na tríplice fronteira
formada pela cidade brasileira de Foz do Iguaçu, pela paraguaia Ciudad del Este e pela argentina
Puerto Iguaçu. Como ponto de comércio, essa fronteira representa a maior zona de comércio da
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América Latina e nela, o trabalho infantil é utilizado para o transporte de contrabando pelo rio
ou a pé. Os menores são colocados como o eixo mais vulnerável da questão, mas a matéria
também destaca que os trabalhadores dessa zona se envolvem diariamente em uma construção
e reconstrução de suas identidades e valorização, em relações que são tão voláteis quanto a água
que corre em um rio: pode parecer estável, mas nunca é a mesma. Junto à subremuneração
frequente entre adultos e a adesão a atividades de tráfico e contrabando, jovens e adolescentes
transitam diariamente entre um lado e outro como sujeitos sem identidade fixa, que não seu
interesse de sobrevivência. Na década de 1980, a estimativa era de que pelo menos 43% da
população local trabalhava com o comércio irregular. Atualmente, sabe-se que a problemática
avança, a partir da exploração sexual e da negativa de direitos e proteção trabalhista em
atividades que, quando não ilegais, não oferecem qualquer proteção aos indivíduos no ambiente
trabalhista (GARCIA, 2016).
A ausência de normas sobre a permanência dos indivíduos fora de seu país para o
trabalho é um dos estímulos aos problemas que atingem as relações de trabalho. Jayme (2005)
afirma que a condição à margem da lei expõe migrantes à exploração, subremuneração e abusos
que podem dificultar o acesso mesmo a serviços fundamentais e garantias nos países nos quais
contribuem como força de trabalho. A procura por apoio nos casos de necessidade por esses
indivíduos, em embaixadas e recursos formais, ocorre apenas em casos extremos pelo temor de
ter de retornar ao país de origem. No entanto, por poder de ação legal, o que vigora é que haja
um atendimento mínimo de proteção aos trabalhadores, quer formais ou não.
Outra vulnerabilidade que os migrantes trabalhadores sofrem – e isso também ocorre
nos casos de trabalho nas fronteiras - a frequente restrição de direitos que ocorre principalmente
com as prisões de ilegais6 pelo mundo, para que fiquem detidos até seu retorno ao país de origem.
No caso específico das fronteiras, em que muitos dos trabalhos envolvidos são também ilegais
nas normas de um ou ambos os países, esse problema é um agravante. É reconhecido o poder-
dever de punir crimes que pertence ao Estado, da mesma forma que a proporcionalidade na
restrição de direitos dentre os países signatários das convenções que orientam os Direitos
Humanos no tratamento dos migrantes. Mas não são raros os casos de prisões que duram longo
tempo decorrentes de migração denominada por vezes de ilegal, em uma frequente restrição à
liberdade e segurança pessoal dos migrantes trabalhadores (CORTE INTERAMERICANA DE
DERECHOS HUMANOS, 1994; 1999).
6 Termo inapropriado para fazer referência aos migrantes em condições de irregularidade dos documentos, considerando-se ser mais apropriado o termo “migrantes indocumentados”.
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São situações frequentes que expõem a necessidade de proteção e assistência às
diversas condições e motivações migratórias a trabalho.
Nesse interesse pesa, segundo Jubilut e Apolinário (2010), a efetividade do Direito
Internacional dos Direitos Humanos como norte de abordagem, eficaz inclusive nos casos que
podem ser assistidos ou previstos internacionalmente. Independentemente da zona territorial em
que se localizam, essas faixas de trabalho e trânsito compartilham dessa ideia geral das cidades-
gêmeas e as desigualdades que surgem de suas relações formam a trama pouco tratada dos riscos
e problemas das relações de trabalho pouco protegidas, conhecidas e investigadas em seus
espaços de migração temporária (no trabalho, para o trabalho, apenas durante o trabalho). São
relações problemáticas que rompem com vínculos de expectativa de cordialidade e de
reciprocidade comunitários humanos, que foram amplamente trabalhados por Francisco de
Vitoria e que se apresentam como algumas das zonas de emergente trabalho dos Direitos
Humanos.
