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1 Cindy Sherman é legião: arte contemporânea e produção de subjetividade Roberta Stubs Parpinelli 1 , Fernando Silva Teixeira Filho 2 A partir da perspectiva pós-feminista de que é preciso inventar outras figurações para o feminino, a proposta deste artigo é refletir sobre a produção artística de Cindy Sherman e perceber como a obra desta artista questiona e abala as tecnologias de gênero que incidem sobre o corpo feminino, e, ao fazer isso, produz linhas de subjetivação que lançam para outros territórios nosso entendimento sobre o corpo, os papéis de gênero e a identidade. Numa aproximação entre arte contemporânea e a postura inventiva de autoras pós-feministas como Rosi Braidotti, Beatriz Preciado e Donna Haraway, apostamos na necessidade de inserir e recuperar a inventividade dentro do feminismo, dentro da filosofia, da academia e, finalmente, dentro de nossas próprias práticas enquanto pessoas situadas num tempo no qual inventar novos e outros modos de ser, estar e desejar é bem mais valioso do que reproduzir valores e práticas já caducas. Em consonância com um paradigma ético-estético-político de pensamento, numa perspectiva pós-identitária e investindo em subjetividades estéticas, a ideia é perceber como a obra dessa artista opera uma re-significação de práticas e pensamentos pela via da criação de outros modos de pensar, agir e significar as relações de gênero, o feminino, o corpo e as relações sociais. Palavras Chaves: pós-identidade; subjetividade estética; pós-feminismo; arte contemporânea A partir da perspectiva pós-feminista 3 de que é preciso inventar outras figurações para o feminino, a proposta deste artigo é refletir sobre a produção artística de Cindy Sherman para perceber como a obra desta artista contemporânea questiona e abala os estereótipos que temos sobre o feminino, e, ao fazer isso, produz linhas de subjetivação que lançam para outros territórios nosso entendimento sobre o corpo, os papéis de gênero e a identidade feminina. Cindy Sherman é uma expressiva artista contemporânea que utiliza o próprio corpo para desconstruir a fixidez da identidade ao explorar outras figurações para o feminino. Cindy Sherman é uma fotógrafa e diretora de cinema americana nascida em 1954 que vive atualmente em Nova Iorque. Sua produção tem como características auto-retratos nos quais ela questiona o papel e o modo como as mulheres são 1 Artista Visual, Psicóloga e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unesp-Assis. Bolsista FAPESP. Link para portifólio - www.lixoinprocess.blogspot.com. 2 Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unesp de Assis 3 A terminologia pós-feminismo se refere a uma espécie de re-significação do próprio feminismo a partir das reflexões, principalmente, do pós-estruturalismo no que tange às discussões sobre a diferença e à necessária desconstrução de uma concepção identitária e universal de sujeito. Neste sentido, o pós-feminismo significa uma reflexão acerca de armadilhas identitárias e generalizantes que acometem o próprio feminismo e acaba por reforçar o binarismo de gênero que classifica e separa o masculino do feminino.

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Cindy Sherman é legião: arte contemporânea e produção de subjetividade

Roberta Stubs Parpinelli1, Fernando Silva Teixeira Filho2

A partir da perspectiva pós-feminista de que é preciso inventar outras figurações para o feminino, a proposta deste artigo é refletir sobre a produção artística de Cindy Sherman e perceber como a obra desta artista questiona e abala as tecnologias de gênero que incidem sobre o corpo feminino, e, ao fazer isso, produz linhas de subjetivação que lançam para outros territórios nosso entendimento sobre o corpo, os papéis de gênero e a identidade. Numa aproximação entre arte contemporânea e a postura inventiva de autoras pós-feministas como Rosi Braidotti, Beatriz Preciado e Donna Haraway, apostamos na necessidade de inserir e recuperar a inventividade dentro do feminismo, dentro da filosofia, da academia e, finalmente, dentro de nossas próprias práticas enquanto pessoas situadas num tempo no qual inventar novos e outros modos de ser, estar e desejar é bem mais valioso do que reproduzir valores e práticas já caducas. Em consonância com um paradigma ético-estético-político de pensamento, numa perspectiva pós-identitária e investindo em subjetividades estéticas, a ideia é perceber como a obra dessa artista opera uma re-significação de práticas e pensamentos pela via da criação de outros modos de pensar, agir e significar as relações de gênero, o feminino, o corpo e as relações sociais.