6 O DIREITO À LIVRE CIRCULAÇÃO DAS GENTES NA CONCEPÇÃO DE FRANCISCO DE VITORIA
A filosofia de Francisco de Vitória fala de uma acolhida cordial como reciprocidade
natural pela integração à comunidade das gentes. Logo, um direito natural. Essa acolhida não
significa apenas receber em moradia e não oferecer violência direta. Envolve acolher
amplamente o outro que chega, o estrangeiro, permanente ou não, como um indivíduo que é
destinatário de direitos e deveres, um igual diferenciado por sua identidade de nascimento – seu
viver, seu existir, seu trabalhar. Tudo deve ser igualmente amparado. É dessa forma pois, “com
efeito, em meio a todos os povos se por desumano que, sem nenhuma causa especial, hóspedes
e peregrinos sejam mal recebidos. [...] é humano e civilizado tratar bem os hóspedes”
(VITÓRIA, 2014, p. 34).
As relações de exploração nas fronteiras encontram analogia no pensamento de Vitória
(1946), quando trata dos povos submissos e dominados como reconhecidos e merecedores de
direitos e proteção. No período em que Vitória realizou essas colocações, os indígenas eram os
titulares de suas reflexões, mas atualmente esses sujeitos podem ser representados como os
povos que se colocam em vulnerabilidade nas relações migratórias – inclusive as gentes
envolvidas nas relações fronteiriças cotidianas que vivenciam supressões expressivas de seus
direitos, espaços e trabalho.
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7 MECANISMOS E INSTRUMENTOS DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL
A vinculação dos Direitos Humanos ao trabalho nas fronteiras é ligada à compreensão
de cidadania e de liberdade humana. As diversas práticas que ocorrem nas fronteiras, inclusive
o trabalho, são expressões e maneiras do homem ser e viver no mundo – selecionadas a partir de
sua liberdade de atuação e que se inscrevem nos espaços entre os Estados, sua soberania e o
reconhecimento do valor humano frente a todos estes fatores. Assim, ainda que as relações de
espoliação e frequentes rupturas de direitos fronteiriços sejam frequentes, os Direitos Humanos
atuam na oferta de proteção ao ser humano, à sua mobilidade segura nos casos migratórios e ao
respeito a seus direitos como trabalhador, no caso das relações de trabalho (VENTURA, 2017).
Assim, uma das primeiras frentes de proteção aos trabalhadores se dá a partir da
acolhida de pactos, convenções e tratados sobre a temática do trabalho inserida na pauta
humanitária. A adesão a estes princípios a partir de uma rede de exemplo (e coação política e
social) internacional é a primeira das formas de conexão mundial a um tratamento mais
equitativo das questões de trabalho (Comparato, 2015), mesmo em zonas problemáticas como
as fronteiras. Ainda que a adesão a estes documentos não seja obrigatória, a recusa sistemática
de um país a estas integrações pode levar a exclusões e dificuldades em suas relações
internacionais.
Alguns exemplos de pactos mundiais que refletem nas relações de trabalho e em sua
preservação no campo das fronteiras são o Protocolo de Palermo, a Convenção 97 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1975 e o Acordo sobre Residência para
Nacionais dos Estados-Partes do Mercosul, Bolívia e Chile, do ano de 2002 (ratificado em 2005).
Há ainda, como exemplo, a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1990 que
se volta aos trabalhadores migrantes e familiares, assim como a Convenção 143 da OIT, que
trata da proteção contra abusos e garantia de igualdade e oportunidades aos trabalhadores
migrantes (COMPARATO, 2015; LACERDA, 2014).
Outros instrumentos importantes são as Convenções n. 29 e 105 da OIT, que atuam na
proibição de trabalho forçado, algo que muitas vezes pode ser identificado nas linhas fronteiriças.
Sobre o trabalho infantil, um agravante especialmente na tríplice fronteira sul-americana, a OIT
desenvolveu duas convenções, respectivamente 138 e 182, voltadas à proibição deste tipo de
trabalho. Em busca da igualdade e de ofertas paritárias de desenvolvimento e renda, a OIT
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empreendeu as convenções n. 100 e 111, bem como 87 e 98, orientadas à proibição de
discriminações no trabalho e na profissão. Direta ou indiretamente, a ONU também se relaciona
aos instrumentos que atuam nesta proteção, na forma da Declaração Universal dos Direitos
Humanos; na Carta das Nações Unidas, que reitera conteúdos de respeito e paridade
humanitários. Especificamente às políticas sociais e empresas, existe a Declaração Tripartite e
Princípios sobre as Empresas Multinacionais e Políticas sociais e a fundamental Declaração
Relativa aos Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, esta última da OIT, dentre outros.
O artigo 4º da Declaração Sócio - Laboral do Mercosul, observa que o trabalhador
fronteiriço pertencente ao bloco econômico tem tratamento privilegiado, necessitando para o
ingresso no Estado – membro portar documento de identificação, podendo obter no Brasil a
Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), dispondo desta forma de todos os direitos de
trabalhador nacional.
Comparato (2015) observa que os Direitos Humanos, por sua representatividade, são
limitadores da ação estatal frente a abusos e danos gerados às vítimas. Isso se aplica no caso das
migrações a trabalho e mesmo entre países que não sejam envolvidos nesses tratados na
ocorrência de rupturas significativas que atinjam a esses direitos. É um reconhecimento
fundamentado na complexidade das migrações a trabalho e das relações que a cercam.
Sabe-se que o trabalho nessas zonas de fronteira é revestido de paradigmas de
ilegalidade e de um ambiente em que, em muitos casos, a vida e a valorização do trabalhador
são relegados a nenhuma atenção. Ao mesmo tempo, muitos dos países que vivenciam esses
dilemas de reconhecimento e conflitos de trabalho fronteiriços persistem na alimentação de
políticas de regularização de entraves burocráticos e jurídicos para formar uma teia responsiva
ao trabalho.
A efetivação destes instrumentos é dada a partir do reconhecimento da personalidade
subsidiária da jurisdição internacional. O enfoque desta pesquisa recai sobre esta condição, pois,
é a partir dela que são apresentadas as cláusulas de compatibilização que podem ser asseveradas
pelas constituições dos Estados para fazer as adesões e conversões necessárias à
responsabilidade humanitária. É dessa maneira que os Direitos Humanos instrumentalizam a sua
proteção aos direitos dos trabalhadores nas fronteiras – e aos direitos em geral aos quais se
voltam. Embora facultativos, a adoção da prática com natureza subsidiária conduz a essa cada
vez maior uniformização de medidas e orientações e reforçam a pulsão global de adesão –
fomentando a uniformidade de proteção. O poder de coesão é fortalecido a cada nova adesão e
com isso, a universalização destes direitos avança (OLIVEIRA, 2006; PROVOST, 2002).
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Todos os anos, a Comissão Interamericana e seus sete membros desenvolvem um
relatório que trata dos principais pontos em aberto para a atuação e consolidação dos Direitos
Humanos em uma perspectiva global. O relatório não é apenas um levantamento, mas também
é um recurso em que é possível identificar os gargalos de cumprimento e estruturar estratégias.
Esta comissão é um caminho de representatividade e atuação dos Direitos Humanos no trabalho
nas fronteiras a partir da representatividade, com as petições possíveis, sendo colocadas em
pautas aquelas que evidenciem situações em que as medidas internas não tenham sido suficientes
para resolver o problema, não exista atenção internacional adicional sobre o problema na forma
de outro procedimento de mitigação em andamento e haja identificação suficiente dos elementos
que integram a petição, quando não forem Estados, dentre outras exigências. Essas petições
devem evidenciar as violações, serem procedentes e fundamentadas, inéditas e consistentemente
apresentadas. Isso faz com que, signatário ou não de pactos, haja a acusação do Estado
responsável por transgressão e seja concedido prazo de 180 dias para a contestação ou não dos
fatos, prazo que pode ser maior, conforme a necessidade. Uma vez respondida, a comissão parte
em investigação e procura inicialmente um acordo amigável, e se todas as medidas não
oferecerem resolução, é feito um relatório com conclusões e demais recomendações sobre o
caso, com prazos de resolução e este relatório não pode ser divulgado. Se a questão não for
mitigada em três meses e a violação persistir, o caso é enviado à Corte Interamericana e o
relatório é publicado, com sanção ao Estado renitente (CANÇADO TRINDADE, 1993;
PIOVESAN, 1997).
Assim, embora não haja jurisdição internacional apresentada compulsoriamente, este
esquema tem se apresentado como uma das medidas de evolução constante das relações
humanitárias globais.
8 CIDADES GÊMEAS: BELA VISTA/BRASIL E BELA VISTA NORTE/PARAGUAI DIANTE DO EFEITO FRONTEIRA
A beligerância das relações entre Brasil e Paraguai é histórica, especialmente
concentradas nas regiões territoriais. Os conflitos entre os países formaram uma cultura que
acolhe o convívio, mas que se envolve ainda com uma frequente marca de disputa e
inconformismos históricos. Com isso, as gentes do país de menor porte (Paraguai) muitas vezes
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terminam sendo desconsideradas em seu valor e representatividade nos momentos em que
colidem com as gentes do país de maior porte (Brasil)7.