Palavras Chaves: pós-identidade; subjetividade estética; pós-feminismo; arte contemporânea

A partir da perspectiva pós-feminista3 de que é preciso inventar outras

figurações para o feminino, a proposta deste artigo é refletir sobre a produção artística

de Cindy Sherman para perceber como a obra desta artista contemporânea questiona e

abala os estereótipos que temos sobre o feminino, e, ao fazer isso, produz linhas de

subjetivação que lançam para outros territórios nosso entendimento sobre o corpo, os

papéis de gênero e a identidade feminina.

Cindy Sherman é uma expressiva artista contemporânea que utiliza o próprio

corpo para desconstruir a fixidez da identidade ao explorar outras figurações para o

feminino. Cindy Sherman é uma fotógrafa e diretora de cinema americana nascida em

1954 que vive atualmente em Nova Iorque. Sua produção tem como características

auto-retratos nos quais ela questiona o papel e o modo como as mulheres são

1 Artista Visual, Psicóloga e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unesp-Assis. Bolsista

FAPESP. Link para portifólio - www.lixoinprocess.blogspot.com. 2 Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unesp de Assis 3 A terminologia pós-feminismo se refere a uma espécie de re-significação do próprio feminismo a partir das

reflexões, principalmente, do pós-estruturalismo no que tange às discussões sobre a diferença e à necessária desconstrução de uma concepção identitária e universal de sujeito. Neste sentido, o pós-feminismo significa uma reflexão acerca de armadilhas identitárias e generalizantes que acometem o próprio feminismo e acaba por reforçar o binarismo de gênero que classifica e separa o masculino do feminino.

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representadas socialmente, denunciando o caráter discursivo da produção do feminino a

partir das tecnologias midiáticas, literárias, fílmicas e médicas entre outras. Trata-se de

uma artista que inaugura o que nos anos setenta denominou-se de artistas de

performance e body-art (GROSENICK, 2005, p. 300-305). Falar sobre a produção

dessa artista faz-se contundente pois que junto aos estudos feministas ela tornou-se uma

referência para se pensar as questões de gênero bem para se desconstruir as

representações tradicionais do feminino. Com exposições nos museus mais importantes

de arte contemporânea a artista consta entre os cem artistas mais expressivos na

atualidade (HOLZWARTH, 2010).

De acordo com Kátia Canton (2009), um dos temas da arte contemporânea é o

corpo, a identidade (não apenas a de gênero) e o erotismo. Temas consonantes com a

produção dessa artista, respeitada também por explorar diferentes suportes e formas de

expressão, tais como: fotografias, instalações, foto-instalações, vídeo-instalações e

performances. Interessa-nos o fato de que, através do trabalho de Sherman, podemos

pensar as questões de gênero, de corpo e de identidade via multiplicação da mesma. A

artista utiliza o próprio corpo como território expressivo de suas obras retirando dele

suas essencializações ditas femininas para nos mostrar suas multiplicidades. Essa é uma

das estratégias desenvolvidas pelas autoras pós-feministas para desconstruir os

essencialismos acerca do gênero masculino ou feminino é fazer ver as linhas

constituintes desse processo de naturalização.

Esta estratégia é bem visível na obra “Untitled Film Stills”4 (1977-1980), na

qual Sherman explora as linhas de esteriotipia que formam o imaginário feminino e

cunham um modelo ideal de ser mulher. Se valendo das figuras femininas apresentadas

no cinema no período de 1950 a 1960, a artista performatiza inúmeras cenas que

compõe o imaginário acerca da mulher, projetando-se em personagens e

desempenhando inúmeros papéis, “ atriz, namorada, estudante, dona de casa, moça do

interior na cidade grande, sedutora, esportista, desamparada, sofredora, vizinha”,

imagens marcadas por “um código gestual padronizado e geralmente trivial, das quais

emerge a visão da mulher como pura superfície, como aparência convencional e restrita

a papéis socialmente determinados.” (FABRIS, 2003). Ao perfomatizar estes vários

esteriótipos femininos a artista deixa em evidência que o "ser" é tanto uma construção

imaginária quanto receptáculo de uma política de subjetivação que acaba por definir

práticas, desejos, modos de ser e estar no mundo.

4 http://www.moma.org/interactives/exhibitions/2012/cindysherman/gallery/2/#/64/untitled-film-still-2-

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Fazendo ver algumas linhas esteriotipadas que constituem uma dada política de

subjetivação feminina, a artista afronta diretamente as práticas identitárias que definem

o que é ser mulher a partir de um ponto de vista heteronormativo. À luz dos escritos de

Butler (1993), podemos dizer que, ao performatizar estas inúmeras figuras femininas, a

artista nos faz ver que somos subjetivados pelo gênero, pela repetição de normas

constitutivas que naturalizam os processos de construção de identidade: “(...) o 'eu' nem

precede, nem segue o processo dessa 'criação de um gênero', mas apenas emerge no

âmbito e como matriz das relações de gênero propriamente ditas” (BUTLER, p.7).

Nestas fotos-performances, Sherman desvela o modo como os “gêneros são forjados e

incrustados em uma economia semiótica da diferença sexual.” (COSTA, 1994, p.159-

160), o que acaba gerando uma abertura para uma pluralidade de feminilidades, aspecto

que desenvolveremos mais a frente.

Pode-se dizer então, que os atributos de gênero são, portanto, performativos,

ganhando vida e consistência no modo como os sujeitos executam e vivem suas relações

cotidianas. É na imersão na tessitura sócio-cultural que estes atributos se in-corporam

em nossos corpos e delineiam o que somos e desejamos, sendo nossas próprias práticas

de existência o meio pelo qual essas categorias são objetivadas e naturalizadas. Uma vez

que naturalizamos e objetivamos o gênero em nossas performances existenciais,

podemos, estrategicamente, desconstruir este funcionamento e inventá-lo outro,

agenciando e dando visibilidade e passagem a outras e variadas estilísticas da

existência. Assim, o mesmo “mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino

são produzidas e naturalizadas, poderia ser muito bem o dispositivo pelo qual estes

termos são desconstruídos e desnaturalizados” (BUTLER, 2006, p.59).

É no sentido da desconstrução e desnaturalização que, tal como um plano de

forças invisíveis, mas não menos atuantes por isso, há no Untitled Film Stills a suspeita

de que aquelas mulheres nada mais são do que ficções podendo portanto serem

ficcionadas de outro modo. É neste plano que a obra de Sherman opera algumas

desconstruções acerca do feminino e lança a possibilidade de outras linhas de

subjetivação. Neste sentido, uma multiplicidade de mulheres são criadas por Cindy. Em

alguns trabalhos, ela não apenas sugere outros modos de ser mulher, mas performatiza

figuras femininas que se opõem radicalmente a estes esteriótipos que definem um

padrão frágil e dócil de mulher. Um dos retratos em questão, faz parte de alguns

trabalhos que a artista fez sob encomenda de grandes marcas do mundo fashion, entre

elas a Vogue de Paris. Após o sucesso de Film Stills, Sherman ganhou notoriedade como

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um dos grandes nomes da arte contemporânea e foi convidada para fazer algumas

campanhas publicidades para essas grandes marcas.

Em seu primeiro editorial de moda realizado em 1984 para a Vogue-Paris, com

liberdade total de criação, Sherman performatizou mulheres completamente destoantes

de qualquer padrão de beleza. Untitled-137 retrata uma mulher vestida com um casaco

vermelho, que pode até ser bonito, porém insuficiente para tornar atraente esta mulher

que aparece descabelada, descuidada e com feição de tristeza, abandono ou desdém. No

Untitled 133, feito para a mesma campanha, o que vemos é uma mulher sem

maquiagem nenhuma, com um cabelo mal cortado e mal arrumado que inspira mais

pena ou rechaço do que admiração e desejo projetivo de ser igualmente bela e feliz.

Num olhar mais atento, percebe-se que pouco há de vida nessa mulher de olhar perdido

e rosto com linhas de expressão quase inespressivas.