A entrada no país para o aproveitamento das condições e ambiente de trabalho por
brasileiros termina sendo também uma ruptura com o já precário equilíbrio de emprego e renda
paraguaio, que força a retração e as condições disponíveis para a população do país que recebe
esses trabalhadores brasileiros. Há uma desterritorialização que se expressa na marginalização
do emprego e renda em condições subumanas de vida pelos paraguaios de Bella Vista do Norte,
com a supressão de direitos e acessos que conduz a rupturas importantes que se iniciam nas
negações das atividades produtivas. Como observou Costa (2004, p. 372):
O grande dilema do novo século [este que vivemos] será o da desigualdade entre as múltiplas velocidades, ritmos e níveis de desterritorialização, especialmente [...] a massa de aglomerados crescentes de pessoas que vivem na mais precária territorialização, ou em outras palavras, [...] na mais violenta exclusão e/ou reclusão socioespacial.
Nessa situação de dilema, o tráfego de brasileiros para o país estrangeiro próximo para
o trabalho é uma realidade distante das relações entre as cidades-gêmeas em questão, cujo
tráfego é inverso. No caso dos brasileiros, a atenção consular a estes indivíduos não é paritária e
há pouco conhecimento formal sobre quanto são, quem são e em quais atividades trabalham –
situações estas que fomentam a ilegalidade. Brasileiros no Paraguai são tratados, muitas vezes,
na forma de uma segunda classe de brasileiros que vivem ou trabalham no exterior, vistos de
modo subalternizado por sua condição – ainda que sejam um dos mais expressivos volumes de
cidadãos nacionais fora do Brasil. Quando são vítimas de espoliações de trabalho ou territoriais,
é reconhecida a pouca atenção ou desinteresse de intervenção pública para o seu atendimento,
da mesma forma que existem poucas políticas públicas para responder a suas necessidades
(CHAMPAGNE, 1997; LAINO, 1979).
7 Aqui é importante adicionar um dado cultural: muitos trabalhadores paraguaios quando tentam ingressar no Brasil para desenvolver suas atividades, recebem remunerações mais baixas ou são pouco reconhecidos em suas funções. Há uma espécie de paradigma negativo cultural, fortalecido pelo termo pejorativo “cavalo paraguaio” (que começariam o trabalho com ânimo, mas o perderiam rápido, sinônimo de desempenho decrescente ou indisposição para o trabalho continuado), utilizado para identificar esses trabalhadores – um léxico sobre o qual tem sido desenvolvido um trabalho de retirada e reflexão, a fim de evitar a segregação. Mesmo no futebol essa gíria é localmente utilizada para identificar o time que inicia um campeonato como favorito, mas perde em sequência, decaindo significativamente.
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No caso dos paraguaios no país, as situações de pouca atenção são igualmente precárias
ou ainda mais graves, com o risco frequente de escravidão ou exploração do trabalho.
Enquanto os estudos de expectativa não são desenvolvidos, o interesse internacional
sobre esses espaços – que foram ilustrados mais pontualmente no caso das cidades-gêmeas Bela
Vista (MS) e Bella Vista do Norte (PY), com o olhar dos entes dos Direitos Humanos a partir
da perspectiva de Debray (2010), para quem as fronteiras não são vistas como zonas de abjeção
ou de exclusão, mas sim como espaços voltados ao reforço e à integração das identidades
coletivas. Para isso, contudo, é preciso resgatar a salubridade dos fenômenos fronteiriços.
As dificuldades de estabelecimento de relações de trabalho salubres são reconhecidas
para os dois lados, mas acentuadas em Bella Vista do Norte. A fala de Montenegro e Béliveau
(2006) permite associar a condição constante de margeio no trabalho aos quais os munícipes
paraguaios são colocados, que os conduz à tentativas e rupturas diárias da fronteira em busca de
ocupação e renda.
A intensificação da carência de oportunidades no lado paraguaio, o fluxo fácil de
brasileiros igualmente carentes e também interessados em trabalho quando existe, posiciona os
grupos que controlam o mercado daquele país em um confortável lugar de concentração das
contratações e manejo de espoliações. Essa situação é especialmente mais desafiadora à
preservação de garantias e direitos quando vinda de comerciantes que derivam de países em que
condições de trabalho precárias e baixos pagamentos são culturalmente presentes, caso da China,
por exemplo, que vive o desafio mundial da superação deste quadro.
A densidade desses problemas e a sua intensidade de manifestação, com a formação de
uma situação paralela às legislações de trabalho dos dois países e conduzidas pela máxima da
oferta e da procura dos postos de trabalho refletem uma percepção das fronteiras. Essas zonas-
limite costumam agravar os problemas que existem em seus entornos, somando as realidades
dos países os quais separa.