Untitled 137 Untitled 133

Valendo-se de sua recém conquistada "fama" e, provavelmente, do fato das

pessoas não compreenderem completamente a verve de seu trabalho, Sherman gera, de

dentro da barriga do mostro (HARAWAY, 1995), alguns abalos no imperativo do belo,

do normal e do esperado que reina unânime na industria da moda e da beleza. Estes

retratos são fundamentais para posicionar Cindy como uma artista feminista, visto que

ela se propõe visivelmente a discordar e combater a ditadura da beleza que incide sobre

o feminino e que forma subjetividades que encarnam estes padrões e os atributos de

gênero em seus próprios modos de vida.

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Num plano molecular, vibra na obra de Sherman a suspeita de que vestimos

esses atributos de gênero em nossa pele, performatizando-os em nossas práticas diárias.

O que nos lança a desmistificar a idéia de que existe um corpo natural, ao pensar a

materialidade deste corpo o destituindo de mecanismos de naturalização advindos da

associação entre corpo, sexo e gênero. O que ocorre é uma abertura para a

desconstrução de uma lógica heteronormativa que se sustenta numa concepção

biologizante que determina que um corpo dotado de um órgão sexual feminino deve,

necessariamente, performatizar o gênero feminino, desejando figuras do sexo oposto e

se comportando de acordo com as prescrições ligadas a este gênero.

Para desconstruir esta ideia, as autoras feministas se propuseram a desvelar as

linhas e tecnologias que se valem dessa concepção naturalizada de corpo para

naturalizar também atributos de gênero. A estas tecnologias, técnicas e estratégias

discursivas pelas quais é construído o gênero, Teresa De Lauretis denominou

tecnologias de gênero (LAURETIS, 1994). Para a autora, tais tecnologias atuam sobre

corpos e desejos visando criar, regular e normatizar expressões de masculinidades e

feminilidades num esquema heteronormativo e falocêntrico. Segundo Lauretis (1994,

p.25) a construção de gênero se faz através de varias tecnologías de gênero " (por

ejemplo, el cine) y de discursos institucionales (por ejemplo, teorías) com poder para

controlar el campo de significación social y entonces producir, promover e ‘implantar’

representaciones de género”. Num diálogo com Lauretis, acrescenta Peres (2011, p.

100):

Trata-se de tecnologias que disciplinam os corpos, regulam os prazeres e adestram os desejos de modo binário e sedentário, produzindo indivíduos marcados por uma engrenagem regulatória e disciplinar que se orienta pelo sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais que determina corporalidades, figurações e discursos de manutenção à ordem heteronormativa, promovendo processos de subjetivação normatizadores heterocentrados.

Os corpos passam a ser compreendidos como superfícies prédiscursivas, efeitos

do próprio discurso que os produz e os naturaliza. Corpos marcados e subjetivados por

regimes de verdade (FOUCAULT, 1980). De acordo com (SWAIN, 2007, p.5) os

corpos são sócio-sexuados, o feminino por exemplo “não é um gênero imposto a corpos

pré-existentes, cujas variações apenas exprimem as roupagens culturais e históricas; o

gênero feminino cria, ao contrário, corpos adequados às limitações deste gênero”.

Absorvemos em nosso corpo as mais diferentes tecnologias para deixá-lo jovem,

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belo, saudável e o mais próximo possível de um ideal normativo. Encarnamos em nossa

pele diferentes próteses de gênero que ditam como um corpo feminino deve ser para ser

desejável, como devemos expressar nosso desejo e nossos sentimentos. Ao vestir essas

tecnologias de gênero e naturalizá-las em nossas performances existenciais perdemos

uma dimensão importante da relação que estabelecemos conosco mesmas.

Na relação que cada uma de nós estabelece com o próprio corpo, desejo e

práticas, as tecnologias de gênero passam a ocupar um lugar que deveria ser concedido

a um cuidado de si no sentido dado por Foucault (2004). De acordo com o autor, o

cuidado de si permite "aos indivíduos efetuarem, sozinhos ou com a ajuda de outros, um

certo número de operações sobre seus corpos e suas almas, seus pensamentos, suas condutas, seus

modos de ser,". Tal como os gregos se valiam deste cuidado de si para alcançar uma

espécie de ascese pessoal de acordo com valores éticos, podemos operar sobre nosso

próprio corpo e experimentar uma relação de autoria com nossos territórios existências.