O quadro foi descrito por Brasil (2005, p. 152), quando relatou que essas zonas
condensam “[...] os problemas característicos da fronteira, que aí adquirem maior densidade,
com efeitos diretos sobre o desenvolvimento regional e a cidadania”. Continuou o documento
relatando, em mesma página, que: “por esses motivos é que as cidades-gêmeas devem constituir-
se em um dos alvos prioritários das políticas públicas para a zona de fronteira”.
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Atualmente, bem como no futuro, não mais se poderá continuar a insistir na
preservação dos mercados de trabalho para os nacionais e no fechamento das fronteiras para os
trabalhadores vindos de outros países.
Em consequência da globalização e do surgimento de modernas tecnologias, o
consumismo caminha a passos largos, e passou-se a produzir em série, diante de um mercado
mundial caracterizado pela exigência crescente de maior especialidade dos profissionais, mais
agilidade e mais qualidade no fornecimento de produtos e serviços, com impactos profundos em
todos os setores da economia, política e vida privada. Aliado a esses fatores, as facilidades de
deslocamentos e o espírito naturalmente aventureiro do ser humano, propicia a busca de novas
oportunidades.
Nem sempre os trabalhadores migram movidos pelo desejo de habitar novas terras, mas
também por interesses de conseguir um trabalho, auferir melhores rendimentos ou compelidos
por necessidades do empregador, quase sempre um grupo de empresas ou multinacionais, que
enviam o empregado para outros países nesse contexto.
Apesar da existência de diversos Tratados e Convenções Internacionais destinados à
proteção dos direitos humanos da pessoa migrante, que alcança igualmente o trabalhador nas
regiões de fronteira, o maior obstáculo e desafio à implementação dessa legislação protetiva é o
grande desconhecimento por parte dos trabalhadores e empregadores fronteiriços, de seus
direitos e obrigações, a existência da discriminação do trabalho fronteiriço, a par do trânsito de
trabalhadores na fronteira, sem documentos em geral, e, sem carteira de trabalho em especial e,
também o perfil socioeconômico e o educacional do trabalhador fronteiriço, aliados à falta de
formação profissional (o que também não é privilégio desta região de fronteira, e sim
característica, em diferentes graus, de outras áreas brasileiras e paraguaias).
O trabalho nos espaços de fronteira é agravado pelas condições de influência social,
cultural e global que ocorrem nesses ambientes, decorrentes das relações entre os países. Aqueles
de maior estrutura desenvolvem uma espécie de dominação sobre os de menor estrutura, que em
geral são usualmente campo das situações mais agravantes de espoliação no trabalho. No campo
brasileiro, por exemplo, o trabalho infantil, a exploração sexual e o contrabando são algumas das
temáticas fronteiriças significativas.
Os principais mecanismos e instrumentos internacionais de proteção aos Direitos
Humanos do trabalhador fronteiriço identificados neste estudo foram os Tratados e Convenções
internacionais que são acolhidos pelas constituições dos países, a partir de um movimento de
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subsidiariedade da jurisdição internacional. As formas de implementação de normas protetivas
e de aplicação das leis trabalhistas decorrem da incorporação constitucional desses fatores
universalmente difusos de atenção ao trabalho e da consideração e representatividade do trabalho
nas fronteiras como temática emergente. Na não resolutividade das questões, o recurso à
comissão específica de relatorização anual é uma forma de evocar o poder de coação sobre a
questão e de estimular a atenção trabalhista nestas zonas problemáticas.
No caso das cidades gêmeas de Bela Vista (Mato Grosso do Sul, Brasil) e Bella Vista
Norte (Amambay, PY) há uma situação de precariedade do mercado de trabalho, que se constata
em grande parte do país vizinho – com sub-remunerações e dificuldades de estabelecimento para
além das faixas consolidadas pelo comércio. O interesse de ingresso nos espaços brasileiros para
trabalho, em idas e vindas diárias, ou mesmo a possibilidade da fixação definitiva no país vizinho
são campos de interesse dos moradores da cidade gêmea de menor desenvolvimento e também
razões principais da vulnerabilidade à exploração e supressão de direitos e garantias no campo
do trabalho.
Políticas públicas especificamente dirigidas à faixa de fronteira brasileira poderiam
adotar um marco regulatório único para as cidades-gêmeas no que se refere à mobilidade do
trabalho. Além de dificultar tratamento abusivo da mão de obra por parte de autoridades e
empresários nos dois lados da linha de fronteira, instituiria uma forma de controle e
aproveitamento mais eficaz da mobilidade do trabalho.
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