Porém, pelo fato dessas tecnologias de gênero procederem por naturalizações e atuarem

sinuosamente na produção de subjetividades muitas vezes já dóceis e consentidas à

performatizar estes valores sem contestação, estas tecnologias são facilmente maquiadas

e vividas como cuidado de si; uma pseudo expressão de auto-cuidado, auto-

conhecimento e autoria de si.

É desfazendo essa maquiagem que Sherman desvela as tecnologias de gênero

que incidem e marcam a superfície de inscrição que é o corpo. Em quase todos seus

autoretratos, a artista faz questão de deixar visível e aparente os recursos que ela utiliza

para construir cada figuração do feminino que cria. Maquiagem, peruca, assessórios e

iluminação deflagram o processo de construção daquele corpo, processo que deve ser

percebido ao invés de ocultado.

Cada uma das linhas que constroem esses corpos femininos marcam traços e

elementos do que poderíamos supor ser a personalidade dessas mulheres inventadas por

Cindy. São linhas que, num só lance, singularizam cada perfil criado por Sherman e, ao

mesmo tempo, generalizam estes corpos no escopo de um contexto social. Em cada

rosto a combinação de diferentes tecnologias de gênero e o esboço de um perfil de

subjetividade de aparência única e singular. Porém, o que a artista faz ver em seus auto-

retratos, é que, pulsam na suposta singularidade de cada corpo, as linhas que marcam

esses corpos como genéricos.

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Untitled 359

A bela jovem que vemos logo acima, retrato feito em 2012 para uma campanha

da marca de cosméticos MAC, se assemelha a tantas outras belas jovens que acreditam

que ser bela é fonte de felicidade e possibilidade de inserção social. Com um cabelo

impecável e uma maquiagem harmoniosa, uma suposta felicidade emana desse retrato:

ela é linda e perfeita, tem tudo para ser feliz. Pessoas lindas e perfeitas se encaixam em

harmonia na tessitura social, não sofrem, não demonstram descontentamento e não

esboçam o menor movimento de resistência social por estarem demasiadamente

adequadas ao mesmo. É no modo como essa mulher é montada, que percebemos as

tecnologias de gênero que funcionam nesse corpo e traça um perfil de subjetividade

dócil e passivo. O retrato passa a ideia de uma mulher que se sente especial e única,

porem é facilmente perceptível que se trata da objetivação de uma performance

existencial pautada em clichês e estereótipos.

No Untitled 359 podemos ver a passagem do tempo e as marcas que ele deixa ao

incidir na transformação do corpo. No entanto, neste corpo em questão há uma nítida

resistência ao tempo, o excesso de maquiagem denota o peso de uma tecnologia de

gênero que inscreve em nossos corpos a fé de que o corpo belo e jovem é o único corpo

possível. Esconder a passagem do tempo sobre o corpo é não se perceber em processo

de envelhecimento, é não aceitar esse corpo que também passa, é distanciar-se de si

enquanto sujeito que experiencia o tempo em sua vida e ganha intimidade consigo

mesmo na medida em que ele passa. É como ato de resistência e possibilidade de

desconstrução que Sherman, ao criar essa figura feminina, opta por manter seu cabelo

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despenteado e evidenciar o visível exagero na maquiagem. A artista nos faz ver os

excessos dessas tecnologias de gênero e o peso que estes excessos ganham em nossas

vidas e corpos com o passar do tempo.

Dando visibilidade às marcas que incidem sobre o corpo, Sherman desconstrói

um suposta unidade do "eu", e abre nosso pensamento para compreender o "eu"

enquanto processo. Deflagrando as tecnologias de gênero que, historicamente, entram

em funcionamento na construção do corpo feminino e/ou masculino, a artista, de algum

modo, nos diz que estes corpos são construídos. Ao fazer isso, Sherman traz a tona uma

concepção de "sujeito" processual, mais afeito ao devir do que à essencialismos.

Segundo Bartholomeu (2009, p.56), mesmo trabalhando essencialmente com

autorretratos, Sherman desconstrói completamente a idéia de um "eu" identitário, um

"ser" único. Segundo o pesquisador e artista plástico:

O todo dos autoretratos de Cindy Sherman não é uma grande assemblage da qual se produza, na totalidade, um eu: cada um dos retratos admite mal os demais não porque se reportem ao mesmo eu, mas porque, finalmente, parecem não se reportar a eu algum, mostrando-se genéricos.

Não se reportar a "eu algum" evidencia, de certo modo, um vazio subjetivo que

marca a categoria do feminino visto que, numa leitura feminista, o feminino é uma

construção masculina. Ao mesmo tempo, este "eu algum" aponta para qualquer eu

possível, não representando somente um vazio, mas também um campo de

multiplicidade ainda a ser explorado por este eu em constante transformação.

Num vídeo5 no qual a artista fala sobre seu processo criativo e sobre a

retrospectiva de sua obra realizada no MOMA em 2012, há uma passagem que deixa

bastante evidente este "eu algum". Tal passagem remonta à infancia de Cindy quando,

ainda criança, ela pegava os retratos de família, desenhava um circulo em seu rosto e

escrevia "eu" logo abaixo do círculo. Mais do que uma afirmação identitária, podemos

compreender este ato como um estranhamento de si mesma, uma espécie de auto-

desconhecimento que se perfila como força gerativa para a construção de outros "eus"

possíveis. Utilizando a si própria como modelo de seus retratos, Sherman segue se des-

reconhecendo e se aproximando de si mesma na medida em que se estranha. Pode-se

dizer que, este estranhamento infinito presente no trabalho da artista lança linhas

virtuais de subjetivação, abre frestas para outros "eus" possíveis. É nesta fenda que pode

ocorrer a fusão potente de pensamentos, desejos e práticas que destoam da regra; de

modos de ser mulher não necessariamente aceitas e condizentes com a

5 http://lalulula.tv/tv/art21-cindy-sherman

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heteronormatividade.

Abrir frestas para outros "eus" possíveis é uma estratégia etica-estética-política

para ultrapassar a ênfase identitária entendida tradicionalmente como fixa, essencialista

e universalizante. Aspecto que alinha a produção de Sherman com algumas propostas

pós-feministas que lançam mão de figuras pós-identitárias6, gerando um deslocamento

nos pólos masculino e feminino e seus correlatos identitários, e lançando o corpo num

território de fronteira, mais afeito à experiência que à representação. Ao deslocar-se das

demarcações que delimitam o gênero masculino e o gênero feminino, as figurações pós-

identitárias lançam o corpo e a subjetividade em um não-lugar identitário, no qual é

inviável recorrer a modelos normativos pré-existentes. Ao invés de um modo de

subjetivação fechado, as figuras pós-identitárias são afeitas à conexões e simpáticas às

dissonâncias. Aqui, o primado da alteridade é incorporado como dimensão ética

relacional, escapando do sistema de apropriação, incorporação e totalização

(HARAWAY, 1994, p.254), que reduzem o múltiplo e a diferença ao primado do mesmo

e do sempre-igual.

Nesta concepção, as figurações pós-identitárias se experienciam em fronteiras e

não tem como correlato o amparo de atalhos morais de ação; segue por vias de

diferenciação que as abrem e as criam. Isto é, acaba por transgredir fronteiras que

viabilizam fusões potentes e a insurgência de possibilidades de vida. Abre-se caminho

para conexões não-identitárias e temporárias, uma via ética-estética-política que prevê a

negociação constante das partes envolvidas, a criação de linhas e territórios de vida e,

finalmente, a não reprodução automática dos enredos tidos moralmente como certos e

errados. Como figuras pós-identitárias, podemos dizer que, cada perfil de mulher criado

por Sherman é um ponto de multiplicidade e de multiplicação “que faz passar a

singularidade de diferentes maneiras de existir, por um só e mesmo quadro

identificável” (GUATTARI, e ROLNIK, 1999, p. 80).

Segundo Rey (2002), a arte contemporânea opera atuando como “elemento ativo

na elaboração ou no deslocamento de significados já estabelecidos” (idem, p.123). É

isso que a obra de Sherman faz ao operar como ponto de multiplicação. Seu trabalho

perturba o conhecimento de mundo, até então familiar, colocando o "espectador" em

processo. Segundo Rolnik (2002), fica mais explicito que a “(...) arte é uma prática de

problematização: decifração de signos, produção de sentido, criação de mundos”, não se

6 Algumas figuras pós-identitárias: Cyborg (HARAWAY,1994); subjetividade nômade (BRAIDOTTI,1994); mestiço (ANZALDUA, 1987)

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reduzindo ao objeto estético resultante dessa prática, mas voltando-se à prática como

um todo: “(...) prática estética que abraça a vida como potência de criação em diferentes

meios onde ela opera” (idem, p.56). Ocorre pois, uma aproximação entre arte e vida, o

que gera uma suspeita de que a criação, ou o processo criativo, não é propriedade

apenas do artista. Suspeita que opera uma horizontalização tanto entre arte e vida,

quanto entre artista e espectador. De algum modo, esta proposta anuncia a utopia de um

novo tempo, no qual todos são potencialmente artistas em suas práticas e relações mais

singulares com a vida. O que fica, é que a vida é produzida e encontra-se inacabada, ela

pode e deve ser transformada e inventada por artistas das mais variadas ordens.

Podemos, então, entender a vida como obra de arte, o que significa inventar

novas possibilidades de vida através de "regras facultativas que produzem a existência

como obra de arte, regras ao mesmo tempo éticas e estéticas que constituem modos de

existência ou estilos de vida" (Deleuze, 2006, p.123). Neste sentido, podemos dizer que

inventar novas possibilidades de vida pressupõe também inventar-se a si mesmo

explorando-se outro no vasto campo relacional que constitui a relação sujeito-mundo.

Como face de uma mesma dobra, podemos dizer que a arte contemporânea, ao estreitar

os laços entre arte e vida, investe na produção de subjetividades mais inventivas, e, ao

mesmo tempo, lança linhas de subjetivação que favorecem esse modo de subjetivação

implicada com a criação e transformação da própria existência.

Podemos pensar então em uma subjetividade estética, tal como desenvolvido por

Teixeira-Filho (2003) e Rolnik (2002). Este conceito se refere à processualidade que faz

vibrar a subjetividade e a lança em movimentos de criação e de devir, favorecendo a

construção de outros e novos universos de referência, assim como a

construção/desconstrução de significados e aprendizado de novos signos. Segundo

Rolnik (2002), investir em subjetividades estéticas mobiliza o desenvolvimento de uma

capacidade de reciclagem de repertório e promove a abertura para outros modos de ser,

estar, desejar e se relacionar no e com o mundo.

São estes outros modos de ser, estar e desejar que Sherman dispara em suas

obras. Em sua poética, Sherman fricciona entre o real e o imaginário e compõem suas

outras figurações do feminino. Suas, porque são todos retratos seus, seu rosto, sua cara.

A mesma cara e outros rostos. Mas quando a cara desaparece, Sherman em seu rosto

também desaparece. Em cada foto um rosto diferente olhando para nós. É neste ponto

que o pronome suas se converte em outras. Todo autor, todo artista morre um pouquinho

quando uma obra nasce. A criação é sempre maior que o criador, a obra é da ordem da

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multiplicidade e não da unidade. Uma legião de mulheres nascem em Cindy Sherman,

mulheres que se multiplicam infinitamente a cada encontro com o "espectador". Cada

vez que sua obra encontra um outro olhar, linhas de subjetivação são lançadas para

operar aberturas possíveis naquele que é tocado pelas múltiplas figurações do feminino

que vibram na obra de Sherman.

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Cindy Sherman is legion: contemporary art and the production of subjectivity

From the perspective of post-feminist that need to invent other images for the feminine, the proposal of this article is reflect about the artistic production of Cindy Sherman to understand how the work of this artist questions and shakes the technologies of gender that focus on the female body, and, doing this, produces lines of subjectivation that cast for other territories our understanding about the body, gender roles and the identity. Rapprochement between contemporary art and the inventive posture of authors post-feminists as Rosi Braidotti, Beatriz Preciado and Donna Haraway, we are counting on the need to insert and retrieve the inventiveness within feminism, within the philosophy of the academy and, finally, within our own practice while people located in a time in which invent new and other modes of being, being and wishes and well more valuable than play values and practices have already fallen. In line with a ethical-aesthetic-political paradigm thought, in a perspective post-identitarian and investing in subjectivities aesthetic, the idea is to understand how the work of this artist operates a re-signification of practices and thoughts by creating other ways of thinking, acting and signify the gender relations, the female, the body and the social relations.

Key words: post-identity; aesthetic subjectivity, post-feminism, contemporary art